19º Congresso Brasileiro de Sociologia 9 a 12 de julho de 2019 UFSC - Florianópolis, SC

Grupo de Trabalho: GT16 - Inovação social e economias alternativas

AS METAMORFOSES DA USINA NO ÂMBITO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Victoria Puntriano Zuniga de Melo, Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

AS METAMORFOSES DA USINA CATENDE NO ÂMBITO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Victoria Puntriano Zuniga de Melo, Universidade Federal da Paraíba (UFPB)1

RESUMO

Esta pesquisa trata da Usina Catende, uma empresa da plantation açucareira, na zona da Mata de , baseada no tripé: latifúndio, monocultura e agroexportação com mão de obra explorada em um ambiente de dominação e violência. Após período de expansão até 1950 foi decaindo em um contexto de dificuldades para o setor sucroalcooleiro. Em 1993 realizou a demissão de 2.300 trabalhadores sem o pagamento dos direitos trabalhistas, depois de dois anos de luta, estes trabalhadores obtiveram uma decisão falimentar favorável. O que se inicia como uma luta por direitos vai se conformando como uma fábrica recuperada no campo Bourdieu (2003) da economia solidária. Tal como Laville (2011) aponta, a dupla dimensão da economia solidária a econômica e também a política. Durante os dezesseis anos em funcionamento ocorreram transformações nessas esferas e também na área social. A pesquisa de campo realizada teve caráter etnográfico com atores dos diversos segmentos: trabalhadores, agricultores familiares, presidentes de sindicatos e colaboradores do projeto. Os resultados apontam o êxito no acesso a diversas políticas públicas como Educação de Jovens e Adultos (EJA), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), a melhoria dos processos democráticos e participativos entre os trabalhadores e a criação da Cooperativa Catende-Harmonia. Enfrentaram muitos desafios em sua trajetória entre elas a insegurança jurídica.

Palavras-chave: Economia Solidária. Usina Catende. Metamorfoses.

RESUMEN

Esta investigación trata de la “Usina Catende”, una empresa de la plantation azucarera, situado en la zona boscosa “mata” de Pernambuco, basada en el trípode: latifundio, monocultivo y agro exportación con mano de obra explotada en un ambiente de dominación y violencia. Después de un período de expansión hasta 1950 fue decayendo en un contexto de dificultades para el sector sucro-

1 Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP/ IFCH), Mestre em Ciências Contábeis (UFPB). E- mail:[email protected] alcoholero. En 1993 realizó el despido de 2.300 trabajadores sin el pago de sus derechos laborales, después de dos años de lucha, esos trabajadores obtuvieron una decisión favorable de la quiebra. Lo que se inicia como una lucha por derechos, se conforma cómo una fábrica recuperada en el campo Bourdieu (2003) de la economía solidaria. Tal como Laville (2011) señala la dupla dimensión de la economía solidaria (económica y también política). Durante los dieciséis años en funcionamiento ocurrieron transformaciones en esas esferas y también en el área social. La investigación de campo realizada tuvo caráter etnográfico con actores de diversos segmentos: trabajadores, agricultores familiares, presidentes de sindicatos y colaboradores del proyecto. Los resultados señalan el éxito en el acceso a diversas políticas públicas como Educación de Jóvenes y Adultos (EJA), el Programa de Adquisición de Alimentos (PAA), y el Programa Nacional de Fortalecimiento de la Agricultura Familiar (PRONAF), la mejoría de los procesos democráticos y participativos entre los trabajadores y la fundación de la Cooperativa Catende-Harmonia. Enfrentaron muchos desafíos en su trayectoria entre ellos la inseguridad jurídica.

Palabras clave: Economía Solidaria. Usina Catende. Metamorfosis.

