Como os ciclos rítmicos do sul da podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

Rogério Barroso Lopes1 Colégio Pedro II [email protected] https://orcid.org/0000-0003-2580-5932

Resumo: Neste texto, no formato de Relato de Experiência, exponho como meu aprendizado do konnakol impactou minha maneira de tocar guitarra, e como foi meu processo de compor e executar uma peça baseada nesses ciclos rítmicos. Este texto foi embasado no Artistic Research (BORGDORFF, KNUDSEN, LOPEZ-CANO & SAN CRISTÓBAL) e apoiado em escritos de práticas interpretativas (CARDASSI, HILL). Palavras-chave: Konnakol; Guitarra; Técnica; Artistic Research.

How South Indian rhythmic cycles can help acquire guitar technique: a study proposal

Abstract: In this text, in the Experience Report format, I explain how my konnakol learning impacted my guitar playing, and how it was my process of composing and performing a piece base don these rhythmic cycles. This text was base don Artistic Research (BORGDORFF, KNUDSEN, LOPEZ- CANO & SAN CRISTÓBAL) and supported by writings of interpretive practices (CARDASSI, HILL). Keywords: Konnakol; Guitar; Technique; Artistic Research.

Cómo los ciclos del sur de la India pueden ayudar a adquirir la técnica de guitarra: una propuesta de estudio

Resumen: En este texto, en el formato del Informe de Experiencia, explico cómo mi aprendizaje de konnakol afectó mi forma de tocar la guitarra y cómo fue mi proceso de composición y ejecución de una pieza basada en estos ciclos rítmicos. Este texto se basó en la investigación artística (BORGDORFF, KNUDSEN, LOPEZ-CANO & SAN CRISTÓBAL) y fue respaldado por escritos de prácticas interpretativas (CARDASSI, HILL). Palabras clave: Konnakol; Guitarra Elétrica; Técnica; La investigación artística.

1 Músico, arranjador e professor. Professor do Colégio Pedro ll Campus Engenho Novo l. Como guitarrista e violonista, acompanhou os artistas Tim Maia, Simone, Rio Jazz Orchestra e Banda Vitória Régia. Ao lado desta, acompanhou os cantores Seu Jorge, Jorge Benjor, , Frejat, Toni Garrido, entre outros. Como guitarrista e arranjador da Rio Jazz, acompanhou Ivan Lins, , Toninho Horta, João Donato e outros. Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 42

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

1. Introdução

Há alguns anos me interessei pelo estudo dos ciclos rítmicos da Índia, denominados de konnakol, pelo que havia de interessante nas sonoridades silábicas e, mais ainda, pelas possibilidades com deslocamentos rítmicos, onde frequentemente há superposições de diferentes compassos sobre um pulso comum, tético (SORRELL et al apud GUMBOSKI, 2012, p. 1039; PRIMON, 2018, p.27). Havia grande interesse da minha parte por tentar pensar a improvisação (assunto que me move intensamente como performer) numa perspectiva diferente das usuais, como a melódico-harmônica (a relação “escala x acorde”) e a aproximação dos idiomatismos do jazz (BAILEY, 1993). A partir de 2017 iniciei meus estudos com o professor Ricardo Passos (Porto, Portugal, 1977- ), após muitos anos estudando de forma autodidata. Com ele, fundamentei coisas que já estudava e fui apresentado a novas estruturas composicionais do konnakol, que trabalham com estruturas relativamente simples, mas que também se observam as características mencionadas de deslocamento de tempo. Passos mantém um canal no YouTube, e dentre os vídeos há uma composição rítmica de sua autoria, baseada no konnakol. Ao assistir o vídeo desta composição2, me senti inspirado a compor uma peça melódica baseada naquele ciclo rítmico, e dei à minha composição o nome de “Fareins & Paratha”. A peça imediatamente apresentou contornos de “estudo” para guitarra, pelo que oferecia de variedades de técnica de palhetada, o que me pareceu interessante pois subentendia que eu melhoraria minhas habilidades como guitarrista, mas também constituía grandes dificuldades, pelas mesmas razões que trariam ganhos técnicos. Com muita frequência componho coisas que estão para além de minha capacidade técnica na guitarra. Ao compor, não avalio racionalmente os desdobramentos técnicos subsequentes a uma ideia melódica que me parece boa. Não foi diferente quando me deparei com a composição que fiz inspirada pela peça de Passos, e à medida que tentava executá-la, tomava mais e mais consciência dos percalços. Era preciso descobrir quais os problemas que me impediriam de executar esta peça de maneira correta, qual era a natureza desses problemas, e quais seriam as estratégias mais adequadas para reverter este quadro. Este texto relata o processo de estudo da peça e as estratégias utilizadas para superar os problemas referentes à técnica guitarrística.

