Caminhando Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo v. 15, n. 2 – p.1-256, jul./dez. 2010

0pgrosto.indd 1 25/11/2010 11:46:40 0pgrosto.indd 2 25/11/2010 11:46:40 Caminhando v. 15, n. 2 – p.1-256, jul./dez. 2010

Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo

EDITEO São Bernardo do Campo, 2010

0pgrosto.indd 3 25/11/2010 11:46:40 Caminhando Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo v. 15, n. 2 – p.1-256, jul./dez. 2010

Catalogação preparada pela bibliotecária Aparecida Cornelli Tavares (CRB 8-3781) – Biblioteca Dr. Jalmar Bowden

Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, v. 15, n. 2, 2º semestre de 2010. São Bernardo do Campo, SP: Editeo / Umesp, 1982.

Semestral Publicação da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Universidade Metodista de São Paulo

ISSN 1519-7018 1. Teologia – Miscelânea 2. Teologia – Periódicos CDD 230.02

Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – FaTeo Diretor: Rui de Souza Josgrilberg Conselho Diretor Presidente: Rev. Paulo Dias Nogueira Lina Maria Lopes Lia Euniace Hack da Rosa Robson Alexandre Perreira Rev. Marcos Barboza Bispo Assistente: Paulo Tarso de Oliveira Lockmann

Comissão Editorial Blanches de Paula Helmut Renders José Carlos de Souza Magali do Nascimento Cunha Tércio Machado Siqueira

Conselho Consultivo Internacional Dr. Joerg Rieger (Perkings School of Theology, Southern Methodist University, Dallas, TX, EUA) Dr. Luís Wesley de Souza (Chandler School of Theology Emory University, Atlanta, EUA) Dr. Michael Nausner (Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen, RFA) Dr. Nestor Miguez (ISEDET, Buenos Aires, ARG) Dr. Ted Jennings (Chicago School of Theology, EUA) Dr. Tércio Bretanha Junker (Christian Theological Seminary, Indianapolis, EUA)

Editor Helmut Renders Revisão Flávia Fornazari Toledo Tradução Glenn Ivan Ynguil Fernandez Editoração eletrônica Maria Zélia Firmino de Sá Capa Cristiano Freitas

Ed i t e o Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Rua do Sacramento, 230 – Rudge Ramos – 09640-000 São Bernardo do Campo, SP – Telefone: (11) 4366-5958 Editora: [email protected] Editor da revista: [email protected] Revista on-line: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA

0pgrosto.indd 4 25/11/2010 11:46:40 Sumário

Editorial Helmut Renders 9

dossiê: Missão no século 21 no Brasil Apresentação / Presentation / Presentación Nicanor Lopes 15

“Sempre tendes os pobres convosco”: Jesus é contra a caridade em Mateus 26.6-13? “Ye have the poor always with you”: Jesus is against charity in Matthew 26:6-13? “Siempre tendréis pobres con vosotros”: ¿Jesús está en contra de la caridad en Mateo 26, 6-13? Anderson de Oliveira Lima 21

Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão Mission in Brazil in the 21st Century: mission as com-passion Misión en el siglo XXI en el Brasil: la misión como com-pasión Roberto Zwetsch 34

Entre a possibilidade e a contingência: vida e legado de Bispo Isac Aço Between possibility and contingency: live and legacy of Bishop Isac Aço Entre la posibilidad y la contingencia: vida y legado del Obispo Isac Aço Norberto da Cunha Garin 51

Movimento Voluntário Estudantil (MVE): uma das raízes históricas da Conferência de Edimburgo em 1910 Student Volunteer Movement (SVM): one of the historical roots of the Edinburgh Conference in 1910 Movimiento Voluntario Estudiantil (MVE): una de las raíces históricas de la Conferencia de Edimburgo en 1910 Moisés Abdon Coppe 64

Missão e Estado laico: anotações para uma reflexão preliminar Mission and secular State: Notes for a preliminary reflection Misión y el Estado laico: Apuntes para una reflexión preliminar Roseli Fischmann 75

0pgrosto.indd 5 25/11/2010 11:46:40 “Inimigos do mundo” e “'amigos' da humanidade”: reconciliação, inimizade e amizade na teologia wesleyana como elementos para uma teologia pública “Enemies to the World” and “` friends’ of mankind “: reconciliation, friendship and enmity in as elements for a public theology "Los enemigos del mundo" y "`amigos´ de la humanidad": reconciliación, amistad y enemistad en la teología Wesleyana como elementos para una teología pública Helmut Renders 94

O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para a missão da igreja The phenomenon of population aging as challenge to the church’s mission El fenómeno del envejecimiento de la población como un desafío a la misión de la iglesia Paulo Dias Nogueira 118

ARTIGOS

Entre salmos e parábolas: leitura bíblica a partir da análise teológico-literária Between Psalms and parables: Bible reading and literal-theological analises Entre Salmos y parábolas: lectura bíblica a partir del análisis literario-teológico Hugo Fonseca 130

Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade – formas de ordenamento para o fenômeno brasileiro religioso atual Locke and Rawls: tolerance and reasonableness – planning for the forms of religious cur- rent Brazilian’s phenomenon Locke e Rawls: tolerancia y razonabilidad – formas de ordenamiento para el fenómeno brasileño religioso actual Elnora Gondim Osvaldino Marra Rodrigues 143

Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos Therapeutic and spiritual care: an approach to working with groups Cuidado terapéutico y espiritual: un enfoque de trabajar con grupos Anete Roese 156

O Estagio Supervisionado nas Faculdades de Teologia: teoria e prática de um dos componentes curriculares The Supervised Internship in Schools of Theology: theory and practice of one of the components of the curriculum Las prácticas supervisadas en las facultades de teología: la teoría y la práctica de un de los componentes Geoval Jacinto da Silva 168

Culto e entretenimento na sociedade do espetáculo Worship and entertainment in a society of spectacle Culto y entretenimiento en la sociedad del espectáculo Luiz Carlos Ramos 180

0pgrosto.indd 6 25/11/2010 11:46:40 As ferramentas perdidas da educação: tradução comentada [parte 1] The lost tools of learning: a commented translation [part 1] Las herramientas perdidas de la educación: la traducción anotada [parte 1] Gabriele Greggersen 189

Documentos e Declarações

“Que ninguém pense em fazer todos os homens iguais”: uma reação metodista brasileira de 1910 ao Congresso em Edimburgo “Let no one think to make all men equal”: a Brazilian Methodist reaction from 1910 con- cerning the Congress of Edinburgh “Que nadie piense hacer todos los hombres iguales”: una reacción Metodista brasileña en relación a el Congreso in Edimburgo J. M. Lander; A. Cardoso da Fonseca, Helmut Renders 206

Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963: o evangelho social num documento direcionado às Igrejas da Convenção Batista Brasileira Manifest of the Baptist Ministers of Brazil 1963: the social gospel in a document ad- dressed to the Churches of the Brazilian Baptist Convention Manifiesto de los Ministros Bautistas del Brasil de 1963: el evangelio social en un documento dirigido a las Iglesias de la Convención Bautista Brasileña Helmut Renders, Nicanor Lopes 212

Resenhas

Repensando a práxis da missão da igreja à luz dos desafios do século 21 Rethinking the practice of the Church’s mission in the light of the challenges of the 21st century Repensar la práctica de la misión de la iglesia a luz da de los desafíos del siglo 21 Pedro Jiménez Celorrio 223

Vivenciar a com-paixão: a missão na América Latina diante o século 21 Living with com-passion: the mission in Latin America before the twenty-first century Viver com-pasión: la misión en América Latina ante el siglo 21 Helmut Renders 228

O sagrado na política The Sacred in Politics El sagrado en la política Lothar Carlos Hoch 235

Educação e espiritualidade: pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência Education and spirituality: persons with disabilities, their invisibility and emergency La educación y la espiritualidad: las personas con discapacidad, su inivisbilidad y emergencia Rosa Gitana Krob Meneghetti 238

0pgrosto.indd 7 25/11/2010 11:46:40 Registros

Relação de autores e autoras / Notes on contributors / Relación de autores y autoras 241 Normas para colaboração 244 Guides for contributors 246 Normas para colaboradores 248 Relação de permutas / Journals exchange / Intercambio de revistas 250 Diretórios e Indexações / Directories and Indexation / Directorios e Indización 255 Pareceristas em 2010 / Reviewers in 2010 / Revisores y revisoras em 2010 256

0pgrosto.indd 8 25/11/2010 11:46:40 Editorial

A revista Caminhando termina o ano de 2010 com muitas razões para agradecer: pelos/as autores/as e suas contribuições substanciais e criativas; pelas/os pareceristas que com muita competência e o devido cuidado leram as pesquisas e ajudaram no seu aprofundamento; pela equipe editorial composta por Cristiano Freitas (capa), Fagner Pereira dos Santos (assistente administrativo), Glenn Ynguil (tradução para o espanhol) Flávia Fornazari Toledo (revisão), e Zelia Firmino de Sá (diagramação). A partir desta edição, cada revista terá um Dossiê sob a responsabi- lidade de editores/as especializados/as na respectiva ênfase de pesquisa. Somos gratos pela disposição do Coorde-nador do Curso EAD e douto- rando Nicanor Lopes que assumiu este primeiro Dossiê com a ênfase no tema da missão. O Dossiê da revista do primeiro semestre de 2011: “O processo de ressignificação e aplicação de imagens do AT na prática pastoral de evan- gélicos brasileiros” investigará um aspecto do cristianismo contemporâneo brasileiro bastante característico. Já o Dossiê do segundo semestre de 2011 se dedicará a questões pastorais. Ao lado do Dossiê encontramos ainda diversos artigos das três áreas: Bíblia, Teologia / História e Pastoral. Consolidamos na revista a seção das Resenhas e das Declarações e Documentos, ambas parcialmente relacionadas com a ênfase do Dossiê. Nos Registros entrou a lista das/os pareceristas do ano de 2010 e cresceu o número das indexações (agora quatro) e das permutas. Contamos com os seus retornos e esperamos as suas submissões de artigos, resenhas ou propostas para as outras seções.

Atenciosamente, Helmut Renders Pela equipe editorial

Revista Caminhando v. 15, n. 2, p. 9-11, jul./dez. 2010 9

1editorial.indd 9 25/11/2010 11:47:02 Editorial

The journal Caminhando ends the year 2010 with many reasons to be thankful: for our male and female authors and their substantial and creative contributions; for the reviewers who with great competence and due care have read the research papers and helped in its development; for the edito- rial team composed of Cristiano Freitas (cover), Fagner Pereira dos Santos (administrative assistant), Glenn Ynguil (Spanish translation) Fornazari Flávia Toledo (text editor), and Zelia Firmino de Sa (text designer). From this edition, each journal will contain a Dossier on the respon- sibility of editors who are specialists in its research emphasis. We are grateful for the attitude of the academic director of the program for online studies and PhD candidate Nicanor Lopes who first took on this task: his dossier focus on mission. In 2011 are coming up the following dossiers: First semester 2001, "The process of application and redefinition of images of the OT in evan- gelical pastoral practice in Brazil": it will investigate a rather typical aspect of contemporary Brazilian Christianity. The dossier of the second semester of 2011 will be dedicated to pastoral issues. Beside the Dossier we continue to publish several articles on Bible, Theology / History and Pastoral Theology. The other sections of our journal, as the Review Section and the sec- tion Declarations and Documents, are partly contemplating the emphasis of the Dossier. Besides this we included in this journal the names of the reviewers in 2010 and the still growing number of indexations and journals exchange. We count on your returns and wait for the submission of articles, reviews or proposals for other sections.

Sincerely, Helmut Renders For the Editorial Team

10 Helmut RENDERS, Editorial

1editorial.indd 10 25/11/2010 11:47:03 Editorial

La revista Caminhando termina el ano de 2010 con muchas razones para agradecer: por los/as autores/as y sus contribuciones substanciales y creativas; por las/os pareceristas que con mucha competencia y el de- bido cuidado leyeron las investigaciones y ayudaron en su profundización; por el equipo editorial compuesto por Cristiano Freitas (capa), Fagner Pereira dos Santos (asistente administrativo), Glenn Ynguil (traducción en español) Flávia Fornazari Toledo (revisión), y Zelia Firmino de Sá (diagramación). A partir de esta edición, cada revista tendrá un Dossier bajo la res- ponsabilidad de editores/as especializados/as en su respectivo énfasis de investigación. Somos agradecidos por la disposición del Coordinador del Curso EAD y doctorando Nicanor Lopes que asumió este primer Dossier con énfasis en el tema de la misión. El Dossier de la revista del primer semestre de 2011: “El proceso de resignificación y aplicación de imágenes del AT en la práctica pastoral de evangélicos brasileños” investigará un aspecto del cristianismo contem- poráneo brasileño bastante característico. Por otro lado, el Dossier del segundo semestre de 2011 se dedicará a cuestiones pastorales. Al lado del Dossier encontramos aún diversos artículos de las tres áreas: Biblia, Teología / Historia y Pastoral. Consolidamos en la revista la sección de Reseñas y de las Declaracio- nes y Documentos, ambas parcialmente relacionadas al énfasis del Dossier. En los Registros entró la lista de las/los pareceristas del año de 2010 y creció el número de indexaciones (ahora cuatro) y el de permutas. Contamos con sus sugerencias y esperamos el envío de sus artículos, reseñas o propuestas para otras secciones.

Atentamente, Helmut Renders Por el equipo editorial

Revista Caminhando v. 15, n. 2, p. 9-11, jul./dez. 2010 11

1editorial.indd 11 25/11/2010 11:47:03 1editorial.indd 12 25/11/2010 11:47:03 Dossiê: Missão no século 21 no Brasil

2apresentação.indd 13 25/11/2010 11:47:28 2apresentação.indd 14 25/11/2010 11:47:28 Apresentação

A Revista Caminhando inaugura com esta edição um novo formato editorial: cada revista terá um Dossiê (eixo norteador da edição). Em 2010, os/as cristãos/as celebraram o Centenário de Edimburgo. A Conferência Missionária Mundial realizada em Edimburgo em 1910 é considerada por grande parte dos missiólogos como um divisor de águas no movimento missionário e ecumênico. Assim coube a Faculdade de Teologia da Igreja Metodista (FATEO) organizar uma SEMANA WESLEYA- NA tendo como eixo norteador o tema da missão. Para um evento desta magnitude a FATEO convidou o Rev. Dr. Wesley Ariarajah, pastor e pro- fessor metodista do Sri Lanka, com uma vasta experiência no ministério pastoral de igrejas locais e professor de História das Religiões e do Novo Testamento no seminário protestante comum das igrejas no Sri Lanka. E, em 1981 ele foi convidado a participar do Conselho Mundial de Igrejas, em que liderou o Conselho de Diálogo Inter-Religioso por mais de dez anos. A partir de 1992 atuou como secretário-geral adjunto do CMI. Os textos a seguir não são as palestras do Rev. Dr. Wesley Ariarajah, para isso teremos uma publicação especial, porém esta revista foi esboça- da neste contexto de celebrações do centenário de Edimburgo, a partir de um tema intrigante: “Missão no século 21 no Brasil”. Afinal, como essa missão acontece nas ações pessoais, eclesiásticas, comunitárias, etc.? A revista para dar conta deste novo formato de Dossiê está dividida com as seguintes seções: Bíblia, Teologia/História e Pastoral. Outros artigos que não procuram atender o eixo do Dossiê também completam a obra com as mesmas seções e ainda contempla a apresentação de Documentos e Decla-rações e Resenhas. Os autores do Dossiê sobre missão apresentam reflexões importan- tes na construção de um conceito missiológico contemporâneo para a realidade brasileira, por exemplo: Anderson de Oliveira na seção de Bíblia apresenta um texto significativo na construção exegética do evangelho de Mateus, 26.6-13. O que significa para a missão a expressão de Jesus “Pois sempre tendes os pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes”. Será esta de-claração uma contradição no projeto religioso/econômico do evangelho, que sempre encoraja a caridade entre seus participantes de sua comunidade? Oliveira vai examinar este texto para encontrar a solução para esta aparente contradição. Se você deseja aprofundar sua reflexão com o tema da Responsabilidade Social da Igreja e temas relacionados ao envolvimento social junto aos empobrecidos, como tema da missão, não pode deixar de ler este artigo. Roberto Zwetsch, missiólogo Luterano nos empolga com o seu texto “Missão no século 21: Missão como com- paixão”. Neste artigo Roberto reafirma sua tese principal da missão, isto

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2apresentação.indd 15 25/11/2010 11:47:28 é: o sentido da com-paixão, ele reflete sobre o significado da missão cristã no mundo pluralista do início do século 21. As desigualdades e injustiças que se abatem principalmente sobre as pessoas mais pobres e vulneráveis serão superadas a partir do conceito bíblico da compaixão. O metodista Noberto Garin [favor checar grafia do sibrenome] procura em seu artigo resgatar o testemunho missionário de Isac Aço, que foi bispo metodista, e seu ministério foi marcado pelo forte acento em promover a justiça e a dignidade das pessoas. Garin afirma que a ação missionária de Aço tinha uma preocupação central com os empobrecidos. Esta preocupação o levou a lutar por uma Igreja voltada aos empobrecidos e solidária com as pessoas socialmente excluídas. O artigo procura construir uma biografia do Pastor/ Educador/Bispo, abrangendo desde o seu nascimento em Angola, na Áfri- ca, em 1935, até o seu falecimento trágico em acidente automobilístico, em 1991. Ainda na Seção de Teologia/História, Moisés Coppe, analisa o movimento voluntário estudantil na organização da Conferência Missioná- ria de Edimburgo de 1910. Segundo Coppe evidencia também que o que concebemos na atualidade como movimento ecumênico decorre da ação e atuação dos estudantes missionários, sob a sombra de John Raleigh Mott, um dos mais expressivos líderes do movimento ecumênico incipiente. Fi- nalizando a Seção de Teologia/História, Renders vai refletir sobre “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”: reconciliação, inimizade e amizade na teologia wesleyana como elementos para uma teologia pública. O artigo procura, a partir da teologia pública construir um referencial do conceito de amizade. Para isso explora-se a compreensão da reconciliação e do conceito da “amizade” na teologia wesleyana em textos chaves ingleses, estadunidenses e brasileiros. Finalizando a parte de Dossiê da Revista, na seção de pastoral Paulo Nogueira, pastor metodista da Catedral de Piracicaba desenvolve a reflexão sobre o fenômeno do envelhecimento populacional. Nogueira ao analisar as mudanças ocorridas na sociedade e ao constatar que a população brasileira possui uma expectativa de vida maior que em outros tempos, desafia a pastoral afirmando: “não podemos nos furtar como igreja de nossa responsabilidade missionária e pastoral junto aos idosos. Para responder às perguntas o que fazer e como fazer, precisamos dedicar tempo e energia em reflexão”. A revista ainda contém artigos importantes nas seções de Bíblia, Teologi-a/História e Pastoral. Portanto, este número da Revista Caminhando é dedicado a todas e todos que buscam neste século 21 reflexões que colaboram com a construção de um conhecimento teológico sustentável para a realização da missão de Deus hoje.

Nicanor Lopes Editor da Seção “Dossiê”

16 Nicanor LOPES, Apresentação

2apresentação.indd 16 25/11/2010 11:47:28 Presentation

The Journal Caminhando debuts with a new editorial format: each magazine will have a Dossier. In 2010 Christianity celebrated the centenary of Edinburgh. The World Conference in Edinburgh in 1910 is regarded by many as missiological watershed in the missionary and ecumenical movement. So the Faculty of Theology of the Methodist Church (FATEO) decided to organize a Wesleyan Week discussing the issue of mission. For an event of this magnitude FATEO invited the Rev. Dr. Wesley Ariarajah, Methodist pastor and teacher of Sri Lanka with extensive experience in pastoral ministry in local churches and professor of History of Religions and the New Testament at the Theological College of Lanka, maintained by the Protestant Churches in Sri Lanka. In 1981 he was invited to join the World Council of Churches, where he presided for over ten years the Council of Interreligious Dialogue. From 1992 he served as Deputy General Secretary of the WCC. The following texts are not the speeches of the Rev. Dr. Wesley Ariarajah, for they will be published separately. Nevertheless, the journal dialogs with the celebrations of the centenary of Edinburgh, parting form the intriguing theme: "Mission in the 21st century in Brazil". After all, how is it that mission takes place among us in personal, church, and commu- nity activities? Within the Dossier, as common to the journal, the textos are organized as follows: Bible, Theology / History and Pastoral Care. Other items that do not fit within the Dossier, but, do articulate mission, can be found in the section Declarations and Documents and Book Reviews. The authors of the Dossier have important considerations in building a contemporary missiological concept considering Brazilian reality. Anderson de Oliveira, in the Bible-Section, presents a significant exegeses of Matthew 26.6-13. What does it mean when Jesus is quoted with the words: "For the poor always ye have with you, but me ye have not always." Is this declaration challenging the gospels economics, which always have encouraged charity among the members of the community? Oliveira examines the text to find a solution to this apparent contradiction. If you want to deepen your reflection on the issue of the social responsibility of the Church and on social involvement with the impoverished as topics related to mission, you cannot miss this article. Roberto Zwetsch, Lutheran missiologist, excites us with his text "Mission in the 21st Century: Mission as com-passion." In this article he reaffirms his main theses concerning

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2apresentação.indd 17 25/11/2010 11:47:28 mission, namely: a sense of com-passion as the meaning of Christian mission in the pluralistic world of the early 21st century. Inequalities and injustices that strike mainly on the poorest and most vulnerable should be overcome from the biblical concept of compassion. The Methodist pastor Noberto Garin, in his article, seeks to rescue the missionary witness of Methodist bishop Isac Aço whose ministry was marked by strong emphasis on promoting justice and dignity. Garin says that the missionary work of Aço had its central focus on impoverished people. This concern led him to fight for a church dedicated to solidarity with the impoverished and socially excluded. The article tries to construct a biography of this pastor, educator, and Bishop, ranging from his birth in Angola, Africa, in 1935 until his death in a tragic automobile accident in 1991. Still in the Section of Theology / History, Moses Coppe, analyzes the importance of the student volunteer movement in the organization of the Edinburgh Missionary Conference of 1910. According to Coppe, there is evidence that what we conceive today as the ecumenical movement is coming up with actions and activities of student , followers of John Raleigh Mott, one of the most important leaders of the ecumenical movement in its infancy. Finally, in the same section, Renders will reflect on "Enemies oft he world" and "` friends' of mankind ": reconciliation, enmity, and friendship as elements for a public Wesleyan theology. This article builds public theology based on the concept of friendship. For that it explores the understanding of re- conciliation and the concept of "friendship" Wesleyan theology discussing English, American, and Brazilian key texts. Finishing the Dossier, within the Section on Pastoral Theology, Paulo Nogueira, a Methodist pastor of the Cathedral of Piracicaba, develops reflections on the phenomenon of population aging. Nogueira analyzes the changes in society and the fact that the Brazilian population has a greater life expectancy than at other times, the pastoral challenges saying, "we cannot shirk our responsibility as a church missionary and pastoral work among the elderly. If we want be able to answer questions on what to do and how to do it we need to devote time and energy to think about it." So the central issue of this Dossier is dedicated to all people who seek reflections that contribute to the construction of a sustainable theo- logical knowledge so we may be able to carry out God's mission today.

Nicanor Lopez Editor of the Dossier

18 Nicanor LOPES, Presentation

2apresentação.indd 18 25/11/2010 11:47:28 Presentación

La Revista Caminhando inaugura con esta edición un nuevo formato editorial: cada revista tendrá un Dossier (eje orientador de la edición). En 2010, los/las cristianos/as celebraron el Centenario de Edimburgo. La Conferencia Misionera Mundial realizada en Edimburgo en 1910 es con- siderada por grande parte de los misiólogos como un marco del movimiento misionero y ecuménico. Así, le correspondió a la Facultad de Teología de la Iglesia Metodista (FATEO) organizar una SEMANA WESLEYANA teniendo como eje orientador el tema de la misión. Para un evento de esta magnitud la FATEO invitó al Rev. Dr. Wesley Ariarajah, pastor y profesor metodista de Sri Lanka, con una vasta experiencia en el ministerio pastoral de iglesias locales y profesor de Historia de las Religiones y de Nuevo Testamento en el seminario protestante común de las iglesias en Sri Lanka. En 1981, él fue invitado a participar del Consejo Mundial de Iglesias, en el que lideró el Consejo de Diálogo Interreligioso por más de diez años. A partir de 1992 actuó como secretario general adjunto del CMI. Los textos a seguir no son las ponencias del Rev. Dr. Wesley Aria- rajah, para eso tendremos una publicación especial; sin embargo, esta revista fue delineada en este contexto de celebraciones del centenario de Edimburgo, a partir de un tema intrigante: “Misión en el siglo 21 en el Brasil”. ¿ A fin de cuentas, como esa misión ocurre en las acciones personales, eclesiásticas, comunitarias, etc.? Para darse a basto en este nuevo formato de Dossier, la revista está dividida con las siguientes secciones: Biblia, Teología/Historia y Pastoral. Otros artículos que no buscan atender al eje del Dossier también comple- tan la obra con las mismas secciones y aún contempla la presentación de Documentos y Declaraciones y Reseñas. Los autores del Dossier sobre misión presentan reflexiones importan- tes en la construcción de un concepto misiológico contemporáneo para la realidad brasileña, por ejemplo: Anderson de Oliveira en la sección de Biblia presenta un texto significativo en la construcción exegética del evangelio de Mateo, 26.6-13. ¿Qué significa para la misión la expresión de Jesús “Porque siempre tendréis pobres con vosotros, pero a mí no siempre me tendréis”? ¿Será esta declaración una contradicción en el proyecto religioso/económico del evangelio, que siempre estimula la caridad entre sus participantes de su comunidad? Oliveira va a examinar este texto para encontrar la solución para esta aparente contradicción. Si usted desea profundizar su reflexión con el tema de la Responsabilidad Social de la Iglesia y temas relacionados al envolvimiento social con los empobrecidos, como tema de la misión, no puede dejar de leer este artículo. Roberto Zwetsch, misiólogo luterano nos entusiasma con su texto “Misión en el siglo 21: Misión como com-pasión”.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, p.15-20, jul./dez. 2010 19

2apresentação.indd 19 25/11/2010 11:47:28 En este artículo Roberto reafirma su tesis principal de la misión, o sea: el sentido de la com-pasión, él reflexiona sobre el significado de la misión cristiana en el mundo pluralista del inicio del siglo 21. Las desigualdades e injusticias que se vuelcan principalmente sobre las personas más pobres y vulnerables serán superadas a partir del concepto bíblico de la compasión. El metodista Norberto Garin busca, en su artículo, rescatar el testimonio misionero de Isac Aço, que fue obispo metodista, y cuyo ministerio fue marcado por el fuerte acento en fomentar la justicia y la dignidad de las personas. Garin afirma que la acción misionera de Aço tenía una preocupa- ción central con los empobrecidos. Esta preocupación lo llevó a luchar por una Iglesia que se dedique a los empobrecidos y solidaria con las personas socialmente excluidas. El artículo busca construir una biografía del Pastor/ Educador/Obispo, abarcando desde su nacimiento en Angola, África, en 1935, hasta su trágico deceso en accidente automovilístico, en 1991. Aún en la Sección de Teología/Historia, Moisés Coppe, analiza el movimiento voluntario estudiantil en la organización de la Conferencia Misionera de Edimburgo de 1910. Según Coppe, demuestra también que lo que conce- bimos en la actualidad como movimiento ecuménico emana de la acción y actuación de los estudiantes misioneros, bajo la sombra de John Raleigh Mott, uno de los más expresivos líderes del movimiento ecuménico incipien- te. Finalizando la Sección de Teología/Historia, Renders va a reflexionar sobre “Enemigos del mundo” y “`amigos´ de la humanidad”: reconciliación, enemistad y amistad en la teología wesleyana como elementos para una teología pública. El artículo busca, a partir de la teología pública construir un referencial del concepto de amistad. Para eso se explora la comprensión de la reconciliación y del concepto de “amistad” en la teología wesleyana en textos claves ingleses, estadounidenses y brasileños. Finalizando la parte del Dossier de la Revista, en la sección de pastoral Paulo Nogueira, pastor metodista de la Catedral de Piracicaba desenvuelve la reflexión sobre el fenómeno del envejecimiento poblacional. Nogueira, al analizar los cambios ocurridos en la sociedad y al constatar que la población brasileña posee una expectativa de vida mayor que en otros tiempos, desafía a la pastoral afirmando: “no podremos omitirnos como iglesia de nuestra responsabilidad misionera y pastoral con los ancianos. Para responder a las preguntas qué hacer y cómo hacer, necesitamos dedicar tiempo y energía en reflexión”. La revista aún contiene artículos importantes en las secciones de Biblia, Teología/Historia y Pastoral. Por lo tanto, este número de la Revista Caminhando está dedicado a todas y todos los que buscan en este siglo 21 reflexiones que colabo- ran con la construcción de un conocimiento teológico sustentable para la realización de la misión de Dios hoy. Nicanor Lopes Editor de la Sección “Dossier”

20 Nicanor LOPES, Presentación

2apresentação.indd 20 25/11/2010 11:47:28 “Sempre tendes os pobres convosco”: Jesus é contra a caridade em Mateus 26.6-13?

“Ye have the poor always with you”: Jesus is against charity in Matthew 26:6-13?

“Siempre tendréis pobres con vosotros”: ¿Jesús está en contra de la caridad en Mateo 26, 6-13?

Anderson de Oliveira Lima

Resumo Neste artigo, nós estudaremos um texto do evangelho de Mateus, 26.6-13. Nele, uma mulher anônima derrama um perfume sobre a cabeça de Jesus, e então, ele diz aos seus discípulos: “Pois sempre tendes os pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes” (v. 11). Esta sentença parece uma contradição no projeto religioso/econômico do evangelho, que sempre encoraja a caridade entre seus participantes de sua comunidade. Aqui, nós vamos examinar este texto para encontrar a solução para esta aparente contradição. Palavras-Chave: Evangelho de Mateus; exegese; cristianismo primitive; eco- nomia cristã.

Abstract In this article, we’ll study a text of Matthew’s Gospel, 26.6-13. In it, a anony- mous woman poured a perfume over the Jesus’ head, and then, he says to your disciples: “The poor you will always have with you, but you will not always have me” (v. 11). This sentence seems a contradiction on the religious and economic project of the gospel that always encourages the charity among the participants of the community. Here, we’ll going to examine this text to find a solution about that apparent contradiction. Keywords: Gospel of Matthew; exegesis; primitive Christianity; Christian Eco- nomy.

Resumen En este artículo vamos a estudiar un texto del Evangelio de Mateo, 26,6-13. Allí, una mujer anónima derramó un perfume sobre la cabeza de Jesús, a continua- ción, le dice a sus discípulos: “A los pobres siempre los tendréis con vosotros, pero a mí no siempre me tendréis” (v. 11). Esta frase parece una contradicción en el proyecto religioso y económico del evangelio que siempre estimula la caridad entre los participantes de la comunidad. Aquí, vamos a examinar este texto a fin de encontrar una solución para esa aparente contradicción. Palabras clave: Evangelio de Mateo; exégesis; cristianismo primitivo; economía cristiana.

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3anderson.indd 21 25/11/2010 11:47:55 Introdução

Este trabalho propõe-se à seguinte tarefa: investigar o texto de Ma- teus 26.6-13, no qual se destaca a sentença em que Jesus diz que os discípulos sempre teriam os pobres com eles, mas que nem sempre o teriam. O motivo que nos leva a tal investigação é que nos últimos anos temos defendido que há um projeto religioso/econômico no evangelho de Mateus onde se incentiva a caridade ilimitada como meio de sobrevivência de uma comunidade em crise (LIMA, 2010), e este texto pode ser lido como um problema em nossa hipótese. Para melhor introduzir o/a leitor/a no problema, podemos afirmar que após todas as destruições deixadas pela invasão romana na Palestina para conter a rebelião judaica de 66-70 d.C., grupos religiosos diversos confrontaram-se em busca de uma posição de destaque no novo e con- turbado cenário religioso nacional. O grupo de Mateus era um dos mino- ritários tipos de judaísmo que naqueles dias começaram a sofrer pressão por parte de um novo movimento crescente na Galileia, uma coalizão de judeus que chamamos de judaísmo-formativo. Ao passo que esta coali- zão, em que os fariseus possuíam posição de destaque, desenvolvia-se e institucionalizava-se em direção ao que depois seria o judaísmo rabínico, criava também mecanismos de exclusão dos grupos concorrentes em sua área de maior influência (OVERMAN, 1997, p. 57). É aí que entra o pro- blema econômico da comunidade mateana, pois dentre estes mecanismos de exclusão estavam sanções socioeconômicas como a proibição de se associar, empregar ou negociar com qualquer um dentre os “hereges”. Era necessário, em virtude desse embate, que todo participante da pequena comunidade de Mateus escolhesse entre Jesus e seu antigo status social que lhe proporcionava certa estabilidade (GARCIA, 2004, p. 60-63). Daí o evangelista iria incluir em seu evangelho um programa de resistência e sobrevivência: ele acusaria os fariseus de fazerem uma leitura desu- manizante da Torá, incentivaria a caridade intracomunitária para suprir os vitimados pelas sanções econômicas, prometeria recompensas celestiais para àqueles que escolhessem Jesus e não os bens materiais, etc. Nou- tras palavras, o autor via no cuidado mútuo a maneira mais segura para que superassem a crise econômica que lhes era imposta pelo ambiente competitivo daquela sociedade multifacetada. É por tudo isso que julgamos necessária a leitura cuidadosa de Mateus 26.6-13, que à primeira vista parece apresentar uma negação ao programa de sobrevivência mateano. Será que ao dizer que os pobres sempre estariam com os discípulos, e aprovar o desperdício do caro perfume, o texto estaria diminuindo a importância da caridade? Vamos tentar solucionar o problema por meio de uma análise exegética do texto mateano.

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3anderson.indd 22 25/11/2010 11:47:55 1. Mateus 26.6-13

Começamos citando logo abaixo o texto de Mateus 26.6-13, nosso objeto de estudo, segundo nossa própria tradução feita a partir do texto grego.1 Procuramos nesta primeira apresentação já subdividir o texto da perícope em três subunidades: a primeira é narrativa (vv. 6-7), introduz a cena com dados geográficos relevantes além de narrar a ação surpre- endente da mulher; a segunda é mais dialogal, trazendo as palavras dos discípulos diante da atitude da mulher e a resposta de Jesus a eles (vv. 8-12); e finalmente temos a terceira parte que traz um surpreendente louvor à memória daquela mulher (v. 13): 6 Ora, encontrando-se Jesus em Betânia, na casa de Simão, o lepro- so, 7 aproximou-se a ele uma mulher tendo um vaso de alabastro com perfume valioso e derramou sobre a cabeça dele à mesa. 8 E vendo os discípulos indignaram-se dizendo: “Para que este des- perdício? 9 Pois poder-se-ia vendê-lo por muito e ser dado aos pobres”. 10 Porém, Jesus conhecendo, disse-lhes: “Por que causais aborrecimentos à mulher, pois bom trabalho fez para mim? 11 Pois sempre tendes os pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes. 12 Pois lançando este perfume sobre o meu corpo, para o meu sepultamento fez. 13 Em verdade vos digo: onde for pregado este evangelho em todo o mundo será falado também o que esta fez para sua lembrança”

2. Uma boa obra para comigo (v. 6 – v. 7)

O texto começa com uma abertura narrativa bastante tradicional nos evangelhos, no qual se fornece ao leitor dados introdutórios como (sobre) quem é a personagem em questão e a localização geográfica da cena que se desenrolará. Mesmo em tão breve abertura, o narrador deixa-nos neste caso duas informações que podem até parecer secundárias, mas que mostrar-se-ão fundamentais para a sequência da leitura. Primeiro, ele diz que Jesus se encontrava em Betânia, um povoado próximo a Jerusa- lém. Esse dado é relevante se levarmos em conta que o evangelho de Mateus concentra a missão de Jesus na Galileia, e que sua ida à Judeia só acontece no final de sua vida. Temos um momento novo na trajetória de Jesus, e consequentemente circunstâncias novas. O segundo se refere à casa do leproso em que acontece a unção de Jesus e a subsequente discussão. A Galileia fora, desde o início, o alvo principal da missão de Jesus (OVERMAN, 1997, p. 156); lá não somente o messias nasceu, como também arregimentou dali seus primeiros discípulos. Ao mencionar a

1 A tradução foi produzida a partir do texto grego de Nestle-Aland (27. ed., 1993).

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3anderson.indd 23 25/11/2010 11:47:55 Judeia o texto automaticamente nos remete aos últimos dias de Jesus, ao território que está sob controle dos inimigos. Já sabemos então que a perícope faz parte, na composição do evangelho, de seu clímax, da narrativa da paixão, ou ao menos é uma dobradiça que liga o ministério de Jesus à sua conclusão trágica, como sugere Weren (2006, p. 188-189, 200).2 Ficamos sabendo por meio da referência a Betânia que o tema que dá coesão às perícopes daqui por diante é a morte e a ressurreição de Jesus. Já não é a divulgação do Reino aos camponeses, a interpretação jesuânica da lei ou sua capacidade de curar e perdoar pecados que está em pauta, mas a oposição a Jesus por parte dos líderes religiosos e do império romano. Vamos atentar agora para o segundo detalhe relevante, que não é incomum nas narrativas sobre Jesus. Trata-se da sua presença na casa de um leproso. Segundo o Antigo Testamento os leprosos eram considerados imundos e deveriam habitar fora do arraial (Lv 13.45). Era exigida a separação da comunidade para evitar o risco de que o “impuro” contaminasse os “puros”, e essa contaminação, conforme eles concebiam, não era apenas de uma doença infecciosa, mas do próprio pecado ao qual a doença era atrelada. Por isso, quando alguém se dizia curado da lepra, não bastava mostrar a pele saudável, ele teria que ir ao sacerdote, o responsável pelos rituais religiosos, e oferecer sacrifícios, que eram feitos exatamente para a remissão dos pecados (veja Lv 13). Jesus, porém, contraria as leis de pureza da Torá indo até os excluídos como Simão, para que surpreendentemente pudesse purificar os impuros por meio de sua pureza. Observe que essa abertura narrativa aparentemente simples anuncia que Jesus um dia foi ao território inimigo, na Judeia, e ali afronta com seus gestos inclusivos alguns dos grandes paradigmas da religiosidade nacio- nais. O evangelista está dizendo que Jesus não era como os sacerdotes e fariseus, e que quando o galileu infiltrou-se na terra “santa” quebrou leis de pureza em favor dos marginalizados, gerando ódio e acabando preso e morto. Eis aí um gesto considerado inapropriado que vai ser somado a outros para conduzir Jesus à cruz. Depois dessa abertura narra-se a ação estranha de uma mulher anônima para com o próprio mestre (v. 7). Ela aproxima-se trazendo consigo um valioso frasco de perfume e derrama-o sobre a cabeça de Jesus. Essa atitude dá início à discussão que está no centro da períco- pe. Destaca-se em primeiro lugar que o gesto é digno de nota entre os participantes daquela reunião devido ao valor elevado que todos atribuem

2 O termo “dobradiça” (hinge) foi empregado por Win J. C. Weren para explicar a função dos textos de Mateus 4.12-17 e 26.1-16, que em sua opinião, cercam o corpus do evan- gelho em que se concentra o ministério de Jesus.

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3anderson.indd 24 25/11/2010 11:47:55 ao perfume. O texto em Marcos 14.5, talvez exagerando, até atribui ao perfume o valor de trezentos denários, aproximadamente o salário por um ano de trabalho. Seja qual for o motivo da omissão deste detalhe em Mateus, ele concorda em parte dizendo que aquele produto valia muito (v. 9). Na pior das hipóteses, a mulher demonstrou desprendimento em relação aos bens de valor do mundo (tema recorrente em Mateus) fazendo um alto investimento em Jesus. Se este investimento foi bem feito ou não, é o que saberemos no decorrer do texto. Percebe-se que Jesus está à mesa, ou seja, distraído enquanto provavelmente comia ou conversava com as pessoas presentes. Nota- mos que Mateus omitira o valor do perfume, mas agora ele acrescenta ao texto marcano a descrição de Jesus à mesa, o que nos faz perguntar pelo motivo dessa discreta inclusão. Diríamos que Mateus procurou deixar claro que se desenrolava um momento típico do ministério de Jesus; a comunhão de mesa com pessoas socialmente marginalizadas não era uma exceção, e por isso ninguém esperava a atitude daquela mulher. Em resumo, Jesus, completamente passivo em relação à ação da mu- lher, recebe mais do que uma unção com a finalidade de perfumar. Embora na história da leitura de Mateus tantas vezes se tenha atribuído a esta unção um significado régio, ou seja, que simbolizaria a unção de um rei, seguimos Ulrich Luz (2005, p. 112) que prefere considerar tal interpretação um exagero. Nós preferimos entender o ato de ungir Jesus com referência à cerimônia fúnebre, mas sobre isso discutiremos mais adiante. Nos dois primeiros versículos, que podemos unir pela linguagem narrativa como uma introdução ao diálogo subsequente, temos o paradoxo de que o Jesus puro no lugar impuro é tratado com uma grande honraria. A iniciativa daquela mulher anônima podia parecer escandalosa para os fariseus e até estranha para os discípulos, mas para os evangelhos de Marcos e Mateus ela estava compreendendo e de acordo com o ministério inclusivo de Jesus, que traz para perto de si leprosos e outros excluídos, e também trabalhando em favor do cumprimento da obra redentora que já se iniciara quando Jesus foi à Judeia.

3. Discípulos indignados (v. 8 – v. 9)

Começa agora uma nova seção da perícope, que Luz (2005, p. 112) delimita e chama de “diálogo de homens”. Esta nova seção irá do v. 8 ao 12. O autor passa a descrever um diálogo entre Jesus e seus discípulos que usa um número muito maior de palavras do que a própria narração do tema que discutem utilizara; aqui encontraremos o ensinamento que se queria transmitir por meio da perícope. A aparição dos discípulos até então ocultos não deve nos surpreen- der, mas parece-nos importante destacar que habilmente o autor os faz

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3anderson.indd 25 25/11/2010 11:47:55 se expressarem antes de Jesus. Os discípulos eram apenas expectadores em relação à unção ocorrida, mas o objeto da ação que é Jesus não se expressa. Ficamos ignorantes sobre sua reação; não há palavras, gestos ou expressões faciais descritas, e isso assim acontece porque a opinião de Jesus sobre a mulher, embora importante, deve também ser vista mediante a posição contrária dos discípulos. O autor poderia ter deixado os discípulos de fora, poupando a memória deles enquanto exaltava a mulher, mas quis distingui-los da mulher para fazer dela uma exceção de grande importância na narrativa da paixão. Falando agora do diálogo em si, notamos também que se coloca as palavras na boca dos discípulos sem nomear quem falava ou quem permanecera calado dentre o grupo, certamente para demonstrar ser esta era a voz unânime dos doze. Todos pensavam igualmente que a mulher estava desperdiçando valores. Se nunca tivéssemos lido a passagem antes, provavelmente até suspeitaríamos que os discípulos teriam razão em sua indignação, pois o movimento de Jesus fora formado por pessoas miseráveis, e os itinerantes como esses primeiros discípulos deviam rece- ber com gratidão ofertas como um caro perfume daqueles (LIMA, 2010). A iniciativa de investir suas posses no movimento do Reino de Deus era aceitável, mas na ótica deles, a mulher desperdiçou uma possível oferta para o movimento e para os simpatizantes carentes que eles alcançavam pelo caminho entre aldeias da Galileia. Não parece essa reclamação dos discípulos condizente com, por exemplo, o convite de Jesus ao jovem rico para que vendesse tudo, desse aos pobres e depois o seguisse (Mt 19.16- 22)? Poderíamos também julgar que a palavra dos discípulos representava a voz do mestre, mas o texto foi construído de forma que o leitor já sente que esses discípulos são os (antagonistas da história. Isso é sentido pela construção da fala dos discípulos: eles estavam indignados, enquanto a mulher parece agradecida, devotada, ou possuidora de alguma motiva- ção mais “nobre” do que a dos discípulos. Também parece-nos que uma ação repreensível da parte da mulher ou de quem quer que fosse, seria questionada diretamente por Jesus no evangelho, e não por porta-vozes como aqui acontece. Por certo vemos o texto começando a qualificar os discípulos de Jesus como contrários aos acontecimentos. Já no começo do relato da paixão há o destaque para uma figura feminina, que dá os primeiros sinais da fidelidade das mulheres no desenrolar dos acontecimentos (Mt 27.55; 28.1-10). Em contrapartida, os discípulos homens vão se tornando cada vez mais vexatórios, e veremos em seguida Judas traindo Jesus (Mt 26.14-16, 47-50), todos fugindo quando Jesus é preso (Mt 26.56), e Pedro negando conhecê-lo (Mt 26.69-75). O problema não é simples, precisamos examinar o texto mais de perto para compreender onde se encontra a culpa dos discípulos. Há

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3anderson.indd 26 25/11/2010 11:47:55 na própria história do desenvolvimento dos evangelhos canônicos dife- rentes interpretações desse mesmo evento. Como já observamos, logo após nossa perícope temos a traição de Judas, que vai aos sacerdotes com a intenção de entregar-lhes Jesus e inclusive pede uma recompen- sa em dinheiro por isso. Poderíamos supor que a ganância de Judas já influenciava sua crítica à “oferta” da mulher a Jesus? Essa hipótese não é a correta em nossa opinião, mas também não é tão absurda, principal- mente por vermos que no evangelho de João, que traz a história dessa unção de Jesus numa versão diferente,3 a história é interpretada dessa maneira. Lendo João 12.1-8, notamos que ali, embora a casa seja em Betânia, não é de Simão o leproso, mas de Lázaro, Marta e Maria; a mulher não é anônima como nos evangelho sinóticos, é a própria Maria quem unge Jesus, e aliás, nos pés e não na cabeça. Mas o ponto que queremos destacar é que a discussão em João não se dá com todos os discípulos como em Mateus, mas apenas com Judas (vv. 4-5), e o autor aproveita para acusar Judas de ladrão (v. 6), relacionando sua fala à sua ganância. Mas essa leitura, de que a crítica dos discípulos foi motivada pela ganância, embora encontre alguma razão de existir, não é a que prevalece nos sinóticos. Mais uma vez, deixaremos para apresentar a leitura que preferimos no final dessa exegese, pois ela se destacará no estudo dos últimos versí- culos. Por hora lembremos que o texto lido até aqui não nos informa clara- mente a razão da fala dos discípulos, e continuamos cheios de curiosidade sobre qual será o posicionamento de Jesus, agora em relação à mulher e aos discípulos. Ele, personagem principal do evangelho, certamente se imporá como juiz e nos revelará quem está com a razão. Neste caso, mais argumentos do evangelista seriam tempo perdido, pois não estamos mais interessados no que a mulher ou os discípulos têm a dizer, nós queremos ouvir Jesus, e o autor atende à nossa expectativa a seguir.

