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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

JOÃO MARCOS DA SILVA

O ATELIÊ NARRATIVO DE LYGIA BOJUNGA: TECER E DESFAZER A ESCRITA COMO EXERCÍCIO POÉTICO

DESTERRO - SC 2020

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João Marcos da Silva

O ATELIÊ NARRATIVO DE LYGIA BOJUNGA TECER E DESFAZER A ESCRITA COMO EXERCÍCIO POÉTICO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de mestre em Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa

Desterro - SC 2020

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João Marcos da Silva O ateliê narrativo de Lygia Bojunga: tecer e desfazer a escrita como exercício poético

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Ana Luiza Britto Cezar de Andrade Universidade Federal de Santa Catarina

Profa. Dra. Patricia Peterle Figueiredo Santurbano Universidade Federal de Santa Catarina

Profa. Dra. Dirce Waltrick do Amarante Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.

______Prof. Dr. Marcio Markendorf Coordenador do Programa

______Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa Orientadora

Florianópolis, 2020.

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Aos tecelões da minha incompletude, Luiz e Helena.

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AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pelo apoio financeiro que possibilitou esta pesquisa; À professora Doutora Maria Aparecida Barbosa, pela orientação sensível e presente; Aos companheiros do LiLiA – núcleo de estudos de Literatura em Língua Alemã – em especial, Rafael Sens, Thais Tolentino e Cláudia Peterlini, pelas contribuições e partilhas; À minha família, pelo suporte sem o qual não sou capaz; Aos meus amigos de Joinville e da Ilha, por verem além do que eu não consigo.

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Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior. Mas não digo isso: digo da pedra, “é uma pedra”, Digo da planta, “é uma planta”, Digo de mim “sou eu”. E não digo mais nada. Que mais há a dizer?

(Fernando Pessoa, 2007, p. 100)

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RESUMO

Este estudo investiga o processo de escrita na obra da escritora brasileira Lygia Bojunga, buscando refletir sobre a influência do trabalho artesanal na sua produção. Há recorrência de imagens memoriais, histórias fragmentadas e uma escrita metaliterária e autorreferencial. Inserida num contexto pós anos 1970, a ficção de Lygia encerra gesto político. Assim, a escritora desenvolve um trabalho de reminiscência que performa na esfera do esquecimento, considerações desenvolvidas a partir do pensamento de Walter Benjamin (2012a). Desse trabalho, não resta a memória, mas o “tecido de sua rememoração”, constituído por intermitências e vazios. As imagens são entendidas como semelhanças anacrônicas possíveis para acessar a memória, não como ganho, mas como perda, de acordo com a reflexão de Georges Didi-Huberman (2010); o texto, por sua vez, é um rastro que desfigura a memória, as imagens e o sujeito, mas que possibilita a transmissibilidade, conforme o entende Jeanne Marie Gagnebin (2006). As reflexões, influenciadas por perspectiva benjaminiana, apontam para uma obra aberta (GAGNEBIN, 2012), ou seja, em continuação, que figura por meio do gesto. A literatura estudada atribui valor ao processo e ao movimento, criando metáforas que aproximam o fazer artístico e o olhar político.

Palavras-chave: Lygia Bojunga. Memória. Imagem. Gesto. Artesanal.

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ABSTRACT

This study investigates the process of writing in Brazilian writer Lygia Bojunga’s work, seeking to reflect on the influence of handmade work on her production. There are recurrences of memorial images, fragmented stories and meta-literary and self-referential writing. Inserted in a post-1970s context, Lygia's fiction includes a political and aesthetic gesture. Thus, Bojunga develops a work of reminiscence, which performs the scope of oblivion, considerations developed from the thought of Walter Benjamin (2012a). Of that work, it does not restore memory, but the fabric of its remembrance, constituted by intermittences and voids. The images are understood as possible anachronistic similarities to access memory, not as gain, but as loss, according to Georges Didi-Huberman (2010) understanding; text, in turn, is a trace, a track which disfigure memory, such as images and subject, but which allows transmissibility, as indicated by Jeanne Marie Gagnebin (2006). Influenced by Benjamin’s perspective, the results point to an open work (GAGNEBIN, 2012), that is, in continuation, which figures through gesture. The studied literature attributes value to the process and to the movement, creating metaphors that bring together artistic making and political view.

Keywords: Lygia Bojunga. Memory. Image. Gesture. Handmade.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa de Livro – um encontro...... 25 Figura 2 – Capa de Fazendo Ana Paz...... 26 Figura 3 – Kaiserpanorama...... 30 Figura 4 – Espiando o passado pelo Panorama...... 31 Figura 5 – Ruas berlinenses no século XIX...... 35 Figura 6 – Saturno devorando um filho (1819-1823), de Goya...... 41 Figura 7 – Foto da família Bojunga...... 44 Figura 8 – Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain...... 46 Figura 9 – Ilustração da Pedra Santa, por Robert Streatfield...... 54 Figura 10 – Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro...... 55 Figura 11 - Squelette arrêtant masques (1891), Ensor...... 61 Figura 12 – Guernica (1937), Pablo Picasso...... 79 Figura 13 – Minotaur (1933), Man Ray...... 79 Figura 14 – A man walking (1887), Eadweard Muybridge...... 86 Figura 15 – La Masía (1921), Miró...... 96 Figura 16 – El pájaro hermoso descifra la desconocida pareja de amantes (1940), Miró...... 97 Figura 17 – Folha de rosto de Feito à Mão...... 107 Figura 18 – Retrato de Lygia Bojunga, de Carlos Scliar...... 112

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 11 1 TECITURA E URDIDURA DE PENÉLOPE ...... 20 1.1 REME-MORADA ...... 24 1.2 ANA-CRONIA ...... 36 1.3 ÁLBUM FOTOGRÁFICO ...... 42 2 COSTURA DE SAHRAZAD ...... 49 2.1 FANTASMA ...... 66 2.2 RASTRO ...... 77 3 ATELIÊ DE LYGIA ...... 84 3.1 NÓ ...... 88 3.2 LINHA ...... 94 3.3 CORTE ...... 100 3.4 ARTESANAL ...... 105 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 114 REFERÊNCIAS ...... 116

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INTRODUÇÃO

Em Livro – um encontro (1988), a escritora brasileira Lygia Bojunga pondera sobre a atividade de escrita à qual sua vida sempre esteve ligada. Rememora a infância, quando, por meio da caligrafia, desenhava as letras no caderno, em um trabalho perseverante que buscava o primor: “E ficar desenhando e apagando letra, escrevendo e reescrevendo palavras, era bom. Feito ir lá pro quintal mexer na terra.” (BOJUNGA, 2007b, p. 58). O cuidado com que marcava cada letra no papel despertou a afeição pela escrita – não distante, a lembrança da sensação das ferramentas de trabalho na sua pele. O texto associa o aroma da tinta da caneta – a qual lhe era negada, pois criança devia usar lápis! – à vontade de escrever, posto que o anseio de usar o objeto era proporcional ao anseio de desenvolver o ofício. O impulso pela escrita marcou também a adolescência, quando compunha diários: comprava-os aos montes para preencher correndo, uma pressa que se libertava dos escritos caligráficos perfeitos de antes. Agora não mais importava a forma exata das letras: “eu tinha que escrever” (BOJUNGA, 2007b, p. 61). O livro conta que ela preenchia cadernos, escrevendo por horas, em alguns dias, e apenas uma página, em outros – mas tinha que escrever –, com letra que se tornava garrancho atropelado na pressa de descobrir as palavras no papel. A atividade perdurou até a fase adulta: aí, rasgou os diários. “Sempre achei uma pena. Sempre sabendo que, se fosse hoje, eu rasgava tudo de novo outra vez” (BOJUNGA, 2007b, p. 62). O caminho da escrita a levou ao encontro da literatura, onde pôde trabalhar a técnica e a precariedade da mão que escreve. Ela caracteriza a si mesma como “artesã da escrita” (BOJUNGA, 2007b, p. 59), em decorrência do trabalho manual e do prolongamento do processo. Este estudo investiga o processo de escrita na obra de Lygia Bojunga, buscando refletir sobre a influência do artesanal na sua produção. A escritura-tecitura provoca marcas de descontinuidade em suas ficções, como aberturas (GAGNEBIN, 2012). Os textos evocam vozes de naturezas distintas, caracterizando-se como polifônicos: há pulsões do ficcional, atribuídas à variedade de personagens, que canalizam e representam problemáticas sociais e psicológicas, e da memória, por meio de uma narradora que tece uma rememoração. Muitos dos textos consistem em narrativas explicitamente memoriais. Eles possibilitam que o leitor se aproxime da autora – ou, à princípio, acredite nisso –, por meio de imagens. Os escritos se referenciam, recuperando essas imagens, que soam familiares, como se houvesse semelhanças entre os

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escritos. Contudo, paira a incerteza quanto à classificação do gênero: é possível afirmar que seja autobiográfico?1 Alguns dados podem, de fato, ser confirmados, apesar dos hábitos discretos da escritora. Suas aparições em meios de comunicação ou entrevistas são raras. Prefere se comunicar com os leitores através dos livros. A mais segura referência quanto à vida da artista talvez seja o site de sua editora e instituto social, Casa Lygia Bojunga – CLB. A escritora nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e aos oito anos se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Na adolescência, encontrou aquela que seria uma de suas grandes paixões artísticas: o teatro. Estreou no Teatro-laboratório Duse2, em 1952, e logo foi contratada para a companhia Os Artistas Unidos, pela qual contracenou com atrizes como e Henriette Morineau. O ofício de atriz seria retomado em anos futuros, por meio das apresentações do monólogo autoral Livro, no Brasil, na Colômbia e em Portugal, e do projeto As Mambembadas, com o qual viajou pelo Brasil apresentando contações de histórias, inspirada pelos artistas mambembes. Nesse momento, queria que suas atividades fossem o mais “artesanais” possível: “nada me pareceu tão ‘feito à mão’ quanto mambembar pelo Brasil, levando de bagagem menos de cinco metros de crochê.” (BOJUNGA, 2008b, p. 118). A necessidade financeira fez com que começasse a escrever para rádio e televisão, trocando o ofício artesanal pelo ofício do escritório, como relata no site e na obra Livro – um encontro. Somente na década de 1970 iniciou a carreira literária, ao lançar Os Colegas (1972).

1 O percurso da pesquisa remonta aos anos finais da minha graduação, período em que tive a oportunidade de atuar como bolsista no Programa Institucional de Incentivo à Leitura – PROLER Joinville, onde auxiliei no desenvolvimento de projetos de leitura, contação de histórias e eventos relacionados, e experimentei um contato afetivo com a literatura infantil. Ao lado do PROLER, estava o Programa de Literatura Infantil e Juvenil – PROLIJ, que mantinha relações conosco; era um trabalho colaborativo. No estágio de docência, desenvolvi um projeto que intencionava um exercício de rememoração por meio de objetos: cada um dos indivíduos compartilhava a história de um objeto pessoal pelo qual tinha apreço e desenvolvia uma narrativa no gênero apólogo, em que tal objeto fosse uma personagem. Em 2016, participei como voluntário do projeto Nastácias&Gepetos, do PROLIJ, que consistia na confecção de bonecos de pano para o incentivo à leitura em escolas e projetos sociais. O projeto teve como partida a leitura do livro A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga – escritora que eu já estudara na graduação e que me sensibilizava por meio de seus textos. O exercício de cortar panos, segurar a agulha e a linha nas mãos para juntar os retalhos e criar figuras, aquelas personas imperfeitas, irregulares, com o trabalho artesanal que impunha em cada pedaço um significado, me fazia pensar no próprio tecido de que somos constituídos – o tecido orgânico com suas marcas e junções que a memória e a experiência vão nos costurando. Era com esforço e orgulho que o grupo via nascer a bolsa amarela d’A Bolsa Amarela. Com o trabalho, vinha também a leitura contínua do livro de Bojunga, que embasava o projeto. A cada empreitada que fazia pelos seus textos, identificava elementos constantes que percorriam a obra literária: personagens, crianças ou bichos, que criavam, contavam histórias, faziam arte, ao mesmo tempo que estavam às margens, elas próprias restos excedentes de uma sociedade estruturada, enfrentando a dor e a solidão. 2 Embora o site da CLB não informe a peça em que ela estreou, segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, pressuponho que tenha sido sob o título João Sem Terra, com direção de José Maria Monteiro, uma vez que essa é a primeira peça do Teatro Duse que apresenta o nome da atriz na ficha técnica (Lygia Nunes – seu nome é Lygia Bojunga Nunes, inclusive suas primeiras obras eram assinadas assim; somente mais tarde passou a escrever como Lygia Bojunga, o que explica a variação referencial neste trabalho). Foto da peça in "Brasil, memória das artes”, disponível em: Acesso em: 20 jan. 2020.

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Nos anos que seguiram, passou a dividir residência entre Londres e Rio de Janeiro. Em 2002, fundou a editora Casa Lygia Bojunga, no bairro carioca de Santa Teresa, com o intuito de acompanhar o processo de desenvolvimento da sua obra. O primeiro livro lançado pela editora foi Os Retratos de Carolina (2002). Conforme os contratos com outras editoras terminavam, recolheu seus livros precedentes para relançá-los na CLB. Atualmente, todos se encontram sob domínio da editora.3 Lygia Bojunga escreveu obras infantis e juvenis que ocupam um importante lugar na literatura brasileira e mundial. Além de premiações nacionais, como Prêmio INL – Instituto Nacional do Livro, Prêmio Jabuti e Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ, foi a primeira escritora da América Latina a ganhar o prêmio Hans Christian Andersen, um dos mais importantes para a literatura infantil; além disso, o conjunto de sua obra foi premiado com o ALMA – Memorial Award, prêmio sueco dado à produção para jovens, que possibilitou a criação da Fundação Casa Lygia Bojunga. As narrativas de Lygia propõem diálogo entre realidade e fantasia, criança e adulto, poder e marginalidade, o que é possível considerar como as primeiras costuras textuais do exercício poético. Lajolo & Zilberman (2007) apontam para o olhar crítico social que sempre caracterizou sua obra, a qual discute relações com o mundo e temas densos, ao mesmo tempo em que se dirige ao público infantil e juvenil, com narrativa distinta e personagens pitorescos: “Mais do que a representação de situações sociais tensas, Lygia Bojunga Nunes traz para suas histórias a interiorização das tensões pela personagem infantil, muitas vezes representada por animais.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 156). Sua obra é marcada pela discussão das estruturas sociais e pela forte crítica a assuntos políticos nacionais. A veia social é ressaltada pela escritora em rara entrevista ao programa Entrelinhas, da TV Cultura (2012), onde afirma que sua literatura se metamorfoseia nessas personagens diversas, crianças ou bichos, que representam com mais afinco seus anseios, seus sonhos e a preocupação social com o Brasil. (TV CULTURA, 2012). Evidentemente, é impossível desassociar a produção de Lygia do momento político em que ela se insere. Durante o governo de João Goulart (1961-1964), influenciados pelo pensamento nacionalista e anti-imperialista, os intelectuais e artistas estavam mobilizados para criar uma “sustentação cultural ideológica necessária para a generalizada mobilização

3 Além de editora, a CLB é uma Fundação Cultural que desenvolve projetos sociais relacionados ao livro. São sete, no momento: “Paiol de Histórias”, “Mini-bibliotecas básicas/ Apoio a quem apoia o livro”, “Bolsa de estudos”, “A árvore e seus companheiros”, “Um encontro com a Boa Liga”, “Um novo nicho pra Santa” e “Encontros Literários”.

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esquerdizante.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 129). Como reação, os setores burgueses mais conservadores se aliaram ao imperialismo internacional: o setor agrário e o capital estrangeiro viram seus interesses atingidos pelas reinvindicações das reformas de base. Juntamente com o exército e apoiados pela classe média, realizaram o golpe militar de Estado no Brasil em 1964. Movimentos semelhantes, aliás, assolavam outros países da América do Sul: 1954, no Paraguai; 1964, na Bolívia; 1966, na Argentina; 1973 no Chile e no Uruguai. Até os anos 1950, a literatura infantil se dedicava ao “elogio do Brasil rural”. Nas décadas seguintes, ela passa a se reinventar, investindo “na emergência do Brasil urbano.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 137). A partir dos anos 1970, se ocupa da “tematização da pobreza, da miséria, da injustiça, da marginalização, do autoritarismo e do preconceito.” São lançadas obras, como Justino, o retirante (1970), de Odette de Barros Mott, O reizinho mandão (1973), de , Chapeuzinho Amarelo (1970), de , Raul da Ferrugem Azul (1979), de , entre outras, constituídas por uma “crítica mais radical da sociedade brasileira contemporânea, tematizada principalmente através da miséria e do sofrimento infantil.” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 126). É nesse contexto, os anos de chumbo da ditadura, que os textos alegóricos de Lygia são publicados enquanto crítica sutil, mas incisiva, à violência contra o povo brasileiro e, não menos destruidora, contra o artista silenciado pelo aparelho de censura. Seu primeiro livro, Os Colegas (1972), ilustra o ar de insegurança que ocupava as ruas. Um grupo de amigos, formado por animais abandonados, fugitivos, poetas e vadios, encontra conforto uns nos outros, enquanto é perseguido por figuras de autoridade (representadas pela carrocinha ou por donos ricos). A Bolsa Amarela (1976), por sua vez, narra o medo do artista através da história de Raquel, que precisa esconder a vontade de ser escritora numa bolsa. A esperança e a fantasia se contrapõem à miséria do abandono infantil e à repressão escolar, no simbólico A casa da madrinha (1978). Findo o governo militar, em 1985, o tema ainda figurou nas páginas de seus livros subsequentes. O suicídio do artista militante e obcecado dá o tom de O meu amigo pintor (1987). A perseguição contra os sindicatos aparece como episódios esquecidos, em Fazendo Ana Paz (1991). Não obstante, a bibliografia da escritora passa por uma transformação com o lançamento de Livro – um encontro (1988), considerado seu primeiro monólogo. Apesar de performado por Lygia em palcos do Brasil e do exterior, a artista não o classifica, chamando-o simplesmente de “encontro”: um encontro pessoal de uma escritora com os livros. Por meio da costura de fragmentos memoriais, o texto mostra a trilha literária da escritora, que perpassa o seu eu leitora e seu eu escritora, resultando na criadora e artista: “Livro - um encontro é uma criação viva,

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que transmite de um modo altamente inventivo os sentimentos e as emoções íntimas de uma escritora no seu relacionamento com os livros.” (CASA LYGIA BOJUNGA, web). Essa forma de escrever, não apenas problematizando temas sociais por meio da ficção infantil, mas também refletindo o processo da própria criação, o fazer artístico, de modo mais incisivo, subjetivo e explícito, é o que definiria suas publicações seguintes, Fazendo Ana Paz (1991) e Paisagem (1992), que juntos com Livro – um encontro ficariam conhecidas como a Trilogia do Livro. O tom autobiográfico é recorrente em publicações posteriores, como Feito à Mão (1996), O Rio e eu (1999), Os Retratos de Carolina (2002) e Intramuros (2016). Ainda que o tema político apareça em Fazendo Ana Paz, o que se sobressai neste livro é a história metaliterária do seu desenvolvimento. Ele é constituído por fragmentos que contam a história da personagem Ana Paz, quando na velhice se lembra de ter feito uma promessa ao pai, e deve voltar à casa da infância para recuperar a memória e entender as circunstâncias do assassinato dele. Contudo, a narrativa se apresenta como páginas rasgadas da história; estes restos são costurados a outra narrativa: a da escritora que conta os procedimentos e impedimentos da criação dessa obra. A narrativa primeira, a de Ana Paz, é esmaecida e revela- se o trabalho exaustivo da escritura ao tempo que a faz desenvolver-se. Desse modo, a história de Ana Paz entrecruza com a história da escritora e seus esforços para fazer o livro. A obra deixa as marcas do exercício de criação expostas. Como se estivesse em um ateliê, faz o movimento que mostra por vez um pedaço da história que escreve, por outra o trabalho desse fazer. No ateliê, o tecelão vira delicadamente a peça para verificar o acabamento da costura. Se não está do seu agrado, desfaz para que possa refazer. Do mesmo modo, em Fazendo Ana Paz, as marcas do ofício de escrita estão na trama, explicitamente compondo a narrativa – o texto parece virado do avesso. O fazer é especialmente forte no livro Feito à Mão. Trata-se de um livro-objeto desenvolvido artesanalmente, desde as páginas até a datilografia4, e lançado em edição limitada.5 O “feito à mão” do título não se refere apenas ao objeto livro, que, mais do que qualquer outro trabalho de Lygia, foi feito à mão; o texto, em tom memorial, recupera a influência que diversos artesãos – artistas que “fazem à mão” – tiveram sobre a vida e a

4 De fato, a ideia original envolvia trabalho de escrita caligráfica, ideia abandonada devido ao tempo estipulado para a tarefa e à complexidade da atividade. Foi então substituído pela máquina de escrever que imprimiu as letras página por página. Mas novamente as exigências temporais e editoriais fizeram entrar em cena a impressora que reproduziu as demais cópias do texto. Eis o conflito do trabalho artesanal na contemporaneidade. 5 O livro foi relançado pela CLB no projeto gráfico dos demais livros, mas reproduzindo alguns aspectos do projeto artesanal inicial, como os títulos feitos à mão e a textura do papel – que fique claro, como reprodução visual, não tátil. Além disso, a nova edição apresenta o retrato de Lygia Bojunga feito em bordado pelo artista gráfico Carlos Scliar – que está incluído no terceiro capítulo desta dissertação.

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produção criativa da escritora. A imagem da mão é recorrente em vários momentos da rememoração, vista nos artesãos de rua do México ou no ofício da mãe costureira, desse modo, alinhavando o texto. Com efeito, esta imagem também figura noutros escritos: em O Rio e eu, a mão da passadeira de roupas aparece como símbolo prenunciador da relação afetiva da narradora com a cidade do Rio de Janeiro; Seis vezes Lucas, por sua vez, narra o menino transformando o medo em arte por meio das mãos que pressionam a massa de modelar. Desse modo, a imagem da mão se torna uma abertura no presente que evoca o futuro e busca o passado: por meio da abertura, ela olha para o indivíduo que a vê. (DIDI-HUBERMAN, 2010). A recorrência de imagens, o trabalho de rememoração, a polifonia compõem uma obra que se espessa em camadas narrativas. A composição poética dessa literatura instiga pensar os diferentes impulsos que interferem na criação literária como marcas da/na escrita que tecem e desfazem o texto, o que converge para uma notação: as desfigurações decorrentes do processo de criação do texto não são ocultadas, do contrário, passam a constituir a narrativa, ou seja, o texto evidencia o próprio fazer, mais do que o conteúdo da narrativa. Assim sendo, esta pesquisa tem como objetivo investigar a escrita como processo na obra de Lygia Bojunga, a partir do trabalho de rememoração enunciado pela voz narradora. Para tanto, faz-se necessário considerar a relação entre imagem e palavra. A fim de desenvolver as discussões propostas, a dissertação estrutura três capítulos. O primeiro capítulo, “Tecitura e urdidura de Penélope”, inspira-se no ofício da personagem grega para investigar o trabalho de rememoração que acontece ao tempo em que escreve a narrativa. Embora o texto apresente alguns pontos de coincidência entre a literatura e a biografia verificável de Lygia Bojunga, a pesquisa esmorece a questão autobiográfica e volta- se ao trabalho da reminiscência, aos moldes da discussão de Walter Benjamin (2012a) quanto aos escritos de Marcel Proust. Ou seja, não busca a reconstituição da vida, mas o trabalho que recupera e perde a memória. Uma vez que este acontece simultaneamente com a escritura de narrativas, a pesquisa investiga a rememoração por meio das três categorias principais da ficção: espaço, tempo e personagem. A casa é recorrente na obra bojunguiana: a fotografia do sobrado de infância de Lygia que compõe a capa de Fazendo Ana Paz; a casa feita de livros com apelo erótico, de Livro – um encontro; o estúdio como isolamento do escritor, de Feito à Mão; a editora, Casa Lygia Bojunga. Essa imagem é refletida sob a perspectiva da casa estranha e fragmentada que o adulto tenta recuperar em Infância, de Graciliano Ramos (1976); bem como, o jogo performático e lúdico da criança com o espaço, que compõe e desvela o ambiente, ainda que com

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intermitências, como aponta Benjamin (2017) em Infância berlinense: 1900. Há diálogo com Benjamin (2017) para uma reflexão sobre as intermitências da morada, isto é, os espaços adjacentes ou as aberturas para fora, que contrastam a inocência da casa com a profanação do mundo exterior. As reflexões sobre o espaço compõe o subcapítulo “Reme-morada”. Conforme as imagens da infância são entendidas como fragmentos recuperados anacronicamente, o tempo que se instaura é o do vórtice, movimento sugerido por Giorgio Agamben (2018), a partir de uma leitura benjaminiana. Tal apontamento indica a dissipação da linearidade cronológica, ou seja, o tempo performa em movimento espiral, que perde de vista a origem, ao passo que a memória é recorrente em eterno retorno de fragmentos misturados e confundidos. O movimento é observado, por exemplo, na fragmentação da personagem Ana Paz em três tempos de vida coexistentes. O subcapítulo, intitulado “Ana-cronia”, evidencia o esquecimento, mais do que a lembrança. O esquecimento também marca o subcapítulo “Álbum fotográfico”, que faz uma análise sobre a categoria da personagem. No âmbito da constituição de uma biografia, o que acontece é justamente a sua ficcionalidade por meio de imagens e lacunas, semelhante ao álbum fotográfico. Esse efeito provoca, antes que uma narrativa da vida, o seu apagamento. As pulsões memoriais são entendidas por Ricoeur (2007) como reconhecimento, o que só é possível a partir do esquecimento. Não obstante, Foucault (2003) afirma a escrita biográfica enquanto apagamento por meio da sua coleta de registros documentais mínimos do hospital psiquiátrico de Paris, em A vida dos homens infames. Enquanto o primeiro capítulo investe numa reflexão quanto à rememoração, o segundo, denominado “Costura de Sahrazad”, reflete sobre a costura de memória e ficção no ato da narração. A personagem d’As mil e uma noites representa a narrativa aberta, de acordo com os apontamentos de Jeanne Marie Gagnebin (2012). A fragmentação que constitui a obra de Lygia Bojunga, identificada nas intermitências da história, na quebra sintática e nas rupturas pelas quais escapam o real e o ficcional, instiga a pensar sobre outro modo de narrativa, que atua no âmbito do esvaziamento em função de uma continuidade, como uma história aberta. Para entender esse conceito, o capítulo, que tem como principal aporte Benjamin (2018) e Gagnebin (2012), apresenta a figura do contador de histórias tradicional que se transforma frente a diferentes paradigmas da história e da arte. O filósofo desenvolve o conceito de experiência [Erfahrung], que seria a matéria essencial da narrativa, e como ela entrou em decadência, dando lugar para a manifestação da vivência [Erlebnis] isolada dos sujeitos. Ainda que o ensaio “O contador de histórias”, de Benjamin, aponte para o fim da narrativa, outra reflexão, verificada

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em “Experiência e pobreza”, desenha novos caminhos a serem percorridos que possibilitam a sobrevivência da atividade de contar histórias. A função da experiência e o trabalho artesanal que se encontram em Benjamin (2018), essenciais na obra de Lygia, estão enunciados também na concepção de contadores de histórias de culturas africanas, como é exposto pelo djéli griot Toumani Kouyaté (2015), artista de Burkina Faso e detentor da palavra (conforme caracterização de djéli pelo povo Mandinga). Contudo, para ele, o narrador não é necessariamente um sábio, e sim um pesquisador (KOUYATÉ, 2015, p. 24), o que aponta para o processo de narrar, ao invés de destacar o que é narrado. O capítulo considera a abertura na obra de Bojunga decorrente do trabalho fragmentado da rememoração; esse aspecto possibilita a sua continuidade, por meio do contínuo fazer poético. A desestrutura da narrativa clássica é pensada a partir do conto “A preocupação do pai de família”, de Kafka, o qual, por meio da figura de Odradek, ilustra o sacrifício da experiência em prol de manter a transmissibilidade, movimento kafkaniano que Benjamin analisou. Integram, ainda, os subcapítulos “Fantasma” e “Rastro”. O primeiro analisa a imagem – ou “fantasma”, segundo a nomenclatura de Agamben (2007) – nos textos de Bojunga. Têm- se em vista as considerações sobre atualidade de Benjamin: para ele, o tempo é formado por coincidências, semelhanças entre passado, presente e, por conseguinte, futuro, como mostra, por exemplo, seu estudo de Proust. A reflexão está ao longo dos capítulos predecessores. Aqui, no entanto, ela é ampliada a partir da investigação da imagem como potência da memória. Didi- Huberman (2010) e Agamben (2007) contribuem para o diálogo. O segundo, por sua vez, volta-se para a escrita, que é entendida por Gagnebin (2007), como um rastro, contínuo, mas apagado, de esquecimento. A partir do mito grego do Minotauro, e o fio de Ariadne, o capítulo investiga a manifestação do apagamento na escrita de Bojunga. Por fim, o terceiro capítulo, “Ateliê de Lygia”, aprofunda a questão do processo de criação, que é evidenciado a partir das marcas de sua escritura, as quais aparecem no texto, como já apontado. Essas marcas são entendidas a partir do conceito de gesto, de Agamben (2008). O exercício de escrita parte de uma ideia de trabalho, de insistência no processo, que sobrepõe a história a ser contada. Como referência para sustentar essa concepção, utiliza-se o ensaio de João Cabral de Melo Neto, “Joan Miró”, o qual analisa o ofício que transparece na obra do pintor espanhol, que transpassou o conteúdo de seus quadros; e o ensaio “Que é o teatro épico?” de Benjamin sobre o teatro gestual de Brecht, ambas formas artísticas que possibilitam a leitura do gesto em Bojunga.

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A discussão aproxima o fazer artesanal, que constitui o texto de Lygia, ao seu próprio caráter poético. Isso é sustentado pelo ensaio de Jean-Luc Nancy (2013), “Fazer, a poesia”, que não considera o texto como acesso à poesia; pelo contrário, ela é associada à ação do próprio fazer, incluindo a dificuldade da criação que transparece nas fraturas e interrupções que marcam o escrito. O capítulo articula os pontos discutidos nos capítulos precedentes, na medida em que a memória e a fragmentação narrativa são costuradas pelo gesto na escrita – gesto político, como se observará. Compõe a epígrafe desta dissertação um excerto de Fernando Pessoa, um poeta com quem Lygia Bojunga relata ter uma forte relação. Quando Pessoa, sob o heterônimo de Alberto Caeiro, poetiza “digo da pedra, ‘é uma pedra’,/ Digo da planta, ‘é uma planta’,/ Digo de mim ‘sou eu’./ E não digo mais nada. Que mais há a dizer?”, exime as coisas, quer sejam ou não animadas, de qualquer priorização e encontra na desobrigação o seu valor como coisa-essência. “Cada cousa é o que é”, e para o poeta isso basta, pois “Basta existir para se ser completo” (PESSOA, 2007, p. 101). Basta escrever, ou é preciso que se escreva algo? Não estaria a chave da literatura de Bojunga justamente no próprio trabalho de que é fruto? O movimento dos dedos, que seleciona os fios no ato de tecer, antes do trançado do tapete; a mão que umedece a argila, marcando com as digitais singulares do sujeito que molda, antes do vaso pronto; a liberdade do punho que marca com traços desformes a superfície branca, antes de representar uma paisagem. Não é o movimento prévio à obra, o momento anterior à peça, a simples capacidade de se fazer, mais do que fazer algo, não é isso o exercício da poesia?

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1 TECITURA E URDIDURA DE PENÉLOPE “E então de dia tramava a enorme urdidura, e à noite desenredava-a com tochas postadas ao lado.”