2. Entendendo o konnakol

Comumente descrito como um estilo sofisticado de percussão vocal, o konnakol é a arte performática da recitação rítmica do solkkatu, as sílabas rítmicas utilizadas na música e dança do sul

2 Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 43

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo da Índia, também chamada de música Carnática (YOUNG, 1998, 2015). As origens do solkkatu datam do século II (SANKARAN apud YOUNG, 2015, p.19). A função inicial desta silabação era indicar toques específicos em um instrumento de percussão chamado mridngam, mas o uso frequente fez a prática obter um mérito próprio como performance artística individual (YOUNG, 2015, p.10). Na composição de Passos, foram utilizadas as seguintes sílabas: Ta, Tom, Tari, Kita, Tiku, Taka, Talong, Ka, Dom e Din. Há algumas variações de pronúncia destas sílabas, observadas na transliteração do Apabhramsa (as sílabas mnemônicas do konnakol) para o português e o inglês (PASSOS, 2017; SEN apud YOUNG, 1998, p. 14). As sílabas estão associadas aos ciclos rítmicos segundo uma subdivisão, denominada nadai ou gathi (PASSOS, 2017; YOUNG, 1998, 2015). Esta subdivisão pode ser ternária (como em tercinas, denominado tisram), quaternária (quartos de tempo, chatusram), por 5 (como quiálteras de 5, kandam), ou ainda subdivididas em 6, 7 ou 9. No caso da composição de Passos, ocorre o chatusram nadai. Assim, temos um adi tala executado com subdivisões quaternárias. O ciclo rítmico (denominado tala) tem a ideia análoga a do entendimento de compasso na música ocidental. Na peça de Passos que inspirou minha composição, o ciclo rítmico é o adi tala, um ciclo de 8 pulsos apoiado em movimento de mãos feitas pelo performer que estiver recitando as sílabas. Como na Índia o konnakol é transmitido oralmente de mestre para discípulo (KRISHNAMURTTHY, 2013, p. 178), Passos desenvolveu uma escrita própria para facilitar o aprendizado de seus alunos brasileiros. Por exemplo:

Fig.1-exemplo de frase no konnakol utilizando a escrita inventada por Ricardo Passos, ao lado da escrita tradicional

No primeiro exemplo, “Ta” e “Tom” estão em quartos de tempo. O restante, sublinhado em negro, está em oitavos de tempo. O ponto ao lado de “Din” (segundo exemplo) indica que a sílaba dobrou de tamanho (de quarto para metade de tempo). Além disso, a cor azul indica onde incide cada pulso (tempo), sendo a sílaba em amarelo o tempo 1 (PASSOS, 2017)3. A peça composta por Passos é baseada em dois subgêneros do konnakol chamados farein e mora. O farein possui uma estruturação bastante simples, onde dois grupos de sílabas se repetem de

3 Esta é uma das muitas maneiras que os músicos ocidentais se valeram para descrever a silabação do konnakol sem o auxílio da partitura. Por considerá-la fácil de entender, optei por esta (Passos, 2017; Young, 1998). Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 44

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo um modo acumulativo, e sempre da mesma forma. Observando o exemplo extraído da própria composição de Passos:

Fig.2- Mora utilizando a escrita inventada por Ricardo Passos e escrita tradicional Observa-se que o trecho é todo baseado no grupo de silabas “TaTom” e “TarikitatikuTakaTarikita”, sendo o último desdobrado (em oitavos de tempo). As duas primeiras linhas são repetições literais dos dois grupos de silabas. A terceira linha propõe uma redução do primeiro grupo (“TaTom”) e do segundo (“Tarikita”), repetidos duas vezes sequencialmente. Na quarta linha, mantém-se a estrutura inicial. Na quinta linha, grupo de silabas reduzido se repete três vezes, para uma única vez da redução do segundo grupo. Na sexta linha, mais uma vez se repete a estrutura original. Para a sétima linha, ocorre uma ligeira “aumentação” do primeiro grupo reduzido (“TaTomTom”), repetido duas vezes, seguido de um único “Tarikita”. E finalmente na oitava linha, a estrutura original se repete. A estrutura se assemelha a um lied, mas invertido: em vez da primeira seção se repetir (a “pergunta”), ocorre o oposto_ é a “resposta” que se repete por todo trecho. Há na composição uma ponte entre o farein e a mora, que justifica a ideia de deslocamento rítmico já mencionado no texto.

Fig.3-ponte entre o farein e a mora

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 45

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

A célula “TamkitaTaTomTarikita”, repetida duas vezes, dá um sentido de compasso ternário dentro dos 8 tempos da adi tala (o “tikuTakaTarikita” fecha o ciclo), nas duas primeiras linhas; analogamente, ocorre o mesmo nos ciclos seguintes com “TamkitatikuTakaTarikita”, “Talong.kaDomTarikita” e, de uma forma ainda mais acelerada, em “Talong.kaDom” repetido três vezes. Aparece por último a mora, como descrito abaixo:

Fig.4- Mora, com a escrita alternativa e a tradicional

Observando-se os oito primeiros tempos, que equivaleriam a dois compassos quaternários, percebe-se a estrutura básica da mora, sendo cada um destes compassos um dos membros da frase. Ocorre que na estrutura fraseológica seguinte, o primeiro membro de frase se mantém, mas quando vem o segundo membro, ele é cindido, cortado, e termina em “Talong.ka Dom.” (ao invés do “Talong.ka DomTa Talong.ka Dom.”), criando a sensação de compasso “ternário” dentro da estrutura; esta mesma estrutura “ternária” é repetida mais uma vez, e quando viria a terceira repetição, a estrutura se acerta na quadratura quaternária, e o ta long ka dom transforma-se no inciso “Talong.ka DomTa Tom.”, sendo repetido três vezes, onde o último “Tam” é o tempo 1 do compasso final. Pode- se concluir que a mora é constituída por dois membros de frase, apresentados intactos na primeira exposição; na segunda, mantém-se o primeiro membro e ocorre a aumentação do segundo membro,

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 46

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo curiosamente obtida através da diminuição do mesmo, repetido e adaptado no que seria a terceira repetição para a quadratura. Ocorre que neste processo de “aumentação pela diminuição” ocorre um deslocamento rítmico, onde a terceira e última repetição do membro de frase é readaptado à estrutura quaternária, utilizando os “incisos” “Talong.ka DomTa Tom.” repetidos três vezes para que haja o reencaixe na estrutura quaternária. A escrita alternativa de Passos aponta para o que Seeger (1958) buscava com formas de escrita musical que abarcassem mais o sentido pleno da composição. Com tantos deslocamentos rítmicos, a escrita tradicional provavelmente traria mais confusão ao performer que tentasse executá-la, além de não dar o sentido de continuidade fraseológica que esse tipo de música pede (ROBINSON, 2013, p.5)4.

3. O processo

Este texto trata basicamente do processo de aquisição da técnica necessária a se executar a peça adequadamente, e quais foram os ganhos técnicos obtidos pela transposição das concepções rítmicas do konnakol a um instrumento como a guitarra. Para isso, é necessário destacar as diferentes técnicas de guitarra utilizadas na composição, buscar uma aproximação do objeto de pesquisa com o referencial teórico que embasa este texto, e a descrição de todo o processo do primeiro dia de estudo sistemático da peça (10/09/2018) até o dia de sua apresentação (03/12/2018), durante aula da disciplina “Seminários em Práticas Interpretativas I”, ministrada pelo prof. Cliff Korman, na UNIRIO.