4. A posição de Jesus (vv. 10-12)

O v. 10 já começa nos mostrando que a opinião de Jesus não está alinhada às palavras dos seus discípulos.4 Literalmente o texto diz: “Porém, Jesus conhecendo, disse-lhes”. O particípio do verbo saber/ conhecer (gnósko), outro acréscimo mateano à sua fonte marcana (Mc 14.6), passa-nos o sentido de que Jesus então ficou sabendo do que os

3 Um problema bastante controvertido, mas não decisivo para a nossa pesquisa, é a possível dependência literária entre a narrativa da paixão de João em relação aos evangelhos. Por hora, estamos em acordo com John Dominic Crossan, que considera João dependente dos sinóticos ao menos quanto à narrativa da paixão (CROSSAN, 2004, p. 153-155). 4 Traduzimos por “porém” a conjunção grega é dé, para que tal discordância ganhe destaque.

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3anderson.indd 27 25/11/2010 11:47:55 discípulos diziam entre si. Quer dizer que há outro ponto negativo na fala dos doze que é o segredo, ou a não transparência de suas posições. É como se notassem a omissão de Jesus em relação à ação da mulher como aprovação, tecendo então seus comentários maliciosos “pelas cos- tas”. Na versão mateana eles não expuseram sua fala abertamente, mas murmuravam entre si e assim assemelharam-se aos inimigos de Jesus que o criticavam entre si mas sempre perdiam quando com ele debatiam. Porém, de alguma forma não revelada no texto, Jesus toma conhecimento do que eles estavam dizendo e responde, dirigindo-se exclusivamente aos discípulos. Agora cabe uma observação mais técnica. Esta perícope de Mateus foi classificada como sendo uma créia por Klaus Berger,5 gênero conhecido pelos tratados gregos de retórica que apresenta uma máxima pronunciada pelo personagem principal em resposta a uma determinada situação. Na definição breve de Woodruff: “Uma créia é uma anedota curta, em que um personagem de destaque age e/ou fala em uma maneira memorável” (2003, p. 55). Com base em tais definições, procuraríamos em nossa perícope por essa máxima nas palavras de Jesus, e entenderíamos a ação da mulher e a crítica dos discípulos como a situação criada para conduzir a créia a seu objetivo. A sentença está, em nossa opinião, concentrada no v. 11, mas antes de falar sobre ela vejamos o que mais Berger acrescenta à definição das créias: “De acordo com a forma da créia clássica, a resposta (ou parte dela) muitas vezes é formulada como uma gnome (máxima) ou sentença [...] Aí o horizonte judaico das créias se manifesta. Nas creias pagãs estão nesse lugar sobretudo citações de Homero” (BERGER, 1998, p. 76-77). Então, com base no que nos ensina Berger, imaginamos que um autor de origem judaica, conhecedor das tradições religiosas de Israel e também das memórias de Jesus de Nazaré, letrado no idioma grego e envolvido num ambiente helenizado,6 poderia não só compreender o uso do gênero creia como também aplicar uma máxima sapiencial jesuânica como seu ensinamento principal. Assim podemos explicar a narrativa da unção em Betânia, seja na versão marcana ou na mateana, como uma creia que recebe uma máxima jesuânica e um contexto narrativo próprio da paixão de Cristo.

5 Berger, de maneira resumida, classifica a créia como um gênero textual que designa uma fala ou uma ação ocasionada na vida de uma pessoa importante pela situação, po- rém, esta fala ou ação é central e seu significado transcende a situação que a originou (BERGER, 1998, p. 76-78). 6 Defendemos centros urbanos da Galileia como Séforis ou Tiberíades como a localização mais plausível para o grupo que produziu o evangelho de Mateus, o que possibilita a aplicação dessas características ao seu autor (LIMA, 2010, p. 37-43; 51-55).

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3anderson.indd 28 25/11/2010 11:47:55 Mas isso não é tudo. O autor de Mateus parece ter compreendido bem o uso marcano da créia, mas foi mais semítico em sua redação, como atesta o arranjo dado em sua versão para moldar a sentença do v. 11 em estilo poético judaico. No v. 10, Jesus abre sua fala acusando os discípulos com uma pergunta, dizendo que com o que diziam eles causa- vam aborrecimento, molestavam ou afligiam aquela mulher. Em seguida, no v. 11, Jesus rebate o argumento dos discípulos de que era melhor ter vendido o perfume para dar seu valor aos pobres pela sentença decisiva: “Pois sempre tendes os pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes”. As palavras de Jesus na verdade não negam a necessidade de se ajudar os pobres, e até confirmam o que acima dissemos, que o movimento de Jesus era formado e cercado por pessoas despossuídas e carentes de todo tipo de ajuda. A defesa da mulher concentra-se mesmo na ”opor- tunidade”, ou seja, os pobres temos a vida toda para ajudar, mas não há muitas oportunidades para se fazer o bem a Jesus, posto que como sabemos, ele estava prestes a ser assassinado. Veja as diferenças e semelhanças dessa sentença no quadro abaixo, e note como estas destacam a “oportunidade” reduzida de se fazer o bem a Jesus, motivo pelo qual o ato da mulher não aprovado:

pois sempre tendes os pobres convosco mas nem sempre tendes a mim convosco

Se lermos a mesma passagem na versão de Marcos 14.7, veremos que ali esta questão da oportunidade é ainda mais clara, pois está escrito também “... e quando quiserdes podereis a eles fazer bem...”. Parece- nos, também com base no quadro acima, que a motivação do autor de Mateus para eliminar tais palavras se deve apenas às suas preferências formais, ou seja, ele as excluiu para criar um paralelismo semítico neste ponto,7 fortalecendo as palavras de Klaus Berger citadas anteiormente sobre as possibilidades das sentenças das créias judaicas. Concluímos que consciente de que estava trabalhando sob uma créia, o evangelista deu destaque à sentença que responde os discípulos e apoia a mulher, fazendo dela uma espécie de dito sapiencial das vésperas da Paixão Cristo que saltava aos olhos semíticos pela sua repetição poética. Quanto ao v. 12, que encerra a fala de Jesus, podemos dizer que nele é que Jesus mostra a razão de sua aprovação em relação à ação da mulher mais abertamente. Ele, no texto, já sabia de sua morte, e vê a unção que recebeu como um ato de preparação para a cerimônia fúnebre

7 O comentarista Ulrich Luz (2005, p. 109) concorda que neste lugar, a diferença atestável entre Marcos e Mateus se deu pelo empenho do último por uma melhora estilística do texto.

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3anderson.indd 29 25/11/2010 11:47:55 que se aproximava. Lendo o texto dentro do contexto da paixão, desco- brimos que agora o que está em jogo é a perseguição dos inimigos, a morte na cruz, a ressurreição... Não parece sensato nesta ocasião fazer suposições que se distanciam demais desses temas. A unção imposta a Jesus pela mulher deve ser interpretada como a preparação antecipada de um corpo para seu sepultamento. Diríamos, para encerrar essa seção, que para o evangelho de Mateus, escrito quando a oportunidade de se fazer o bem a Jesus já se esgotaram há décadas (80-90 d.C.), o apelo para se fazer o bem aos pobres é que está em vigor. Isso se confirma pela leitura de Mateus 25.31-46, na qual se ensina que a maneira de se servir a Jesus no mundo agora é ser- vindo aos “pequeninos”. Assim, quem dá de comer ao faminto, por meio dele alimenta Jesus; quem hospeda um forasteiro, dá também acolhida a Jesus; quem veste o pobre que está nu, está vestindo Jesus, e assim por diante. Não que Jesus passou a ser após a crucificação uma pessoa carente dessas coisas, o que se pretende com esse texto é transmitir toda boa ação, seja ela motivada por gratidão a Jesus ou pelo senso de responsabilidade social, às pessoas com que os leitores conviviam. Então o texto de Mateus 26.6-13 não pode ser usado para se afirmar que Jesus dava pouco valor à ação social. Temos que ter em mente que Jesus já não existia (ao menos corporalmente) para os leitores do evangelho, e que a ação da mulher, ainda que defendida por Jesus, não poderia ser imitada outra vez. O que se deveria imitar não é a atitude da mulher, mas sua fé, que a levou a ungir o corpo ainda vivo de Jesus.

5. Para sua lembrança (v. 13)

Chegamos ao último verso da perícope e estamos prontos para res- ponder à grande questão que é: por que tamanho louvor àquela mulher sem nome? O texto já não estava completo após a sentença do v. 11 disseminar o pensamento central jesuânico e o v. 12 responder que Jesus interpretou positivamente o ato da unção porque estava prestes a morrer? Mas este versículo é marcante demais para o descartarmos, e como bem Overman observou, “A partir deste versículo, os acontecimentos adquirem vida própria. A narrativa segue com maior rapidez em direção à morte de Jesus” (1999, p. 387). Com exceção da mulher, ninguém compreende a missão de Jesus, e isso facilita e talvez até acelere o andamento das coisas em direção à cruz. A partir do posicionamento favorável de Jesus, sabemos que os evangelistas concordavam também com a ação da mulher, e quem melhor explica a sublime declaração de louvor de Jesus para com ela John Dominic Crossan (2004, p. 590), que comentando a versão mar- cada escreveu:

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3anderson.indd 30 25/11/2010 11:47:55 Essa mulher não identificada crê nas profecias sobre morte e ressurreição de Jesus feitas por ele em Mc 8.31; 9.31 e 10.33-34. Ela crê nelas e sabe, portanto, que se não ungi-lo para o sepultamente agora, nunca poderá fazê- lo mais tarde. É por isso que recebe a espantosa declaração de louvor, sem paralelo em todo o evangelho.

No texto, a mulher não só quis fazer uma boa obra, ela o fizera porque acreditava que o corpo de Jesus merecia um tratamento fúnebre digno, mas crendo que ele ressuscitaria, ela não esperou sua morte para fazê-lo. Era a única chance de dar ao corpo mortal de Jesus tal trata- mento, mas a atitude acima de tudo quer expressar que aquela mulher foi a única que creu em sua ressurreição antes das aparições, e creu também em sua morte, sofrendo por ele antes mesmo de sua prisão. Isso responde tudo. A admirável hipótese proposta por Crossan, que já vínhamos soltan- do em partes ao longo da exegese, explica ainda outro detalhe, que é o fato de os sinóticos não darem nome a esta mulher. Ela diferencia-se das demais mulheres nomeadas que depois irão ao túmulo de Jesus para ungi-lo em Marcos 16.1, e obviamente não o encontram lá. A intenção delas demonstra não crerem nas promessas de ressurreição como aquela mulher anônima crera (CROSSAN, 2004, p. 589). Em outras palavras, esta mulher não está entre aquelas que seguiam Jesus desde a Galileia, pois aquelas, conhecidas, próximas, não creram nos avisos de Jesus e sofriam pelo morto que já voltara a viver.8 Outra conclusão a que podemos chegar a partir da interpretação de Crossan, é que a fé e a demonstração de gratidão dessa mulher, que era de Betânia, devem ser relacionadas à entrada de Jesus na casa do leproso Simão. Ela parece ser agora, alguém próxima ao leproso, e vendo como Simão foi tratado de modo surpreendentemente acolhedor pelo galileu que com ele comeu, creu também em suas palavras e mis- são. Foi por não conter sua gratidão e fé que ela ungiu Jesus com seu valioso perfume antes de sua morte e ressurreição. O gesto inclusivo que destacamos no começo, expresso na menção à casa de um leproso como cenário para a narrativa, só faz sentido assim. É verdade que alguns detalhes descobertos por Crossan em sua exegese a partir do evangelho de Marcos não estão tão claros em Mateus. Aqui não há, por exemplo, uma clara intenção das mulheres discípulas de ungir o corpo de Jesus após sua morte, e isso dificultaria a explicação para a omissão da identidade da mulher se lêssemos apenas Mateus

8 Apenas como observação, vemos aí o impedimento para qualquer leitura feminista do texto, que privilegia a fé das mulheres sobre a dos homens. Todos os antigos seguido- res de Jesus, sejam homens ou mulheres, revelaram-se falhos quando o clímax de sua existência corpórea chegou. Aquela mulher é uma absoluta exceção.

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3anderson.indd 31 25/11/2010 11:47:55 (compare Mc 16.1 com Mt 28.1). Podemos supor que o próprio autor de Mateus, ao aproveitar o material marcano, não tenha notado esse detalhe enriquecedor de Marcos que distingue essa mulher anônima das demais seguidoras, porém, Mateus não tirou da perícope o principal, a fé dife- renciada desta mulher, fato que a fez especial e levou Jesus a louvá-la de maneira surpreendente. Em todo caso, acreditamos que só seguindo o método de Crossan, que voltou-se para Marcos e para a versão mais antiga desta passagem, é que podemos compreender todos os detalhes acima expostos. Com base na coerência dessa última interpretação, vemos a outra leitura proposta pelo evangelho de João, que destaca a ganância de Judas e diminui o ato de fé da mulher que lá ganha até um nome, como desnecessária para a interpretação dos sinóticos.

Conclusão

Era previsível que o texto nos traria desafios, porém, ao final dessa exegese fica claro que nosso objetivo foi alcançado, e que a resposta que procurávamos foi encontrada. Nosso problema era saber se existia em Mateus 26.6-13 um texto que contradizia nossa hipótese de que Mateus defendia um programa religioso/econômico de mutualismo contínuo no interior de sua comunidade. A resposta é que não existe essa contradi- ção, que esta perícope nunca quis dizer que a ajuda aos pobres é uma exigência secundária. Este texto em si não pretende oferecer ao leitor, nem da geração de Mateus nem da nossa, qualquer paradigma prático em relação ao tema econômico. Incentivar a aproximação aos excluídos como Simão, e a procura a um elogio como o que recebeu a mulher anônima no v. 13, são as coisas que o texto deseja. Segundo o evangelho, deve-se imitar as ações inclusivas de Jesus e crer em sua morte e ressurreição, mesmo que não existam sinais visíveis desse evento. A narrativa da unção de Jesus em Betânia está entre os primeiros textos da narrativa da paixão, mostra um Jesus consciente de seu futuro, e absolutamente conformado com isso; assim como honra a mulher que demonstra perfeita conformidade com os eventos. A verdade por trás do texto é que Jesus foi tirado dos discípulos de maneira violenta e se tal fato fosse mal interpretado poderia dispersar os discípulos temerosos do mesmo destino e pôr fim ao projeto do Reino de Deus, assim, tais narrativas que demonstram a soberania de Deus e a aceitação de Jesus em sua morte incentivam a aceitação das gerações posteriores dessa versão dos fatos. Ressaltamos que não se deve usar este texto de Mateus para justifi- car a falta de envolvimento nas obras de caridade ou na sustentabilidade dos mais pobres da comunidade cristã. Há várias outras passagens do mesmo evangelho que incentivam a caridade ao próximo, e esta, cujo

32 Anderson de Oliveira Lima: “Sempre tendes os pobres convosco”

3anderson.indd 32 25/11/2010 11:47:56 objetivo agora foi explicado, não pode anular o valor daquelas (LUZ, 2005, p. 113). O que temos aqui é exaltação de uma personagem sem nome que representa todos os cristãos de fé, que entenderam o inestimável valor da oferta de Deus quando ofereceu Jesus em sacrifício.

Referências

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Revista Caminhando v. 15, n. 2, p. 21-33, jul./dez. 2010 33

3anderson.indd 33 25/11/2010 11:47:56 Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão Mission in Brazil in the 21st Century: mission as com-passion Misión en el siglo XXI en el Brasil: la misión como com-pasión

Em memória do Pastor Primeiro Vice-Presidente da IECLB Homero Severo Pinto (1952-2010)

Roberto Zwetsch

Resumo O presente artigo reflete sobre o significado da missão cristã no mundo pluralista do início do século 21. Após uma introdução a partir de duas narrativas da litera- tura brasileira, o autor apresenta a missão como constitutiva da própria natureza da igreja cristã. Num segundo momento, propõe o conceito bíblico da compaixão como atualização do evangelho para o mundo atual, marcado por desigualdades e injustiças que se abatem principalmente sobre as pessoas mais pobres e vul- neráveis. O autor enfatiza que a com-paixão deve ser entendida em seu sentido profético e transformador. O artigo conclui com um breve comentário sobre o romance do escritor irlandês John Boyne, O menino de pijama listrado. Palavras-chave: Missão; compaixão; missão transformadora.

Abstract The present article intent to reflect about the meaning of the Cristian mission in the pluralistic world of the beginning of the 21 century. After an introduction with two narratives of the Brazilian literature, the author explain the mission as constitutive of the nature of the Christian church. In the second part, he propo- se the biblical concept of compassion as a gospel actualization for the present world, that is characterize by inequalities and injustices, that fall frequent over poor and vulnerable people. The author emphasize that com-passion needs to comprehend in each prophetic and transforming sense. The article conclude with a short commentary about the Ireland John’s Boyne roman The boy in striped pyjamas: a fable [Ireland, 2006]. Keywords: Mission; compassion; transforming mission.

Resumen El presente artículo busca reflexionar sobre el significado de la misión cristiana en el mundo pluralista del inicio del siglo 21. Después de una introducción a partir de dos narrativas de la literatura brasileña, el autor presenta la misión como constitutiva de la propia naturaleza de la iglesia cristiana. En un segundo momento, propone el concepto bíblico de la compasión como actualización del evangelio para el mundo actual, marcado por desigualdades e injusticias que afectan principalmente a las personas más pobres y vulnerables. El autor enfatiza que la compasión debe ser entendida en su sentido profético y transformador. El artículo concluye con un breve comentario sobre el romance del escritor irlandés John Boyne, El niño con el pijama de rayas. Palabras-clave: Misión; compasión; misión transformadora.

Roberto Zwetsch: Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão

4roberto.indd 34 25/11/2010 11:48:21 1. Duas narrativas para começar

Agradeço à organização do evento promovido pela Federação Lute- rana Mundial em conjunto com a Universidade de Muenster pelo honroso convite em participar deste debate sobre Eclesiologia e Missão da Igreja nos dias atuais. É um privilégio conhecer colegas de diferentes lugares do mundo e compartilhar com vocês alguns insights de minha modesta experiência missionária e acadêmica na América Latina. Se me permitem, gostaria de iniciar esta contribuição com duas narrativas que podem nos ajudar a refletir sobre o que significa missão no contexto pluralista do mundo do início do século 21. A primeira narrativa procede da Ásia, mais particularmente da cidade de Isfahan, sul do Irã (TREVISAN, 2009, p. 125-127). Conta-se que nessa cidade existia uma colônia de artesãos armênios, cristãos e muito ricos. Um potentado muçulmano, desejando apossar-se dos bens desses cristãos, convocou certo dia os líderes da comunidade armênia e disse-lhes:

– Li nos vossos Livros Sagrados que vosso Mestre vos disse: “Se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda, podereis transportar uma montanha para onde quiserdes”. Decidi, pois, experimentar vossa fé e verificar se não sois impostores. Ordeno-vos que escolhais alguém dentre vós que possui fé do tamanho de um grão de mostarda, e que mo apresenteis. Se ele não conseguir transportar o monte que está ali à frente, eu o matarei, e a todos os chefes de vossa comunidade.

A legenda conta que os cristãos, apavorados com as palavras do muçulmano, fizeram grandes jejuns e penitências até o dia marcado para a prova. Nesse dia apresentaram ao muçulmano um velho monge, que a comunidade considerava santo. Diante do muçulmano, o monge orou:

– Senhor, minha fé não é do tamanho de um grão de mostarda! É menor do que ela [...]. Por isso não serei capaz de transportar a montanha! Aceitai minha morte em penitência por minha pouca fé [...].

Ao ouvir tais palavras, o chefe muçulmano comoveu-se, perdoando ao monge e aos demais membros da comunidade cristã sua falta de fé, que não lhes permitia realizar o milagre prometido por Cristo.

Quando o homem se retirou, os cristãos reuniram-se para agradecer a Deus sua salvação. Então o monge falou:

– Irmãos, é possível que tenha sido maior milagre o muçulmano ter-se com- padecido de nossa falta de fé do que nós sermos capazes de transportar a montanha [...]. A misericórdia divina perdoou nosso pecado!

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4roberto.indd 35 25/11/2010 11:48:21 Tendo refletido sobre as palavras do monge, a comunidade concluiu que o milagre moral da compaixão do muçulmano foi maior que o milagre físico do deslocamento da montanha. Até aqui a primeira narrativa. Ela foi relatada por um poeta brasileiro, amigo especial, Dr. Armindo Trevisan, que num livro recente interroga-se como intelectual e professor universitário sobre verdades fundamentais da sua fé. Na conclusão desta narrativa ele nos lembra da resposta que um pai desesperado, com lá- grimas, deu a Jesus implorando pela cura de seu filho surdo-mudo: “Eu creio, Senhor, ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc 9.24). A segunda história foi escrita por Eliane Brum (2008, p. 20-25), jovem e brilhante jornalista brasileira, no premiado livro de reportagens A vida que ninguém vê. O fato se deu num bairro de Novo Hamburgo, cidade vizinha de nossa Escola Superior de Teologia, a uns 10 km da casa onde moro. Na Vila Kephas vivia Israel Pires. É um bairro formado há décadas por operários de uma indústria que já não existe mais. Hoje, ali vivem biscateiros, desempregados, catadores de papel e recicláveis, gente muito pobre. Na Vila Kephas vagava Israel, um rapaz de 29 anos, trágico e sem esperança. Imundo, com dificuldades mentais, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe já falecida, ele passava fome com a madrasta e a irmã doente. Era um desregulado das ideias, segundo o povo do lugar. Era escorraçado como um cão, torturado pelos meninos maus, cuspido, apedrejado, quase violado. Israel era um verdadeiro pária, a escória do lugar. Um dia ele se aproximou de um menino de nove anos chamado Lu- cas. Menino de olhos brilhantes, cor de amêndoa, bom de bola e bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. E foi refazendo o trajeto nos dias seguintes. Todas as tardes lá ia Israel tragado por certa magia acompanhando Lucas até a porta da escola. Lá ele via as crianças receberem merenda diariamente. Israel chegou lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar. Eliane, a professora, descobriu Israel. Ele era como um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e olhos de vira- lata com fome, ele não conseguia esconder a cara pronta para receber um bofetão. Mas Eliane o viu. E Israel se viu refletido no olhar da professora. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel se viu na- vegando nas pupilas da professora, bem vestido, garboso. Ele descobriu naqueles olhos que era um homem, um ser humano, não um escombro. Capturado pelo olhar da professora, Israel perseguiu aquele olhar até que um dia conseguiu entrar na escola. Quando viram, Israel estava na janela da sala de aula, meio corpo para dentro do olhar da professora. Quando o chamavam, fugia correndo. Mas devagar como bicho acuado, foi pegando o primeiro lápis, depois um afago. E num dia de agosto, Israel

36 Roberto Zwetsch: Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão

4roberto.indd 36 25/11/2010 11:48:21 cruzou a porta e pintou bonecos de papel no chão da sala. E o olhar da professora se multiplicou pelos 31 pares de olhos das crianças daquela sala de aula. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ele passou a chegar à escola de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Seus olhos agora brilhavam feito facho de luz. Um sorriso recém inventado emoldurava seu rosto sofrido. Quando entrou pela primeira vez na sala de aula, a professora começou a chorar. A subversão acabara de acontecer. O amalucado furou o bloqueio da lei e entrou para a sala de aula no único lugar em que o aceitaram como gente: entre crianças de nove anos! Desde então Israel passou a frequentar a escola com regularidade. A professora que andava deprimida, descobriu-se bela e importante. As crianças, que vivem na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel. Os pequenos deram respostas inteligentes para a jornalista. Jeferson, oito anos, por exemplo, falou para Israel: “O que importa é que você siga a vida”. Já Grace, menina de nove anos, aconselhou: “Não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares”. E Lucas, garantiu ao novo amigo: “Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vander”, porque todo mundo (na Kephas) tem medo do Vander, e completa: “Israel, tu me botas na garupa no recreio?” Aqueles olhares amoleceram as ruas de pedra da vila Kephas. Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou respeito na vila e a admiração do pai. Vai ganhar vaga oficial na escola e já aprendeu a escrever a letra “P” de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora. Assim termina o artigo emocionante de Eliane Brum. Teologia em meio a jornalismo de primeira qualidade porque feito com olhos humanos, bem abertos e compassivos. Duas histórias muito distantes no espaço e no tempo. Duas vidas, muitas vidas em suspenso à sombra da morte e do desamparo. O que une as duas narrativas? A meu ver, é justamente a compaixão, o exercício da misericórdia que começa com a entrega da vida e com o olhar desarmado de uma criança de nove anos. E tal compaixão tem uma força que, se não move montanhas, ao menos move e transforma vidas!

2. Igreja como missão

Em artigo para a Dogmática Cristã editada por Carl Braaten e Robert Jenson (1984), o teólogo estadunidense Philip J. Hefner define a igreja como a comunidade de Deus em Jesus Cristo que não encontra sua

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4roberto.indd 37 25/11/2010 11:48:21 razão de ser em si mesma, em suas obras ou justiça própria. A igreja cristã se distingue de toda outra comunidade terrena pelo fato de tomar “intencionalmente como sua razão de ser o testemunho explícito da ratio de Cristo como a chave para compreender todo o processo da natureza e da história”. Para Hefner a missão perpassa o todo da doutrina da igreja. Basta conferir seu artigo (HEFNER, 1995, p. 191-253). Minha conclusão é a seguinte: não é possível definir dogmaticamente a igreja sem fazer referência explícita e essencial à missão. A partir da concepção trinitária de Deus, a teologia cristã afirma que estas três maneiras de Deus ser se desdobram para dentro do mundo na criação e na sua missio. Por esta razão, participar da missio Dei é participar do próprio ser de Deus em seu desdobramento no presente e no futuro como o foi também no passado e na história do povo de Israel. Em outro artigo, Hefner define o ser humano como co-criador, colaborador privilegiado da ação de Deus no mundo. Este Deus chama a igreja à existência por meio de seu filho Jesus de Nazaré e a envia ao mundo para proclamar suas maravilhas, evangelizar os pobres e libertar os oprimidos (Lc 4.18; Is 61.1s). O Deus de Jesus é, pois, um Deus missionário que cria, envia e sustenta um povo, uma comunidade que se define e se entende a si mesma como “comunidade missionária”. Dizer igreja é soletrar a palavra missão e tal missão não tem fronteiras, ela abrange a família, o bairro e o mundo inteiro (FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL, 2006, p. 23-42). Mas é importante reafirmar dois pressupostos para que esta co- munidade participe da missio Dei em fidelidade ao Deus de Jesus. Pri- meiro, missão jamais é um caminho de mão única, mas de mão dupla: ela exige um relacionamento de reciprocidade entre quem é enviado e quem recebe a mensagem de Deus. Na missão não existe a possibili- dade de somente ensinar ou somente aprender. Somos companheiros de caminhada e solidários uns dos outros. Andamos pelos caminhos do mundo com os olhos postos no horizonte comum do reino de Deus. A igreja bem entendida está a serviço desse reino e não de outro. O que prevalece na missio Dei é a relação fraterna e solidária entre enviados e destinatários do evangelho que liberta e salva a ambos e diante do qual somos sempre aprendizes. O segundo pressuposto é assumir a contextualidade da igreja na cultura e na sociedade. Hefner escreveu: “Se uma igreja se estende além dos limites de sua cultura, é para assistir outras igrejas em sua missão, e não para fazer missão no lugar delas”. Essa posição de parceria na mis- são de Deus é verdadeiramente revolucionária e abre a possibilidade de renovarmos permanentemente o desafio da missão hoje em dia, sobretudo em tempos de globalização e dos novos desafios que se apresentam às igrejas cristãs numa cultura dominada pela competição, pela violência e pela difusão dos valores do individualismo e do prazer a todo custo. Como

38 Roberto Zwetsch: Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão

4roberto.indd 38 25/11/2010 11:48:21 escreveu a missióloga presbiteriana Sherron K. George, a mutualidade presente em Deus mesmo

... é o fundamento e modelo para todas as práticas nas parcerias de missão. A mutualidade na missão é uma troca de dons, um relacionamento mais horizontal do que vertical, que não cria dependências nem exerce domina- ção. A missão mútua é inerentemente cooperativa [...]. A mutualidade requer paciência, abertura, reciprocidade e honestidade (GEORGE, 2006, p. 86).

Documentos recentes das igrejas cristãs reafirmam a centralidade da missão na própria autocompreensão da igreja. O Papa Paulo VI afir- mou esta teologia na famosa exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, de 1975. O CMI no documento Missão e evangelização: uma afirmação ecumênica, de 1982, igualmente manifestou que o cerne da vocação da igreja é a proclamação do reino de Deus inaugurado por Jesus, crucificado e ressurreto. E que o diálogo e o dar as mãos uns aos outros ajudam a humanidade a superar suas divisões e a trabalhar junto em liberdade, respeito e paz criativa. A comunhão luterana no mundo definiu sua compreensão de missão e eclesiologia em dois documentos importantes: Juntos na missão de Deus (1988) e Missão em contexto (2004).1 Se no primeiro, o destaque é a compreensão de missão sob o signo da cruz, no último documento o conceito de empoderamento resgata a dimensão da ação do Espírito Santo na missão, não como poder que serve para exaltar a igreja, mas antes para torná-la apta ao testemunho. A igreja toda ela missional se envolverá com os problemas candentes de sua realidade tendo como critério a defesa da vida em todas as suas dimensões. Por isto a prática da missão concretiza-se como prática de acompanhamento, solidária com os pobres, os sem esperança, desiludidos e desamparados, para formar com estas pessoas uma vida em comunhão com todas as consequências que isto implica. O modelo será sempre a encarnação de Cristo em meio a um mundo fragmentado e violento, no qual a própria igreja passa por transformações jamais sonhadas antes. A missão holística abrange a totalidade da vida humana e da própria natureza, e se manifesta numa caminhada de transformação reconciliadora ou de evangelização restau- radora como a chamou o teólogo cubano Jorge A. León. No documento A natureza e a missão da igreja (2005), a Comissão de Fé e Ordem do CMI volta a reafirmar que a igreja só será coerente consigo mesma se for uma igreja testemunhal (lembremos aqui o conceito de martyria, que originou a palavra martírio nas línguas latinas), que proclama a vontade de Deus

1 cf. Zwetsch (2009, p. 28-40), onde faço um resumo dos documentos e uma breve ava- liação missiológica.

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4roberto.indd 39 25/11/2010 11:48:21 de salvar e transformar o mundo. Outro teólogo latino-americano, René Padilla, elaborou o conceito de missão integral para dizer que a missão de Deus abrange a totalidade da vida humana em todas as suas dimen- sões, pessoais, psíquicas, espirituais, sociais, econômicas, ambientais (Cf. ZWETSCH, 2008, p. 146-206). Ora, missão como caminhada de testemunho e encarnação é assumir o caminho da cruz, isto é, a forma como Deus resolveu agir no mundo por meio de seu filho Jesus. Nele e em seu ministério Deus agiu contra o pecado e a injustiça e disse sim ao amor e à justiça restaurativa e dig- nificante, apesar da perseguição e crucificação. A manhã de páscoa, o sinal da ressurreição dado primeiramente às mulheres nos convida – na fé e por meio da fé – a assumir a caminhada de Jesus onde quer que o seu Espírito nos alcance. É nesse contexto amplo que defendo a compreensão de missão como com-paixão. No que segue vou expor brevemente o que significa isto e que consequências podemos tirar dessa perspectiva diante das muitas crises de toda ordem que nos atingem como igrejas e como nações.

3. Missão como com-paixão

Para entendermos o que significa missão hoje precisamos dizer quem é Deus, pois missão é missio Dei. Embora uma definição jamais consiga descrever minimamente quem é Deus para nós, podemos nos valer do testemunho bíblico que nos narra muitas experiências do povo de Israel e, depois, da comunidade de Jesus com o seu Deus e nosso Deus. Jesus chamou Deus com uma palavra muito especial e que temos dificuldade para traduzir: Abba. Isto significa que Jesus mantinha uma relação de grande intimidade com Deus, possivelmente única. Ele nos ensinou a nos dirigir ao Abba também por meio dessa relação de proximidade e confiança: Pai nosso [...]. Com as feministas, creio que podemos dizer: Mãe nossa [...], contando com a compreensão do próprio Deus. Mas tem mais. Para Jesus Deus é o Deus compassivo (Cf. NOUWEN, 1998). Há muitas outras características que o descrevem segundo o teste- munho bíblico, mas esta sobressai na vertente profética e, sobretudo, em Jesus. Um de seus ditos afirma: “Sede misericordiosos como também é misericordioso vosso Pai” (Lc 6.36). Compaixão e misericórdia são o mesmo aqui. Tratando de desdobrar esta tese, encontrei seis pontos que merecem ser considerados para relacionarmos esta compreensão de Deus e sua mis- sio. Tal compreensão tem consequências cruciais para a missão da igreja de Jesus nos dias de hoje, portanto, evidentemente também para nossas igrejas evangélicas luteranas espalhadas pelo mundo. No que segue vou expor estes pontos e trazer alguns exemplos de como a com-paixão pode traduzir para o nosso tempo uma prática missionária atual, relevante e de-

40 Roberto Zwetsch: Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão

4roberto.indd 40 25/11/2010 11:48:21 safiadora. Vale recordar aqui que o professor Johann B. Metz anteriormente já afirmara que a pessoa que sofre tem autoridade indiscutível porque toca à profundidade de cada ser humano. Esta pessoa fala àquelas dimensões em que a essência humana vigora como pathos, cuidado e compaixão essencial (Cf. METZ, apud BOFF; MÜLLER, 2009, p. 25).

3.1 Compaixão como resumo do evangelho de Deus Compaixão pode ser uma palavra que resume o evangelho de Deus para os dias de hoje. Sempre é temerário resumir e concentrar. Mesmo assim, arrisco-me a afirmar que a missão de Deus encontra nesta pala- vra-expressão um ponto alto, uma experiência que transcende tempo e espaço, conceito e história. Deus se compadeceu de nós. E se solidarizou definitivamente com o nosso extravio. Em Jesus de Nazaré, ele se aproximou para sempre do seu povo que caminha neste mundo como gente desgarrada para conduzir-nos ao seu reino de amor, justiça e bem-aventurança. E isto em e através do tempo e não de maneira ahistórica. A compaixão de Deus poderia ser a tradução da sua missio para os tempos modernos ou pós-modernos. Pois, vivemos num tempo em que impera a objetividade do processo histórico, a insensatez da corrida pelo lucro a qualquer custo, o descalabro da destruição da natureza, a insensibilidade pelo sofrimento de milhões de seres humanos, que não encontra limites ou remédio. Numa palavra, vivemos tempos in-compas- sivos, duros, cruéis. Se pensarmos nos processos históricos vividos atualmente na Amé- rica Latina, com evidentes lampejos de esperança em vários países, ainda assim percebemos que a realidade de uma integração subalterna no mercado econômico mundial globalizado deixa pouca margem para alternativas nacionais autônomas, como almejam as propostas de um socialismo revigorado e democrático. Diante dessa situação, há que buscarmos uma alternativa que se anuncie possível e viável, diante das inseguranças e aporias do futuro no século 21. Esta busca não é apenas de ordem política, econômica e social. Ela também desafia as igrejas e suas respostas teológicas frente aos sinais dos tempos. Não será tarefa fácil, contudo, acreditar na compaixão divina se considerarmos apenas o testemunho das igrejas cristãs. Sua divisão histórica, a inconsistência de seu testemunho, a guerra provocada pela concorrência religiosa, os escândalos que solapam a credibilidade do evangelho da paz, da justiça e da reconciliação, todos estes são motivos suficientes para desfigurar a promessa do evangelho. Na verdade, fazem tremer os alicerces das igrejas que confessam ser Jesus Cristo seu Senhor e Mestre, compassivo e desafiador. Por isto, sem a presença do Espírito Santo que sopra onde quer e transforma igrejas e pessoas, haveria pouco

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4roberto.indd 41 25/11/2010 11:48:21 o que fazer. Como escreveu José Comblin e outros teólogos como Jürgen Moltmann, é no poder do Espírito que a igreja cumpre sua missão. O Espírito prepara a Igreja no meio das nações. [...] Por isso não precisamos partir para a missão já com um projeto de Igreja, nem com um projeto de evangelho elaborado. [...] O Espírito é quem revela Cristo às nações. Nós o anunciamos, mas não sabemos como vão conhecê-lo. O que importa é a apresentação de Cristo assim como ele se apresentou: pelos caminhos da humildade e da cruz. Cristo parte da pobreza, dos meios pobres. Apresenta-se como sem poder. A revelação de Cristo é a revelação da sua cruz vivida como real caminho. [...] O Cristo da missão não será um discurso humano sobre Cristo, mas uma presença viva e real de Jesus feito homem pobre e sem poder, de uma maneira capaz de tocar no coração dos pobres das nações. Desse modo, Cristo e o Espírito estão unidos também na missão e somente a sua unidade torna possível a missão nesta hora do mundo (cf. COMBLIN, 1988, p. 202s). Sem este poder do Espírito libertador de Cristo, a igreja permanece uma instituição puramente humana e limitada em sua perspectiva histórica. Ela não dará conta da vocação a que foi chamada. Entretanto, este é o desafio da missio Dei.

3.2 A compaixão de Deus é irmã da justiça – a dimensão profética da missão O mundo atual é o da concorrência e da competição. A monetarização da economia mundial foi responsável pela maior queda que o sistema financeiro capitalista já passou desde a quebra da bolsa de Nova York em 1929. O custo da “salvação” do sistema chegou a muitos trilhões de dólares, dinheiro evidentemente surrupiado das bocas famintas de milhões de crianças, da construção de escolas, da irrigação dos campos africanos e de tantos outros investimentos que com muito menos poderiam aliviar a fome no mundo, como afirmou o responsável pelo programa da FAO2, na ONU. Na economia financeira, distante da vida real das pessoas, não há lugar para a cooperação, o cuidado e a vivência da compaixão. O mundo hoje depende do sucesso dos grandes negócios nas bolsas financeiras das principais cidades do planeta. E quando elas caem na jogatina geral em que se transformou este sistema, os governos são chamados para salvar o sistema como aconteceu novamente este ano com os problemas da Grécia. É muito interessante observar como funciona o esquema! Na hora do lucro, a lei é privatizar. Na hora da desgraça, o remédio é socializar. É pertinente perguntar se esta é a única lei possível. Ou pelo menos, se ao seu lado não devem vigorar outras metas, que, de modo alternativo, proponham a reciprocidade como critério para a convivência humana e

2 Food and Agriculture Organization.

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4roberto.indd 42 25/11/2010 11:48:21 assim equilibrem a balança do capital para resguardar o direito à vida, hoje seriamente comprometido para mais de dois terços da humanidade e até mesmo para o meio ambiente. Nesse contexto, a palavra compaixão encontra um solo fértil para frutificar. É o que tem afirmado repetidamente o Dalai Lama (2009), líder do budismo tibetano. Obviamente, ela por si só não garante nada. A compaixão precisa ser desdobrada em atos de vontade, em propostas de vida e sociedade. Do contrário, fica apenas como um horizonte de boas intenções, sem incidência histórica e perspectiva de futuro. Por isto, estou de acordo com quem defende que a compaixão divina só se torna concre- ta historicamente quando associada à outra palavra-realidade central no testemunho bíblico, sobretudo, em sua tradição profética. A compaixão de Deus é irmã da justiça. O Deus bíblico é o Deus da justiça.3 Assim como não há paz sem justiça, também não compreendemos a compaixão de Deus se nos esquecemos de relacioná-la com a sua justiça. Estas duas realidades traduzem, a meu ver, o que podemos entender por amor de Deus ou hesed, palavra central da mensagem do profeta Oséias. E também a palavra rahmim, que se pode traduzir como ter misericórdia ou o revolver das entranhas por amor de alguém (cf. JENNI; WESTERMANN, 1985, c. 957-966). No contexto do Antigo Testamento estas palavras estão relacionadas com outros verbos afins e que apontam para a realidade do evangelho da graça de Deus como anunciado por Jesus. São eles: ser clemente com alguém, ser misericordioso, sentir compaixão, tratar bem, respeitar, consolar, mudar de destino, ajudar, ser bondoso, magnânimo. Como se percebe, todas essas expressões indicam uma forma especial do agir de Deus em relação ao seu povo e para com a humanidade. Esta compaixão de Deus se opõe a outra atitude do mesmo Deus: a misericórdia está em oposição exclusiva à cólera de Deus ou a substitui, porque a ira suspen- de a relação do povo com Deus. Em Isaías, o termo misericordioso ou compassivo chega a ser predicado absoluto de Deus. Só ele é realmente misericordioso ou compassivo para conosco! E quem experimenta tamanha compaixão, verdadeiramente encontrou o paraíso, como afirmou Lutero num de seus textos autobiográficos! Só a compaixão e misericórdia con- seguem vencer a violência, hamas (em hebraico), e não a força!

3.3 Com-paixão: a inseparabilidade entre juízo e graça Neste sentido, procurei associar as duas dimensões do amor de Deus com uma palavra que é simultaneamente uma expressão e em cuja grafia procurei reunir várias dimensões da misericórdia divina. Para

3 Cf. Metz (2002, p. 28): “Una compasión que busca justicia es, en la era de la globali- zación, la palabra clave del programa universal del cristianismo”.

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4roberto.indd 43 25/11/2010 11:48:21 mim, a com-paixão de Deus só se torna real quando sua justiça se revela e se realiza. E a justiça de Deus, do ponto de vista da teologia bíblica, concentra duas dimensões inseparáveis: ela é juízo e graça, condenação e redenção, morte e vida. Morte ao pecado que destrói a convivência humana e ressurreição para uma nova vida, em graça e verdade liberta- doras. O juízo revela a profundidade do pecado humano e sua separação da fonte da vida e de tudo o que é sagrado. O apóstolo Paulo escreveu: “porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 6.23). A graça é a resposta amorosa de Deus que não deixou a morte ser a última palavra, reconciliando, por meio de Cristo, a humanidade com ele mesmo, abrindo desta forma as portas da história para o novo, o inaudito, a experiência da vida em plenitude.