INTRODUÇÃO

Esta investigação tem como objeto de pesquisa a Usina Catende, uma usina que se desenvolveu no contexto da plantition açucareira, é um caso sui generis de estudo contemporâneo no campo da economia solidária, do processo de recuperação dessa empresa pelos trabalhadores, uma luta na qual é reinvindicada a posse e propriedade dos meios de meios de produção. Para Singer (2002) a economia solidária trata-se organização democrática de produção e consumo centrado no cooperativismo considerando seus princípios inspiradas em Rochdale como no capitalista: participação democrática, igualdade, equidade entre os participantes, a autogestão, a rejeição ao vínculo salarial, a autonomia e solidariedade. Ainda mais, em uma região marcada pela colonização com base escravagista e paradigma agroexportador, ou seja, com uma história de opressão e exploração do trabalhador rural. A Usina Catende nos anos 1990 tinha um território de 26.000 hectáres em cinco municípios; Catende, Palmares, , Xexéu e Água Preta, dividida em 48 engenhos onde residiam 4.000 famílias. Esta pesquisa tem como questão motivadora: Quais os avanços e limites deste empreendimento de economia solidária? Apresenta como objetivo principal identificar os avanços e limites que esta experiência teve durante os dezesseis anos em que funcionou como fábrica recuperada e os avanços realizados em direção aos valores da economia solidária. Esta pesquisa na perspectiva do conhecimento mediada pelas condicionantes históricas da própria sociedade da qual é um produto (SANTOS, 2010), procura analisar sociologicamente uma experiência de economia solidária, uma fábrica recuperada. A abordagem metodológica foi estudo de caso, dado que se propõe explicar as transformações vividas pelos trabalhadores (industriais e rurais) e suas famílias (também como agricultores familiares) durante o período em funcionou como uma experiência de economia solidária. A pesquisa qualitativa a reconstrução histórica da trajetória desta Usina como uma experiência de Economia Solidária e, consequentemente, de seus trabalhadores2. Nesse sentido, a análise sociológica da trajetória da Usina Catende mostrando seus anseios, desafios e dificuldades que os trabalhadores enfretaram como as estruturas impostas pelo sistema capitalista. Considerando a economía solidaria apartir da imbrincação da dupla dimensão da economia solidária: econômica e política (LAVILLE, 2001). Para analisar a experiência utilizo as categorias de Bourdieu: campo e habitus, para interpretar os comportamentos incorporados e reproduzidos pelos trabalhadores no campo da pesquisa, a Usina Catende. Seja em algumas continuidades da estrutura herdada do empreendimento capitalista ou em suas rupturas.

A CONSTRUÇÃO, ASCENÇÃO E DECLÍNIO DA USINA CATENDE COMO UMA EMPRESA MERCANTIL

A Usina Catende, como ficou conhecida, teve seu inicio ao final do século XIX, em 1890, inicialmente registrada no nome do governador da época José

2 Para preservar a identidade dos entrevistados (as) foram utilizados pseudônimos. Antônio Correia da Silva. Localizada na região da Zona da Mata Sul do Estado de Pernambuco, nas margens do rio Pirangi. A zona da mata era caracterizada pela cultura canavieira, o ciclo da cana- de-açúcar fornecia a riqueza aos donos de engenho que posteriormente se converteram em donos de usinas (acumulando assim também a produção industrial), que conformavam a aristocracia da cana, detendo o controle da terra, da economia e da política estadual. O modelo predatório aplicado na região, o da plantation açucareira (vinculada às formas de propriedade e de produção no tripé: latifúndio, monocultura e agro exportação), trouxe consequências econômicas e sociais como: a desigualdade, pobreza, fome e analfabetismo. A monocultura da cana- de-açúcar trouxe consequências ao meio ambiente como a erosão do solo, desertificação e contaminação dos recursos hídricos (ANTONIO NETO, 2012). A usina Catende teve, a partir de 1920, com o “Seu Tentente” inicialmente como gerente e posteriormente como dono, uma época de maior desenvolvimento: modernizou o sistema de irrigação, construiu uma hidroelétrica para abastecimento da Usina e inovou na gestão, sendo considerado linha dura. Esses avanços melhoraram a produtividade, chegando a ter a maior safra nacional em 1936 e a exportar açúcar para Europa (KLEIMAN, 2008; MENEZES, 2014). As duras condições de trabalho dos operários3 do açúcar na Usina Catende são relatados por Lopes (1976) em “O vapor do diabo”: extensas jornadas de trabalho que prejudicavam a sua saúde dos trabalhadores, inclusive pelo fato das moradias, no caso “arruados”, pertencerem a Usina, e serem convocados em horários inconvenientes de acordo com a necessidade da empresa. Nesta obra os trabalhadores se referiram a essa circunstância como “cativeiro”. Vale salientar que, a aristocracia do açúcar, além dos ganhos com a exploração da mão-de-obra, e com o barracão, contaram com financiamento governamental, utilizando o seu capital social (BOURDIEU, 2003) para influenciar