3.1. Observando as diferentes técnicas de palheta

A composição trabalha com técnicas variadas de palhetada: a palhetada alternada, onde cada nota é plangida com ataques consecutivos de palhetada alternando-se para cima e para baixo, mesmo quando há troca de corda (LEAVITT, 2016) (), o string skipping (idem, 2016), onde as palhetadas são da mesma natureza que a alternada, porém ocorre um salto de cordas entre uma nota e outra () e o sweep picking, também chamado de sweep ou sweeping, onde a palheta faz uma varredura num grande número de cordas em uma única direção, havendo uma grande economia de movimento na mão direita, razão pela qual esta técnica

4 Exemplos do uso de escrita tradicional no konnakol podem ser observados em e em Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 47

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo também é chamada de economy picking (). Normalmente esta técnica é utilizada para se executar arpejos, porém Frank Gambale (2016) em seu livro Speed Picking propôs a utilização da técnica para situações de notas consecutivas como escalas. Nos links a seguir, aparecem vídeos do mesmo trecho da música em que primeiro aparece a versão definitiva da execução, em sweeps sobre a escala pentatônica (), e depois a versão anterior da execução, em palhetada alternada (). A grande questão sobre a composição é que as técnicas de palheta aparecem sucessivamente em um curto espaço de tempo. Como no exemplo a seguir, no trecho equivalente à ponte entre o farein e a mora, em que um grande pedaço é tocado com palhetada alternada, a seguir vem um sweep e retorna à palhetada alternada (). Ainda sobre o mesmo trecho, aparece uma das grandes dificuldades da peça: o fluxo de notas interrompido por uma síncope.

3.2. Dialogando com o referencial teórico

O campo do conhecimento denominado Artistic Research tomou vulto entre os anos de 2004 e 2011 (BORGDORFF, 2012, p. 13), e busca uma abordagem sobre a atividade artística em que a pensa como uma forma independente de produção do conhecimento, um pouco mais independente das formas de pesquisa acadêmica e pensado de forma similar à arte, onde as palavras muitas vezes não dão conta do entendimento total da obra. O que se busca, em última instância, é a transformação da academia num espaço de construção do saber em que possa se acolher formas não-discursivas de conhecimento, além de métodos de pesquisa e modos mais aprimorados de publicação e apresentação (BORGDORFF, 2012, p.xiv). Na maior parte das vezes, o artista está mais interessado na criação (o sentido da possibilidade) do que em observar e descrever coisas (o sentido da realidade). Entretanto, a criação é quase sempre apoiada pela observação. Segundo Borgdorff, a pesquisa em arte só acontece quando alguém intenciona seguir adiante com um estudo original, para que deste se expanda o conhecimento. Começa com questões que são relevantes no contexto da pesquisa, e emprega métodos apropriados (à pesquisa), os quais asseguram a validade e a confiabilidade dos achados da mesma. No meu caso em particular, venho desenvolvendo estudos que tratam questões técnicas que uma peça apresenta, e quais as estratégias que permitam superar tais questões, observando-se cuidadosamente todo o processo abordando a peça e suas questões técnicas a serem superadas. O presente Relato de Pesquisa, está inserido no âmbito dessas pesquisas.

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 48

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

Outro aspecto importante em uma Artistic Research é a preocupação com que o processo de pesquisa e os achados da pesquisa sejam documentados e disseminados. A prática da arte se qualifica como pesquisa se o seu propósito é expandir o conhecimento e o entendimento pela maneira que conduz uma investigação na e através dos objetos artísticos e processos criativos. O processo deve ser articulado, contextualizado, refletido a respeito e comunicado. A pesquisa se desdobra em e através dos atos da criação e da performance. No Artistic Research, a arte é o método e o resultado da pesquisa (BORGDORFF, 2012, p.21), para que os resultados obtidos ampliem o conhecimento acerca do objeto de pesquisa, para além do desenvolvimento pessoal do artista que a estuda (KNUDSEN, 2018). Especificamente sobre minha pesquisa, me interessava não apenas um ganho de aquisição de técnica decorrente do estudo sistemático da peça, mas observar todo o processo de maneira minuciosa me pareceu igualmente interessante. Minha hipótese era que, registrar, observar e analisar todo o percurso, revelaria dados importantes sobre processos de aquisição de técnicas de performance, mesmo que eu não atingisse o domínio técnico. Os insucessos desta empreitada poderiam indicar estratégias inadequadas ou um mau planejamento para a execução da peça, o que seria um indicativo importante sobre como executar melhor a peça em situações futuras.