3.4 Paixão de Cristo – paixão dos crucificados: buscar a Deus sub contrario Com-paixão aponta para outra dimensão da misericórdia divina e esta diz respeito ao sofrimento, a passio, que nos remete à paixão de Cristo e, por extensão, à paixão dos crucificados deste mundo, ontem e hoje. Há um tipo de sofrimento que não tem sentido, cuja reflexão levaria ao absurdo. Mas haveria um sofrimento redentor, libertador? É isto que o evangelho de Cristo anuncia: em seu sofrimento há, precisamente, um dom e uma promessa. Com a ressurreição Deus o resgatou da morte injusta e fez com que o justo triunfasse fazendo brotar novamente a semente da esperança. Mas apesar disso, a cruz é e continuará a ser escândalo. Em termos teológicos, jamais poderá ser suprimida ou diminuída. Cruz é um escândalo intransponível. Por isto, a teologia cristã é paradoxal. Leonardo Boff chamou a atenção para este aspecto:

Deus deve ser buscado sub contrario. Lá onde parece não haver Deus, lá onde parece que ele se retirou: lá está maximamente Deus. Essa lógica contradiz a lógica da razão, mas é a lógica da cruz. Essa lógica da cruz é escândalo para a razão e deve ser assim mantida, porque só assim temos um acesso a Deus que de outra maneira jamais teríamos. A razão busca a causa da dor, as razões do mal. A cruz não busca causa nenhuma: aí mesmo na dor Deus está maximamente. [...] [a cruz] deve se manter como cruz, como uma treva diante da luz da razão e da sabedoria deste mundo (BOFF, 1978, p. 136).

Esta reflexão sobre a cruz e o sofrimento é importante no contexto da com-paixão porque facilmente se poderia cair no dolorismo típico da religiosidade latino-americana. A aceitação do sofrimento não significa masoquismo, mas em boa tradição cristã significa luta contra o mal e re-

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4roberto.indd 44 25/11/2010 11:48:22 sistência ao pecado e à fatalidade da vida. Não por acaso na oração que aprendemos de Jesus está dito: “E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal”. A tentação do conformismo, da entrega ao sem sentido do sofrimento e da dor é real. A oração de Jesus não nos promete viver sem tentações, mas nos ensina justamente a não cair diante delas. Aqui cabe acrescentar um pensamento. Vitor Westhelle, teólogo luterano brasileiro que leciona em Chicago, escreveu recentemente um livro de grande força inspiradora: O Deus escandaloso (WESTHELLE, 2008). O uso e abuso da cruz. Nesse livro, Westhelle nos adverte que não pode haver vida cristã a não ser aos pés da cruz e na companhia dos crucificados deste mundo. Ele escreveu:

Se Deus está oculto na cruz, então Deus participa da paixão de Cristo. Mas se Deus está oculto atrás da cruz, de modo que a imutabilidade, a majestade e o poder divinos são apenas encobertos e não são afetados pela cruz, então o mistério de Deus não se revela na cruz, nem mesmo sob seu oposto. A conseqüência dessa interpretação nos levaria ao seio de um Deus misterioso e apavorante. Mas se Deus estivesse naquela cruz, tería- mos a noção de um Deus cuja compaixão alcançou essa profundidade. A tentação é claramente optar pelo “na” e evitar o “atrás”. Mas essas opções são realmente excludentes? Não deveríamos reconhecer em Deus tanto o fascinans como o tremendum, conforme Rudolf Otto resumiu os atributos do sagrado? Esse duplo sentido que se encontra em Lutero não representa oposições alternativas para a interpretação. Ambos são válidos [...]. A obra oculta de Deus é uma forma de nomear de uma maneira radical nossa ex- periência de sermos abandonados por Deus como o próprio Jesus vivenciou (WESTHELLE, 2008, p. 69).

Isso significa que somente vamos compreender o Deus de Jesus e sua obra em favor de nós quando soubermos nos encontrar com Jesus e seus crucificados no seu caminho, atrás e junto a essas pessoas e povos que clamam por justiça, vida e salvação. Do contrário, poderemos ser boa gente, mas perderemos o proprium que identifica o nome que recebemos de Cristo. Nesse sentido, Westhelle sugere que a teologia da cruz de Lutero ainda hoje é especialmente desafiadora porque ela nos conduz a uma vivência concreta de solidariedade com quem sofre e grita por libertação. Westhelle escreveu:

O desafio para nós é sermos capazes de discernir, como Lutero fez, os luga- res e tempos em que o quebrantamento, a vida ferida, as profundas crises estão recebendo uma operação plástica por parte dos sumos sacerdote do novo evangelho global, o que o teólogo canadense Douglas John Hall chama de culto do “otimismo oficial” (WESTHELLE, 2008, p. 72).

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4roberto.indd 45 25/11/2010 11:48:22 Quando apontamos para a cruz de Jesus e a cruz dos crucificados, é compreensível que muitos de nós, rapidamente, mencionemos a ressurrei- ção como o ato salvador de Deus que na manhã gloriosa superou a morte, a dor e o sem sentido da história. Mas o que precisamos aprender reitera- damente é que a cruz não é algo transitório e descartável. Efetivamente, Jesus ressuscitou para nossa salvação e libertação. Mas se Jesus não viveu até o fim a cruz, é vã a nossa fé, se me permitem refazer o conhe- cido dito do apóstolo Paulo. Como cristãos, será preciso manter a tensa e criativa relação entre a sexta-feira da paixão e a páscoa, sem jamais “desfazer o escândalo da narrativa fundadora, a não ser que deixemos de entender o mais importante”, como concluiu Westhelle (2008, p. 72).

3.5 Compaixão como experiência de libertação: simul iustus et liberatus, semper liberandus Nesse sentido, Leonardo Boff nos ajuda ao demonstrar duas coisas. Primeiro, que Deus ao assumir o sofrimento e o absurdo da cruz, não aceitou esta absurdez como seu limite. Ele assume o absurdo

... não para divinizá-lo, não para eternizá-lo, mas para revelar as dimensões de sua glória que ultrapassam qualquer luz que venha do logos humano e qualquer escuridão que venha do coração. Deus assume a cruz em solidarie- dade e amor com os crucificados, com aqueles que sofrem a cruz. Diz-lhes: embora absurda, a cruz pode ser caminho de uma grande libertação. Con- tanto que tu a assumas na liberdade e no amor (BOFF, 1978, p. 143s).

A segunda observação diz respeito ao sofrimento que nasce da luta contra o sofrimento, quando a experiência da fé se dá no contexto do mistério da passio liberationis. Trata-se do sofrimento que se experimenta na luta contra a opressão e as injustiças, no compromisso com a liberta- ção dos empobrecidos deste mundo, vítimas de um sistema no qual eles não têm mais lugar. Conforme L. Boff, este sofrimento apresenta um nível de dignidade humana incomparável. Ele não é buscado, mas encontrado no caminho do discipulado. O mesmo se poderia dizer do sofrimento de quem é perseguido por causa do evangelho, do anúncio do amor de Deus, ou da luta por justiça, como o fez o Mahatma Gandhi. Este tipo de sofrimento tem a capacidade de denunciar o mal do sistema que do- mina o mundo, tem a estranha força de negar o sistema porque vive da realidade do amor divino, da força do reino futuro que procede de Deus e para ele conduz, da força da não-violência, que no Brasil foi traduzida pela expressão firmeza permanente. Citando L. Boff outra vez:

Por isso o sofredor, vítima da violência do sistema, é livre e jovial, tomado do Absoluto verdadeiro que confere sentido à perseguição e à morte. O

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4roberto.indd 46 25/11/2010 11:48:22 mundo que Deus prometeu [...] é tão real, tão verdadeiro, tão plenificador que nenhuma morte por mais violenta, nenhum suplício por mais excogitado e inumano que se apresente, é sofrido como destruidor. Tal atitude livre e libertadora exaspera os agentes do sistema... (BOFF, 1978, p. 152).

É por isso que o testemunho de Dietrich Bonhoeffer enforcado ao final da 2ª Guerra Mundial (agosto de 1945) ainda ressoa no mundo in- teiro. Para nós na América Latina, é revelador que justamente o teólogo que morreu por causa de sua fé tornou-se o maior testemunho de um evangelho que aparentemente havia sido derrotado pelo nazismo.4 O encontro com o Deus crucificado, em sua paixão, portanto, propicia uma experiência verdadeira de conversão, por meio da qual a vida toda é reavaliada e ganha nova direção. Esta é uma experiência de graça, perdão e liberdade que livra as pessoas de um passado que escraviza e proporciona um redirecionar da vida em novas bases. Noutro texto Boff explica esta experiência como um radicar-se em Deus como fundamento do novo ser, como aconteceu na vida de Jesus. Tal processo de conversão jamais acaba, pois que está sujeito à dialética do pecador-justo/justificado. A teologia luterana chama a isto de sola gratia, sola fide, que se traduz na vivência histórica como o ser oprimido que se torna liberto e libertador. Boff definiu este aspecto da vida de fé com a fórmula: homo simul iustus et liberatus, semper liberandus (cf. BOFF, 1976, p. 187 e ZWETSCH, 1998, p. 141-155,).5 O ser humano é simultaneamente justo e libertado, sempre libertador, a partir da cruz e da esperança que dela nasce. “Porque na esperança fomos salvos”, escreveu o apóstolo Paulo (Rm 8.24).

3.6 Com-paixão: apaixonar-se pela misericórdia de Deus Mas há ainda um último aspecto na expressão com-paixão que preci- so apontar. A missão de Deus comporta uma luta pela vida. A resistência contra o amor de Deus é permanente neste mundo. Tanto nas instituições – também nas igrejas – quanto em nossas vidas individuais. A dialética da vida é feita de sombras e luzes, de pecado e graça, de tal modo que, pela fé, somos simultaneamente justos e pecadores. Por isto, é necessário deixar-se apaixonar pela misericórdia de Deus. Na linguagem profética do Antigo Testamento, a ideia vem com a metáfora de um “mover-se desde as entranhas”. É possível afirmar que Deus ama a humanidade como uma mãe que desde o mover-se de suas entranhas luta por seus filhos e filhas. Somente os misericordiosos e limpos de coração conhecerão a Deus,

4 cf. Gutiérrez (1980, p.395-415). Em nossa Escola Superior de Teologia dedicamos um dia especial de estudos em 09/04/1995, no cinquentenário da morte de Dietrich Bonho- effer, atualizando seu legado para nossa reflexão teológica e compromisso missionário na América Latina. Cf. Estudos Teológicos, ano 35, n. 3, p. 221-257. 5 Para uma visão sistemática da cristologia de L. Boff sob este aspecto, cf. Sander (1986).

Revista Caminhando v. 15, n. 2, p. 34-50, jul./dez. 2010 47

4roberto.indd 47 25/11/2010 11:48:22 afirmou Jesus (Mt 5.7s). Com-paixão é uma tentativa de demonstrar que a missão diz respeito ao ser inteiro das pessoas e da igreja de Deus. Missão como com-paixão é um lema e um programa, um alerta e um desafio. É um reconhecimento e uma esperança. Alguns exemplos podem nos ajudar a visualizar a vivência da com- paixão como rosto da missão hoje. Conheci um programa da Igreja Evan- gélica Luterana da Colômbia que me causou profundo impacto. Chama-se Asívida e tem por objetivo acompanhar pessoas que foram contaminadas pelo vírus HIV e vivem com AIDS. O que me chamou atenção é que se trata de um programa que acolhe, acompanha e restaura as pessoas que por alguma razão contraíram o vírus, sem qualquer resquício de culpa- bilização ou condenação moral. É um exercício exemplar da teologia da graça e da compaixão que liberta e dignifica as pessoas. Um segundo exemplo é o Plano de Ação Missionária da IECLB, em sua segunda versão de 2008. O título do PAMI é sugestivo: Missão de Deus – Nossa paixão. Somos uma igreja oriunda da imigração de evangé- licos e luteranos no século 19, mas que decidiu, em 1949, tornar-se Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Esta decisão histórica foi a senha para assumirmos definitivamente a dimensão missionária consti- tutiva de uma igreja cristã. Desde então, procuramos cada vez mais nos inserir no meio do povo e da cultura brasileira, não sem tropeços e crises. O atual Plano de Ação Missionária não é uma solução mágica, mas é um documento orientador que pouco a pouco vai atingindo as comunidades, nos mais distintos lugares do nosso grande País. O que caracteriza este plano é a articulação entre os quatro eixos que desdobram a compreen- são de missão: evangelização – comunhão – diaconia – liturgia, e as três dimensões transversais que permeiam cada eixo: formação (educação) – sustentabilidade – comunicação. O centro do plano é a afirmação de que Deus nos chamou desde a criação do mundo para sermos seus par- ceiros na sua missio. Em Jesus ele se aproximou de nossa humanidade radicalmente. Nele e com ele fomos convencidos da paixão de Deus pelo mundo. Por isto, na força do Espírito, somos um povo de apaixonados pelo evangelho e a mensagem do reino de Deus. Se a missão de Deus é nossa paixão, a com-paixão como via prática da missão nos desafia a um compromisso novo e transformador. Se hoje vivemos tempos de crise que exigem redefinições, de certa forma, é possível afirmar que a renovação da missão se dá justamente nesses períodos de crise. Nos momentos de cruz que experimentamos, como pessoas e igrejas, os limites da nossa paixão e da nossa infideli- dade. Parafraseando o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, que afirmou ser necessária não só uma teologia da libertação, mas a libertação da teologia, penso que a missão é o instrumento que Deus usa para libertar a igreja de si mesma e de suas aporias.

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4roberto.indd 48 25/11/2010 11:48:22 Para concluir – de volta à literatura

Acabo de ler com sadio espanto o romance do escritor irlandês John Boyne, O menino do pijama listrado (2009). A história dos meninos Bruno, alemão, e Smuel, judeu, ambos com nove anos, para mim é um exemplo cabal do que a com-paixão é capaz de realizar. Pois nessa fá- bula, são estes dois meninos separados por uma cerca irremediável num campo de concentração, que subvertem o sistema e desenvolvem uma amizade que supera ideologia, opressão, desumanização e até mesmo a morte. Quando ambos finalmente podem estar juntos e dar-se as mãos, subvertendo a ordem cruel, são imolados na câmara de gás junto com muitas outras pessoas. Mas este é o engano do sistema. Pois foi nesse gesto frágil e tocante que o mundo renasceu e uma nova aurora de paz e liberdade pode ser entrevista, ainda que sob a cruz. Ontem e também amanhã, em Israel, na Palestina, no Brasil ou no Haiti.

Referências

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4roberto.indd 50 25/11/2010 11:48:22 Entre a possibilidade e a contingên- cia: vida e legado de Bispo Isac Aço

Between possibility and contingency: live and legacy of Bishop Isac Aço

Entre la posibilidad y la contingencia: vida y legado del Obispo Isac Aço

Norberto da Cunha Garin

Resumo Desde jovem a preocupação do Bispo Isac Aço foi com a justiça e a dignidade das pessoas. Esta preocupação o levou a lutar por uma Igreja voltada aos empobrecidos e solidária com as pessoas socialmente excluídas. Este artigo se constitui numa apresentação biográfica de Bispo, abrangendo desde o seu nascimento em Angola, na África, em 1935, até o seu falecimento trágico em acidente automobilístico, em 1991. É notável como o seu processo de formação, pelo trabalho que realizou nas escolas rurais metodistas em Angola, contribuiu decisivamente para o perfil de sua ação missionária a ponto de desafiar a Igreja Metodista à prática da Teologia da Libertação. Palavras-chave: Reino de Deus; missão; metodismo; libertação.

Abstract Since from his youth the Bishop Isac Aço’s concern was towards justice and people’s dignity. This concern led him to struggle for a Church focused on the impoverished ones and supportive of the socially excluded people. This paper is made up by a Bishop’s biographical presentation extending from his birth in Angola, Africa, in 1935, up to his tragic death due to an automobilistic accident in 1991. It is notable that his formation process throughout the work he had achieved into the rural Methodist schools in Angola has decisively contributed to his missionary action profile in a way of challenging the Methodist Church to the Liberation Theology’s practice. Keywords: God’s Kingdom; mission; ; liberation.

Resumen Desde la juventud, la preocupación del Obispo Isac Aço, fue con la justicia y con la dignidad. Esta preocupación le llevó a luchar por una iglesia que se dedique a los empobrecidos y solidaria con las personas socialmente excluidas. Este trabajo es una presentación biográfica del Obispo que abarca desde su nacimiento en Angola, África, en 1935, hasta su muerte en trágico accidente automovilístico en 1991. Es notable como el proceso de su formación, a través del trabajo que realizó en las escuelas rurales metodistas en Angola, contribuyó decisivamente al perfil de su actividad misionera al punto de desafiar a la Iglesia Metodista a la práctica de la teología de la liberación. Palabras clave: Reino de Dios; misión; metodismo; liberación.

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5norberto.indd 51 25/11/2010 11:48:47 Introdução

A passagem do tempo tem o poder de esvanecer a lembrança sobre algumas pessoas que marcaram a história. Uma dessas pessoas, cuja lembrança se esvanece é o Bispo Isac Alberto Rodrigues Aço, Bispo da 2ª Região Eclesiástica, cuja visão missionária marcou a Igreja Metodista pelo seu sonho de construir uma Igreja com os excluídos sociais. Batalhador, entre as possibilidades de um mundo justo, construído coletivamente, e as contingências impostas pela realidade, o Bispo Isac assumia uma postura ecumênica, profética e sacerdotal em favor das crianças abandonadas e de todas as pessoas roubadas de sua dignidade.

1. A formação do líder

O Bispo Isac Aço teve uma formação peregrina entre dois continentes: Europa e África, pois era filho de um casal de missionários evangélicos1 portugueses que fizeram missão em Angola. Nasceu em 4 de maio de 1935, em Santo António do Zaire, na Angola, parte sul da costa oeste da África. Seus pais, Luiz Campos Aço e Jesufina Baião Aço2 deram o nome de Isac Alberto Rodrigues Aço. Ainda pequeno Isac mudou-se com a família para Portugal. Foi educado num sistema repressor, típico do seu tempo em Portugal, onde imperava a palmatória entre outros casti- gos corporais. Foi uma experiência difícil para ele que chegou a afirmar em sua “Retrospectiva”3 que a escola era uma tortura.4 A ligação com o Brasil estava relacionada com a figura do seu avô que teria vindo para cá no início do século 20, na qualidade de imigrante, onde permaneceu o resto de sua vida. A primeira missão da família Aço foi a cerca de cinco quilômetros da cidade de Caluquembe, onde havia uma missão evangélica típica, constru- ída por missionários protestantes, que contava com diversas instalações: a casa da família do missionário, o templo destinado aos cultos e atos religiosos, uma escola paroquial, instalações para a Escola Dominical, hospital, internato e oficinas destinadas à manutenção do patrimônio. Em 1945, depois de algum tempo vivendo e estudando na escola da “missão”, Isac foi matriculado num internato em Sá da Bandeira, hoje com

1 Esta Igreja Evangélica a que Isac se refere era a Igreja Congregacional que depois foi assumida pela Igreja Presbiteriana, em Portugal. 2 “Jesufina viveu quase 80 anos, mais de 60 inteiramente dedicados à obra de evangeli- zação. [onde fecham aspas?] 3 Trata-se de um texto manuscrito deixado por Aço em seu escritório particular, poucos dias antes do falecimento repentino. 4 PARA que o sonho não acabe: escritos e mensagens do Bispo Isac Aço. São Paulo: Imprensa Metodista, 1992, p. 17.

52 Norberto da Cunha Garin: Entre a possibilidade e a contingência

5norberto.indd 52 25/11/2010 11:48:47 o nome de Lubango, a cerca de duzentos quilômetros de Caluquembe. Durante a sua viagem houve um acidente com o caminhão em que viajava e Isac acabou ferido, mas sem gravidade.5 Aquele tempo, no internato, se transformou numa experiência negativa e por um ano ele praticamente não avançou nos estudos. No ano seguinte seu pai foi transferido, como pastor, para Sá da Bandeira onde permaneceu um ano. Dessa vez foi uma experiência ímpar de partilha no seio da igreja, com muita alegria e a comunidade teve um novo alento (AÇO, 1992, p. 20). Pessoas em situação de risco de morte procuravam os missionários para pedir refúgio. Houve uma ocasião em que a casa do missionário chegou a ter quase vinte pessoas6 morando. Na madrugada do sábado7 de aleluia, o fogo consumiu a casa da família. Salvaram apenas as próprias vidas. No outro dia, o missionário e pai, reuniu as pessoas nos escombros da casa para um ato de ação de graças pelas vidas que foram salvas. Em 1947 o missionário foi transferido para a cidade de Moçame- des. Este pastorado se constituiu numa experiência amarga. A família vivia praticamente sem dinheiro, a princípio num hotel e depois numa casa alugada. Passaram a depender da bondade de algumas pessoas como do próprio dono do hotel, que se comprometeu a mantê-los como hóspedes. Na avaliação de Isac, aquelas pessoas que lhes ajudaram e fizeram amizade com eles foram, de fato, as pessoas mais cristãs que eles encontraram naquela época. Foi um período marcante para a formação da personalidade de Isac no sentido de que percebia a dimensão do sofrimento imposto pelas limitações materiais. Dessa forma, permitia-lhe olhar ao redor e, empati- camente, sentir como as outras pessoas que passavam por semelhantes limitações viviam. Esta percepção das limitações o impelia a uma ação, que para Isac significava a ação missionária. A cidade de Moçamedes era muito católica. Não havia trabalho evangélico que não fosse aquele trazido pelo missionário Luiz Aço. Ele teve que se defrontar com o padre local a ponto de ter que publicar um livreto para enfrentar o sacerdote católico. O pátio do hotel servia de es- paço para os cultos. Mesmo tendo uma família católica, o proprietário do hotel obrigava os demais hóspedes e trabalhadores do estabelecimento a assistirem aos cultos do missionário. Foi nesta cidade que Isac passou a adolescência juntamente com a família, de onde suas irmãs saíram para trabalhar em outras missões dando prosseguimento ao trabalho de seus

5 A viagem foi feita em cima de um caminhão carregado de milho; o Bispo Isac também se feriu, mas não com gravidade. 6 Aço não menciona se todas estas pessoas estavam lá por causa de ameaças ou porque simplesmente necessitavam se hospedar na casa do missionário naquele período (AÇO, 1992, p. 23). 7 Dia 9 de abril de 1955.

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5norberto.indd 53 25/11/2010 11:48:47 pais (AÇO, 1992, p. 20). Isac foi convidado para o trabalho nas escolas rurais da Igreja Metodista (AÇO, 1992, p. 22).

2. O missionário metodista

O Bispo Isac se recordava de sua mãe como uma mulher que, en- quanto vendia rendas em Lisboa, aproveitava para evangelizar. A maneira dedicada como ela realizava esta tarefa também marcou sua vida. Por diversas vezes ele se referia aos pais como responsáveis pela herança espiritual que recebera, como se fosse uma espécie de chamado para a missão, algo que transcendia à tradição cultural, “como uma herança “genética” (AÇO, 1992, p. 16). Após a Páscoa de 1955, Isac foi para Luanda, a convite da Igreja Metodista, a fim de ampliar um programa de escolas rurais. Chegou a coordenar a “educação de escolas rurais para todo o interior de Angola” (AÇO, 1992, p. 16). Diferentemente das missões por onde havia passado, acompanhando o pai, Isac declarou que, na Igreja Metodista encontrou “uma Igreja organizada, que havia educado os negros, e na qual eles tinham palavra e votavam nas decisões” (AÇO, 1992, p. 22). Em julho desse ano foi nomeado diretor das Escolas Rurais da Área de Malange e isto representou um desafio completamente novo, pois consistia em escolarizar milhares de crianças,8 no interior da África, por lugares onde as populações não recebiam qualquer assistência. Após o primeiro Con- cílio de que participou, Isac passou a “entender a situação do negro – a opressão, a exploração, a ânsia de libertação e que isso era parte da própria fé” (AÇO, 1992, p. 22). Compreendeu que “o fato de abrirem as portas da educação ao lado do evangelho era uma arma eficaz no espírito da liberdade” (AÇO, 1992, p. 24). Em 24 de abril de 1960 Isac casou-se com Graciela, passando esta se chamar Graciela Duarte Rito Rodrigues Aço. Segundo ele, o casamento foi uma aventura já que não tiveram condições de se visitar durante o noi- vado, a não ser apenas uma vez. O namoro e o noivado foram realizados por cartas9 e a família dele o representou no pedido de casamento. Duas semanas antes do matrimônio, Isac chegou ao aeroporto de Lisboa onde Graciela e seu pai o aguardavam, segundo ele, com um ar de descon- fiança. Isac descreveu sua esposa como uma mulher corajosa, pois logo após uma breve lua-de-mel partiram de navio para a África, percorrendo, depois, o interior do continente, hospedando-se em casas de capim to- madas por cobras, ratos, mosquitos e insetos. Assim foi o primeiro ano

8 Parece que este seu primeiro trabalho foi determinante para a sua preocupação com as crianças. 9 Graciela é de Lisboa, Portugal.

54 Norberto da Cunha Garin: Entre a possibilidade e a contingência

5norberto.indd 54 25/11/2010 11:48:47 de vida conjugal, em Malange, de onde Isac viajava constantemente, deixando sozinha a esposa já grávida. Em 1º de março de 1961 nasceu a primeira filha do casal, a quem deram o nome de Ana Cristina. Nesta época, em Angola, já apareciam os primeiros sinais da guerra pró-independência. Na madrugada de 15 de março a população iniciou o levante, com revoltas, resultando em muitas mortes e diversas prisões. Foram tempos de guerra e violência em que as populações negras foram vingadas de anos de colonialismo português (AÇO, 1992, p. 26). Neste contexto Isac recebeu um convite para estudar Teologia no Brasil. Há um episódio deste tempo que é digno de nota: quando iniciou a revolução da população negra em 1961, Isac foi salvo por causa de seu costume de viajar sempre acompanhado de um menino negro. Este se adiantava para anunciar que o branco que o acompanhava era Isac, um missionário metodista. Em virtude de seu trabalho de solidariedade e apoio aos negros de Angola, os missionários metodistas eram queridos. Por isso não eram agredidos durante a revolução (CAVALHEIRO, 2003, p. 37). Certa vez foi detido por algumas horas, ao descansar em um posto policial português. Abordado pelas autoridades sobre quem era e o que fazia respondeu que era um missionário metodista e que vinha de diversas localidades, pregando o evangelho. Como o policial acreditava que o trabalho missionário era contra Portugal, deteve-o junto com sua esposa (CAVALHEIRO, 2003, p. 39). É importante considerar que Angola foi colonizada por Portugal e que, a partir de 1961, passou por um período de revoltas populares e golpes, buscando sua independência, que somente aconteceu em 11 de novembro de 1975. A sua experiência em solo africano, testemunhando a dor dos verda- deiros donos da terra, os negros, foi determinante para moldar sua visão missionária e ecumênica. A forma como os portugueses escravizavam os negros em sua própria terra, arregimentando-os para a colheita do algodão, foi construindo a consciência de indignação diante da exploração dos trabalhadores rurais de Angola (CAVALHEIRO, 2003, p. 36). Esta característica missionária sempre o acompanhou. Na primeira entrevista que concedeu à imprensa brasileira voltou a manifestar esta vocação, quando se referiu a um dos motivos que o trouxe ao Brasil, fa- lando do seu “ardente desejo de servir melhor nossa Igreja, em Angola” (ANCHIETA, 1964, p. 8).

3. A viagem para o Brasil

De Angola, o casal com a filhinha, viajou para Portugal, mas o trâmite para conseguir o passaporte demorou um ano. Durante este tempo de

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5norberto.indd 55 25/11/2010 11:48:48 permanência em Portugal, Isac completou os estudos de liceu10. Enquanto esperava a liberação dos documentos Isac chegou a pensar em fazer o curso de Medicina numa faculdade portuguesa. Neste tempo colaborou com a Igreja Presbiteriana, na cidade de Figueira da Foz, no distrito de Coimbra e arredores. Depois de muitas idas e vindas ao setor competente, finalmente os passaportes foram liberados pelas autoridades portuguesas. Mesmo assim, no aeroporto de Lisboa, a polícia salazarista, braço forte do chamado Estado Novo que vigorou por cerca de quarenta e um anos em Portugal, fez ameaças, estranhando como um missionário metodista angolano tinha conseguido passaporte naquele país. Se, por um lado, os estudos no Brasil trariam ao casal melhores condições para um trabalho missionário mais significativo, por outro, o fato de sair de sua terra lhe causava constrangimento. Entretanto, considerava necessário. No dia 13 de julho de 1962, Graciela e Isac chegaram à São Paulo, trazendo no colo sua filha. O tempo em que Isac passou como estudante na Faculdade de Teolo- gia11 foi analisado por ele como “tempo de plenitude, um tempo de graças” (AÇO, 1992, p. 28). Na verdade, menos de dois anos após a chegada da família, o Brasil mergulhou num período de ditadura iniciado com o Golpe Militar de 31 de março de 1964. Nesta época, muitos seminários teológicos foram fechados, houve prisões dentro e fora da Igreja e muita calúnia, mesmo contra algumas escolas de teologia. Em meio a tudo isso, criou-se “um ambiente de discussão franca, profunda e renovadora” (AÇO, 1992, p. 28). Em agosto de 1964 o casal foi entrevistado pelo jornal da Igreja Metodista, o “Expositor Cristão”, quando falou de diversos aspectos de sua vinda para o Brasil. Entre outras coisas Isac destacou a generosidade da Igreja Metodista do Brasil, por meio da Junta Geral de Missões e Evange- lização (JGME), que proporcionou a bolsa de estudos e este foi o motivo que havia possibilitado a sua vinda. Em 11 de agosto de 1963, nasceu o segundo filho do casal, a quem deram o nome de João Paulo.12 Isac concluiria o curso de bacharel em Teologia em 1966. Graciela formou-se em Educação Cristã na mesma data. Nesta época, eles já haviam recebido recados da polícia de Angola de que seriam presos se retornassem.13 De outra parte, apesar do compromisso de voltarem

10 O Liceu correspondia, em Portugal, ao Ensino Médio, no Brasil. 11 De 1962 a 1966 quando se deu a sua formatura. 12 Durante o período em que foi pastor em Porto Alegre, o casal teve mais dois filhos, Pedro Luiz, nascido em 23 de setembro de 1968 e Felipe André, em 9 de setembro de 1969; ao longo do pastorado em Santa Maria nasceram mais três filhos, Marcos Wesley, nascido em 15 de março de 1973, Daniel Isac, em 21 de setembro de 1976, e o mais jovem, Estevão José, nascido em 19 de novembro de 1978. 13 Na “Retrospectiva” de Aço não há menção do porquê seriam presos se retornassem à Angola nem de quem lhes passou tal informação.

56 Norberto da Cunha Garin: Entre a possibilidade e a contingência

5norberto.indd 56 25/11/2010 11:48:48 a Angola, nunca receberam qualquer comunicação do Bispo da Igreja Metodista daquele país.14 A situação da guerra e a ausência de resposta levaram Isac a contatar com o Presidente da Igreja Metodista, em Portugal. Porém, a resposta foi seca, informando que não tinham necessidade de mais obreiros em seu país. Durante este impasse Isac recebeu o convite do Prof. José Salvador, titular da disciplina de História da Igreja, para ser seu assistente na Faculdade de Teologia, em Rudge Ramos. Este trabalho necessitava ser complementado com o exercício do pastorado, em São Paulo. Entretanto, esta nomeação não foi possível e o casal ficou sem alternativas no final dos estudos de bacharel em Teologia. Depois de algum tempo, passada a formatura, Isac recebeu um te- legrama do Rev. José Pedro Pinheiro, Bispo da 2ª Região, formalizando o convite para lecionar no Instituto João Wesley de Porto Alegre no qual atuou por oito anos.

4. Um missionário ecumênico

O Bispo Isac foi uma pessoa preocupada com a caminhada ecumênica dos/as cristãos/ãs. Considerava que, as pessoas em sua vida diária, já re- alizavam este encontro e esta colaboração, pois havia muita gente fazendo ecumenismo sem se dar conta. O ecumenismo não era uma substituição das tarefas desenvolvidas por diferentes instituições e organismos, mas tratava-se de “unir esses esforços em canais eclesiásticos apropriados, que não substituam aqueles, mas os fortaleçam” (AÇO, 1982, p. 3). Em 1969, como Secretário de Missões e Evangelização da 2ª Região Eclesiástica, em suas considerações sobre a Missão e a Evangelização da Igreja Metodista, no Rio Grande do Sul, fez uma reflexão sobre a unidade da Igreja com mudança de parâmetros da evangelização metodista, antes endereçada a “converter” católicos e trazê-los para o metodismo. Neste texto ele apontava para a “desunidade”15 da Igreja como um elemento de mau testemunho diante de um momento minado pela secularização. Percebia que a falta do espírito de unidade levou muitas pessoas a mer- gulharem em formas não cristãs de viverem sua fé. Foi em Santa Maria que a vocação ecumênica do Bispo Isac se consolidou, ainda como pastor. Decidido a juntar esforços para que a Igreja fosse parte da cidade em todas as suas questões, ele desafiou as lideranças eclesiásticas para se organizarem, reunindo os representantes das Igrejas e expondo como o constrangia a situação das crianças nas

14 O bispo da Igreja Metodista de Angola era um norueguês que nunca havia escrito para o casal ou enviado algum comunicado (AÇO, 1992, p. 28). 15 O termo “desunidade”, cunhado por Isac, marcava a sua percepção da incoerência da Igreja, visto que o seu objeto era unir ao redor de Cristo; quando se dividia em denomi- nações fazia o caminho contrário a sua própria natureza.

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5norberto.indd 57 25/11/2010 11:48:48 ruas da cidade. A partir das reuniões com estas lideranças teve início, em nível ecumênico, um programa de rádio chamado “Amanhecendo com Deus”, no qual meditava sobre este e outros problemas sociais da épo- ca. Também liderou e incentivou a “contestação pela prisão dos líderes bancários”, e organizou “as forças da Igreja, bem como civis para apoio às famílias” (AÇO, 1992, p. 30) dos mesmos. O Bispo Isac manteve contato com organismos ecumênicos nacionais e internacionais. Atuou na Associação Internacional de Estudos de Missão (IAMS), da qual era sócio fundador (AÇO, 1981a, p. 3) e participou de seus três primeiros congressos. Em 1972 participou da 1ª Conferência da Associação em Driebergen, na Holanda.16 Em 1974 esteve na 2ª Confe- rência, em Frankfurt, na Alemanha, cujo tema foi “Missão e Movimentos de Inovação”. Em 1976 foi membro da 3ª Conferência, em São José, Costa Rica, que tratou o tema “Tradição e Reconstrução em Missão: onde estamos nós em Missão hoje?”. Foi também, representante da Igreja Metodista, na Confederação Evangélica do Brasil, em 1974. Ao mesmo tempo em que se entusiasmava com o crescimento da unidade da Igreja pelas diferentes organizações e movimentos, o Bispo Isac se entristecia com os sinais de divisão que se multiplicavam. Du- rante a sua viagem de estudos à Europa, esteve em Portugal, em 1972, de onde escreveu ao Expositor Cristão, lamentando a forma como o protestantismo se dividia na mesma proporção que crescia naquele país (AÇO, 1972, p. 8). Em julho de 1981 participou da 1ª Consulta Latino-americana de Psicologia Pastoral, promovida pela Associação de Seminários e Institui- ções Teológicas (ASIT), em Buenos Aires, em que foi abordado o tema do cuidado e do aconselhamento pastoral, que contou com a assessoria do Dr. Howard Clinebell (AÇO, 1981b, p. 4). Antecedendo a realização do 13º Concílio Geral da Igreja Metodista (Belo Horizonte, julho de 1982), no qual foi eleito bispo, foi entrevistado sobre as suas expectativas quando falou do desejo de que a Igreja con- tinuasse fiel à tradição metodista, mantendo seu posicionamento ecumê- nico. Cabe observar que neste Concílio foi votada a inclusão da Igreja Metodista no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC). Na 6ª Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), realizada em fevereiro de 1983, em Vancouver, Canadá, o Bispo Isac foi um dos delegados da Igreja Metodista. Falando sobre sua participação disse que Vancouver era “um marco da história da Igreja. As Igrejas reunidas olha- ram o final do milênio para afirmarem – Jesus Cristo – a Vida do Mundo,

16 Trata-se de uma organização internacional iniciada em novembro de 1966 quando um pequeno grupo de missiologistas se reuniu em Hamburgo para verificar as possibilidades de cooperação.

58 Norberto da Cunha Garin: Entre a possibilidade e a contingência

5norberto.indd 58 25/11/2010 11:48:48 em oposição à morte presente em todas as esferas da humanidade. E é este Jesus Cristo, vida das pessoas e do Mundo, que as Igrejas são convidadas a seguir, a proclamar e a viver juntas” (AÇO, 1983, p. 16). O Bispo Isac integrou a diretoria do CONIC (S.N., 1991, p. 12) desde 1987, como Secretário da Diretoria (AÇO, 1988d, p. 3) e como presidente, a partir de 28 de novembro de 1990. Fez parte da diretoria da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), no cargo de secretário, de 1988 a 1990. Em um texto sobre o tema da unidade da Igreja, publicado no Expositor Cristão, em 1988, o Bispo Isac fez um levantamento sobre a participação da Igreja Metodista no ecumenismo, mencionando todos os órgãos dos quais a Igreja participava. Após a descrição dos organismos, concluiu: “Em síntese: as igrejas na América Latina e no Brasil, inclusive a Igreja Metodista, estão envolvidas em muitas atividades que expressam sua unidade. Há um espírito de cooperação crescente em muitos setores de base, que representam novas esperanças para o ecumenismo institu- cional (AÇO, 1988c, p. 15). Referindo-se a estes dois modos de participação ecumênica, de base e de igrejas, salientava que há possibilidade de ambos conviverem harmonicamente no seio da Igreja Metodista, pois “um não se contrapõe ao outro; ambos devem complementar-se, para que as manifestações con- juntas de testemunho, serviço e educação tenham a força necessária para apoiar a ação popular na conquista dos direitos fundamentais como parte da missão comum a serviço do Reino de Deus” (AÇO, 1988c, p. 15). O Bispo Isac motivava seus/suas colegas de pastorado e de toda a Igreja, a “abrir janelas e portas” para a caminhada ecumênica. Não se conformava com uma Igreja fechada em seu denominacionalismo. Fazia isto na mesma dimensão que não concordava com as divisões que se formavam dentro da Igreja Cristã. Cria que se devia consubstanciar a própria identidade confessional, para que pudesse entrar no diálogo ecumênico com possibilidade de oferecer uma contribuição à unidade. Ao elaborar uma lição para uma revista-texto da Escola Dominical escreveu um diálogo entre dois personagens que compunham o conselho da Igreja. Neste diálogo, um jovem e um idoso debatiam um plano para transformar a reunião de meio de semana, da igreja local, numa reunião ecumênica. Na argumentação do plano o jovem expressava a sua convicção de “que nossa missão também agora é construirmos em comum, não como se o que somos e temos nada valesse, mas por que o que somos deve ser compartilhado” (AÇO, 1973, p. 24). Como Bispo da Região, muitas vezes desafiava pastores e pastoras a atuarem de forma corajosa em movimentos sociais e a participarem, efetivamente, de eventos e solenidades conjuntamente com outras de- nominações cristãs. Sua atuação ecumênica era um testemunho de sua

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5norberto.indd 59 25/11/2010 11:48:48 postura teológica. O Reino de Deus se estabeleceria na unidade dos/as cristãos/ãs, lutando e sofrendo juntos as dores da desunião, mas cons- truindo conjuntamente um outro perfil cristão, vinculado à unidade. Em 28 de fevereiro de 1988, durante a realização da 5ª Assembleia Geral do Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina e Caribe (CIEMAL), o Bispo Isac foi eleito para presidir o Concílio Epis- copal (AÇO, 1988a, p. 34) desse organismo, cargo no qual veio a falecer (AÇO, 1992, p. 14). Como vice-presidente do CIEMAL, o Bispo Isac representou a en- tidade num painel sobre a Liberdade Religiosa na Nicarágua, em 11 de abril de 1986, em Nova York. Coerente com a sua consciência e com a postura ecumênica do CIEMAL falou que a liberdade de culto deveria ser incluída entre outros direitos fundamentais porque entendia que o direito ao culto fazia parte da autodeterminação de cada nação. Em abril de 1987 realizou-se em Bonn, na República Federal da Alemanha, o segundo seminário promovido pelo CONIC e a Conferência de Igrejas para o Desenvolvimento com o propósito de debater o tema da dívida externa dos países empobrecidos. A dívida externa brasileira, como de resto a dívida de toda a Amé- rica Latina estava entre os temas que ocupavam a sua reflexão. Não se contentava em ser apenas um participante dos debates – atuava como militante e como organizador dos mesmos, tanto nos eventos promovidos pelo CONIC quanto nos efetivados pela CESE, organismos dos quais participava ativamente. Como um dos representantes da Igreja Metodista no Brasil na Confe- rência Geral da Igreja Metodista Unida dos Estados Unidos da América17, o Bispo Isac ajudou a redigir o documento teológico básico sobre o padrão doutrinário daquela Igreja. Em outubro de 1988 esteve no Chile, representando o Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) como observador internacional do referendo constituído de um plebiscito nacional, que consultava a popu- lação chilena sobre a continuidade do General Augusto Pinochet como presidente até 1997. Na ocasião a ditadura militar daquele país foi derro- tada pela ampla maioria da população. Este fato foi comentado pelo Bispo Isac como um “dia radiante no Chile”. Considerava ridículo pensar que os militares garantiram a segurança do pleito, pois, ao invés das forças armadas, foi o povo chileno quem manteve a tranquilidade da consulta popular (AÇO, 1988b, p. 3).

17 A Conferência Geral da Igreja Metodista Unida dos Estados Unidos da América é a ins- tância maior deliberativa e administrativa da Igreja Metodista nos EUA equivalendo no Brasil ao Concílio Geral.

60 Norberto da Cunha Garin: Entre a possibilidade e a contingência

5norberto.indd 60 25/11/2010 11:48:48 Em fevereiro de 1989, O Bispo Isac presidiu o “Encontro Episcopal: Missão para a Paz”, realizado na capital da Nicarágua, na cidade de Manágua, do qual participaram diversos bispos das Igrejas Metodistas da América Latina e da Igreja Metodista Unida, EUA. Na mesma opor- tunidade em que participava do encontro, visitou grupos de Igrejas e para-eclesiásticos, partidos de oposição, órgãos de imprensa, corpo diplomático de diferentes países, corpo ministerial e o Presidente Daniel Ortega Saavedra, que governou a Nicarágua entre 1985 e 1990. Isac era um homem de reflexão e inquieto com a realidade. Distan- ciava-se dela para refletir sobre ela. Num tempo em que se apregoava a necessidade de toda pessoa fixar objetivos para serem atingidos na vida, ele afirmava que, o ideal não era “eleger uma determinada situação para ser alcançada, mas inserir-se no movimento e no dinamismo de sua situação presente para transformá-la” (AÇO, 1974, p. 8). Refletindo ainda sobre a força do mais frágil que é capaz de vencer o mais forte, a pro- pósito da Páscoa de 1976, Aço escreveu uma meditação inspirada numa débil planta de seu jardim, que mesmo sepultada pela laje de cimento, insistia, rompendo a pedra, impondo-se ao peso que a sufocava. Via nesta planta que emergira da pedra, uma força incalculável na aparente debilidade da vida. Considerando a construção da calçada de seu jardim que, ao enterrar a planta supunha o fim de tudo, percebera que a planta ressurgia “diferente, poderosa, renovada!” (AÇO, 1976, p. 18). Considerava que o ideal era estar “a caminho”, inserido na luta, “acei- tar os desafios permanentes para rever posições vividas e transformá-las em novas situações” (AÇO, 1974, p. 8). Mais importante do que atingir a vitória, o ideal não deveria ser o de “estar seguro da travessia, mas ter o barco e estar navegando” (AÇO, 1974, p. 8). Considerava que sendo um ser em polarização entre a criatividade e a contingência o ser humano sempre ficava aquém do que podia torná-lo plenamente humano. Perce- bia que esta polarização não era exclusivamente individual, mas também comunitária, pois o “homem só é homem com os outros” (AÇO, 1975, p. 15). Dentro desta concepção de realização humana considerava valiosa a dimensão histórica. O ser humano se constituía no arquivo da sua própria trajetória: “Ele é o registro de sua história, registro onde ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, autor e leitor crítico, memória, indicador de possibilidades e registro de frustrações” (AÇO, 1975, p. 15).