(HOMERO, 2014, p. 106)

Enquanto seu pai e seus pretendentes acreditavam na morte de Ulisses, Penélope mantinha a esperança de que o marido retornaria da sua odisseia. A fim de adiar a escolha de um novo homem para se casar, ela se pôs na tarefa de tecer uma mortalha para cobrir o corpo de seu sogro, . O manto, que prestava respeito à memória do falecido, ao mesmo tempo mantinha viva a memória do marido, a quem Penélope permanecia fiel. Ela afirmou: “Morto, meus pretendentes, morto o divino Odisseu, esperai, mesmo ávidos, por desposar-me, até o manto eu completar – que meus fios, em vão, não se percam” (HOMERO, 2014, p. 105). Que ironia guarda a fala de Penélope? Enquanto tramar os fios era o artifício para manter a memória de Ulisses, é no desfazimento da mortalha, à noite, que ela conseguia prolongar o trabalho e se guardar da escolha. Walter Benjamin (2012a), no ensaio “A Imagem em Proust”, recorda o exercício da personagem grega, que de dia trançava o manto e à noite o desfazia, afirmando que “o principal, para o autor que rememora, não é absolutamente o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” (BENJAMIN, 2012a, p. 38). Assim, o que é apontado por Benjamin não é a escritura de “uma vida como ela de fato foi”, mas o processo da rememoração. Ou ainda: este exercício poético estaria muito mais no âmbito “do esquecimento” (BENJAMIN, 2012a, p. 38), na urdidura dos fios, à noite, em que se prepara para recomeçar o trabalho de tramá-los. Com efeito, observa Benjamin, Proust trocou a noite pelo dia, compondo seu texto de rememoração no mesmo período em que Penélope desfazia o tecido da memória. Rememorar é um ato que guarda tanto recuperação da memória quanto esquecimento. Os fios perdidos que Penélope retoma são afinados com a imagem da madeleine, o doce cujo aroma desperta a memória involuntária do narrador, que Proust perseguiu em centenas de páginas na busca pelo tempo perdido. E, como a trama do manto se desfaz mais e mais a cada dia que passa, também a busca esquece mais do que recupera no exercício da rememoração. Sendo que, antes que a matéria da vida, o que sobrevive é o próprio trabalho da reminiscência. A escritora Lygia Bojunga associa a atividade de tear e urdir à escrita. Sua literatura é marcada pelo trabalho artesanal, amplamente explorado no livro Feito à Mão (1996); o exercício de composição poética está entre lembrar e esquecer: “Às vezes, numa noite de

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insônia, num embalo de rede, numa viagem de trem, eu gosto de dar linha pra minha memória. Só pra ficar vendo até onde é que ela vai.” (BOJUNGA, 2008b, p. 49). O desenrolar do fio, a urdidura, permite a recuperação, ainda que incerta, de imagens memoriais; como o trabalho perpétuo de Penélope e a busca incansável de Proust, os fios precisam ser desenrolados para que se possam tecer – a memória precisa ser esquecida para ser recuperada. Apesar de explícito em Feito à Mão, a imagem do fio desenrolado, ou seja, a memória como esquecimento que culmina em um ato de criação, percorre as páginas da obra da escritora. Desde suas produções iniciais, ela explora a problemática através de diferentes metáforas. É irreverente o uso da costura, em A casa da madrinha (1978): a personagem Pavão, um bicho muito inteligente e falante, foi submetido a experimentos escolares de controle do pensamento. Um deles era realizado no Curso Linha, local em que costuravam o pensamento do aluno para ele pensar só o que os mandantes da operação queriam que a vítima pensasse. Como modo de resistência, o Pavão aprendeu a rebentar a costura para manter o pensamento: “Ele fazia assim: (1) deixava o pensamento parado, quieto, sem pensar coisa nenhuma; de repente (dois!) pensava uma coisa com toda força.” (BOJUNGA, 1999, p. 27). Assim, o fluxo do seu pensamento é acessado justamente pelo desfazimento da costura. Semelhantemente, em Corda Bamba (1979), Maria, que presenciara a morte dos pais equilibristas ao caírem da corda, havia recalcado sua memória. Não lembrava de nada. A não ser quando, em sonho, desenrolava a corda, e se equilibrava por ela até uma casa cheia de portas, fechadas, que escondiam as memórias traumáticas.6 No final da década de 1980, houve uma abordagem muito mais incisiva da escritora no que se refere à memória: a partir de Livro – um encontro (1988), os escritos passaram a tender para o gênero autobiográfico. A narradora desses textos, uma performance narrativa7, recupera

6 Como apontado na “Introdução”, há proeminente intenção política específica nos escritos dessa década. O trabalho apresentará ao longo do seu desenvolvimento apontamentos desse âmbito nos textos estudados, sobretudo no terceiro capítulo. Ainda assim, há complexidade nas metáforas de Lygia, que demandariam estudo mais profundo; por ora, o que prevalece é a questão da rememoração – ainda que se reconheça a tangência de aspectos políticos também nessa problemática. 7 A ideia de performance foi pensada na tese de doutorado “As performances do narrador em Lygia Bojunga”, de Talita Silveira Coriolano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. A pesquisadora problematiza a possibilidade de encontro entre as personagens ficcionais e a narradora, a princípio, autobiográfica: "Se esta é uma personagem criada pela imaginação de Lygia, como poderia esta travar um diálogo concreto com a outra?" (CORIOLANO, 2016, p. 109). Ela aprofunda a questão ao pontuar as coincidências biográficas da projeção literária de Lygia com a persona que assina a autoria do livro. Em um dos livros analisados por Coriolano, O Rio e eu, há um diálogo entre a escritora e a cidade: esse diálogo só poderia, portanto se dar por vias da ficção (CORIOLANO, 2016, p. 110). A personagem não é lida "como pessoa biográfica, mas como personagem construído." (CORIOLANO, 2016, p. 111). Ou seja, na medida em que há a construção de uma história, há também a construção da própria persona autoral. A tese apresenta essa manifestação como uma "performance". (CORIOLANO, 2016, p. 132); a disposição fotográfica ou a enunciação autobiográfica, recursos da obra de Bojunga, são gestos que fazem o sujeito autoral, criando um "mito de si". A performance, nesse sentido, pressupõe

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aspectos biográficos ao passo que está inserida no universo ficcional: a própria narradora que conduz a história passa a ser o fio desenrolado. Os textos de Lygia não se abstiveram de apresentar que sua escritura estava no trabalho: o tear entre memória e esquecimento, entre imagem e ficção. Esta notação está contida em alguns títulos de seus livros, como o já citado Feito à Mão ou Fazendo Ana Paz. Este desenvolve a trama em torno da relação entre rememoração e a atividade de escrita. De um lado, está a história fictícia da personagem Ana Paz, que vê seu pai sendo assassinado, e, com o curso da vida, esquece uma promessa que lhe fizera de jamais esquecer a “carranca”, a imagem que simbolizava a relação e os ensinamentos do pai para a filha. Do outro, está o trabalho de reminiscência da narradora que quer escrever enquanto busca o passado de Ana Paz. Nesse exercício, se depara com rastros do seu próprio passado. A sinopse de Fazendo Ana Paz, apresentada no site da CLB, diz:

Em Fazendo Ana Paz, a história surge através de fragmentos dispersos, como fotografias em álbuns antigos. Um autor à procura da personagem... ou será a personagem à procura do autor? Bem diferente de outros personagens de Lygia, Ana Paz tem “um endereço certo” e um compromisso no passado que ela precisa resgatar.

A missão de Ana Paz – e da escritora que a compõe – é a de recuperar o passado. Como em Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, em que as personagens invadem o ensaio de uma trupe buscando um diretor que encene sua história, no livro de Bojunga há personagens que interrompem as atividades da escritora, contando-lhe suas vidas e pedindo que componha suas narrativas: estão em busca de uma autora, e a autora em busca de personagens. E como em Proust, as duas estão atrás de um passado, perdido, que precisam recuperar. Seria, então, o trabalho da escritura também o trabalho da rememoração? O excerto citado pontua três aspectos relevantes para a discussão: 1. informa que a personagem tem um endereço certo; 2. alude a um compromisso com o passado; 3. evidencia tanto a personagem como a narradora. Nesse sentido, a sinopse concentra as três categorias principais de uma narrativa: espaço, tempo e personagem. Se a construção de uma narrativa se dá pelas categorias pensadas, aqui também o trabalho de rememoração acontece por tais categorias, o que implica no aprofundamento entre escrita e rememoração. É necessário ressaltar que muitas das memórias recordadas pela narradora coincidem com a vida da escritora Lygia Bojunga, o que pode ser confirmado no site da Casa Lygia

uma construção inacabada, devido às possibilidades performáticas do ato criativo. Para efeito, esta dissertação assume o posicionamento de Coriolano e considera a caracterização da voz narrativa como uma performance.

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Bojunga – CLB, em que tais dados são apresentados para consulta, bem como nos prefácio e posfácio do livro8. As primeiras páginas narram como foi o processo da escrita do livro A Bolsa Amarela, publicação de fato lançada pela escritora em 1976: “me esqueci que ia escrever um livro de viagens, deixei para lá um monte de coisas que eu ia fazer, e até o último parágrafo do livro (que ficou se chamando A Bolsa Amarela) a Raquel não saiu de perto de mim.” (BOJUNGA, 2007a, p. 12). A história ficcional da personagem Ana Paz conta que ela nasceu no Rio Grande do Sul e se mudou ainda jovem para o Rio de Janeiro, retornando à cidade natal na velhice. Esse dado coincide com a trajetória de Lygia, que de fato é gaúcha e se mudou quando criança para o Rio de Janeiro, onde mantém sua casa e instituto social ainda hoje: “Lygia com 1 ano de idade, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, onde nasceu e viveu sua primeira infância. Ao completar 8 anos, sua família se mudou para o Rio de Janeiro.” (CASA LYGIA BOJUNGA, web), conta a legenda de uma das fotografias da artista incluída no site. Em outro fragmento da narrativa, a moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio, que corresponde à Ana Paz adolescente, em diálogo com Antônio, declara ter interesse afetivo em arquitetura: “- Porque... arquitetura... faz o meu coração bater forte.” (BOJUNGA, 2007a, p. 21). No posfácio, a escritora relata seu interesse pela memória arquitetônica das cidades: “Minhas andanças por cidades europeias me mostraram, de imediato, a perda incalculável que é, sempre pra todos nós, a destruição do nosso patrimônio arquitetônico.” (BOJUNGA, 2007a, p. 97). Assim como a personagem lamenta a derrubada de uma casa para a construção de um edifício: “- Um prédio que vai subir ali, olha. – Em cima da casa? – Ela vai abaixo. – Ah, que pena, tão simpática!” (BOJUNGA, 2007a, p. 23), Lygia narra sua experiência com a urbanização do Rio de Janeiro: “Passei o resto da minha infância e toda a minha juventude assistindo, dia após semana, semana após mês, mês após ano, um bota-abaixo indiscriminado e contínuo, não só em Copacabana [...], mas em todo o Rio de Janeiro.” (BOJUNGA, 2007a, p. 98).

8 Gérard Genette (2009) apresenta uma pesquisa profunda dos paratextos de uma publicação. Os paratextos são de extrema importância para a leitura de uma obra, pois interferem diretamente na significação textual. “Como leríamos o Ulysses de Joyce se ele não se intitulasse Ulysses?” pergunta Genette (2009, p. 10). O escritor faz um inventário dos diversos componentes que dialogam e modificam o texto: capa, títulos, prefácio e posfácio, diagramação, autoria, notas, entre outros. Para Genette (2009, p. 09), “o paratexto é aquilo por meio do qual um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores”. Enquanto a capa, um componente recente do livro, que remonta ao início do século XIX, pode trazer uma série de componentes textuais, editoriais e iconográficos que predefinem alguns aspectos de leitura do texto, o posfácio não se dirige a um leitor “em potencial, mas efetivo” (GENETTE, 2009, p. 212), ou seja, a leitura é muito menos guiada, e o papel crítico do leitor ganha mais força. Os paratextos da obra de Bojunga aprofundam a problemática autobiográfica, uma vez que por meio deles o leitor tem acesso a alguns dados biográficos da escritora. Estes dados, contudo, são esmaecidos pela própria voz narrativa que se apropria deles para escrever uma história que os esquece em ficção.

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A convergência dessas linhas biográficas apresentadas potencializa o exercício de escrita como esforço de uma reminiscência, uma vez que, mais do que pensar em uma biografia, o texto se apresenta como o tecido resultante da rememoração. As palavras tentam apreender imagens que fazem parte do tecido biográfico, orgânico, em linguagem, que compõe o tecido abstrato, textual. Ecoando Proust – e Homero –, mais do que narrar a vida, o livro narra o trabalho de rememoração, que vez ou outra apresenta dados verídicos – ou apresenta? As costuras aparecem para juntar sussurros ecoados do passado, desmistificando qualquer necessidade de verificabilidade. Essas costuras, que constituem a escrita, remontam à ausência, a esquecimento, e potencializam o exercício criativo, fazendo murmurar o passado como mero suspiro de escrita. Do papel, talvez saltam sentimentos, imagens, memória... mas traduzidos em palavras – em linhas abstratas restadas no papel. O texto (des/re)constrói a linearidade tanto sintática quanto cronológica ao propor a trama de fragmentos, interrupções e intervenções polivalentes e polifônicas em forma de ecos. Ele se articula na própria insuficiência da rememoração. Tal característica permeia a linguagem – a superfície textual, enquanto matéria, é porosa –, a imagem – que não se constitui como reprodução do referente, mas é posicionada e de-formada pela linguagem – e a memória – que se desenvolve pelo esquecimento. Como observado, a sinopse sintetiza as três categorias da narrativa, que são entendidas neste trabalho como metáforas da escritura e da rememoração. Assim, os três subcapítulos que seguem estruturam a reflexão da memória na ficção de Bojunga a partir das categorias espaço, tempo e personagem.

1.1 REME-MORADA

O livro Fazendo Ana Paz inicia a trama no paratexto capa, em que há a fotografia de uma casa. Ainda que não haja detalhes quanto à imagem, ela ilustra um dos aspectos fundamentais de uma narrativa, o espaço. Esse prenúncio projeta algumas questões: é nessa casa que se desenvolverá a história? Por ser uma fotografia, a narrativa abordará questões referenciáveis ou históricas? O que o ambiente da foto tem a ver com o conteúdo do livro? O monólogo de Lygia, Livro – um encontro foi a primeira publicação da escritora a trazer uma foto em que aparecia a escritora na capa (figura 1). Como a peça havia sido performada em palcos nacionais e internacionais, o projeto gráfico utiliza fotografias do próprio monólogo tanto na capa quanto no interior. Embora essa capa seja notável na obra da escritora,

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justamente por ser distinta das demais publicações, não parece destoante a utilização da foto da escritora em um livro-monólogo representado por ela. Entretanto, Fazendo Ana Paz embaraçou ainda mais a questão com sua imagem na capa (figura 2). A foto consiste em um sobrado de Pelotas – RS, que pertenceu ao avô de Lygia Bojunga, conforme conta o posfácio: “[...] o vô Bojunga comprou o Sobrado com a intenção de fazer dele a morada para toda a família: filhos, netos, bisnetos.” (BOJUNGA, 2007a, p. 94). Segundo o texto, a vida da sua mãe se desenvolveu na casa, mas após o casamento, o pai quis uma casa própria e se mudaram para a construção ao lado, “cujo quintal se ligava ao quintal do Sobrado” (BOJUNGA, 2007a, p. 95).

Figura 1 – Capa de Livro – um encontro.

Fonte: CASA LYGIA BOJUNGA. Disponível em: Acesso em: 23 set. 2019.

O texto narra:

Desde que eu me lembro de mim o Sobrado foi um imã pra minha imaginação. Eu queria sempre correr pra lá pra trepar em tudo que é árvore do quintal; e conferir se

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tudo que é peixinho que nadava no chafariz continuava lá nadando; [...] e depois ir jogar sapata nos desenhos que a luz, filtrada nos vitrais, formava no chão. Só que eu era muito criança: não tinha a menor ideia de que tudo aquilo que me atraía tanto para ir brincar no sobrado estava alicerçando a base onde, muitos anos mais tarde, a minha Memória ia se apoiar. (BOJUNGA, 2007a, p. 95)

A rememoração caracteriza o espaço da infância como a estrutura que deu base para o desenvolvimento criativo. No quintal do sobrado, tudo ganhava vida pelo olhar da criança que subia na árvore, contava peixes e brincava no reflexo ótico dos vitrais. A luz transpassava as janelas formando desenhos no chão, com os quais interagia a criança. Seria paralela à luz que ilumina os objetos e projeta imagens as quais ficam desenhadas na memória do indivíduo, como as sombras disformes resultantes da convergência de luz no vidro? Se a criança interage com as formas no chão, é com as sombras do referente sensível que interage a escritora, imagens que se metamorfoseiam no momento da rememoração.

Figura 2 – Capa de Fazendo Ana Paz.

Fonte: CASA LYGIA BOJUNGA. Disponível em: Acesso em: 23 set. 2019.

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Assim como o oleiro faz os tijolos da casa, a escritora constrói uma casa de palavras, que tenta recriar as imagens da morada da infância. Escrever é desfazer e refazer. Desfazer as estruturas da primeira casa habitada, que restam como imagem, para, tortuosamente, refazê-las em palavras, em abstração. Com efeito, não foi a isso que aludiu Graciliano Ramos, ao narrar Infância? O narrador da história, ao descrever o primeiro objeto que guardou na memória, um vaso, diz a incerteza da memória, quando e onde vira o objeto e como de fato ele era. Se uma lembrança longínqua não levasse a outra, mais substancial, talvez seria um distante sonho disfarçado de realidade. A narração costura os fragmentos dispersos, naturalmente deixando lacunas na memória reavivada: “é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma” (RAMOS, 2003, p. 09). Conforme recorda sua infância, o narrador sente como se estivesse em um longo sono, e a memória fosse coberta por um tecido que a anuvia: “E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem hoje como rasgões num tecido negro. Passam através desses rasgões figuras indecisas.” (RAMOS, 2003, p. 11). O lugar de infância contado pelo narrador é recuperado em pedaços destorcidos, lhe parecem estranhos:

Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações de ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. [...] Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio. (RAMOS, 2003, p. 12)

A poesia de Graciliano Ramos coloca, de modo anacrônico, homem e menino lado a lado para que juntos percorram a narrativa precária da memória e espiem o passado. O olhar do infante é marcado pelo deslumbre, pelo espanto, identificado por exemplo no medo ao ver uma casa tão alta como um sobrado, como se houvesse uma em cima da outra: “nunca teria podido imaginar uma casa trepada” (RAMOS, 2003, p. 46); nas janelas do andar de cima, via pessoas conversando e, sem entender que havia dois andares, o que permitia a sua elevação, julgava-as enormes, como se suas pernas partissem do andar de baixo. O olhar do narrador adulto é marcado pela criticidade que entende as imagens a partir das relações que faz com o presente: “Divagava imaginando o mundo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado notícia das viagens de Gulliver, penso que a minha gente liliputiana teve origem nas baratas e nas aranhas.” (RAMOS, 2003, p. 99). A leitura de As viagens de Gulliver, realizada posteriormente à infância, ressignifica e até contradiz as

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impressões que tinha das pessoas quando criança. A memória é inserida no curso presente, transmitida pela insuficiência de imagens marcantes e pela narração dele e dos que afirmam as lembranças. Concomitante a isso, em Fazendo Ana Paz, a casa da narradora é a morada da memória. O espaço habitado que abriga a infância, a estrutura fundamental do sujeito. O sobrado não é aquele sobrado de tijolos e cimento que pode ser visto em Pelotas por qualquer um que assim o queira; é o sobrado que existe como resto imagético de uma criança, é o lugar desperto pela memória da escritora. O sobrado narrado resiste como morada, mas é sempre transformado a cada vez que o seu morador percorre o espaço. A visita que a ele se faz não é uma visita ao passado, pelo contrário, é uma visita que sempre acontece no presente. Por isso, não é a escritora que viaja aos anos de sua infância para adentrar no espaço físico que lhe marcou. É o espaço que invade o presente, agora em frações de imagens, partículas representativas de uma matéria que se confunde, se reestrutura. De modo semelhante, é a criança que visita a escritora. A habitante vive na casa no presente, porém a encontra embaçada, com focos de luz apenas suficientes para iluminar o eterno deslumbre da criança.9 A escolha pela inserção da foto da casa na capa se deu justamente pelo livro tratar de memória: “Memória – a Ana Paz fala muito disso: rastro atrás, vivências passadas; a criança que a gente foi, determinando o adulto que a gente é; o ‘eu era assim e, em volta de mim o mundo era assim, mas agora...’ – Memória.” (BOJUNGA, 2007a, p. 90). “O mundo em volta de mim”: pensar sobre o espaço não significa pensar apenas sobre a estrutura, mas sobre todo o contexto em que a narrativa se desenvolve. Os cômodos da casa, sim, mas também seus objetos, seu entorno, sua cidade. Ao mesmo tempo que o texto literário de Lygia aborda a construção como morada subjetiva, reflete acerca de um país em desenvolvimento, em que as pequenas casas davam lugar aos prédios. A urbanização entra em conflito com a arquitetura histórica; a casa como fortaleza, como segurança, se contrapõe às aversões das ruas, tomadas por conflitos políticos a partir da década de 196010. O espaço

9 Appelfeld (2019, p. 05) corrige-se quanto ao uso da expressão “volto sempre à casa”, uma vez que, quando se lembra da morada, de fato, não a visita, mas está nela; é a casa que está no presente. O escritor a empresta vida nova toda vez que nela adentra. Assim a relação temporal também é tensionada, pois para ele “todo trabalho criativo necessita do olhar da criança”, então o ontem e o hoje se misturam no narrar da morada. O olhar do presente põe uma “lente de aumento” que destorce a imagem do passado, marcada tão fortemente na criança. Ainda assim, o trabalho do escritor de literatura não é o de escrever memórias, mas de costurar nessas imagens os tecidos de outras experiências. A primeira morada, o lugar em que vive a infância de quem narra, é a base que sustentará o artesão de narrativas – ainda em devir. 10 Lygia Bojunga começa a publicar em 1972, em meio ao momento mais truculento da ditadura militar brasileira. Nesse período, aconteceu o chamado boom da literatura para crianças, em que intelectuais e artistas de diversas

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psicológico da criação é atormentado pelo espaço repressor da censura. Mas nada disso é recuperado pela foto do sobrado, senão em um eco surdo. A reminiscência da casa acontece por meio da relação lúdica que a criança entabula com o espaço. Através das brincadeiras, que trazem contidas a liberdade de um certo prazer, e que eroticamente percorrem a derme, o corpo marca o espaço, criando pontos erógenos, de matéria e de poesia. E o que resta do espaço é justamente os fragmentos do jogo inventado pela criança. Uma relação lúdica, ficcional, que deixa traços de ruptura no real. Jogo similar é pensado por Walter Benjamin (2017, p. 102) quando, em Infância Berlinense: 1900, lembra-se dos cantos da casa em que se refugiava durante as brincadeiras de esconde-esconde. O escritor rememora o espaço por meio desses esconderijos, os quais “conhecia todos”. Faz então uma espécie de mapeamento que não simplesmente desnuda fragmentos da casa para o leitor, como também alude ao vínculo da criança com o espaço. Quando adentrava os esconderijos, o mundo material ia se tornando “extremamente nítido”. O escritor vê aquela criança como parte da casa (ou a casa como parte da criança?), uma interfere na existência da outra:

A criança escondida atrás das cortinas torna-se ela própria algo de esvoaçante e branco, um fantasma. A mesa da sala de jantar, debaixo da qual se acocorou, transforma-a em ídolo num templo em que as pernas torneadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta ela própria é porta, recoberta por ela, máscara pesada, mago que enfeitiçará todos os que entrarem desprevenidos. (BENJAMIN, 2017, pp. 102-103).

O escritor coloca a brincadeira de sua infância novamente em movimento, ou seja, por meio da narrativa, faz funcionar o Panorama11 (figura 3) com imagens da sua vida, que são

áreas encontraram nesse nicho a possibilidade de criticar o momento político: “como havia muita dificuldade para os intelectuais expressarem-se em função de todo o aparato de cerceamento, deu-se uma migração dos que não lidavam com crianças, escrevendo para crianças, como o historiador Joel Rufino, a atriz Lygia Bojunga, a socióloga Ruth Rocha, o jornalista Ziraldo. Isso fez toda a diferença. Foi o boom da literatura infantil. Através dela, simbolicamente, pode-se falar do momento.” (VARGAS & SANTOS, 2011). E a imagem do espaço, concomitante com a ideia de memória, discute com afinco a violência da ditadura. Os Colegas, sua primeira publicação, mostra a insegurança das ruas da cidade, fazendo com que o grupo de amigos – no caso fugitivos, perseguidos, artistas-vadios (todos representados por animais), tivessem que se esconder. Em A Bolsa Amarela, a casa é simbolizada pela bolsa, em que Raquel esconde suas vontades, inclusive a de escrever. A casa da madrinha, por sua vez, mostra uma casa da imaginação que guarda a esperança de um futuro melhor: Alexandre saiu do morro do Rio de Janeiro, onde vivia, em busca da casa da sua madrinha. De diversos modos, os textos mostram que o espaço pode ser opressor ou protetor. Mais considerações sobre o aspecto político serão feitos no terceiro capítulo deste trabalho. 11 Nessa mesma obra, Benjamin recorda os Panoramas de Berlim [Kaiserpanorama], estruturas circulares, como salas redondas, que tinham ao longo do lado externo visores que permitiam a observação de imagens, como paisagens da natureza ou cidades estrangeiras. As imagens eram exibidas sequencialmente e duravam um instante, sendo substituídas por outra. Não era possível apreendê-las, nem detê-las, nem mesmo recuperá-las uma vez que passavam para a próxima. A única gravação possível era pela mente do observador, que devia registrá-la rapidamente, e, antes que se apercebesse, ela já havia passado.

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inseridas agora, no presente. Não apenas vemos essa rotina, como observamos alguns detalhes da casa: a utilização de reposteiros para substituir algumas portas, as mesas com pernas talhadas, o relógio, o piso. O sobrado da família Bojunga também é apresentado em fragmentos, seu espaço permeado pelas atividades recreativas da menina Lygia. O leitor não tem acesso aos seus detalhes: quantas árvores havia? qual o tamanho do quintal? de que cor e que desenhos formavam os vitrais? onde ficava o chafariz? quantos quartos havia na casa?

Figura 3 – Kaiserpanorama.

Fonte: VRMaster. Disponível em: Acesso em: 20 jan. 2020.

Os únicos registros visuais são a fotografia da capa, que mostra a fachada do sobrado, e a ilustração de um azulejo, inserido ao longo do livro. Assim o leitor visualiza a casa rememorada como quem vê as imagens no Panorama, espiando por meio de um visor (figura 4). A casa aparece em fragmentos, tênues e frágeis, como as sombras projetadas pelos vitrais. E a memória resgata os cantos, os móveis, os cômodos marcados pelo sujeito, e que também o marcam, deixando rastros na memória. Escrever é recuperar esses rastros, dispersos, e abandoná-los para construir uma nova casa, feita de memória – reme-morada.

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Figura 4 – Espiando o passado pelo Panorama.

Fonte: ...THEN WE TAKE BERLIN. Disponível em: Acesso em: 20 jan. 2020.

A casa é uma imagem importante na escrita de Lygia Bojunga. Em Livro – um encontro, a narradora conta que, na sua infância, construía casas utilizando os livros como tijolos, para, em seguida, ir morar nessas casas: “Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas.” (BOJUNGA, 2007b, p. 08). A casa é o espaço de acolhimento, é onde comumente enterram-se as raízes da vida – uma representação da própria estrutura do sujeito. Lygia mostra a construção e a destruição das casas-livros. Uma violação da própria vida, desestruturação que não se dá na negatividade, mas no prazer, na troca, “essa troca tão gostosa, que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida.” (BOJUNGA, 2007b, p. 09). O trabalho da escrita consiste em tentar recuperar as marcas da vida, as marcas de destruição das moradas em zonas de conforto, através da violação, dos rasgos, das demolições que inscrevem cicatrizes. E Lygia representa a morada através do próprio objeto livro. O projeto gráfico se torna, assim, uma arquitetura, que abriga fotos, ilustrações, palavras, iconografia para traduzir e simular a materialidade da vida, todavia a

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proposta é de desarranjo das linearidades, bem aos moldes da memória e suas características configurações. É análoga a denominação da editora: Casa Lygia Bojunga. A escritora informa que a Casa foi criada para abrigar sua gente, ou seja, seus personagens, que vieram morar ali. Assim, a Casa comporta justamente a ficção, fruto do exercício da escrita. Lygia cria relação entre livro e arquitetura, sendo que um abriga e representa o outro. A Casa atua como Fundação social, que simbolicamente, afirma o caráter político da sua produção ficcional. Do mesmo modo, o livro ganha status de casa, abrigando a abstração do que a própria ideia de espaço implica. Além disso, seus livros são facilmente reconhecidos pelo seu padrão de diagramação: a capa amarela, a ilustração que ocupa a frente da capa delimitada por uma borda preta, o nome da escritora acima da ilustração, e o título do livro (com o mesmo tamanho de fonte) abaixo, ambos também presentes na lombada, onde o nome Lygia Bojunga aparece destacado em uma caixa; junto está o logotipo da editora Casa Lygia Bojunga; na quarta capa, aparecem, muitas vezes, os símbolos dos prêmios que o livro ganhou, como a medalha Hans Christian Andersen ou o título de altamente recomendado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ. Como os quadros das paredes, a disposição dos móveis ou o conteúdo da despensa deixam transparecer a identidade do habitante da moradia, os livros de Lygia são adornados com elementos evidentes e redundantes. A editoração, que assume formato de “coleção”, conforme desejo da escritora (CASA LYGIA BOJUNGA, web), alinha os livros em uma obra extensa, como se cada um assumisse um cômodo da casa, ou uma porta de passagem. Cada um é um tijolo de uma estrutura que dialoga com os restantes, por vezes se transformando, seus espaços preenchidos por outras vozes, outras marcas: dos leitores, da própria ficção. O espaço habitado não serve exclusivamente de abrigo, mas de suporte para a criação. É o que ressalta o livro Feito à Mão, conferindo importância a um espaço que esteja isolado, separado, para realizar o trabalho de escrever:

Sempre levei muito tempo pra “esquentar”, pra sintonizar numa mesma faixa a minha imaginação, a minha disciplina e o meu raciocínio. Qualquer interferência – a conversa do lado, o telefone tocando, um barulho de televisão – faz logo minha faixa sair do ar. Então o estúdio (e eu traduzo estúdio por um espaço assim: pode até ser mínimo, mas, durante o tempo em que a gente é guardiã dele, ele é só da gente e pronto; e também: um espaço onde a gente tenha ao alcance da mão as ferramentas que tenha prazer em usar no trabalho que quer realizar), então, pra mim, o estúdio se tornou tão essencial quanto o ato de escrever. (BOJUNGA, 2008b, p. 59).

Evidencia-se a relação intrínseca entre o trabalho e o espaço em que ele acontece, o estúdio. O lugar provê as ferramentas para exercer o ofício, o silêncio para a escuta, a

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comodidade para que o corpo se concentre e torne-se a mão que empunha o lápis. Se há uma estrutura no espaço, há também uma estrutura no próprio trabalho de escrita. Do mesmo modo, o espaço isolado do seu contexto, portanto, suspenso, surge como metáfora da suspensão da mão que antecipa a manifestação da escrita; o instante em que a imagem quer se tornar palavra. A arquitetura da criação se assemelha à do espaço. Ilustrando essa reflexão, Benjamin (2017, p. 70) compreende que alguns espaços guardam afetivamente relações com a memória da infância, como “a mãe, que aconchega no peito o recém-nascido”. No seu caso, foram as varandas da casa12, espaço de acolhimento, de conforto, onde ele, menino, sentava-se para contemplar a cidade e ali mesmo, tinha a possibilidade de experimentar certo encantamento:

As cariátides que suportavam a varanda do andar de cima poderiam talvez ter deixado por um momento o seu lugar para cantarem junto desse berço uma canção que, se na verdade não dizia quase nada do que mais tarde me esperaria, por outro lado continha a fórmula mágica que levaria a que o ar desses pátios permanecesse sempre um encantamento para mim. (BENJAMIN, 2017, p. 70)

As Cariátides, na mitologia grega, eram jovens sacerdotisas que dançavam para celebrar a deusa Ártemis Cariátis13, a protetora das nogueiras. O arquiteto grego Vitrúvio explica que a utilização das Cariátides na arquitetura, ao invés do carregador Atlas tantas vezes exercendo essa função, tem origem em um castigo infligido a essas mulheres. Durante as guerras entre a Pérsia e a Grécia, os habitantes de Cárias ficaram ao lado dos persas e, após sua derrota, os homens foram assassinados e as mulheres, escravizadas. A elas caberia receber a humilhação, sendo postadas em eterna servidão, suportando o peso do castigo pela traição da cidade de Cárias: “Por essa razão, arquitetos que então viveram desenharam para edifícios públicos as imagens delas colocadas a suportar peso, a fim de que também dos vindouros fossem conhecidos o erro e o castigo dos cariates.” (VITRÚVIO, 2007). A tradição arquitetônica de utilizar as cariátides como suporte se estende às gerações futuras, em que essas figuras humanas, virgens, suportam o peso das loggien, as varandas das construções berlinenses no final do século XIX. Embora condenadas a sustentar as edificações por gerações, é o aspecto maternal de proteção que vai sensibilizar o narrador, ao recuperar a “imagem do pensamento” [Denkbild] através do menino na loggia por volta de 1900.

12 As varandas de que fala Benjamin são loggien, varandas típicas da arquitetura italiana, muito presentes nos bairros burgueses desde meados do século XIX. A loggia é sustentada por colunas e constitui uma espécie de sacada moderna, com cobertura. 13 Karyâtis = protetora das nogueiras. Ártemis Cariátis é uma das manifestações da deusa grega, que possuía um templo no bosque das nogueiras, na cidade de Cárias. Os termos Cariátides, Cárias e Cariátis, de acordo com Junito de Souza Brandão (1991, p. 184) têm origem em káryon, nogueira. káryon, por sua vez, deriva etimologicamente de qar, duro, sólido.