3 Em referência ao relato de um operário novato contratado na safra que se referiu ao vapor na sala de máquinas como “O vapor do diabo”, que deu origem ao nome da tese que foi publicada como livro. também em esta esfera, utilizando os recursos públicos em razão dos seus interesses políticos e financeiros. O Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), entidade governamental criado desde 1933, intervinha na agroindústria canavieira principalmente na região nordeste do país e depois também incluiu o sudeste (CPDOC, [entre 2002 e 2010], n. p) Um dos principais programas executados foi o Programa Nacional do Álcool (Pró-álcool) que tinha como objetivo estabelecer, ampliar e modernizar a indústria de álcool anidro. Para tal recursos financeiros seriam empregados nas usinas e destilarias. Quanto às críticas de sua atuação temos: O Instituto do Açúcar e do Álcool resistiu como um modelo de administração pouco econômico, capaz de sustentar a sobrevivência de qualquer usina ameaçada de falência, passando a administrá-la e devolvendo-a, após sua recuperação financeira, ao seu proprietário (CPDOC, 2019)

Os financiamentos com baixos juros e perdão de dívidas que não eram quitadas (SZMRECSÁNYI, 1979; ANDRADE, 2001) foram circunstâncias que levaram ao encerramento do IAA, em 1990 em um contexto de política neoliberal. O incremento produtivo da agroindústria canavieira na região Sudeste4, as crises econômicas das décadas 1980 e 1990, o fechamento do IAA foram fatores externos que provocaram a falência de diversas usinas. Internamente, a Usina já tinha sido vendida pelos descentes de “Seu Tenente” e adquirida por grupos empresarias que não tiveram o mesmo compromisso na gestão que o predecessor. Nesse processo, tal como indica Kleiman (2008) o grupo empresarial, atrasava salários, negociou as terras menos produtivas para pagamento de impostos atrasados com o governo federal e parte do patrimônio começou a ser repassado para empresas “laranjas”.

O INICIO DA METAMORFOSE: DE EMPRESA MERCANTIL A MASSA FALIDA

A Usina Catende em 1993 tinha uma extensão de 26.000 hectares de terra distribuídos em 48 engenhos e cinco municípios: Catende, Palmares, Jaqueira,

4 Ocasionado pelas terras planas oriunda da plantação de café, o incremento da mecanização e o desenvolvimento de canas com maiores níveis de Açúcares Totais Recuperáveis (ART). Xexéu e Água Preta, comportando aproximadamente 4.000 famílias. Quanto a sua infraestrutura, tinha uma hidrelétrica, a destilaria estava desativada, uma frota de 70 veículos (tratores, caminhões e máquinas) (KLEIMAN, 2008, MENEZES, 2014). Ainda nesse mesmo ano, a Usina Catende, no contexto de crise mencionado anteriormente, demitiu 2.300 trabalhadores do campo5 sem realizar o pago dos direitos laborais e ainda sendo expulsos com suas famílias das precárias moradias que ficavam nas terras da Usina. A quantidade de demitidos teve um grande impacto social na região da Zona da Mata Sul, que juntamente com os movimentos sociais na época mais atuantes devido no contexto da redemocratização da sociedade: grupo de direitos humanos, a igreja católica inspirada na teologia da libertação, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (FETAPE) organizaram um levantamento dos direitos trabalhistas desses trabalhadores e de suas residências. Esse documento foi ajuizado e se constitui um condomínio de credores com a orientação jurídica do advogado da FETAPE, porque historicamente, eram os donos que solicitavam a falência, no marco legal da época, o Decreto-Lei nº 7.661/45, eram eles mesmos os responsáveis legais e usando dessa prerrogativa transferiam o patrimônio a outras empresas do seu interesse de forma tal que os trabalhadores eram lesados. A novidade em Catende era que, depois de ver as usinas desaparecerem, a gente propôs esse debate com o governador: vamos fazer um condomínio de credores para evitar que Catende desapareça. Para ela não desaparecer no processo de desmobilização feito pelo próprio dono, vamos pedir falência e, através de uma administração judicial, garantir a integridade do patrimônio. E outra inovação: a lei de falência permitia a continuidade dos negócios. Então vamos fazer um esforço para manter ela funcionando sem os usineiros (Bruno Ribeiro, advogado de la FETAPE, entrevista em março/2017)