3.3. Metodologia e diário (relato de experiência)

No presente texto, para a coleta de dados, foi utilizado a técnica notebook field que consiste em notas de campo, gravações em áudio e vídeo e reflexões de campo (LOPEZ-CANO & SAN CRISTOBAL, 2014, p. 89). Sendo assim, procedemos a tarefas como redigir relatos durante os dias de estudo, após ter-se registrado trechos do estudo em vídeo. Dada a extensão dos relatos e dos vídeos, optou-se por armazená-los em um diário, o que se coaduna com ideia de documentação e disseminação dos processos que se desejam no Artistic Research segundo Borgdorff (2019). Pelo diário é possível se perceber toda a trajetória da preparação à apresentação da peça, incluindo seus percalços; é o que descreveremos nas linhas a seguir.

3.4. Processo de estudo (de 10/09/2018 a 03/12/2018)

3.4.1. Primeira semana Durante as primeiras tentativas de tocar a composição em sincronia com a exibição do vídeo, toquei em um violão de cordas de aço, com a ação mais dura das cordas. Muitos trechos tiveram a execução comprometida (início e fim principalmente). Como é um fluxo constante de notas, em

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 49

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo muitos momentos a mão não respondia de maneira correta, e muitas notas falharam por causa do cansaço, o que pareceu requerer estratégias mais cuidadosas para que a peça soe adequadamente até o dia da apresentação (). Durante as tentativas subsequentes de tocar a peça, percebi a necessidade de separar a peça em blocos diferentes. A peça utiliza três técnicas distintas de palhetada. No primeiro momento todas as três técnicas são utilizadas. Insisti com o andamento final (73). Tentei a tática de inserir nota a nota da frase, o que não funciona de imediato, pois há de fluxo constante de força devido à ação mais dura das cordas do violão. O cansaço nas mãos tornou-se um impedimento à boa execução (). Ainda insisti com o andamento final e a estratégia de inserir nota a nota da peça, que na prática acabou por repetir-se um trecho inteiro. Não funcionou, e o cansaço nas mãos surgia sempre (). Finalmente baixei o andamento do metrônomo em 10 pontos, para que houvesse relaxamento nas mãos e limpeza das notas. Infelizmente a execução ainda ficou suja, principalmente o começo e em trechos em que se misturam as técnicas de palhetada. Insisti num trecho (compasso 3) (https://www.youtube.com/watch?v=IzMD245Yf2w&feature=youtu.be>). Inspirado pelos escritos de Hill (2002, p.132), tentei pensar digitações alternativas. Foi confuso no começo porque as digitações pareceram não dar o sentido das sílabas, especificamente em “Din. Tom Kitatikutakatrikita Dom Ta Dom” etc. (). Ainda tentando novas digitações, optei por uma digitação em sweeping, que me pareceu mais confortável, mas soou mais distante das sílabas em termos de articulação. Além disso, a digitação que acabei de propor não me livra totalmente de momentos de palhetada alternada e salto de corda (na síncope “talong. Ka Dom Ta Talong.ka Dom.”) e em alguns momentos o cansaço nas mãos torna a acontecer (https://www.youtube.com/watch?v=E7Ln52toHiY&feature=youtu.be>). Depois de quase uma hora tocando (esse foi o tempo médio diário estudando a peça), percebi a dificuldade de ter força física o suficiente pra ficar palhetando o tempo todo. As síncopes em particular me cansaram bastante, porque freiam o fluxo de notas, e aí acabava fazendo força pra parar. Gastei muito tempo no trecho “Din. Dom Kitatukutakatarikita Dom Ta Dom Kitatikutakatarikita” (). À noite no mesmo dia, concluí que era mais prudente baixar muito mais o andamento (54). Tendo uma outra digitação em sweeping, mais radicalmente dentro da proposta de Frank Gambale para pentatônicas (GAMBALE,