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As varandas se constituem como uma abertura entre a casa e o mundo. Uma espécie de fresta pela qual crescem os ramos da nogueira da vida, conforme os anos passam, indo da raiz, na casa da infância, ao seu desabrochar, nas ruas da cidade. Na rememoração de Benjamin, as vozes das cariátides entoavam canções de ninar que o embalavam, como o carinho materno, essas vozes que eram os sons de Berlim:

O ritmo do trem e do bater dos tapetes embalava-me até adormecer. Era o molde onde se formavam os meus sonhos. Primeiro, os mais indistintos, talvez atravessados por uma onda de água ou pelo cheiro do leite; depois, os mais prolongados, sonhos de viagens e de chuva. (BENJAMIN, 2017, pp. 70-71)

Sonhos que habitam a criança, como as cariátides, que, num delírio da imaginação, saíam de seus postos e dançavam, louvando Àrtemis, no passado, e embalando a criança no presente. E, se saíssem do lugar, não teriam deixado, por um momento, suspensa a varanda? A varanda é uma fresta entre a casa e a cidade que proporciona um viés da liberdade porvir; como uma fenda na linguagem sintática e gramaticalmente rigorosa é a poesia. Uma abertura que evoca o prazer do toque materno, ao mesmo tempo que indica prazeres eróticos de experiências e afetos doutras naturezas. E a imagem das cariátides em tardes pueris associam-se no texto às alusões e reminiscências de carícias e amores com a namorada Asja Lacis, em Capri, na Itália: “Creio que havia ainda um prolongamento desse ar nos vinhedos de Capri onde um dia abracei a amada.” (BENJAMIN, 2017, p. 70). O apelo erótico das imagens é refletido também no contexto urbano (figura 5); o ar, que um dia foi do carinho maternal, na cidade de origem, é respirado na Itália, em seu relacionamento afetivo e, então, retorna à cidade em suas rememorações: “é esse também o ar que respiram as imagens e alegorias que dominam o meu pensamento, como as cariátides nas alturas das varandas sobre os pátios nos bairros da zona ocidental de Berlim.” (BENJAMIN, 2017, p. 70). Outro breve fragmento que compõe as rememorações da infância berlinense, “O despertar do sexo” explora a liberdade das ruas da cidade, em que o jovem experimentou o início da maturidade. No ano novo judeu, ao ser mandado para as festividades religiosas, perdeu-se nas ruas tentando encontrar um conhecido que o acompanharia à sinagoga. Foi invadido por um misto de medo por não ter comparecido à celebração e de irresponsabilidade por não ter querido ir: “E as duas ondas convergiram imparavelmente na primeira sensação de prazer, em que se misturavam a profanação do dia santo e a cumplicidade da rua.” (BENJAMIN, 2017, p. 116).

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Figura 5 – Ruas berlinenses no século XIX.

Fonte: Do acervo pessoal do autor.

Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: Acesso em: 15 fev. 2020.

A rua assume a caracterização de um espaço de prazer, proveniente do ar que se prolonga desde a varanda, o que seria tanto lugar de acolhimento, enquanto cômodo da casa, como lugar de profanação, enquanto abertura para a rua – situada numa ambígua condição, entre o interior e a circulação para o exterior. Assim, limiar entre os princípios ativos da infância

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que vão levar ao prazer da vida adulta e as fissuras do corpo erótico que rememoram a infância. Os espaços da casa que se constituem como desvios da sua estrutura base – os cantos, o sótão, o porão, a varanda, o pátio – são aberturas na unidade da morada, lícito pensar também em analogias e metáforas com o erotismo e a composição poética. A imagem da casa como abertura para o erotismo é visto em Livro – um encontro, de Lygia, quando a criança se abriga numa casa feita de livros e, conforme, cresce, sua cabeça esbarra nos livros acima e destrói a casa, precisando sempre reconstruí-la. Essa tarefa é realizada com prazer, o prazer da brincadeira de criança que, aos poucos abre espaço para experimentar o prazer da vida adulta. O prazer de reconstruir a casa que é o trabalho do escritor, também este erótico, de destruição e reconstrução.14 São igualmente eróticas as imagens que remontam o sobrado em Fazendo Ana Paz. Erotismo pressupõe corpo. E as imagens da casa que influem na escrita são aquelas em que o corpo interagia, brincava, explorava. Assim como na escrita, é o corpo – o corpo que experienciou, o corpo erótico – que marca a palavra. Ao narrar a casa rememorada, não é considerada sua geografia total, mas justamente as intermitências que o constituem. Um estúdio, mesmo que inserido numa casa é isolado: à menor abertura da porta, escapa o silêncio da atividade de escrever para os demais cômodos, que são cobertos com certo encantamento; e no estúdio entra o barulho da vida ordinária que interrompe o trabalho. A porta é uma passagem de um espaço a outro, um simples limiar entre o que se lembra e o que se esquece. Subir ao sótão ou descer ao porão é ascender da linearidade do espaço. Postar-se na varanda, para dali observar o correr do dia ou a chegada da noite, é deslocar-se do cotidiano comum para a suspensão do encantamento. E o quanto disso não é matéria de poesia?15

1.2 ANA-CRONIA

A escritora-personagem de Fazendo Ana Paz é surpreendida pela repentina aparição da menina que intitula o livro, a qual narra um pedaço da história. Certa de que a narrativa seria desvelada por Ana Paz, ela formula uma série de indagações sobre a vida da personagem, contudo isso tem por consequência o seu desaparecimento e a interrupção do fluxo narrativo:

14 Sobre erotismo em Lygia Bojunga, ver BARBOSA & SILVA, 2019. 15 Há uma relação entre os espaços do imaginário que são percorridos pelas crianças e pelos poetas. Bachelard (1978) compara a casa habitada com as palavras. Subir ao sótão é abstrair; descer ao porão é sonhar. Assim como subir e descer os degraus da palavra é abstrair-se do seu sentido comum. “Subir e descer, nas próprias palavras, é a vida do poeta” (BACHELARD, 1978, p. 292).

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“Ana Paz! Ana Paz! Não adiantou mais chamar. [...] Ela tinha se afogado, sumido.” (BOJUNGA, 2007a, p. 17). Sem pistas sobre como prosseguir na história, a escritora é inspirada a escrever outros dois pedaços de narrativa: o de uma jovem que se apaixona e o de uma velha no Rio de Janeiro, que junta suas coisas para voltar para o Rio Grande do Sul. Como não via relação entre esses dois fragmentos e a história de Ana Paz, ela escreve umas linhas aborrecidas na tentativa de unir as histórias de algum modo, inventando que a velha vai se encontrar com as outras duas personagens na casa da infância: “A minha vontade era fazer a velha responder: eu vou me encontrar com duas personagens que andam desgarradas por aí.” (BOJUNGA, 2007a, p. 34). Embora não se dê conta a princípio, chega o momento em que a escritora entende que as personagens "moça que se apaixonou" e "velha" são também Ana Paz, em momentos futuros da sua vida ficcional: “É isso! As três são a mesma! Não foi à toa que, quando eu fiz a moça e a velha, eu não dei nome nem pra uma nem pra outra: lá num fundão escuro da minha cuca eu já devia ter sacado o que só agora estou me dando conta.” (BOJUNGA, 2007a, p. 40). Resta-lhe, então, emendar uma parte da história na outra: a velha visita a sua primeira casa para rever as outras duas personagens – a menina e a adolescente que um dia fora. A coexistência das três personagens, advindas de momentos distintos da mesma linha cronológica, ilustra a desconstrução dessa linha, apresentada de modo anacrônico. O subcapítulo anterior, discorreu sobre o espaço da narrativa. A ocupação, ou ressignificação, do espaço, seja pela criança que descobre em cada canto um novo universo, seja pelo escritor que transforma a casa em um ateliê de histórias, pressupõe outra relação com o lugar, uma ficcionalidade que distancia o sujeito da linearidade da vida. Isso significa que há uma suspensão da cronologia do mundo material para uma temporalidade que se dá na dimensão psicológica. Ao deixar que emerja a memória na sua escritura, esta literatura coloca em tensão a dimensão temporal. É a partir de uma descontinuidade do tempo, uma ruptura da linearidade que a construção da história acontece. A rememoração opera pela interrupção, pelo desvio e pelo movimento espiral: para que haja possibilidade de encontro entre criança, velha e jovem, a linha reta do curso da vida exterior precisa ser torcida em volta de si mesma várias vezes, esperando que, por um instante, visualize-se um rastro do passado, que se perde, como no Panorama; mas que pode reaparecer, devido ao movimento dinâmico e infinito da espiral. A memória se constitui por uma série de fios dispersos do tecido da vida. Esses pedaços, como restos de um sonho esquecido, são encadeados no presente, o que se lembra é o fluxo de imagens que saltam no momento, que distorcem os acontecimentos e que trazem junto de si vazios, o esquecimento da nossa vida que nos constitui. Pois o que se recupera são algumas das

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linhas dessa grande colcha que é a vida. E os pedaços que estão ocultos, esquecidos, completam a história, uma história intermitente, composta de vazios e interrupções. Assim, o indivíduo é constituído pelo que lembra e pelo que esquece. Associa esses pedaços do passado e cria novas histórias. Lembra das coisas como pensa que elas aconteceram. O filósofo Giorgio Agamben (2018) utiliza a imagem do vórtice para pensar a memória ou o tempo. O vórtice mantém uma forma espiral que gera um constante retorno das coisas, mas apagando qualquer noção de origem ou cronologia:

Assim como o redemoinho no curso do rio, a origem é contemporânea ao devir dos fenômenos, dos quais extrai sua matéria e nos quais, todavia, permanece, de algum modo, autônoma e parada. E, dado que ela acompanha o devir histórico, procurar entender este último significará não reconduzi-lo a uma origem separada no tempo, mas confrontá-lo e mantê-lo com algo que, tal como o vórtice, ainda está presente nele. (AGAMBEN, 2018, p. 85)

A ideia de fluxo temporal como vórtice impede a cristalização do passado, o insere no presente, de modo que é repensado sob novas configurações. A origem não está distante: retorna e está próxima das coisas, fazendo com que se constitua uma pluralidade de significados, sem que se trace uma linha do tempo de como esses significados se construíram, mas com sua coexistência no agora. Eles se sobrepõe e se confundem, interferindo um no outro e criando novos sentidos. Agamben refletiu o conceito de vórtice a partir da concepção de Benjamin quanto ao tempo. Gagnebin (2014, p. 204) explica que, para Benjamin, a atualidade é um “vir a ser ato de uma potência”, ou seja, o reaparecimento de um elemento passado que abala as certezas do presente, discutindo o ontem, lançando novo olhar sobre o hoje e ampliando as possibilidades do amanhã. Reaparecer é possível pelo movimento do vórtice, que, enquanto se encaminha para um centro, possui a forma do infinito, já que nunca encontra o ponto de partida nem de fim. Para Benjamin,

A temporalidade do passado não se reduz mais ao espaço indiferente de uma anterioridade que precede o presente na esteira monótona da cronologia. Pelo contrário: momentos esquecidos do passado e momentos imprevisíveis do presente, justamente porque apartados e distantes, interpelam-se mutuamente numa imagem mnêmica que cria uma nova intensidade temporal. (GAGNEBIN, 2014, p. 204).

Essa intensidade, chamada por Benjamin de atualidade, é o ponto de ebulição em que as partículas de passado e presente se agitam. A sobreposição temporal é metaforizada pela narradora de Fazendo Ana Paz quando ela coloca a velha Ana Paz indo até sua casa de infância para encontrar com a criança e a adolescente Ana Paz. As três personagens são a mesma

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persona, embora em diferentes momentos da vida, fragmentadas, o que possibilita seu encontro no presente: seu entrecruzamento. Quando a moça que se apaixonou pelo Antônio chega na casa, a velha já está lá: “Demorei muito? [...] Sabe o que que aconteceu? – ela falou – eu me perdi da Ana Paz.” (BOJUNGA, 2007a, p. 38). A reunião das diferentes Ana Paz faz o movimento do vórtice: encontros e desencontros, aparecimentos e desaparecimentos da memória. E é do emaranhamento entre os fios da memória, do entrecruzamento, que trata esse encontro. Aliás, isso abrange tanto a vida ficcional de Ana Paz como seu confronto com a narradora- personagem. Afinal, tão subitamente quanto aparece para a escritora, a menina some, como um rastro de memória que se perde no redemoinho: “e a semana acabou, e outra passou, e não adiantou ficar grudada no papel: A Ana Paz não apareceu mais.” (BOJUNGA, 2007a, pp. 17- 18) Benjamin (2012a), ao analisar a obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, conta que havia na França uma hospedaria denominada Au temps perdu: “Também em Proust somos hóspedes que, sob uma insígnia oscilante, cruzamos uma soleira além da qual a eternidade e a embriaguez estão à nossa espera.” (BENJAMIN, 2012a, p. 46). A eternidade, aqui, não se refere a um idealismo ou um platonismo, mas a uma eternidade que “pertence ao registro da embriaguez”, ou seja, um devaneio, um sonho. Uma vez que

A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo mais entrecruzada, que se manifesta da maneira mais direta na rememoração (internamente) e no envelhecimento (externamente). (BENJAMIN, 2012a, pp. 46-47)

Assim sendo, a eternidade se dá pelo constante retorno e interrupção do momento presente pelas imagens do passado, uma interrupção da linearidade temporal: entrecruzamento, que compreende tanto o surgimento de uma imagem, como seu desaparecimento. A aproximação entre memória e esquecimento é pensada no texto de Fazendo Ana Paz quando a velha Ana Paz entra no seu antigo quarto e confronta-se com um espaço vazio, que não é mais como era:

Lá pelas tantas aconteceu: a memória do quarto acordou, e acordou tão bem disposta que foi logo querendo me mostrar tudo que o quarto tinha sido, tinha tido, aqui ele tinha a cama, aqui era o armário, a penteadeira ali, a mesa de estudar bem debaixo da janela, e a cortina amarela, e mais a colcha de crochê. [...] Eu fiquei ali parada olhando pra tudo, vendo o que o quarto não tinha mais. (BOJUNGA, 2007a, p. 46)

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Ana Paz recorda, de fato, mas a recordação vem justamente do quarto vazio – do esquecimento. Foi preciso adentrar um espaço que não tinha mais nenhum artefato do passado para que as imagens invadissem o presente. Ou seja, a partir do esquecimento, do desprendimento do referente, o quarto se reconstituiu no presente. As imagens invadiram a atualidade, que não tem nada além de um quarto vazio, ruínas, mas que por isso, permite rememoração. À vista disso, Nietzsche (2003), por meio das Considerações Intempestivas, considera essencial para a vida a possibilidade de esquecer. A segunda consideração mostra como os seres humanos estão eternamente condicionados a viver sob o regime do tempo, que se manifesta no peso do passado e no anseio pelo futuro. A propósito de ilustração, ele cria uma cena: há o boi pastando e o homem que o observa. O animal, na sua atividade, não sabe o que é ontem e o que é hoje, ou seja, não distingue a divisão temporal. Por esse motivo não fica melancólico ou aborrecido. O homem que olha o bicho, ao mesmo tempo em que se orgulha da própria humanidade, inveja a felicidade do animal que vive aquele momento:

Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. (NIETZSCHE, 2003, p. 07)

Nietzsche elabora um diálogo entre esse homem e o gado, em que o primeiro quer saber sobre a felicidade do outro: o boi responderia que é por causa do esquecimento, mas disso também já se esqueceu. O homem se admira por perceber que não pode se esquecer das coisas. Pois os instantes passam e a todo tempo um deles volta na posterioridade.

Incessantemente uma folha se destaca da roldana do tempo, cai e é carregada pelo vento - e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem. Então, o homem diz: "eu me lembro", e inveja o animal que imediatamente esquece e vê todo instante realmente morrer imerso em névoa e noite e extinguir-se para sempre. (NIETZSCHE, 2003, p. 08)

O animal é sempre ele mesmo por não ter o peso do passado, ou outro vestígio que ficou pra trás. O homem, por sua vez, tem o poder de negar e dissimular esse passado que carrega como um fardo do qual não pode se desfazer. Não apenas o animal: Nietzsche evoca a imagem da criança livre de passado e que brinca no presente; mas dela é tirado, em algum momento da

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vida, o esquecimento. O único momento em que o homem poderia esquecer-se plenamente é na morte, mas ali cessa sua existência. Nesse sentido, a plena felicidade para Nietzsche é a possibilidade de esquecer, ou viver “a-historicamente”. Viver a completude do momento presente, mesmo que por um instante: “Portanto: é possível viver quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como o mostra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento.” (NIETZSCHE, 2003, p. 09). Escrever não é um jeito de esquecer? Não seria esse o exercício poético de Lygia? O resultado de uma tecitura que guarda as marcas do vazio, as intermitências da memória, a insuficiência, tudo transformado em rastro pela abstração da palavra? Como se lida com o tempo, que tudo consome, que é incontrolável e voraz (figura 6)?

Figura 6 – Saturno devorando um filho (1819-1823), de Goya.

Fonte: Wikipedia. Disponível em: Acesso em: 10 jan. 2020.

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Goya representou Saturno – ou Cronos, o tempo – como uma figura soturna, quase selvagem, com os olhos arregalados enquanto comia um dos filhos, para garantir que nunca fosse vencido. Para passar despercebido pelo tempo, talvez seja necessário ser nada, ser esquecimento. Não é também soturno o exercício da rememoração? Fazendo Ana Paz trabalha com a mesma dor, a mesma incapacidade de se livrar do passado, que é também a incapacidade de recuperá-lo.

1.3 ÁLBUM FOTOGRÁFICO

Como velhas fotos que não se quer mais ver, os restos dos papeis que continham as personagens, resultantes do fracasso da escritura feita pela narradora, são escondidos no fundo da gaveta: “eu peguei tudo que era pedaço da Ana Paz, e do Filho, e do Jardineiro, e dos mil esboços do Pai, e de tudo que é projeto da Carranca, enfiei aquela papelada toda na gaveta mais funda e mais remota da casa e comecei a escrever outro livro.” (BOJUNGA, 2007a, pp. 81-82). O entendimento de que seu livro não dera certo residia no fato de que não restavam personagens com vidas completas: só tinha rascunhos, pedaços. A sinopse de Fazendo Ana Paz compara a narrativa do livro com um “álbum de fotografias antigo”. Essa comparação considera a construção do texto por meio de imagens, bem como o sequenciamento manipulável de tais projeções imagéticas, do mesmo modo que a montagem de um álbum. A disposição de fotografias em um álbum é pontual e porosa. O álbum cria uma narrativa da vida que se dá por meio de momentos específicos fixados na imagem. Benjamin (2017a) alude para a criação que acompanhou o surgimento dos álbuns fotográficos, fosse por meio da técnica da pintura, graças à generalização do “retoque do negativo”, feito pelos pintores em miniatura, que criavam novas roupas, fantasias e cenários, ou da longa imobilidade necessária à pose dos modelos: “O cenário teatral desse tipo de retratos, com os seus pedestais, balaustradas e mesinhas ovais, ainda lembra a época em que, devido aos longos tempos de exposição, era necessário arranjar pontos de apoio para os modelos, para que a imagem se mantivesse fixa.” (BENJAMIN, 2017a, p. 59). O filósofo aponta que os próprios modelos eram fantasiados e praticamente remontados pela técnica interferente da pintura nas fotos,

nas quais se viam figuras ridiculamente vestidas e de cintura apertada – o tio Alex e a tia Riekchen, a Trudchen ainda menina, o papai no primeiro semestre de faculdade, e finalmente, para completar a vergonha, nós próprios: em figura de tirolês fino, cantando, agitando o chapéu contra as neves eternas pintadas, ou então de roupa de

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marinheiro, uma perna direita, a outra solta, como convém, encostados a uma coluna envernizada. (BENJAMIN, 2017a, p. 59).

A manipulação do contexto em que a fotografia é tirada ou as alterações no produto resultante remetem à teatralidade ou à inveracidade da realidade: ainda que se constitua como captura de um momento real, a própria técnica, ou ao menos o contexto criado para a sua performance, problematiza a autenticidade do momento. O mesmo efeito pode ser pensado inversamente: há uma interposição dos aspectos ficcionais, performáticos, na própria realidade. O caráter dúbio da representação do real, seja no registro fotográfico, seja no âmbito textual, marca a posição de instabilidade em que se inserem tanto o leitor quanto o autor. Nenhum pode afirmar, assim como nenhum pode negar. O texto encontra na ambiguidade o dinamismo necessário para o jogo do factual-ficcional: no instante em que se aproxima do autobiográfico, refugia-se no ficcional; e quando afirma-se como ficcional, se contradiz permitindo a pulsão do biográfico. Ao leitor resta a contemplação e o espaço de leituras plurais que reposicionam os agentes do discurso envolvidos. Ao se deparar com uma fotografia antiga, como a foto da família Bojunga (figura 7), por exemplo, incluída no posfácio de Ana Paz, o leitor poderia não acessar o caminho memorial proposto pelo texto – o de reconhecer a fotografia como da escritora –, mas acessar outro caminho, seu próprio. É possível que lembre do retrato velho na casa de seu avô, não do avô Bojunga; talvez rememore outros momentos ou outros dados da família; ou ainda, confunda as duas fotografias, as duas famílias e se perca numa narrativa sem saber mais o que é memória e o que é esquecimento. Assim, as inscrições impressas na mente apresentam-se como imagens que remontam acontecimentos, ecoando o passado. São imagens porosas, que se constituem pelas lacunas a que estão associadas. A narrativa memorial opera na ficcionalidade por ser incapaz de contemplar a totalidade, assumindo, desse modo, sua eterna deficiência. A memória se constrói pelo esquecimento, pela fragmentação e pela parte, como o álbum velho de fotografias, que não desvela a verdadeira história, mas constrói possibilidades narrativas que levam tanto a si quanto ao outro.

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Figura 7 – Foto da família Bojunga.

Fonte: BOJUNGA, 2007a, p. 108.

O decurso da vida demarca rompimento com alguns espaços explorados no passado. O esquecimento desses espaços não ocorre necessariamente no corpo, mas no espírito, nos vãos do ser humano que as ciências exatas e a razão nem sempre dão conta de adentrar (RICOEUR, 2007). Os vazios resultados do esquecimento estão marcados com inscrições que nos remetem ao passado, resultando na possibilidade de reencontro com o que um dia se conheceu.

[...] há o reconhecimento propriamente mnemônico, geralmente chamado de reconhecimento, fora do contexto de percepção e sem suporte de representação necessário; ele consiste na exata superposição da imagem presente à mente e do rastro psíquico, também chamado de imagem, deixado pela impressão primeira. [...] É para esse ato que converge o feixe de presunções de confiabilidade ou de não- confiabilidade apontado para a lembrança. Talvez tenhamos colocado o pé na impressão errada, ou apanhado o pombo errado no pombal. Talvez tenhamos sido vítimas de um falso reconhecimento, como quem, de longe, confunde uma árvore com uma personagem conhecida. Entretanto, quem pode abalar, com suas suspeitas dirigidas de fora, a certeza ligada à felicidade de tal reconhecimento que consideramos, em nosso coração, como indubitável? Quem pode afirmar nunca ter confiado em tais reencontros da memória?

Assim, a leitura de uma imagem, o som de uma canção, o sabor de um doce, em suma, as sensações do mundo podem suscitar reconhecimentos das inscrições do passado restadas na

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mente. Essas marcas são como a espinha dorsal das imagens memoriais, que, de acordo com as suas torções, metamorfoseiam-se, transformam-se, decorrentes do esquecimento. Ricoeur (2007, p. 438) alude que “[...] se uma lembrança volta, é porque eu a perdera; mas se, apesar disso, eu a reencontro e reconheço, é que sua imagem sobrevivera”. Para lembrar, é preciso esquecer. Esquecer é a ponte entre o conhecer e o reconhecer. É poder lembrar. Esquecer não se refere apenas ao “apagamento dos rastros”, às disfunções patológicas que ao corpo podem sobrevir. Ele pode ser aquele do “silêncio dos órgãos”, assim como a memória feliz, um vazio que sucede ao espírito (RICOEUR, 2007). O exercício de escrever bojunguiano não tem outro efeito que não seja apagar a referencialidade: esquecer. O texto rememorativo evoca rastros biográficos, como as fotos de um álbum têm um impulso referencial. Porém, os poros da superfície textual do tecido da reminiscência suscitam uma voz narrativa do esquecimento. Tanto a narradora como a personagem aparecem em rastros no texto, decorrentes de um exercício de esvaziamento do ser, no qual quem escreve se desfaz na escrita. Os vazios resultados do esquecimento flertam com a subjetividade do ser e a objetividade do fazer literário, em um contínuo jogo de aparecimento e desaparecimento. Desse modo, não há personagens com grandes histórias, heróis dos romances. Povoam seus livros personagens sem biografia, apenas rastros de imagens e palavras. O filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, de 2001, dirigido por Jean-Pierre Jeunet, apresenta um personagem, Nino Quincampoix, que tem como hobby coletar do lixo as fotos tiradas em cabines instantâneas e descartadas pelas pessoas. Ele as coleciona num grande álbum, em que cola os pedaços das fotos rasgadas e dispõe os rostos anônimos, criando um mosaico da população parisiense (figura 8). O grande mistério da sua coleção é uma série de fotografias do mesmo homem. Nino não entende porque o sujeito tira tantas fotos e as descarta. A inquietação o leva a fabular sobre a história daquele sujeito, chegando a pensar que pode se tratar de um fantasma. A coleção de fotografias de Nino nada tem de familiar: são pessoas anônimas, plurais. E tão plurais são as possibilidades de leitura. As fotos não contêm dados, não trazem informações sobre o referente, apenas a imagem, como o resto descartado de uma pessoa. E é essa efemeridade que atrai Nino, o qual busca nas lixeiras da cidade os destroços das imagens para reconstruí-las ou reorganizá-las no seu álbum. A história dos indivíduos – pelo menos a história contada por Nino – é feita de descartes, de esquecimento, e não de memória.

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Figura 8 – Cena do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain.

Fonte: PROIBIDO LER. Disponível em: Acesso em: 19 set. 2019.

Se Jeunet desenvolveu esse jogo entre imagem e referencial no cinema, Foucault (2003) o pensou no texto. Em “A vida dos homens infames”, o filósofo propõe uma “antologia de existências”, ao organizar arquivos do Hospital Geral de Paris, destinado à psiquiatria e que, ao longo da sua história, foi espaço de internação de um grande número de pessoas marginalizadas, pobres, prostitutas, infratores, dos quais não foram registradas grandes histórias. Pelo contrário, são sujeitos cuja existência se manteve através de registros ínfimos: “Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos.” (FOUCAULT, 2003, p. 203). Os registros – palavras ajuntadas para mal narrar sujeitos restados, descartados – significavam “poemas-vidas” de “existências-relâmpagos”; seu intuito era reunir (não-) histórias de pessoas reais, de vidas desventuradas que suscitassem, ao mesmo tempo, beleza e terror. (FOUCAULT, 2003). Era no silêncio, na ausência de uma biografia profunda, na efemeridade dos registros e na brevidade das palavras que se apoiava seu interesse:

Persisti para que esses textos mantivessem sempre uma relação, ou melhor, o maior número de relações possíveis com a realidade: não somente que a ela se referissem, mas que nela operassem; que fossem uma peça na dramaturgia do real, que constituíssem o instrumento de uma vingança, a arma de um ódio, um episódio em uma batalha, a gesticulação de um desespero ou de um ciúme, uma súplica ou uma ordem. Não procurei reunir textos que seriam, melhor que outros, fiéis à realidade, que merecessem ser guardados por seu valor representativo, mas textos que desempenharam um papel nesse real do qual falam, e que se encontram, em contrapartida, não importa qual seja sua exatidão, sua ênfase ou sua hipocrisia, atravessados por ela: fragmentos de discurso carregando os fragmentos de uma realidade da qual fazem parte. Não é uma compilação de retratos que se lerá aqui. (FOUCAULT, 2003, p. 206)

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Foucault problematiza a relação de poder entre os registros – talvez caluniosos ou exagerados – e a existência obscurecida dos indivíduos infames. Uma existência possível apenas em decorrência de tais registros, uma vez que, do contrário, nem essa existência lhes seria permitida. Além disso, ele reforça o imbricamento entre o apagamento biográfico e tal existência. Não se tratam de fabulações inventadas. Tampouco são relatos expositivos da vida real. É no apagamento que a existência real dos sujeitos emerge. Nesse sentido, as escritas de si, a representação da vida – bio-grafias –, posicionam-se num entre-lugar de suspensão, que recusa assertivas factuais; as marcas de quem escreve não aparecem no conteúdo do que referencia. Elas aparecem na abstração do ser, quando a mão, única, singular, pressiona o lápis no papel. Quando, ao tocar a argila com a pele, o artista provoca relevos na matéria – poros, como os sulcos das digitais cutâneas. Como uma assinatura que, quanto mais livre e abstrato o traço, mais significa a identidade do sujeito que se escreve. E que, nessa deliberação, não é mais que isso: um traço abstrato de esquecimento. Este capítulo constituiu uma discussão acerca da memória na literatura de Lygia. Das reflexões, evidencia-se dois pontos: o primeiro é que a memória é constituída por intermitências. Essas intermitências estão presentes no espaço, representado aqui pela casa, que não somente é recuperada, no presente, em frações, como também possui uma estrutura que esmaece a ideia de unidade (os limiares das portas, a elevação da varanda); no tempo, que pressupõe a deformação da linearidade, além de presente interrompido por imagens do passado sem origem; e, nas personagens, que, não apresentam histórias – biografias ainda que ficcionais –, mas se constituem pela porosidade do esquecimento, mais do que pela reminiscência. A narrativa é desvelada por meio de fragmentos, ora de ficção, ora de rememoração. Essa desconstrução da narrativa linear metaforiza a desconstrução da unidade de indivíduo e de memória. O escrito abraça a interrupção, as marcas, os rasgos, as porosidades, que são constitutivas da vida e que, pelo gesto, são transformadas em palavra. Portanto, o texto dispensa a coesão e a linearidade tradicionais de contar uma história. O leitor é constantemente confrontado por um anacoluto narrativo. Segundo Cunha & Cintra (2008, p. 644), “Anacoluto é a mudança na construção sintática no meio do enunciado, geralmente depois de uma pausa sensível.” A figura de linguagem causa quebras sintáticas, desconstruindo a estrutura padrão de uma oração, na intenção de manter um sentido. Para Cunha & Cintra (2008, p. 645), ela está associada à “linguagem falada”. Eles exemplificam com textos literários, de Casimiro de Abreu e José Lins do Rego, que tratam pontualmente sobre memória e infância:

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No berço, pendente dos ramos floridos, Em que eu pequenino feliz dormitava: Quem é que esse berço com todo o cuidado Cantando cantigas alegre embalava? (C. de Abreu, O, 78) (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 644)

Umas carabinas que guardava atrás do guarda-roupa, a gente brincava com elas, de tão imprestáveis. (J. Lins do Rego, ME, 136) (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 644)

Ao explicarem os exemplos citados, eles afirmam:

No primeiro exemplo, observamos que a oração iniciada por no berço não teve seguimento normal no 3º verso, que devia continuá-la, e, em consequência, aquela expressão ficou solta no período. Também no exemplo de José Lins do Rego a expressão umas carabinas ficou desligada do resto da oração principal. (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 645)

Cunha & Cintra destacam o caráter fragmentado da construção sintática; os elementos frasais ficam soltos, desligados, ou seja, não têm sequenciamento e constituem-se como sobra, restos impotentes na oração, recorrendo a outras possibilidades discursivas para suportar o sentido requerido pela oração. Os autores terminam a conceituação explicando que, no anacoluto, o emissor do enunciado se abstrai do início da oração para iniciar uma nova frase (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 645). Assim sendo, eles colocam em questão o deslocamento do enunciador provocado pela construção linguística, que cessa uma linearidade em função da manutenção semântica do período. O dicionário etimológico diz que a palavra tem origem do grego [koluthos], caminho. Desse modo, anacoluto significa “que não segue o mesmo caminho”. Um desvio. Uma interrupção. As intermitências do texto, mas também do indivíduo e da memória. Anacoluto é a interrupção oral; é o saltar de uma imagem do passado no presente; é uma porta que leva a outro cômodo; é ausência de história entre uma fotografia e outra, num álbum, em que uma nova narrativa deve começar; é o gesto da mão que não sabe o resultado da peça que está criando; é desfazer os fios do manto da memória, para poder recomeçar, em outro momento, em outro gesto. É o fazer de Ana Paz. A ideia do anacoluto como metáfora da narrativa será retomada no capítulo seguinte.

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2 COSTURA DE SAHRAZAD “Sahrazad disse ao rei Sahriyar: ‘Com a sua permissão eu contarei’. Ele respondeu: ‘Permissão concedida’. Sahrazad ficou contente e disse: ‘Ouça’”.

(ANÔNIMO, 2006, p. 56)

O rei Sahriyar tinha decretado: desposaria todas as moças virgens, como vingança à traição da sua esposa e seu irmão, e mataria a todas pela manhã, um dia após o outro. Nem mesmo a filha de seu vizir, como era denominado o governador de sua confiança, escaparia. Mas Sahrazad tinha um plano. Pediria que o rei trouxesse a irmã para o quarto e, ao fim das núpcias, Dinarzard deveria pedir que Sahrazad contasse uma história: “Então eu contarei a vocês histórias que serão o motivo da minha salvação e da liberdade de toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume de matar mulheres”. (ANÔNIMO, 2006, p. 56). A narradora contava uma história por noite e a interrompia no seu clímax, deixando o rei absorto em curiosidade. Noite após noite, Sahrazad costurava um novo fragmento no longo tecido narrativo. E, após tantas histórias, o rei se apaixona, se arrepende e decide encerrar a chacina. Dizem que seu trabalho perdurou cerca de mil e uma noites. Mas história de muitas histórias sobreviveu às gerações futuras, a voz da narrativa eterna que ecoa até os dias de hoje: uma das bases da literatura universal. Se Cronos a todos devora, e não é possível que nenhum ser sobreviva à sua destruição, a narrativa de Sahrazad desafiou o próprio tempo. O trabalho da contadora de histórias era adiar o tempo, em que cada fragmento costurava-se a outro e permitia a continuação. Ela mantinha a história aberta. (GAGNEBIN, 2012). O tradutor da obra, Mamede Mustafa Jarouche, entende o caráter da obra, em seu conteúdo e em sua estrutura, como um trabalho de muitas vozes, muitas mãos que costuraram e deixam o texto como é: poroso.