Contudo, esse processo não teria acontecido sem a forte mobilização dos trabalhadores. Entretanto, havia muitas cisões entre os próprios trabalhadores, as demissões tinham acontecido com os trabalhadores do campo que tinham condições de vida e de trabalho consideradas “mais penosas” que a dos operários

5 Em sua maioria mulheres (MENEZES, 2014) evidenciando as assimetrias de género presentes na região. da indústria. Estes últimos moravam na cidade, tinham profissões e eram mais próximos dos donos. De forma que essas representações do seu contexto social e cultural informavam habitus diferenciados. Essa aliança entre os trabalhadores do campo e da fábrica, somente aconteceu porque houve um fato que os uniu, a conscientização de que estavam sendo enganados, prejudicados e que precisavam reagir, quando no período de safra estavam sem receber salário de dezembro e nem o decimo terceiro salário. Era uma situação de pobreza para os que ainda trabalhavam e souberam pelos jornais de Pernambuco que uma das famílias do grupo empresarial fez uma grande festa por ocasião do réveillon6. A reação dos trabalhadores do campo e da fábrica unidos junto aos STR’s consistiu em organizar uma grande greve que durou 19 dias no início de 1995 e que conclui com a saída dos donos de forma temporal. Com o apoio da FETAPE, do governo do Estado de Pernambuco e dos movimentos sociais que contribuíram para o luta pelos direitos desses trabalhadores, se solicitou a falência, uma vez que os donos já a tinham solicitado. A justiça concedeu a falência a favor dos trabalhadores e com a articulação da FETAPE, dos sindicatos, do governo de Pernambuco e dos credores, se designou como primeiro síndico ao Banco do Brasil (SCHÄFERS, 2007). Neste sentido, os primeiros juízes da falência tiveram compreensão em relação a causa dos trabalhadores. Como cita Gaspar, colaborador do projeto, entrevistado em mar/2017: O juiz que estava com o processo comprou a ideia de que a usina podia ser transformada, em vez de desmontada e vendida, inclusive as terras, podia ser uma experiência interessante para manter o emprego dos trabalhadores. Se ele sabia o que era economia solidária, eu nunca soube.

É a partir desse fato que se dá inicio a momento a uma gestão7 para continuar funcionando com grandes desafios, como a fome, o analfabetismo, a manutenção dos empregos e inovação na gestão (NASCIMENTO, 2004). Também a necessidade de realizar o pagamento dos salários atrasados e de

6 Essa festa ficou conhecida entre os trabalhadores do campo como “O vermelhão dos Guerra”, porque foi assim que (re)significaram o réveillon. 7 Da qual formavam parte os 5 STR’s, o representante sindicato dos operários do açúcar, e os assessores, gerência industrial e do campo e os grupo de professores foi incorporado posteriormente. retomar a produção, a falta de crédito, as tentativas de donos de tomarem a terras e de vender a usina utilizando a sua influencia no Banco do Brasil. Logo após este fato renunciou como síndico e quem assumiu a sindicatura foi Mário Borba8. Ademais, enfrentaram disputas internas de tentativas de tomada do controle da usina por parte dos operários enfrentando a “gestão dos trabalhadores” (entendida como do campo), promovendo uma greve tentando desestabilizar o síndico, porém esses trabalhadores conseguiram retomar o controle da Usina (KLEIMAN, 2008, SÍGOLO, 2015). Também teve a invasão do Movimento dos Sem Terra (MST), em 1998, porque nessa época havia pouca compreensão do que significava o projeto, da proposta coletiva de gestão da posse da terra. "Antigamente o MST entendia que era terra de usineiro e invadiu, mas hoje a relação é muito tranquila, depois acabou entendendo" (Emílio, asessor do projeto, fev/2014). Até esse momento algumas ações formam tomadas para o combate a fome, como a liberação de terras para uso coletivo, inicialmente para agricultura de subsistência e um banco rotativo de sementes de cana-de-açúcar. Ações educacionais pautadas na educação popular9 para a Educação de Jovens e Adultos (EJA)10 em parceria com ONG’s e o governo do Pernambuco. A partir desses ensinamentos e a necessidade de articulação com a gestão da Usina que começaram a se constituir as associações nos engenhos como forma de reinvindicação dos diretos dos moradores e por esse motivo seriam incorporadas ao Conselho Gestor (SCHÄFERS, 2007, KLEIMAN, 2008). Entre as principais mudanças nas condições de trabalho foram: a substituição das armas utilizadas pelos administradores de campo pelos rádios para facilitar a comunicação; a redução da carga horária para os trabalhadores do campo para poder estudar e ter sua plantação. E, excluir a prática prejudicial ao trabalhador, que era perder o Repouso Semanal de Remunerado (RSR) pela meta não atingida de forma forçada. Ao contrário, caso houvesse ausência