5. Falecimento

A atuação do Bispo Isac à frente da 2ª Região Eclesiástica foi mar- cada pelo dinamismo de quem sonhava com uma Igreja forte ao lado das pessoas excluídas da sociedade. A construção deste sonho foi inter- rompida na tarde chuvosa de 26 de março de 1991, em um acidente de

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5norberto.indd 61 25/11/2010 11:48:48 carro, na BR 386, município de Montenegro, RS. Ele retornava de uma visita episcopal que fizera ao Instituto Educacional da Igreja Metodista, na cidade de Passo Fundo, juntamente com seus filhos João Paulo e Marcos Wesley18. Esta perda foi sentida com muita intensidade, pela família primeiro e, mais profundamente, pela Igreja Metodista no Brasil e no exterior e pelo mundo ecumênico de forma geral, que perdeu um dos seus maiores batalhadores da época.

Considerações

A visão missionária e a busca insistente por uma Igreja solidária para com as crianças abandonadas e os excluídos de forma geral forjaram a personalidade do Bispo Isac. Este espírito combativo que propugnava por uma sociedade justa na qual todas as pessoas pudessem se realizar como seres humanos dignos marcou sua vida, tanto como jovem meto- dista em Angola, quanto a sua atuação como pastor e depois como bispo da Igreja Metodista no Brasil. Sua morte repentina e trágica interrompeu uma página significativa da história do metodismo. A visão missionária, interrompida com o seu falecimento, deixou desafios à Igreja que ainda se projetam hoje como uma possibilidade a ser continuada.

Referências

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18 Marcos Wesley faleceu neste acidente juntamente com o pai.

62 Norberto da Cunha Garin: Entre a possibilidade e a contingência

5norberto.indd 62 25/11/2010 11:48:48 ______. Para que o sonho não acabe: escritos e mensagens do Bispo Isac Aço. São Paulo: Imprensa Metodista, 1992. ______. “Participação em encontros e simpósios”. In: Mosaico, p. 4 (ago. 1981b). ______. “Terceira assembléia geral: reafirmação do propósito de unidade de ser- viço”. In: Notícias do CONIC, p. 3 (dez. 1988d). ______. “Unidade, Requisito para a Missão”. In: Expositor Cristão, São Paulo, p. 15 (ago. 1988c). ANCHIETA, S. “Estudantes bolsistas de ultramar falam à Igreja Metodista do Brasil”. In: Expositor Cristão, p. 8 (ago. 1964). CAVALHEIRO, J. R. Teria o sonho acabado? São Bernardo do Campo: Faculdade de Teologia, [Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado], 2003. S.N. “Bispo Isac Aço é eleito presidente do CONIC”. In: Expositor Cristão, p. 12 (fev. 1991).

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5norberto.indd 63 25/11/2010 11:48:48 Movimento Voluntário Estudantil (MVE): uma das raízes históricas da Confer- ência de Edimburgo em 1910

Student Volunteer Movement (SVM): one of the historical roots of the Edinburgh Conference in 1910

Movimiento Voluntario Estudiantil (MVE): una de las raíces históricas de la Conferencia de Edimburgo en 1910

Moisés Abdon Coppe

Resumo O presente artigo intui que nas ênfases do Movimento Voluntário Estudantil encontra-se uma das mais expressivas raízes que provocaram a Conferência Missionária de Edimburgo em 1910. Evidencia também que o que concebemos na atualidade como movimento ecumênico decorre da ação e atuação dos estudan- tes missionários, sob a sombra de John Raleigh Mott, um dos mais expressivos líderes do movimento ecumênico incipiente. Palavras-chave: Movimento Estudantil; missão; John Mott; ecumenismo; Edimburgo.

Abstract The present article senses that in the Student Voluntary Movement emphasis meets one of the most expressive roots than they provoked the Missionary Conference of Edimburg in 1910. It also evidences that what conceived at the present time as ecumenical movement elapses of the action and the missionary students’ performance, under the shade of John Raleigh Mott, one of the most expressive leaders of the incipient ecumenical movement. Keywords: Student Movement; mission; John Mott; ecumenism; Edinburgh.

Resumen El presente artículo discierne que en el énfasis del Movimiento Voluntario Estudiantil se encuentra una de las raíces más expresivas que provocaron la Conferencia Misionera de Edimburgo en 1910. Él demuestra también que lo que concebimos en la actualidad como movimiento ecuménico emana de la acción y actuación de los estudiantes misioneros, bajo la sombra de John Raleigh Mott, uno de los más expresivos líderes del movimiento ecuménico incipiente. Palabras clave: Movimiento Estudantil; misión; John Mott; ecumenismo; Edimburgo.

Moisés Abdon Coppe: Movimento Voluntário Estudantil (MVE)

6moises.indd 64 25/11/2010 13:49:25 Introdução

O objetivo deste artigo é refletir sobre as ênfases do Movimento Voluntário Estudantil (MVE) que se estabeleceram como uma das raízes históricas da Conferência Missionária de Edimburgo em 1910. Nossa pesquisa será de caráter bibliográfico, e, de antemão, deixamos claro que as fontes são parcas. Em um primeiro momento, abordaremos a evolução dos movimentos missionários e estudantis a partir do final do século 19, com destaque para o papel ativo de John Mott nesse processo. Em segundo lugar, procuraremos estabelecer sumariamente a identidade cultural, histórica e teológica dos referidos movimentos e os aspectos que deram origem à referida Conferência que marca, iconicamente, o início do movimento ecumênico.

1. A evolução dos movimentos de juventude – missão e educação

Juventude é um conceito moderno. Nas sociedades mais antigas, o conceito não era em nada relevante, apenas distinguindo um estágio do processo de formação do adulto. Somente a partir do século 19, o conceito de juventude ganhou significado sociopolítico importante. A abor- dagem do tema juventude, portanto, remete-nos necessariamente a uma categorização sociológica. Na passagem do século 19 para o 20, houve uma proliferação de projetos que visavam estruturar as juventudes, assim como controlá-las. Surge dessa mobilização europeia a expressão Era da adolescência, cunhada por Gillis (1981), que traça um itinerário da noção de juventude e as grandes evoluções surgidas a partir dessa categorização sociológica na Europa, no final do século 19. É nesse contexto que nas- cem, por exemplo, o Movimento Voluntário Estudantil (MVE), a Associação Cristã de Moços (ACM) e a Federação Mundial do Movimento Estudantil Cristão (FUMEC). Trataremos de forma mais específica o MVE.

1.1. O Movimento Voluntário Estudantil (MVE) David Bosch, ao se referir aos múltiplos movimentos voluntários surgidos no final do século 17, afirma que eles constituíram um dos mais notáveis fenômenos da era iluminista. Essas sociedades missionárias protestantes se caracterizavam por estilos diferentes: denominacionais, interdenominacionais, não-denominacionais e, outras, inclusive, antide- nominacionais. A princípio, se mostraram tímidas e hesitantes, entretan- to, mais precisamente no final do século18, tornaram-se mais seguras, proliferando-se em vários países protestantes tradicionais, tais como: Inglaterra, Alemanha, Países Baixos, Suíça, Países Escandinavos e Es- tados Unidos.

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6moises.indd 65 25/11/2010 11:49:14 Na década de 1880, com o advento do auge imperialista, ocorreu uma se- gunda onda de novas sociedades; uma vez mais, engajou-se todo o mundo protestante, mas estava claro, então, que os Estados Unidos se destacavam dentre os demais países, não só em relação ao número de missionários en- viados ao exterior, mas também na quantidade de novas sociedades criadas (BOSCH, 2002, p. 395).

Bosch indica que entender esse fenômeno não é tarefa fácil, mas não se pode negar o espírito de empreendimento e iniciativa gerado pelo Ilumi- nismo. Se no início do século 16 não se podia considerar a ideia de uma sociedade ou agência missionária, no final do século 17 emergiu um novo ânimo. Indivíduos com os mesmos interesses começaram a se reunir visan- do a causas comuns. “Fundamentalmente, as sociedades se estruturavam todas com base no princípio do voluntariado e dependiam da contribuição, em termos de tempo, dedicação e dinheiro, de seus membros” (BOSCH, 2002, p. 396). A maior parte dessas sociedades era formada por jovens estudantes que almejavam levar à frente o “destino manifesto”. Embora se tenham originado a partir das quatro posturas em rela- ção às denominações, como citado anteriormente, essas sociedades, na quarta década do século 19, alcançaram um clima ecumênico. Os jovens universitários e missionários, no encontro com a cultura a ser evangelizada se viam diante de valores que os motivavam a pensar sobre o significado de uma inserção missionária em outra cultura. Muitos deles passaram a se sentir confortáveis em outras culturas e a se abrirem para o diálogo. Precisamos considerar que esse clima sofreu uma reação por parte das posturas mais confessionais das igrejas históricas. A ênfase deste con- fessionalismo era apontar para a estrutura interna da própria igreja, ao invés de apontar para Deus e para o futuro – uma das ênfases dos jovens universitários. Os movimentos de reavivamento espiritual que ocorreram tanto na Europa como nos Estados Unidos são um exemplo do que aca- bamos de pontuar1. Entretanto, Bosch (2002, p. 401) destaca:

No fim do século 19, o pêndulo oscilou novamente em direção à missão por meio de sociedades e a um espírito mais ecumênico. Isso representou, ao mesmo tempo, uma reafirmação do princípio do voluntariado. Formou-se uma grande quantidade de novas agências de missionários voluntários no decorrer dos, aproximadamente, últimos cem anos. Mas exatamente como expressão do espírito do voluntariado, também ilustram o moderno estado de espírito ocidental de ativismo, “bom-mocismo” e destino manifesto.

1 Não é nossa intenção abordar os movimentos de reavivamento estadunidenses. Uma importante obra que considera o assunto é de Reily (2003).

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6moises.indd 66 25/11/2010 11:49:14 É nessa linha do “bom-mocismo” que, no ano de 1886, nasce em Monte Hermon, Massachusetts, EUA, o Movimento Voluntário Estudantil, basicamente formado por jovens universitários diplomados, que se colo- cavam à disposição de agências missionárias com o intuito de realizarem missão em outros países, especialmente os não-cristianizados. O MVE foi instrumento para enviar cerca de 20.500 estudantes, a maioria, norte-americana (TUCKER, 1986, p. 279), para os diversos campos missionários no exterior. É preciso considerar que esse processo não era bem-visto, principalmente pelos familiares, uma vez que esses estudantes eram jovens com promissoras carreiras profissionais.

Os voluntários eram desafiados a partir sem quaisquer garantias financeiras, simplesmente baseados na confiança de que o Senhor da missão se encar- regaria desse aspecto. Para alguns, eles eram heróis da fé; para outros, uns tolos; segundo eles próprios, “tolos por amor a Cristo”. Não se dispunha de tempo para avanços timoratos ou diligentemente preparados em território pagão, nem para a morosa edificação de igrejas “autônomas’ no “campo de missão”. Fazia-se necessário proclamar o evangelho a todas as pessoas o mais rapidamente possível, e para isso jamais haveria um número suficiente de missionários. A urgência também significava que não havia tempo nem necessidade para uma extensa preparação ao serviço missionário (BOSCH, 2002, p. 401-402).

Segundo Tucker, (1986, p. 279) “apesar de suas falhas, os estudan- tes voluntários se achavam entre os missionários mais dedicados que jamais fizeram parte do serviço das missões” . E acrescenta: “Eles eram impulsionados por uma intensidade de propósito raramente igualada e se dedicavam à evangelização do mundo através de todo e qualquer meio necessário” (TUCKER, 1986, p. 280).2 Apesar de o MVE ter-se inicialmente caracterizado por seu afã missionário, com uma concentração na leitura da Bíblia, certo é que os estudantes, que se formavam num contexto liberal, adaptaram “sua fé à nova cultura a fim de atrair mais pessoas para o cristianismo” (TUCKER, 1986, p. 280). É claro que essa abertura a novas culturas favoreceu a ampliação teológica. Tucker (1986, p. 280) assinala:

2 A pesquisa histórica de Tucker foi fundamental para a recriação deste relato memorial, mas a orientação teológica da autora possui características mais conservadoras. Em seu relato, ela deixa transparecer sua opção teológica, como no caso da expressão: “todo e qualquer meio necessário”, dando a ideia de que os estudantes missionários utiliza- vam qualquer lógica para atingirem seus objetivos, o que não é tão coerente afirmar. Na verdade, Tucker questiona a abertura liberal que o movimento sofreu durante suas incursões tanto na China como na África e em outros continentes.

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6moises.indd 67 25/11/2010 11:49:14 Devido às Convenções Quadrienais, realizadas regularmente e patrocinadas pelo Movimento Voluntário Estudantil, havia um elo interdenominacional entre os estudantes voluntários que jamais houvera num movimento missionário dessa amplitude. O resultado desta associação foi um esforço de cooperação positivo entre os missionários raramente visto antes; mas ele também abriu as portas para o movimento ecumênico. Esta preocupação com a unidade, juntamente com a abordagem modernista das Escrituras, teve efeitos a longo prazo sobre a evangelização mundial.

Indubitavelmente, o Movimento Voluntário Estudantil sinalizou, em sua ação e reflexão, o futuro do movimento ecumênico. Suas ênfases recaiam sobre: esforço de cooperação entre denominações diferentes; preocupação com a unidade da Igreja; abordagem mais modernista ao conhecimento e estudo da Bíblia; ampliação do discurso teológico e ampliação e ação mais intensa junto aos povos. Essas ênfases foram retomadas posteriormente, de uma forma mais amadurecida, pela Con- ferência de Edimburgo.

Para muitos estudantes voluntários, o mundo inteiro e não só um país era o seu campo missionário. Enquanto vários se estabeleceram em um só campo e dedicaram sua vida a uma pequena área, inúmeros outros mudaram de campo e viajaram através do mundo num esforço para alcançar a elite – as classes educadas que podiam exercer mais influência sobre seus seme- lhantes. Os estudantes voluntários foram os introdutores da ACM e outras organizações que forneceram uma rede de apoio aos estudantes cristãos através de todo o globo (TUCKER, 1986, p. 280).

As organizações a que se refere Tucker eram a Associação Cristã de Moços (ACM) e a Federação Mundial do Movimento Estudantil Cris- tão (FUMEC)3, que não serão consideradas neste artigo. Somente com a finalidade de registro, citaremos o nome de alguns estudantes, talvez os mais relevantes: Charlie Thomas Studd e seu irmão, John Edward Kynaston Studd, Robert E. Speer, W. Temple Gairdner, William Paton, Fletcher Brockman, E. Stanley Jones, John Mott, entre outros (TUCKER, 1986, p. 280). Por razões que se tornarão óbvias no desenvolvimento desse artigo, vamos nos ater à figura de John Raleigh Mott.

1.2. John Raleigh Mott e a FUMEC De acordo com Tucker (1986, p. 287),

Foi John R. Mott, mais do que qualquer outro indivíduo, que influenciou a ida de estudantes para o campo missionário nas décadas seguintes. Embora fosse leigo e jamais um verdadeiro missionário na acepção da palavra, sua influ- 3 World Students Christian Federation (WSCF).

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6moises.indd 68 25/11/2010 11:49:14 ência nas missões se comparou e talvez ultrapassou – a de seu ídolo, David Livingstone, “cujas realizações heróicas, semelhantes a Cristo”, nas palavras de Mott, “forneceram a motivação missionária que dominou minha vida”.

Mott era um desses estudantes abastados que abriu mão das possibi- lidades acadêmicas, do prestígio e da riqueza para se dedicar às missões mundiais, apesar de ter sido, ao longo de sua jornada, uma pessoa bem relacionada em todo o mundo. Mott nasceu e cresceu em Iowa, e tornou- se ativo membro da Igreja Metodista Episcopal. Aos 16 anos, em 1881, Mott saiu de casa para frequentar a Upper Iowa University, tornando-se ali membro fundador da Associação Cristã de Moços. Quatro anos depois, transferiu-se para a Universidade de Cornell, “onde estudou Ciências Políticas e História” (TUCKER, 1986, p. 287). Foi mediante a pregação de J. E. K. Studd que Mott vivenciou uma experiência especial, que o levou a considerar o crescimento espiritual e a evangelização como prioridades. Entretanto, foi na Conferência de Es- tudantes Cristãos, realizada em Monte Hermon, Massachusetts, que Mott, representante da Universidade de Cornell na conferência, passou um mês “sob a tutela de D. L. Moody e outros renomados professores da Bíblia” (TUCKER, 1986, p. 288). Decorre desse discipulado a seguinte situação:

No último dia da conferência, Robert Wilder, um entusiasta das missões de Princeton, apresentou um desafio missionário que se transformou num apelo insistente por um compromisso pessoal. Como resultado, cem estudantes, mais tarde chamados de “Cem do Monte Hermon”, assinaram o “Pacto de Princeton” (“Tomo a decisão, se Deus quiser, de tornar-me um missionário para o exterior”) que logo se tornaria o juramento de iniciação no Movimento Voluntário Estudantil. Mott estava entre os cem que assinaram e essa reunião foi o início do Movimento Voluntário Estudantil para as Missões Estrangeiras (oficialmente organizado em 1888) (TUCKER, 1986, p. 288).

Mott, como líder do Movimento Voluntário Estudantil, convenceu muitos estudantes para a “Evangelização do mundo nesta geração”.4 Para ele, a melhor maneira de realizar este propósito era mobilizar milhares de estudantes com o “objetivo de levar o evangelho até os confins da terra”. Mott estava convencido de que a formação dos estudantes poderia, em

4 Disponível em , acesso em 19 nov. 2008. Essa expressão é atribuída a Arthur Tappan Pierson (1837- 1911), professor de Bíblia da Igreja Congregacional, que se tornou um dos importantes líderes do movimento das missões modernas. “Esse slogan tanto refletiu quanto gerou o efervescente otimismo missionário do período. Mais do que qualquer outra coisa, resumiu o espírito missionário protestante da época: pragmático, resoluto, ativista, impaciente, seguro, franco, triunfante” (Cf. BOSCH, 2002, p. 405).

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6moises.indd 69 25/11/2010 11:49:14 muito, proporcionar um avanço do evangelho. Em nossa concepção, isso ocorreu por dois motivos específicos: em primeiro lugar, porque esses jovens tinham formação acadêmica, o que proporcionava uma melhor inserção como missionários em diferentes contextos culturais. O diálogo com culturas diferentes era favorecido pela sensibilidade acadêmica para aceitação do outro e sua diferença. Em segundo lugar, porque esses es- tudantes eram oriundos de diversos e diferentes movimentos religiosos. Essa abrangência ecumênica favorecia a contextualização da mensagem e, logicamente, a interlocução com pessoas distintas. De qualquer forma: As atividades de Mott com o MVE estavam ligadas de perto com as suas atividades na ACM, cuja organização ele serviu eficientemente por mais de quarenta anos, dezesseis deles como secretário geral. Nessas atividades, as viagens se tornaram um modo de vida e tão logo uma volta ao mundo terminava, ele já se punha a planejar outra. Enquanto viajava, ele assistia os missionários residentes assim como os estudantes nativos e procurava desenvolver uma rede mundial de atividade unificada. Ao trabalhar nesse sentido, ele ajudou a organizar a Federação Mundial do Estudante Cristão, uma organização internacional independente de es- tudantes cristãos que sob a sua liderança ampliou-se de forma a incluir sociedades em cerca de três mil escolas (TUCKER, 1986, p. 289). Percebe-se uma nítida aproximação entre Mott e os movimentos de juventude. E essa abrangência de sua ação se ampliou com a realiza- ção da conferência de Edimburgo 1910. Indubitavelmente, nos aspectos basilares do MVE, salientados anteriormente, se fundam os ideais da Conferência Missionária.

2. Edimburgo como fruto do MVE

Um ponto alto da ação missionária de Mott foi a realização, sob sua organização e presidência, da Conferência Missionária de Edimburgo (Escócia), de 14 a 23 de junho de 1910. O evento contou com 1.355 participantes, sendo a primeira conferência missionária internacional e interdenominacional. Ela deu um ímpeto significativo para o movimento ecumênico que se estruturou posteriormente. Plou (2002, p. 20) informa que essa Conferência contava

com representação de todas as missões protestantes europeias e estaduni- denses para tratar da questão da obra de missão na Ásia, África e Oceania, com exclusão expressa da América Latina. Essa exclusão não era casual, mas se devia ao fato de que para algumas missões europeias, principal- mente as alemãs e a Igreja da Inglaterra, os povos latino-americanos eram nominalmente cristãos e a ênfase, naquele momento, devia ser dada à evangelização das nações não-cristãs.

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6moises.indd 70 25/11/2010 11:49:14 Com uma informação que segue a mesma linha, com algumas vari- áveis, Piedra (2006, p. 28) assinala que

Essa conferência, contudo, representou um grande obstáculo para as or- ganizações que, à margem da ajuda das grandes igrejas protestantes da Europa e dos Estados Unidos, trabalhavam em áreas sob o controle religioso da Igreja Católica. Por isso é que, no futuro, os diretores e missionários das “missões de fé” culparão a conferência pelas repercussões negativas em suas atividades na época determinada. Os líderes da Conferência de Edimburgo foram questionados por ter inspirado e fortalecido o trabalho missionário principalmente na Ásia e na África, em detrimento da obra missionária pro- testante na América Latina.

Não vamos considerar aqui os pormenores que levaram à exclusão da América Latina das ações evangelizadoras dos missionários, vários deles ligados ao MVE. Importa dizer que um ano depois da Conferência de Edimburgo, Mott escreveu “A hora decisiva para as missões cristãs”, para melhor orientar o trabalho missionário ao redor do mundo. O esforço na cooperação das várias agências missionárias, representadas por dis- tintas denominações protestantes, incluindo o catolicismo romano, para a expansão do Cristianismo às nações não-cristãs, gerou o chamado “es- pírito missionário”, ou seja, o espírito de união para alcançar um mesmo objetivo. Portanto, o Movimento Ecumênico nasceu desta tentativa de cooperação (SILVA, 1996, p. 24). Essas e outras discussões contribuíram, posteriormente a Edim- burgo, para a diminuição do afã missionário do MVE. A preocupação dos estudantes, marcada pela missão como anúncio do cristianismo em terras estrangeiras se ampliou para a esfera sociopolítica. A pregação do evangelho se imbuiu das ênfases do Evangelho Social.5 Dessa forma, os estudantes missionários começaram a se preocupar profundamente com as crises e desajustes sociais presentes em cada continente, principalmente em regiões desfavorecidas economicamente. Essa preocupação também era oriunda das discussões de Mott com os estudantes voluntários. Ele mesmo sempre enfatizou as dimensões sociais na evangelização mundial, mas nunca como foco principal da ação dos estudantes voluntários. De

5 A Teologia do Evangelho Social é oriunda do pensamento e ação de Walter Rauschen- busch. Para ele, não somente os indivíduos, mas as associações coletivas dos homens se encontravam sob o juízo de Deus. Além disso, como tanto o mal social quanto o bem social são coletivos, e os cristãos fazem parte dessa coletividade. Eles são também chamados à reconstrução da sociedade com parte de sua obediência a Deus. Ponto de convergência entre os membros do movimento era a ideia de que o capitalismo repre- sentava um grande obstáculo à implementação do reino de Deus. Cf. Bosch (2002, p. 388 a 393).

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6moises.indd 71 25/11/2010 11:49:14 fato, em todas as conferências até então realizadas, a discussão em torno do Evangelho Social sempre esteve presente. E, finalmente, é preciso considerar que o esfriamento das missões estrangeiras decorreu também da hecatombe originada pela 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Na contramão desse esfriamento, surgiu uma impor- tante organização de cunho ecumênico (1918). Silva assim nos informa: “Nesse mesmo ano, surgiu a “Federação Mundial para a Cooperação Fraterna entre as Igrejas, preocupada com a responsabilidade comum das igrejas cristãs por uma solução pacífica dos problemas internacionais e sociais” (ibid, p. 26). Digno de nota é o fato de que muitos dos que estiveram em Edimburgo e também na organização dessa Federação, eram oriundos do MVE. Assim, o primeiro quarto do século 20 foi carregado de anseios rele- vantes – sobre os quais se estruturou o movimento estudantil e dos quais Mott partilhava – para uma prática ecumênica e de serviço para além dos guetos denominacionais. Ao longo de toda a sua vida, tendo se dedicado aos movimentos missionários, Mott, posteriormente, participou ativamente do processo de formação do Conselho Mundial de Igrejas.6 Obviamente, também foi duramente criticado pelos fundamentalistas, que o acusavam de liberal quanto ao seu ponto de vista sobre as missões transculturais.

Conclusão

É inegável o fato de que a Conferência de Edimburgo foi emblemática para o movimento ecumênico mundial. Plou (2002, p. 22) assinala que ela é “considerada como o ‘lugar de nascimento do movimento ecumênico’”. Embora seja evidente essa constatação, por parte dos seus intérpretes posteriores, pois o termo ecumênico foi evitado em Edimburgo (DIAS, 2008, p. 29), não podemos deixar de avaliar o fato de que a referida Conferência possui como uma das suas raízes as ênfases presentes no

6 “Depois de existirem independentes por um tempo, os movimentos conformados pela Conferência Mundial do Cristianismo Prático (Movimento de Vida e Ação), pela Comissão de Fé e Ordem, pela Aliança Mundial para a Amizade Internacional através das Igrejas, pela Associação Cristã de Moços(as) e pela Federação Mundial de Estudantes Cristãos, começaram, nos inícios da década de trinta, a expressar seu desejo de se integrarem num único organismo [...] Em 1932, o Movimento de Vida e Trabalho e a Aliança para a Amizade Internacional passaram a ter um único Secretário-Geral. [...] Ainda nesse ano, por proposta de William Adams Brow, secretário administrativo de “Vida e Trabalho”, foi convocada uma reunião, pelo Arcebispo de York (William Temple, importante figura de “Fé e Ordem” e um dos principais líderes de todos os movimentos acima mencionados), com os representantes do Conselho Internacional de Missões. [...] O processo de discus- são – que então se deslanchou – fez emergir a figura de J. H. Oldham, que vai passar a desempenhar um papel decisivo para a constituição do Conselho Mundial de Igrejas” (DIAS, 2008, p. 34-35).

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6moises.indd 72 25/11/2010 11:49:14 MVE, que no seu paulatino desenvolvimento, sempre buscou a ampliação da missão cristã coligada à unidade da Igreja. É claro que a “ponte” entre o MVE e Edimburgo se estabelece no papel vultoso de Mott que procurou estabelecer a dialética entre a mis- são da Igreja em um mundo em mutações com o movimento estudantil. Por exemplo, em 1940, por ocasião de uma visita ao Brasil, Mott sugeriu a criação de uma organização estudantil que provocasse a presença fronteiriça da Igreja nas universidades. Surgia o Movimento Cristão de Acadêmicos do Brasil (MCAB). Portanto, nossa intuição persegue o fato de que as ênfases dos movimentos estudantis na Europa e Estados Unidos provocaram a forma- ção do que hoje configuramos como movimento ecumênico. Nessa linha, podemos abrir novas possibilidades de discussão. É claro que outros desdobramentos acadêmicos se tornam necessários para a ampliação do tema em questão. O movimento ecumênico, de origem protestante, que tem por raízes as ênfases do MVE, com legados que ainda se embrenham na aventura ecumênica e cujas bases se ampliaram posteriormente na Igreja Ortodoxa e na Igreja Católica (Vaticano II) engrossou seus rincões ao longo da história do movimento ecumênico, possibilitando diálogos inimagináveis, seguindo a linha do que um dos grandes apoiadores do movimento estudantil no Brasil, Dom Hélder Câmara, nos sugere:

Que toda palavra nasça da ação e da meditação. Sem ação ou tendência à ação ela será apenas teoria que se juntará ao excesso de teoria que está levando os jovens ao desespero. Se ela é apenas ação sem meditação ela acabará no ativismo sem funda- mento, sem conteúdo, sem força... Presta honras ao Verbo eterno servindo-te da palavra de forma recriar o mundo.

Referências

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6moises.indd 73 25/11/2010 11:49:14 1960. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião). Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, 2009. DIAS, Z. M. “Evangelho e ideologia: uma mistura não premeditada (o caso do Protestantismo Brasileiro)”. In: ALVES, R. et al. Fé cristã e ideologia. Piracicaba: Editora da UNIMEP/ Imprensa Metodista, 1981. ______. “Etapas no desenvolvimento histórico do movimento ecumênico”. In: TEI- XEIRA, F. e DIAS, Z. M. Ecumenismo e diálogo inter-religioso: a arte do possível. Aparecida: Santuário, 2008. FERNANDES, W.; MOTA, J. C. Histórico da União Cristã de Estudantes do Brasil. São Paulo: edição do autor, 1945. GILLIS, J. R. Youth and History: tradition and change in European age relation. 1770 – present. New York/ London: Academic Press, 1981. GROPPO, L. A. Uma onda mundial de revoltas: movimentos estudantis de 1968. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2005. MENDONÇA, A. G.. O Celeste Porvir. São Paulo: UMESP, 2002. ______. Protestantes, pentecostais & ecumênicos. São Paulo: UMESP, 1997. MOTA, J. C. “O Estudante Cristão”. In: Serie Excelsior. Vol.1. São Paulo [s/e], 1948. PIEDRA, A. Evangelização protestante na América Latina. São Leopoldo: Sinodal; Equador: CLAI, 2006. PLOU, D. S. Caminhos da unidade: itinerário do diálogo ecumênico na América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 2002. POTTER, P.; WIESER, T. Seeking and serving the truth: The first hundred years of the World Student Christian Federation. Switzerland: World Council of the Churches, 1997. REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2003. SILVA, H. A era do furacão: história da Igreja Presbiteriana do Brasil – 1959-1966. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 1996. TUCKER, R. A. “... Até aos confins da terra.” Uma História Biográfica das Missões Cristãs. São Paulo: Vida Nova, 1986.

74 Moisés Abdon Coppe: Movimento Voluntário Estudantil (MVE)

6moises.indd 74 25/11/2010 11:49:14 Missão e Estado laico: anotações para uma reflexão preliminar*

Mission and secular State: Notes for a preliminary reflection

Misión y el Estado laico: Apuntes para una reflexión preliminar

Roseli Fischmann

Resumo Este artigo propõe-se a refletir, com base teórico-documental, interdisciplinar, sobre o Estado laico em relação com a temática da Missão. Discute conversão e missão, apontando relações com a laicidade estatal. Palavras-chave: Estado laico; missão; conversão e cidadania; relação Estado- religiões; pluralidade religiosa.

Abstract This paper seeks to reflect on the “laïc” State in relation to the theme of Mission, from preliminary results of interdisciplinary theoretical and documental research, particularly discussing conversion, Mission, citizenship and State “laïcité”. Keywords: Secular State; mission; conversion and citizenship; relation between State and religion; religious plurality.

Resumen Con base teórico-documental e interdisciplinar, este artículo propone una reflexión, sobre el Estado Laico con relación al tema de la Misión. Se discute conversión y misión, señalando relaciones con el laicismo estatal. Palabras clave: Estado laico; misión; conversión y ciudadanía; relación entre Estado y religiones; pluralidad religiosa.

* Este artigo integra resultado parcial de pesquisas apoiadas pelo CNPq. A autora agradece aos editores, professores Helmut Renders e Nicanor Lopes por lhe fazerem o convite para pensar este tema - provocação acadêmica que rendeu muito estudo e mergulhos em materiais já pesquisados, gerando, com isso ressignificados e novas questões produtivas, ainda a fermentar, cujos ganhos este artigo, isoladamente, não pode expressar.

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7roseli.indd 75 25/11/2010 11:49:42 E’ prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas. Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890

But a religion true to its nature must also be concerned about man’s social conditions… Any religion that professes to be concerned with the souls of men and it is not concerned with the slums that damn them, the economic conditions that strangle them, and the social conditions that cripple them is a dry-as-dust religion.1 Martin Luther King

Introdução

Um breve olhar lançado à literatura ampla e diversa, ligada a dife- rentes crenças, sobre o tema da missão indica que existe um pêndulo oscilante a nortear a relação entre as religiões e denominações, ou pen- sando em nível individual, seus membros, adeptos ou fiéis, com relação ao que consideram seu compromisso missionário. Esse pêndulo oscila entre a perspectiva da relação individual, e mesmo individualista, com a divindade, e a relação social como caminho necessário e inevitável para a própria prática religiosa plena. O oscilar do pêndulo se dá tanto entre grupos constituídos no interior de cada co- munidade religiosa, como também historicamente. Ao mesmo tempo, cada um dos pólos não é unívoco, mas tem nu- ances, por entre as quais passeia o pêndulo, em seu oscilar, havendo tendências predominantes em diferentes momentos, conforme as forças sociais se relacionem com o fenômeno religioso e vice-versa. Pode-se dizer que é o momento em que se manifesta, dentro de dada singularidade de crença, a própria pluralidade humana que gera a diversidade religiosa. Central no interior de algumas comunidades religiosas, definir qual a missão que tem determinada igreja e seus membros, em determinado momento, pode se constituir em ocasião de conflitos e embates. Seme- lhantes conflitos não se dão exclusivamente no interior de cada grupo religioso, mas podem, com facilidade, ocupar a sociedade mais ampla e mesmo direcionar-se ao Estado. Caberia, assim, perguntar qual a relação do tema da missão com o Estado e, em particular, do Estado laico.

1 “Mas uma religião fiel à sua natureza tem que se preocupar com as condições sociais do ser humano... Qualquer religião que professe estar preocupada com as almas dos seres humanos e não esteja preocupada com as condições de vida que os desgraçam, as condições econômicas que os sufocam, e as condições sociais que os mutilam, é uma religião obtusa.” (MORRIS, 1984, tradução nossa).

76 Roseli Fischmann: Missão e Estado laico: anotações para uma reflexão preliminar

7roseli.indd 76 25/11/2010 11:49:42 Este artigo propõe-se, então, a empreender uma reflexão sobre questões do Estado laico em suas relações com a temática da missão. Preliminarmente serão apresentados alguns exemplos de conceituação de missão, em especial na relação com o tema da conversão, para, a seguir, tratar de características do Estado laico, buscando estabelecer que tipo de relação se estabelece entre essas duas dimensões da vida política, cultural e social. Metodologicamente procedendo de pesquisa teórico-documental, vale-se de referencial interdisciplinar, notadamente amparado em estudos de educação, filosofia, direito, teologia, ciência política, antropologia e história.

1. Missão, conversão e nacionalidade

O tema da missão, por se constituir em campo próprio de estudos, alerta para os riscos de qualquer simplificação, mesmo a título de exercício acadêmico. A própria dificuldade relativa aos diferentes sentidos do termo “missão” em diferentes contextos, religiosos ou não2, adiciona complexida- de à reflexão. Por exemplo, Bosch (2002, p. 24-26) menciona a existência de um “pluriverso de missiologia”, ainda que pensando exclusivamente no universo cristão como aplicação do termo. A coexistência do uso do termo em universos religiosos distintos, mais ainda, vem a constituir um campo complexo de estudos e vivências. Contudo, a relevância de com- preender sua relação com o Estado, ainda que preliminarmente, sugere que alguns tópicos mais cruciais sejam abordados, como a lançar uma pauta de estudos futuros. É o que procura delinear esta sessão, a partir de temas que propiciem o diálogo com outras ciências. O necessário ponto de partida para a compreensão da missão é de onde, ou de quem, ela provém. Visto de fora, percebe-se que a pessoa que atua “em missão” sente-se portador, ou portadora, de um mandato. Nesse sentido, há religiões que definem uma missão de expansão no mundo, em busca de conquistar outros para a mesma crença, enquanto há religiões que definem a missão mais em termos internos a seus mem- bros, sem intuito de a outros atingir para, desse modo, incluí-los em sua comunidade, a de origem da missão. São aspectos distintos de distintos fenômenos que se valem de um mesmo termo, a saber, “missão”. Nesse sentido, e pensando o contexto cristão, Bosch afirma:

Temos de distinguir entre missão (no singular) e missões (no plural). O primeiro conceito designa primordialmente a missio Dei (missão de Deus),

2 O termo missão, originalmente de origem religiosa, paulatinamente, como se sabe, passou a ser utilizado em outros campos, como o da diplomacia, dos serviços públicos civis e mi- litares, em âmbito nacional e internacional, além da contemporânea utilização do termo no ambiente corporativo-empresarial, em particular na definição do planejamento estratégico.

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7roseli.indd 77 25/11/2010 11:49:42 isto é, auto-revelação de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvi- mento de Deus no e com o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa nova de que Deus é um Deus-para as/ pelas-pessoas. Missões (as missiones ecclesiae [“missões da igreja”]: os empreendimentos missionários da igreja) designa formas particulares, rela- cionadas com tempos, lugares ou necessidades específicos, de participação na missio Dei... (BOSCH, 2002, p.28).

A seguir, são trechos relativos à narrativa das conferências e deba- tes ocorridos durante a 59ª Semana Wesleyana, que auxiliam a propor a pauta preliminar antes referida. Durante a mencionada Semana, o conferencista convidado, Wesley Ariarajah, pastor metodista do Sri Lanka e professor de teologia, traz o tema da relação entre missão, proselitismo e conversão, afirmando a missão mais como testemunho do que busca de conversão de outros:

Caberia, então, ao povo judaico ser testemunha de Deus diante dos outros povos. “Não há nenhuma tentativa em transformar as pessoas em judias. Até hoje o judaísmo não é proselitista”, afirmou o teólogo.

Deus escolheu Israel para ser testemunha entre as nações, mas Israel não recebe a incumbência de converter os outros povos ao judaísmo. O povo de Israel recebe a incumbência de testemunhar a ação de Deus – e neste sentido seu papel é uma necessidade absoluta” (TUNES, 2010).

Ainda da mesma 59ª Semana Wesleyana, Wesley Ariarajah reitera o tema da conversão, da direção imprimida ao anúncio e da correspondente expectativa a alimentar ou não:

“Não estou dizendo que não devamos espalhar o Evangelho”, disse o pales- trante. “Evangelho é Boas Novas e precisa ser anunciado. Haverá comuni- dades que se tornarão cristãs, mas esse não é o objetivo da missão”.

Ao tratar o budismo comparativamente com o cristianismo (vale lembrar a presença dessa tradição no Sri Lanka, onde vive o professor) Ariarajah traz o tema da missão em sua relação com outras religiões, ou denominações, afirmando que:

... na Ásia, conversão é uma questão complicada. Embora conversão seja a transformação dos corações na direção de Deus; para muitos/as cristãos/ãs a conversão é vista como tirar uma pessoa de uma comunidade para levar para outra. Por isso, a missão cristã é temida, não é tida como missão de cura. O mesmo não ocorre, por exemplo, com o budismo, explicou Ariara-

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7roseli.indd 78 25/11/2010 11:49:42 jah. O budismo começou como religião pequena no norte da Índia. Hoje é majoritário no Sri Lanka, China, Índia, Tibet, Japão, Tailândia, Taiwan, Hong Kong... “O budismo é a religião de missão mais bem sucedida no mundo”, diz ele. “Nunca houve um império budista. O budismo nunca foi promovido pela espada. Como o cristianismo, com todos os recursos, não conseguiu o que o budismo conseguiu?”, questiona o professor” (TUNES, 2010).

Transparecem, nessa análise, aspectos ligados a questões históri- cas e políticas que envolvem cada grupo religioso em sua relação com a missão. O tema do pertencimento a um grupo por meio da escolha individual, voluntária – conversão –, abandonando o grupo a que an- teriormente se vinculava, tem mais nuances do que um primeiro olhar indica, sobretudo quanto ao que essa complexa escolha religiosa, em si, já comporta para quem a vive. Por envolver aspectos relevantes da identidade individual e coletiva e por significar ruptura com situação anterior e adesão a uma nova, o tema da conversão é particularmente relevante no estudo da relação entre missão e Estado. Por um lado, porque pode significar uso de força ou constrangimento psicológico, trazendo a necessidade democrática de garantia de plena liberdade de consciência, de crença e de culto, indi- cando o recurso ao direito como necessário. Por outro, quando ligado a gesto plenamente voluntário, usualmente comporta tensões entre os grupos religiosos envolvidos e, frequentemente, no interior de famílias, com relatos dramáticos, como em casos em que pais deserdam filhos por sua decisão de adotar opção de crença diversa da familiar, ou em que casais que se separam ficam entre a lei religiosa e a lei civil, com repercussões sobre seus filhos. Nestes casos, a posição do Estado pode significar a diferença entre o pleno e seguro exercício volitivo, uma vez definida a consciência sobre o tema da crença, e o constrangimento que pode impedir a vivência dessa escolha. Mais ainda, historicamente a conversão ligava-se ao tema da nacio- nalidade, particularmente em contextos remotos. Estudo desenvolvido por Michel Schlesinger3 indica:

Durante o período bíblico, converter-se ao judaísmo significava unir-se a um povo ou tornar-se cidadão de um Estado. O aspecto religioso vinha como uma conseqüência natural de pertencer ao novo grupo (SCHLESINGER, 2010, p. 2).

Contudo, teria sido esse o padrão dominante de conversão ao juda- ísmo? Longe de haver consenso, o debate rabínico é intenso e diverso ao longo da história em relação à conversão. Segundo Schlesinger, “é

3 Rabino da Congregação Israelita Paulista, em São Paulo.

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7roseli.indd 79 25/11/2010 11:49:42 possível dizer que em cada momento da História, dentro de um grupo ou entre diferentes grupos, nunca houve uma única resposta à questão de qual é o processo ideal de conversão ao judaísmo”. Com a diáspora, se desfaz a identificação entre conversão e naturali- zação (o “tornar-se cidadão de um Estado”). Como Schlesinger informa:

No Exílio, uma vez que o Povo Judeu vivia em uma terra estrangeira, tornar- se judeu não significava se unir a um grupo nacional, mas mudar de religião. Durante o Período do Segundo Templo uma pessoa podia se tornar judia na Diáspora ainda que jamais tivesse estado na Judéia (SCHLESINGER, 2010, p. 3).

Vale lembrar que foi o surgimento do cristianismo que trouxe exi- gências adicionais para a conversão, quando “os rabinos passaram a insistir em um maior cumprimento da Lei em vez da mera aceitação de teologia e ética” (SCHLESINGER, 2010, p. 6-7). Passaram, assim, a adotar formas para estabelecer “um mecanismo protetor e um filtro para se reconhecer quem desejava genuinamente aderir ao judaísmo” (SCHLESINGER, 2010, p. 6-7). Nesse sentido, Nilton Bonder (2010)4 faz uma análise de que não apenas os processos de conversão são diversos no interior do judaísmo, como há, também, diferentes modos de acolhimento do converso, que pode ser, então, reconhecido em diferentes graus. Bonder apresenta uma classificação das “fidelidades parciais” reconhecidas, ao longo da história e presentes na literatura e tradição, no interior do judaísmo:

Vejamos os termos usados para distinguir as diversas atitudes dos conversos: – GER TOSHAV (prosélito residente) – aquele que para adquirir cidadania limitada na Palestina, renunciava à idolatria (Gitt. 57b). – GER SHEKER (prosélito insincero) – aquele que ocultava a preservação de costumes e crenças de sua fé de origem. – GER TSEDEK (prosélito justo) – aquele que se convertia com conhecimento do judaísmo, com sinceridade e com compromisso. – GER G’ERURIM (um converso auto-realizado) – não formalmente admi- tido e convertido, mas que é recebido informalmente pela comunidade (Av. Zara 3b). – GER ARIOT (prosélito por medo) (Hull 3b) – aquele que é pressionado direta ou indiretamente para a conversão. O exemplo clássico é os “gerei Mordechai vê-Esther” – conversos de Esther (Esther VIII,17). – GER CHALOMOT (prosélito por sonho) – conversos por conselho místico, por sonho ou por interpretador de sonhos (San. 85b).

4 Rabino da Congregação Judaica do Brasil, no Rio de Janeiro.

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7roseli.indd 80 25/11/2010 11:49:42 – GERIN TO’IN (prosélitos em erro) – conversos que não seguem os di- recionamentos do Judaísmo mesmo sem traí-los por outros preceitos (Iev. 25a)” (BONDER, 2010).