Sua história pode ser feita com base em fragmentos remotos e formulações digressivas, em manuscritos aparentemente incompletos conservados pelo acaso e compilações tardias cuja completude fez correr demasiada tinta, bem como em silêncios e registros lacônicos e lacunares. (JAROUCHE, 2006, p. 11)

As histórias interrompidas de Sahrazad carregam em sua anatomia a dissipação da autoria, a fragmentação narrativa e as marcas de tantas mãos que as escreveram e que interferiram no texto-tecido das mil e uma noites. Por meio da costura simbólica de narrativas, Sahrazad tece uma história que nunca se encerra. Seu trabalho tem o objetivo da sobrevivência. O capítulo anterior terminou introduzindo a figura de linguagem anacoluto como um aporte para a leitura da obra de Lygia. Tome-se como exemplo, Fazendo Ana Paz, cuja estrutura

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pode ser comparada à forma sintática. A narrativa principal insiste em prosseguir, mas excertos, vozes e imagens a interrompem. Os fragmentos se apresentam simultaneamente como insuficiente e excedente. Insuficiente, pois a história nunca desenlaça seus nós, nunca encontra tecido o bastante que cubra os vazios, as lacunas textuais. Excedente, pois sobram frente à narrativa. A pesquisa identifica uma estilística textual justificada pela figura literária do anacoluto. A história de Ana Paz conflita com a história da escritora-narradora; as vozes se manifestam como tentativas de falar que não são efetivadas. A história em si é composta por restos de escritos, ajuntados na intenção de uma obra. Se o livro apresenta essas falhas não como erros, mas como narrativa, isso significa que eles se tornam potência. Nesse sentido, o anacoluto narrativo, ou seja, a desconstrução da linearidade, evoca outra forma narrativa que foge à estrutura tradicional. Jeanne Marie Gagnebin (2012) identifica na filosofia de Walter Benjamin o conceito de abertura, que se refere a uma abertura de sentido e a um não acabamento. Esse conceito será explorado adiante, mas por ora considere-se a abertura como um movimento da narrativa tradicional, anterior à sociedade capitalista, que, de acordo com Benjamin, assemelha-se às concepções estéticas da arte moderna, sobretudo a Proust e Kafka. (GAGNEBIN, 2012). Essa abertura, um “Movimento interno, representado na figura de Sherazade, movimento infinito da memória, notadamente popular” (GAGNEBIN, 2012, p. 12), apresenta-se tanto no âmbito da criação como da recepção. A narrativa recusa uma totalidade e uma linearidade, uma vez que está aberta para receber vozes que se proliferam e a mantêm orgânica, viva. Este capítulo se propõe a investigar a (des) estrutura da ficção literária estudada, que apresenta características dessa abertura. A literatura referida cria uma anatomia própria que utiliza a costura como ferramenta para aproximar memória e ficção / imagem e palavra. É nesse entremeio que o anacoluto assume seu papel: como na figura de linguagem – em que o sujeito é alterado, o predicado se adequa a um novo sujeito, o sintagma inicial é abandonado e sobra na oração – o texto muda de direção, de caminho e junta novos pedaços. Desse modo, qual a aproximação entre esse exercício poético e o conceito benjaminiano? A fim de investigar essa questão, o capítulo analisa as mutações sofridas pela ficção moderna. O romance burguês projetava uma ideia de coletividade, que, pelo contrário, maquiava a pobreza de experiência de indivíduos cada vez mais solitários, experiência essa que seria fundamental para tornar o narrador e o ouvinte próximos da narrativa (GAGNEBIN, 2012). Por um lado, o romance burguês impunha-se como modelo totalitário de homem. Os anseios eram considerados como inerentes e semelhantes a todos os sujeitos. Por outro, justamente as semelhanças que aproximavam as pessoas e as tornavam uma comunidade eram cada vez mais oprimidas, devido

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aos avanços tecnológicos da Idade Moderna. A partir do século XX, o herói do romance é esmaecido, a figura do narrador foi ressignificada, deu espaço à emersão mais contundente da linguagem. Se o romance pressupunha uma conclusão para a narrativa e um destino para o herói, o novo século viu nascer o oposto desse herói, homens ordinários, sem experiência, como os heróis kafkanianos, em romances que preferiam a transmissibilidade de uma narrativa, ou seja, sua própria continuidade, ao invés de um sentido final. Nesse novo modo estético, o criador não tenta apreender o mundo, mas mantém a história aberta a diversas enunciações, possibilitando a pluralidade de vozes e modos narrativos. A memória então é entendida como imagem e a performance narrativa como rastro de escrita, como será visto em subcapítulos adiantes. Em um episódio distinto e incômodo do livro Corda Bamba (1979), uma avó rica dá de presente para sua neta, Maria, uma velha contadora de histórias: “– Mas, Vó, gente se compra?”, questiona a neta, desnorteada com a situação. “– Quem tem dinheiro feito eu compra tudo.”, responde a avó. A Velha da História tem histórias de mais e comida de menos, e narra para se esquecer da fome. Desde a infância, aprendeu que quando tinha fome, devia contar. Agora não quer mais: quer comer o que puder até não aguentar, que foi o pagamento acordado com a avó de Maria. Aparenta possuir uma sabedoria quase cansada, de quem sabe tudo, e apenas repete “História de coisa? de bicho? de gente? grande? pequena?”; Maria, porém, não parece satisfeita com as opções que a velha lhe apresenta, e pede que lhe conte sua própria história. “– De mim?”, pergunta então a velha. “– A senhora não tem história?”, questiona Maria, que é respondida pela velha com humildade: “– Todo mundo tem.” (NUNES, 1985, pp. 97-98). O texto contrasta a atividade de contar histórias à condição de miséria da velha. Ela conta porque precisa comer. Ante à promessa de que a avó daria tudo o que ela pudesse consumir, ela narra rapidamente o que a menina quer: “De repente, desatou a falar depressa, olhando muito séria pro sanduíche de presunto.” (NUNES, 1985, p. 98). É evidente que a velha é uma sábia, que aprendeu o que sabe a partir da fome. Estranho oposto à avó rica, que comprou não só a velha como os maridos que teve. Recorre evocar os conceitos “experiência” [Erfahrung] e “vivência” [Erlebnis] de Walter Benjamin. O ensaio “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire” (BENJAMIN, 2019, p. 106) considera que um dos esforços da filosofia consistia em diferenciar uma experiência “verdadeira” [Erfahrung] de uma vivência cotidiana [Erlebnis], que “não se integra na tradição” (BENJAMIN, 2019, p. 109). Isso estaria diretamente ligado às transformações das formas de comunicação, uma passagem da narrativa à informação. No seu ponto de vista, a objetividade intencional da linguagem jornalística e a fragmentação – a desconexão – entre uma notícia e

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outra têm como propósito “isolar os acontecimentos em relação àquele domínio em que poderiam interferir na experiência do leitor” (BENJAMIN, 2019, p. 109), ou seja, a técnica do jornalismo objetivava um descolamento das histórias contadas (informadas) da vida dos leitores dessas histórias. Isso se daria pela diminuição do caráter distante, de um verdadeiro ensinamento. Gagnebin (2012) considera que a experiência é um dos conceitos essenciais da obra de Benjamin. No ensaio “Walter Benjamin ou A História Aberta”, ela analisa as transformações desse conceito ao longo da obra do filósofo e como essas transformações derrocaram em novas performances narrativas. Benjamin critica dois modos de escrever a história: a historiografia progressista, que previa um progresso cientificamente previsível e inevitável, e a historiografia burguesa contemporânea, que advinha da tradição acadêmica. Estas duas proposições de narrativa da história concebem o tempo como cronológico e linear. Ao “historiador materialista”, resta considerar a concepção de tempo calcado na brevidade e na intensidade do presente, um “tempo do agora”. Assim, “Em lugar de apontar para uma ‘imagem eterna do passado’, como o historicismo, ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador deve constituir uma ‘experiência’ (Erfahrung) com o passado.” (GAGNEBIN, 2012, p. 08). A experiência integra os escritos iniciais de Benjamin, desde um ensaio de 1913 intitulado “Experiência”. O, então jovem, filósofo critica o vazio da experiência dos adultos condicionados pelas estruturas político-sociais, os quais tentam cercear as possibilidades de conhecer o mundo através da própria experiência e espiritualidade livre dos jovens. Os adultos, arrogantes, acreditam estar fazendo o bem aos jovens, por diminuir os anos de embriaguez da juventude, que constituem em tolices, e prepará-los para a vida séria, de responsabilidades; sua percepção, no entanto, é de que os adultos são amargos, e tentam tirar os anos dos jovens.

Cada uma de nossas experiências têm, afinal, conteúdo. Nós mesmos as daremos conteúdo com nossos espíritos. O homem que não reflete (Gedankenlose) se apoia em um erro. “Você jamais encontrará a verdade”, clama ele ao que explora, “eu já vivenciei isso”. Para o explorador, no entanto, o erro é apenas um auxílio para a verdade (Spinoza). Sem sentido e vazia de espírito é a experiência apenas para os desprovidos de espírito. Talvez ela possa ser dolorosa para o que se empenha, mas ela pouco poderá desesperá-lo. (BENJAMIN, web)

Não é a intenção aqui analisar o ensaio prematuro de Benjamin, que ele mesmo vai desconstruir em textos futuros. Contudo, cabe uma observação: o texto prenunciava uma questão importante que vem com força em ensaios dos anos de 1930, como “O contador de

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histórias”16 e “Experiência e pobreza”: a opressão da experiência frente às condições do capitalismo na sociedade. Se nos dois célebres ensaios nomeados ele critica a impossibilidade de comunicar a experiência em um mundo sufocante e em colapso, no texto inicial ele já trazia a figura do homem individual e fruto do capitalismo, que diminui as experiências espirituosas do jovem, tratando-as como tolices, em detrimento de uma vida de responsabilidades do trabalho, uma vida sem sentido. Mais ainda, como é possível ler no excerto citado, o filósofo não afastava o não propósito da vida; pelo contrário, abraçava as múltiplas possibilidades errantes das experiências juvenis, desde que elas fossem tingidas pelo espírito. Essa afirmação mostrava o germe de um princípio de crítica – que amadureceria futuramente – referente a uma experiência forjada e sem sentido do homem capitalista, ou seja, sem relação subjetiva. Além disso, a possibilidade de erro, citada pelo filósofo, é cara a esse trabalho e à composição poética destacada como corpus, como será explorado adiante. A experiência para Benjamin é a base da narrativa. A tradição de contar histórias das comunidades centradas no trabalho artesanal era constituída por ensinamentos que influenciavam, através da oralidade, no modo de narrar de um povo e em como uma comunidade enxergava o mundo – seus valores, sua organização, sua cultura. Os mitos e a longa tradição de fábulas e suas morais de ensinamento constituíram o imaginário popular por séculos, aconselhando as gerações. A estrutura social era baseada no ensinamento dos sujeitos mais experientes, que conheciam a terra em que viviam e o passado do seu povo, de modo que se dava importância aos velhos principalmente no fim da vida, com consciência de morte ritualística e presente no núcleo de uma comunidade, como atenta Benjamin (2018). A morte realizava a sabedoria plena do sujeito, síntese do mundo distante, tanto espacial como temporal, a narrativa como meio de legar às gerações posteriores a experiência. Vislumbrar o contador de

16 O célebre ensaio é amplamente conhecido no Brasil pela tradução “O narrador”. Este trabalho, contudo, apoia- se na tradução de João Barrento, integrada ao livro Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica), da Autêntica Editora, lançado em 2018. Sobre a escolha do título, reproduzo parte da nota de João Barrento (BENJAMIN, 2018, p. 139): “Traduzo este título (Der Erzähler no original), a contrapelo do que tem sido habitual noutras versões, por ‘O contador de histórias’. Por um lado, para ir ao encontro de toda a intenção do ensaio de Benjamin, que é a de recuperar uma forma e uma figura que o romance e o progresso técnico e social (através da informação) colocaram na sombra ou fizeram mesmo desaparecer, e que o texto remete muitas vezes para a tradição oral. Por outro, porque o termo sempre utilizado [...] perverte o sentido original: enquanto termo técnico, ‘narrador’ é uma categoria da teoria da narrativa; e no seu uso corrente a palavra perde perfil próprio, na medida em que se refere a todo aquele que narra – incluindo, naturalmente, o romancista, que está fora do âmbito semântico do ‘contador de histórias’.” Cabe ressaltar, que Silviano Santiago produziu um ensaio denominado “O narrador pós-moderno”, no qual problematiza o pensamento de Benjamin. Santiago refere-se ao contador de histórias de Benjamin, como “narrador tradicional”, contraposto pela sua própria formulação, o “narrador pós-moderno”. (SANTIAGO, 1989). Este se vale dos recursos da informação, justamente o que para Benjamin foram a decadência da narrativa. Ou seja, de acordo com Santiago, o narrador não narra a partir de sua própria vivência, mas sim do que observa, colocando em questão o conceito de autenticidade. Pois se uma ação é narrada a partir da observação, ainda pode ser considerada autêntica? Nesse contexto, a noção de autenticidade e de real são construções da linguagem.

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histórias significa olhá-lo de longe, assim seus traços se sobressaem e são perceptíveis, como ver uma pessoa entalhada em uma montanha. O distanciamento a que o filósofo se refere está na caracterização do contador de histórias como o sábio que conhece tanto o mundo racional como suas representações transcendentes sobrenaturais. Como metáfora dessa descrição, evoca-se as figuras (9) e (10) que mostram a Pedra Santa e a Pedra da Gávea, ambas no Rio de Janeiro. A primeira existe em forma de ilustração, do artista Robert Streatfield (1786-1852), denominada “View upon the lake of Rodriguez de Freytas”, que apresenta uma perspectiva da lagoa Rodrigo de Freitas, com a Pedra Santa ao lado esquerdo. Aparentemente, essa pedra existia há dois séculos atrás e, a pedido de um padre, foi derrubada e aterrada. O registro, em forma de pintura, mostra uma pedra em formato de rosto olhando para a lagoa. Segundo a lenda, a rocha amedrontava o rei D. João; não se sabe se sua formação aconteceu pelas mãos de povos antigos ou do tempo. A outra pedra citada, a Pedra da Gávea, permanece na cidade, embora o mesmo padre tivesse tentado destruí-la também. Conta a lenda que a segunda pedra consiste na cabeça de um gigante adormecido, cujo os pés são o Pão de Açúcar. Há inscrições fenícias na pedra, mas é desconhecido o envolvimento do povo com a formação rochosa.

Figura 9 – Ilustração da Pedra Santa, por Robert Streatfield.

Fonte: CIDADE DO RIO, 2014. Disponível em: Acesso em: 17 maio 2019.

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Em suma, é possível distinguir, a uma certa distância, rostos humanos nas rochas, como as feições do contador de histórias que aparecem apenas à distância. Ambas as pedras, em seu silencioso mistério, permanecem olhando para o mundo: guardam as histórias infinitas que sobrevivem à passagem do tempo. Desse modo, é criada uma abertura para o surgimento de fabulações, de mitos, que pouco ou nada têm de dados históricos, mas se mantêm fixados como imaginário.

Figura 10 – Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro.

Fonte: CIDADE DO RIO. Disponível em: Acesso em: 17 maio 2019.

O mistério que cerca as formações rochosas se assemelha ao mistério que cerca o contador de histórias benjaminiano. Suas histórias ecoam de longe e se misturam no narrar presente. Para Benjamin (2018, p. 144) “O contador de histórias vai buscar a sua matéria à experiência, a própria ou as que lhe foram relatadas. E volta a transformar essa matéria em experiência daqueles que o ouvem contar”. O ato de narrar pode surgir do “marinheiro”, o viajante que partiu para terras estrangeiras e que, conhecendo o novo mundo, volta para contar

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as experiências de que se apropriou, ou o “camponês”, o trabalhador que ficou instalado na sua terra e conhece as tradições do lugar onde vive. A compreensão da extensão narrativa se dá pela confluência das duas figuras, o encontro entre o saber distante e o saber do passado. Com isso, o ensaio desenvolve um conceito de sabedoria com elevado grau de completude: para narrar, é preciso que se tenha experienciado ao máximo dentro das tradições e do passado da comunidade em que se vive e também, indiretamente, que se conheça as formas de viver das terras além. O contador de histórias é apresentado neste ensaio como um artesão, que marca suas narrativas com o gesto subjetivo da própria experiência – um ourives das palavras. Na era da industrialização, o narrador se oporia ao automatismo, ao passo que a preocupação do filósofo é justamente em relação à “atrofia” da narrativa frente ao surgimento de modos mais objetivos de comunicação. (BENJAMIN, 2018). Em uma conferência no Brasil, o djéli griot Toumani Kouyaté (2015) mostra a importância da experiência na tradição narrativa de povos africanos, tradição que se mantém viva há centenas de séculos. Trata-se de uma irrevogável união entre corpo e palavra; entre narrar e ouvir; entre olhos e boca. Toumani Kouyaté diz que há quatro tipos de sábio, e que o djéli griot17, ou seja, o narrador, é alguém que sabe que não sabe, portanto, é um pesquisador. O djéli e o griot africanos18 são figuras que possuem a sabedoria e tentam transmiti-la por meio da palavra. Sabem da própria limitação:

Por isso se diz que há quatro tipos de sábios: aquele que sabe e sabe que sabe; é um sábio com o qual podemos contar. Há o que sabe, mas que não sabe que sabe; é um dorminhoco e precisa ser acordado. Há aquele que não sabe e sabe que não sabe; é um pesquisador e devemos segui-lo. E há o que não sabe e não sabe que não sabe; ele é um perigo público que devemos evitar. No entanto, infelizmente, os pesquisadores que se encaixam no último exemplo existem em maior número no planeta. (KOUYATÉ, 2015, p. 24)

17 Djéli, no império Mandinga, é o detentor da palavra, que compreende filosofia, psicologia, história, ciência, geografia, práticas de guerra, em suma, o conhecimento da sua comunidade. Sua palavra é a mais importante dentro da sociedade, acima de reis ou governantes. Griot é o artista que conta as histórias, aprendidas com o djéli. Toumani Kouyaté (2015) conta que a palavra griot veio do pesquisador francês Alexis de Saint-Lô, que juntou as palavras “djéli”, “gerwal” e “criado” do português, já que havia constatado que a função de narrar do griot eram as mesmas dos criados em Portugal, que tinham a obrigação de divertir o rei por meio de histórias e música. É evidente como destoam a ideia de artista para a sociedade europeia e para a sociedade africana, a primeira colocando essas atribuições na figura do criado e sua servidão e a segunda no indivíduo que aprenderia diretamente com o detentor da palavra. Os conceitos tratados aqui são discutidos superficialmente, pois a sociedade ocidental não consegue compreender profundamente o papel do djéli e do griot. 18 Falar de sociedade africana é uma generalização perigosa, já que a África é um continente de tradições, valores e sociedades plurais. Seria necessário um estudo profundo da filosofia africana para discutir a arte da narrativa para seus povos. Entenda-se aqui, quando se fala em povos africanos ou, como aparecerá, indígenas, apenas a distinção da perspectiva europeia fundante do pensamento ocidental.

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Esse narrador africano, para Toumani Kouyaté (2015), busca nos ouvintes as histórias que vai contar. O seu papel é contar o que escuta dos olhos dos outros, que é o que eles querem ouvir. Por isso é um pesquisador. O conteúdo do que narra está na experiência, que vem de ouvir e de narrar. Essas experiências são evidenciadas no próprio ato de narrar, em que proliferam: assim, a experiência constitui a narrativa, mas também é através da narrativa que se pode vislumbrar o brilho dessa experiência. Por isso, para o djéli griot, talvez o narrador nem conheça as histórias que conta:

Pode ser que eu conheça as histórias que vou contar a vocês, mas vocês talvez não as conheçam. Então vou ensiná-las a vocês. Porém pode ser que eu não as conheça e vocês conheçam. Então vocês que me ensinarão. Pode ser também que eu e vocês conheçamos as histórias que vou contar. E então vamos nos divertir. Ou pode ser ainda que nem eu e nem vocês conheçamos as histórias. E assim nós todos estaremos juntos na mesma escola. (KOUYATÉ, 2015, p. 26)

Os djélis griots passam por uma longa iniciação para tornarem-se quem são, rituais repletos de segredos fundamentais, a serem pagos com a vida, caso traídos. Assim sendo, há uma grande aprendizagem por trás da sua figura. A perspectiva africana vê o narrador como um pesquisador, ou seja, narrar é narrar o que se sabe e sobretudo o que não se sabe. O conhecimento se constrói na própria contação, no processo. A conceituação de Benjamin considera uma função utilitária da narrativa, ou seja, a função de dar conselhos. Contudo, essa função não é entendida como uma interferência totalitária, mas como um processo que acontece em conjunto entre quem narra e quem ouve. Desse modo, se constitui como uma atividade aberta, que acontece de modo orgânico, vivo, sendo transmitido. Traços da experiência transmissível pela oralidade compõe as narrativas de Lygia Bojunga. Por exemplo, em Fazendo Ana Paz, o Pai inventava “um monte de histórias pra ir respondendo às perguntas da Ana Paz. Cada história que o Pai inventava era uma história de propósito pra ir passando pr’Ana Paz tudo que é valor que ele considerava importante.” (BOJUNGA, 2007a, p. 52). Os ensinamentos são simbolizados pela imagem da “carranca”, figura tradicional nas embarcações da população ribeirinha do Rio São Francisco, que o Pai traz de presente pra menina – aludindo à figura do marinheiro experiente. O Pai utiliza a carranca, que segundo a crença protege o barco dos maus espíritos do rio, para explicar, simbolicamente, outros maus espíritos que assolavam o Brasil e não deixavam o país ser “uma terra de fartura para tudo que é brasileiro.” (BOJUNGA, 2007a, p. 52). Há de se ressaltar que nesta narrativa os ensinamentos estão longe, delegados ao esquecimento. Antes da morte, o Pai

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faz Ana Paz prometer que não esqueceria da carranca – o que acaba acontecendo quando ela se apaixona pelo Antônio. Um dos objetivos que se traça ao longo da história, juntamente com a busca pelo passado, é a recuperação memorial da imagem da carranca. A história da Velha contadora de histórias, de Corda Bamba, apresentada previamente, é outra exemplificação da tradição oral de transmissibilidade. A Velha, uma espécie de Sahrazad, sabia a história de tudo e de todos. E o tanto que tinha de história, tinha de fome. Por isso, quando a avó oferece como pagamento tudo o que a Velha possa comer, é o que faz: come até morrer. A fala desesperada de Maria diante da Velha morta, ilustra o cenário: “A comida nunca deu pra ela. [...] Mas aqui tinha demais, morreu.” (NUNES, 1985, p. 104). Os dois casos, do Pai e da Velha, situam o ofício da contação no desfalecimento da sua possibilidade, assombrados pelo monstro do contemporâneo. Benjamin afirma que a função de transmitir histórias e conselhos se apresentaria em decadência devido à queda de experiências comunicáveis: a impossibilidade de narrar o que se viveu sobretudo no mundo da ascensão burguesa. O conselho é dado no curso do fio da história, e a partir do momento em que o homem não consegue contar sua experiência, o conselheiro nele se cala. Esse conselho é a sabedoria. Gagnebin (2012) aponta três principais mudanças na estrutura social que se tornaram condições impedientes para a transmissão da experiência. A primeira delas é que não há comunhão entre a experiência de quem narra e de quem ouve. As alterações do mundo moderno e da tecnologia criaram abismos entre os sujeitos que não mais partilham de semelhanças que aproximam suas experiências. Isso atinge sobretudo no âmbito das gerações. As mudanças sociais são rápidas e drásticas: “A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu.” (GAGNEBIN, 2012, p. 10). A segunda mudança se refere ao caráter narrável da palavra, possíveis em condições de trabalho centradas no artesanato:

O artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal inscreve-se em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. (GAGNEBIN, 2012, p. 10)

Nas indústrias, o trabalho veloz e as etapas isoladas de fabricação não permitem que o sujeito tenha sequer tempo para conhecer com integridade o processo em que está inserido,

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sendo apenas mais uma peça da engrenagem automática e desumanizadora. Assim, não há tempo para narrar ou transmitir um ensinamento. No trabalho artesanal, há o contato orgânico do artesão com a matéria que trabalha. Assim, ele trata com cuidado essa matéria, tomando não só o tempo necessário para que ela se transforme numa peça, como aperfeiçoando a técnica. Esse mesmo cuidado é o cuidado do narrador com a palavra, já que a atividade narrativa “também é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra.” (GAGNEBIN, 2012). Por fim, a terceira condição que oprimiu a transmissibilidade da experiência é que, se “a memória e a tradição comuns já não existem”, não há comunicação de um saber. A transmissão da experiência guarda um conselho a ser ensinado. “Ora, diz Benjamin, o conselho não consiste em intervir do exterior na vida de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas em ‘fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada’” (GAGNEBIN, 2012, p. 11). Assim tanto o narrador como o ouvinte se inserem “dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua, que está aberta a novas propostas e ao fazer junto.” Isso não tem mais sentido no mundo moderno, devido ao isolamento dos indivíduos, e não há transmissão possível de sabedoria, já que não há uma experiência de mundo semelhante que os aproxime. A decadência da experiência, conforme o ensaio “O contador de histórias”, tem como consequência a extinção da narração. A arte de narrar estaria a caminho da extinção, em decorrência da subtração de experiências dos indivíduos, que, sem vivências as quais podem contar, silenciam ante o espaço da narração e contemplam a dificuldade de trocar experiências. Após a primeira guerra, houve uma queda das experiências comunicáveis, diante das transformações do mundo, e a fome, a inflação, as trincheiras, em suma, os acontecimentos mais desmoralizantes do ser humano contribuíram para a distorção das experiências e o silenciamento do indivíduo, que só poderia contemplar sua ínfima existência em um mundo em transformação. (BENJAMIN, 2018b). Embora Benjamin assuma um ar nostálgico quanto à perda da experiência, ele também reconhece a necessidade de se assumir essa perda. É o que faz, por exemplo, em “Experiência e pobreza”, que afirma ser honroso que os indivíduos reconheçam a pobreza da experiência: “Temos de admiti-lo: essa pobreza de experiência não se manifesta apenas no plano privado, mas no de toda a humanidade.” (BENJAMIN, 2018a, p. 86). Trata-se de um questionamento do valor da produção cultural, pós-capitalista, quando não há experiência que vincule essa produção às pessoas.

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A contemplação objetiva do mundo antecedente ao século XX, representada pelo romance, consistiria numa tentativa frustrada de recuperar a experiência. (GAGNEBIN, 2012) Essa contemplação burguesa pensava compreender o mundo na sua totalidade, justamente por se considerar o modelo universal. Mas é abalada pela fragmentação do ser humano e da sociedade ocasionada pelos eventos que advieram no novo século. Então as grandes histórias – os grandes romances –, que, a pretexto de se eximir de qualquer julgamento subjetivo, pensavam apreender o mundo sob um prisma de objetividade, não faziam mais do que pintar uma sociedade fincada na própria consciência ocidental das classes privilegiadas e na individualidade de um mundo que não possibilitava experiências.19 As pinturas de James Ensor, que, por meio de máscaras e figuras esqueléticas, criticava a hipocrisia da sociedade do século XIX, mostra pontualmente a eclosão burguesa na arte, no contexto conturbado de que fala Benjamin. Para ilustrar, utiliza-se o quadro Squelette arrêtant masques (figura 11), que apresenta um grupo de carnavalescos sendo abordados por um esqueleto. As máscaras do grupo, que os unem em uma comemoração comum, escondem uma assertiva: a de que são indivíduos solitários e que não há experiência na arte que promovem. Não há identificação que não seja através de uma máscara, de uma manipulação da decadência de coletividade. E o esqueleto, uma representação da pobreza de experiências reais, abraça um dos indivíduos, enquanto os demais assistem o inevitável destino por vir, o de que serão arrastados também. “Esses quadros são talvez, acima de tudo, um reflexo do terrível e caótico renascimento em que tantos depositaram suas esperanças.” (BENJAMIN, 2018a, p. 86). Se apegar a uma concepção fadada ao abismo era um movimento para tentar manter viva uma tradição que não tinha espaço no contexto moderno.

19 Faço uma breve abertura para incursionar pelo Romantismo brasileiro no início do século XIX. Antes do seu início, a maior circulação de textos literários consistiam em os romances exportados pela Europa. A produção brasileira era limitada e rasa, não passando de uma tentativa de repetição dos modelos literários europeus. (BOSI, 2001). Com o advento do Romantismo, logo após a independência do Brasil, a perspectiva ficcional voltou-se para um ideal nacionalista, fosse por meio da representação das paisagens naturais ou da figura do herói – o índio. O considerado primeiro romance brasileiro, O Filho do Pescador, de Teixeira e Souza (1812-1861), publicado em 1844, traz a preocupação do artista romântico em representar as “verdadeiras cores” da paisagem. A intenção se estendia para o sujeito, era preciso pensar em uma caracterização do ser humano ideal que, mesmo em suas turbulências e falhas, seria no final rendido por intervenção divina ou sentimental. Isso atingia especialmente a figura da mulher, por vezes representada como cruel ou arrogante, mas que, ao final do romance, passava por uma redenção amorosa ou religiosa – lançando-se aos moldes das instituições família e igreja. José de Alencar, a partir de 1857, com a publicação de O Guarani, insere no campo artístico a figura do índio, para criar uma identidade nacional. Contudo, esse índio, deturpado pela figura do europeu, era apenas uma nova embalagem para costumeiros valores do homem branco ocidental que vieram exportados nas caravelas em 1500. O escravocrata Alencar não pensou numa identidade nacional, e sim ignorou as minúcias culturais dos povos que formavam o Brasil – os negros africanos e as diferentes comunidades indígenas – e ajudou na manutenção do modelo europeu colonialista.

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Figura 11 - Squelette arrêtant masques (1891), por Ensor.

Fonte: JAMES ENSOR, AN ONLINE MUSEUM. Disponível em: Acesso em: 29 jan. 2020.

Dessa pobreza, necessária de ser confessada, surge um conceito novo para barbárie:

Barbárie? De fato, assim é. Dizemo-lo para introduzir um novo conceito, positivo, de barbárie. Senão vejamos aonde essa nova pobreza leva o bárbaro. Leva-o a começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber viver com pouco, a construir algo com esse pouco, sem olhar nem à esquerda nem à direita. Entre os grandes criadores sempre existiram os implacáveis, que começaram por fazer tábua rasa. (BENJAMIN, 2018a, p. 87)

A dor de reconhecer a decadência da experiência dá espaço a instigantes contribuições ao pensamento estético. Renunciar às construções narrativas da tradição, dos mestres, e limpar a mesa, abrindo espaço para que surjam novos modos de criar arte. Benjamin viu esse gesto nas vanguardas, com o Cubismo e a Bauhaus, no cinema, com os filmes de Chaplin, nos romancistas do século XX, com Kafka, Proust e Scheerbart, na arquitetura, com Adolf Loos e Le Corbusier. Tais movimentos estéticos têm como ponto comum “a busca de uma nova “objetividade” (Sachlichkeit), em oposição ao sentimentalismo burguês que desejaria preservar a aparência de uma intimidade intersubjetiva.” (GAGNEBIN, 2012, p. 12). Desse modo, a arte não se apreendia mais numa representação do real, mas numa reestruturação do real a partir de novas técnicas:

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Essas tendências “progressistas” da arte moderna, que reconstroem um universo incerto a partir de uma tradição esfacelada, são, em sua dimensão mais profunda, mais fiéis ao legado da grande tradição narrativa do que as tentativas previamente condenadas de recriar o calor de uma experiência coletiva (Erfahrung) a partir das experiências vividas isoladas (Erlebnis). (GAGNEBIN, 2012, p. 12)

O que evidencia-se é o apego burguês a uma falsa objetividade do romance, que tem uma dupla face: por um lado, perde a transmissão de uma experiência coletiva, já que não há mais condições para essa transmissibilidade devido ao recalcamento promovido pelo sistema econômico vigente; por outro, a figura do herói tenta representar a todos, e o romance termina por não compreender a individualidade e a pluralidade das sociedades. No fluxo ocidental, a narrativa declina em função do romance burguês, que, por sua vez, vai observar, atônito, o fim da sua estrutura com o nascer do século XX, quando o olhar volta-se para a subjetividade sempre incapaz – incapaz de narrar uma totalidade, incapaz de criar modelos duradouros, incapaz de se manter numa tradição que desfalece no novo paradigma. Ao mesmo tempo, a Europa começa a abrir os olhos para os outros povos e suas especificidades. O pesquisador Carl Einstein (1885-1940), por exemplo, lança em 1915 sua obra Negerplastik, a Escultura Negra, mostrando que os artistas africanos já haviam há muito problematizado questões de profundidade, de movimento, de superfície, de representação, que então ocupavam as pesquisas da arte europeia. É nesse panorama, em que reinam a incapacidade de narrar uma experiência e a fragmentação das concepções renascentistas, que a ideia de abertura aparece na filosofia de Benjamin como movimento necessário para a sobrevivência da narrativa. Na narrativa tradicional, a abertura seria constituída pela plenitude do sentido, identificado na figura de Sahrazad; a transmissibilidade infinita da memória “notadamente popular”. Agora “a profusão de sentido, ou, antes, dos sentidos, vem ao contrário, de seu não acabamento essencial.” (GAGNEBIN, 2012, p. 12). A abertura se apresenta no fragmento, na ruína, no rastro, elementos estes que se inserem nos movimentos artísticos a partir do século XX. Benjamin vê em Proust e em Kafka alternativas do inacabamento no romance contemporâneo. Em Proust, por ele não buscar escrever memórias (como apontado no primeiro capítulo deste trabalho) de uma vida burguesa insossa, mas encontrar semelhanças entre o passado e o presente.