8 Que havia sido contratado pelo Banco do Brasil para a função de síndico. 9 Em uma participação cidadã interagindo com a sua realidade, a da cana-de-açúcar. Guiado pela metodologia de Paulo Freire, que inclusive esteve em uma aula inaugural em Catende. 10 Em 1997 “..nós fizemos com 3.000 pessoas, o projeto era muito grande. No final do curso em 97, tínhamos 100 educadores de base, 10 coordenadores, supervisores trabalhando nos 48 territórios” (Cordelia, professora de EJA, entrevista em fev/2014). justificado do trabalhador, se fazia uma compensação, um banco de horas, com a finalidade de receber o RSR (MELO, 2018). A participação coletiva também foi crescendo com as discussões de formalização de uma entidade para gerenciar a Usina, em função da desconfiança da atuação das cooperativas, pelo histórico na região, foi criada a Companhia Agrícola Harmonia como uma sociedade anônima em 1998. Apesar de não ser juridicamente o formato mais adequado de formalização, pois para o caso da atividade produtiva coletiva seria cooperativa, se tornou um marco. Os trabalhadores devido a experiências negativas na região de falsas cooperativas, não concordaram com essa forma de legalização.

ENTRE AVANÇOS E DESAFIOS NA TRAJETÓRIA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA

Em 1999, com a participação dos STR’s no lançamento da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS)/CUT11 conheceram sua proposta de atuação e também da Associação dos Trabalhadores de Empresas Autogeridas e Co- geridas (ANTEAG) bem como a descoberta economia solidária. Ao tomarem conhecimento de outras experiências de fábricas recuperadas no campo da economia solidária passam a identificar-se com seus princípios e valores, influenciados principalmente pela visão de Paul Singer, a quem chegaram a conhecer pessoalmente e a ter parcerias com as instituições citadas. Os anos seguintes representaram para Catende grandes desafios e oportunidades de superação. No ano 2000 aconteceu uma grande inundação na região, que afetou a Usina, alagando as suas instalações até o primeiro andar e também as residências dos moradores. Até esta circunstância específica, as diferenciações entre campo e fabrica apesar da aliança de 1995, estavam mantidas. As condições de trabalho tinham melhorado para os trabalhadores do campo e houve o enfrentamento entre ambos em 1998. Mas ante este desastre natural, a aliança entre campo e fábrica funcionou novamente, os trabalhadores do campo foram trabalhar na limpeza e

11 Em processo de criação semelhante ao ADS do Ceará (Gonçalves, 2009). na recuperação criativa12 das instalações da fábrica. Apesar do estrago nas instalações fabris, a Usina voltou a funcionar em tempo recorde, 45 dias após o desastre. Porque houve esforços conjuntos para que isso acontecesse, como narra Izauri, trabalhador administrativo (entrevista em nov/2016): O mais marcante na minha opinião foi depois da cheia, a disposição do síndico da época, que era Dr. Mário Borba, ele fez uma reunião com todos os trabalhadores, quando a gente pensava que não tinha mais esperança nenhuma pra continuar e perdemos as esperanças naquele período; mais de 1 metro e meio dentro da usina e tudo, a gente achava que ela não voltava mais. Ele reuniu o todo ao lado… na frente do armazém de açúcar, e garantiu que com o esforço dele e dos trabalhadores voltaria… e assim, aconteceu. E ela realmente voltou, uma coisa impactante né?