Schlesinger e Bonder reiteram que, dentre as abordagens modernas à conversão, no judaísmo, há diversidade e mesmo visões conflitantes entre os movimentos religiosos e no interior de cada movimento (SCHLE- SINGER, 2010, p. 29). Voltando-se para fora, para a relação com outros grupos, em épocas passadas, o proselitismo, no judaísmo, foi abandonado até como forma de buscar evitar o desenvolvimento do anti-semitismo (SCHELINGER, citando Urbach, p.11). Voltando-se para dentro, a presença do converso, eternamente “guer e toshav entre vocês”, conforme a Torá (SCHLESINGER, 2010, nota 70), apresenta-se como espelho a todos da comunidade em que vive, que podem, então reposicionar-se sobre si mesmos: “reconhecermos que não somos possuidores do judaísmo mas, em vez disso, todos os dias nos convertemos de novo” (SCHLE- SINGER2010, p. 31). Para além do tema de como se procede à conversão, que poderia ser abordado, esses parágrafos anteriores indicam, de forma muito abreviada, tensões e possibilidades que o tema do proselitismo e da conversão apresentam, historicamente, no judaísmo. Além da análise no sentido de indicar que o judaísmo deixou de praticar proselitismo, (como indicado anteriormente, neste trabalho, por Ariarajah, na 59ª Semana Wesleyana), não apenas tornando mais restrita a conversão, interessa para este estudo mostrar como a relação de conversão com nacionalidade, apontada por Schlesinger nos tempos antigos, acaba por se apresentar para os judeus, ao longo da história, em sentido oposto, de fora para dentro, como imposição para convivência dentro dos Estados, que não os reconhecem e mesmo, os perseguem; assim, os apelos à assimilação na sociedade podem ser tão fortes, que tomam a conversão religiosa como ponto de partida e sinal visível do abandono da fé judaica, em direção a um tipo de extermínio, que, se não se dá pela morte física, se processa pela morte religiosa, psíquica e cultural. O caso específico dos judeus é apenas um exemplo de situações semelhantes, em que a conversão pode ser imposta como modo de sobrevivência, política, cultural ou mesmo física. Cabe, contudo, perguntar se haveria, mesmo nesses casos, consi- derados extremos no interior do judaísmo ou de qualquer agrupamento religioso, efetivo reconhecimento das pessoas dos judeus, pelo mero gesto da conversão exteriormente pratica e publicamente reconhecida, ou o quanto persistiria de estigma, em especial nos casos em que a conversão se faz pelo constrangimento implícito ou explícito, efetivado pelo contexto social e político em que se vive.

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7roseli.indd 81 25/11/2010 11:49:42 Para tanto, não se pode deixar de tratar, ainda que brevemente, do fato sobejamente conhecido da perseguição que os judeus sofreram historicamente, desde as conversões forçadas ou fogueiras, pela Inqui- sição, passando pelos pogroms, até o absurdo da Shoá, o Holocausto, onde o tema religioso é tratado de forma “genética”, criando fórmulas de parentesco e descendência que propiciariam a definição da suficiente “limpeza” (mais religiosa que étnica), a definir, para os detentores do poder na Alemanha, naquele momento, quem mereceria viver e quem mereceria morrer, tendo em vista esses critérios desumanizadores – para os quais, a conversão de um ascendente ou de si mesmo, nada repre- sentava no momento de mandar a vítima ao campo de concentração e à câmara de gás. Mais que seu caráter terrível, o tema contemporâneo do Holocausto traz, de forma dramática, o tema da relação entre pertencimento religioso e pleno reconhecimento, ou exclusão – simbólica ou a ponto de elimina- ção –, como cidadão de um Estado5. Consequentemente, a relação entre conversão e cidadania exige atenção, ou, mais especificamente, a relação entre religião e cidadania, e os usos da conversão nesse contexto. É por essa relação que, frequentemente, em países em que determinada religião liga-se ao Estado, formal ou informalmente, de modo dominante, os adep- tos de outras religiões ou denominações são considerados “estrangeiros”, mesmo quando sejam portadores da cidadania daquele país, com o que a conversão pode se tornar mais atraente como busca de aceitação e mesmo de oportunidades sociais e políticas6. Eugéne Enriquez, em um texto que traz visão antropo-socio-psicoló- gica, analisa a figura do estrangeiro como aquele que força o confronto de cada um consigo mesmo, encontro que “é, talvez, ainda mais semeado de ciladas do que o face a face com o outro, mesmo se parece fácil para todo mundo” (ENRIQUEZ, 1998, p. 38). Nesse sentido, identifica como o judeu vem sendo tomado como figura que representa o paradigma do estrangeiro. Tomando a relação entre espiritualidade, religião e estrutu- ração do mundo, Enriquez (1998, p. 40-42) parte da análise de como o povo judeu, ao ser visto como povo da origem, o povo eleito que contraiu uma aliança com Deus, traz a outras religiões a impossibilidade de rei- vindicar o mesmo lugar honroso, ainda que se sintam, cada uma delas, como povo da origem daquilo que proclamam. Essa seria uma das bases do anti-semitismo.

5 autores que tratam de aspectos desse tema de forma relacionada a este estudo são, entre outros, Agamben (1998) e Besançon (2000). 6 Cf. o filme Sunshine – O Despertar de um Século, dirigido por István Szabó, o qual faz uma abordagem do antissemitismo ao longo de três, quase quatro gerações, tal como sofrida por uma família de judeus húngaros, em narrativa que se inicia no final do século 19 e se estende por cerca de sete décadas, passando pelo nazismo e pelo stalinismo.

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7roseli.indd 82 25/11/2010 11:49:42 Ao mesmo tempo, Enriquez (1998, p. 40-50) analisa um modo de olhar o judeu, além de povo da origem, como “povo puro e sem mistura” sem contemplar as necessidades surgidas da vivência diaspórica e suas ameaças. Assim:

... a partir do momento em que os judeus tiveram de viver no meio de ou- tros povos, eles se recolheram em suas comunidades para não perder sua especificidade, quando não foram as outras populações que os condenaram a ficar entre eles, isolados em seus guetos, estigmatizados e regularmente agredidos quando uma crise econômica, social ou religiosa levava estas populações a procurar um bode expiatório (ENRIQUEZ, 1998, p. 44).

Avançando essa análise, sob épocas de forte nacionalismo, a ten- dência à perseguição a judeus – e mais recentemente, aos migrantes, em geral – faz-se presente, desencadeando ondas de xenofobia, que podem ser associadas à imagem de estranho – estrangeiro –, pela religião professada, ou pela simples identidade cultural ligada a dada religião, considerada “diferente”, isto é, distinta da religião majoritária ou oficial, que parece conferir uma cidadania de maior valor, comparativamente. De fato, o nacionalismo foi uma das formas de totalitarismo que tomou a política no século 20, minando a construção democrática (AREN- DT, 1998), e, muito frequentemente, esteve associado a religiões. Nesse sentido, as iniciativas da Igreja Católica Apostólica Romana de firmar concordatas com determinados países europeus foi um marco, exem- plificado pelos acordos com Mussolini, Salazar, Franco, e mesmo Hitler, entre outros (CORNWELL, 2002), de busca de estreitamento político de laços políticos dessa igreja com diferentes Estados, coincidentemente entregues, então, a ditaduras e tiranias nacionalistas. A primeira década do século 21 viu retornar esse quadro de naciona- lismo, sobretudo em direção à discriminação dirigida a migrantes. Os novos tons da xenofobia são em boa parte dados por questões linguísticas, culturais e religiosas, tomadas cada qual como um disparador específico de discrimi- nação, assim como funcionando, potencializados, em seu conjunto7. Enriquez, lembrando a afirmação deA lain Touraine de que o imigrado é figura emblemática nas sociedades contemporâneas, estende a análise anteriormente mencionada

Os movimentos de população, que não fazem senão aumentar devido às guerras, às pilhagens de ditadores que esfomeiam seu povo [...], fazem de cada habitante do Planeta um imigrante em potencial, um estrangeiro que

7 O filme semidocumentário “Entre os muros da escola”, passando-se em uma escola na periferia de Paris, exemplifica os efeitos nefastos dessa xenofobia contemporânea, em suas múltiplas faces.

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7roseli.indd 83 25/11/2010 11:49:42 é preciso saber acolher, um pária e um ser cada vez mais parecido com o judeu” (ENRIQUEZ, 1998, p. 57).

Observa-se que esta é uma visão do judeu como estrangeiro, distinta daquela proposta acima, por Schlesinger, com relação a uma esperada atitude religiosa judaica de todos os judeus, não apenas os conversos, que em si servem de modelo a inspirar cada judeu a sentir-se, sempre, como “guer e toshav”, ou seja, adotando atitude de buscar a conversão todos os dias, mesmo se nascido, criado e vivendo como judeu. Esta é a visão, a partir de dentro, de um judaísmo, que compreende sua missão como tikun olan:

Podemos, agora, melhor entender a conexão entre a criação do mundo e a Torá. O propósito todo da Torá – de seus 613 mandamentos – é servir como uma ponte física entre o homem e o Infinito. É o meio de Tikun Olam – de se consertar os receptáculos quebrados para que o mundo físico possa ser permeado com a Infinita Luz Divina. O Midrash nos explica que, em sua Onisciência, D-us8 outorgou a Torá ao povo judeu por saber que somente este povo aceitaria seus severos mandamentos. Tornaram-se, assim, os judeus, o Povo Escolhido, a “Luz entre as nações”, pois que sua missão é cumprir o propósito Divino no ato da Criação: construir para Ele uma Morada neste mundo terreno, para poder receber Sua Infinita Bondade. É por este motivo que toda a existência dependia da aceitação, pelos judeus, da Torá. Pois se nenhuma nação se sujeitasse a executar os desígnios Divinos com a Criação, o mundo, então, não teria outra razão de ser (SCHLESINGER, 2001).9

Essa semelhança com o judeu já fôra apontada em comparações concernentes aos povos africanos que foram dispersados pelo mundo pela mercantilização da escravidão. Tornou-se comum utilizar a expressão “diáspora africana”, valendo-se do termo que se referiu, historicamente, à dispersão dos judeus pelo mundo, pelas perseguições, ligando mesmo à existência de uma possível “dupla identidade” dessas pessoas na relação com o mundo, uma de ordem diaspórica, que teria o conteúdo religioso amalgamado à identidade cultural, e outra, ligada ao país de nacionali- dade, de cidadania (GILROY, 1992). A esse propósito, a liderança de Martin Luther King Junior é um exemplo também forte e de particular interesse reflexivo para este tema. Tomando a história das lutas norte-americanas contra o racismo, e em especial a organização da comunidade afro-americana na década de 1950, chama atenção o fato de que, no início, King utilizava com mais

8 Este artigo preserva o modo de grafar o nome da divindade escolhida pela autora do texto citado, como é comum em autores judaicos com produção sobre temas religiosos. 9 Para uma narrativa pessoal, ver Fischmann (2004).

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7roseli.indd 84 25/11/2010 11:49:42 destaque os valores religiosos para imprimir entre os irmãos, de fé e de cor, o sentido da luta. Reagir ao segregacionismo oficial norte-americano (legalizado em muitos estados) seria um posicionamento contra o pecado, com caráter educativo e mesmo de caridade, por buscar prevenir que pecassem os perpetradores do racismo institucionalizado e cotidiano. Porque, em sua mensagem religiosa, missionária, o reverendo King explicitava que essa desigualdade entre os seres humanos era contra a vontade de Deus. Autores indicam que o pai de King, também pastor, o criara para a compreensão do ambiente político da igreja, bem como de “pregar política”, tornando-se um clérigo influente. A própria conquista de recursos financeiros para a luta anti-racista passava pelas possibilidades de estruturação da comunidade religiosa que liderava (MORRIS, 1984). Com o decorrer do tempo, porém, Dr. King incorporou mais plena- mente o vocabulário dos direitos, no que passou então a ser denominado “direitos civis”, efetuando como um giro de compreensão e de sua prega- ção: o racismo não se tratava mais (ou exclusivamente) de pecado, mas de uma violação de direitos civis. Concomitantemente, como estratégia, passou a incorporar a prática da ação direta, orientada pela não-violência, do Mahatma Gandhi, então ativamente atuando pela consolidação da independência da Índia, e que despertara para o pacifismo e para a com- preensão das estruturas colonialistas ao sofrer, ele próprio, discriminação racial na África do Sul, ainda parte do mesmo império britânico de então. Ou seja, pode-se entender que, assim como a religião tem estruturas transnacionais em sua missão, assim a luta pela dignidade humana no plano simplesmente humano, político, também pode articular diferentes nacionalidades e diferentes crenças, assim como diferentes gerações (quem negaria a influência de King na luta anti-racista no mundo, hoje, mais de meio século depois?) uma vez que as fontes da discriminação e da exclusão igualmente se conectam em nível internacional.10 Retornando ao Brasil, para não adentrar o tema mais complexo da conquista do território brasileiro (e de outros territórios), que passa ine- vitavelmente pelo tema da relação entre a identidade religiosa e a possi- bilidade de uma identidade ligada à cidadania11, assim como da relação entre identidade político-religiosa e domínio territorial, vale trazer um ter- rível exemplo no Brasil do século 20, que se deu em meio ao movimento imigratório e apesar de oficialmente vigente desde o Decreto n. 119-A, de janeiro de 1890, a separação entre Estado e religiões.

10 Outro exemplo que vem sendo estudado por esta pesquisadora refere-se ao caso da Comissão de Verdade e Reconciliação, da África do Sul, sobretudo pelo papel desempe- nhado pelo arcebispo anglicano e Prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu. A esse respeito, ver, por exemplo, Chapman; Spong (2003). 11 Cf., por exemplo, MIRA.

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7roseli.indd 85 25/11/2010 11:49:42 A chegada do primeiro navio com imigrantes japoneses, o Kasata Maru, foi marcada pela condição de conversão, portanto forçada, ao catolicismo, para que os imigrantes pudessem desembarcar no Brasil. Depois da longuíssima viagem, o navio ficou atracado por um dia inteiro, à espera da “decisão” por parte dos candidatos à imigração. Então, ao descer a ponte do navio à terra, tinham que se ajoelhar antes de pisar o solo, para ali mesmo receberem o batismo, incluindo mudança de seu nome. Pouco presente nos relatos, naturalmente pelo receio de represálias ou pelo medo de dar impressão de “ingratidão”, a imposição foi tão mais violadora, quanto maior fora a expectativa de vida em paz, no novo país, a ponto de os imigrantes haver confeccionado, durante a viagem, bandei- rinhas de seda, tanto do Brasil quanto do Japão, porque se imaginavam descendo, cada um, com o par de bandeirinhas entrelaçadas em suas mãos, para aportar suas vidas em um país que lhes daria, acolhedor, as boas vindas (TONGU, 2002).

2. Estado e laicidade

A questão da relação entre missão e conversão, ou trazendo ao campo antropológico e político, entre missão, conversão e cidadania, se encaminha por dois tipos de debates distintos: um mais afeito ao campo missiológico, como ramo da teologia, que não é pretensão deste artigo abordar, e outro mais ligado à ética e à ciência política. No que se refere especificamente à política, a possibilidade de desempenhar ou não uma dada missão liga-se diretamente à relação jurídica que existe entre o Estado e as religiões. Cabe lembrar, em primeiro lugar, como relevante, que o regime ju- rídico adotado por um Estado democrático, republicano, na relação com as religiões, é fruto de processo constituinte. Mas de quantos e quais tipos de regime de relação Estado-religiões se fala? Há consenso entre autores de que há três tipos básicos de relação, com diferentes graus em cada uma, variando apenas a denominação. Em trabalho anterior (FISCHMANN, 200912), esta pesquisadora indicava reflexões com base em obras de autores da área jurídica, como Ferraz. Um primeiro regime a mencionar é aquele em que Estado e religião mantém relação de fusão ou co-fusão. Essa relação de fusão é aquela onde o Estado só existe para e pela religião. O que justifica a existência do Estado é a religião em si; poderia ser dito no âmbito deste artigo, é um Estado que existe pela missão de determinada religião, o que é comumente denominado Estado teocrático. Um exemplo de fusão entre

12 Os parágrafos seguintes são baseados nesse artigo de 2009, fruto de pesquisa que continua em andamento.

86 Roseli Fischmann: Missão e Estado laico: anotações para uma reflexão preliminar

7roseli.indd 86 25/11/2010 11:49:42 o Estado e a religião é a República Islâmica do Irã, após a Revolução de 1979, a partir da qual, de forma traumática, aquele país abandonou o antigo regime e passou a ter uma estrutura política com exclusivo foco religioso. Como Estado, tem interesses e atividades econômicas e co- merciais, seus nacionais têm que ser atendidos, quanto à alimentação, saúde, educação, moradia, lembrando que o ordenamento jurídico do Estado segue a Sharia, a lei islâmica13. Neste tipo de regime, apenas uma missão religiosa é reconhecida e a simples existência do Estado faz sentido apenas em relação a ela, não havendo espaço para a liberdade de crença e de culto, sendo, mesmo, algumas vezes, dificultada a mais básica liberdade de consciência. Um segundo tipo de regime jurídico é de união, na qual o Estado e as religiões, embora tendo vidas próprias, com objetivos e estruturas próprias, mantêm entre si uma relação muito estreita de mútua influência e dependência do ponto de vista formal e oficial, de valores e de práticas, ou seja, de aliança. Em geral, esse é o sistema onde há uma religião oficial de Estado. Quando adota esse tipo de relação jurídica com uma religião, o Estado é chamado, por alguns autores, de “confessional”. Por exemplo, no Império brasileiro esse era o regime jurídico de relação do Estado com uma determinada religião, no caso, a Igreja Católica, enquanto as demais religiões, mesmo outras denominações cristãs, não podiam sequer ter o local de culto com forma externa de templo, devendo as celebrações ser feitas a portas fechadas, como determinado na própria Constituição do Império (1824).14 Neste caso, embora a missão religiosa não se constitua no objetivo do Estado, a diferenciação criada por essa preferência estatal entre os cidadãos de diferentes crenças, ou mesmo sem crença, dificulta que o ideal democrático de igualdade e justiça seja cumprido. Um terceiro regime é aquele que o Brasil adota desde a República, ou seja, o regime jurídico de separação, em diferentes graus e em meio

13 Vale lembrar que esses aspectos ligados a interesses comerciais e atendimento de saú- de, alimentação, educação indicam como se trata de caso diferente do que é a Santa Sé, considerada por Rezek personalidade jurídica internacional anômala (Ver, a respeito FISCHMANN, 2009). 14 Estados onde há a união entre o Estado e as religiões propiciam facilidades para a religião oficial do Estado, como o caso da Argentina, onde não apenas a Igreja Cató- lica é reconhecida como religião oficial do Estado, como é previsto, pela Constituição argentina, qual o órgão que é autorizado a firmar concordata com a Santa Sé. Sucede que esse tipo de prática pode ser apropriado para Estados nos quais a possibilidade de minimamente firmar alianças com cultos ou seus representantes seja permitida ou pelo menos haja omissão constitucional. Não é o caso brasileiro, e por isso é tão grande o impacto da concordata assinada como “acordo” entre a Santa Sé e o governo brasileiro em novembro de 2008 e após tramitação acidentada, transformada em decreto em fe- vereiro de 2010.

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7roseli.indd 87 25/11/2010 11:49:43 a distintas crises e conflitos, que se estendem ao longo da história repu- blicana do país (ROMANO). Na Constituição Federal de 1988 é o Art. 19 que define claramente esse regime:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar- lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...] III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Contudo, o modo que a Constituição brasileira adota para a sepa- ração não é o único, pois nesse terceiro regime jurídico é possível falar em graus da relação, resultando em três formas básicas15. Na primeira forma de separação, há uma separação de rejeição, em que o Estado rejeita a religião. Rejeita, valora negativamente, que é o caso do Estado ateu, o qual, contudo, não esgota o que pode ser e como pode se estruturar o regime de separação. Um exemplo de Estado ateu citado na literatura encontra-se na história recente, na União Soviética. Vale lembrar que a rejeição toma, por vezes, forma de hostilidade, na qual todo sentido de missão religiosa será questionada, independentemente de pretender atuar no âmbito privado ou público. Outro grau de regime de separação se apresenta quando existe sim- plesmente um afastamento, mas o Estado aceita a presença das religiões, não as hostiliza, mas não as apoia. Muitos Estados modernos têm esse tipo de postura, como, na América Latina, o Uruguai. Neste caso, a missão de cada religião encontrará caminho próprio, independente do Estado, porém subordinada a limites. Outro exemplo próximo é o atual presidente do Paraguai, que, tendo vida eclesiástica como sacerdote e bispo da igreja católica, pelas leis de seu país precisou se afastar formalmente da vida eclesiástica para candidatar-se, não lhe sendo possível utilizar o título religioso nem como candidato, nem como presidente, após sua eleição. Uma terceira forma dentro do regime de separação entre Estado e religiões, finalmente, é a chamada separação atenuada. Nela, o Estado valora positivamente a religião, protege a liberdade de consciência, de crença e de culto, e, ao mesmo tempo, resguarda o interesse público, que diz respeito a todos e todas, sob o manto da laicidade. No âmbito do processo legislativo, é o Estado que deve ser considerado, sem abrandar os comandos legais, em particular no que se refere a direitos fundamen- tais, como o caso da liberdade de consciência, de crença e de culto. Ao

15 Para essa discussão, ver Fischmann (2009).

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7roseli.indd 88 25/11/2010 11:49:43 destacar o tema religioso como próprio da vida privada, o Estado ganha e as religiões ganham, por se evitar intromissões recíprocas. Este é o regime que vigora no Brasil e a valoração positiva dada aos valores religiosos demonstra-se em exceções presentes explicitamente na Constituição Fe- deral, a qual, segundo juristas, só pode ser interpretada de forma restritiva (FERRAZ; MONTEIRO). Nas palavras de Ferraz (p. 54), “somente são admissíveis as exceções expressas constitucionalmente, o que significa dizer que a legislação infraconstitucional não pode inovar, abrindo outras exceções não previstas no texto constitucional”. Na detalhada análise que Anna Cândida da Cunha Ferraz desenvol- ve sobre essas exceções presentes e limitadas na Constituição Federal de 1988, destacam-se alguns pontos que merecem ser citados, para o tema deste trabalho. Nas palavras de Ferraz (p. 52-54) são previstas na Constituição as seguintes exceções ao regime de separação:

– A permissão ou não vedação expressa do proselitismo religioso. Com efeito, a liberdade do proselitismo religioso e a de ministrar ensinamento religioso recebe agasalho constitucional:

a) no preceito contido no art. 210, § 1.º, em exame, que prevê o ensino religioso nas escolas públicas, e;

b) na liberdade de manifestação de pensamento, admitida no art. 5.º, inciso IV, sem quaisquer restrições.

– A prestação de assistência religiosa prevista no inciso VII do art. 5.º. Dispõe referido inciso: “VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assis- tência religiosa nas entidades civis ou militares de internação coletiva”.

– A liberdade de associação religiosa, embutida na “associação para fins lícitos”. A licitude dessa modalidade de associação resulta do próprio texto e do conteúdo da liberdade de religião ...

– A vedação da instituição de impostos para templos de qualquer culto, consoante estabelece o art. 150, caput, VI, “a” ...

– A possibilidade de atribuição de recursos públicos a escolas confessionais, prevista no art. 213 ...

– A existência de cláusulas-garantias, vale dizer, normas que visam asse- gurar a liberdade de religião. Assim, a disposição contida no inc. VIII do art. 5.º, que determina que “ninguém será privado de direitos por motivos de

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7roseli.indd 89 25/11/2010 11:49:43 crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” ... 16

Esses aspectos mencionados por Ferraz indicam, de forma eviden- te, o reconhecimento do proselitismo como parte do direito à liberdade de consciência, de crença e de culto. Contudo, ao mesmo tempo que é um direito, é um limite, a considerar a partir de que ponto de vista, de que titular de direito se está discutindo determinado aspecto da vida de um cidadão ou cidadã. O que indica também que, por coexistir de forma conflituosa no campo público, ficam a pedir compatibilização com outros direitos e, por que não dizer, com o próprio direito à liberdade de consciência, de crença e de culto. Quando visto de fora, qual o limite do proselitismo? Quando visto de dentro, qual seria, do ponto de vista humano, o limite da missão? Em particular no caso brasileiro, acabou por se configurar como tema polêmico, porque no dispositivo constitucional que trata do ensino religioso nas escolas públicas (CF, Art. 210 § 1º), o direito ao proselitismo como parte do direito à liberdade de culto pode ou não ser compreendido como implícito (FERRAZ), enquanto foi explicitamente vetado em 1997, na nova17, e atualmente vigente, redação do Art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9394/96. Vale lembrar, por oportuno, que a liberdade de consciência, de crença e de culto também indica três graus no sentimento da adesão (ou não-adesão) religiosa. Ou seja, com relação à liberdade de consciência, refere-se a algo que se passa no íntimo da pessoa e que absolutamente ninguém pode ver ou dizer o que é. Por isso é um santuário, em termos laicos o santuário da consciência. A consciência do indivíduo é o espaço mais íntimo, aquele que não pode ser violado.

16 Completam e esgotam essas exceções constitucionais à cláusula de separação entre o Estado e as religiões: (a) o reconhecimento do casamento religioso para fins civis; (b) e a possibilidade de uso da mídia para proselitismo, que decorre de uma interpretação, embora frisando Ferraz que essa possibilidade não engloba a possibilidade de estarem autorizadas as religiões a deter propriedade sobre meio de comunicação. Pela comple- xidade de cada tema, e por entender que podem ficar para próximo estudo, são aqui apenas mencionados. 17 aqui é mencionado como “nova redação”, porque o dispositivo presente quando da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9394/96. Em dezembro de 1996, não fazia esse tipo de veto, mas tinha outra formulação, derrubada nessa redação de julho de 1997, que recebeu parecer do Deputado Padre Roque (PT/ PR) e aprovada por acordo de lideranças, pouco antes da visita do papa João Paulo II ao Brasil naquele ano de 1997. É tema em tramitação no Supremo Tribunal Federal, objeto de duas ADIs, a primeira, ADI n. 3268, de 2004, apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), sendo a mais recente delas apresentada pela Procuradora-Geral da República, em exercício, Déborah Duprat, em agosto de 2010.

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7roseli.indd 90 25/11/2010 11:49:43 O segundo grau, nesta escala criada para fins de análise, é a liber- dade de crença, quando, com base na liberdade de consciência, a pessoa adere a um determinado modo de crer. A pessoa pode também não aderir, o que pode se manifestar como descrença ou não-crença, que também são distintas. Essas adesões – ao crer e ao não-crer – também não po- dem ser violadas e não podem ser questionadas, por seu caráter íntimo. O Estado que adota o regime jurídico de separação, sendo laico, garante essas diferentes adesões e não-adesões, não se intrometendo na vida religiosa, como espera que a vida religiosa não venha a interferir na vida do Estado. Serão os adeptos de cada grupo religioso que se manifestarão, contudo em sua condição de cidadãos, no que comportarão, em si, seu modo inteiro de ser, incluindo sua escolha religiosa – ou ausência dela. Ao adotar uma crença, o primeiro momento é essa adesão pessoal. É onde se dá, com base no foro íntimo, a escolha de uma determinada religião. Quando cresce e se desenvolve, uma pessoa ou se reconhece na escolha que herdou de seus pais, ou, em determinado ponto da vida, converte-se a outra religião, ou, por razões de ordem vária, migra de um grupo para outro, no interior de uma mesma agremiação religiosa, ou abandona toda crença, ou mesmo adere a uma crença, se criada em meio agnóstico ou ateu. Vale observar que a diversidade religiosa, visível na sociedade, de certa forma se reproduz no interior de cada grupo religioso, em diferentes momentos, pois os grupos religiosos não são internamente homogêneos, além de ser heterogêneos entre si. É a manifestação própria da pluralidade humana. Aqui se associa o terceiro momento, então, que é a liberdade de culto, que se realiza, em geral, coletivamente. Há a associação ao grupo, a exteriorização, a celebração em conjunto com aqueles que creem da mesma forma como essa pessoa crê. Dentro dessa perspectiva ampla, plural e complexa é que o Estado deve proteger a todos os cidadãos e cidadãs, sem exceção, sendo por isso o regime jurídico de separação, e com ele o princípio da laicidade do Estado, que mais evidentemente tem como proteger toda a diversidade incluída em tão complexas relações humanas, que fundam e permeiam as relações com o crer e o não-crer.

Indagações finais: missão e Estado laico, um longo caminho a percorrer

O estudo das relações entre missão e Estado laico é complexo e árduo. São dois temas cercados de dificuldades e percalços, ao mesmo tempo em que podem ser plenos de inspiração quanto a ideais de um mundo melhor. Este texto apenas esboça reflexões preliminares, nesse sentido. Se é verdade que se pode dizer que a liberdade de consciência é a mãe de todas as outras liberdades democráticas, e por isso a liberdade de crença e de culto, ao apresentarem-se associadas à liberdade de consciência, mostram-se tão fulcrais à vida democrática, a qual, espera-

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7roseli.indd 91 25/11/2010 11:49:43 se, venham igualmente a defender, por ser o que lhes permite, do ponto de vista jurídico e meramente humano, a existência em paz e reconheci- mento, como missão. Ao mesmo tempo, pedir ao Estado que se limite a partir de determinado ponto de vista religioso, é assumir a exclusão dos demais, criando separações e hierarquias entre cidadãos e cidadãs. Como pode justificar-se a título de missão uma religião que pretende se impor pela espada moderna, que é o uso da mídia e do marketing na comunicação, para iludir suposições de igualdade e democracia, fazendo uso até de força política, como se fosse ligada à fé? Como definir os limi- tes da liberdade de expressão pública de forma a evitar discriminações, em busca de compatibilizar o direito ao pleno reconhecimento como cida- dão e o pleno reconhecimento como ser com liberdade religiosa? Como garantir que não se conspurquem valores religiosos, quando se pretende, como fazem algumas religiões, que a dimensão religiosa seja parte da cidadania, conspurcando o princípio religioso e subvertendo o sentido limi- tado e humano, ao mesmo tempo justo e igualitário, de uma cidadania que se pratica, entre acertos e erros, de toda forma apenas entre humanos? Como escapar da tentação teocrática, que pode levar a novos conflitos religiosos, como as guerras que a humanidade já conheceu? O aprofundamento do estudo do tema proposto aqui apenas como exercício preliminar, da relação entre o Estado laico e a missão mostra-se urgente e indispensável, mesmo com todas as dificuldades que o cercam. De toda forma, o tema não se resolve apenas no âmbito reflexivo. São as complexas interações, conflitos e reconciliações que tecem o caminho possível das delicadas, necessária e mutuamente respeitosas relações entre religiões e o Estado laico, garantia de efetiva democracia e igualdade entre todos e todas da cidadania.

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7roseli.indd 93 25/11/2010 11:49:43 “Inimigos do mundo” e “'amigos' da humanidade”: reconciliação, inimizade e amizade na teologia wesleyana como elementos para uma teologia pública “Enemies to the World” and “´friends´ of mankind”: reconciliation, friendship and enmity in Wesleyan theology as elements for a public theology "Los enemigos del mundo" y "`amigos´ de la humanidad": reconciliación, amistad y enemistad en la teología Wesleyana como elementos para una teología pública

Helmut Renders

Resumo Este artigo dialoga com a alegação de que as relações da vida pública deveriam ser construídas a partir do conceito da amizade, em vez do conceito do amor ou da cordialidade. Para isso explora-se a compreensão da reconciliação e do conceito da “amizade” na teologia wesleyana em textos chaves ingleses, estadu- nidenses e brasileiros. Mostra-se como eles foram e são usados para descrever a relação entre igreja e sociedade de uma forma criteriosa, mas construtiva como apelo para levar esta tradição adiante. Palavras-chave: Reconciliação; amizade; inimizade; 2º Artigo da Religião; cris- tologia; teologia pública.

Abstract This article deals with the claim that relations of public life should be built from the concept of friendship, rather than the concepts of love or cordiality. To this end it explores the theological understanding of reconciliation and friendship in Wesleyan theology in English, American and Brazilian key texts. Finally, is inves- tigated its application for the description of the relationship between church and society to inspire a more distinguished Wesleyan public theology. Keywords: Reconciliation; friendship; enmity; Article 2 of the Religion; christo- logy; public theology.

Resumen Este artículo dialoga con la afirmación de que las relaciones de la vida pública deberían ser construidas a partir del concepto de amistad, en lugar que desde el concepto de amor o de cordialidad. Para ello, se examina la comprensión teológica de la reconciliación y del concepto de amistad en la teología wesleyana, en textos claves ingleses, estadounidenses y brasileños. Se muestra como dichos textos se han usado y se usan para describir la relación entre iglesia y sociedad de una forma críticamente constructiva en busca de que esta tradición siga adelante. Palabras clave: Reconciliación; amistad; enemistad; 2ª artículo de Religión; cristología; teología pública.

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8helmut.indd 94 25/11/2010 11:50:09 Introdução

Um tempo atrás a jurista Eliane Maria Salgado Assumpção defendeu no artigo A amizade e a ética: um contraponto à cordialidade, a tese que a amizade, como comportamento político, em vez do que o amor ao pró- ximo, conceito preso nas ideias românticas do amor do século 19 ou a cordialidade brasileira – segundo a sua descrição de Sérgio Buarque de Holanda – fosse a base de relacionamentos humanos capaz de construir a esfera pública. Da mesma forma argumenta Francisco Ortega ([2005?], p. 1; cf. também 2000) em Por uma ética e uma política de amizade e alega em conversa com Hannah Arendt:

A ideologia da intimidade transforma todas as categorias políticas em psi- cológicas e mede a autenticidade de uma relação social em virtude de sua capacidade de reproduzir as necessidades íntimas e psicológicas dos indi- víduos envolvidos. Com isso, esquecemos que a procura de autenticidade individual e a tirania política são com freqüência dois lados da mesma moe- da. É necessária uma distância entre os indivíduos para poder ser sociável. O contato íntimo e a sociabilidade são inversamente proporcionais. Quando aumenta um, o outro diminui; quanto mais se aproximam os indivíduos, me- nos sociáveis, mais dolorosas e fratricidas são suas relações.

Neste sentido descreve a supremacia da interioridade como antago- nista de uma atuação política:

Arendt critica o eu da interioridade, do amor romântico, a idéia de procurar a verdade sobre si no profundo de si mesmo, nas emoções, na sexualidade, no amor. Se na atualidade o amor romântico se apresenta como o ideal sentimental hegemônico, isso acontece porque encarna o ideal que corres- ponde a nossa realidade antipolítica, isto é, a de uma sociedade voltada para a interioridade na procura da verdade, do sentido, da autenticidade, da satisfação, e que contempla o mundo como sendo hostil a essa busca. A preocupação com o mundo, ponto central da política desde a Antigüidade foi substituída na modernidade pela preocupação com o homem, a descoberta de si mesmo (ORTEGA ([2005?]).

Com muitas afirmações concordamos, especialmente, quanto ao conceito romântico do amor e a configuração da cordialidade brasileira1 e

1 Quanto ao aspecto religioso, entretanto, seria incorreto reduzir a religião do coração do- minante no Brasil – e correspondente à “cordialidade” brasileira – à religião do coração em geral (cf. RENDERS, 2009, p. 373-413).

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8helmut.indd 95 25/11/2010 11:50:09 do problema de estabelecer relações políticas na base do amor romântico. E mesmo que “a procura de autenticidade individual” não leva automati- camente à “tirania política”, ela leva, frequentemente, ao clientelismo e outras formas de relacionamentos que não promovem a emancipação ou a liberdade e assim a base de responsabilidade de pessoas, mas cimentam dependências e a irresponsabilidade por falta de liberdade. O mundo cristão precisa dialogar com as preocupações aqui apre- sentadas em relação à construção da esfera pública. Não é ela que no mínimo também favorece na conceituação da sua essência palavras como amor e a interioridade como o palco de verdadeiras transformações do ser humano? Não é ela que descreve suas relações principais tanto com Deus como na Igreja por categorias familiares? Concordamos que há vertentes na Igreja que seguem o quadro preocupante aqui apresen- tado pelo autor e pela autora. Entretanto, deduzir da preferência para o conceito do amor a promoção de uma vida cristã intimista, etc., parece- nos um exagero. Há vertentes da fé cristã que não desvinculam o amor ao próximo da promoção da justiça e até uma relação construtiva para com seu adversário, senão, inimigo. Elas incluem no seu conceito do relacionamento em amor uma compreensão próxima à compreensão da amizade apresentada pelos autores citados anteriormente. Ainda mais: a descrição de relações restauradas e madura spelo termo da amizade está no centro do discurso cristão, entretanto, somente visível para aqueles que interpretam as Escrituras a partir das línguas originais e com isso, com consideração do imaginário greco-romano. Analisamos, então, em específico o uso ou a integração do conceito da amizade, e com ele, o da reconciliação, primeiro, pelo próprio cristia- nismo primitivo e depois pelo movimento wesleyano na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil.

1. Reconciliação, inimizade e amizade como tema da teologia bíblica

Enquanto a presença da metáfora do “amor” nos textos bíblicos é de amplo conhecimento, a importância do conceito da amizade chama menos a atenção. Entretanto, ele aparece na tradição cristã num ponto central, na sua soteriologia, ou seja, sua doutrina da salvação. As fontes, em seguida apresentadas em sequência cronológica, são duas cartas da tradição paulina, duas epístolas deuteropaulinas, ou seja, provavelmente, pós-paulinas, duas citações da tradição do círculo de João e mais duas citações em Mateus e Atos. Entretanto, com exceção da tradição joanina, o uso do conceito não se evidencia no texto português, mas, somente no texto grego original.

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8helmut.indd 96 25/11/2010 11:50:09 Tabela 1: reconciliação como superação da inimizade humana pela amizade divina no NT:

Katallassw Apokatal Sunallas- Filia Ano Diallas Katallagh lassw sw Filoj e [d.C.] somai e ecqroj e ecqroj ecqroj

55 1Co 7.11; Cartas 55/56 2Co 5.18-20; paulinas Rm 5.10-11; 56 11.15 60 Cl 1.20, 22

60 Deutero [80- Ef 2.16 -paulinas 100?]I

Atos 65-71 At 7.26

Mateus 71 Mt 5.24 Jo João 69 13.14- 15; 90-110 3Jo 3 João [50?] 1.15 95-110 Tiago Tg 4.4 [55?]

Em Romanos 5.10 transparece o significado literal original de katallas- só, um processo de substituição que no seu último nível de abstração significava a transformação de uma relação de inimizade pela amizade: “... sendo inimigos, fomos reconciliados – ou seja, ganhamos o status de amigos – com Deus pela morte de seu Filho”. Trata-se, tanto de um conceito soteriológico como cristológico, da obra salvífica realizada em Cristo. Além da reconciliação da humanidade para com Deus, há também uma dimensão eclesiástica (Coríntios = conflito entre entusiastas e Paulo; Romanos = tensões entre o cristianismo helenista e judaico). Importante é a questão do sujeito: não uma hostilidade divina precisa ser superada, mas a hostilidade humana diante de Deus. Com isso, a soteriologia da reconciliação vai na contramão da doutrina da satisfação de Anselmo de Cantuária. De fato, o tema da ira de Deus existe nas car- tas de Paulo (ira de Deus: Rm 1.18; 2.5,8; 4.15; 5.9; 9.22; 12.19). Mas, segundo Romanos 1.18, a ira de Deus seria uma reação à atitude hostil do ser humano – “que detêm a verdade em injustiça” que em relação a Deus e descrita como “impiedade” (àsébeia).

I na questão da data entram diversas perguntas.

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8helmut.indd 97 25/11/2010 11:50:09 Olhado por perto, òrgé pode ser traduzida por ira, irritação, vingança, mas também por retribuição. Esta última tradução dá origem ao conceito da justiça retributiva em vez de distributiva. Em relação ao ser humano òrgé no sentido de ira ou vingança é estritamente rejeitado por representar a vida sem Deus (Ef 4.31; Cl 3.8). O conceito da katallagé, da reconcilia- ção, descreve esta relação a partir do ser humano. A inimizade é do ser humano, mas ela é desconstruída puramente por Deus em Cristo. Deus se revela como amigo da humanidade para que a humanidade supere a sua hostilidade para com Deus. Em Atos, Lucas descreve três vezes a experiência paulina fundante de Damasco como questionamento da hostilidade, no caso, da perseguição: “Saulo, por que me persegues?” (At 9.4-5 e 22.6-7 e 26.14-15). Entretanto, na soteriologia manteve-se mais a interpretação cris- tológica de katallagé como expressão da solidariedade do Cristo, sem consideração do conteúdo ou das atitudes trocadas. Nesta perspectiva, não é Deus que muda a atitude – ele continua amar o mundo –, mas o ser humano que em resposta acaba amando tanto o mundo quanto Deus. Em João aparece a metáfora absolutamente autônoma. Os discípu- los são chamados por Jesus seus filos, seus amigos (Jo 15. 13-15), uma amizade que se expressa pela sintonia com o projeto de Jesus, na base de conhecimento recebido pelo Pai. Isso leva na terceira epístola de João à designação dos membros da comunidade da fé como amigos (3Jo 1.15). Isso é interessante, porque João conhece e usa muito o termo amor para descrever a relação predominante de Deus para com o cosmo (Jo 3. 14) e que leva ao amor para com Deus (Jo 21.15ss). Na epístola de Tiago o conceito da filia, da amizade, é explorado de forma diferente do que na tradição paulina. O acento não focaliza di- retamente na inimizade com Deus, mas, na amizade para com o mundo que por sua vez, de fato, é interpretada como relação que expressa a inimizade do ser humano para com Deus. Mais uma vez, não é Deus o inimigo de alguém, mas, a hostilidade é relacionada com o ser humano. No horizonte, então, é agora a relação indivíduo – mundo como algo que requer respostas. Repare que temos também uma dupla e oposta signifi- cação de kosmos: como alvo do trabalho soteriológico de Deus o kosmos é amado incondicionalmente, como estruturação humana do mundo sem Deus o kosmos não pode ser afirmado, mas as suas próprias regras da opressão precisam ser superadas e ele mesmo precisa ser transformado. Visto dessa forma – e somente dessa forma –, “um amigo do cosmo é um inimigo de Deus”. Em Efésios e Colossenses aparece a palavra “reconciliação” de novo no sentido da superação de inimizade – simbolizada na epístola aos Efésios pela desnecessidade e subsequente derrubada de paredes que protegem um do outro (Ef 3.14). Nos dois casos, pronuncia-se agora

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8helmut.indd 98 25/11/2010 11:50:09 à renovação das relações intra-humanas a partir de Cristo: “Na sua car- ne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades (Ef 2.15-16).” Reconciliação é a construção de relações de amizade. Próximo ao conceito da Igreja como corpo de Cristo fala-se em Efésios de uma nova articulação cuja cabeça é Cristo e cujo sinal é amor em verdade (Ef 4.15- 16). Esta dupla descrição dos relacionamentos protege o amor de um sen- timentalismo sem compromisso ou de um legalismo sem misericórdia.

2. Reconciliação, inimizade e amizade como tema da teologia siste- mática na época medieval até a reforma

Anselmo e Abelardo Com Anselmo da Cantuária (1033-1109) a soteriologia oficial consa- grou uma inversão radical. A linha paulina da reconciliação do ser humano com Deus foi substituída pela ênfase na prioridade da reconciliação de Deus com a humanidade pelo sacrifício. A cruz não era mais sinal do amor e da solidariedade radical de Deus, mas o lugar da satisfação da ira de Deus. Quando Pedro Abelardo (1079-1142) se opôs contra esta leitura como hermenêutica dominante, Claraval (1090-1153) segue Anselmo e contribui no Concílio de Sens em 1140 para a condenação da teologia de Abelardo. Com Claraval, a interpretação de Anselmo saiu do ambiente acadêmico para os monastérios, lugares de renovação, propagação do Evangelho e militância eclesiástica.

Confissão de Augsburgo, Confissões Helvéticos e 39 Artigos da Religião Relevante para a predominância da ênfase de Anselmo no protestan- tismo, inclusive o brasileiro, era a dependência direta de Lutero e Calvino da soteriologia de Anselmo e sua influência nos 39 Artigos da Religião da Igreja Anglicana. Já a tradição reformada não seguia este caminho.