A experiência vivida de Proust (Erlebnis), particular e privada, já não tem nada a ver com a grande experiência coletiva (Erfahrung) que fundava a narrativa antiga. Mas o caráter desesperadamente único da Erlebnis transforma-se dialeticamente em uma busca universal: o aprofundamento abissal na lembrança despoja-o de seu caráter

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contingente e limitado que, em primeiro momento, tornara-o possível. (GAGNEBIN, 2012, p. 15)

A semelhança que o romance de Proust busca transforma o passado e o presente: o passado, na medida em que se modifica e não desaparece no esquecimento; o presente, na medida em que se constitui como realização do passado. O estudo de Proust – aliás, elucidativo para o conceito de atualidade de Benjamin – mostra “a presença do passado no presente e o presente que já está lá, prefigurado no passado” (GAGNEBIN, 2012, p. 15). Em Kafka, por sua vez, encontra-se outro aspecto importante para a teoria de Benjamin, o esquecimento. Kafka recuperou um dos dois elementos da narrativa clássica: a transmissibilidade. Seus textos narram histórias que se mantêm abertas, inacabadas, vivas. Em contrapartida, o preço pago pela recuperação da transmissibilidade seria o sacrifício do outro elemento, a experiência: “a ‘consistência’ da verdade foi submergida por sua transmissão: arrastada por seu próprio movimento, a tradição torna-se autônoma em relação ao sentido inicial no qual, originalmente, tinha suas raízes.” (GAGNEBIN, 2012, p. 17). Os textos de Kafka ecoam uma nova voz eterna, que vem de longe, mas que, diante do declínio da experiência, não diz nada. O grande significado de Kafka seria esse: não há uma experiência a ser transmitida, um sentido único, apenas fragmentos de histórias e sonhos. (GAGNEBIN, 2012). Há um conto de Kafka ilustrativo de tal ideia: “A preocupação do pai de família”. Esta breve narrativa apresenta a personagem Odradek. O que ambienta o conto é a indefinição de quem/do que seria Odradek. A empreitada inicial pela qual o narrador investe para desvendar esse enigma é estudo etimológico da palavra: talvez seja originária do eslavo, talvez do alemão; sem resposta definitiva. A impossibilidade de análise linguística mostra que não há significado para a palavra. Não obstante, é evidente que o estudo só é possível porque há um ser chamado Odradek. A descrição que se faz da figura é a seguinte:

À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor os mais diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta, de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas. (KAFKA, 1994, p. 41)

A aparência poderia indicar que o objeto já fora útil um dia e agora está quebrado, no entanto, não se veem marcas de emendas ou rupturas: “o todo na verdade se apresenta sem

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sentido, mas completo à sua maneira.” (KAFKA, 1994, p. 42). Odradek é móvel e incapturável. Vagueia por diversos espaços, mas nunca se detém; não possui moradia ou tempo certo. As respostas às perguntas que lhe fazem são enigmáticas e insuficientes, não indicando quem é ou onde vive: “diz e ri; mas é um riso como só se pode emitir sem pulmões. Soa talvez como o farfalhar de folhas caídas. Em geral com isso a conversa termina. Aliás mesmo essas respostas nem sempre podem ser obtidas.” (KAFKA, 1994, p. 42). O narrador termina o conto se perguntando qual seria o destino da personagem: não é provável que seja a morte, essa pressupõe a existência de uma vida experienciada com sentido, o que não é o caso de Odradek; talvez, então, sobreviva às gerações de sua família: “Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa.” (KAFKA, 1994, p. 42). Benjamin (2012b, p. 172) afirma que “Odradek é o aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento. Elas são desfiguradas.” É desfigurado como os demais personagens de Kafka; “o bicho abjeto”, o “Gregor Samsa” de A metamorfose, “o grande animal meio carneiro e meio gato” do conto “Um cruzamento”. Embora a personagem se encontre em diversos espaços, nas escadas, no sótão, nas casas, tem “domicílio incerto”, portanto não é possível definir seu lugar, está em todos os lugares e deles escapa. Também seu tempo é inapreensível: qual a origem? qual o futuro? E, apesar de ter uma caracterização palpável, sua concepção é incerta: o que é Odradek? A indefinição, no entanto, deixa transparecer, ainda que anuviada, outra personagem, o pai de família que intitula o conto. As condições de existência da personagem são definidas, tem casa, filhos, é intelectual, como indica seus conhecimentos em linguística. Isso o distancia de Odradek. Suas preocupações, de qualquer modo, não se assemelham aos anseios de outros protagonistas kafkanianos, como Josef K., de O Processo, ou o agrimensor K., de O Castelo, personagens sugados pelo absurdo que os condiciona. Quem se aproxima deles é Odradek (o k no final de seu nome poderia ser o sobrenome dos outros?). Prevalece nas preocupações do pai de família a angústia sobre a figura de Odradek; o riso seco ironiza o narrador, enquanto este teme que o esquecimento que o outro representa sobreviva sobre as gerações de sua família. Odradek concentra o esvaziamento de experiência e a transmissibilidade desse vazio. Sua figura é composta por um monte de fios, ou melhor, pedaços de fios rebentados. Ele é uma ruína eterna, um rastro constituído por fragmentos de histórias esquecidas, que formam uma grande narrativa: o duplo vazio de Sahrazad, ele próprio, imagem perpétua. Que semelhanças a desagregação de Odradek estabelece com o corpus literário sobre o qual se baseia este trabalho? As narrativas de Lygia Bojunga acontecem no âmbito do

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esquecimento. Fazendo Ana Paz, por exemplo, é a desfiguração da estrutura narrativa. Mais que isto: a fragmentação da história aponta para a pobreza de experiências. Com efeito, a narrativa apresenta características tanto de Proust como de Kafka. Por um lado, a empreitada da narradora e da personagem é la recherche du temps perdu – a busca do tempo perdido que torna a memória cada vez mais anuviada, ao passo que, por isso, a mantém viva no presente. Movimento que, como observou Benjamin, ocorre pelo encontro de semelhanças entre os períodos. E não é esse o mote da narrativa de Fazendo Ana Paz? A narradora encontra rastros da própria memória, que são inscritos no texto do presente, diga-se de passagem, ficcional. Movimento que se espessa em camadas. A velha está em busca da sua memória, que a faz viajar à casa da infância, apenas para encontrar ruínas. Os restos esquecidos, porém, ajudam a lembrar dos ensinamentos do pai e da promessa de que não os esqueceria. Por outro lado, a narrativa quebra a quarta parede ao coincidir os rastros com aspectos biográficos da própria escritora – a personagem e a artista do corpus deste estudo.20 Por outro lado, o que impulsiona a narrativa de Fazendo Ana Paz a prosseguir são as ausências, os vazios, os silêncios. Insuficiente enquanto história, os fragmentos servem para que o esquecimento continue a ser transmitido. A busca para ter o que contar leva à desfiguração do enredo, das personagens, do tempo. São pedaços de histórias que, do mesmo modo que as partículas de fios rebentados de Odradek, formam “um todo, completo à sua maneira”. O riso esvaziado e irônico da personagem de Kafka figura nas páginas de Fazendo Ana Paz: em um momento de impasses da escrita, no qual a narradora não consegue criar a história do Pai, adiada cada vez mais:

Parei de escrever. Passei algum tempo sem nenhum contato com a Ana Paz. Mas depois eu encontrei ela de novo. Num sonho que eu sonhei. Ela era a Ana Paz- criança: ouvi a risada dela atrás de mim. Mas quando me virei a luz apagou. Fiquei no escuro esperando. – Ana Paz?... Por que que você apagou a luz?... Eu sei que você taí, Ana Paz. Acende a luz, sim?... Ô, Ana Paz, quer acender a luz? – Só se você faz meu pai. – Eu não posso fazer o teu pai no escuro. – Pode, sim: eu já vi você escrever no escuro. – Uma anotação, uns rabiscos. Mas não um pai: acende essa luz! – Primeiro eu quero meu pai. (BOJUNGA, 2007a, p. 60)

20 Cilada ardilosa: o trabalho não intenta afirmar uma biografia. Contudo, as semelhanças entre os dados verificáveis e a narrativa são, não apenas evidentes, como deliberadamente explícitas. Cito, à guisa de exemplificar, a inserção de trechos de A Bolsa Amarela e os relatos das condições de sua produção, inseridos no início da história, que desencadearam a compreensão posterior da escrita de Fazendo Ana Paz. Ao contrário de afirmar uma biografia, no entanto, utilizo a assertiva apenas para potencializar a discussão entabulada de que as coincidências entre passado e presente são fundamentais para a compreensão da [Erfahrung]. Os dados verificáveis se tornam ficção, como apontado em tantos momentos da dissertação.

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O riso de Ana Paz desafia a escritora, que, no escuro, sem possibilidade de escrever, só consegue fazer “rabiscos”. Ao final da história, embora a escritora não esteja satisfeita com o resultado e destrua tudo, para Ana Paz aqueles restos inacabados são o que basta: “Por que que você não pode me contar pros outros assim? desacertada, inacabada, esperando a luz que, um dia, vai se acender (ou não) em tudo que é pedaço que tenho de escuridão?” (BOJUNGA, 2007a, pp. 86-87). A narrativa aceita a sua condição de insuficiência, de pobreza, para possibilitar a própria sobrevivência antes que seja completamente destruída. Retoma-se a metáfora do anacoluto. A figura de sintaxe se constitui pela quebra da oração para que ela possa continuar. O resultado disso é o abandono do sintagma inicial da frase, que fica perdido, embora se mantenha na oração – do contrário, não constituiria um anacoluto. Não é possível que volte atrás e apague-o, ele já foi dito. Ainda assim, não diz mais nada, somente serve para que a fala possa seguir seu curso e seja continuada, indicando meras semelhanças entre o novo período e aquele início descartado. A projeção dessa conceituação sobre a literatura, anacoluto narrativo, dialoga com a memória como imagem e com a escrita como rastro, ambos convergindo para o esquecimento.

2.1 FANTASMA “O fantasma é um exibicionista póstumo.” (QUINTANA, 1977, p. 02)

A escritora-narradora da história de Fazendo Ana Paz se prepara para escrever a narrativa junto à menina: “E fiz mais espaço na minha mesa, e fiz ponta em tudo que é lápis. Fiz café pra ir tomando. Fiz tudo isso só pensando no caminho que a gente ia fazer junto, eu e a Ana Paz.” (BOJUNGA, 2007a, p. 17). Ela aguarda que a menina apareça e lhe conte sua história. Mas não demora para que o lápis comece a travar, “esbarrando numa pergunta atrás da outra”. A tarefa não é tão fácil quanto ela imagina, pois ela não estava preparada para a complexidade da vida da personagem. Com dificuldade, uma linha narrativa, ainda que tênue começa a aparecer – afinal, os três momentos da vida de Ana Paz são palpáveis e constroem rascunhos de personagens, tempo e espaço, além de apresentar um conflito (a luta sindical do pai de Ana Paz, que teve por consequência seu assassinato e a mudança de vida da personagem) –, mas essa linha se encaminha aos poucos para o plano de fundo, dando abertura para que outro conflito surja, o conflito que atinge a escritora: como narrar a história de Ana Paz? Como narrar uma história de memória, que não pertence a si, e que permanece em obscuridade?

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O jogo proposto pela escritora-personagem é abrir uma pequena fenda na ficção da história que compõe, a fim de permitir o vazamento de imagens da própria memória. Ela não descreve as lembranças, como um relato biográfico, mas transforma as imagens em rastros misturados na ficção. O ápice desse movimento se dá quando, diante da impossibilidade de escrever a história, ela resolve construir a casa da infância de Ana Paz, “lembrando tijolo por tijolo a Casa onde a Velha ia ter nascido.” (BOJUNGA, 2007a, p. 36). Para isso, a narradora emprega pedaços de lugares pelos quais passou em sua vida:

Eu fiz ela toda de sobras. Uma sobra da casa do meu avô, outra da casa da minha tia, outra do apartamento da minha professora de inglês, que repartia a nossa hora de aula na metade antes do chá e na metade depois do chá. De cada morada eu tirava um pedaço, pra ir levantando a casa onde as minhas três mulheres iam se encontrar. (BOJUNGA, 2007a, p. 35)

A escritora-personagem é invadida por imagens que reconhece, mas que perdem o caminho da sua origem, tornando-se potência de escrita. É a rememoração caótica, em “vórtice” (AGAMBEN, 2018), conforme as considerações do primeiro capítulo, que permite a elaboração do texto. Ao perder-se na viagem memorial, os pedaços das moradas deixam de pertencer àquelas moradas e passam a constituir as paredes de uma nova casa, a casa inventada. Mesmo que a escritora recolha de sua memória o fio narrativo, ele rebenta e despedaça em inúmeras frações que fogem do referente inicial. Se não contasse de onde tirou, o leitor apenas leria a casa da velha Ana Paz. E tampouco convém a indicação de onde são tirados esses pedaços; importa o rastro que as imagens ardentes21 deixam, como traços visuais seguidos pela linguagem. Tendo em vista tais considerações, faz-se necessário investigar a imagem enquanto um vestígio do referente, que concomitantemente o abandona e o evoca: algo como um fantasma. A partir das considerações de Walter Benjamin sobre as semelhanças anacrônicas que culminam na atualidade e de Agamben sobre a rememoração caótica através do movimento espiral, este subcapítulo investiga a imagem como receptáculo da memória.

21 O termo de Didi-Huberman é utilizado pela pesquisadora Silvana Gili, da Universidade Federal de Santa Catarina, na dissertação “Livros ilustrados: textos e imagens” (2014), para analisar a relação entre imagem e narrativa no livro ilustrado Os Invisíveis, de Tino Freitas e Renato Moriconi. No capítulo “Ilustrações ardentes”, Gili (2014) estabelece a relação essencial entre imagem e palavra que se faz presente no objeto de estudo: o texto literário faz uso das duas formas de linguagem, contraditórias no ato da contação, para construir a crítica necessária aos temas sociais abordados. Ela assume a posição de Didi-Huberman, e comenta as imagens enquanto impressão visual do corpo sensível, que “não devem ser consideradas como retrato fiel do mundo, nem tampouco como ilusão enganosa.” (GILI, 2014, p. 75). Nesse sentido, as imagens ardem enquanto cortes anacrônicos no mundo.

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A epígrafe citada consiste em um poema de Mário Quintana, intitulado “Incorrigível”, presente no livro Caderno H, publicado pela primeira vez em 1973. Por meio do breve verso, Quintana desenvolve um conceito sobre o que é o fantasma: “O fantasma é um exibicionista póstumo.” (QUINTANA, 1977, p. 02). Um exibicionista é, evidentemente, alguém que ostenta alguma coisa ou a si mesmo. Supõe-se, para isso, um corpo sensível, que aja e pense, que tenha o desejo de permanecer a partir de uma mostragem. No entanto, Quintana reverte essa necessidade corpórea ao adjetivar o exibicionista como “póstumo”, ou seja, adjetivo relacionado ao que existe após a morte do corpo. O fantasma é um resquício de um corpo sensível que insiste em se exibir, em aparecer, ainda que o corpo não esteja presente. O fantasma é a imagem. Quintana utiliza esse conceito para pensar o próprio fazer criativo e os eventos poéticos por meio dessa ideia. Se o fantasma é a permanência do corpo mesmo na sua ausência, a poesia, a literatura, a arte são meios pelos quais esse efeito se mostra; em que é possível presenciar o duplo caráter da representação – a permanência e a ausência do objeto. Agamben (2007), na terceira parte do livro Estâncias, intitulada “A palavra e o fantasma: A teoria do fantasma na poesia de amor do século XIII”, desenvolve uma reflexão quanto à ideia do fantasma. Ele evoca uma teoria da sensação, que se assemelha com a psicologia e fisiologia da Idade Média, na qual os “objetos sensíveis imprimem nos sentidos a sua forma, e esta impressão sensível, ou imagem, ou fantasma [...] é posteriormente recebida pela fantasia [...] que a conserva, mesmo na ausência do objeto que a produziu” (AGAMBEN, 2007, p. 130). Ao elaborar essa reflexão, Agamben sugere os dois conceitos identificados no pensamento do poeta brasileiro: a necessidade de um corpo (o objeto sensível que imprime sua forma nas sensações humanas) e a posterioridade (a imagem póstuma que se mantém mesmo na ausência). Além disso, ele insere o campo da imaginação e da fantasia, que atuam na transformação das sensações apreendidas dos objetos sensíveis em imagens. Recuperando autores clássicos, Agamben (2007) investe em uma reflexão sobre a fantasmagoria dos objetos sensíveis que se inscrevem através dos sentidos. Platão, por exemplo, definia o artista de tais inscrições como “fantasia” e os ícones inscritos como fantasmas. O que Platão pretendia discutir, porém, era a relação entre desejo, prazer e as inscrições na alma, negando um desejo que seja inteiramente corpóreo, mas sim estabelecendo o vínculo entre o corpo que recebe as sensações e a imagem, impressa na alma pela fantasia. Desse modo, “o fantasma situa-se [...] sob o signo do desejo” (AGAMBEN, 2007, p. 134). Esta dissertação refletiu a ideia no primeiro capítulo, ao considerar as imagens da casa rememorada enquanto rastro recuperado no âmbito do erotismo, identificado na ludicidade afetiva que a criança

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estabelece com o espaço (BOJUNGA, 2007a) ou nas intermitências – a varanda como abertura para o profano (BENJAMIN, 2017a). As reflexões sobre a impressão de imagens se encontram também em Aristóteles. Ele considerava que os objetos se imprimiam no ar, para depois serem captados pelo olho, refletidos como em um espelho. A partir desse movimento, a impressão se transmite para a fantasia que pode ou não desenvolver o fantasma, independente da ausência do objeto sensível. Ou seja, Aristóteles diferencia sensação de fantasma, já que estes são produzidos pela imaginação mesmo quando as sensações estão ausentes – embora seu pensamento abra outra possibilidade a partir do estudo da persistência dos fantasmas nos animais, que os impulsionam instintivamente. Mesmo quando o objeto sensível está ausente, o fantasma produz tal sensação no corpo do animal, que é levado a agir em decorrência da representação da sensação, ou seja, do fantasma. Agamben (2007, p. 137) desenvolve um esquema sumarizando o pensamento de Aristóteles: a imagem ou fantasma é resultado da inscrição que a fantasia (o “artista” da inscrição) faz na alma, a partir dos objetos sensíveis com que o indivíduo tem contato por meio dos sentidos (por exemplo, a visão); o fantasma por sua vez age sobre a memória, o conhecimento, os sonhos e a linguagem. A partir desse esquema, entende-se que a memória está estreitamente ligada à imaginação, tratando-se da retenção dos fantasmas enquanto ícones ou representações dos objetos sensíveis. Isso já estava explicitado no conceito inicial de fantasma desenvolvido pelo autor, uma vez que ele apresenta o fantasma como um ser de posterioridade, que existe na ausência. Contudo, a impressão concebida a partir do objeto sensível constitui em apenas uma face do objeto. Ou seja, se o fantasma é uma impressão do corpo em questão, gerada pela imaginação, tal objeto aparece moldado por uma perspectiva, a do sujeito que teve contato com aquele objeto. O fantasma é estático – ao menos se comparado ao dinamismo do objeto. Desse modo, se a memória é constituída por fantasmas, ela é constituída por perspectivas, por fragmentos, que não evocam o objeto sensível em sua totalidade, mas a partir de recortes. Ela se mantém através dos fantasmas, consistindo-se mais como esquecimento do que como lembrança, pois se atém a determinados aspectos em detrimento de outros. O trabalho tem mostrado como os fantasmas tem papel fundamental na literatura de Lygia Bojunga. A imagem da casa, por exemplo, aparece como representação da anacronia em que sua escrita está envolta. O excerto citado no início deste subcapítulo mostra o fantasma das diferentes casas restadas na memória, que a narradora recolhe, convergindo-as para uma casa narrada no presente. Essa imagem dialoga com outros textos, como Livro – um encontro, em

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que a casa feita de livros é profecia da relação afetiva da artista com sua arte, e A casa da madrinha, em que a morada torna-se templo da imaginação. Não obstante, identifica-se outra imagem recorrente nos seus textos que se faz analisar a seguir: a mão. O Rio e Eu (1999), sob a mesma matiz memorial de outros títulos citados, narra o amor de uma artista pela cidade do Rio de Janeiro. Quando morava no Rio Grande do Sul na infância, a menina recebe a visita da “pitoresca” Maria da Anunciação, uma passadeira que foi ao estado gaúcho para reencontrar o grande amor. Devido aos desencontros, ela trabalha passando as peças de roupas nas casas da vizinhança. Ao avistá-la pela primeira vez, a narradora sente fascínio repentino pela mulher: “Foi meu olho bater nela e eu senti uma atração.” (BOJUNGA, 2010, p. 11). Enquanto trabalhava, Maria da Anunciação narrava histórias da Cidade Maravilhosa, coisas tão incríveis e inacreditáveis, que a menina guardava dentro de si com encanto e incerteza. As narrativas eram tão mágicas, tão impossíveis, que a menina não tinha coragem de perguntar se era real, com “medo de ser verdade que o Rio era de mentira”. (BOJUNGA, 2010, p. 24). Mais do que as histórias, no entanto, uma parte do corpo em particular atraía os olhos da pequena: a mão de Maria da Anunciação, enquanto trabalhava a roupa: “A mão dela me fascinava, que grande e forte que era! Feito coisa que já tinha nascido sabendo de tudo que é ferro que ia empunhar.” (BOJUNGA, 2010, pp. 14-15). A mão de Maria da Anunciação parecia se mesclar ao ferro de passar diante dos olhos da menina, ao mesmo tempo em que era alimentada pelos relatos sobre o Rio. Em uma das ocasiões, a discussão sobre diferenças linguísticas entre Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul foi abafada pelo impacto do ofício da mulher:

Mas eu não me liguei nem no tu nem no você: estava prestando atenção na mão da Maria da Anunciação, levantando e abaixando o ferro, fazendo ele correr para frente, deslizar pra trás, ir prum lado, ir pra outro, que coisa! tão de ferro que eu sempre tinha achado um ferro, e agora aquele ali parecia um bailarino. (BOJUNGA, 2010, p. 16)

A impressão causada pela mão é tão forte que, no tempo futuro, quando já estabelecida na cidade carioca, a narradora voltaria a ela por meio da reminiscência: “Muitos anos mais tarde, um dia me perguntando quando é que tinha começado meu caso de amor com o Rio, eu fui voltando pra trás na minha vida, fui voltando, voltando, até chegar na Maria da Anunciação.” (BOJUNGA, 2010, p. 11). Do mesmo modo ela apontava para o futuro; representava a efetivação das narrativas – sobre o carnaval carioca, o Cristo Redentor que morava no morro para poder olhar a cidade, o morro em que morava Maria da Anunciação, que contrapunha a

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beleza da vista e a pobreza do local – que, naquele momento, eram pilares da imaginação da menina, “fabricando na cabeça o Rio.” (BOJUNGA, 2010, p. 24). A mão de Maria da Anunciação era a promessa de um amor que ainda não tinha acontecido, identificado anacronicamente na abertura que a imagem rememorada causa no presente. De modo profuso, a imagem da mão também aparece nas páginas de Feito à Mão (1996). A narradora conta que sempre foi alimentada pelo artesanato, desde a observação da mãe cosendo ao seu lado, até o estudo sobre artistas mambembes, que, para ela, tinha uma rusticidade do “feito à mão”. Devido às exigências da vida, o artesanato adormeceu dentro dela, quando teve que trabalhar no escritório. Uma viagem à Cidade do México, porém, foi o que bastou para que o eu-artesã despertasse. Numa das andanças, os olhos da narradora são fixados pela quantidade estupenda dos artesãos que ocupam as ruas da cidade: “Mas era do trabalho que o meu olho não queria mais sair: uma pintava; outra esculpia; outra bordava; um escrevinhador [...] ia botando no papel as cartas e os recados que ditavam pra ele.” (BOJUNGA, 2008b, p. 109). À noite, é acometida pela imagem durante o sono:

Quando, no fim, eu acabei dormindo, eu sonhei comigo, quer dizer, com um pedaço de mim: a minha mão: dedo tamborilando no tampo da mesa, feito a gente faz quando bate uma impaciência ou quando espera um pensamento se declarar. (BOJUNGA, 2008b, p. 111)

Assim como a mão de Maria da Anunciação seria o anúncio da relação com o Rio de Janeiro, as mãos dos muitos artesãos constituem traços visuais remetentes à impressão daquela também observada ao longo da vida: “Mas foi só aqui e agora que eu entendi o caráter revelador, digamos assim, que a Cidade do México teve pra mim.” (BOJUNGA, 2008b, p. 101). As aparições dos fantasmas da mão em momentos distintos inserem a imagem no curso do tempo de modo anacrônico, criando aberturas que possibilitam o diálogo entre passado, presente e futuro. Não significa a reconstrução da vida, tampouco a adivinhação do futuro; de fato, elas têm mais de perda do que de ganho, uma vez que se desfazem do referente para se tornarem rastro a ser seguido. A imagem, de repente, arde aos olhos da narradora que vagueia pelas ruas mexicanas, e provoca uma fenda no real, transformando os corpos sensíveis presentes, as mãos dos artesãos, em fantasma, simples resto imagético. Contudo, o fantasma é tão vívido que invade o real e, de súbito, faz brilhar, ainda que por um instante, o passado. As mãos dos artesãos mexicanos, de Feito à Mão, pulsam nas mãos da mãe costureira; na mão da passadeira, em O Rio e eu; nas mãos da menina que faz a casa de livros, em Livro; nas

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performances teatrais rústicas e artesanais dos teatros mambembes; e na própria mão artesanal que escreve, que aparece em sonho. Didi-Huberman (2010, p. 29), no capítulo “A inelutável cisão do ver”, que compõe O que vemos, o que nos olha, afirma que “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.”; não obstante, há uma ruptura, uma “cisão” que separa dentro de nós o que vemos do que nos olha. Desse modo, a afirmação se divide em dois lados de um paradoxo. A partir de Ulisses, de James Joyce, Didi-Huberman propõe algumas considerações sobre esse paradoxo. De um lado está a tangência do corpo: embora haja uma sugestão de corpo, a princípio essencial para a visão, o que nos olha se dá dentro, suscitando a porosidade, as cavidades, como “bocas, sexos, talvez o próprio olho”. Isso conflita em outro aspecto: é necessário “inverter ironicamente velhíssimas proposições metafísicas ou mesmo místicas, que ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar.” (DIDI-HUBERMAN, 2010, pp. 30-31). Para exemplificar, Didi-Huberman cita uma metáfora de Joyce de um obstáculo que se põe diante do indivíduo: “Se se pode passar os cinco dedos através, é uma grade, se não, uma porta” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31). Assim, o texto de Joyce ilustra que é preciso fechar os olhos para ver um vazio que nos olha e que também nos constitui. Para Didi-Huberman, esse vazio está representado em outro excerto de Ulisses. A personagem Stephen Dedalus vê os olhos da mãe, à beira da morte, se levantarem para ele, pedindo algo que ele nega. O corpo da mãe então falece, seus olhos se fecham. A partir desse momento ele consegue fixar o corpo da mãe, que agora lhe aparece no seu sonho: “tudo o que se aparenta a ver é olhado pela perda de sua mãe” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 32). A simbologia que representa a perda da mãe – a cor esverdeada das secreções, um recipiente contendo a bile ao lado de sua cama, o acesso de tosse expelindo “humores verdes” antes de cerrar os olhos – passa a modificar o jeito que ele vê o mundo, assimilando os contextos. Quando vê o mar, esse se torna “verde-muco”, um “vaso de águas amargas”. Recorre aqui a narrativa de Bojunga, integrada em Feito à Mão, da criança acostumada a ver a mãe sempre trabalhando com costura: “Quando eu ligo a memória, é muito raro ver minha mãe parada, ela está sempre às voltas com agulha, linha e lã.” (BOJUNGA, 2008b, p. 47). Não obstante a inquietação das mãos, suas palavras eram silenciosas:

E uma vez, num desses puxões, a minha memória chegou o mais longe que eu já consegui fazer ela voar: eu me vi aos quatro anos, sentada no chão, a minha mãe do lado, o costureiro também; e me escutei dizendo: - Tu ficas muito tempo sem falar. E ouvi ela respondendo: - Engano teu: eu estou falando.

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- Falando com quem? - Com os meus botões. - Eu não ouvi. - Quando a gente fala com botão, os outros não escutam. (BOJUNGA, 2008b, p. 49)

Enquanto a criança não entende o verdadeiro sentido da expressão falar com os botões, que significa conversar consigo mesma, como explica a mãe mais tarde, ela absorve o gesto silencioso do trabalho, que vai ser parte da sua imaginação. Mas nada a prepararia para a cena da mãe doente, no leito da cama: “Quando ela já estava muito doente, uma vez eu entrei no quarto dela e vi ela de olho fechado, sem se mexer (essa é uma das únicas cenas em que me lembro dela de mão parada). O susto me pregou no chão” (BOJUNGA, 2008b, p. 52) O choque da perda registra a mão parada, que se contrapunha à mão viva do ofício de costura. A morte não tinha se concretizado de fato: “lá pelas tantas ela abriu o olho, estudou minha cara, e a mão mexeu, fazendo um gesto negativo. A voz confirmou o gesto: - Ainda não, minha filha: eu só estava falando com os meus botões.” (BOJUNGA, 2008b, p. 52). Ainda assim, profeticamente a perda da mãe, na imagem da mão, dialogava com as tantas mãos que apareceriam em seu caminho e com os próprios botões com os quais travaria um diálogo. Didi-Huberman (2010, p. 33) alude que

começamos a compreender que cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de ideias, mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem –, e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue.