No ano seguinte, 2001, não tinham se recuperado economicamente da inundação, ocorreu um incêndio na casa das máquinas. Era um sábado e como ocorreu na Usina, foram os operários que ficaram encarregados de tirar um teto de telhas que unia a casa de máquinas a um depósito e se não tivessem conseguido o fogo teria se alastrado13 (KLEIMAN, 2004; SÍGOLO, 2015; MELO, 2018). Apesar dos esforços dos operários, o fogo era resultado de óleo industrial e só consegui ser apagado por dois helicópteros do corpo de bombeiros de bombeiros14 enviados pelo governador. Apesar dos problemas financeiros, essas duas adversidades, a inundação e o incêndio, foram sentidos pelos trabalhadores como fortalecedores do trabalho coletivo de solidariedade. O Projeto Cana do Morador (PCM) possibilitava que os demitidos ou seus filhos15 plantarem cana-de-açúcar nas áreas cedidas pela Usina mediante contrato, recebendo as colmo-sementes da cana-de-açúcar. Em 2002 este programa já se iniciava com 1.835 moradores recebendo o equivalente a R$ 4.129.725,85 e com o acesso ao financiamento do PRONAF pelo BB esperava-se a sua ampliação (RELATÓRIO DA GESTÃO, 2003).

12 Porque se tratava de maquinários muito antigos dos quais não se tinha mais acesso a reposição das peças e muitas delas precisaram ser adaptadas ou até mesmo criadas. 13 Ainda assim tiveram prejuízos de R$ 5.265.000,00 (Relatório de gestão, 2003) 14 Que fica a 65 km de distância de Catende Ainda hoje não existe corpo de bombeiros na cidade de Catende, embora na época na existisse o corpo de bombeiros em Palmares, o mais próximo era o de Caruaru, que fica a 65 km de distância. 15 Em referência aos demitidos em 1993 que não receberam seus direitos trabalhistas. Também houve avanço na diversificação das culturas incluindo a banana, mandioca, macaxeira, batata entre outros, além da criação de bovinos e caprinos. Em parceria com o Instituto Josué de Castro se desenvolveu um projeto de segurança alimentar, piscicultura, com a construção de poços artesanais nas moradias e de viveiros com as crianças nas escolas dos engenhos (KLEIMAN, 2008; SÍGOLO, 2015). Mas o grande desafio continuava o equilíbrio financeiro e a necessidade de acesso ao credito via políticas públicas. Foi em 2004, durante o governo Lula que se obteve recursos16 mediante a compra antecipada do açúcar através da Companhia de Abastecimento (CONAB) para financiar o período de entressafra. Como relata Velazco, dirigente da FETRAFE (nov/2006): "Lula deu ajuda para comprar o açúcar para o fome zero, nas sacas de açúcar de 2 kg. Estava escrito “Governo Federal – Fome Zero”. Isso foi permitindo que a Usina continuasse a funcionar...". Este procedimento era realizado via associação e nesse período as associações interessadas se formalizaram ou regularizaram e eram consideradas entidades de representação (KLEIMAN, 2008). Laville (2004) aponta que a economia solidária tem uma imbricação econômica e política. A participação e representação das associações no Conselho Gestor em uma gestão dos trabalhadores em uma Usina do porte de Catende fazia com que houvesse oposição dos usineiros da região contra os trabalhadores. Quanto à educação popular o EJA17 foi ampliado e com a parceria de ANTEAG se promoveram cursos de autogestão e economia solidária e seguidamente a educação ambiental, cursos de formação de produção agrícola e industrial para a reposição de quadros (MELO NETO; LIMA, 2010). Ainda em 2004, houve uma mudança de síndico18, desta vez, quem assumiu foi um ex-trabalhador rural, sindicalista e bajo sua gestão se expandiu Usina Catende.