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 50

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

2016). Não ficou bem executado, mas seguia firme acreditando que o tempo daria conta de melhorar isso (https://www.youtube.com/watch?v=BYi9E0J3dU4&feature=youtu.be>). No dia seguinte, decidi começar a estudar no andamento 74. Tudo fluiu melhor, inclusive o sweeping da pentatônica, o que diminui muito o cansaço da mão da palheta. Senti cansaço na mão esquerda depois de uma passada inteira na peça (; ). Observei que muitas sílabas dão a entender que as notas deveriam soar mais staccato (“Taka”) e outras, mais legato (“Tari”). Deveria investigar isso mais profundamente, e ver como isso se traduz em palhetadas, acentuações e toques (). Percebi que seria preciso também preparar o recitativo antes de tocar, porque ele precedido da execução me deixava cansado, o que comprometia a execução ().

3.4.2. Segunda semana Só consegui iniciar os estudos semanais na quarta feira (18/04/2018). Toquei a peça num violão de cordas de nylon, que possui a ação menos dura nas cordas. Talvez pelo costume no outro violão, algumas coisas não ficaram tão precisas. Toquei a peça inteira algumas vezes. Depois parei em trechos onde houve dificuldade técnica (). No dia seguinte tentei esporadicamente tocar junto com o vídeo, mesmo tentando respeitar a ideia de estudar separado com o metrônomo, aumentado dois pontos por semana (). Apesar do pouco tempo estudando, insisti com a coisa de tocar junto com o vídeo e funcionou na maior parte da peça. À medida em que me cansava, a execução se tornou mais difícil. Refleti que aquele era o momento de checar nos textos da Luciane Cardassi, para saber como a autora lida com o cansaço na execução ().

3.4.3. Terceira semana Percebi que ao mudar o andamento de 56 pra 57, senti a mesma fadiga muscular da primeira semana. Me pareceu imperativo reler os textos supracitados de Cardassi (). No dia seguinte, quando estou no andamento 60, decidi estudar na guitarra daquele dia em diante, pois será o instrumento que tocarei no dia de apresentar a peça. Num primeiro momento foi muito ruim, em grande parte por questões pessoais alheias à música. Questões emocionais sempre interferem muito negativamente comigo. À

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 51

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo medida em que me acalmei, fui resolvendo as questões técnicas ().

3.4.4. Sétima semana Fiquei muito assustado porque fiquei muitas semanas sem encostar no instrumento. Tentei uma abordagem de adicionar nota a nota da peça, com o andamento em 60, tocando num violão de cordas de nylon. Optei por utilizar o legato na primeira metade de “TariTarikitaTikuTakaTarikita”. A segunda metade, executada em sweep picking, teve a execução muito ruim (). O metrônomo marcava 74 (não me recordo se tinha sido esse o último andamento, avaliando a transcrição dos vídeos de estudo; acho que não), o que parece bastante com o andamento final, e ficou muito difícil de tocar ().

3.4.5. Oitava semana Executei a peça num andamento relativamente confortável (60). Toquei com a guitarra desligada. Por ser uma guitarra do tipo semi-sólida, há um corpo acústico pequeno que não deixa a guitarra inaudível. Um pouco nervoso no início, mas fluiu. Aconteceu um pouco de cansaço por falta de fôlego com o recitativo (as sílabas), mas aconteceu bem. A leitura dos textos de Luciane Cardassi, suas considerações sobre fixação muscular, e o subsequente respeito ao descanso entre as repetições da execução (RICHERME, 1997, p.74, apud CARDASSI, 2006, p. 54), tiveram um impacto positivo (). Por causa da questão gerada do grande fluxo de notas que abruptamente são interrompidas por notas mais lentas ou síncopes, observei mais atentamente como a mão da palheta se comporta, me remetendo à ideia do desenvolvimento de uma memória muscular para cada trecho da peça (CARDASSI, 2006, p.51). Ainda estou decidindo sobre o uso de legato em alguns trechos (). Ao reler o texto de Hill ("From Score To Music", 2002), quando o autor fala sobre buscar uma imagem mental clara, refleti sobre minha trajetória com a música. Eu supunha ter uma eu teria uma imagem mental clara, já que eu era o seu compositor da música. E os resultados ao tocá-la me frustravam muito. Só que um detalhe me passou desapercebido: que eu deveria TREINAR a imagem mental da peça durante o tempo que eu estava estudando. Isso não aconteceu em momento algum (). No dia seguinte, tentei uma antecedida da recitação das sílabas, andamento 63. Me senti cansado por causa da recitação. Alguns momentos, para minha surpresa, falharam sem que houvesse explicação, pois normalmente não me causavam problemas ().