Neste sentido, o autor considera que há de se considerar a necessidade de fechar os olhos para ver ou ainda que se abra os olhos para “experimentar o que não vemos”, isto é, que não se vê “com toda a evidência”, mas que nos olha “como uma obra (obra visual) de perda”. (DIDI- HUBERMAN, 2010, p. 34). No leito da mãe doente, em Feito à Mão, a narradora associa o silêncio da mão parada, morta, com o ensinamento que ela aprendera da mãe: a conversa silenciosa com os botões, o diálogo que se dá no vazio da interioridade. Essa ação, conversar com os botões, é recuperada em outro excerto. Durante a adolescência, a narradora foi para o seminário. Apesar de gostar de rezar, conta que subvertia as orações decoradas para os santos, inserindo diálogos próprios em uma conversa direta e subjetiva com os interlocutores:

Tem dias que eu fico mais animada comigo, acho que tô melhorando, acho até que, uma hora dessas, eu vou ficar feito o senhor. Quer dizer, feito o senhor, não, que besteira! O senhor não só é santo, mas é um santo importantíssimo, então é claro que

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eu não vou ter a pretensão de ser igual. Mas eu queria ser parecida. Acha que vai dar? Por favor, São Francisco, me faz parecida! (BOJUNGA, 2008b, p. 91)

Contudo, após sua saída do seminário, ela deixa de rezar com frequência e vai se esquecendo como se reza. O gosto pelo seminário é substituído pelo namorado, pela juventude, pelo apego à vida que não poderia ter na Igreja. A conversa com os santos, então, é substituída pela conversa com o mar. Não obstante, num momento de percepção, anos futuros, a narradora arremata todas as imagens. O marido, ao lhe ver murmurando pergunta:

– Você tá rezando? – Já faz tempo que eu larguei. – Pois olha, não parece. – Por quê? – Essa tua atitude de prece, aí olhando pro mar. Prestei atenção em mim. – Se você não estava rezando, você estava falando sozinha. – Eu tava é falando com os meus botões. – Mas papo com botão é cochichado? – Eu tava cochichando é? – E como! (BOJUNGA, 2008b, pp. 96-97)

A narradora compreende que a conversa com os botões era uma conversa com o mar. Assim, ela entende que não falava consigo mesma, mas com o mar. E o diálogo com o mar a faz lembrar a reza da adolescência: “Mas, então... eu estava rezando pro mar?” (BOJUNGA, 2008b, p. 99). A conversa com a imagem do santo era um pedido para se tornar mais parecida com ele. O objetivo cristão: ser parecido com Deus. A iconografia religiosa é um espelho avesso, que reflete a idealização do que o indivíduo quer ser. Portanto, o que lhe escapa, uma perda. Por consequência, projeta nele as falhas, as imperfeições, a humanidade que tenta negar, mas que lhe são inerentes. A oração da menina a São Francisco era um diálogo consigo mesma, tentando refutar a própria condição ordinária, e pedir que se tornasse parecida com o santo benevolente. A imagem de Deus reside nas mídias digitais. Com o fortalecimento do espaço virtual, as imagens têm se tornado uma negação da própria imagem (HAN, 2018). A potência imagética extrapola os limites da vida: cria-se uma nova vida nas redes sociais, onde os sujeitos/atores performam no grande teatro digital. Com isso, surgem novas profissões, blogueiros e youtubers, destinados a alimentar seus seguidores com conteúdo imagético. Em meio a isso, a possibilidade de ser outro, totalmente diferente, mascarado por ícones e profile, que pode tanto ter resquícios da vida como a recusa de qualquer rastro que conecte a persona ao seu usuário. A informática respalda novas formas de interação. A imagem não se limita a registrar a

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realidade, mas estabelece um novo padrão, um novo modo de vida ficcional. O filósofo Byung- Chul Han utiliza a construção morfológica da palavra alemã [Bilder], “imagem”, para reforçar esse cenário:

Hoje, imagens [Bilder] não são apenas reproduções [Abbilder], mas também modelos [Vorbilder]. Refugiamo-nos nas imagens para sermos melhores, mais bonitos e mais vivos. Evidentemente, nos valemos não apenas da técnica, mas também de imagens para impulsionar a evolução. Seria possível que a evolução se apoiasse em uma imaginação [Ein-Bild-ung], que o imaginário fosse constitutivo para a evolução? (HAN, 2018, p. 53)

Para Han (2018), as imagens estão mais vivas e saudáveis do que o ser humano, do que o mundo, ambos decrépitos frente à vivacidade, às cores, à iluminação das imagens no meio digital, nas propagandas, na televisão. Ele cita a Síndrome de Paris, um mal-estar físico que atinge turistas, sobretudos japoneses. Ao se deparar com a chocante realidade da cidade francesa, diferente da beleza vista nas fotos e cartões postais, os turistas sofrem tonturas, taquicardias e têm o impulso de fotografar veementemente a cidade, na tentativa de reproduzir a ideia que tinham do lugar, além de apagar a realidade. O escritor acredita que a saturação do uso imagético na contemporaneidade, em que as imagens são “feitas de refém pelo real”, nos tornam “iconoclásticos”, ou seja, pelo seu uso, destruímos as imagens – não essencialmente as imagens, mas a sua “semântica e a sua poética especiais”, elas passam a ser consumíveis. As mídias digitais não têm fim marcado e suscitam o aniquilamento do passado e do futuro, do nascimento e da morte, instaurando um presente e uma presença permanentes. (HAN, 2018, p. 54). À medida em que as imagens não constituem mais em incisões na realidade, fendas pelas quais ardem anacronicamente, mas sim em violentos rasgos, seu poder de dominação atrofia as relações humanas, e um novo mundo – ficcional, mas não poético – se instaura. Um mundo assustador de domínio da imagem que aos poucos toma forma e se aglutina ao mundo sensível, esfumando os contornos que distinguem realidade e ficção. Não por acaso, o cinema de horror contemporâneo tem investido em produções que lidam essencialmente com a questão

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da imagem. É o caso de filmes como Hereditário (2018)22, Bandersnatch (2018)23 e Nós (2019). O último, sobretudo, se aprofunda nessa ideia ao narrar a visita de uma garota a uma misteriosa sala de espelhos, apenas para ver o reflexo ganhar vida. Traumatizada, ela cresce omitindo o acontecido. Quando é obrigada a voltar à região do acontecido, ela e sua família são ameaçados e perseguidos pelos seus duplos. O horror toma conta ao descobrirem que todos os moradores da cidade estão sendo atacados pelos seus reflexos, e ao público é revelado que no subsolo existe um mundo paralelo em que esses seres, duplos do mundo da superfície, imitavam as ações e eram condicionados ao mundo de cima. Cansados de serem mera imitação, rebelam-se contra a superfície, em um conflito mortal entre imagem e referente. Com o irônico título de Nós, o filme coloca em reflexão a perda de identidade em relação a representação. Mas isso não se dá por meio de esquecimento, em que a imagem se desprende deixando um rastro, como as discussões de Didi-Huberman: pelo contrário, é pelo hiper-realismo, pela onipresença. Vida e ficção perdem paulatinamente contornos que as delimitam, embora estejam cada vez mais explícitos, com a cisão entre sujeito e máquina. Contraposto a isso, retoma-se os textos de Lygia Bojunga. Fazendo Ana Paz, como já verificado anteriormente, atua no âmbito do esquecimento. A casa de Ana Paz é inteiramente de sobras, de restos. Não há uma vida potencializada, bonita, mas ruínas. Por esse motivo, quando Ana Paz-velha tenta se encontrar com o passado na casa de infância, o que vê são as marcas do tempo, do esquecimento, como se as coisas estivessem mortas:

Limo, folha seca e poeira na pedra do chão. Limo, folha seca e poeira no banco de pedra. E no chafariz também, só limo e pó. Ela ficou parada, pensando há quanto tempo não saía água da bica, há quanto tempo ninguém conversava com o pátio. (BOJUNGA, 2007a, p. 42)

22 A produção estadunidense, dirigida por Ari Aster, conta sobre a morte da matriarca de uma família e em como, aos poucos, seu passado sombrio como líder de um culto religioso demoníaco é descoberto pela sua filha e netos. A intenção da velha era preparar o corpo do neto para receber o espírito do demônio Paiman. Assim, vemos o desfalecimento da família e a morte de cada um deles que aos poucos dão vida ao culto da imagem. Esse movimento sempre permeou o campo religioso, que constituiu milênios de tradição baseada na crença em imagens ou relatos de imagens. A ficção presente em livros como a Bíblia é tomada como verdade e transpassa o mundo espiritual para o mundo real por meio das ações dos devotos e do poder atribuído à igreja. A força desse culto à imagem é mostrada no filme por um jogo interessante de fotografia: a filha da velha trabalha com reprodução de espaços em miniatura, e o expectador constantemente vê a cena do filme representada nas maquetes. Aliás, a cena inicial já estabelece esse jogo, pois vemos progressivamente a maquete se transformar no referente. 23 Esse filme inglês interativo, dirigido por David Slade, faz parte do universo televisivo online Black Mirror, e narra sobre um desenvolvedor de games que está criando um novo jogo interativo, em que o jogador pode escolher por vários caminhos, o que possibilitaria a criação de diversas narrativas. Assim como o jogo, o filme também é interativo, e quem assiste precisa tomar decisões que vão impactar no correr da história. A quebra da quarta parede discute a cada vez mais intrínseca relação entre mundo sensível e mundo imagético, colocando em cheque os limites contemporâneos entre imagem e vida.

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Conforme ela caminha pelo espaço, a casa vai aos poucos despertando, como se cada imagem ganhasse nova cor. Mas nada é como antes: faltam telhas, a hera esconde a parede, a cor do telhado mudou: “Foi só entrar que eu senti uma coisa lá dentro querendo acordar. Mas o quarto tava vazio, sem coisa nenhuma dentro.” (BOJUNGA, 2007a, p. 46). Ana Paz ganha o espaço, fazendo as imagens despertarem. Mas as coisas permanecem velhas, vazias: “Ana Paz foi pra junto da vidraça embaciada, limpou um pouco pra ver a rua acordando, mas não viu ninguém passando, nem a cara do sol ela viu.” (BOJUNGA, 2007a, pp. 43-44). A narradora utiliza esses restos como força para contar a história, uma história sobre perda, sobre vazio, sobre saudade. E é a imagem que conta: isso pode ser observado quando Ana Paz vê sua imagem refletida no espelho:

Com essa vista meio ruim que eu tenho agora eu quis ver bem de perto o que que o espelho tava me mostrando. Nossa! não era nenhuma maravilha. Mas pareceu que ele não estava se incomodando. Olhei bem, é, ele parecia contente da gente estar ali se encontrando. E aí ele fez questão de me contar tudo que ele tava achando de mim, Tintim por tintim. Demorou, é claro. Cada mancha, cada sinal, cada ruga, a minha história tá toda na minha cara, e ele quis ir me contando cada capítulo dela, sem pressa nenhuma-nenhuma, Me contou até que eu tinha um fio de cabelo preto, ué! o que que esse fio ainda anda fazendo aqui? (BOJUNGA, 2007a, pp. 44-45)

Ana Paz vê sua história contada pelo espelho. E a imagem a olha. Nesse momento, ela lembra da perda do pai, da perda da promessa, da perda da infância. Das perdas que constitui as ruínas da sua memória e das ausência de que é feita.

2.2 RASTRO

O mito grego do Minotauro narra a criatura de corpo humano e cabeça de touro que permanecia no centro do labirinto irresolúvel construído pelo arquiteto Dédalo, aguardando o sacrifício de quatorze jovens, sete moças e sete rapazes, que seriam pagos como tributo para que o rei cretense Minos se retirasse de Atenas. No terceiro tributo, o jovem Teseu se ofereceu como sacrifício, a fim de tentar livrar seu povo da sina. Enquanto aguardava, Ariadne, filha de Minos e irmã do Minotauro, se apaixona por Teseu e, no ímpeto de ajudá-lo, entrega-lhe um novelo de lã, que deveria desenrolar ao entrar no labirinto. Teseu faz o que lhe foi sugerido por Ariadne, derrota o Minotauro e encontra seu caminho de volta. Reaparecendo na modernidade, a figura do Minotauro emerge em um contexto de tribulações. No momento em que a arte escapa das amarras burguesas para as experimentações do Surrealismo; em que a Psicanálise promove estudos avançados de impulsos do inconsciente;

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em que a noção de integridade desfalece ante a posição ínfima do homem no mundo; em que a humanidade deixa escapar a selvageria que lhe constitui, traduzida em guerras e destruição. Brandão (1987, p. 160) alude à psicologia evidente contida nessa narrativa grega:

O mito relata que o rei de Creta venceu os atenienses com o auxílio de Zeus, o que expressa a justiça da causa. Após a vitória, porém, traindo sua habitual sabedoria, impôs a Atenas condições tirânicas, obrigando-a a enviar sete moços e sete moças para serem devorados pelo monstruoso Minotauro, que habitava um Labirinto subterrâneo. Raramente o alcance psicológico do sentido secreto de um mito aparece com tanta clareza através do frontispício fabuloso. Mino-tauro significa o touro de Minos. Associando ao nome o símbolo do "Touro", chega-se, através de Mino-tauro, à dominação perversa exercida por Minos.

O mito é recuperado pela Psicanálise como representação do inconsciente humano, que guardaria impulsos cruéis, o lado perverso do indivíduo: o Minotauro seria o inconsciente desconhecido, o labirinto representaria os caminhos da mente e Teseu, a consciência. (RUBIN, 1968). Além disso, novas ideias acerca do sujeito eram problematizadas pela simbologia grega. Georges Bataille investigou a intrínseca relação entre o gozo e a morte humanos, ao narrar um orgasmo coincidindo com o assassinato de um toureiro transpassado pelos chifres do touro, em História do Olho. Picasso representou os horrores da guerra civil Espanhola, por meio da relação entre a estética de desconstrução do Cubismo, a imagem bestial do touro e a destruição perversa e brutal do bombardeio em Guernica (figura 12). O escritor Ernest Hemingway correlacionou a tauromaquia com o ofício da escrita, devido ao caráter de rompimento e de experimentação da morte que está presente nas suas atividades, em Death in the Afternoon. Man Ray intitulou sua fotografia (figura 13) como “Minotaur”, subvertendo o corpo pelo uso da técnica fotográfica, contrapondo partes de luz e partes de sombra, fazendo transparecer a figura grega. Ao chamá-la de minotauro, somos obrigados a ver a figura grega monstruosa, o corpo humano se metamorfoseia na criatura, embora não haja nada mais do que um jogo de luz e sombra. No Brasil, houve ecos dessa representação. Guimarães Rosa, no conto “Conversa de bois”, do livro Sagarana, cria uma nova forma para o Minotauro, em que o diálogo dos bichos se confunde com o pensamento do homem, resultando em morte. A revista Minotaure24 publicou uma série de novas produções de arte e de pensamento, e tinha como base os conflitos do indivíduo que descobria novas camadas psicológicas, novos impulsos criadores e destruidores:

24 Minotaure foi um periódico que circulou durante os anos 1933 e 1939. Com forte influência Surrealista, foi fundada pelos editores Albert Skira e Tériade. O seu conteúdo incluía poesia, críticas de arte, estudos de psicanálise, ensaios, artigos de arquitetura, entre outros. O corpo editorial era guiado pelo poeta André Breton, um dos idealizadores do movimento surrealista. A revista publicou trabalhos de grande variedade de artistas e áreas,

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The labyrinth – the recesses of the mind – contains at its center the Minotaur, symbol of irrational impulses. Theseus, slayer of the beast, thus symbolizes the conscious mind threading its way into its unknown regions and emerging again by virtue of intelligence, that is, self-knowledge – a paradigmatic schema for the Surrealist drama, as indeed, for the process of psychoanalysis. (RUBIN, 1968, p. 127)

Figura 12 – Guernica (1937), Pablo Picasso.

Fonte: Conceitos. Disponível em: Acesso em 23 fev. 2020.

Figura 13 – Minotaur (1933), Man Ray.

Fonte: WIKIART. Acesso em: inclusive sendo plataforma para que muitos se tornassem conhecidos. Seu título teve origem na grande proliferação dos mitos gregos, sobretudo do minotauro, nos trabalhos recorrentes da época, como os de Georges Bataille, Pablo Picasso e Sigmund Freud: “Picasso had begun to develop his personal version of Greek mythology in the late twenties, and though such imagery is more collective than the esoteric and private symbolisms favored by the Surrealists, his example had a considerable influence on Surrealist painting in the late thirties, particularly that of Masson. These interests were reflected in the title, Minotaure, suggested by Georges Bataille and Masson for the de luxe art magazine that became the main Surrealist review of that period.” (RUBIN, 1968, p. 127).

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É evidente que a revisitação do mito grego concentra problemáticas que perpassam as artes visuais, a psicologia, a técnica e a literatura, sobretudo no âmbito da representação do real e dos estudos que tangem o corpo – morte, violência, destruição. Além de ser objeto, amplamente usado, o Minotauro sumariza as questões desafiadoras e aguarda no centro do labirinto do início do século XX, em que todos os caminhos levam a ele. Há uma saída da encruzilhada. O fio de Ariadne, desenrolado do exterior ao interior, é o rastro que deve ser seguido. É possível entender o labirinto como o caminho tortuoso da memória – mesmo porque os impulsos eróticos permanecem como marcas nostálgicas no indivíduo, como apontou Bataille (2017) –, e o fio de lã, que guia a consciência até a camada desconhecida do ser humano, como o ato criativo. É o desenrolar e o enrolar do fio que percorre esse caminho, seja ele entre o presente e o passado ou entre o consciente e o inconsciente; é evidente a relação com o trabalho de Penélope. Fazer e desfazer o trançado se assemelha aos exercícios criativos vanguardistas, de desconstrução e reconstrução dos objetos representados nas composições. Este trabalho tem evidenciado fortes marcas do esquecimento na obra de Lygia Bojunga. O papel dos fantasmas, isto é, das imagens, visto no subcapítulo anterior, considera uma marca de potência de memória. Essa potência, ao mesmo tempo que evoca o passado ou se direciona para o futuro, desprende-se de passado e futuro, perdendo assim o corpo sensível do qual é proveniente. O paradoxo que constitui essa relação direciona a arte para a perda de mundo apreensível. Ao pensar sobre literatura, que tem como aporte principal a palavra, é necessário deter-se a outro aspecto constituinte da narrativa, que consequentemente compreende a ideia de esquecimento: a transmissibilidade. Para isso, entende-se a escrita como rastro. O ensaio “O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”, de Jeanne Marie Gagnebin (2006), que integra o livro Lembrar escrever esquecer, reflete a conceituação de rastro enquanto transmissibilidade. Gagnebin inicia o ensaio citando a passagem da Odisseia, de Homero, em que a ama Euricleia reconhece Ulisses, que havia voltado de suas aventuras, ao tocar uma cicatriz enquanto banhava-lhe os pés. Entre o momento do toque e o reconhecimento de Ulisses, tempo brevíssimo, são inseridos 73 versos que interrompem a cena do reconhecimento, para narrar o acidente que deixou a cicatriz em Ulisses. O texto destaca três pontos do poema épico: o nome do herói, escolhido pelo seu avô materno; a caçada de javali, convite feito pelo velho, e onde Ulisses sofreu o acidente; e a ferida, embora grave, curada rapidamente pela atadura bem feita e por palavras mágicas. A partir dessas observações, Gagnebin (2006) considera dois aspectos fundamentais na obra de Homero. O primeiro é a filiação, identificada na nomeação de Ulisses, o que indica uma tradição, a continuidade das gerações, representada no poema pelo

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batismo do neto pelo avô – nesse caso, uma transmissibilidade. O segundo, evidencia a força da palavra, representada pela nomeação, pelas palavras mágicas que curam o ferimento e pela narrativa, que, não somente é transmitida no momento em que Euricleia toca a cicatriz, como é levada aos pais graças à cura do ferimento: “o jovem Ulisses volta para casa e conta suas aventuras aos pais, impacientes em saber o que aconteceu.” (GAGNEBIN, 2006, p. 109) Todos os elementos considerados – a filiação, a narrativa, as aventuras, a palavra – estão condensadas na simbologia da cicatriz. As considerações a respeito da transmissibilidade – possível em virtude da cicatriz – foram elucidadas na filosofia de Walter Benjamin, como este capítulo apontou previamente. Por consequência da atrofia da experiência, do distanciamento cada vez maior entre a comunidade e o modo de vida artesanal e da vivência isolada dos indivíduos, encaminhou-se para o declínio da narrativa. A cicatriz como metáfora da transmissibilidade opera no sentido oposto ao trauma. O trauma é a ferida aberta, que não cicatrizou, silenciando ou recalcando a narrativa – esta, somente possível após a cicatrização, como indicou Homero:

Ora, depois das duas Guerras Mundiais e, sobretudo, depois da Shoah, a temática do trauma torna-se predominante na reflexão sobre a memória. Ao que parece, as feridas dos sobreviventes continuam abertas, não podem ser curadas nem por encantações nem por narrativas. A ferida não cicatriza e o viajante, quando, por sorte, consegue voltar para algo como uma “pátria”, não encontra palavras para narrar nem ouvintes dispostos a escutá-lo. (GAGNEBIN, 2006, p. 110)

Recuperando a imagem do Minotauro, há aproximações entre sua simbologia e o trauma, a ferida exposta que não permite a narrativa – tenha-se em vista, por exemplo, o trauma da guerra, em Picasso, o trauma do corpo, em Bataille, e o trauma da escrita, em Hemingway. O única modo de sobreviver é por meio do próprio silêncio. O silêncio, nesse sentido, torna-se o fio que conduz para fora do labirinto. Sendo assim, há possibilidade de traçar relação entre o fio de Ariadne e outra metáfora da memória discutida por Gagnebin: a escrita. No início da filosofia ocidental, alguns filósofos consideravam a escrita como um rastro duradouro, capaz de ser transmitido, mais seguro do que a oralidade dos poetas gregos. A palavra que origina “signo”, sèma, primeiramente originou a palavra “túmulo”, o que associa a morte e a escrita como uma luta contra o esquecimento. Gagnebin (2006), porém, considera que, antes da escrita, há outra linguagem que pode servir como metáfora da memória: precisamente a imagem. A palavra é dominante sobre a imagem por seu caráter arbitrário e pela possibilidade de transcrever as imagens, o que foge da problemática da representação. Todavia, a escrita, como duração, deixa de ser contundente na modernidade, passando a ser apenas

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“fragmentos de um passado desconhecido, farrapos de um tecido que se rasgou.” Isso se dá por uma “caducidade” das criações humanas, as quais são destituídas de importância significativa, conforme apontaram os estudos de Benjamin, como demonstrado. É essa caducidade que aparece como uma problemática da arte na forma do Minotauro. Para Gagnebin (2006, p. 113),

[...] a escrita não é mais um rastro privilegiado, mais duradouro do que outras marcas da existência humana. Ela é rastro, sim, mas no sentido preciso de um signo ou, talvez melhor, de um sinal aleatório que foi deixado sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara. (GAGNEBIN, 2006, p. 113)

Por isso, decifrar os rastro pressupõe a adivinhação do possível processo por trás dele. Pois o rastro não é palavra que mostra, “as tentativas privadas que deveriam compensar a desapropriação coletiva”. Essas esforçam-se no intuito de mostrar, contar alguma coisa, “tentar desesperadamente deixar sua marca – deixar seu rastro – nos indivíduos próximos e nos objetos pessoais; cultivar, assim, a ilusão de posse e do controle da vida”. É o exemplo que, ironicamente, Machado de Assis elabora no conto “Um apólogo”. Uma agulha e uma linha discutem qual das duas tem mais importância para a costura: enquanto a primeira se vangloria por ir entre os dedos da costureira e abrir o caminho, puxando a outra, a linha pouco responde e segue fazendo seu trabalho. Após a prova do vestido, a agulha humilhada volta para a caixa, enquanto a linha vitoriosa responde: “- Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.” (ASSIS, 2004, p. 205). Embora a agulha tente, a qualquer custo, deixar a marca de sua importância, de seu domínio sobre a atividade, sobre a própria linha – é ela quem cria o caminho –, seu destino é o balaio. O rastro que deixou não mostra nada do que queria, seu poder: apenas a sua miserável condição de inutilidade. Atrás do rastro está alguém que quis se desfazer dele, a exemplo do ladrão “que, ao querer apagar seus rastros, deixa outros que não quis”. (GAGNEBIN, 2006, p. 114); o rastro representa a pobreza de experiência da qual o mundo contemporâneo tentou se desfazer para marcar – em vão – que era alguma coisa. É o caso do romance burguês, como atentou Benjamin. Ao querer transformar a [Erlebnis] em [Erfahrung], só conseguiu denunciar a ausência de [Erfahrung]: “o rastro pode se voltar contra aquele que o deixou e até ameaçar sua segurança.” (GAGNEBIN, 2006, pp. 114-115).

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O rastro está no fragmento, nos meandros ínfimos que o homem habita. No lixo, na miséria, na destruição: o Minotauro grotesco. E para alcançá-lo é necessário seguir o fio, o rastro que leva até ele e permite voltar à saída. Embora o rastro não diga nada, a princípio, o trabalho está em desvendá-lo. Em recolhê-lo. Isso se relaciona com a escrita literária: um signo pode tentar transmitir uma mensagem, mas os rastros denunciam outras camadas. O caminho para a literatura é, portanto, manter-se como rastro, como silêncio. Coletar esses fragmentos que excedem do mundo e esvaziar-se: não marcar um sentido. O esvaziamento está nas margens do que se vê. Esse é o trabalho do poeta.

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3 ATELIÊ DE LYGIA “Uma vez eu estava em Pernambuco e vi um rapaz-quase- criança, lá em Tracunhaém, que não era bordador nem crocheteiro, ele era um oleiro, e eu parei pra ficar vendo o jeito dele trabalhar.”

(BOJUNGA, 2008b, p. 139)

Caso alguém que conheça brevemente a obra de Joan Miró vá à National Gallery of Art, em Washington, e encontre lá o quadro denominado La Masía (1921), talvez duvide por um instante da autoria da pintura. Há uma evidente modificação na estética visual do pintor, de um trabalho para outro. Apesar de seus primeiros exercícios apresentarem características pelas quais viria a ser conhecido, como um certo cubismo que destitui o efeito de profundidade exponencial das paisagens, característica do Renascimento, é evidente que a obra nada se compara com, por exemplo, uma peça da série Constelaciones (1939-1941), como El pájaro hermoso descifra la desconocida pareja de amantes (1940), em que a desconstrução da representação neoclássica é levada a outro patamar. No ensaio “Joan Miró”, o poeta João Cabral de Melo Neto faz um panorama do percurso artístico do pintor espanhol e constata na sua obra uma desestruturação que o faz afirmar, de Miró, o gosto pelo próprio exercício de pintar, pelo trabalho:

Em Miró, mais do que em nenhum outro artista, vejo urna enorme valorização do fazer. Pode-se dizer que, enquanto noutros o fazer é um meio para chegar a um quadro, para realizar a expressão de coisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar, o quadro, para Miró, é um pretexto para o fazer. (MELO NETO, 1997, p. 39)

Em uma pintura renascentista, a composição não é explícita. O ato de pintar está esmaecido na aparência, o que faz com que sua percepção não seja por identificação de um sistema conhecido, mas por um reconhecimento inominável, que demanda busca da harmonia da pintura. Na pintura tradicional, o conteúdo sobrepõe a técnica. Miró subverteu esse princípio, desconstruindo a referencialidade que havia marcado alguns trabalhos da sua produção. Ao constatar que o pintor dava espaço para que a própria técnica fosse evidenciada, João Cabral afirma: “Miró não pinta quadros. Miró pinta.” (MELO NETO, 1997, p. 39). É impossível não traçar paralelos entre o exercício visual de Miró e o exercício linguístico de Lygia Bojunga – que fique claro, embora as operações tenham lugar em formas distintas. Os Colegas (1972) e Angélica (1975) inseriram o nome da, então, atriz Lygia na literatura. A Bolsa Amarela (1976) e A casa da madrinha (1978) se tornaram clássicos contemporâneos do gênero. Corda Bamba (1979), O sofá estampado (1980) e os contos de

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Tchau (1984) expandiram as reflexões e as problemáticas sociais e políticas levantadas anteriormente. Uma obra que, lançamento após lançamento, ganhava selos de altamente recomendada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ e que situava a produção brasileira para jovens no cenário internacional, por meio de prêmios importantes, como Hans Christian Andersen. Todavia, subverter a própria estética, desconstruir o próprio trabalho era um gérmen plantado no âmago que queria florescer – questão que será refletida nas páginas a seguir. Partindo da reflexão inicial de João Cabral, este capítulo pretende analisar o trabalho, o fazer na escrita de Lygia Bojunga, que é influído pelo artesanal. Identifica-se em seus textos semelhanças com variadas manifestações da arte, como a técnica do cinema, a interrupção do teatro épico de Bertolt Brecht e a desconstrução na pintura vanguardista de Miró. Tais produções tem isto em comum: elas convergem para a esfera do gesto. A fim de continuar as correlações propostas, é preciso investigar esse conceito que oportuniza as formas artísticas compreendidas. No ensaio Notas sobre o gesto, Agamben (2008) desenvolve um breve percurso pela ciência e pela arte, para compreender a posição do homem moderno em relação a tais elaborações e como elas coincidem no gesto. Inicialmente, o filósofo recupera a pesquisa desenvolvida por Gilles de La Tourette, denominada Études cliniques et physiologiques sur la marche. A pesquisa descreveu pela primeira vez de forma científica o gesto cotidiano do passo:

Um rolo de papel branco de sete a oito metros de comprimento por cinquenta centímetros de largura é pregado ao solo e dividido ao meio no sentido do comprimento, por uma linha feita a lápis. As plantas dos pés do sujeito do experimento são polvilhadas então com dióxido de ferro em pó, que as tinge com uma bela cor vermelha de ferrugem. As pegadas que o paciente deixa caminhando ao longo da linha diretriz permitem uma perfeita medição da caminhada segundo diversos parâmetros (comprimento do passo, desvio lateral, ângulo de inclinação etc.). (AGAMBEN, 2008, p. 09)

Era a primeira vez em que se descrevia o gesto do passo com a precisão científica que Tourette aplicou – Balzac já havia elaborado um estudo sobre o movimento (ensaio denominado “Teoria do Andar”), porém atrelando-o a uma expressão moral. A pesquisa do médico continha um olhar profético do cinematógrafo – Agamben compara o estudo com as produções fotográficas de Muybridge (figura 14), realizadas concomitantemente.

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Figura 14: A man walking (1887), Eadweard Muybridge.

Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: Acesso em: 26 fev. 2020.

Enquanto no estudo citado o olhar de Tourette se concentrava no habitual e limitado gesto da caminhada, outra pesquisa do médico, Étude sur une affection nerveuse caracterisée par de l’incoordination motrice accompagnée d’echolalie et de coprolalie, descrevia outro olhar sobre o corpo, um quadro clínico que ficou conhecido como Síndrome de Tourette. Trata- se de uma condição que provoca espasmos, tiques e maneirismos involuntários: “O paciente não é mais capaz nem de começar nem de finalizar os gestos mais simples”. (AGAMBEN, 2008, p. 10). Desse modo, o filósofo caracteriza a síndrome como uma “catástrofe generalizada da esfera gestual”. Embora alguns casos dessa desordem tenham sido registrados no final do século XIX, elas deixam de ser notadas no século XX; por volta de 1975, porém, o neurologista Oliver Sacks, enquanto caminhava, registra o que lhe parecia ser três casos de Síndrome de Tourette em um curto período de tempo. Agamben (2008, p. 10) sugere como hipótese para a lacuna desses registros, que “neste meio tempo, ataxia, tiques e distonias haviam se tornado a norma e que, a partir de certo momento, todos tinham perdido o controle dos seus gestos, e caminhavam e gesticulavam freneticamente.” Não por acaso, o filósofo inicia seu ensaio com a afirmativa: “No fim do século XIX, a burguesia ocidental já tinha definitivamente perdido os seus gestos.” (AGAMBEN, 2008, p. 09). O ensaio relaciona a perda do gesto e a tentativa de recuperá-lo por meio da arte, uma vez que tal lesão gestual também provoca obsessão por ele. A sociedade burguesa, conforme

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perdia os gestos, perdia também a capacidade de decifrar a vida. Então, formas artísticas, como “A dança de Isadora e de Diaghilev, o romance de Proust, a grande poesia do Jugendstil de Pascoli a Rilke e, enfim, no modo mais exemplar, o cinema mudo” constituíram formas de evocar os gestos perdidos. (AGAMBEN, 2008, p. 11). Agamben dá especial atenção à arte cinematográfica. Segundo ele, “O elemento do cinema é o gesto e não a imagem.” (2008, p. 11). A imagem animada do cinema guarda dois princípios opostos: ela é a anulação do gesto, interrompendo-o em imagem, mas ao mesmo tempo conserva o dinamismo – concentra imago e dynamis:

A primeira corresponde à lembrança de que se apodera a memória voluntária, a segunda à imagem que lampeja na epifania da memória involuntária. E, enquanto a primeira vive num mágico isolamento, a segunda envia sempre para além de si mesma, para um todo do qual faz parte. [...] O cinema reconduz as imagens para a pátria do gesto. (AGAMBEN, 2008, p. 12)

A característica gestual do cinema possibilita uma reinterpretação, por exemplo, das pesquisas de Aby Warburg, o Atlas Mnemosyne, que, embora sejam creditadas como “ciência da imagem”, na verdade são constituídas por gesto, justamente porque, ainda que estejam apoiadas na imagem, a imagem foi transformada por Warburg em um elemento histórico e dinâmico: “o atlas Mnemosyne, que ele deixou incompleto, com suas cerca de mil fotografias, não é um imóvel repertório de imagens, mas uma representação em movimento virtual dos gestos da humanidade ocidental, da Grécia clássica ao fascismo.” (AGAMBEN, 2008, p. 11). Mas o que é o gesto? O gesto está no âmbito da ação, mas se diferencia do agir e do fazer. Ele assume e suporta. Para entender o que isso significa, o texto retorna à Aristóteles, que diferencia agir de fazer. Fazer tem um fim que não é o próprio fazer. Agir, por outro lado, tem seu fim em si mesmo. O gesto está em uma terceira dimensão da ação, a qual rompe com a dualidade agir ou fazer: são meios que não representam uma medialidade, mas também não se tornam fins:

Para a compreensão do gesto nada é, por isso, mais enganador do que se representar uma esfera dos meios dirigidos a um fim (por exemplo, o andar, como meio de deslocar o corpo do ponto A ao ponto B) e, portanto, distinta desta e a esta superior, uma esfera do gesto como movimento que tem em si mesmo o seu fim (por exemplo, a dança como dimensão estética). Uma finalidade sem meios é tão abstraída de uma medialidade que tem sentido somente em relação a um fim. (AGAMBEN, 2008, p. 13)

Assim sendo, o gesto constitui em uma medialidade, ainda que não seja uma medialidade com fim em si mesma, mas que permite, que suporta a medialidade. Não se trata

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de uma compreensão metalinguística da comunicabilidade, mas de um suporte que comunica a própria comunicabilidade (isto é, não é a palavra retirada de sua capacidade comunicativa, puramente forma linguística, tampouco a mensagem comunicada, mas o suporte que serve como comunicação). O gesto não tem nada a dizer, apenas mostra “o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade”. Ser-na-linguagem, entende-se, não pode ser colocado em palavras, em construções linguísticas. Por esse motivo, o gesto “é sempre gag no significado próprio do termo, que indica, antes de tudo, algo que se coloca na boca para impedir a palavra, e também a improvisação do ator para superar uma falha de memória ou uma impossibilidade de falar.” (AGAMBEN, 2008, pp. 13-14). A perspectiva pela qual incursiona o ensaio de Agamben parece coincidir com o pensamento de Walter Benjamin sobre a decadência da experiência comunicável. Na medida em que, no último, a perda da capacidade de narrar está associada às transformações dos meios de trabalho, passando do artesanal para o industrial, do tempo prolongado para a velocidade tecnológica e do comunitário para o isolamento, Notas sobre o gesto indica a perda da organicidade do corpo e da capacidade de finalizar os gestos acometida à sociedade burguesa. Outra coincidência está na identificação de um fazer artístico que evoca a arte tradicional e o gesto não na arte burguesa, e sim nos movimentos históricos de vanguarda. Compreende-se que a escritura de Lygia Bojunga está na esfera do gestual. O estudo de formas da arte, como aquelas referenciadas há pouco, provém aporte para a leitura da obra bojunguiana. Exemplo disso está na pintura de Miró, que introduziu o capítulo – e que será aprofundada adiante. Para compreender o gesto na sua literatura, bem como as implicações políticas dessa esfera, parte-se do contexto histórico no qual Lygia inicia sua publicação.