16 3,5 milhões naquele ano. 17 Tinha os seguintes eixos: Agricultura familiar: cultura, identidade, gênero e etnia; Sistemas de produção e processos de trabalho no campo; Cidadania, organização social e políticas públicas; Economia solidária; Desenvolvimento sustentável e solidário com enfoque territorial. 18 Essa troca foi ocasionada porque o sindico tinha conhecimento na região do setor de açúcar e como a Usina tinha vendido antecipadamente a estas traidings ele pretendia honrar o Ainda no final de 2004 foi constituída a Cooperativa Harmonia de Agricultores e Agricultoras Familiares (CooperCAtende), tinha como objetivo inicial a compra de máquinas e fertilizantes para os 2.200 agricultores familiares, que se tornaram cooperados. A cooperativa formou parte do Conselho Gestor que avaliava os projetos e era responsável pela tomada de decisões no dia-a-dia das atividades do empreendimento (SCHÄFERS, 2007; KLEIMAN, 2008) Inicialmente foi conformada uma pequena diretoria, mas a sua atuação foi sendo ampliada, inclusive foi citada por Silva G (2011) em analogia ao corpo humano como se fosse a cabeça. A Usina Catende requeria de investimentos consideráveis pelo seu porte e não havia fontes de financiamento específico para as organizações da economia solidária e pelo que o acesso se dava via política pública. Esperava-se pelo fim do processo falimentar, mas como não se mostrava viável no momento, Sígolo (2015) e Lima (2010) informam que haveria a opção da desapropriação por parte do INCRA da totalidade das terras, dos imóveis e equipamentos. As tratativas junto ao INCRA foram realizadas contando com a mobilização dos trabalhadores e articulação política. Porém o INCRA se mostrou favorável somente à desapropriação das terras e não da parte industrial. Assim no final de 2006 a desapropriação ocorreu conforme Portaria INCRA Nº 44 DE 15/12/2006, que instituiu o “Assentamento Miguel Arraes”, conformado por 48 engenhos nos cinco municípios que comporta a Usina Catende. A conquista da terra foi a grande vitória dos trabalhadores e mais ainda quando se consegui fazê-la de forma coletiva, dado que os moldes do INCRA era realizar a desapropriação em lotes individuais. A Usina Catende funcionava de forma associada e era preciso que as terras continuassem a ter a propriedade comunitária para todos os moradores do assentamento. Entretanto, pelo fato da não terem obtido a desapropriação da parte industrial da Usina o processo falimentar continuou em aberto ficando, mais uma vez na insegurança jurídica, dependendo da hermenêutica de cada juiz.

compromisso. O problema foi que havia pouca produção e não conseguiriam honrar também o açúcar comprometido com a política pública e dessa forma não haveria como renovar os créditos necessários para financiar a entressafra. As dificuldades financeiras continuaram durante todo o período de funcionamento, não era possível obter financiamento porque a entidade era falida e não existe uma linha de crédito específico para entidades da economia solidária ou fábricas recuperadas. Portanto, a alternativa era a obtenção de recursos em nome dos trabalhadores tanto pela CONAB, com pelo PAA. Na safra 2007 a 2008 se produziu mais de um milhão de sacas de açúcar, embora o preço do açúcar estivesse em queda e não obtiveram o resultado econômico desejado. Ante essas dificuldades se fazia primordial que os empréstimos fossem renovados para continuar tento acesso a eles. Ante a difícil situação, os trabalhadores resolveram em assembleia destinar os valores que tinham a receber inclusive seus salários para quitar a duvida com o empréstimo do PRONAF. Esta situação foi utilizada pelos inimigos do projeto para desestabilizar a gestão dos trabalhadores, o juiz determinou a substituição do síndico por uma pessoa de sua confiança. Além de que a conjuntura internacional faz com que o preço do açúcar aumente significativamente, chegando a quase triplicar do preço vendido na gestão de Marivaldo. Salienta-se que até 2009 tinham obtido da liberação de 49 milhões em financiamentos do PRONAF com os pagos realizados nos prazos combinados. Em 2012 com a estrutura produtiva muito diminuída o juiz tomou a decisão de encerrar a experiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este empreendimento teve como principais vitórias a desapropriação da terra, os ganhos em participação mais efetiva, a melhoria de analfabetismo, o acesso as políticas públicas do PAA e do PRONAF. Por outro lado, a sincronia da ação coletiva dos trabalhadores e da ação pública garantizaram o direito de da posse da terra para os trabalhadores. Os maiores limites foram à insegurança jurídica, porque a Usina Catende dependia da hermética de cada juiz da falência e o econômico porque precisava de financiamentos constantes, dado que a produção de açúcar se mostrava deficitária. Foi uma experiência que deixou suas marcas nos trabalhadores apesar de ter sido encerrada por decisão judicial, mostrou que o porte da empresa não é um empecilho para uma gestão dos trabalhadores.

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