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 52

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

3.4.6. Nona semana Então, subitamente, sem que eu sequer tivesse alcançado passo a passo pelo estudo diário aumentando os pontos do metrônomo a cada semana, eu me vi capaz de tocar no andamento desejado, junto à gravação do vídeo, por duas vezes. Percebi que em alguns momentos aparecia a fixação muscular (CARDASSI, 2006, p.58), mas era gerenciável e não me impedia de tocar o que se esperava. Acabei não me agradando muito da sonoridade de certos trechos, em particular os de sweeping no final da peça. Algumas vezes eu percebi que recitar antes de tocar me cansava pra efetivamente tocar. Adotei como estratégia ir recitando e, perto de iniciar a execução na guitarra, parar de recitar pra descansar.

3.4.7. Apresentação da peça (03/12/2018) Finalmente, chegou o dia da apresentação para a turma. O trecho final em sweep picking funcionou satisfatoriamente (1:22-1:45), mas partes anteriores que pareciam resolvidas, não (0:59- 1:13). Analisando em retrospecto, talvez tenha faltado realmente estudar a peça de maneira sistemática, dia a dia, ponto a ponto do metrônomo ().

4. Considerações finais

Durante o processo do primeiro dia de estudo sistemático da peça até sua apresentação em público, ainda que possa se dizer que não se tenha chegado integralmente aos objetivos pretendidos em termos de performance, muitas lições foram depreendidas durante o percurso. A principal delas é como o cuidado na preparação de uma peça aproximam ou afastam do sucesso da empreitada. Dito assim, a afirmação soa ingênua de tão óbvia. Entretanto, documentar cada etapa do processo, incluindo aí a própria ausência de preparação, me inseriu no processo artístico de uma maneira que até então não havia vivenciado, e aumentou consideravelmente minha consciência sobre respeitar e obedecer prazos na preparação de uma peça. Dos textos relacionados a práticas interpretativas que foram pesquisados para a preparação da peça, o de Luciane Cardassi (2006) ajudou enormemente pelo que elucida sobre o desenvolvimento de uma memória muscular para cada trecho da peça (CARDASSI, 2006, p. 51), a questão do respeito ao intervalo entre as execuções a fim de evitar a fixação muscular5 (CARDASSI, 2006, p.58) e a aceitação da lentidão necessária ao processo (CARDASSI, 2006, p.55), o que também é citado por Hill (2002, p.142). O texto supracitado também

5“Contração simultânea e com forças iguais dos músculos exores e extensores até que a mão e o braço quem impedidos de se movimentar “ (RICHERME, 1997, p.74, apud CARDASSI, 2006, p.56). Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 53

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo me instigou ao desafio de propor digitações totalmente diferentes por conta do modo de palhetar, o que se tornou uma necessidade por conta da fixação muscular gerada por algumas digitações (HILL, 2002, p.132; idem, p.138-139). Estou em pleno processo de incorporar o konnakol a diversos aspectos musicais como percepção rítmica, técnica, composição e improvisação. Este é um pequeno recorte das muitas etapas a serem vencidas. Ainda que não tenha ocorrido da melhor forma possível, as questões levantadas por textos de práticas interpretativas foram um norte importante para que esta etapa fosse de alguma forma superada.