3.1 NÓ

Os anos de 1960 e 1970 são conhecidos como o “boom” da literatura infantil e juvenil, período em que ocorreu grande proliferação do gênero no Brasil. Essa ficção passava por forte renovação estética, que buscava se desprender dos moldes condicionadores manifestados nas publicações de então. Segundo Lajolo & Zilberman (2007), em Literatura Infantil Brasileira: Histórias e histórias, a literatura infantil predecessora exaltava o homem rural e a vida simples do campo. O Brasil agrícola aparece em trabalhos como Saudade (1919), de Tales de Andrade, e No Sertão de Mato Grosso (1964), de Ivan Engler de Almeida. Insere-se nesse contexto a obra de Monteiro Lobato, O Sítio do Pica-Pau Amarelo, considerada percursora da literatura infantil no Brasil (embora, à verdade, o livro de Tales de Andrade o tenha precedido). Com a

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ampliação de instituições educacionais na década de 1960 – Fundação do Livro Escolar (1966), Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (1968), Centro de Estudos da Literatura Infantil e Juvenil (1973) – e o desenvolvimento industrial da produção em cadeia, herança do “desenvolvimentismo” do programa de Kubtischek, o governo vê no gênero possibilidade de efetivar os métodos educacionais de alfabetização: os baixos índices de leitura ocasionaram em investimentos na literatura infantil e juvenil. A abertura do mercado voltado à criança fez migrar profusão de artistas e escritores para essa área: “Muitos autores, inclusive os consagrados, não desprezaram a oportunidade de inserir-se nesse promissor mercado de livros, [...] figuras como Mário Quintana, Cecília Meireles, Vinícius de Morais e .” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 124). Ainda que por um lado o pensamento intelectual e artístico manifestasse interesse de “mobilização esquerdizante” (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 126), é na abertura do mercado que o gênero vê possibilidades de expansão:

Essa produção maciça de obras para crianças insere-se num contexto social, político e econômico que favorece um modo de produção bastante moderno e condizente com a etapa do capitalismo que os anos 60 inauguram no Brasil. Desde os tempos de Lobato, a literatura infantil é pioneira na inserção do texto literário em instâncias que modernizam sua forma de produção e circulação. Hoje, ao responder adequadamente ao desafio de modernização da produção cultural, a literatura infantil brasileira assume um dos traços mais fortes da herança lobatiana. (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 125)

A literatura infantil se encontrava no umbral entre o desprendimento da exaltação rural alienada e a crítica às estruturas de opressão que adensariam nos anos subsequentes. A manifestação da literatura para crianças e jovens estava sendo condicionada aos desejos do capital e a formas reducionistas de leitura, utilizando o texto como medialidade para o ensino. Como alternativa para ir ao encontro dessas exigências, as produções tinham duas principais características: primeiro, promoviam a infantilização da criança, caracterizando-a como sujeito passivo sob uma “imagem de infância que a considera uma faixa etária frágil e desprotegida, necessitando amparo permanente e cuidados suplementares”; segundo, o texto promove morais de ensinamento, sobretudo do comportamento de obediência, assumindo “uma postura autoritária”. (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 112). Sobre o domínio mercadológico prolongado dessas obras, as autoras questionam:

A que se deve isto: ao fato de, ainda assim, agradarem aos pequenos? Ou porque satisfazem principalmente os adultos, que se valem dos textos como veículo de manipulação da criança e motivação da dependência infantil? Ou ainda porque, sendo eles encontráveis no mercado, os leitores consomem-nos e, por inércia, fica assegurada sua circulação maciça? (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 117)

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Às amarras do mercado livreiro, fugiam exceções, que produziram obras renovadoras como forma de resistir. Mas o nó sufocante apertava. Diante da literatura estavam duas condições efetivas de alienação. Por um lado, a grande indústria e seus modelos de produção em larga escala e, especificamente neste caso, estereotipados. Por outro, o capitalismo efetivava seu revés, ocasionando o doloroso e cruel episódio que marcaria a história brasileira. Durante o governo de João Goulart (1961-1964), a iminência revolucionária do pensamento artístico de esquerda, bem como as tendências populares de Jango, por meio das reinvindicações das reformas de base, levaram os setores burgueses, juntamente com o capital estrangeiro e endossados pela classe média, a apoiar e promover o golpe militar que viria perdurar pelos vinte e um anos subsequentes, em 1964. (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 129) Tendo em vista cada vez mais o distanciamento do Brasil rural idealizado, ante à miserável condição do Brasil urbano que se desvelava, e o desejo revolucionário que emergia de seu posicionamento e da sua possibilidade25, a literatura infantil, então, ocupou em lançar seus esforços sobre as problemáticas sociais com mais contundência. É nesse contexto em que Lygia Bojunga começa a publicar. As narrativas do período, embora subversivas, se posicionadas ao lado da produção de literatura infantil que a precedeu, ou mesmo ao de suas contemporâneas, apresentava estrutura moderadamente tradicional no modo de contar uma história. Mantenha-se em vista, conforme os capítulos anteriores mostraram, a desfiguração que atingiria a estética de Bojunga nos anos subsequentes. É evidente que o modo de fazer dava os primeiros passos em direção a uma desconstrução emancipadora. No momento, preocupava-se em evidenciar o conteúdo alegórico que desafiou a ditadura. A literatura que se opunha demandava coragem e estratégia. Nessa empreitada, é claro, a obra viria repensar a problemática artística. O limiar entre contexto político e problemática estética tematiza a fábula A casa da madrinha (1978). A história narra o percurso de Alexandre, menino que morava num morro de Copacabana e trabalhava como vendedor de sorvete na praia. Incentivado pela família, parte “andando toda a vida” para encontrar a casa de sua madrinha, a fim de uma vida melhor. No caminho encontra uma série de personagens pitorescos que marcam sua viagem. Dentre eles,

25 O pesquisador Josenildo Oliveira Morais, da Universidade Estadual da Paraíba, analisou as vias de escape que a literatura infantil utilizou para ser publicada. Segundo ele: “No grupo dos artistas literários, nos anos 1970, existia um em especial que tinha o privilégio de publicar o que produzia sem chamar tanto a atenção da censura para sua obra: o escritor de livros para crianças. Isso se dava devido ao fato de acreditarem que o livro infantil era apenas mais um ‘brinquedinho’ e, como tal, inofensivo ao sistema.” Ademais, o pesquisador destaca “o poder inventivo-criativo dos que se dedicavam a essa arte”, ou seja, a simbologia e a subversão imaginativa que, muitas vezes, desviou do radar da censura. (MORAIS, 2011, p. 95) Nesse sentido, houve massiva adesão de artistas de diferentes áreas ao gênero.

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faz amizade com o Pavão que passa a acompanhá-lo. A partir de então, performam apresentações de mágica para juntar dinheiro. É num desses shows que conhece Vera, para quem narra suas aventuras. (BOJUNGA, 1999). A interlocução entre Alexandre e Vera explicita a atividade de contar histórias, não apenas em decorrência da experiência, simbolizada pelas narrativas maravilhosas de longe (BENJAMIN, 2018b), os mitos da odisseia, mas por meio da reflexão da técnica:

Quando botou a cabeça fora d’água, Vera pediu: – Você bem que podia contar sua vida pra mim. Ele mergulhou de novo. Ficou lá por baixo pensando se contava ou não. Subiu. – Conta? – Tá bom. – Lembrou das histórias que Augusto contava. Quase sempre começavam assim: “Fulano tinha um amigo, o amigo tinha um cachorro, o cachorro tinha o olho amarelo, o olho amarelo tinha uma pestana torta, e um dia a pestana torta...”. Sentou junto de Vera e contou: – Lá em Copacabana tinha um morro, no morro tinha uma favela, na favela tinha um barraco, no barraco tinha a minha família, na minha família tinha a minha mãe, eu, meus dois irmãos e minhas duas irmãs. (BOJUNGA, 1999, p. 35)

É evidente que a busca por semelhanças constitua em experiência: afinal, o menino aprendeu a contar histórias ouvindo aquelas que o irmão contava. Ainda que a experiência esteja marcada na sua atividade ao longo do livro – o excerto citado não é o único momento em que Alexandre explicita um conhecimento anterior do que aprendeu ou ouviu falar: desde o início ele conta histórias sem deliberadamente pensar na técnica – no momento em que tem que fazer uma história, em que precisa contar – afinal, embora seja uma opção, contar significa também estender a permanência de Alexandre perto de Vera, que, além de lhe dar comida e um lugar um pouco mais estável para ficar, torna-se uma amiga e aliada da sua imaginação – nesse momento, então, ele pensa na estrutura da história. Ele demonstra uma consciência artística. Não há de se negar que o texto encerre gesto político. A casa da madrinha é publicado concomitante a livros como Pivete (1977), de Henry Correia Araújo, Lando nas ruas (1975), de Carlos de Marigny, Coisas de menino (1979), de Eliane Ganem, entre outros que tematizam a marginalização e a pobreza através da criança ou do animal abandonados, desprotegidos. (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007). Mais do que isso, no contexto turbulento de sua ambientação, quando se punham nós na garganta, embora não precisasse, a arte precisava falar. Ao passo em que era silenciada, o desejo de resistência endossava a estrutura narrativa. A ponderação de Alexandre sobre como narrar não é, evidentemente, uma preocupação só sua, sequer é inovadora. Ainda assim, naquele momento, tem pauta estratégica e revolucionária. Alexandre evoca a professora de matemática que dava aulas com uma maleta cheia de pacotes coloridos, os quais, de acordo com seu conteúdo, indicavam como seria a aula do dia.

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Tinha pacote de inventar brincadeira, de aprender a cozinhar, de aprender a pregar botão: “E tinha um pacote branco que só servia pra Professora esconder e pra turma brincar de achar. Quem achava ia pro quadro-negro dar aula.” Quando perguntavam sobre o que falar na aula, ela respondia: “– Conta a tua vida, ué, mostra o que você sabe fazer.” (BOJUNGA, 1999, p. 38). Até que um dia, por pressão da direção da escola, que não gostava desse jeito de dar aula, a professora é obrigada a abandonar a maleta, para o desespero de Alexandre: e sem a maleta ela não sabia dar aula. A maleta guardava metáfora muito nítida, além de um evidente posicionamento da escritora. Lajolo & Zilberman (2007, p. 133) pontuam a força de controle de polícia e governo na segunda metade da década de sessenta, quando “suprimem os canais institucionais que permitiam a circulação da produção cultural”, ainda que “as formas de controle de que se cercou o poder instalado no Brasil a partir de 1964, aprimoradas em 1968 pelo quinto Ato Institucional, tenham sido insuficientes para reprimir o tom esquerdizante de boa parte da produção cultural.” Esse evento é simbolizado pela contação de histórias de Alexandre. Na relação estabelecida com Vera, as histórias maravilhosas que conta carregam os ensinamentos da professora e do irmão, mas também mantêm vivo o compromisso com a liberdade e a imaginação simbolizadas pela maleta da professora. Com sua narrativa, Alexandre marcava o posicionamento de resistência da professora – defendia-o como seu. Do mesmo modo, o artista gritava, no silêncio da sua produção, a voz de liberdade entoado por tantos outros. Se em A casa da madrinha, a perda da maleta era uma metáfora da censura exterior, em A Bolsa Amarela, metamorfoseada no objeto do título, aparece como representação do medo interior. Raquel precisa de um lugar para esconder três grandes vontades: a de ser menino, a de ser adulta e a de escrever. “Não digo vontade magra, pequenininha [...] Vontade assim todo mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras – as três que de repente vão crescendo e engordando toda vida – ah, essas eu não quero mais mostrar.” (BOJUNGA, 2008a, p. 09). Ela não se sente inserida em meio aos adultos, que a infantilizam; não pertence ao universo dos meninos, que a silenciam; então, busca seu espaço na escrita. Ainda assim, essa escrita é ironizada pela família, e mesmo essa vontade precisa ser escondida. Em uma tentativa de se fazer compreendida pelos adultos, Raquel escreve um romance; um descuido, e o romance fica largado em cima da cama, às vistas da irmã, que o lê. Acha engraçado e passa pra mãe, que passa pro pai, que passa pro irmão, que vai passando o romance pra frente, até que todos tenham lido e riam da escritura e de Raquel, por terem achado bobagem. Uma risada em coro, que enraivece a personagem: “Resolvi que até o dia de ser

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grande não escrevia mais nada. Só dever de escola e olhe lá. Foi daí pra frente que a vontade de ser escritora desatou a engordar que nem as outras duas.” (BOJUNGA, 2008b, p. 23). A história de Raquel expõe, em primeiro lugar, a representação da estrutura familiar em decadência, efeito interligado à decadência da classe média. Como citado, esta classe aderiu ao golpe militar, apoiando a manutenção dos interesses do capital. A família da personagem é acometida por problemas financeiros, embora, como há de se notar, esses não se assemelhem aos problemas da família de Alexandre: Alexandre é um garoto marginalizado que vive num barraco no morro. Enquanto aqui a família atua como censor da imaginação de Raquel, naquele ela incentiva essa imaginação, uma vez que, simbolicamente, significava uma vida melhor para o garoto. Com o apoio deles, Alexandre parte em busca da casa da sua madrinha, cuja a existência material é ambígua, embora exista enquanto laço que liga Alexandre, Vera e o Pavão, sustentando os ensinamentos que aprendeu com o irmão e a professora. Aliás, traços da família de Raquel também aparecem em A casa da madrinha, representados na família de Vera: eles não acreditam que Alexandre tenha realmente uma madrinha, e seu discurso causa atritos entre os dois amigos, quando Vera reproduz esse pensamento e duvida da história de Alexandre: “– Foi teu pai e tua mãe que falaram que tá na cara que eu não tenho madrinha nenhuma? – Foi.” (BOJUNGA, 1999, p. 74). O medo que vejam suas vontades faz Raquel escondê-las na bolsa. E o que poderiam representar tais vontades? Raquel quer ser grande, quer ser menino e quer ser escritora. Em primeiro lugar, há no texto evidentes marcas da marginalização de Raquel enquanto mulher, criança e artista. Em uma briga com seu irmão, Alberto, que quer abrir a bolsa e descobrir o que tem lá dentro, a família toda se posiciona ao lado do irmão e contra Raquel: “Puxa vida, porque é que eu não tinha nascido Alberto em vez de Raquel?” pensa em um momento, fazendo a vontade de ser menino engordar; “Quem é que ia abrir minha bolsa assim, se eu fosse gente grande?”, pondera igualmente, fazendo a vontade de ser gente grande crescer. Por outro lado, é possível refletir que as vontades operam como denúncia da própria marginalização da literatura infantil. Por que a censura deixou passar tantas obras de crítica ao governo, como a representação dos militares enquanto lobo mau, em Chapeuzinho Amarelo (1970), de Chico Buarque? A ignorância do autoritarismo cego que faz as pessoas perderem a voz, em O reizinho mandão (1973), de Ruth Rocha? As marcas do medo e da tortura que apareciam como manchas no corpo, em Raul da ferrugem azul (1979), de Ana Maria Machado? O conflitante desejo de que a bolsa permaneça fechada escondendo a vontade de escrever ao mesmo tempo em que a vontade engorda para explodir e se libertar? Afinado ao mesmo movimento que perdura na tradição acadêmica de delegar a literatura infantil para as margens,

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por meio da taxonomia do gênero. Em contrapartida, emerge outra questão possível a partir da fala de Lajolo & Zilberman (2007, p. 152): “nem a documentação crítica da realidade contemporânea brasileira, nem a absorção muitas vezes criativa de elementos da cultura de massa, nem mesmo o esforço de renovação poética dão conta de todas as faces assumidas pela atual produção literária infantil”. Assim sendo: não foi por essa via que esses textos conseguiram se reconstruir, ressignificar e problematizar não apenas a própria estética, como também a forma de produção vigente no mercado para crianças? A última interrogativa interessa veementemente a este estudo. A partir dela, propõe-se outro prisma para pensar a metáfora da bolsa amarela: a metamorfose que transpassa a própria estética.

3.2 LINHA

Como identificado em A casa da madrinha, Alexandre pensa sobre a estrutura da narrativa. Do mesmo modo, Raquel reflete sobre a técnica em A Bolsa Amarela. Seu ofício parte da pesquisa e do treino, ou seja, do fazer, em que inventa personagens para assumir os nomes que gosta. Um deles, André, se torna um correspondente:

“Prezado André Ando querendo bater papo. Mas ninguém tá a fim. Eles dizem que não têm tempo. Mas ficam vendo televisão. Queria te contar a minha vida. Dá pé? Um abraço da Raquel.” No outro dia quando eu fui botar o sapato, achei lá dentro a resposta: “Dá. André.” Parecia até telegrama, que a gente escreve bem curtinho pra não custar muito caro. Mas não liguei. Escrevi de novo. (BOJUNGA, 2008a, p. 10).

As cartas de André simplesmente aparecem, sem que seja indicado o papel de Raquel como autora do texto. André e a carta existem independentemente. Além disso, elas contrapõem a comunicação partilhada à forma de consumo isoladora, neste caso, a televisão. O desejo de conversar, então, manifesta-se através da escritura. A mão operante de Raquel só é evidenciada quando a escritora é confrontada pelo irmão:

Eu estava tão ligada na carta do André que nem tinha visto o meu irmão atrás de mim lendo também. Ele me arrancou a carta: – Quem é o André? – Ninguém. O André é inventado. Ele me olhou com aquela cara desconfiada que eu conheço tão bem. – Já vai começar, é? – Palavra de honra. Eu tenho mania de juntar nomes que eu gosto, sabe? E eu gosto um bocado de André. Aí, quando foi no outro dia, eu estava sem ninguém pra bater

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papo e então inventei um garoto pro nome. [...] É o seguinte: eu resolvi que eu vou ser escritora, sabe? E escritora tem que viver inventando gente, endereço, telefone, casa, rua, um mundo de coisas. Então eu inventei o André. Pra já ir treinando. Só isso. (BOJUNGA, 2008a, p. 15)

André-inventado atua como leitor e escritor, num jogo de correspondência performática da autora. Ele é a manifestação da presença-ausência autoral de Raquel, que aparece como um gesto na escrita; autoria esquecida, em rastro. Há uma fala de André que aprofunda a questão. Quando Raquel se queixa que o pessoal da casa não gosta do que escreve, ele diz que não vai se intrometer no problema, mas opina: “Teu pessoal só fica chateado porque no meio da invenção você bota o namorado da tua irmã no meio, ou então o gato da vizinha, ou então a tia Brunilda, ou não sei quem mais.” (BOJUNGA, 2008a, p. 15). A solução sugerida é que Raquel não escreva mais tentando representar sua família, mas “um caso com gente inventada, com casa inventada, com bicho inventado, com tudo inventado”. (BOJUNGA, 2008a, p. 15). Por meio do próprio fazer, a carta de Raquel discute a problemática da escrita como representação, representação esta que causa conflitos, porque não condiz com a verdade. Pelo contrário, são invencionices que geram uns “cascudos” da família, uma vez que mistura a verdade com a ficção. Isso se contrapõe à própria carta inventada, que não tem mais que rastros da presença de Raquel. O personagem com quem dialoga só existiu depois do nome “André”. André é pura invenção da palavra. Por outro lado, ela constitui-se como meio de contrapor uma forma de consumo considerada por Raquel como alienante, uma vez que impede a comunicação dos familiares. A sugestão de André indica o desprendimento do texto como apreensão do real em formas representadas, buscando a invenção. A obra de Lygia Bojunga compreende a problemática quanto ao fazer do texto de modo explícito. Isso é potencializado a partir de Livro – um encontro e Fazendo Ana Paz. Estes desagregam a questão das entrelinhas, deixando de consistir num conflito a ser resolvido dentro da narrativa e passando a superar a própria ficção, a partir da manifestação performática de uma narradora que cria diálogos referenciais. O processo se torna a estrutura da narrativa, mais do que em livros como A casa da madrinha ou A Bolsa Amarela. Há semelhanças entre esse modo de fazer e os exercícios do pintor Joan Miró, que introduziu este capítulo. Nos trabalhos do pintor, o detalhamento figurativo deu espaço à abstração dos componentes; a profundidade deu espaço à suspensão e à perda de perspectiva; e a superfície do quadro, herança renascentista, deu lugar a outras superfícies, como painéis e pôsteres. Na literatura de Bojunga as personagens literárias deram lugar a personagens de

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palavras e à consciência interna metaliterária; a ambientação marcada deu lugar a uma suspensão memorial sugerida; e a estrutura narrativa deu lugar a uma performance da linguagem enquanto gesto. Considere-se os elementos representados no quadro La Masía (figura 15). Há uma profusão de imagens identificáveis. Diferentes aves são vistas acima da cerca e no galinheiro, quadrúpedes ocupam o cercado e o entorno da árvore, trabalhadores realizam as atividades do cotidiano rural. As construções preservam uma estrutura usual, percebida no detalhamento da casa – tijolos, portas e janelas –, no galinheiro – com o poleiro e a cerca de arame, e nos espaços adjacentes da fazenda. Há regadores, baldes, árvores, plantações, carroça, água, enfim, variedade de elementos que indicam: é uma fazenda.

Figura 15 – La Masía (1921), Miró.

Fonte: National Gallery of Art. Disponível em: Acesso em: 23 nov. 2019.

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Em El pájaro hermoso descifra la desconocida pareja de amantes (figura 16), os componentes indicados pelo título – o belo pássaro e o casal de amantes – não estão explícitos na pintura; não há um elemento sequer que esteja em correlação com o referente real, ou ainda não é possível identificar um espaço ambientado, um tempo plausível ou os personagens nomeados. O primeiro quadro se constitui principalmente por uma variedade de tons, além da lua que elucida o crepuscular do dia, enquanto este se constitui por cores primárias – ou a mistura elementar que forma uma cor secundária: azul e amarelo formando o verde – em contraposição ao preto. As formas definidas dos elementos daquele são substituídas aqui por linhas e formas geométricas. Algumas dessas formas compõem quase-figuras – os olhos do pássaro que decifram os amantes? os amantes trocando afetos? –, mas nenhuma é definitiva. Todas possibilidades.

Figura 16 - El pájaro hermoso descifra la desconocida pareja de amantes (1940), Miró.

Fonte: Wahoo Art. Disponível em: Acesso em: 23 nov. 2019.

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Em seus trabalhos, Miró problematizou a proporção e destituiu a dominação centrada em um único elemento, conferindo relevo equilibrado aos elementos da composição: “Já não é com a linha elegante ou harmoniosa, formas plasmadas pelas necessidades do equilíbrio, que ele conta. Ele tem de reencontrar a função da linha.” (MELO NETO, 1997, p. 32). A pintura se torna muitas pinturas. Tal exercício artístico reflete a fragmentação, os conflitos da representação, a destruição da pirâmide antropocêntrica. As pinturas abalam a figura clássica que tentava aparecer: o homem, fosse em sua magnitude ou em sua decadência, cercado de objetos e de anseios. A problemática da técnica se tornou objeto de interesse nas artes. Esse pensamento retoma a imagem do Minotauro apresentada anteriormente. Não seria isso o seu simbolismo? O rompimento entre o real e a representação, entre a memória e a narrativa, entre a imagem e a palavra? Um corte tão profundo, que só restou aos artistas o trabalho de costurar, de desfazer para poder fazer novamente? Preencher a lacuna abismal que havia restado do impasse representativo com o próprio gesto, o trabalho de fazer, de pintar, de escrever? O destino certo da morte que aguardava Teseu no centro do labirinto foi subvertido pela urdidura do fio de Ariadne, a linha desenrolada que alterou o fim inelutável e criou uma nova possibilidade de caminho, o retorno que indicava a salvação. Ainda que o labirinto tenha muitos caminhos possíveis, todos levavam à morte, representada na figura da besta ou nas passagens irresolúveis criadas por Dédalo; o que significaria seguir a linha e resolver o enigma? Se, ao invés de vagar a esmo em busca do ponto fixo, a saída – que só leva à morte –, optasse por acompanhar a linha, não seria isto que leva paradoxalmente à saída do labirinto? Trajetória símil em Miró. O pintor “Tem de abandonar as linhas onde a contemplação permanece estagnada e entregar-se à criação de novas melodias.” (MELO NETO, 1997, p. 32). Assim sendo, seu trabalho destitui o ponto de fixação necessário para que o efeito de perspectiva do quadro seja efetivo, devolvendo à superfície a função de ser “receptáculo do dinâmico”. Sobre isso, João Cabral alude:

Há em sua obra – a partir do momento em que aboliu de sua pintura a terceira dimensão – um caminho. Mas esse caminho tem um sentido: Miró, colocado diante da superfície, começou a fazer, em sentido inverso, o caminho que a superfície havia percorrido até que pudesse conter aquela terceira dimensão imaginária. (MELO NETO, 1997, p. 22)

A linha dinâmica que Miró perfaz em seu trabalho visual tem proximidade com a linha- escrita em Bojunga. E, sobre ambas, atua o elemento gestual. Retoma-se a imagem da mão, discutida no segundo capítulo. Em decorrência do seu impacto, a imagem funciona como abertura no presente que permite um caminho de encontro com o passado: as mãos dos artesãos

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mexicanos, que aparecem em Feito à Mão, fossem bordadeiras, oleiros, pintores, vistas na fase adulta da vida, têm semelhança com a mão da mãe que cosia ao lado da narradora aos quatro anos de idade. Bem como com a própria mão, que aparece em sonho. Mas, antes de levar a um passado imóvel, é o registro imagético que vem até o presente: “Acordei. O dia tava só começando. [...] Não deu tempo de pensar muito no sonho: um monte de memórias se despencou no meu pensamento. Todas elas ligadas ao que eu fazia à mão.” (BOJUNGA, 2008b, p. 112). Análoga é a leitura de Agamben (2008) referente ao Atlas Mnemosyne, de Aby Warbug, em que a disposição das imagens recupera o dinamismo da história, adquirindo tanto o caráter de imago – a imagem isolada – quanto de dynamis – sua inserção num fluxo maior e contínuo. Na imagem está “uma espécie de ligatio, um poder paralisante que é preciso desencantar, e é como se de toda história da arte se elevasse um mudo chamado para a liberação da imagem no gesto.” (AGAMBEN, 2008, p. 12). A escrita de Lygia, portanto, opera enquanto gesto. As imagens memoriais inseridas comportam “polaridade antinômica”: são interrupções em momentos distintos, mas sua potência evoca a narrativa ininterrupta da história.

“Meu olho indo dar uma volta lá fora pra espiar mais de perto a madureza do verde, voltando pra dentro pra se juntar com a mão, que continua experimentando: a palavra no papel, a linha no pano, a lã na tela.” (BOJUNGA, 2008b, p. 70). A mão recupera um elemento essencial do ato de escritura: o ductus. Barthes (2004) apresenta esse elemento em reflexões sobre variações na escrita. Identificado pelo historiador Wilhelm Wattenbach, em 1866, refere- se ao movimento da fabricação da escritura. Ductus é um movimento e não uma forma: “é uma temporalidade, o momento de uma fabricação; só pode ser captado quando se fixa mentalmente a escrita em vias de fazer-se, e não a escrita feita.” (BARTHES, 2004, pp. 235-236). Embora essencial para o ato de escrever, a demora para sua identificação aconteceu em decorrência de uma preocupação maior com a escrita enquanto produto, não enquanto produção. Segundo Barthes (2004, p. 236):

O ductus é ao mesmo tempo a ordem na qual a mão traça os diferentes traços que compõem uma letra (ou um ideograma) e o sentido segundo o qual cada traço é executado. Ordem e sentido são regrados, o ductus é um código; nas escritas modernas (pessoais), o código (que permanece flexível e é em parte, se não aleatório, pelo menos individual) provém, se assim se pode dizer, da fisiologia, que, por razões de comodidade ou economia, leva a executar os traços de uma letra em certo sentido e em certa ordem.

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A análise do escritor indica três motivos da importância do ductus: primeiro, é um fato de produção; segundo, representa a inserção do corpo na escritura; e terceiro, essa inserção é codificada. Por essa razão, nele se manifestam “a natureza manual, artesanal, operatória e corporal” do gesto de escrita. (BARTHES, 2004, p. 237). Nesse sentido, o ductus se contrapõe à produção industrial e mecanizada. Anteriormente, a dissertação apresentou as consequências desse processo para a contação de histórias. O trabalho artesanal que unia mestre e aprendiz em torno de uma atividade lenta e processual deu lugar à divisão pragmática das etapas de fabricação em busca da velocidade. A ideia de ductus recupera a organicidade perdida no atropelo da história. Observam-se semelhanças entre o ductus, a linha das pinturas de Miró e a experimentação na literatura de Bojunga. O fluxo continuado e subjetivo, mas que é “codificado”, remete ao fazer literário mais próximo da tradição oral, criando um caminho, similar ao “caminho inverso” que a pintura do artista espanhol fez. Trata-se de um retorno à prática mais subjetiva com a arte, que, todavia, só é possível pela desagregação e pela abstração. Este caminho possibilita, nos textos literários de Lygia, o percurso linguístico que se dirige para além do próprio livro que o serve de suporte. A imagem da mão da artista sonhada, em Feito à Mão, referencia a mão da passadeira Maria da Anunciação, em O Rio e eu; a mão incerta da escritora, em Fazendo Ana Paz; as mãos firmes de Raquel que não soltam a bolsa, em A Bolsa Amarela. A linha costura as histórias da obra, mas, ao fazer, isso perde-as em partes insuficientes, que desconcertam ou fascinam o leitor. Ou seja, não há um foco, ou uma hierarquia, ou mesmo um movimento determinado. Há história dentro da história. E histórias fora dela que se conectam. Ao acompanhar a linha, devolve-se à obra organicidade e dinamismo, características perdidas em detrimento da rigidez do ponto estático que caracterizou a arte burguesa, como apontou João Cabral (1997). A arte representativa tinha em vista a manutenção de certas poses, a fim de, por meio da [Erlebnis], a vivência isolada e vazia, recuperar a tradição da [Erfahrung], a experiência destituída. Não foi até os modos de fazer mais objetivos das vanguardas, do cinema, do teatro épico, que justamente remeteram à tradição, mais do que a arte burguesa.

3.3 CORTE

Benjamin viu no teatro épico de Brecht forma que possibilitava a recuperação teatral após o declínio do teatro dramático. Isso porque o teatro épico é gestual. (BENJAMIN, 2012c). O filósofo aponta para a decadência do teatro dramático identificada na estrutura do palco. O

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desaparecimento da orquestra teve por consequência um abismo entre palco e plateia, fazendo com que a elevação estrutural perdesse seu sentido: “ele transformou-se em tribuna”. (BENJAMIN, 2012c, p. 83). A contínua composição de tragédias e óperas alimentava uma estrutura teatral decrépita, ao invés de dispor dessa estrutura. O teatro contemporâneo [Zeittheater], que se fundava na literatura e que utilizava o texto para ditar a representação ainda estava baseado em um modelo de teatro burguês, que não comportava as massas proletárias. Por esse motivo, o teatro épico de Brecht intenciona repensar a relação entre os elementos palco e público, texto e representação e diretor e atores:

Para seu público, o palco não se apresenta sob a forma de “tábuas que significam o mundo” (ou seja, como um espaço mágico), e sim como uma sala de exposição, convenientemente disposta. Para seu palco, o público não é mais uma massa de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembleia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. Para seu texto, a representação não significa mais uma interpretação virtuosística, e sim um controle rigoroso. Para sua representação, o texto não é mais fundamento, e sim uma tabela, na qual se registram, sob a forma de reformulações, os ganhos obtidos. Para seus atores, o diretor não transmite mais instruções visando à obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles têm que tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que incorpora um papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo. (BENJAMIN, 2012c, p. 84)

A fim de efetivar as novas relações, o teatro épico brechtiano é apoiado no gesto. Benjamin (2012c) destaca duas características do gesto: primeira, sua falsificação é difícil, sobretudo o quanto mais habitual o seja; segunda, ele tem um começo e um fim determinados, ainda que esteja inserido num fluxo vivo maior. Por essa razão, quanto mais interrupções são provocadas na ação, mais gestos é possível apreender. O teatro épico tem como importante função a interrupção. E o texto tem a função corroborativa de interromper a ação: “E não somente a ação do parceiro, mas também a própria. O caráter retardante da interrupção e o caráter episódico do emolduramento fazem do teatro gestual um teatro épico.” (BENJAMIN, 2012c, p. 86). Com efeito, o teatro épico apoia-se em condições, mas de modo distinto do “teatro naturalista”, posto que este mantém o palco com características ilusionistas, para representar a realidade. Pelo contrário, o teatro épico ordena os elementos da realidade para mostrar as condições no fim, e não partindo delas. Isto é, ele as afasta do público, público este, proletariado. Ao visualizar tais condições com assombro, distanciado, surge o interesse. Brecht tenta transformar esse interesse (denominado pelo texto de interesse originário) em interesse de especialista. Desse modo, o teatro épico não reproduz, mas descobre condições, e tais descobertas acontecem por meio da interrupção, do posicionamento do ator e da participação efetiva do público.