A humanidade Deus é reconciliado é reconciliada

“para aplacar a ira Luterano Confissão de de Deus” [texto da 1530 Augsburgo (Confessio versão alemã] – não – Reformado Augustana) art. 3 [3]II “para reconciliar o seu Pai conosco” [texto da versão em latim]

II In Pelikan e Hotchkiss (2003 [vol. 2], p. 60).

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8helmut.indd 99 25/11/2010 11:50:09 “Cristo é o único Redentor e Salvador Confessio Helvetica 1533 Reformado do mundo, o Rei […] […] somente ele é Prior, art. 11III a nossa reconciliação” “nosso Senhor reconciliou art. 11 1566 Reformado – não – todos os fiéis [15] para o Pai celestial” Confessio Helvetica “Deus através Posterior IV de ministros exortou a art. 14 – não – população [8] a ser reconciliado com Deus” 39 Artigos da Religião, “para reconciliar seu 1571 Anglicano – não – art. 2 Pai conosco”

E como responde a teologia wesleyana? Encontramos uma situação ambígua, entretanto com uma tendência de desenvolvimento que será plenamente desdobrado somente no fim do século 19 para o século 20.

3. Reconciliação, inimizade e amizade nas obras de

Vocês são um novo fenômeno nessa terra – um corpo de pessoas que, não sendo de nenhum partido, são amigas de todos os grupos e tentam ajudar todos a avançar na religião do coração, no conhecimento do amor para com Deus e para com a humanidade. John Wesley (1789, p. 82 [sermão 121, §18], grifo nosso).

Quanto a Wesley temos como fontes as suas obras compostas por tratados teológicos, sermões, cartas pastorais, diários e comentários bíbli- cos e a sua adaptação dos 39 Artigos da Religião anglicanos, chamados por ele os 25 Artigos da Religião metodistas. Entre estes textos, As notas sobre o Novo Testamento (1756), Os sermões (1747) e os 25 Artigos da Religião (1784) até hoje têm estado constitutivo.

1739: Caráter de um Metodista: “'Faz o bem a todos os homens`”; seu próximo, e estranhos; amigos e inimigos” Iniciamos com o tratado programático de 1739, o Caráter de um metodista. O tema da amizade/inimizade está ainda em fase de formação

III In Pelikan e Hotchkiss (2003 [vol. 2], p. 285). IV In Pelikan e Hotchkiss (2003 [vol. 2], p. 478 e 484).

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8helmut.indd 100 25/11/2010 11:50:09 conceitual no tratado “Caráter de um metodista”. Wesley parte ainda do profético “fazer o bem”.

Por último. Sempre que pode, ele “faz o bem a todos os homens”; seu próximo, e estranhos; amigos e inimigos: e de toda a forma possível; não apenas aos seus corpos, “alimentando o faminto, vestindo o nu, visitando aqueles que estão doentes ou na prisão”; mas, muito mais, ele trabalha para o bem da alma deles, com a capacitação que Deus lhe deu, para acordar aqueles que dormem na morte; trazer os que estão acordados para o sangue reparador, que, “sendo justificado pela fé, eles podem ter paz com Deus”; e provocar aqueles que têm paz com Deus, para abundar ainda mais em amor e boas obras. E ele, de boa-vontade, “passa e vai passar nisto”, mesmo “para ser oferecido no sacrifício e serviço da fé deles”, de maneira que eles possam “todos chegar na medida e na estatura da plenitude de Cristo” (WESLEY, 1739, § 16; grifo nosso).

Em termos bíblicos, encontramos a combinação de Mateus 25 e Éfésios 2.16. Wesley vai além da intenção do texto e transforma-o numa projeção da missão metodista ao “mundo-paróquia”. O mundo não é refe- rência periférica. “Não apenas ao seu corpo [...] ele trabalha para o bem da alma deles” é uma interessante junção. Ela não desqualifica o aspecto corporal nem coloca a mesma num segundo plano. A sua valorização do “interior” não é sobre o “exterior”, mas, lado a lado com ele. O ductus é não esquecer a decodificação das ações. De fato, trata-se das virtudes físicas com as pastorais (RENDERS, 2010, p. 277-282).

1756: Notas sobre o Novo Testamento As Notas sobre o Novo Testamento (1756) são interessantes por mais uma razão. Wesley baseou-as numa obra do pietismo luterano, o Gnomon de Albrecht Bengel ([1747]; 1830). Isso nos proporciona a oportunidade de explorar continuidade e diferença entre as duas obras. Em Romanos 5.11 (1873, p. 66) Bengel refere-se à reconciliação como “libertação da ira”. Wesley mesmo omite a expressão “ira” e focali- za na obra salvífica de Jesus Cristo: “Cristo por meio dele recebemos a reconciliação”2. Sendo neste comentário do objeto da reconcilição ainda aberta – trata-se de “nossa reconciliação” ou da “reconciliação de Deus conosco” – não resta dúvida no comentário de 2 Coríntios 5.18: “É o mundo que esteve em inimizade para com Deus”. Bengel (1873, p. 384) refere-se também ao mundo “que esteve hostil”. Wesley então acresce e destaca “em inimizade com Deus”. Da mesma forma Wesley prosse- gue em Efésios 2.16: a inimizade – que tinha sido entre os pecadores e

2 “Christ, by whom we have now received the reconciliation”.

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8helmut.indd 101 25/11/2010 11:50:09 Deus”3. Enquanto Bengel tendencialmente preserva e prescreve Anselmo, Wesley volta para Paulo. Nas suas Notas sobre o Novo Testamento, Wesley vai então além de Bengel e volta para a teologia paulina. Quanto a amizade para com o mun- do, Wesley a identifica com “temperamentos sem amor”, em oposição ao “espírito do amor”.4 Wesley não interpreta Tiago 4.4 como texto chave mais o integra na sua compreensão da sua missão no mundo-paróquia. O uso da palavra amigo, ele comenta a respeito de 3 João 1.14, que “… a palavra não se encontra muitas vezes no Novo Testamento” e que ela foi “integrada no mais carinhoso irmão”.5 Ou seja, para ele um “irmão” é no mínimo na altura de um “amigo”, e jamais símbolo de uma religião intimista.

Sermões Nos sermões, os temas da reconciliação e da amizade aparecem em diversos momentos. Mas, quanto aos textos chaves mencionados anteriormente, somente Tiago 4.4 se tornou tema de uma pregação: So- bre amizade com o mundo (sermão 80). Chama a atenção que Wesley, como em muitas outras ocasiões, assume uma discussão com diversas frentes. Inicialmente define o “mundo” pela atitude do ódio para com a comunidade. Não há uma identificação de toda humanidade não-cristã com aquilo que ele designa o “mundo”. Nos parágrafos 8 e 9 Wesley desenvolve o tema: “Que tipo de amizade com o mundo podemos ter?” Basicamente, ele defende que o cristão e a cristã têm o dever de amar o/a outro/a como seu/sua próximo/a e procurar seu bem comum inde- pendentemente da sua crença. No parágrafo seguinte – “Que tipo de amizade com o mundo não podemos ter?” – ele se preocupa com o poder do mundo de perseguir e ferir ou de atrair e comprar. Já encontramos nas Notas sobre o Novo Testamento uma interpretação do “princípio” mundo como a atitude de odiar, de ser autossuficiente e egocêntrico, ou seja, de não amar.

Ira de Deus versus amor de Deus Mencionamos a relação entre o discurso da “ira de Deus” e a sote- riologia de Anselmo com a sua ênfase na satisfação da ira divina. Este discurso não é ausente em Wesley, mas ele não é dominante, como um rápido levantamento comparativo nos sermões indica:

3 “The enmity – which has been between sinners and God”. 4 “The spirit of love that dwells in all believers is directly opposite to all unloving tempers which necessarily flow from friendship to the word.”; 5 “… the word friend does not occurred very often in the New Testament being swallowed up in the more endearing one of brother.”

102 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 102 25/11/2010 11:50:10 “Ira de Deus” “Amor de Deus” Sermões [de um total de 149 vezes] [de um total de 1204 vezes] 1-33 33 vezes 89 vezes 34-70 5 vezes 59 vezes

71-114 2 vezes 73 vezes 115-151 5 vezes 54 vezes

“Amor de Deus” ganha contra “ira de Deus” quase na relação nove a um, ou seja, a fala da ira não chega em 12% das referências que destacam o amor divino. Também se percebe que a relativa ênfase na ira Deus diminui a partir do sermão 34. Para simplificar: depois de 1746, data da edição dos primeiros 53 sermões, o tema da ira de Deus quase desaparece, enquanto o tema do amor de Deus se mantém. Mesmo que seja esta aproximação meramente quantitativa o resultado sustenta as afirmações qualitativas e pontuais em seguida introduzidas.

“Amigo do senso comum” e “amante da humanidade” A tudo que foi até agora exposto corresponde uma poesia publicada por Wesley num livro de “boas” poesias inglesas. Ela foi escrita em 1728 por seu pai, Samuel Wesley, que tinha experiência própria com o sistema carcerário inglês como prisioneiro. Interessa-nos especialmente a apresen- tação dessa poesia no livro. Ele representa uma atuação não somente no espaço público, mas uma interação com ele, uma práxis herdada do pai ao filho. Aqui um inimigo do mundo e amigo de Deus mostra-se “amigo” da humanidade em duas dimensões:

• Ele age em defesa do ser humano em apuros ou injustiçado, independentemente da sua etnia, religião ou do seu gênero. Atrás dessa atitude está a luta pela justiça distribuidora e não reparadora que transborda na busca do bem comum de todos/as. Transcrevendo as Regras Gerais do metodismo, “Fazer o bem [comum], deixar [fazer que causa] o mal [comum]” é do berço da ética wesleyana.

• Um amigo da humanidade sabe se relacionar com os/as defen- sores/as públicos/as da justiça e os/as construtores/as públicos/ as de mais justiça. É isso que Wesley faz quando ele publica a poesia junto com uma dedicatória para todos os membros de uma comissão parlamentar, mencionados, um por um, no- minalmente.

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8helmut.indd 103 25/11/2010 11:50:10 Segundo John Wesley, um “inimigo do mundo e amigo de Deus” é, necessaria- mente, um “`amigo´ da humanidade” (WESLEY, 1756 [vol. 4], p. 100 e 101)

A diferença entre bem e mal não é marcada pela oposição Igreja- sociedade. No “mundo” há pessoas que promovem a justiça e com estas pessoas precisa-se e pode-se colaborar pela promoção do bem comum. De fato Wesley não usava a expressão “amigo da humanidade”. Em vez disso, fala frequentemente, como já vimos, que um verdadeiro cristão e uma verdadeira cristã devem amar a humanidade, inclusive, os seus inimigos. Wesley pode mesmo apresentar como “Amante da humanidade” [Lover of mankind]. Obviamente, significa “amar” em Wesley não um sen- timento romântico e também não uma ambígua “cordialidade”. Inclusive, o nosso religioso inglês detestava relações dominadas por um sentimen- talismo, tanto em relação a Deus como entre os seres humanos. Mas, mesmo que nós não encontremos a expressão “amigos da humanidade”, deparamo-nos da expressão “amigos de todos”, no sermão 82 de 1789, dois anos antes da sua morte. Esta expressão propositalmente irônica representa o posicionamento latitudinarista6, uma vertente do anglicanismo

6 Anota-se que Tilly (1898, p. 82 e 83) interpreta o latitudinarismo como “Cristianismo mundano”. “Os homens que tem abandonado altas pretensões ao sacrifício firmam covardemente um armistício com o mundo inimigo”. Em comparação com Wesley, Tilly reproduz o discurso puritano e não encontra mais nada bom entre não-cristão.

104 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 104 25/11/2010 11:50:10 e mostra que a nossa criação “`amigos´ da humanidade” no título tem sua base no pensamento do próprio Wesley. Finalmente encontramos a expressão “santos do mundo” desde 1744 até 1783. Trata-se de uma inte- ressante valorização de pessoas não-cristãs que agem como santas, sem confessar ou assumir a fé cristã como a sua base de vida. Esta expressão reconhece capacidades extraordinárias exercidas por pessoas no ambiente público. Basta resumir que a capacidade de poder ver pessoas ateístas ou até de outras crenças dessa forma representa uma base sólida para uma convivência e interação pública. Assim, e somente assim, pode se descrever o projeto metodista como “reformar a nação, particularmente, a igreja” e pode se exercitar um “sentido público”.

Relação com o “mundo” ou a Documento “humanidade”: Crítica Construtiva “o mundo é minha 1742 paróquia” WJW [vol. 1], 24 ago. 1744, p. 1744 “santos do mundo” 167 – sermão 4, §II.5; “Um amante da 1760 The desideratum, [capa] humanidade e do senso comum” “reformar a nação, [particularmente, a igreja]” “amizade com o mundo é Sermão inimizade com Deus” Cf. WJW [vol. 2], maio- jun.1783, p. 464 – sermão 61, 1783 “santos do mundo” §28 e WJW [vol. 3], 1783, p. 345 – sermão 94, §III.18

WJW [vol. 3], 8 abr. 1788, p. 1788 “sentido público” 483-484 – sermão 105, §I.8.9.

Não se trata, então, de um discurso unânime. Quanto à teologia bí- blica, Wesley é mais paulino; quanto a doutrina da Igreja, Wesley é mais tradicional no sentido da prescrição da herança herdada, em especial da tendência medieval dos Artigos da Religião anglicanos. No mundo dos slogans ou lemas evangélicos, especialmente, puritanos, como a ênfase em Tiago 4.4 está presente, entretanto, não domina o imaginário. O dis- curso de Wesley é muito mais aberto, abrangente e inclusive do que o de Tilly7, até de Joiner. A arte de Wesley era combinar o olhar crítico dessa

7 “O mundo consiste nos que ainda não são regenerados, e nós não devemos ter os seus alvos, nem adoptar seus princípios, nem seguir os seus caminhos, nem imitar seus gostos nem apreciar os seus gostos, nem tomar parte em seus divertimentos. [...] Se algum ama o mundo não há n´elle o amor do Pae ” (TILLY, 1898, p. 124-125).

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8helmut.indd 105 25/11/2010 11:50:10 afirmação puritana com uma atitude construtiva e não generalizante da posição anglicana, mesmo que o olhar crítico não prevalecesse nos 25 Artigos da Religião metodistas.

25 Artigos da Religião Quanto aos 25 Artigos da Religião metodista, Wesley manteve a tradição da reforma e se referia à reconciliação de Deus com o ser hu- mano. Neste texto constitutivo de 1784 não transparece mais o avanço alcançado por meio dos seus estudos bíblicos.

Deus é reconciliado O ser humano é reconciliado

“recebemos a reconciliação” “... a libertação da ira” Rm 5.11 (Rm 5.11) (BENGEL, Gnomon, 1742) WESLEY, Notas sobre o NT “O mundo – que tinha sido hostil” (Ef 2.16). (BENGEL, Gnomon, 1742) Ef 2.16 “A inimizade – que tinha sido entre pecadores e Deus” (Ef 2.16). WESLEY, Notas sobre o NT 25 Art. “... para reconciliar seu Pai Da conosco” (art. 2) – não – Religião WESLEY, 25 Artigos da Religião

4. Reconciliação, inimizade e amizade como tema da teologia siste- mática a partir dos meados do século 19

Vimos que Wesley manteve ainda as duas linhas conflitantes dentro do seu discurso teológico, apesar de uma tendência de dar mais destaque para Abelardo do que para Anselmo, cujo último prevalece no seu uso da expressão “ira de Deus” e na sua apreciação dos 39 Artigos da Religião anglicanos. Isso era a situação geral da teologia protestante inclusive metodista até os meados do século 19. Albrecht Ritschl No último terço do século 19, entretanto, muda novamente a situ- ação. Teólogos como Albrecht Ritschl (1822-1889) voltam para o centro da mensagem paulina, apesar da sua abordagem nova8. Já em Origem da Igreja Vétero Católica, Ritschl (1850, p. 83) relaciona a amizade com a justiça divina: “A dikaiosis realizada por Cristo é […] entendida como transformação de inimizade em amizade [katallage, Rm 5.10; 2Co

8 O limite da teologia de Albrecht Ritschl está na sua redução historicista, não no seu favorecimento de Abelardo.

106 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 106 25/11/2010 11:50:10 5.20]”. Consequentemente, na sua obra prima plenamente dedicada às doutrinas da justificação e da reconciliação, Ritschl favoreceu Abelard em vez de Aquino:

A justiça da retribuição inexorável, que seria expressa na frase Fiat justitia, pereat mundus9, não é em si uma concepção religiosa, nem é o sentido da justiça que é atribuída a Deus nas fontes do Antigo e do Novo Testamento. A justiça de Deus é a Sua autoconsistente e inevitável ação a respeito da salvação dos membros de sua comunidade; na sua essência é idêntica à sua graça [...]. Entre os dois, portanto, não há contradição que precisa ser resolvida. Não é bíblico supor que qualquer um dos sacrifícios do Antigo Testamento, fundamento da analogia segundo a morte de Cristo deveria ser julgado, teria tido o significado de mover Deus da ira para a graça [...]. Pelo contrário, esses sacrifícios baseiam-se implicitamente na realidade de graça de Deus em relação ao povo da aliança, e apenas define certas condições positivas que os membros do povo da aliança devem cumprir, a fim de desfrutar da proximidade com o Deus da graça. Não é bíblico supor que a oferta de sacrifício em si inclui um ato penal, executado não sobre o culpado, mas em cima da vítima, que toma seu lugar. A representação por sacerdote e sacramento não tem como objetivo qualquer sentido exclusivo, mas inclusivo (RITSCHL, 1900, p. 473-475). Ritschl rejeita uma compreensão retributiva da justiça e volta com isso para a teologia paulina. Mas é nas suas aulas da ética onde ele explora ainda mais o conceito da amizade para descrever as relações entre a Igreja e seu contexto: “O dever da hospitalidade10 (1Pe 4.12; Hb 13.12) fundamenta [...] a comunhão que leva ao amor fraternal para com todos [...] [A] “amizade [...] carrega [...] em si o elemento do reino de Deus, mesmo que isso não seja reconhecido explicitamente por uma reflexão religiosa” (RITSCHL, 2007, p. 102).11 O tema seria utilizado por muitos teólogos representantes do Evangelho social.

A releitura do 2º dos 25 Artigos da Religião do metodismo em solo brasileiro Com esta parte introduzimos uma decisão teológica que, segundo o nosso conhecimento, no mínimo recentemente não foi assunto de uma con- sideração dogmática. Trata-se de uma variante latino-americana, atualmente,

9 “Faça-se justiça, ainda que o mundo pereça”. Lema do imperador católico Ferdinando I (1503-1564), talvez de origem de Philip Melanchton (1497-1560). Uma origem romana não foi comprovada, apesar de representar bem a compreensão da lei romana. 10 em alemão, “Gastfreundschaft”. A palavra significa, literalmente, “amizade para com o visitante ou o hóspede”. 11 Mencionamos aqui que Ritschl não estende isso a relação entre homens e mulheres. Entre eles, ele entende amizade algo impossível (RITSCHL, 2007, p. 102).

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8helmut.indd 107 25/11/2010 11:50:10 entretanto somente preservada em documentos oficiais na língua portuguesa. Falamos da tradução do segundo artigo dos 25 Artigos da Religião da tradi- ção metodista na sua versão portuguesa. Nos anos 1886 e 1887 a tradução mantém a versão original, mas, em 1888 muda para a lógica de Abelardo, e depois de um breve desaparecimento a partir de 1898 até, no máximo12, 1910, a versão de 1888 é mantida até hoje. Veja a diferença:

1898, no ano que a tradução de 1886 e 1887 voltou, foram publica- dos duas dogmáticas de Tilly (1898) – também editor responsável dos Cânones de 1898 – e Joiner (1898). Este segundo é considerado o mais importante (JOSGRILBERG, 2006, p. xiv). Enquanto Tilly é considerado o teólogo mais conservador, os dois não falam da ira, mas, do amor de Deus. Porém, Anselmo ainda está presente. Na cruz precisa-se “satisfazer todos os requisitos d`uma lei ultrajada ou de uma justiça quebrada”. Já as próximas duas afirmações representam mais Abelardo: “Deus [...] deve também possuir o meio de conquistar o coração revoltoso do homem e de transformar seu ódio em amor” (1898, p. 67) e “O Evangelho originou-se em amor infinito. […] Este amor que Deus manifestou para comnosco na cruz vem sobre nós com um impulso irrestisível13 (1898, p. 86). Joiner avence até um pouco mais. Por um lado, entende a obra de Jesus como “... expiação ou satisfação para aplacar uma injúria ou offensa” (1898, p. 270), ou seja, no sentido de Anselmo. Ele confirma esta interpretação com Thomas Osmond Summers (1812-1882)14 e John Dick (1764-1833). 12 não sabemos a data exata. Entre 1898 e 1910 houve ainda Concílios em 1902 e 1906, cujos Cânones não estão acessíveis. 13 Wesley preferiu “preveniente”. 14 Provavelmente Thomas Osmond Summers (1812-1882). Neste caso trata-se da sua teologia de 1888.

108 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 108 25/11/2010 11:50:11 Dr. Summers diz: “Reconciliação indica existência previa de hostilidade. O anta- gonismo entre Deus e o homem, originou-se nos peccados deste último, sendo estes offensivos a todos os attributos de Deus obrigaram a Deus a retirar da raça peccaminosa os Seus preciosos favores”. / [...] diz o Dr. Dick: [...] A Divindade exige que haja o sofrimento e a morte (grifo nosso). Por outro lado cita também William Burt Pope (1822-1903), que pa- rece mais15 representar a linha de Albrecht Ritschl: “Segundo o Dr. Pope: “[...] no mysterio da Reconciliação, as provisões da misericórdia eterna antecipam na transgressão, e em todas as manifestações da Redempção, o primeiro logar é ocupado pelo amor. A paixão é a manifestação e não a causa do amor Divino ao homem” (grifo nosso). Assim não surpreen- de plenamente que Joiner lê no segundo artigo: “Christo effectivamente soffreu, foi crucificado, morto e sepultado para reconciliar-nos com o Pae” (1898, p. 270), como era o caso de geração depois de Ransom. Talvez devemos a Joiner e o uso intenso da sua dogmática que a mu- dança do objeto da reconciliação em comparação com o texto inglês se consolidou e consagrou. Baseamos esta afirmação nos Cânones metodistas e alguns textos que apresentam e explicam os 25 Artigos da Religião. Em seguida com- paramos as traduções da respectiva passagem no segundo Artigo da Religião das seguintes Igrejas Metodistas (onde não mencionado trata-se dos Cânones das respectivas Igrejas):

O ser humano é Igreja Deus é reconciliado reconciliado “to reconcile his Father to us” 1783 MECV [Trad.: “para reconciliar seu Pai conosco” ] “to reconcile his Father to us” 2010 UMC [Trad.: “para reconciliar seu Pai conosco”]

IM-MexVI [Trad.: “para reconciliar seu Pai conosco”] Ransom (1878, p. 1878 “para reconciliar conosco seu Pai” 104) Methodista 1886 Catholico, vol. 1, n. “para reconciliar comnosco seu pai”” 3, p. 4VII

15 na sua teologia ele não supera Anselmo em tudo. Cf. Pope (1881, vol. 1, p. 321, 348, 353). Também na página 348, Pope fala de “... uma reconciliação ou harmonização de ira e misericórdia na cruz...”. Assim também no seu volume 2, p. 282: “primeiro o juiz supremo é reconciliado plenamente com a raça humana, segundo, se faz a provisão pela reconciliação de cada ser humano com ele.” Já na sua ética, em vol. 3, p. 223 aparece “amizade como terminus tecnicus: O “seu serviço é o ministério da amizade e sua amizade é a amizade de servos”. V Methodist Episcopal Church [1784-1930; Igreja Metodista Episcopal] VI Iglesia Metodista de México [1930-]. Assim também o metodismo argentino. VII Journal Mensal da Igreja Metodista. Nome da revista antes do Expositor Cristão.

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8helmut.indd 109 25/11/2010 11:50:11 “para reconciliar- IME, SVIII (1888, 1888 nos com seu p. 2) Pae” Para reconciliar- 1898 IME, S (1900, p. 2) “para reconciliar seu Pae comosco”IX nos com o Pae” JOINER (1898, p. 1898 270) 1902 Documentos não acessíveis 1906 “to reconcile his Father to us” 1910 MEC, SX [Trad.: “para reconciliar seu Pai conosco”] “para nos 1910 IME, S (1913, p. 2) reconciliar com seu Pae” “para MEC, S [ed. esp.] reconciliarnos 1926 XI(1927, p. 16) com su Padre”

“para nos 1934 IM[dB]XII reconciliar com seu Pai”. “para nos 1974 IMVIII reconciliar com seu Pai” Klaiber e Mar- “um seinen Vater mit uns zu versöhnen” 1983 quardt (1993, p. [Trad.: “para reconciliar seu Pai conosco”] 412) 1999 Klaiber e Mar- “para nos quardt (1999 e reconciliar com 2006 2006, p. 462 ) seu Pai”XIII “para nos 2006 IM (2007, p. ) reconciliar com seu Pai”

O texto inglês nunca mudou e representa até hoje a justiça retributiva de Anselmo. Os textos atuais em espanhol e alemão seguem o original inglês. Num certo momento, a versão espanhola mudou para uma ênfase de uma justiça distributiva e da amizade em vez da inimizade de Deus para com o mundo ou a humanidade. A tradução para o português, apesar da

VIII Igreja Metodista Episcopal, Sul no Brasil [1888-1930] IX Coincidência ou não, esta edição contém ainda um “Certidão quanto aos Artigos de Re- ligião” (1910, 2ª pági-na): “Certifico que o texto dos Artigos de Religião contidos nesta edição foram comparados por mim com o texto official e acho que concordam com elle. Jno. J. Tiggert”. Isso se refere a edição inglesa. Depois segue um “Cértidão quanto a edição portugueza da disciplina” onde lemos: “Certifico que [...] a tradução [...] está confor-me ao seu original. Edmund Tilly”. X Methodist Episcopal Church, South [1848-1930; Igreja Metodista Episcopal, Sul]. XI Iglesia Metodista Episcopal, Sur [na América espanhola]. XII Igreja Metodista do Brasil; depois de 1974 Igreja Metodista [1930-]. XIII Não houve, então, uma tradução, mas uma substituição dos 25 Artigos em alemão pela edição brasileira. Assim, a diferença ficou despercebida.

110 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 110 25/11/2010 11:50:11 forma tradicional no início16 e com um pequeno intervalo na virada do século 19 para o século 20, traçou um caminho próprio e corrigiu o texto de tal modo que a teologia de Anselmo é substituída pela teologia de Abelardo.

5. Reconciliação e amizade à humanidade no Evangelho Social e no Credo Social

Ó Pai, faça nós, rogo-Te, amigos de todo o mundo” Rauschenbusch (1909, p. 28, grifo nosso).

“Amigo de todos, inimigo de nin- guém” tornou-se um lema com des- taque na década de 30 do século 20 como subtítulo da revista Voz Mis- sionária. O tema já era explorado 20 anos antes. No trecho ao lado apare- ce esta frase em parte:

Ser amigo de todos, permear todas as rela- ções humanas com este espírito de amizade – haverá qualquer coisa mais, que os melhores e mais sábios possam esperar alcançar? / Si a egreja acceitasse esta verdade – religião é amizade – erguer sua vida sobre ella e fazel-a central e organica em seu ensinamento, então veriamos uma grande revificação17 de religião (GLADDEN, 1910, p. 2, grifo nosso).

Trata-se de uma citação do livro Lembranças de Washington Gladden

16 O texto mais antigo encontrado era do Compêndio de Igreja Metodista Episcopal de Ransom (1878, p. 104). Chama a nossa atenção, entretanto, que o autor no seu prefácio destaca, primeiro, o amor de Deus e não a necessidade da superação da sua ira: “Os pontos cardeaes do credo methodista são: o Propósito de Amor da parte de Deus (grifo nosso), de salvar a todos os que crêem em Jesus; a necessidade, e sufficiencia e resistibilidade da graça que Deus concede para salvação de cada homem; a pos- sibilidade da apostazia final de um homem regenerado; e quanto ao mais cremos no testemunho do Espírito Santo pelo Deus nos revela nossa adopção, cremos no Amor Perfeito attingivel n´esta vida, e convidamos a todos busquemos esta perfeição ou santidade” (RANSOM, 1878, p. 4). 17 Em vez de falar da “revivificação da religião” Rauschenbusch (1908) se refere ao “aviva- mento social”. Ambos autores desenvolvem os seus discursos em busca do envolvimento das Igrejas numa presença pública mais engajada.

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8helmut.indd 111 25/11/2010 11:50:11 (1836-1918), pastor congregacional estadunidense e voz pioneira do Evan- gelho Social (cf. GLADDEN, 1909, p. 429). Numa frase anterior à parte citada no Expositor Cristão Gladden afirma: “Estou disposto a acreditar que o tempo está se aproximando quando a Igreja cristã terá a habilida- de a discernir e declarar a simples verdade que a religião é amizade, amizade para com Deus e amizade para com a humanidade” (grifo nosso). “... amizade para com Deus e amizade para com a humanidade” lembra pela estrutura do duplo (ou triplo) mandamento do amor, ou seja, podemos constar que o autor no mínimo coloca o conceito da amizade na altura do amor ou seja, num lugar privilegiado da ética cristã.18 Walter Rauschenbusch, eminente representante batista do evangelho social e parceiro de Washington Gladden, também foi lido entre os me- todistas brasileiros do início do século 20 (Cf. RENDERS, 1998, p. 12). Ele tinha estudado com Ritschl e explorou de forma próxima, entretanto, mesmo assim, independente, o conceito da amizade. No seu último livro ele resume: “Qualquer pessoa treinada pelo evangelho social na mente de Cristo escolha uma relação orgânica entre dever e a amizade” (RAU­ SCHENBUSCH, 1917, p. 235, grifo nosso). Nas suas Orações para um avivamento social (1909, p. 28) encontramos uma fática releitura de Tiago 4 combinada com a frase “amigos de todos”: “Ó Pai nosso, mais uma vez está um novo dia diante de nós. [...] faça nós, rogo-Te, amigos de todo o mundo” (grifo nosso). Nos dias atuais da ética da sustentabilidade chama a atenção a sua busca da “amizade para com as gerações ainda por vir” (p. 88, grifo nosso, uma ideia ainda mais aprofundada na oração “Para que vem depois de nós” (p. 109-110). Para Rauschenbusch (1917, p. 162) isso parte de Jesus Cristo: Jesus “... tinha uma sede de amizade (grifo nos- so) e [...] um incomparável sentido da sacralidade de cada pessoa”. Esta ideia ele explorou também no seu livro “Os princípios sociais de Jesus: “Jesus cravando amizade [...] Pessoalmente, Jesus era muito sociável. Evidentemente ele gostava de se misturar com o povo. Ele gostava do dar-e-tomar da vida. Ele tinha amizades. [...] Em Getsemane ele cravou amizades” (1916, p. 18 e 19). “Uma religião socialmente eficiente deve guiar os bons sujeitos a estabelecerem relacionamentos amigáveis [...] [também] com [...] pessoas” (1916, p. 137) consideradas pecadoras.

“Amizade” e “reconciliação” nos Credos Sociais e declarações conciliares

A expressão eclesiástica chave do Evangelho Social na Igreja Me- todista são os Credos Sociais. No Brasil, o primeiro apareceu em 1918 (EGREJA METODISTA EPISCOPAL, SUL, 1919, p. 404- 405 [§808]) como

18 O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) comentou que “amigo de todo mun- do é amigo de ninguém”. Entendemos que esta crítica vale somente quando se usa “amizade” de forma esvaziada e sem critério.

112 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 112 25/11/2010 11:50:11 tradução do texto inglês da Igreja Metodista Episcopal, Sul. Em 1934 nasce o primeiro Credo Social brasileiro e junto a ele uma declaração do Concílio Geral: “A atitude da Igreja Metodista do Brasil diante o mundo e a nação” (IGREJA METHODISTA DO BRASIL, 1934, p. 96-97). Nesta aparece o conceito da amizade para descrever as relações internacionais em busca de “... esforços construtivos em prol da amizade e da paz”. No Credo Social de 1960 descreve-se ainda a relação entre igrejas “Estreitamento dos laços de amizade com as denominações irmãs”. Depois desaparece o conceito em textos oficiais. Entretanto, retorna no Credo Social de 1970 a ênfase na reconciliação, agora como elemento estruturante e organizador do mundo por representar uma nova forma de relacionamento, e que como nova forma, acaba sendo também uma forma denunciadora:

[II-4] Cremos que o Deus único estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, criando uma nova ordem de relações na História [...] [III-5b] A reconciliação do mundo em Jesus Cristo é a fonte da justiça, da paz e da liberdade entre as nações; todas as estruturas e poderes da sociedade são chamados a participar dessa nova ordem. A Igreja é a comunidade que exemplifica essas relações novas do perdão, da justiça, e da liberdade, recomendando-as aos governos e nações como caminho para uma política responsável de cooperação e paz [...] [III-5d] A reconciliação do homem em Jesus Cristo torna claro que a pobreza escravizadora em um mundo de abundância é uma grave violação da ordem de Deus.(IGREJA METODISTA, 2007, p 50, 51, 53).

Enquanto “amizade” descreve uma forma de se relacionar entre pessoas, “justiça, paz e liberdade” descrevem o conteúdo da organização do espaço no qual estes indivíduos atuam. Por outro lado afirma o uso do conceito da reconciliação a ideia que a “nova ordem” não se esgota em princípios, declarados, mas, em “relações novas”. Nessas “relações novas” ainda cabe a amizade.

Considerações em relação a uma teologia pública wesleyana

Observamos um desenvolvimento tanto pela sedimentação das linhas paulinas do conceito da reconciliação como por meio da consciente e cres- cente releitura do conceito da amizade. Em cada etapa, desde a Inglaterra, via os Estados Unidos e até Brasil, cada povo em cada época acresceu algo que pode servir como legado para uma teologia pública wesleyana. O que mais nos surpreendeu foi a reformulação do segundo artigo dos 25 Artigos da Religião na tradução para a língua portuguesa. A con- tribuição de Ritschl parece funcionar razoavelmente bem como terminus post quem, talvez no sentido de um catalisador que ajudou os/as

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8helmut.indd 113 25/11/2010 11:50:11 metodistas retomar uma direção que John Wesley já tinha traçado parcialmente. Em meio de uma disputa entre a teologia espiritual sulista estadunidense e o surgimento do evangelho social, pre- valeceu – no segundo artigo – o projeto mais amplo, o projeto da salvação como superação da inimizade humana pela amizade divina que entendeu a religião como “... amizade, amizade para com Deus e amizade para com a humanidade” até que no Credo Social de 1970 o tema da reconciliação é a base de uma nova ordem do mundo e de novas relações no mundo. Este retorno para uma teologia em maior sintonia com as suas bases bíblicas, no caso, a teologia paulina, em superação de uma vertente da teologia medieval, abre o caminho ao consciente uso do conceito da ami- zade pelas teologias desenvolvidas para sustentar uma teologia pública da Igreja. Os documentos mais citados recentemente são das primeiras duas décadas do século 20, ou seja, do início da construção de relacio- namento igreja – estado laico.19 Parece-nos que a tese que a amizade representasse uma forma importante para descrever e articular relações públicas converge com os autores aqui citados. No Credo Social de 1970 desdobra-se diretamente, por uma nova ênfase no discurso bíblico, a relação entre soteriologia e teologia pública. Para futuras pesquisas há, além disso, ainda algo mais a cogitar em relação do suposto caráter mais objetivo do conceito da “amizade” em comparação às metáforas do amor – não da cordialidade. Precisamos levantar a pergunta se a execução anônima, tecnocrata e burocrata do estado que se julga desemocionalizada e mais objetiva, lógica e legal, não em alguns casos resultasse num fático e incontestável desrespeito para com o indivíduo ou grupos sociais inteiros. O seja, não somente o conceito do amor – enquanto a sua compreensão como romântico ou sentimental – tem seus limites, mas também o próprio conceito da amizade – na configuração aristotélica – sirva somente em parte como inspiração para a democracia. Primeiro, por ser uma forma de relacio- namento público reservado aos homens e não exatamente um conceito que promovia relacionamentos – na devida distinção entre o público e privado – igualitários para todos os grupos da sociedade, tampouco, aliás, como a própria ideia originária da democracia. Por outro lado, o conceito do amor – inclusive na sua vertente romântica se opõe, por natureza, às barreiras étnicas, de gênero, de classe social ou de idade, como peças de teatro como Romeu e Julieta com toda razão indicam. Ou seja, o amor fraternal no sentido inclusivo, tem um potencial revolucionário. Talvez haja um caminho ainda mais promissor a discutir as dinâmicas relacionais na

19 Confira também o título de Sherwin, John Wesley amigo do povo (grifo nosso). O título é de 1961, ou seja, de uma fase da teologia wesleyana americana em qual o aspecto público da religião esteve em alta.

114 Helmut Renders: “Inimigos do mundo” e “`amigos´ da humanidade”

8helmut.indd 114 25/11/2010 11:50:11 esfera pública conjugando formas maduras tanto do amor como da ami- zade em conjunto pelo bem da existência cidadã tanto de membros das igrejas cristãs como de outros/as cidadãos e cidadãs. Terminamos com a citação de uma estrofe de um hinário metodista com canções natalinas de 1745. Segundo o poeta Charles Wesley (1745, p. 46) irmão de John Wesley, a união perfeita até dentro da Igreja é descrita não pelo amor simbiótico, mas por uma relação caracterizada como amizade. Mais impor- tante é este tipo de relacionamento que é entendido como uma represen- tação de relacionamento na altura do próprio Jesus Cristo (grifo nosso):

Nenhum alerta horrível de guerra Interromperá o nosso repouso eterno Não haverá nenhum som de trombeta Onde o Espírito de JESUS paire: Pacificados pelo charme da Tua graça Unimo-nos em amizade E com gentileza abraçamos uns aos outros E amamos com uma paixão parecida com a Tua.

Onde o Espírito de Jesus paire, tanto o amor simbiótico como forma infantil de tentativa de superar diferenças quanto o conflito bélico como tentativa de garantir ou implantar a supremacia de um ou outro discurso por violência representam caminhos inúteis. Sobra para a amizade descre- ver a relação perfeita, uma união como relacionalidade em diferença...

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8helmut.indd 115 25/11/2010 11:50:11 da Igreja Methodista Episcoal, Sul, 1918. Edição brasileira. São Paulo: Casa Publicadora Methodista, 1919, GLADDEN, W. Recollections. New York: Houghton Mifflin & Co, 1909. ____. “A summa da religião”. In: Expositor Cristão [redatores A. Cardoso da Fon- seca e J. M. Lander], vol. 25, n. 6, p. 4 (10 fev. 1910). IGLESIA METODISTA EPISCOPAL DEL SUR. Doctrinas y disciplina de la Iglesia Metodista Episcopal del Sur, 1926. Nashville, Tenn. / Dallas, Tex. / Richmond, VA. / San Francisco, Cal.: Casa de Publicaciones de la la Iglesia Metodista Episcopal del Sur, 1927. IGREJA METHODISTA EPISCOPAL DO SUL. As doutrinas e a disciplina da Igreja Methodista do Sul 1888: edição portuguesa. KENNEDY, J. I.; WOLLING, J. W.; TARBAUX , J. W. (comissão publicadora da Conferência Annual). Rio de Janeiro: Typ. Aldina de A. J. Lamourreux & Co. 79, Rua Sete de Setembro, 1888. IGREJA METHODISTA DO BRASIL. “A atitude da Igreja Metodista do Brasil diante o mundo e a nação”. Atas do 2º Concílio Geral. Porto Alegre de 4 a 19 de janeiro de 1934. São Paulo, SP: Imprensa Metodista, p. 96-97. IGREJA METODISTA. Cânones da Igreja Metodista, 2006. São Paulo: Cedro, 2007. IGREJA METODISTA DO BRASIL / RENDERS, H. Um precursor do PVM na épo- ca da autonomia: a declaração A Atitude da Igreja Metodista do Brasil perante o Mundo e a Nação de 1934. Introdução e comentários de Helmut Renders. Cami- nhando, vol. 12, n. 2 [20], p. 167-176 (jul. / dez. 2-2007). Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2010. IOSSO, C. ; HINSON-HASTY, E. Prayers for the new social awakening inspired by the new Social Creed. Westminster John Knox, 2008. JENNINGS JR., T. Transforming atonement: a political theology of the cross. Minneapolis, MS: Fortress Press, 2009. [Tradução do título: Expiação transfor- madora: uma teologia política da cruz]. JOINER, E. E. Theologia Cristã: sendo uma apresentação e defesa da fé cristã como é ensinada pelos methodistas. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Methodista, 1898. KLAIBER, W. ; MARQUARDT, M. Gelebte Gnade: Grundriss einer Theologie der Evangelisch-methodistischen Kirche. Stuttgart: Christliches Verlagshaus, 1993. KLAIBER, W. ; MARQUARDT, M. Viver a graça: um compêndio de teologia wes- leyana. 2. ed. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2006 [1. ed. 1999]. METHODIST EPISCOPAL CHURCH, SOUTH. The doctrine and discipline of the Methodist Episcopal Church, South, 1910. Nashville, Tenn. / Dallas, Tex: Publishing House M. E. Church, South, 1911. ORTEGA, F. “Por uma ética e uma política da amizade”. In: Página do SESC, SP. Disponível em: < www.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferencias/95.rtf >. Acesso em: 22 jun. 2010. ORTEGA, F. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 124p. POPE, W. B. A compendium of : being analytical outlines of a course of theological study, Biblical, dogmatic, historical, 3 volumes. Cleveland,

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8helmut.indd 117 25/11/2010 11:50:12 O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para a missão da igreja

The phenomenon of population aging as chal- lenge to the church’s mission

El fenómeno del envejecimiento de la población como un desafío a la misión de la iglesia

Paulo Dias Nogueira

Resumo O presente artigo apresenta, por meio de dados estatísticos, o fenômeno do envelhecimento populacional e as ações governamentais na elaboração de políticas públicas para enfrentá-lo. Estes apontamentos servem como subsídio para despertar a igreja quanto ao fenômeno e desafiá-la a ações missionárias e pastorais junto à população idosa. Palavras-chave: Envelhecimento populacional; idosos; pastoral; missão.

Abstract This article presents statistics concerning the phenomenon of population aging and government initiatives in developing public policies to address it. Bases on these figures it pretends to allert the church concerning the phenomenon and to challenge it so that it projects missionary and pastoral activities alongside the elderly. Keywords: Aging population; elderly people; mission.

Resumen Este artículo presenta, a través de datos estadísticos, el fenómeno del enveje- cimiento de la población y las acciones gubernamentales en la elaboración de políticas públicas para para hacerle frente. Estas notas sirven como ayuda para despertar a la iglesia con el fenómeno y su desafío a las actividades misioneras y pastorales con la población de edad avanzada. Palabras clave: Envejecimiento de la población, ancianos, pastoral; misión.

Paulo Dias Nogueira: O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para...

9paulo.indd 118 25/11/2010 11:50:37 Introdução

A busca pela longevidade tem feito parte dos sonhos da população mundial ao longo da História. Porém, ao analisar as últimas décadas verifica-se que avanços sociais e científicos contribuíram para que este sonho se aproximasse da realidade. O número de idosos tem crescido a cada ano. O Brasil, que durante décadas foi apontado como um país jovem, está envelhecendo. Entender o fenômeno do envelhecimento populacional e seus desafios para a sociedade é de fundamental importância ao se preparar a agenda missionária da igreja. A população está envelhecendo nos últimos anos e a igreja deve levar este fato em consideração ao elaborar suas ações missionárias e pastorais. O objetivo principal deste artigo é apresentar o fenômeno do en- velhecimento populacional brasileiro como desafio à missão da igreja. Reconhecendo ser este um espaço exíguo de artigo, no qual não caberia a apresentação do fenômeno e depois a indicação de pistas pastorais para o cumprimento da missão junto à população idosa, optou-se por uma abordagem fenomenológica, sem aspectos propositivos. Por hora, o texto nos convida a refletir sobre o fenômeno e a pensar como responder mis- sionariamente à população cada vez mais idosa. Quanto à apresentação de pistas pastorais para a missão junto aos idosos, pretendo escrever um artigo na próxima revista. Por enquanto, vejamos os dados estatísticos e as políticas públicas desenvolvidas no Brasil e no mundo. Este tema fez parte de minha pesquisa para o mestrado, situado na área de Práxis Religiosa e Sociedade do curso de pós-graduação em Ci- ências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). O texto abaixo é baseado no primeiro capítulo da dissertação, com algumas alterações e ajustes necessários (NOGUEIRA, 2009).