Referências

BAILEY, Derek. Improvisation: its nature and pratice in music. Estados Unidos: Da Capo Press, 1993. BORGDORFF, Henk. The Conflict of the Faculties_ Perspectives on Artistic Research and Academia. Holanda: Leiden University Press, 2012. CARDASSI, Luciane. Sequenza IV de Luciano Berio: estratégias de aprendizagem e performance. In: Per Musi, n.14, p.44-56. , 2006. GAMBALE, Frank. Speed Picking. Estados Unidos: Hal Leonard Books, 2016. GUMBOSKI, Leandro. Análise rítmica e métrica de músicas indianas: algumas questões. In: Anais do II SIMPOM 2012, pags. 1034-1043. HILL, Peter. From score to sound. In: Musical Performance: a Guide to Understanding. Estados Unidos: Cambridge University Press, 2002. KNUDSEN, Peter. Artistic Research, Introduction. (Apresentação em slides Power-Point, exibidos durante aula da disciplina “Seminário de Práticas Interpretativas I” (PPGM-UNIRIO), no dia 27 de agosto de 2018. KRISHNAMURTHY, Rohan. Virtual Gurukulavasa: Tradition and Inovation in Online Carnatic Percussion Pedagogy. Tese de doutorado. Estados Unidos: University Of Rochester, Rochester, NY. LEAVITT, William. A Modern Method For Guitar, Vol. 1, 2 & 3. Estados Unidos: Berklee Press, 2016. LINDSEY, Michael. The Karnatic Tabla: Cross-Cultural Music Synthesis In South Indian Percussion Performance. Dissertação de mestrado. California, Estados Unidos: University Of California, Santa Cruz, 2018. LÓPEZ-CANO, Ruben. Pesquisa artística, conhecimento musical e a crise da contemporaneidade. In: Art Research Journal/Revista de Pesquisa em ArteARJ | Brasil | V. 2, n. 1 | p. 69-94 | jan. / jun. 2015 LÓPEZ-CANO, Ruben & SAN CRISTÓBAL, Ursula. Investigación Artística en Musica_ problemas, métodos, experiencias y modelos. Espanha: Conaculta Fonca, 2014. PASSOS, Ricardo. Adi Tala Capítulo 1. Apostila em formato de arquivo Word. Adquirida em agosto de 2017. Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 54

Como os ciclos rítmicos do sul da Índia podem ajudar na aquisição de técnica de guitarra: uma proposta de estudo

PRIMON, Angelo. Ciclos e arcos rítmicos como estrutura no processo composicional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Música. Trabalho de conclusão de curso, 2018. ROBINSON, N. Scott. Tradition and renewal: the development of kanjira in South India. Tese de doutorado (PhD degree). Kent, Iglaterra: College Of The Arts of Kent University, 2013. YOUNG, Lisa. Konnakol: The History And Development od Solkattu_ The Vocal Syllable_ Of The Mridangam. Dissertação de Mestrado. Melbourne, Austrália: University Of Melbourne, 1998. ______. The Eternal Pulse: Creating with konnakol and its adaptation into contemporary vocal performance. Tese de doutorado (PhD degree). Melbourne, Austrália: Monash University- Faculty of Arts, 2015.

Fonogramas

HERMETO PASCOAL. Aula de Natação (58 seg). [Compositor] In:______. Festa dos Deuses. Rio de Janeiro: Philips 510 407-2, 1992. 1 CD (ca. 60 min), faixa 8 . ______. Pensamento Positivo (1min 07seg). Hermeto Pascoal [Compositor] In:______. Festa dos Deuses. Rio de Janeiro: EMI, 1992. 1 CD (ca. 60 min), faixa 5. ______. Três Coisas (1m 43seg). Hermeto Pascoal e Mário Lago[Compositores] In:______. Festa dos Deuses. Rio de Janeiro: Philips 510 407-2. 1 CD (ca. 60 min), faixa 9.

Documentos da internet:

CARANATIC SYLLABLES PERFORMED, BACKED BY TRACK, PLAYED ON DRUMS AND WESTERN NOTATION. Disponível em . Acesso em 26 de dezembro de 2018. KONNAKOL in ADI TALA: Bônus Track in “The Gateway of Rythm”. Disponível em . Acesso em 26 de dezembro de 2018. PASSOS, Ricardo. Sistema rítmico indiano e sua aplicação a outras músicas. Disponível em . Acessado em 25 de outubro de 2018.

Texto recebido em: 10/05/2019 Texto aprovado em: 05/07/2019

Interlúdio: Revista do Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II - Ano 7, n. 11 - 2019 55