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Qual a relação desse modo de fazer teatral com a escritura de Lygia? Há duas identificações. Em primeiro lugar, como observado no segundo capítulo, a fragmentação textual ocasiona interrupções no curso da narrativa. Cada tentativa de contar a história de Ana Paz, por exemplo, nunca se direciona a uma linearidade plena, mas a ações interrompidas, criando várias pequenas cenas que são articuladas pela escrita – diga-se de passagem, nada onisciente – da narradora. Nesse caso, a narradora assume a posição de pesquisadora, juntamente com o leitor. Não somente isso. As próprias personagens interrompem a atividade de escrita da narradora, ao mesmo tempo que conservam a consciência de serem uma manifestação literária. De início, Fazendo Ana Paz desvela essa semelhança com o teatro épico: a narradora, ao tentar escrever um livro de viagens, é interrompida por uma personagem, estranha ao texto, que invade seu estúdio e conta a própria história. Essa personagem é Raquel, a mesma d’A Bolsa Amarela que havia sido lançado em 1976 (15 anos antes de Fazendo Ana Paz):

A Raquel entrou no meu estúdio feito um furacão, explodiu no caderno onde eu ia escrever meu livro de viagens, dizendo que tinha dez anos, que tinha uma família assim e assado [...] e que tinha essas tais vontades fortíssimas que ela precisava esconder depressa, depressa, DEPRESSA! Comecei a procurar depressa um lugar pra ela esconder as tais vontades. Acabei encontrando uma bolsa amarela que me deu a maior mão-de-obra pra fazer. (BOJUNGA, 2007a, pp. 11-12)

A segunda aproximação identificada está na técnica. O ensaio de Benjamin estabelece uma semelhança entre a técnica do teatro épico e a do cinema e do rádio. Se, conforme apontou Agamben (2008), o cinema tentou evocar os gestos perdidos da burguesia, aqui, no teatro épico, a associação com a técnica cinematográfica “demonstra, ao mesmo tempo, que, muito mais profunda que sua ruptura com a concepção do teatro como diversão noturna, é a brecha que ele cria no teatro como espetáculo social.” (BENJAMIN, 2012c, p. 88). Isso se dá por uma significação de cada parte individualmente, além do seu valor para o todo, o que permite uma inserção do espectador a qualquer instante, sem que haja antecedentes complicados na história. A aproximação do modo de fazer artesanal e os recursos técnicos do cinema marca a escrita bojunguiana. Retoma-se Fazendo Ana Paz, a exemplo. Por serem representadas duas histórias paralelas, que se inscrevem, a de Ana Paz e a da escritora do livro, a ambientação passa por recortes, aproximações, distanciamentos. Em um momento se está na casa da velha, em outro, no estúdio da escritora: “Fui gostando tanto de fazer a casa, que em vez de ir pra mesa escrever, eu ficava me balançando na rede, trazendo pro meu estúdio uma porta da minha vó, um pátio da minha outra vó.” (BOJUNGA, 2007a, pp. 35-36). Esse recurso de representação espacial, familiar à técnica cinematográfica, desestrutura a disposição geográfica verossímil. O

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lugar real de trabalho, o estúdio, torna-se também um espaço da história. A ambientação da ficção é impulsionada para dentro do estúdio, devido à força da imagem memorial. No momento da escrita, eles se sobrepõem, e há um espaço dentro de um espaço, a história percorre de um para outro. A forma de operação técnica audiovisual é assemelhada à memória, em Feito à Mão. A narradora insere na narrativa rascunhos ínfimos de histórias que anota em uma agenda. Um desses fragmentos conta que, passando pelas ruas de Istambul, viu um velho bordador, com uma bolsa de couro cheia de ferramentas ao lado. Apesar da descrição, ela quer focar na mão: “A lente da minha memória vai chegando pr’um close-up da mão do artesão. Engraçado. Assim, nesse close, a mão dele fica igual, igualzinha, à mão que eu vi lá em Minas”. (BOJUNGA, 2008b, p. 138). O texto também compara a cena da memória com um roteiro:

SOM Polifonia. Voz gritando num alto falante anúncio não sei de quê. A recitação do muezim, num chamado tão bonito, que dá vontade de ir atrás. A voz dissonante do tráfego, no barulho costumeiro de buzina, de freada e de motor. Canto e grito de andorinha. [...] IMAGEM: A calçada entremeada de árvores; andorinha e mais andorinha chegando pra disputar lugar num galho antes da noite cair [...]

O fragmento estabelece vários focos visuais e sonoros. Além disso, se insere dentro de outra narrativa, a de “Uma rua de Istambul”, que por sua vez, integra o livro Feito à Mão. Este corte figura por meio da subversão sintática, em Fazendo Ana Paz. As vozes atuantes se alternam, em um jogo narrativo que alude ora à escritora, ora às personagens, indicado pela pontuação, sinais gráficos, alteração entre discurso direto e indireto e entre narrador em primeira e terceira pessoa, que deslocam o lugar de quem fala:

E aí, um dia aconteceu de novo: ela chegou, e sem a mais leve hesitação foi me dizendo: “Eu me chamo Ana Paz; eu tenho oito anos; eu acho o meu nome bonito. Tem gente que, pra andar mais depressa, me chama só de Ana. Mas se tem coisa que eu não gosto é ver o meu nome pela metade. [...] O meu pai escolheu a Ana, ele gostava demais de Ana, mas a minha mãe achava curto; ele então quis Ana Lúcia, Ana Luísa, Ana Helena, mas na hora que eu nasci a minha mãe escolheu: Paz! E ele topou: Ana Paz. – Mãe, a que horas que eu nasci? – Aos 15 minutos do dia 26 de abril. (BOJUNGA, 2007a, pp. 14-15).

O recurso linguístico utilizado, além de exercer a função que lhe cabe no gênero narrativo, subverte a hierarquia instituída pelo romance: não há uma narradora onisciente, mas múltiplos narradores. Com efeito, a narradora nem ao menos sabe a história que quer contar,

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recebendo a visita dos personagens que lhe narram suas histórias. O seu conflito é a própria técnica: como escrever? Esse movimento desconstrói a estrutura da cena enquanto meras linhas que levam a uma perspectiva. A escritora-personagem atua como ductus: só existe enquanto a história se inscreve. É uma temporalidade, um movimento. O texto inclui cortes e manipulações temporais. Em Fazendo Ana Paz, o tempo cronológico cede ao tempo da narrativa. A história não contém um período temporal determinado ou identificável, mas sim uma convergência de momentos no instante da escrita. Esse movimento permite a manifestação das três Ana Paz – criança, jovem e velha – concomitantemente. Como em flashback, o texto faz brilhar imagens do passado no presente. Este é, aliás, o conceito de “atualidade” de Walter Benjamin (GAGNEBIN, 2014), como apontado no primeiro capítulo. Também é o esforço proustiano de escritura da rememoração: a identificação de semelhanças no passado e no presente, o entrecruzamento. (BENJAMIN, 2012a). Por meio dessa anacronia, o texto expõe a problemática do conflito temporal: o tempo da narrativa coincide com o instante da escrita. A ação de escrever faz mover esse tempo e aproxima as pontas da vida de Ana Paz. Costura os fragmentos temporais, criando outro modelo de cronologia, nada associado ao mundo dos relógios. Quando adormece a mão da escritora, também na história nada acontece: “Quando o fogo pegou, ela sentou perto da velha e as duas ficaram olhando pro fogo. As duas, não: nós três: eu também estava parada na minha mesa, lápis parado, olho perdido no fogão de lenha; e a gente ficou assim um tempão.” (BOJUNGA, 2007a, p. 39). O tempo da narrativa é o tempo de quem escreve ou de quem lê. Afinal, Livro – um encontro expõe que o leitor preenche as entrelinhas, cria junto com o escritor. O leitor é um criador: “Eu sou leitora, logo eu participo intimamente desse jogo maravilhoso que é o livro; eu sou leitora, logo, eu crio” (BOJUNGA, 2007b, p. 35). Assim, o tempo da narrativa é o tempo da criação, o tempo do fazer. É aquele que opera junto com a mão que escreve e que pausa quando ela para. Que reinicia quando o leitor abre as páginas do livro, e que adormece quando ele sai dessas páginas para encarar a vida. É o tempo em que os fios são entremeados na tecitura de uma mortalha, e que se desfaz enquanto o trançado é desfeito. É o tempo que adia a morte, enquanto a voz da contadora narra uma história sem fim. Por isso ele está sempre lá, nas palavras, e se repete com a nova leitura. E também não está, pura suspensão que é refeita no gesto da criação.

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3.4 ARTESANAL

Há outro caminho que a linha – o ductus percorre na obra de Bojunga. A fim de aludir a isso, retoma-se uma prática do exercício de Miró. O artista repensou a superfície do quadro. João Cabral (1997) afirma que o Renascimento foi o período que fez nascer a pintura a partir da fusão de dois elementos prévios que estavam distanciados: o objeto de contemplação e a superfície decorativa. No entanto, houve um desenvolvimento muito mais amplo do objeto em detrimento de uma limitação da superfície, pois, além da noção de relevo, passou-se a buscar a representação de uma profundidade do ambiente em que o objeto se encontrava. Isso exigia um olhar estático do observador, o que diminuía as possibilidades da superfície. A pintura de Miró é uma possibilidade de devolver a importância à superfície. O que diferencia seus trabalhos dos de seus contemporâneos é a não satisfação com as soluções, é o contínuo saltar de uma solução a outra, promovendo uma dinamicidade e continuidade à obra. Se Miró busca esse caminho nas diferentes superfícies sobre as quais realiza suas pinturas, o trabalho de Bojunga passa a procurar novos modos de se fazer. É desse esforço que surge Feito à Mão (1996). A publicação consistiu em um trabalho artesanal, um livro-objeto feito totalmente pelas mãos de artistas. O prefácio narra que o livro surgiu da “curiosidade que desde pequena vem abrindo o meu caminho: fazer-pra-ver-como-é-que-é-fazer”. (BOJUNGA, 2008b, p. 07). O impulso da sua criação não consiste em uma história a ser contada, mas o próprio exercício de fazer, que é transmitido:

Mas eu só queria fazer o livro se ele fosse feito à mão. Por duas razões [...]. A primeira razão: tudo que eu andava querendo escrever naquela hora tinha a ver com o fazer à mão: eu queria falar do meu eu-artesã; e queria lembrar a marca que outros artesãos me deixaram; eu queria voltar atrás na minha vida pra reencontrar o pano bordado, a terra cavada, o barro moldado, e queria juntar eles todos numa pequenininha homenagem no feito à mão. A segunda razão foi – mais uma vez – a compulsão de remar contra a maré: quanto mais a tecnologia se impõe, mais rédea eu vou dando pro meu gosto de fazer à mão. (BOJUNGA, 2008b, pp. 07-08)

O excerto recupera dois conceitos de Walter Benjamin que foram explorados no segundo capítulo. Primeiro, o texto aproxima o ofício narrativo do ofício do artesão. Esse ofício da tradição, além disso, se constitui pela oposição à industrialização dos modos de produção. Nesse sentido, o fazer artesanal da obra de Lygia é o gesto que se opõe à instauração desenfreada de um modo de fazer arte associado ao capitalismo.

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Bojunga investigou outros modos de matéria da constituição do próprio objeto livro. As páginas foram todas feitas artesanalmente (figura 17) por uma artista plástica:

Quando chegou a primeira leva de papel, eu fiquei feliz: era justo o que eu tinha pensado pro meu livro. Passei a mão numa folha [...]: cada uma tinha seu próprio jeito, saía da fôrma ou mais ou menos esgarçada nas beiras, ou pegando aqui e ali, uma tonalidade diferente, ou aparentemente mais ou menos fibras. (BOJUNGA, 2008b, p. 23)

Há reflexo da rusticidade da matéria no espaço, tão importante para o desenvolvimento do ofício da escrita, como identificado no primeiro capítulo: “Comecei logo a trabalhar no projeto espaço. A ideia era aproveitar, reciclar ao máximo”; “usar pedaços de caibros, tábuas e ripas que foram se empilhando num canto”, “azulejos sobrados de obras passadas”, “assuntar ferro-velho”. (BOJUNGA, 2008b, pp. 15-16). O espaço também se torna feito à mão, artesanal. E a artista usa a matéria descartada, a ruína, o excesso, o lixo para compor o ateliê em que trabalhará. Ao utilizar a coisa morta o orgânico aparece: “O papel parecia vivo. Feito a pele do meu braço. Nem hesitei: comecei logo a chamar de pelinhos as fibras do papel.” (BOJUNGA, 2008b, p. 23). A subversão da superfície à qual está aliado o projeto de Feito à Mão remete ao ductus, a um movimento, um caminho. Ele mostra não o produto, mas o processo, o fazer. Tanto em Fazendo Ana Paz quanto em Feito à Mão, mais do que contar uma história, Lygia conta o processo. É o processo que inicia no íntimo do coração, com uma vontade, um impulso: “Eu sempre gostei de ler livros de viagens; um dia me deu vontade de escrever um.” (BOJUNGA, 2007a, p. 10). Essa vontade está presente também em Feito à Mão: “Tempos atrás me deu vontade de fazer um livro do princípio ao fim.” (BOJUNGA, 2008b, p. 07). A vontade de fazer é o primeiro retalho que será costurado: é um retalho do tecido orgânico, que traz impulsos memoriais convergidos no momento presente da escrita. É a vontade de transformar abstração, em matéria. Como o aroma de um doce faz querer resgatar o passado; como a esperança de adiar uma intempérie faz tear um longo manto; como a vontade de sobreviver faz contar histórias. É o princípio ativo que quer o corpo vivo, para fazer. É a suspensão entre a força imagética e o fim em palavra, ocorrido na esfera do gesto.

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Figura 17: Folha de rosto de Feito à Mão.

Fonte: Encontros literários Casa Lygia Bojunga. Disponível em: Acesso em: 23 fev. 2020.

Essa ação pede ferramentas. Então, como um bom artesão, seleciona e prepara as ferramentas que darão suporte para o trabalho, como o estúdio feito de lixo, em Feito à Mão; como o cuidado e zelo com que se prepara para esperar Ana Paz: “Fiquei contente: eu ia começar a fazer o que me deixa mais contente de fazer. E fiz mais espaço na minha mesa, e fiz ponta em tudo que é lápis. Fiz café para ir tomando.” (BOJUNGA, 2007a, pp. 16-17). Apesar de preparados os aspectos técnicos e as certezas do projeto, é preciso que a escritora esteja ciente das interrupções e das ambiguidade daí resultantes: a irrupção de personagens, em Fazendo Ana Paz, interrompe a atenção da narradora do projeto inicial: “A Raquel entrou no meu estúdio feito um furacão, explodiu no caderno onde eu ia escrever o meu livro de viagens” (BOJUNGA, 2007a, p. 11). Mas essas interrupções nem sempre levam a algum lugar. Quando a escritora está preparada para contar a história de Ana Paz, a menina desaparece, o que leva a um bloqueio criativo: “Nossa! Empacar todo escritor empaca. Mas assim? tão depressa? mal o livro começa? Fui ficando meio deprimida.” (BOJUNGA, 2007a,

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p. 18). O bloqueio é o impasse que transpassa a imagem antes de virar linguagem. Como representar um traço visual em escrita? O escritor Ítalo Calvino apresenta considerações sobre esse impasse. No romance Palomar (CALVINO, 1994), a personagem título investe em um constante exercício de observação. Logo no capítulo de abertura, Palomar se posiciona frente ao mar imbuído do desejo de descrever uma onda. Ele delimita um espaço, uma moldura imaginária na paisagem, um pedaço de mar e terra dentro do qual, supõe, a onda performa seu movimento de nascimento e deságue, seu fim. Porém, percebe que, ao fim da onda, uma nova se forma e dá continuidade ao movimento da primeira. O que o chama atenção é que, se o processo de início e fim de uma onda se repete – é igual para todas as ondas –, isso não facilita a tarefa, cada onda é diferente uma da outra. Além disso, algumas ondas rompem com o limite estabelecido pelo observador, e a tarefa cada vez mais impossível. E a cada momento, as mudanças do vento alteram também a forma e a velocidade das ondas: “É pena que a imagem que o senhor Palomar havia conseguido organizar com tanta minúcia agora se desfigure, se fragmente e se perca.” (CALVINO, 1994, p. 11). Calvino reflete sobre a impossibilidade de se descrever uma imagem. É certo que o objeto escolhido por Palomar não é dos mais fáceis. A descrição de uma onda depende das condições climáticas para sua breve existência e da mutabilidade de forma, assim é um exercício frustrante. O que Calvino faz é usar a imagem da onda como elemento representativo que coloca uma lente de aumento no exercício literário de descrição de qualquer imagem. Qualquer objeto a ser descrito está inserido em um contexto e tem sua existência condicionada pelos elementos que o cercam. Por mais estático que pareça, um objeto está sempre atrelado a determinadas condições e compõe um quadro mais amplo da realidade. Daí sua impossibilidade de descrevê-lo. Daí a necessidade de arte o fazer por gesto. Um excerto de Fazendo Ana Paz explica as etapas da escritura de um livro. E não poupa de assumir que nem todo projeto é bem sucedido:

Fiz Pai, fiz Carranca, fiz Antônio, fiz ponto final na história. Fiz reunião com Editor pra anunciar que eu tinha acabado um livro que vinha empacando há uns trezentos anos, fiz a leitura de tudo que eu tinha escrito depois que eu cheguei da viagem. Achei tudo um horror. (BOJUNGA, 2007a, p. 84)

Ao inserir sua impotência na narrativa, a escritora a transforma em potência, como parte do processo. E, conforme os seus textos se dirigem para a destituição da forma ao longo de seus trabalhos, sua obra fala sobre o fazer, o fazer contínuo, o refazer e o desfazer. Os títulos dos

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livros marcam isso: Fazendo Ana Paz, Feito à mão. Um aviso de que uma atividade acontece ali. São narrativas – são narrativas? – sobre o processo. E o verbo fazer, neste caso, não pede complemento. Ao invés de utilizar a ação para um resultado, ela se torna independente. Fazer, porque é fazendo que se escreve. Essa tensão do verbo fazer aparece em um ensaio sobre poesia de Jean-Luc Nancy (2013), intitulado “Fazer, a poesia”. Ao invés de inscrever o verbo com sua característica transitividade, o autor insere uma vírgula que tira de “a poesia” a classificação de objeto direto e faz com que os dois termos sejam sinonímicos. Nesse jogo, o filósofo ressignifica a ideia de poesia e do próprio fazer. O verbo não é um caminho para evidenciar um complemento. É o foco, tanto como a expressão que dele segue. O ensaio não mostra como se fazer a poesia. Melhor dizendo, a ambiguidade do título reside em que o próprio fazimento é fazer poesia. O verbo não precisa de transitividade, pois ele é absoluto. O fazer quer sempre o novo, o inesperado, o desconhecido. E a poesia é esse gesto de insatisfação, de incapacidade, de limitação do fazer, porque tal fazer não se esgota, é infinito. A tensão de uma palavra (como a do verbo fazer nos títulos), para que adquira pluralidade semântica através de uma construção sintática, é um exercício de poética. Nancy (2013, p. 416) propõe que o acesso a um limiar de sentido se dá poeticamente, isto é, que tal acesso define a poesia, “que ela não tem lugar senão quando ele tem lugar”. Tal limiar de sentido consiste em um entre-lugar entre o que se sabe e o que se pode vir a saber ou construir, ou seja, entre o significado e o ressignificado. Ponto de encontro entre duas perspectivas diferentes: o conhecimento prévio e o que a poesia desperta, já que pode ser o entre, um esvaziamento, mas também a aglutinação, onde um toca o outro e se mistura, se esquece a origem para se tornar outra coisa. A poesia não constitui um acesso a um limiar de sentido, ou seja, sua existência não se dá previamente. Ela atuará quando houver esse acesso, será definida por ele. Os dois coexistem. Isso conflita em um paradoxo: ao mesmo tempo em que um não precede o outro, um é definido pelo outro. Não se trata de um acesso que leva à poesia, nem da poesia que leva ao acesso: um brilha no momento que o outro brilha, estando ambos no limite de referencialidade26:

26 Por essa razão poesia pode tanto definir um gênero quanto ser um conjunto de qualidades que pode ser encontrado fora desse gênero. Assim há de se dissociar poesia e gênero poema, a estrutura versada, já que ela pode tanto ser encontrada em outros gêneros artísticos – na prosa, na pintura, na música – como fora da arte. Além disso, a estrutura versada não necessariamente compreenderá a poesia; o acesso de sentido que define a poesia não está na métrica ou na rima – exclusivamente –, mas na articulação de tais elementos com determinada função da linguagem, as figuras de linguagem, a predisposição dos sujeitos emissor e receptor. (NANCY, 2013)

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Os adjetivos positivos associados a uma tradição poética não definem poesia, mas sim ganham dimensão quando são afetados por ela. Assim não é possível dizer que a poesia aparece em condições de positividade, adjetivos belos, amorosidade ou felicidade, mas faz ressignificar o que é bonito, encontrando tal característica também na dor, na tristeza, na solidão ou no abandono. Mais do que beleza, ela pode surgir no que é feio, descartável, bruto. O caráter de subjetividade da poesia é definido mais pelo receptor do que pelo emissor. A projeção de um ideal de beleza por parte do autor não tem, necessariamente, efeito de poesia. Por isso a poesia não está condicionada a um gênero. A subjetividade de quem lê (re/des) constrói significados; “construir” como um trabalho, em que se levanta tijolos imagéticos, linguísticos, sonoros, semânticos, memoriais, para construir o espaço em que a poesia vai habitar. Mas que a comporta apenas por um instante e precisa ser recriado, repensado, reconstruído. Não são paredes que a fecham, nem muros que a impedem a passagem. É como o lugar da canção “A Casa”, de Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada/ não tinha teto, não tinha nada”. Essa estrutura que pode estar nas paredes de uma casa, como a casa cheia de memórias de cada sujeito, mas que transcende o material, a estrutura. Pode estar no período de um verso que espera a sua continuação (o enjambement) no verso seguinte, cada verso exercitando um novo fazer, um novo sentindo, reconstruindo o anterior. Pode estar no que é belo, de fato, mas está no lixo, no descarte, na margem. Por isso o exercício poético é um constante fazer. O poeta/escritor/emissor não conclui o sentido em um período, mas tal sentido é continuado a ser construído pelo leitor de tal trabalho. O trabalho literário de Bojunga remete à Penélope e seu desfazimento da trama, para poder tecer novamente e refazer o trabalho; remete à Sahrazad e sua costura de histórias, interrompidas, para serem recomeçadas na noite seguinte; remete aos quadros de Miró que abraçam o processo como estrutura da composição estética; remete ao artesão, que tem a marca genuína da mão, da voz. Remete ao gesto político de Alexandre que mantém viva a resistência. Não é uma operação com um fim, senão com continuidade; ela deve acontecer, ainda que seja dos restos. No final da narrativa de Fazendo Ana Paz, a escritora tenta destruir a tentativa falhada de contar uma história, a denúncia de que não conseguia dizer nada: “Aí eu comecei a rasgar a Ana Paz. Pra nunca mais (nunca mais, tá me ouvindo Ana Paz? NUNCA MAIS) eu sofrer a tentação de continuar escrevendo ela.” (BOJUNGA, 2007a, p. 84). Todavia, a destruição não consegue conter seu destino. Ao final da história, acontece um conflito entre a escritora que destrói seu trabalho e a personagem:

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Quando eu fui rasgar a cena em que a Ana Paz-moça encontra o Antônio lá no banco da praia, ela se levantou: - Não, mal ou bem, nessa hora eu tô me apaixonando por um homem, eu tô me sentindo tão viva; eu ainda não sei que eu vou me casar com ele, que eu vou ter filhos com ele, que eu vou ser infeliz com ele, mas tudo que eu vou viver vai ser tão intenso! e você me rasga? - Desculpa Ana Paz, mas não dá. - O quê? - Você não ficou resolvida, - Ora, não me vem com isso, quem é que fica resolvido? - Quem? muitos personagens, ué. Eu acabei de fazer um livro: tudo que é personagem ficou resolvido. - Pra quem? Pra você? Pra eles? Pra quem te lê? - Pra mim, é claro! Se sou eu que faço eles, eles têm que ficar resolvidos pra mim!

Há oposição da escritora. Ela quer um resultado, um livro concluído. Mas o texto lhe diz que não é preciso. É preciso que se faça, nada mais. Ele quer continuar resto incompleto. A narrativa luta para impedir sua própria destruição. Para isso, aceita a insuficiência. Se sacrifica para que possa ser livre: “Puxa, eu nasci para viver num livro! livre! (você sabe tão bem quanto eu que não tem nada mais livre que um livro).” (BOJUNGA, 2007a, p. 87). Que contradição? O modelo da narrativa oral orgânico cedeu ao livro impresso, rígido. Mas a narrativa se apropria do conceito estático do livro para se tornar livre, fluxo. Livre como um fio – de Ariadne, de Miró –, que deixa marcas da costura. Como a própria representação da escritora, pelo retrato de Carlos Scliar, em Feito à Mão (figura 18) indica: permanecer rastro. A partir da fragmentação. Da incapacidade. Se compreende como um processo, sempre inacabado, não resolvido – por fazer. Mas, por isso, livre:

– Você não tá resolvida, vê se entende! – Mas por que que eu não posso ser assim mesmo? Assim: não resolvida, feito você diz, descosturada, mal acabada, tanto pedaço de mim rasgado (sabia que você me rasgou demais?). Você sonhou pra mim uma vida toda bem feita, só que a tua ideia não deu certo e eu fiquei desse jeito. Mas por que que você precisa rasgar o que eu fiquei?

Retorna-se, aqui, ao início deste capítulo, às leituras de A casa da madrinha e A Bolsa Amarela. O texto de Lygia sempre buscou matéria na periferia da história. Às margens. Em personagens miseráveis e condicionados pela vida dura. No Alexandre, na Raquel, no Pavão, nos vãos escondidos da bolsa. No medo da repressão, na vontade silenciada de ser livre. Nas feridas abertas, que teimam em cicatrizar. Talvez essa literatura seja mais uma representação do “chiffonier”, a personagem do poema “O vinho dos trapeiros” de Baudelaire, que Benjamin destacou:

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Muita vez, ao rubor de um revérbero e ao vento, Que à chama sempre é um golpe e ao cristal um tormento, Num antigo arrabalde, amargo labirinto De humanidade a arder em fermentos de instinto,

Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta, Nos muros a apoiar-se à imitação de um poeta, E sem se incomodar com os guardas descuidosos, Abre seu coração em projetos gloriosos.

Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime, Exaltando a virtude, abominando o crime, E sob o firmamento – um pálio de esplendor – Embriaga-se da luz de seu próprio valor. (BAUDELAIRE, 1964, p. 255)

Figura 18: Retrato de Lygia Bojunga, de Carlos Scliar.

Fonte: Encontros da Casa Lygia Bojunga. Disponível em: < http://encontrosliterarioscasalygiabojunga.blogspot.com/2019/> Acesso em: 23 fev. 2020.

Jeanne Marie Gagnebin comenta sobre o trapeiro:

O chiffonier, anota Benjamin, é a figura provocatória da miséria humana. Também é uma nova figura do artista. Com aquilo que é jogado fora, rejeitado, esquecido, com esses rastros/restos de uma civilização do desperdício e, ao mesmo tempo, da miséria, trapeiros, poetas e artistas constroem suas coleções, montam suas “instalações”. [...] Hoje não existe mais nenhuma certeza de salvação, ainda menos de Paraíso. No

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entanto, podemos – e talvez mesmo devamos – continuar a decifrar os rastros e a recolher os restos. (GAGNEBIN, 2006, p. 118)

Os catadores de material reciclável, de ferro-velho e de sucata, desempenham papel fundamental na manutenção dos centros urbanos, colaborando para a aplicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, através de “coleta, triagem, classificação, processamento e comercialização dos resíduos” (BRASIL, web). São profissões que contribuem para minimizar a ação das mãos exploratórias do sistema que nos cerca. E o fazem pelas margens, pelo silêncio, por gestos que não dizem nada, embora, caso interrompamos por um instante o correr da vida a fim de observar seus gestos, como Brecht propôs na sua dramaturgia, talvez, então, consigamos perceber o que eles querem dizer. E que relação com o trabalho do poeta? A arte Merz, de Kurt Schwitters, utilizando materiais que estavam à mão, matéria usada, para as composições plásticas e arquitetônicas, ou, quando na escrita, reciclando e desfigurando as palavras, queria “equilibrar disparidades e distribuir cúmulos” (SCHWITTERS, 2013, p. 144). As fotografias de realizadas em aterro sanitário, com a colaboração dos catadores de lixo no projeto, inseriu os profissionais como figuras políticas e criadoras na composição artística. A prática dos livros cartoneros, iniciada na Argentina, durante a crise econômica, como alternativa para manter viva o setor editorial, em que os artistas compravam os papelões dos cartoneros para a fabricação de livros artesanais, é a renúncia de práticas tecnológicas desenfreadas. Manifestações que se concentram na figura do trapeiro, de Baudelaire. Há similaridades entre o gesto de coleta, paciente, dos pedaços que sobram no mundo e a escrita artesanal da obra de Bojunga: gesto difícil, mas necessário.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho poético de Lygia Bojunga desafia taxonomias das mais diversas. Talvez seja literatura para crianças, mas a dureza de seus temas infere resistências quanto a proporcionar o encontro dos pequenos com os livros. Talvez seja literatura para adultos, mas o caráter lúdico e a linguagem simples distancia também esses. Talvez seja literatura autobiográfica, contudo – que petulância! – uma escritora não toca ou interage com seus personagens no mundo real, então só podem ser mentiras. Assim, é pura fabulação: mas mesmo isso se confunde ante a repetição das imagens memoriais. A pesquisa mostrou que essas classificações se tornam insuficientes e, diga-se de passagem, desimportantes. Como a própria matéria excedente de que é feita, o texto se desfaz e combate os discursos externos internamente. Nesse sentido, a abertura identificada na filosofia benjaminiana se mostra mais uma vez no trabalho de Lygia Bojunga: o seu texto não se fecha num sentido, numa classificação. Ele se abre para além do gênero em que atua, inserindo-se numa perspective de arte enquanto gesto político. Não somente o gesto de oposição ao qual o possibilitou, o contexto dos 1970. Mas gesto que se mantém no desejo do texto em coletar os rastros que possibilitam, silenciosamente e lentamente, a luta contra o condicionamento ao qual o mundo está submetido. Este tema, aliás, perpassou amplamente as discussões deste trabalho. O primeiro capítulo desenvolveu reflexões sobre memória e, conforme verificou, essa memória acontece por imagens. A imagem da casa como abrigo em Livro – um encontro – que pode ser inclusive prenúncio de uma descoberta erótica, relacionando a afetividade da origem maternal com o profano das ruas – dialoga com a casa enquanto ruína, que aparece em Fazendo Ana Paz; a casa como refúgio do medo, em A Bolsa Amarela; a casa como metáfora da miséria e da esperança em A casa da madrinha. E, consequentemente, transforma a imagem da infância que aparece na foto da capa em mero rastro de uma potência memorial. A porosidade que atinge a memória do espaço para qual se quer voltar – porosidade, uma vez que essa se apresenta pela descontinuidade, pelas intermitências, pelo vazio que lhe constitui e lhe mantém – atinge também os sujeitos, como visto no subcapítulo “Álbum fotográfico”. Foucault mostrou através de A vida dos homens infames, que apenas a insuficiência da biografia, vista nos registros esparsos do Hospital Psiquiátrico de Paris, os quais continham vidas infames, descartadas e miseráveis, poderia denunciar as relações de poder que marginalizavam aqueles indivíduos. Nesse sentido, Foucault fez o papel do chiffonier de Baudelaire, a seu modo.

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A memória, então, vem no sentido contraposto de mostrar uma lembrança: ela quer apagar-se em rastro. E só seguindo esses rastros mínimos fica possibilitado entender as relações do mundo. Assim, embora os textos de Bojunga possam suscitar uma autobiografia, percebido em tantas imagens e tantos dados coincidentes com a vida da autora – o texto dela se apropria dessas imagens ardentes e porosas para se desfazer da escritora e se tornar vestígio das potências de resistência que o fazer artesanal ali marcado carrega. Evidentemente, essa forma se dirige ao encontro da filosofia de Walter Benjamin, que tão fortemente marcou o desenvolvimento do segundo capítulo. O pensamento de Benjamin aponta as condições de trabalho artesanal que possibilitava a narrativa e a transmissão da experiência e sua decadência em função das forças do capital e da vida burguesa. Para que se mantivesse viva a transmissibilidade da experiência – através da história materialista que foge da cronologia e da narrativa do poder, bem como do progresso desenfreado – só é possível pela transformação da [Erlebnis] em matéria de trabalho, como indicou Proust, e do esquecimento, como mostrou Kafka. Isso significava a desconstrução da própria arte, verificada nos movimentos artísticos do século XX. Movimento essencial para os estudos desenvolvidos, pois vão ao encontro das práticas de fazer artístico que Lygia Bojunga narra em suas obras. Aliás, a narrativa pouco importa: ela se apresenta como rastro do verdadeiro trabalho que estrutura seus escritos. As questões artesanais que são identificadas no fazimento dos seus textos têm mais relação com o a vida de suas personagens esfaceladas do que parece à primeira vista. Pois o fazer artesanal – gesto que aparece na mão da costureira, dos artistas mexicanos, da passadeira, do oleiro – é o gesto político de denúncia, ao qual se ocupou seus escritos iniciais, de resistência, ou seja, o gesto expressado por Walter Benjamin, por Foucault, por Gagnebin, por Baudelaire, por Proust, por Kafka, por Machado, e tantos outros. Gesto que luta contra as amarras do poder, mesmo que pelas beiradas, ainda que com dificuldade, mas que mantém vivas as histórias do mundo, de todas as pessoas. Cabe ao leitor – ou pesquisador – desvendar esse gesto. Por isso, é contundente a relação que o trabalho poético de Bojunga, esse trabalho artesanal, tem com o próprio ato de fazer pesquisa. A pesquisa é um eterno fazer, é o trabalho infinito de Penélope. Que deve investigar a todo momento, e nunca se contentar com o fim – como esta certamente não o faz. É o trabalho que tenta desvendar os rastros e o processo por trás deles para entender mais precisamente, e muito insuficiente, as forças de poder da nossa sociedade. Com isso, pesquisa também é gesto político de resistência, que se aproxima do trabalho do sucateiro de Baudelaire. É o gesto que se mantém aberto para a própria continuidade.

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REFERÊNCIAS

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______. Notas sobre o gesto. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 4, p. 09-14, jan. 2008.

______. “Vórtices”. In: ______. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Tradução de Andrea Santurbano e Patrícia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018.

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