1. O envelhecimento populacional brasileiro – uma análise demográfica

O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial. Dados esta- tísticos demonstram que nas últimas décadas houve um forte crescimento da população idosa nos países em desenvolvimento (Tabela 01). Ainda que este fato tenha acontecido, o número ainda é proporcionalmente inferior ao dos países desenvolvidos (IBGE, 2002, p. 12).

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9paulo.indd 119 25/11/2010 11:50:37 Tabela 01 – População, total e de 60 anos ou mais de idade e proporção de ido- sos, segundo continentes e países – 1990/1999

Continentes População Proporção População total e Países 60 anos ou mais de idosos (%) Ásia China 1.242.799.000 133.954.000 10,8 Japão 126.486.000 28.222.000 22,3 Europa Alemanha 82.057.379 17.927.000 21,8 França 57 526 521 11.305.622 19,7 Itália 57.563.354 13.299.830 23,1 Reino Unido 59.008.634 12.051.946 20,4 América do Norte Canadá 30.301.185 4.950.593 16,3 Estados Unidos 280.298.524 44.670.193 15,9 América Latina Argentina 34.768.457 4.584.300 13,2 Brasil 169.799.170 14.536.029 8,6 Chile 15.017.760 1.513.486 10,1 Colômbia 41.589.017 2.813.328 6,8 Cuba 11.065.878 1.439.245 13,0 Equador 11.936.858 792.982 6,6 México 91.158.290 5.969.643 6,5 Peru 24.800.768 1.737.326 7,0 Uruguai 3.313.239 567.565 17,1 Venezuela 23.242.435 1.483.817 6,4

Fontes: Demographic yearbook 1999. New York: United Nations, 1999; IBGE, Censo Demográfico 2000.

Dentre os países em desenvolvimento, o Brasil assume uma posição intermediária com 8,6% de idosos em relação à população total. Ainda que proporcionalmente o número de idosos seja menor nos países em desenvolvimento, ele tem causado mais transtornos sociais e econômicos nestes do que nos países desenvolvidos. Isto se dá, pelo fato de que o envelhecimento populacional nos países desenvolvidos foi gradativo e em paralelo com as transformações socioeconômicas, possibilitando o planejamento e a implantação de políticas na busca de uma melhor qua- lidade de vida para os idosos. Já no Brasil, bem como em outros países em desenvolvimento, este fenômeno tem acontecido rapidamente, não permitindo um planejamento adequado da sociedade. Sendo um dos países em desenvolvimento, o Brasil não foge à regra e está envelhecendo rapidamente. Se em 1940 tinha 42% de sua popu- lação com idade inferior a 15 anos, no ano 2000 chegou a uma porcen-

120 Paulo Dias Nogueira: O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para...

9paulo.indd 120 25/11/2010 11:50:37 tagem de 29,6%, e segundo dados do IBGE e projeções da Organização Mundial da Saúde, chegará em 2020 a uma proporção de apenas 24,3%. Em contrapartida, a população de 60 anos ou mais passou de 4,1%, em 1940, para 8,6% em 2000, projetando-se para 2020, uma proporção de 12% (Tabela 02).

Tabela 02 – Distribuição percentual da população, por grupos de idade – 1940-2000

Distribuição percentual da população, por grupos de idade (%) Grandes 0 a 14 anos 15 a 59 anos 60 anos ou mais Regiões 1940 2000 1940 2000 1940 2000 Brasil 42,9 29,6 53,0 61,8 4,1 8,6 Norte 42,3 37,2 54,3 57,3 3,4 5,5 Nordeste 42,3 33,0 52,4 58,6 4,3 8,4 Sudeste 42,4 26,7 53,6 64,0 4,0 9,3 Sul 43,8 27,5 52,2 63,3 4,0 9,2 Centro- 44,5 29,9 52,5 63,5 3,0 6,6 oeste Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1940/2000.

Analisando os quatro últimos censos demográficos (1970, 1980, 1991 e 2000) percebe-se que o crescimento da população idosa tem se acelerado. De 5,07% da população geral em 1970, passou para 6,07% em 1980, depois para 7,30 em 1990, chegando a 8,56% em 2000. Verifica-se um crescimento real de 3,49% desta faixa etária em relação à população geral (Tabela 03).

Tabela 03 – Brasil: distribuição proporcional (%) da população, segundo grandes grupos etários – 1970, 1980, 1991 e 2000.

Grupos etários Ano do recenseamento Anos 1970 1980 1991 2000 0-14 42,10 38,24 34,73 29,60 15-59 52,83 55,69 57,97 61,84 60 e + 5,07 6,07 7,30 8,56 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 Fontes: IBGE Censo demográfico 1970, 1980, 1991 e 2000

Dirigindo o olhar para os dois últimos censos demográficos, verifica-se que em dados absolutos, a população de 60 anos ou mais de idade, era 10.722.705 em 1991 chegando a 14.536.029 em 2000. Deste montante, 4.931.425 homens e 5.791.280 mulheres em 1991 e 6.533.784 homens e 8.002.245 em 2000. Ou seja, o número de idosos aumentou em quase 4 milhões de pessoas numa só década, sendo que a porcentagem de

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9paulo.indd 121 25/11/2010 11:50:37 mulheres é maior que a de homens. Este fenômeno é denominado de “Feminização da Velhice” (Tabelas 04, 05 e 06).

Tabela 04 – População residente, total e de 60 anos ou mais de idade, por grupos de idade, segundo as Grandes Regiões e Unidades da Federação – 1991/2000

População residente de 60 anos ou mais de idade, Grandes Regiões População por sexo e Unidades da residente Total Grupos de idade (%) Federação total 60 a 65 a 70 a 75 ou Absoluto Relativo 64 69 74 mais Brasil – 1991 146.825.475 10.722.705 7,3 2,5 1,9 1,3 1,6 Brasil – 2000 169.799.170 14.536.029 8,6 2,7 2,1 1,6 2,1

Fontes: IBGE Censo demográfico 1991 e 2000

Tabela 05 – População residente, total e de 60 anos ou mais de idade, por grupos de idade, do sexo masculino, segundo as Grandes Regiões e Unidades da Federação – 1991/2000

População residente de 60 anos ou mais de idade, por sexo Grandes Regiões e Unidades da Grupos de idade (%) Homem Federação 60 a 64 65 a 69 70 a 74 75 ou mais Brasil – 1991 4 931 425 1 715 601 1 308 343 872 424 1 035 057 Brasil – 2000 6 533 784 2 153 209 1 639 325 1 229 329 1 511 921

Fontes: IBGE Censo demográfico 1991 e 2000

Tabela 06 – População residente, total e de 60 anos ou mais de idade, por grupos de idade, do sexo feminino, segundo as Grandes Regiões e Unidades da Federação – 1991/2000

População residente de 60 anos ou mais de idade, por sexo Grandes Regiões Grupos de idade (%) e Unidades da Mulher Federação 60 a 64 65 a 69 70 a 74 75 ou mais

Brasil – 1991 5 791 280 1 921 257 1 467 717 1 017 494 1 384 812 Brasil – 2000 8 002 245 2 447 720 1 941 781 1 512 973 2 099 771

Fontes: IBGE Censo demográfico 1991 e 2000

Constata-se que o ritmo do crescimento da população idosa é mais acelerado que de outras faixas etárias. Este crescimento relativamente mais elevado da população idosa é resultado de suas mais altas taxas de crescimento, em face da alta fecundidade prevalecente no passado

122 Paulo Dias Nogueira: O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para...

9paulo.indd 122 25/11/2010 12:06:08 comparativamente à atual e à redução da mortalidade (CAMARANO, 2006, p. 88). Verifica-se que a população mais idosa, ou seja, as pessoas com idade acima de 80 anos é a que tem apresentado a maior taxa de cresci- mento. Isso aponta para a heterogeneidade do grupo idoso, encontrando- se pessoas com diferença de idade que chegam a três décadas. Com a finalidade de atualizar alguns dados do último censo demo- gráfico efetuado no ano de 2000, estabeleceu-se uma tabela baseada na Contagem Populacional realizada em 2007 (Tabela 09). Por meio dela é possível verificar um crescimento estimado de 14.188.121 pessoas nes- tes sete anos. Proporcionalmente, o grupo de idosos também cresceu, porém, não se tem números precisos. O que se pode afirmar é que pelas projeções, os números de idosos continuarão a crescer nas próximas décadas.

Tabela 09 – População residente, por situação do domicílio e sexo, segundo as Grandes Regiões e as Unidades da Federação – Brasil – Grandes Regiões – comparativo 2001 com 2007 Censo 2001 Contagem da População 2007

Total Total Total Homens Mulheres Homens Mulheres Estimado recenseado

Brasil 169 799 170 83 576 015 86 223 155 183 987 291 108 765 413

Norte 12 900 704 6 533 555 6 367 149 14 623 316 12 259 438

Rondônia 1.379.787 708.140 671.647 1 453 756 1 453 756 733 811 709 923

Acre 557.526 280.983 276.543 655 385 655 385 329 001 323 752

Amazonas 2.812.557 1.414.367 1.398.190 3 221 939 3 221 939 1 592 067 1 565 850

Roraima 324.397 166.037 158.360 395 725 395 725 195 275 189 046

Pará 6.192.307 3.132.768 3.059.539 7 065 573 4 701 695 2 405 662 2 241 306

Amapá 477.032 239.453 237.579 587 311 587 311 292 024 290 337

Tocantins (2) 1.157.098 591.807 565.291 1 243 627 1 243 627 626 434 602 339

Nordeste 47 741 711 23 413 914 24 327 797 51 534 406 40 060 034

Maranhão 5.651.475 2.812.681 2.838.794 6 118 995 6 118 995 3 021 226 3 052 375

Piauí 2.843.278 1.398.290 1.444.988 3 032 421 3 032 421 1 481 576 1 529 053

Ceará 7.430.661 3.628.474 3.802.187 8 185 286 4 820 630 2 398 046 2 404 540 Rio Grande do 2.776.782 1.359.953 1.416.829 3 013 740 3 013 740 1 457 143 1 517 826 Norte Paraíba 3.443.825 1.671.978 1.771.847 3 641 395 3 641 395 1 754 525 1 855 119

Pernambuco 7.918.344 3.826.657 4.091.687 8 485 386 5 030 277 2 452 542 2 546 413

Alagoas (2) 2.822.621 1.378.942 1.443.679 3 037 103 3 037 103 1 472 429 1 545 366

Sergipe 1.784.475 874.906 909.569 1 939 426 1 939 426 936 306 981 208

Bahia (2) 13.070.250 6.462.033 6.608.217 14 080 654 9 426 047 4 708 275 4 671 364

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9paulo.indd 123 25/11/2010 11:50:37 Sudeste 72 412 411 35 426 091 36 986 320 77 873 120 31 077 361

Minas Gerais 17.891.494 8.851.587 9.039.907 19 273 506 12 597 121 6 265 664 6 269 402

Espírito Santo 3.097.232 1.534.806 1.562.426 3 351 669 1 702 365 847 307 840 237

Rio de Janeiro 14.391.282 6.900.335 7.490.947 15 420 375 3 302 474 1 610 466 1 666 529

São Paulo (2) 37.032.403 18.139.363 18.893.040 39 827 570 13 475 401 6 681 557 6 693 364

Sul 25 107 616 12 401 450 12 706 166 26 733 595 16 842 791

Paraná (2) 9.563.458 4.737.420 4.826.038 10 284 503 6 262 285 3 107 256 3 122 367 Santa Ca- 5.356.360 2.669.311 2.687.049 5 866 252 4 307 161 2 142 129 2 143 822 tarina Rio Grande 10.187.798 4.994.719 5.193.079 10 582 840 6 273 345 3 095 615 3 150 909 do Sul

Centro-Oeste 11 636 728 5 801 005 5 835 723 13 222 854 8 525 413 Mato Grosso 2.078.001 1.040.024 1.037.977 2 265 274 2 265 274 1 122 705 1 129 179 do Sul Mato Grosso 2.504.353 1.287.187 1.217.166 2 854 642 2 854 642 1 452 153 1 377 327

Goiás 5.003.228 2.492.438 2.510.790 5 647 035 3 405 497 1 702 655 1 667 722 Distrito Fede- 2.051.146 981.356 1.069.790 2 455 903 ral (3)

Fontes: IBGE Censo demográfico 2001 e Contagem Populacional 2007

Verifica-se, portanto, pelos dados estatísticos que o crescimento acelerado da população idosa é um fenômeno já presente e que tende a aumentar. Este fenômeno tem trazido novos desafios para a sociedade como um todo e em particular para a missão da igreja.

2. O envelhecimento populacional na agenda das políticas públicas

Ainda que de forma muito limitada a sociedade tem respondido aos desafios provenientes deste fenômeno por meio de Políticas Públicas. Tanto a Organização das Nações Unidas (ONU), quanto países de todo mundo colocaram na pauta de suas Agendas das Políticas Públicas o tema do envelhecimento populacional.

A agenda internacional Em 1982 aconteceu na cidade de Viena a 1ª Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, promovida pela ONU. Ela foi considerada o marco inicial na discussão de políticas voltadas para a população idosa. O Plano por ela adotado estruturou-se da seguinte forma: “... 66 reco- mendações para os estados membros referentes a sete áreas: saúde e nutrição, proteção ao consumidor idoso, moradia e meio ambiente, família, bem-estar social, previdência social, trabalho e educação” (CAMARANO; PASINATO, 2004, p. 255).

124 Paulo Dias Nogueira: O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para...

9paulo.indd 124 25/11/2010 11:50:38 Em 2002 na cidade de Madri ocorreu a 2ª Assembleia com o mesmo tema. Porém, durante os vinte anos que se passaram entre a primeira e a segunda Assembleia houve mudanças profundas nos planos econômico, social e político dos países. Na década de 1990, o tema do envelheci- mento populacional entrou de forma mais efetiva na agenda das políticas sociais dos países em desenvolvimento. Em sua Assembleia Geral de 1991 a ONU adotou 18 princípios em favor da população idosa. Esta mesma Assembleia, em 1992, aprovou a Proclamação sobre o Envelhecimento, estabelecendo o ano de 1999 como o Ano Internacional dos Idosos, sob o slogan: uma sociedade para todas as idades. No ano de 2007, em Brasília, aconteceu o “Fórum Regional das Insti- tuições da sociedade Civil sobre o Envelhecimento da América Latina e no Caribe”, promovido pela SEDH, MRE e CEPAL, onde foi produzido o docu- mento “Declaração de Brasília”. [seria interessante a descrição das siglas]

A agenda nacional O Brasil foi um dos pioneiros, na América Latina, a incorporar o tema envelhecimento na agenda das políticas públicas. Já em 1888, sob o Decreto Lei no[seria nº?] 9912-A, foi regulamentado o direito a aposenta- doria aos funcionários dos correios que tivessem 30 anos de trabalho ou mais que sessenta de idade. No decorrer do século 20 surgiram outras iniciativas estatais de políticas previdenciárias. No Brasil durante a década de 1970 a questão do envelhecimento foi reconhecida como uma questão pública e considerada uma preocupação social. Surge então em 1974 o Programa de Assistência ao Idoso (PAI); em 1976 o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) realizou encontros regionais e nacional com o objetivo de entender o fenômeno do envelhecimento, propondo a superação do assistencialismo na busca de uma política de assistência e promoção social; em 1977 o MPAS define a Política para a Terceira Idade: diretrizes básicas. Estes avanços não garantiram uma política ampla de atendimento ao idoso (CAMARANO; PASINATO, 2004, p. 264). Na década de 1980, o movimento de redemocratização do Brasil favoreceu a inclusão do tema envelhecimento na agenda política do país. O grande marco foi a “Constituição de 1988”, que inseriu em seu texto alguns direitos específicos da pessoa idosa. Art 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, de- fendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhe o direito à vida. Parágrafo 1º Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. Parágrafo 2º Aos maiores de sessenta

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9paulo.indd 125 25/11/2010 11:50:38 e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos (CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1988). Em 1989 a Associação Nacional de Geriatria (ANG) realizou um Seminário Nacional intitulado: “O idoso na sociedade atual”. Como fruto das discussões, este Seminário elaborou o documento “Recomendações: Políticas Sociais para a Terceira Idade nos anos 90”, que serviu como diretriz para diálogo com vários segmentos políticos, civis e religiosos da sociedade brasileira (RODRIGUES, 2001, p. 149-158). Em 1993 é assegurado aos idosos que não tivessem condições mí- nimas de prover sua subsistência, um benefício mensal de um salário mí- nimo através da Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS (LEI 8742). Em 1994 o Congresso Nacional promulgou o Decreto-Lei Nº 8.842, sobre a “Política Nacional do Idoso”, mas regulamentada somente em 1996, através do Decreto-Lei nº 1948. A Política Nacional do Idoso propõe proteção social e inclusão social. Com a finalidade de ampliar os direitos dos idosos e implementar a Política Nacional do Idoso, surgiu o Estatuto do Idoso, aprovado em 1º de outubro de 2003, sobre o nº de Lei 10.741 e vigorado a partir de 1º de Janeiro de 2004. Segundo o Relatório Nacional sobre o Envelhecimento da Popula- ção Brasileira (2002) as mudanças ocorridas devido ao envelhecimento populacional têm representado um fator de pressão importante para a inclusão do tema na agenda de prioridades do governo. A longevidade, ainda que seja uma conquista social, tem trazido mudanças na demanda por políticas públicas, colocando desafios não só para o estado, mas também para a sociedade e a família.

3. O envelhecimento populacional brasileiro – desafios para a socie- dade e para a igreja

A igreja como parte da sociedade é desafiada a refletir sobre este tema. Faz-se necessário, portanto, que se coloque na pauta de discussões da igreja, um estudo mais aprofundado do fenômeno do envelhecimento populacional e seus desafios para a Pastoral. Segundo os dados apresentados, a tendência para o futuro é se tenha uma população cada vez mais idosa. Diante disso, é importante perguntar se a igreja tem se preparado para realizar seu trabalho missionário, bem como suas ações pastorais, levando este fato em consideração. Num mundo marcado pela filosofia neoliberal, onde as pessoas são valorizadas por aquilo que produzem ou consomem, a população idosa encontra-se excluída. Beauvoir (2003) afirma: “No mundo capitalista os privilegiados decidem o destino das massas. A economia baseia-se no lucro, é praticamente a ele que está subordinada toda a civilização. O

126 Paulo Dias Nogueira: O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para...

9paulo.indd 126 25/11/2010 11:50:38 material humano só desperta interesse na medida em que pode ser pro- dutivo. E em seguida, é rejeitado”. Seguindo a mesma linha de raciocínio Sung afirma:

Em termos de antropologia, o neoliberalismo radicaliza a noção de Homem Econômico que está na base das teorias econômicas neoclássicas. O ser humano é reduzido a um indivíduo que age a partir do cálculo racional de seus interesses econômicos pessoais, cálculo da relação entre custo benefí- cio. O mercado o vê somente como produtor de bens econômicos, investidor e consumidor de mercadorias. Para o mercado neoliberal, portanto, não importa se o indivíduo é velho ou não, homem ou mulher; o que realmente conta é a sua capacidade econômica e, em particular, a de consumo (Sung, 2005, p. 98-99).

Corre-se o risco da reprodução desta mesma mentalidade (neolibe- ral) no ambiente da igreja. Preocupa-se muito com ações missionárias e pastorais junto a crianças (pois elas são o futuro, já presente), aos jovens (pois, são dinâmicos e movimentam a comunidade de fé) e aos adultos (responsáveis em grande parte pelo sustento financeiro da comunidade), porém, pouco se fala ou se faz para a população idosa. Algumas comu- nidades de fé com posturas alternativas chegam mesmo a afirmar que não há espaço para idosos em suas programações.

Conclusão

Ao encerrar este texto, peço licença para uma palavra mais coloquial. Diante dos dados apresentados sobre o fenômeno do envelhecimento po- pulacional, não podemos nos furtar como igreja de nossa responsabilidade missionária e pastoral junto aos idosos. Para responder às perguntas o que fazer e como fazer, precisamos dedicar tempo e energia em reflexão.

Referências

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128 Paulo Dias Nogueira: O fenômeno do envelhecimento populacional como desafio para...

9paulo.indd 128 25/11/2010 11:50:38 Artigos

10hugo.indd 129 25/11/2010 11:51:03 Entre salmos e parábolas: leitura bíblica a partir da análise teológico- literária

Between Psalms and parables: Bible reading and literal-theological analises Entre Salmos y parábolas: lectura bíblica a partir del análisis literario-teológico

Hugo Fonseca

Resumo Esse artigo reflete acerca da análise teológico-literária dos textos bíblicos. Para isso, lança mão da contribuição de críticos literários e teólogos cujas pesqui- sas se debruçam sobre a Bíblia hebraica e as Bíblias cristãs. Tais textos são considerados herança literária fundamental à compreensão da vida humana em nosso tempo. Além disso, carregam orientações à vida religiosa (de judeus e cristãos), as quais, por sua vez, expressam-se em diversas formas literárias. Como experimentação teológico-literária, o desenvolvimento deste artigo culmina com a observação da poesia nos textos bíblicos e da ambiguidade fontal dessa poesia, concluindo com uma leitura do texto de Jó. Palavras-chave: Bíblia hebraica; Bíblia cristã; hermenêutica teológico-literária; poesia; Jó.

Abstract This article discusses the theological and literary analysis of biblical texts. To do so, it uses the contributions of literary critics and theologians who- se researches have focused on the Hebrew Bible and the Christian Bibles. Such texts are considered an essential literal heritage to understand hu- man life in our time. In addition, they represent guidance for religious life (Jewish and Christian), which, in turn, is expressed in various literary for- ms. As a theological and literary experimentation, the development of this article ends with the observation of poetry in the biblical texts and poetry of this wellspring of ambiguity, concluding with a reading of the text of Job Keywords: Hebrew Bible; the Christian Bible; theological hermeneutics and literary; poetry; Job.

Resumen En este artículo se reflexiona acerca del análisis teológico y literario de los textos bíblicos. Para ello, utiliza las aportaciones de los críticos literarios y los teólogos cuyas investigaciones se han centrado en la Biblia hebrea y Biblias cristianas. Tales textos son considerados patrimonio literario esencial para comprender la vida humana en nuestro tiempo. Además, el transportan directrices para la vida religiosa (de judíos y cristianos), las cuales, a su vez, se expresan en diversas formas literarias. Como experimentación teológica y literaria, el desarrollo de este artículo termina con la observación de la poesía en los textos bíblicos y la poesía de esta fuente de ambigüedad, para concluir con una lectura del texto de Job. Palabras clave: Biblia hebrea; Biblia cristiana; hermenéutica teológica y literaria; poesía; Job.

Hugo Fonseca: Entre salmos e parábolas

10hugo.indd 130 25/11/2010 11:51:03 1. A(s) Bíblia(s): literariamente inescapáveis

A humanidade depõe sempre sua alma numa bíblia comum (MICHELET, 2002, p. 9).

A obra de Michelet provoca-nos, ainda hoje, não somente pela escrita em tom poético-narrativo e pelo conteúdo histórico primoroso de suas análises, mas especialmente, porque o escritor se preocupara, no século 19, com as riquezas literárias dos principais testamentos de fé dos povos indiano, persa, grego e egípcio. Tais riquezas por ele são analisadas a partir das produções textuais de caráter mitológico que tais culturas nos transmitiram. Os destaques sobre o caráter polifônico de tais textos e sobre a presença histórica deles em nosso cotidiano reverberavam niti- damente no tempo do historiador francês, o qual nos ensina que:

Essa história não se pode já isolar e escrever à parte. Nós sabemos inteira- mente das classificações. O fio geral da vida que seguimos é tecido e vinte fios reunidos, que só se separam arrancando-os. Ao fio religioso misturam- se continuamente os do amor, da família, do direito, da arte e da indústria (MICHELET, 2002, p. 11).

O entretecimento dos fios culturais que performam a vida humana em nossos tempos, cerca de cento e quarenta anos distantes de Miche- let, ainda permanecem imiscuídos. Diante dessa assertiva e tendo em vista um esforço intelectual interdisciplinar – que nos ocupa em todos os passos deste artigo – nos aproximamos da Bíblia, tanto da Bíblia hebraica quanto da cristã, como a obra de arte literária inescapável da vida no lado ocidental do mundo. Mesmo reconhecendo, como ressalta Michelet, que “ela tem um ar dogmático”, aqueles que refletem teologi- camente e literariamente estão diante de um monumento precioso, no qual por tanto tempo o ser humano procurou orientações a sua vida religiosa e, de igual modo, para a edificação de seu viver sobre a Terra (MICHELET, 2002, p. 13). Para exercitarmos nossa reflexão acerca do impacto que os distintos textos bíblicos exercem sobre as pessoas, pensemos agora em um/a leitor/a crente (seja qual for o conteúdo específico/confessional de seu crer) diante das Escrituras. Ao se defrontar e ser confrontado pela Bíblia hebraica ou pela Bíblia cristã, esse/a leitor/a crente pode descobrir pa- lavras exortativas, edificantes e consoladoras para sua vida. O/a leitor/a (crente) de tais textos costuma se aproximar dos mesmos com ouvidos desejosos de escutar palavras divinas para sua vida terrena. A Bíblia é, na perspectiva desse/a leitor/a, a retórica de Deus acomodada à inteligência

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10hugo.indd 131 25/11/2010 11:51:03 humana1 (FRYE, 2004, p. 55). Deste modo, a aproximação a esses tex- tos se dá em viés restritamente teológico, ou seja, a leitura pressupõe a sacralidade inconteste do texto, seu caráter destinadamente revelatório e seu eminente poder mágico vivencial (BLOOM, 2006, p. 13). Esse/a mesmo/a leitor/a, quando se encontra com outros textos, observa a riqueza sapiencial e existencial que os/as autores/as deixaram registradas. No entanto, nosso/a leitor/a não considera esses outros textos literários com teor exortativo, edificante e consolador como as palavras lidas – ora em casa, ora na comunidade de fé ou no mundo virtual – nos salmos ou nos evangelhos. A atitude de tal leitor/a nos interroga sobre a maneira como religiosos e estudiosos da Bíblia hebraica e da Bíblia cristã têm analisado e interpretado tais fontes. Basicamente, a questão é: que tipo de literatura são a Bíblia hebraica e a Bíblia cristã? Ou ainda: o que o Tanach2 e os Testamentos cristãos têm de (ou com a) literatura? Por fim: quais as diferenças literárias entre tais textos e a grande literatura ocidental desde Homero? A preocupação com tais questões e suas possíveis respostas está presente em diferentes obras dedicadas aos estudos literários do Tanach e dos Testamentos cristãos. A abordagem desses estudos se inclina sobre o valor literário universal que os citados textos religiosos têm em si e que expressam pela influência implícita e/ou explícita na grande literatura oci- dental. Para ressaltar o valor que esses textos apresentam, Miles (1997, p. 15 e 16) afirma que:

A religião – a religião ocidental em particular – pode ser considerada como uma obra literária mais bem-sucedida do que qualquer autor ousaria sonhar. [...] A Bíblia vem sendo lida em voz alta, toda semana, há mais de dois mil anos, para platéias que a recebem com total seriedade, procurando conscientemente assimilar ao máximo a sua influência.

1 Vale ressaltar que a Bíblia sobre a qual o crítico canadense, Northrop Frye se debruça à análise é a versão inglesa autorizada, publicada em 1611, sob a ordem do rei James. Foi ele que, em 1604, mandou iniciar o processo de revisão da Bíblia, levado a cabo por 54 eruditos nomeados pelo próprio rei James. Tal versão bíblica afamou-se pelo esforço em trazer ao inglês o impacto do hebraico. A título de comparação, pode-se afirmar que esse processo de revisão e seu desdobramento final foi tão intenso quanto a publicação da Bíblia de Lutero em terras germânicas, na data de 1534. 2 O termo acrônimo, derivado das letras “t”, “n” e “k”, significa: Torah (Ensinamento), Neb’im (Profetas) e Ketubim (Escritos). Tanach, portanto, é o nome dado ao conjunto de textos sagrados canônicos do judaísmo, também conhecido como Bíblia hebraica, cuja editoração fez-se diversa das Bíblias cristãs (nas versões de Jerônimo, Rei James ou Martinho Lutero) no que se refere disposição dos textos. Ver: Miles (1997, p. 27-32), Alter (1997, p. 24) e ABADIA (2000, p. 49).

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10hugo.indd 132 25/11/2010 11:51:03 A leitura da Bíblia não se restringe, por assim dizer, ao público religio- so de confissão judaica ou cristã. “A Bíblia fornece instrumentos e bases para muitas criações literárias” (MAGALHÃES, 2000, p. 101), a ponto de participar do cotidiano humano, a medida das intermináveis leituras de- bruçadas sobre esse conjunto de livros3. A imaginação ficcional – peculiar da grande literatura, mas também parte do dia a dia de tantos leitores – foi um instrumento precioso para a formulação dos textos bíblicos, es- pecialmente quando tais textos refletem o sentido esquivo da realidade humana à luz radicalmente nova da revelação monoteísta. Fazendo isso, os autores da Bíblia hebraica e da Bíblia cristã legaram à nossa tradição cultural uma fonte inesgotável (ALTER, 2007, p. 261-262). A menção aos salmos e parábolas, presente no título, quer reforçar a presença literária dos textos bíblicos – com sua riqueza simbólica, metáfo- ras vivas e diversidade religiosa – entre leitores de todas as orientações, desde os teólogos profissionais até os analfabetos. A esses últimos as Escrituras podem ser narradas por meio de CDs ou DVDs. No próximo passo, atentaremos para algumas análises referenciais sobre hermenêutica bíblica que partem do universo literário, sem desconsiderar o conteúdo religioso das Bíblias.

2. O Tanach e os Testamentos cristãos: análise dos traços literários dos textos bíblicos sob o crivo da aproximação entre teologia e literatura

... a Bíblia é o livro por excelência da civilização ocidental, como nenhum outro conseguiu se tornar, mesmo levando em conta a criatividade e a vastidão literária dos países ocidentais (MAGALHÃES, 2000, p. 97).

O que se pretende destacar nessa seção do texto é o interesse da crítica literária sobre os textos bíblicos e as diversas leituras e análises que tal interesse delineia. Talvez surjam aqui, tendo em vista a proposta dessa reflexão, as questões: por que investigar as razões pelas quais um filão específico do saber – a crítica literária – dedica empenho analítico, aplicação metodológica e sugestões hermenêuticas sobre a Bíblia? Qual relevância essa investigação apresenta à interface teologia e literatura? O que aquele/a leitor/a crente pode apreender com um tipo de leitura bíblica de caráter interdisciplinar? De modo geral, pode-se dizer que as principais teses a respeito do diá- logo entre os saberes citados anteriormente, no que tange aos estudos que têm o Tanach e os Testamentos cristãos como foco central, ensinam que:

3 Lembro aqui do significado grego da palavra Bíblia (τα βιβλια, “os livros”), o qual designa mais uma classificação vaga do que um título. Id. Altere r Kermode (1997, p. 24) e Freye (2004, p. 11).

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10hugo.indd 133 25/11/2010 11:51:03 a) “A Bíblia é interpretada como obra literária, o que implica em lê-la a partir das teorias literárias apropriadas, levando em conta tramas, personagens, estética, densidade narrativa, etc. Obviamente esta abordagem ou se distan- cia de pressupostos teológicos confessionais, cuja característica central é o uso do texto bíblico para a confirmação de determinadas crenças da religião, ou dialoga com a tradição teológica enquanto tradição hermenêutica; b) A Bíblia é lida em sua pluralidade de narrativas, mas a partir de certa conti- nuidade que existe nas biografias de suas personagens, algo fundamental no processo de criação artístico da Literatura; c) A Bíblia é considerada obra basilar da literatura ocidental, emprestando-lhe temas, técnicas, personagens fortes e tramas sucintas”4 (MAGALHÃES, 2008, p. 14). Esses paradigmas têm em vista a abordagem literária do Tanach e dos Testamentos cristãos, embora possamos suspeitar que se apliquem às religiões que têm nas narrativas textuais de fé pilares de constituição e práxis. Robert Alter afirma que uma aproximação e exame cuidadosos do teor literário de um texto bíblico ajudam a focalizar de modo mais nuançado até mesmo o caráter religioso da Bíblia (ALTER, 2007, p. 28 e 278). No entanto, não se deve entender esse caráter religioso de modo institucionalizado, ou ainda, confessional. Antes sim, Alter ressalta que: “O que precisamos compreender melhor é que a visão religiosa da Bíblia adquire profundidade e sutileza justamente por ser apresentada mediante os mais sofisticados recursos da prosa de ficção” (ALTER, 2007, p. 42). É dessa compreensão que Alter deflagra criticamente sua discor- dância a respeito de cursos universitários e textos acadêmicos que propõem a noção de “Bíblia como literatura“. Sua crítica a esse tipo de título informativo se baseia numa observação simples, embora pertinaz, que nos convoca a lembrar de algum curso, obra da crítica literária ou ensaio acadêmico que apresente a noção de, por exemplo: “Odisseia como literatura” ou ainda “Crime e castigo como literatura” ou ainda, “O que há literatura em Grande sertão: Veredas?”. O pressuposto para considerar o estudo literário do Tanach e dos Testamentos cristãos como disciplina específica e como textos diferentes das demais obras literárias mundiais traz em seu bojo a compreensão, ou melhor, a discriminação que tais textos são de natureza outra que não literária, o que para interface teologia e literatura é retrógrado (ALTER, 2007, p. 38)5. Magalhães (2008, p. 16) ainda observa que:

4 Foi Magalhães que pontuou tais teses, a partir da contribuição teórica de pesquisado- res como Hans-Peter Schmidt, Jan Assmann, Harold Bloom, Jack Miles, Robert Alter e Northrop Frye. 5 Para ilustrar esse tipo de leitura discriminatória, ou ainda, nas palavras de Alter, frouxa e condescendente do Tanach e dos Testamentos cristãos ver: Netzer (1976, p. 65-72) e Magalhães (2000, p. 95-106).

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10hugo.indd 134 25/11/2010 11:51:03 ... a Bíblia foi vista, por alguns, como livro da instituição religiosa e não como livro da cultura e de processos civilizatórios complexos. Nesta pré- compreensão teológica ou confessional dos textos, como se ali fosse seu único reduto hermenêutico permitido, encontramos um dos principais fatores que obstaculizam o grande trabalho de crítica e teoria literária sobre o papel da Bíblia no desenvolvimento da literatura ocidental. Esta dificuldade existe de ambos os lados, seja pelos que se consideram guardiães da Bíblia como livro sagrado e inspirado, seja pelos que se consideram defensores de uma crítica literária que não reconhece o tema da religião como constitutivo e estruturante de parte da literatura ocidental.

Destarte, a dificuldade causada por tais relações com as Bíblias (hebraica e cristãs) não reside nas correspondências intertextuais delas consigo mesmas e com a literatura ocidental. Antes sim, revela-se como problema gerado pelo domínio ideológico, o qual se dá por hermenêuticas teológicas restritivas (avessas à arte) e teorias crítico-literárias de incli- nação positivista (avessas à religião). Ambos os caminhos interpretativos carecem de escuta diante dos textos do Tanach e dos Testamentos cris- tãos. Sendo assim, reconhecemos que o Tanach e os Testamentos cristãos estão por demais imbricados nos interstícios da cultura literária ocidental e “enraizados em todos os recursos da linguagem para que lhe seja ade- quada quaisquer abordagens simplistas” (FRYE, 2004, p. 55-56).

3. Novos intérpretes? Aa palavra da crítica literária e sua relevância à análise dos textos bíblicos

O tipo de abordagem, realizada por críticos literários sabedores e sensíveis à influência inescapável dos textos bíblicos para a cultura ocidental, pode ser relativizado, tendo em vista que a difusão do Tanach e dos Testamentos cristãos não está atrelada e nem é dependente da análise acadêmica. Nenhum crítico é inquestionavelmente confiável e nem detentor de conhecimento intransferível, no que tange o alcance e vera- cidade de suas interpretações. Não obstante, são os mais competentes e profundos ao indicar como analisar a linguagem da literatura e suas formas expressivas. Especialmente no caso do estudo interpretativo dos textos bíblicos, a palavra da crítica pode tornar-se orientadora, uma vez: “... que muito tempo decorreu desde que essa linguagem literária especí- fica (a dos textos bíblicos) era um vernáculo vivo e porque muitos outros tipos de discurso foram superpostos a ela pelas tradições subseqüentes de interpretação (ALTER; KERMODE, 1997, p. 16).6

6 O que está entre parênteses é grifo nosso.

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10hugo.indd 135 25/11/2010 11:51:03 O interesse pela investigação dos textos bíblicos manifesta-se, desde a década de 1970, num número cada vez maior de publicações e reuniões de estudos interdisciplinares. Em tais círculos, observa-se não somente a condição literária da Bíblia, mas também se reconhece que tal status não está à mercê do critério da comunidade crítica e nem da sociedade do momento7 (NETZER, 1976, p. 65-66; ABADIA, 2000, p. 19). O Tanach e os Testamentos cristãos, independentemente se a leitura destes é realizada em uma sinagoga ou em catedrais, proporcionaram ao universo das letras humanas um estilo peculiar, despido de ornamentos, dramático, focalizado na ação e no conflito (FRYE, 2004, p. 273).8 Em outras palavras, as de Frye, “nenhum outro livro poder ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária” (FRYE, 2004, p. 14). Esse estilo/característica constitui-se razão sine qua non do interesse redi- vivo de escritores seculares pelos textos bíblicos. Esses escritores, grosso modo, reconhecem que o distanciamento de tais textos, especialmente no período histórico denominado Iluminismo (ALTER, 2007, p. 28-35; ALTER; KERMODE, 1997, p. 11-12; MAGALHÃES, 2000, p. 23-27), “empobreceu a Literatura secular”.9 Sobre a reação interdisciplinar ao empobrecimento mencionado, Alter e Kermode (1997, p. 13) destacam que:

A união da crítica religiosa e secular ensinou aos praticantes da primeira que seus estudos podem ser bastante incrementados pela atenção aos métodos seculares; os da última foram beneficiados pela descoberta de que a Bíblia [...] é simplesmente de tal qualidade que negligenciá-la lhes acarretou imenso custo.

O mútuo reconhecimento da riqueza religiosa e literária do Tanach e dos Testamentos cristãos por parte de teólogos, cientistas da religião, críticos literários e escritores (poetas, romancistas e outros artistas das letras) nos conduz a tomar consciência da potência simbólico-metafórica – fundamental a todo processo literário que se estende do autor, perpas- sando o trabalho do crítico, e arrebatando o leitor – presente na poética e na narratividade dos “prototextos teológicos e de sua plurissignificação

7 O que, em certa medida, remete à conquista principal requerida por pensadores cristãos (denominados pré-reformadores ou reformadores) do século XV e XVI, especialmente no que tange à tradução da Bíblia para o idioma local e à liberdade de interpretação da mesma por diferentes comunidades cristãs (cf. LINDBERG, 2001, p. 50-52). 8 Citação retirada do pósfácio, ver: Aguiar (apud FRYE, 2004). 9 Com a obra de Alter (2007, p. 34) pode-se aprender que: “Uma razão óbvia para a ausência de interesse científico na análise literária da Bíblia reside no fato de que [...] a Bíblia foi considerada durante muitos séculos, por cristãos e judeus, como fonte primordial e única da verdade divina revelada”.

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10hugo.indd 136 25/11/2010 11:51:03 não cabível numa hermenêutica unívoca” (SILVA, 2005, p. 169). Essa tomada de consciência se constitui da percepção da diversidade dos textos bíblicos como convocação à tarefa interdisciplinar – a ser realizada pelos atores supracitados – e como sinal da relevância que esse encon- tro presta à interpretação da Bíblia hebraica e das Bíblias cristãs, o que amplia as possibilidades de compreensão da vida humana no ocidente sob diversos matizes.

4. Poesia e fé no jogo entre Javé e o Adversário: experimentação teológico-literária sobre a poesia nos textos bíblicos com vistas no livro de Jó

Na tentativa de exemplificar o processo analítico engendrado pelos críticos literários sobre a face dos textos bíblicos, destacar-se-á um aspec- to fundamental à pesquisa da interface, teologia e literatura. No intuito de aproximarmo-nos ainda mais adequadamente de tais textos, refletiremos a respeito de um gênero literário característico e perceptível ao longo dos escritos bíblicos, a saber, a poesia.

“Poesia e crença, da maneira como as entendo, são modos antitéticos de conhecimento, mas ambas partilham da peculiaridade de suceder entre a verdade e o sentido, ao mesmo tempo que se encontram de algum modo apartadas tanto da verdade quanto do sentido” (BLOOM, 1993, p. 25).

A frase de Bloom está situada na análise de poesia e crença na Bíblia hebraica, as quais são leitmotiv na obra Abaixo as verdades sagradas, especialmente no capítulo inaugural. Nesse início de leitura crítica, o escritor estadunidense anuncia que tanto a poesia quanto a crença guar- dam caráter ambíguo ao serem confrontadas com a verdade e ao serem inquiridas pelo sentido. Nem verdade e nem sentido são fins (telos) da poesia e da crença na Bíblia hebraica. Certamente, é mais adequado ob- servar a potência criativa e renovadora tanto em relação à verdade quanto ao sentido que ambas – poesia e crença – demonstram na tessitura do Tanach (BLOOM, 1993, p. 31-32 e 39).10 Nesse texto, ou melhor, nesse conjunto de textos, poesia e crença ora são expressões de um esforço do poeta para que a linguagem reflita e evoque melhor a realidade humana (ABADIA, 2000, p. 110), ora são as “candeias” do humano na travessia ininterrupta em direção ao mistério que o interpela. Em tal travessia tanto

10 Nessas páginas o crítico esforça-se em analisar o caráter de Javé consoante a suposta autora Javista. Sua busca, portanto, é pelo “Javé de J”. Esse personagem, grande pro- tagonista da Bíblia Hebraica, mostra-se ambíguo, traço pelo qual mantém seus leitores de ouvidos atentos, mentes ocupadas e corações esperançosos.

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10hugo.indd 137 25/11/2010 11:51:03 a poesia quanto a crença exercem estranheza sobre as personagens e, por conseguinte, sobre seus leitores. A produção dessa estranheza se dá porque não se pode interpretar e nem moldar poesia e crença nas formas da linguagem corrente e da razão empírica. Ao refletir sobre a Poesia, Fé e Teologia, Renard (1976, p. 17) curva- se diante da palavra poética escrevendo que: “... quando ela dá perpetu- amente à luz, em si mesma, uma infinidade de universos, cujos aspectos todos ela nos oferece a um só tempo como se possuísse a capacidade de gerar espaço sem fronteiras e um tempo sem cronologia.” Como pen- sar, senão reconhecendo e valorizando o traço ambíguo da poesia, num “espaço sem fronteiras” ou num “tempo sem cronologia”? Tendo em vista que o tema essencial de qualquer literatura é o hu- mano e os gêneros literários – em nosso caso a poesia na Bíblia hebraica – são a expressão criativa do humano produtor de literatura; é funda- mental aproximarmo-nos dos textos poéticos do Tanach sob a égide da ambiguidade, a fim de podermos interpretar melhor a crença que ali pulsa (ABADIA, 2000, p. 118). Trevisan, no capítulo de abertura de seu estudo estético intitulado A Sombra Luminosa (TREVISAN, 1994), propõe uma “Leitura poética do Evangelho” como primeira parte de toda sua reflexão sobre as possibilidades hermenêuticas da estética face à religião. O que se destaca já na primeira página da obra é a conditio sine qua non com a qual o autor lê e sugere a leitura dos evangelhos. Assim ele diz: “Qualquer leitura poética dos Evangelhos deve alicerçar-se no pressuposto de que, em determinado momento da História, um personagem, com características históricas e hiper-históricas, falou” (TREVISAN, 1994, p. 11). Ao se referir a Jesus como personagem de natureza ambígua (ima- nente e transcendente), Trevisan provoca o leitor quase deixando saltar da frase o verbo “falou”. O que traz uma noção de continuun (ALTER, 1997, p. 654), ou ainda, remete à ação de falar como elemento que nos identifica ou nos aproxima da vital ambiguidade daquele que é aqui (his- tórico) e lá (supra-histórico) à fé cristã, ou ainda, o Alfa e o Ômega. A liberdade para expressar tal condição só pode ser garantida por meio da linguagem poética, uma vez que “é a linguagem poética a única linguagem possível num contexto onde se deseja e se busca a liberdade humana” (TREVISAN, 1994, p. 13). Não convencido de que seus leitores percebam a importância da poesia – e seu traço ambíguo – para a reflexão interdisciplinar que pro- põe, Trevisan começa a segunda parte da sua obra buscando “Condições para uma poesia cristã” (TREVISAN, 1994, p. 65-73). Alguns parágrafos após um início preocupado em situar o debate sobre as demandas que um “poeta cristão” tem como desafios à sua criação artística e ratificar a presença de poesia, ou melhor, de uma “coleção de poemas” no Evangelho

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10hugo.indd 138 25/11/2010 11:51:03 (TREVISAN, 1994, p. 65-66)11; o escritor começa a nos guiar pela essência do cristianismo. Tal essência, diz ele, “consiste em seu caráter dialético”. No entanto, o caráter dialético, poucas linhas depois, se transmuta em outro estado de caráter. Ao se referir aos dogmas da Criação e da Re- denção – caríssimos às diferentes tradições cristãs – como caminhos da peregrinação do cristão no mundo histórico, Trevisan destaca que, como “ápice da criação, o homem participa desse estado e de sua ambigüidade fundamental” (TREVISAN, 1994, p. 67). Destarte, “o estado de ambigui- dade fundamental” está na origem e na culminação do humano. Desde o gesto primevo de Deus (criação) à encarnação do Logos (redenção), o autor matiza a ambiguidade como traço identitário da poesia para o intérprete cristão debruçado sobre os evangelhos. Cita-se:

... o cristão ressuscitará, será outra criatura, sem perder a concretude de sua realidade primeira. Seu corpo será corpo, embora imortalizado, por toda eter- nidade. [...] todo poeta cristão [...] por um lado, tende para o eterno, por outro, a dimensão histórica o assedia (TREVISAN, 1994, p. 68, grifo nosso).

Não se deve pensar que a influência poética sobre os evangelhos, a herança de versos e suas polifônicas imagens vieram de outro lugar, senão da antiga poesia hebraica (TREVISAN, 1994, p. 65).12 Na verdade, poder-se-ia agir de duas formas diante da reflexão sobre a poesia nos evangelhos realizada por Trevisan, a saber: a) elogiosamente, tendo em vista o esforço de buscar traços poéticos nos evangelhos e, posterior- mente, tentar elucidar as condições em que se opera uma “poesia cris- tã”; b) ironicamente, tendo em vista que a “poesia bíblica ocorre, quase exclusivamente, na Bíblia hebraica” (ALTER, 1997, p. 653). Mesmo sem decidir que atitude tomar, pode-se trazer à memória, com certa facilidade ao leitor iniciado em Teologia e Ciências da Religião, os textos do Ta- nach – Alter menciona os livros de Salmos; Cântico dos Cânticos; Jó e Provérbios – como aqueles onde se percebe mais claramente a poesia. Não obstante, o crítico inglês alerta-nos que foi somente no século 20 que os “especialistas começaram a perceber até que ponto as narrativas em prosa da Bíblia estão crivadas de breves inserções de versos” (ALTER, 1997, p. 654).

11 Trevisan (1994, p. 66) assevera essa ratificação, ao dizer que: “Parece, então pacífico que se reconheça Cristo como um poeta. [...] já que o Evangelho é uma coleção de poemas, se excetuarmos as narrações dos milagres e as discussões polêmicas de Jesus.” 12 Ainda nessa página, lê-se Trevisan citando C. H. Dodd : “Realmente, às vezes, tem-se a impressão de que o grego é apenas tênue disfarce da métrica regular da poesia he- braica e aramaica. Geralmente os ritmos são mais livres, mas ainda com uma harmonia marcante e um paralelismo de proposições. [...] Isso nunca pode ser esquecido, ao se tentar entender os ensinamentos de Jesus.” (DODD apud TREVISAN, 1994, p. 65).

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10hugo.indd 139 25/11/2010 11:51:03 Alter tem como pressuposto primeiro de seu empenho crítico que “o entendimento do sistema poético é sempre um requisito para se ler bem o poema” (ALTER, 1997, p. 654). Com isso, observa o paralelismo semântico como traço prevalecente do versículo bíblico, todavia o faz, alertando- nos que: “O maior obstáculo da abordagem da poesia bíblica tem sido a concepção errônea de que paralelismo implica sinonímia, ou seja, dizer o mesmo duas vezes com palavras diferentes” (ALTER, 1997, p. 658). Para evitar essa abordagem, o escritor apresenta quatro formas sintáticas de paralelismos, com suas respectivas funções, as quais ape- nas indicaremos a seguir, sem defini-las. São elas: a) Quiasma duplo: b) Elipse; c) Paralelismo Triádico; d) Paralelismo de acentos rítmicos (ALTER, 1997, p. 656 e 657). Essas formas, segundo Alter, revelam um padrão dominante na poesia hebraica, que é uma intensificação de ideias, imagens, ações e temas de um verso para o seguinte. Sendo assim, a técnica da repetição não deve ser encarada como “tagarelice duplicada”, antes sim essa técnica deflagra um movimento de intensificação dentro do verso hebraico (ALTER, 1997, p. 658-659). Para que esse movimento se desenrole, o poeta bíblico lança mão de um cabedal de imagens familiares de todas as áreas da sua expe- riência tanto da vida pastoril quanto da cultura urbana do Oriente Próximo (ALTER, 1997, p. 660). Tais imagens reforçam o traço predominante em todo o gênero da poesia bíblica, a saber, “um tipo de pressão semântica construído de linha a linha, verso a verso, em direção a um clímax ou a um clímax e uma reversão” (ALTER, 1997, p. 664).13 Finalmente, no intuito de ilustrar essa dinâmica na poesia hebraica, Alter destaca a poesia do livro de Jó. Esse personagem vive o jogo ver- bal de Javé e do Adversário. Jogo verbal expresso em forma de poesia presente e pulsante no diálogo entre as duas divindades. É pertinente observar que a saga de Jó chega até nós por meio de uma espécie de aposta/desafio em verso, que o Adversário lança a Javé, na “assembléia periódica da corte divina” (GREENBERG, 1997, p. 306-308). A moeda dessa aposta ou o alvo desse desafio é o “homem íntegro e reto que temia a Javé e se afastava do mal” (Jó 1.1). Surge da poesia em forma dialogal – entre o errante Adversário e o complacente Javé (que auto- riza, ou melhor, dá poderes ao Adversário para que o jogo comece, cf. Jó 1.10-12) – um personagem que se torna um instrumento forjado para fazer soar as profundezas máximas do sofrimento, a saber, o justo que sofre (ALTER, 1997, p. 665).

13 Ainda nessa página, lê-se: “Está claro por que esses poemas reverberam de modo tão forte nos momentos de crises, espirituais ou físicas, de tantos leitores, e eu sugeriria que a capacidade característica da poética bíblica, de avançar ao longo de planos ín- gremes de intensidades ascendentes, faz muito para ajudar os poetas compreenderem imaginativamente tanto a experiência de crise quanto a reversão dramática final.”

140 Hugo Fonseca: Entre salmos e parábolas

10hugo.indd 140 25/11/2010 11:51:03 A intensificação de verso a verso é um movimento que, nesse livro da Bíblia hebraica, ajuda o poeta a interpretar suas circunstâncias his- tóricas sem encerrá-las numa definição narrativa e imagética unívocas. Enquanto os “Amigos” refletem a situação de Jó de uma lógica de justiça distributiva – a qual define que Jó deve ser mau ou agir malevolamente para sofrer de tal modo –, Jó vive um mundo de “agonia sem esperança” (GREENBERG, 1997, p. 311), no qual o justo sofre por conta das apostas misteriosas da assembleia dos deuses. Para Jó a cada intensificação do jogo poético entre Javé e o Adver- sário se descobre mais da ambiguidade seu Defensor (go’el) e também Algoz, aquele que o “aterroriza e o confunde” (GREENBERG, 1997, p. 312 e 314). É essa condição sempre assombrosa tanto em força quanto em inventividade que imprimiu qualidade ímpar aos versos do livro de Jó. Esse t.exto é baluarte para o leitor interessado na beleza literária da Bíblia. Salta aos olhos a riqueza da linguagem que a poesia do Ta- nach carrega, graças à sua densidade. A poesia bíblica em Jó permite expressão imoderada e ambígua que, embora arrebatadora em impacto, desperta no leitor re-flexão em direção ao sublime (GREENBERG, 1997, p. 324-326) – o qual no livro de Jó transparece na imagem do Leviatã.14 Isso só se faz possível pela característica da linguagem poética hebraica, cuja virtude fundamental é ser a:

... única que pode ser a melhor aproximação verbal daquilo que é vivido inefavelmente pela fé. [...] A poesia apresenta-se, portanto, não só como sinal, mas como aquilo que faz sinal: convida a tomarmos consciência de que existe, sempre e em toda parte, algo mais do que imaginamos existir (RENARD, 1976, p. 26).

A busca pelo “algo a mais” é parte da criatividade imaginativa do texto de Jó. Algo a mais que uma justiça de referência distributiva (bom-bom e mau-mau), a qual não dá conta das contingências da vida. O paradoxo essencial da poesia encontrada em Jó nos diz, embora obliquamente, que nada é certo ou permanente no mundo, nada é real ou irreal. O segredo da sabedoria em Jó é uma espécie de distanciamento sem fuga (FRYE, 2004, p. 155).15 À medida que Jó encontra sabedoria suficiente para ouvir a resposta de Javé, a qual vem epifanicamente do meio do redemoinho/ tempestade, ele pode falar do que está além do conhecimento usual da linguagem: “Jó respondeu a Javé: [...] Falei de coisas que não entendia,

14 Alter interpreta o Leviatã como símbolo da Criação e do Animal, da Mitologia da Zoo- logia. Manifestação culminante do que é estranho e feroz, e do que é gesto da criação providencial (ALTER; KERMODE 1997, p. 665). 15 Nessa página, Frye analisa a característica ambígua da sabedoria no livro de Eclesiastes. Mais sobre o tema, em análise tipológica, é possível ver em: Id. Ibidem, p. 153-157.

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10hugo.indd 141 25/11/2010 11:51:03 de maravilhas que me ultrapassam” (Jó 42.1 e 3b). Maravilhado se faz poesia. Essa poesia que é capaz de ouvir e expressar versos do nebuloso/ tempestuoso cotidiano humano. Mesmo quando a linguagem que pulsa daí não saiba ao certo se o que fala é “pó e cinza”, poesia e crença, ou seja, coisas que nos ultrapassam e, possivelmente, “algo a mais do que imaginamos existir.”

Referências

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142 Hugo Fonseca: Entre salmos e parábolas

10hugo.indd 142 25/11/2010 11:51:04 Locke e Rawls: tolerância e razoabili- dade – formas de ordenamento para o fenômeno brasileiro religioso atual

Locke and Rawls: tolerance and reasonableness – planning for the forms of religious current Brazil- ian’s phenomenon

Locke e Rawls: tolerancia y razonabilidad – formas de ordenamiento para el fenómeno brasileño religioso actual

Elnora Gondim Osvaldino Marra Rodrigues

RESUMO O objetivo deste artigo é estabelecer algumas considerações sobre a noção de tolerância na concepção de Locke e a ideia de cooperação equitativa na teoria de Rawls mostrando como isso proporciona formas plausíveis para se obter uma possível coexistência pacífica em se tratando da diversidade religiosa brasileira. Palavras-chave: Igreja; diversidade; tolerância; Locke; Rawls.

ABSTRACT The aim of this paper is to raise some considerations about the notion of tole- rance in Locke’s conception and the idea of equal cooperation in Rawls’s theory by showing how it provides plausible ways to achieve a peaceful coexistence possible in the case of religious diversity in Brazil. Keywords: Church; diversity; tolerance; Locke; Rawls.

RESUMEN El objetivo de este artículo es el de establecer algunas consideraciones sobre la noción de tolerancia según la concepción de Locke y la idea de cooperación equitativa en la teoría de Rawls mostrando como eso proporciona formas plau- sibles para obtener una posible coexistencia pacífica dentro de la diversidad religiosa brasileña. Palabras clave: Iglesia, diversidad, tolerancia, Locke, Rawls.

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11elnora.indd 143 25/11/2010 11:51:27 Introdução

Sobremodo a partir dos anos 80 do século 20, acompanhamos um crescimento paulatino de novas manifestações carismáticas no cristianis- mo brasileiro, manifestações estas que as diferenciam substantivamente das religiões tradicionais, como a Igreja Católica Apostólica Romana, e as Igrejas oriundas da Reforma. Entre elas podem, posteriormente, existir conflitos doutrinários que, de uma forma direta, tenderiam a afetar a ordem cívica, caso muitas defendam princípios doutrinários exclusivistas. Nesse sentido, presumivelmente, suas posturas remeteriam a defesas apologé- ticas que beirariam ao desrespeito em relação a outras doutrinas, sejam elas cristãs ou não. Ricardo Mariano, especialista no assunto, apresenta alguns dados referentes ao crescimento de igrejas no Brasil: Conforme os Censos Demográficos do IBGE, os evangélicos perfa- ziam apenas 2,6% da população brasileira na década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e 15,4% em 2000, ano em que somava 26.184.941 de pessoas. O aumento de 6,4 pontos percentuais e a taxa de crescimento médio anual de 7,9% do conjunto dos evangélicos entre 1991 e 2000 (taxa superior às obtidas nas décadas anteriores) indicam que a expansão evangélica acelerou-se ainda mais no último decênio do século XX [...] Na América Latina, o termo evangélico abrange as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista, Batista, Adventista), as pentecostais (Congregação Cristã no Brasil, Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor, Casa da Bênção etc.) e as neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Inter- nacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra etc.) (MARIANO, 2004, p. 121-122). Tendo em vista esse pano de fundo da expansão de carismas cristãos diversos no cenário brasileiro atual, procuramos, a partir de duas tradi- ções filosóficas fundamentais no que tange à relação e ao convívio em sociedades pluralistas, refletir sobre o conceito de tolerância em Locke e a noção de cooperação equitativa em Rawls. O tema é relevante na medida em que o pluralismo religioso de cunho apologético pode desencadear sérios e graves problemas de intolerância entre membros de confissões diferentes, resultando em conflitos que podem afetar o convívio social. Portanto, elencamos três elementos chave que nortearam este artigo:

1. o crescimento do número de adeptos nas igrejas evangélicas; 2. a diversidade de igrejas como, por exemplo, as neopentecostais; 3. a constatação da grande pluralidade religiosa brasileira.

144 Elnora Gondim; Osvaldino Marra Rodrigues: Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade

11elnora.indd 144 25/11/2010 11:51:27 Nossa preocupação fulcral é chamar a atenção para a tolerância como forma de uma coexistência pacífica na diversidade. Para tanto, buscamos como referenciais teóricos a filosofia de John Locke1 e a John Rawls2. No entanto, poder-se-ia perguntar como e por que relacionar o fenômeno da expansão de igrejas na atual conjuntura brasileira com a teoria de Rawls, já que este, ao contrário de Locke, parece não dedicar um estudo sobre temas religiosos? A resposta pode ser relacionada ao fato de que a justiça como equidade, desde a década de 70 do século 20, reabilitou as temáticas sobre ética e política pautando-se num conceito básico, a cooperação equitativa, que envolve a ideia da racionalidade e a noção de razoabilidade. Estas, por sua vez, encontram-se diretamente relacionadas à tolerância e à cooperação (temas influenciados pela filosofia lockeana). Tendo em vista esse ponto específico, as noções rawlsianas podem ser direcionadas para o fenômeno religioso brasileiro atual, pois onde há concepções diversas de bem, podem existir tentativas de se sobrepor uma doutrina frente às outras, gerando situações conflituosas, senão violentas. Mediante essa pressuposição objetivamos antecipar soluções, pela ideia de cooperação equitativa, para resolver prováveis conflitos no Brasil entre doutrinas religiosas diferentes. Sob essa ótica, é conveniente ressaltar que a filosofia de Rawls, uti- lizando a concepção de cooperação equitativa, pode ser um instrumento eficaz para a convivência pacífica entre as diversas profissões de fé. No entanto, ressaltamos: embora inovando o contexto teórico pertinente às questões sobre ética e política, o conteúdo da justiça como equidade não foi um “ovo de Colombo” no cenário ético. É com relação a isso que a filosofia de Locke, por meio da concepção de tolerância, pode ser arrolada à justiça como equidade, ou seja, como elemento influenciador quanto à questão da junção da concepção de racionalidade com a de razoabilidade.

1 John Locke (1632-1704) filósofo inglês defensor do liberalismo foi, na esteira de Thom- mas Hobbes, um dos principais teóricos do contrato social, divergindo deste quanto ao pluralismo e defendendo a tolerância como um elemento chave numa sociedade plura- lista e multicultural. Para Locke, as religiões não têm o estatuto de religião estatal, mas configuram sociedades nas quais os cidadãos aderem livremente. 2 John Rawls (1921-2002) foi um filósofo norte-americano que reabilitou a teoria do con- trato social. Defensor do liberalismo político, sua teoria, na esteira da tradição kantiana, alavancou as discussões sobre os princípios de justiça. Para Rawls, há uma prioridade do justo em relação ao bem. Por conseguinte, sua teoria política é chamada de teoria formal da justiça. Suas obras principais: Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice, 1971), Liberalismo Político (Political Liberalism 1993), e O Direito dos Povos (The Law of Peoples 1999). O filósofo de Harvard, como é comumente chamado, é um defensor do pluralismo. Tal como Locke, Rawls não defende a hipótese de que a religião interfira na esfera pública da justiça.

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11elnora.indd 145 25/11/2010 11:51:28 1. Teoria de Locke

Aspectos gerais Antes de iniciarmos com a questão da tolerância, seria interessante comentarmos as bases na filosofia lockeana que fundam tal conceito. Para tanto, é conveniente ressaltar que a preocupação precípua na teoria lo- ckeana reside em conciliar o aspecto da igualdade com o da liberdade. No que concerne à igualdade, esta é estrutura para toda a ordem normativa e encontra-se estritamente vinculada com o tema da liberdade. A igualdade é, para Locke, tanto natural quanto social. Assim, a liberda- de natural é aquela em que o ser humano se encontra totalmente livre, submetido apenas às leis da natureza. Quanto à liberdade na sociedade, significa que os seres humanos estão sujeitos somente ao que foi esta- belecido por consentimento da comunidade. Em ambos os aspectos, a liberdade é irrenunciável. Por conseguinte, a liberdade natural não basta, dado que o ser humano nem sempre agem como seres racionais. O ser humano no estado de natureza é um juiz em causa própria e a decorrência disso é que eles começam a guerrear. Daí a necessidade de se instaurar o estado civil no intuito de conservar a vida e a propriedade que são, para Locke, direitos naturais fundamentais. Todavia, apesar da instauração da sociedade civil, os seres humanos os seres humanos não renunciam ao seu estado natural. O que ocorre é que no estado civil os seres humanos têm os seus direitos naturais garantidos. Nessa perspectiva, o Estado surge como uma finalidade fundamen- tal: o de conservar os direitos naturais dos indivíduos. A forma como isto ocorre é por meio de um consenso. Cumpre ressaltar que o poder estatal é limitado, pois não pode violar os direitos naturais. Em outras palavras, aos governantes é dado o poder dentro de limites estabelecidos pelo direito natural. Neste sentido, o direito de resistência emerge quando há tirania e abusos, pois quem realiza injustiça não é quem se rebela contra um opressor, mas quem oprime os seus governados. Por conseguinte, Locke, como um defensor dos direitos e da liberdade, afirma:

Nenhuma sociedade, por mais livre que seja, ou por mais superficial que possa ser o motivo de sua organização [...] pode subsistir e permanecer uni- da, e logo se dissolverá e se fragmentará, a menos que seja regulamentada por algumas leis e que todos os seus membros consintam em observar certa ordem [...] o direito de fazer suas leis pertence a toda a sociedade em si; ou, pelo menos (o que é a mesma coisa), àquelas a quem a sociedade em comum acordo consentiu em autorizar (LOCKE, 1994a, p. 156). .

Sob essa ótica, Locke defende uma ordem política para evitar as incon- veniências. Assim, a lei direciona os agentes livres e racionais para garantir

146 Elnora Gondim; Osvaldino Marra Rodrigues: Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade

11elnora.indd 146 25/11/2010 11:51:28 os seus próprios interesses e sua prescrição não vai além do bem geral. Aqui é conveniente lembrar que a lei não é um bem substancial, mas serve para assegurar a segurança da pessoa, das suas ações e possessões. Neste sentido, conforme a teoria lockeana, a proteção dos direitos fundamentais como o direito à vida, à liberdade e à propriedade não são renunciados; o que o indivíduo renuncia é o direito de fazer justiça por si mesmo. Em consequência, a liberdade é relacionada com os direitos naturais e para ela ser efetivamente realizada é preciso um consenso onde todos consintam em se submeter a determinadas leis civis. Recapitulando: para Locke o estado de natureza é uma situação de liberdade e igualdade; para ele “a liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violência por parte de outras pessoas” (LOCKE, 1994a, p. 115). Quanto à igualdade, é jurídica e “consiste, para cada homem, em ser igualmente o senhor de sua liberdade natural, sem depender da vontade nem da autoridade de outro homem” (LOCKE, 1994a, p. 114). Assim, o estado civil aparece para sanar as inconveniências do estado de natureza e o Estado é uma instituição com o objetivo de:

1. possibilitar a convivência entre os homens; 2. fazer com que as leis naturais sejam respeitadas.

Portanto, o estado civil tem o objetivo de eliminar o mal e conservar o bem do estado de natureza; por conseguinte o estado civil tem a fun- ção primordial de proteger os direitos naturais. De acordo com Locke, é “dever do magistrado civil, por meio de execução parcial de leis iguais, assegurar a todo povo em geral, e a cada um de seus súditos, em parti- cular, a posse justa dessas coisas que pertencem a esta vida” (LOCKE, 1994b, p. 243). Contudo, a sociedade civil isso não elimina o estado de natureza, pois quando o estado civil entra em colapso reaparece o estado de na- tureza. Quanto ao retorno ao estado de natureza, isto implica que a lei natural tem prioridade, cuja obrigação ocorre tão somente na consciência privada; sendo assim, um povo não se rebela por motivos mínimos. Neste caso, o povo não é rebelde, mas, sim, o governo que abusa do poder e a resistência dos governados é uma resposta de uma força justa para uma injusta, dessa forma, ela é um ato de justiça. Portanto, a liberdade natural, para Locke, é anterior a ordem esta- belecida pelo Estado, um meio para fazer prevalecer à liberdade; con- tudo, quando a ordem é opressora, a liberdade tem prioridade. Assim, priorizando a liberdade, Locke enfatiza a igualdade entre os homens. Em outras palavras, o Estado lockeano garante aos homens tratamento igual sem que eles tenham que renunciar às suas liberdades. Como

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11elnora.indd 147 25/11/2010 11:51:28 isso é possível? Pelo contrato social que tem duas características precípuas: a cooperação e a tolerância. Tais aspectos fazem gerar um consentimento entre cidadãos de uma mesma comunidade política com a função de centralizar o poder público. No entanto, quando se alcança esse consentimento isso significa uma delegação de poderes a um go- vernante. Este deve garantir os direitos individuais, assegurar segurança jurídica, assegurar o direito a propriedade privada. Portanto, somente pela tolerância é que se pode chegar ao estágio de cooperação e, por sua vez, ao contrato social.

2. Locke: a igreja e a questão da tolerância

O conceito lockeano de tolerância é relacionado às instituições, isto é, à sociedade civil e à igreja, porquanto estas têm como função preservar as liberdades dos cidadãos garantindo-lhes a igualdade por meio de um consenso alcançado pela tolerância dos seus partícipes. Nesta perspec- tiva, em linhas gerais, pode-se explicitar o conceito de igreja seguindo as palavras de Locke:

Se os homens são submetidos a ferro e fogo a professar certas doutrinas, e forçados a adotar certa forma de culto exterior, mas sem se levar em consideração seus costumes; se alguém tentar converter os de fé contrária, obrigando-os a cultuar coisas nas quais não acreditam, e permitindo-lhes fazer coisas que o Evangelho não permite aos cristãos, e que nenhum crente permite a si mesmo, não duvido que apenas visa [checar no original] reunir numa assembléia numerosa outros adeptos de seu culto; mas quem acredi- tará que ele visa instituir uma igreja cristã? Não é, portanto, de se admirar que os homens – não importa o que pretendem – lancem mão de armas que não fazem parte de uma campanha cristã, quando não intencionam promover o avanço da verdadeira religião e da Igreja de Cristo. Se, como o Comandante de nossa salvação, desejassem sinceramente a salvação das almas, deveriam caminhar nos seus passos e seguir o perfeito exemplo do Príncipe da Paz, que enviou seus discípulos para converter nações e agrupá-las sob sua Igreja, desarmados da espada ou da força, mas providos das lições do Evangelho, da mensagem de paz e da santidade exemplar de suas condutas. [...] A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara (LOCKE, 1994b, p. 243).

Logo, para que ocorra a paz, os homens têm que ter liberdade reli- giosa, aspecto que envolve a tolerância. Para tanto, Locke define a igreja como seguindo os mesmos princípios da sociedade:

148 Elnora Gondim; Osvaldino Marra Rodrigues: Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade

11elnora.indd 148 25/11/2010 11:51:28 Considero-a como uma sociedade livre e voluntária. Ninguém nasceu membro de uma igreja qualquer; – caso contrário, a religião de um homem, juntamente com propriedade, lhe seria transmitida pela lei de herança de seu pai e de seus antepassados, e deveria sua fé a sua ascendência: não se pode imaginar coisa mais absurda. O assunto explica-se desta maneira. Ninguém está subordinado por natureza a nenhuma igreja ou designado a qualquer seita, mas une-se voluntariamente à sociedade na qual acredita ter encontrado a verdadeira religião e a forma de culto aceitável por Deus. A esperança de salvação que lá encontra, como se fosse a única causa de seu ingresso em certa igreja, pode igualmente ser a única razão para que lá permaneça. Se mais tarde descobre alguma coisa errônea na doutrina ou incongruente no culto, deve sempre ter a liberdade de sair como a teve para entrar, pois laço algum é indissolúvel, exceto os associados a certa expectativa de vida eterna. Igreja é, portanto, sociedade de membros que se unem voluntariamente para esse fim (ibid., p. 243).

No entanto, embora não admita a intolerância religiosa, Locke con- cebe limites à tolerância referente às igrejas:

Esses que atribuem à fé, religiosidade e ortodoxia, isto é, a si mesmo, qual- quer privilégio especial ou poder sobre outros mortais, quanto aos interesses civis, ou quem, sob a pretensão religiosa, desafiam qualquer autoridade que não esteja associada a eles na sua comunhão eclesiástica, digo esses não têm o direito a serem tolerados pelo magistrado, nem aqueles que não possuirão nem ensinarão o dever de tolerar todos os homens em termos de mera religião (Locke, 1991, p. 46).3

Por conseguinte, a tolerância tem limites quando a ortodoxia religiosa tenta impor doutrinas como desafio às autoridades civis. É pensando nisso que Locke argumenta em favor de uma separação entre a sociedade polí- tica e a igreja. Cada uma tem que atuar em sua própria esfera, embora a origem de ambas as instituições seja a mesma, isto é, elas formam uma tendência à vida sociável sob a forma de um consentimento associativo que é relacionado à lei e a ordem nelas associadas. No entanto, a igreja, mais precisamente, tem limites internos e externos. Externamente, em relação às autoridades civis; internamente, em relação aos seus súditos, pois, como afirmado anteriormente, a igreja tem como característica ser

3 “These therefore, and the like, who attribute unto the faithful, religious, and orthodox, that is, in plain terms, unto themselves, any peculiar privilege or power above other mortals, in civil concernments; or who, upon pretence of religion, do challenge any manner of authority over such as are not associated with them in their ecclesiastical communion; I say these have no right to be tolerated by the magistrate; as neither those that will not own and teach the duty of tolerating all men in matters of mere religion”.

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11elnora.indd 149 25/11/2010 11:51:28 uma sociedade livre e voluntária. Em consequência, não pode impor nem às autoridades nem aos homens certas doutrinas forçando-os a adotar formas de culto sem levar em consideração sua fé contrária, obrigando-os a cultuar coisas nas quais não acreditam.

3. Rawls e a cooperação equitativa

O razoável e o racional na teoria rawlsiana Em ampla medida, o conceito lockeano de tolerância tem uma relação profícua com a noção de razoabilidade e de racionalidade rawlsianas, as quais formam a noção de cooperação equitativa. Cumpre ressaltar que o conceito de cooperação equitativa é um elemento-chave para uma adequada compreensão da teoria de Rawls que é intitulada “justiça como equidade”. No entanto, por que enfatizar a tolerância religiosa relaciona- da à justiça como equidade? Para responder ao questionamento, seria conveniente observar que,

Ao longo da história, os Estados modernos consolidam-se enquanto tal atra- vés da uniformização das visões compreensivas do mundo daqueles que nele coabitam. A homogenização religiosa que levou à expulsão e à conversão forçada dos judeus em Espanha e Portugal ou, mais tarde, à expulsão dos protestantes de [checar] França é o exemplo que privilegiadamente ilustra o processo de consolidação dos Estados europeus modernos. O problema da tolerância surge então, como objecto de tematização explícita, situado neste contexto de consolidação dos Estados europeus. E as posições que diante dele são tomadas resultam precisamente da diferente consideração do perigo que a defesa das liberdades individuais representaria para a uni- dade do Estado e, consequentemente para a paz e para a segurança que só esta mesma unidade permite. Mas como alcançar a unidade de uma sociedade determinada precisamente pela ausência de unificação no plano das doutrinas compreensivas? Segundo Rawls, a exigência da defesa das liberdades fundamentais dos indivíduos a que o liberalismo se consagrou, implicando a coexistência de uma pluralidade de doutrinas compreensivas, implica que a coesão da sociedade política seja assegurada por outro factor que não a partilha de uma mesma doutrina compreensiva (FRANCO DE SÁ, 2008, p. 7).

Por conseguinte, a liberdade é um tema recorrente na filosofia rawl- siana que tem como correlação o justo equilíbrio frente ao consenso nas sociedades plurais. Tal aspecto na teoria de Rawls tem como preocupação a coexistência pacífica entre pluralidade de doutrinas compreensivas. É sob esse aspecto, em particular, que a teoria rawlsiana remete à filosofia de Locke e, consequentemente, aos conceitos de racional e de razoável

150 Elnora Gondim; Osvaldino Marra Rodrigues: Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade

11elnora.indd 150 25/11/2010 11:51:28 enfatizados na justiça como equidade. Logo, é necessário explicitar o conceito de racional para compreender a concepção do razoável. Ressal- tamos que a ideia do racional e a concepção do razoável operam juntas quanto à estruturação da posição original4:

Dentro da idéia de cooperação eqüitativa, o razoável e o racional são noções complementares. Ambos são elementos dessa idéia fundamental, e cada um deles conecta-se com uma faculdade moral distinta – respectivamente, com a capacidade de ter um senso de justiça e com a capacidade de ter uma concepção do bem. Ambos trabalham em conjunto para especificar a idéia de termos eqüitativos de cooperação, levando-se em conta o tipo de cooperação social em questão, a natureza das partes e a posição de cada uma em relação à outra (RAWLS, 2000, p. 96).

No entanto, nem sempre a concepção do razoável se fez presente nas obras de Rawls. Como exemplo o filósofo de Harvard corrige um comentário feito por ele nos parágrafos três e nove da Teoria da Justiça, TJ, nos quais asseverava que a teoria da justiça é parte da teoria da escolha racional (Cf.: Rawls, 2003, p. 115). No Liberalismo Político, LP, Rawls se esforça em desfazer a imprecisão de TJ e afirma que é um equívoco considerar a justiça como equidade como uma teoria da escolha racional donde derivar-se-iam princípios de justiça. Contrariamente a isso, os princípios de justiça integram uma concepção política de justiça onde o razoável tem prioridade em relação ao racional. Seriam esses princí- pios de justiça que regulariam as instituições básicas de uma sociedade segundo a qual a ideia de uma liberdade organizada somente pode ser melhor efetivada por uma montagem constitucional hábil e elaborada para orientar interesses de grupos. Assim, Rawls não considera os interesses individuais como a única motivação politicamente pertinente.

4. A distinção entre o razoável e o racional

Em o Liberalismo Político, Rawls faz a pergunta sobre o que distingue o razoável do racional e começa a explicação mostrando como no dia-a- dia isso é visto imediatamente e exemplifica: “Dizemos: sua proposta era perfeitamente racional, dadas suas condições privilegiadas de barganha, mas, apesar disso, não tinha nada de razoável, chegava a ser ultrajante” (RAWLS, 2000, p. 92). Mediante o exemplo, Rawls atribui ao razoável um sentido restrito e o associa às disposições de:

4 Recurso heurístico que garante a imparcialidade no momento da deliberação dos prin- cípios de justiça.

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11elnora.indd 151 25/11/2010 11:51:28 • propor e sujeitar-se a termos equitativos de cooperação; • reconhecer os limites do juízo, aceitando, assim, suas conse- quências.

Neste sentido, o termo razoável significa, em ampla medida, que as pessoas embora não movidas por um bem comum, desejam um mundo em que todos cooperem com todos, numa reciprocidade na qual cada pessoa se beneficie juntamente com as outras. Em contrapartida, quando elas não se propõem a obedecer nem a sugerir princípios ou critérios relacionados nos termos da cooperação equitativa, não podem ser con- sideradas razoáveis. Em Rawls o razoável difere da ideia de racional, dado que este se aplica a um agente único dotado das capacidades de julgamento e de deliberação ao buscar seus interesses, seja ele um indivíduo ou uma pessoa jurídica. Os agentes racionais não têm uma forma de sensibilida- de moral subjacente em relação ao desejo de se engajar na concepção equitativa, isto é:

As pessoas racionais não têm o que Kant chama [...] predisposição à per- sonalidade moral, ou, no presente caso, a forma particular de sensibilidade moral subjacente à capacidade de ser razoável. O agente meramente racional de Kant só tem as predisposições à humanidade e à animalidade [...]; esse agente compreende o significado da lei moral, seu conteúdo conceitual, mas não é motivado por ela: para um agente assim, trata-se apenas de uma idéia curiosa (RAWLS, 2000, p. 95).

Neste sentido, na justiça como equidade o razoável e o racional são ideias distintas e independentes, porquanto o justo não é derivado do bem. Contudo, na concepção de cooperação equitativa, essas duas noções são complementares; porquanto as pessoas têm, concomitante- mente, a capacidade: (i) de senso de justiça; (ii) de concepção do bem. Desta forma, o razoável e o racional são inseparáveis enquanto ideias complementares em relação à cooperação equitativa. Em contrapartida, tanto a ideia do razoável quanto à do racional ambas mantêm características peculiares. O razoável tem uma forma de público e o racional não a tem. Por meio do razoável os indivíduos são iguais no mundo público dos outros e podem propor, aceitar e dispor termos equitativos de cooperação entre eles. Contudo, o razoável não é sinônimo de altruísmo nem de egoísmo, pois

A sociedade razoável não é uma sociedade de santos nem uma sociedade de egoístas. É a parte do nosso mundo humano comum, não de um mundo que julgamos de tanta virtude que acabamos por considerá-lo fora do nosso

152 Elnora Gondim; Osvaldino Marra Rodrigues: Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade

11elnora.indd 152 25/11/2010 11:51:28 alcance. No entanto, a faculdade moral que está por trás da capacidade de propor, ou de aceitar, e, depois, de motivar-se a agir em conformidade com os termos eqüitativos de cooperação por seu próprio valor intrínseco é, mesmo assim, uma virtude social essencial (RAWLS, 2000, p. 98).

Considerações finais

Na contemporaneidade, as sociedades democráticas têm que con- viver com diferentes religiões, filosofias e ideologias, porquanto se torna inconcebível prescrever legalmente alguns valores que sejam superiores em relação aos outros. Nesta perspectiva, a sociedade pluralista não ne- cessita de um consenso totalizante, mas, antes de tudo, de algo, tal qual concebe John Rawls, como uma cooperação equitativa, uma vez que

[...] o multiculturalismo e o pluralismo democrático não apenas refletem a diversidade étnico-cultural da experiência humana de sociabilidade mas se manifesta também em termos de sexualidade, construção da subjetividade, projetos de vida, etc. Ao tentarmos re-situar a questão da alteridade no contexto atual da globalização, creio que lembramos [...] que a democra- cia – assim como a política da amizade e a liberdade de cada outro – não pode ser imposta, mas é o outro mesmo que nos solicita, que nos impele e requer de cada um de nós que preservemos nossa alteridade sem violência ou exclusão (OLIVEIRA, s.d.).

Portanto, conforme a citação referida, a teoria rawlsiana é apropriada para amenizar as possíveis consequências decorrentes do fenômeno da expansão religiosa no Brasil e os riscos que isso pode suscitar. Assim, em tempo, se torna conveniente chamar a atenção não somente sobre o crescimento brasileiro da diversidade religiosa, mas, prioritariamente, já que tal expansão é visível a olhos nus, para qual a forma mais viável de coexistência pacífica que tais agrupamentos religiosos poderiam seguir ou se pautar. Sob essa ótica, acredita-se que a noção de cooperação equitativa rawlsiana será uma via plausível. Tal concepção presente na justiça como equidade reside naquilo que Rawls intitula de racionalidade e razoabili- dade. Ambos os termos se encontram intrinsecamente relacionados com as ideias da liberdade e da tolerância. Neste aspecto Rawls parece ter sido fortemente influenciado por Locke. A filosofia rawlsiana, em ampla medida, assemelha-se com a lo- ckeana em virtude de enfatizar os direitos individuais sem, contudo, desmerecer àquilo que é próprio do coletivo. É nesta perspectiva que a concepção de liberdade, tanto a rawsiana quanto a lockeana, deve ser admitida. Em outras palavras, tanto um quanto o outro filósofo, acredita ser

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11elnora.indd 153 25/11/2010 11:51:28 a liberdade algo irrenunciável, no entanto, faz-se necessário se conceber formas de cooperação para um bom convívio, em que as preferências de determinados grupos sociais, embora levadas em consideração, não sejam universalizadas como axiomas. É neste ponto que se encontra o aspecto da tolerância como uma melhor forma de compatibilizar as di- ferenças. É na invocação do respeito pelo múltiplo, que cidadãos agem com razoabilidade mesmo sem que esses não “abram mão” de suas concepções do bem, pois Locke, ao enfatizar a tolerância, tal qual Rawls, vê no contrato um acordo entre pessoas razoáveis que, embora diver- gentes em muitos assuntos, podem conviver pacificamente. Portanto, o que ambos propõem é uma forma razoável de consenso sobre questões polêmicas, ou seja, mesmo quando os cidadãos partilham de concepções iguais ou se diferenciam quanto à elas, o respeito mútuo e a boa convi- vência devem ser acentuados. Porém, quando citamos Rawls ou Locke, não é nosso intento enfatizar a liberdade jurídica (que, também, tem a sua importância), mas, antes de tudo, priorizar formas de ação que, por meio delas, se possam ter posturas cujo resultado da interação depende ele mesmo da possibilidade que os participantes têm de se entenderem mutuamente sobre uma apreciação intersubjetivamente justa. Em outras palavras, seria possível encontrar valores comuns que confiram sentido à existência humana e que permitiriam a construção de uma comunidade ética de âmbito universal? No âmbito cristão esses valores procederiam da revelação divina. Sob esse aspecto, haveria uma anterioridade do bem em relação ao justo. Seria uma ética pautada numa perspectiva substantiva do bem e, por isso mesmo, poderia resultar em conflitos numa sociedade pluralista e multicultural. Portanto, acredita-se que conviver com uma diversidade religiosa é ter uma determinada postura referente às ações, ou seja, é pautar a ética em valores que possam ser universalizados, isto significa, em grande medida: 1) agir com razoabilidade; 2) ter tolerância; 3) respeitar às diferenças. No entanto, tal postura não enfatiza, em decorrência da diversidade religiosa, um relativismo nem um atomismo ético. Ao contrário, antes de qualquer coisa o que se propõe aqui é uma universabilidade quanto às posturas de um convívio pacífico, tolerante, justo e harmônico entre as mais diversas formas de crenças religiosas. E, é neste ponto que a justiça como equi- dade pode ser relacionada. Em outras palavras, a

Justiça como eqüidade não admite que a moralidade seja derivada da racio- nalidade. Os agentes de Rawls são racionais embora não egoístas: podem querer maximizar o interesse de outrem. Isto é consistente com a teoria da escolha racional no sentido thin da teoria. Mas eles são também razoáveis e dotados de um senso de justiça. Isto não significa altruísmo: eles não são movidos pelo bem comum mas apenas por um sentimento de reciprocidade

154 Elnora Gondim; Osvaldino Marra Rodrigues: Locke e Rawls: tolerância e razoabilidade

11elnora.indd 154 25/11/2010 11:51:28 em um mundo cooperativo. As partes na posição original são mutuamente desinteressadas – elas não se interessam pelo bem dos outros mas são dotadas de um senso de justiça. Mas no seu construto teórico o componente que exclui qualquer racionalidade auto-interessada em um plano empírico, e portanto qualquer comensurabilidade com a noção de racionalidade dos agentes republicanos, é a noção do véu da ignorância. Este despe os indivíduos de quaisquer referências empíricas, colocando-os em um nível de racionalidade universalizante, que deve, no entanto, ser distinguido de um cálculo racional sob incertezas – como ele próprio sugere ainda que de modo ambíguo, e como entenderam seus primeiros críticos utilitaristas (MELO, 2002, p. 81-82).

Referências

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11elnora.indd 155 25/11/2010 11:51:28 Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos

Therapeutic and spiritual care: an approach to working with groups

Cuidado terapéutico y espiritual: un enfoque de trabajar con grupos

Anete Roese

Resumo O texto faz uma análise crítica da perspectiva terapêutica centrada unicamente no indivíduo e na individualização do sofrimento e da cura. Apresenta as bases teóricas do cuidado de grupos como um espaço social de enfrentamento de conflitos e sofrimentos. Palavras-chave: Cuidado terapêutico; acompanhamento espiritual; grupos; psicodrama.

Abstract The text presents a critical analysis of any therapeutic perspective focused solely on the individual and the individualization of suffering and healing. It provides the theoretical basis of group care as a social space for coping with conflicts and sufferings. Keywords: Therapeutic care; spiritual guidance; groups; psychodrama.

Resumen El texto presenta un análisis crítico desde la perspectiva centrada exclusivamente en el individuo y la individualización del sufrimiento y de la sanidad. Presenta las bases teóricas del cuidado de grupos como un espacio social para hacer frente a los conflictos y sufrimientos. Palabras clave: Cuidado terapéutico; acompañamiento espiritual; grupos; psi- codrama.

Anete Roese: Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos

12anete.indd 156 25/11/2010 11:51:52 1. Cuidado terapêutico e espiritual

A terminologia cuidado terapêutico e espiritual é uma nomenclatura que quer redimensionar compreensões metodológicas e retomar o sentido dos termos evocados no campo do acompanhamento a pessoas em crise, conflito e sofrimento. O cuidado espiritual terapêutico é uma abordagem mais inclusiva, profunda e interdisciplinar que perspectivas como acon- selhamento ou poimênica .. Uma revisão conceitual é importante e requer que outras metodologias e perspectivas teóricas componham este quadro que se propõe a refletir sobre as bases desta tarefa. O cuidado terapêutico e espiritual tem um cunho crítico e libertador. Refere-se ao processo de cura e salvação empenhado de forma ampla, integradora e includente de todo ser humano e de todas as dimensões da vida às quais podemos alcançar dentro dos limites de nossa huma- nidade e contextualidade local. Todo cuidado espiritual invoca vida em abundância, digna e plena. Todo cuidado implica na dedicação humana a outra vida. Cuidar, curar, salvar e libertar são várias dimensões de uma mesma energia, uma mesma atitude, uma mesma força que existe na origem da vida. É a partir da religação com esta fonte original que a vida pode ser restabelecida, ressuscitada, que a sacralidade de toda vida pode ser re-conhecida. O cuidado terapêutico e espiritual é uma prática aberta para perspec- tivas hermenêuticas plurais, desde que críticas. Tem um caráter libertador e empenhará sempre diálogos e relações com outros campos de saber e ciências humanas, de modo a compor um quadro de cuidado amplo e sólido. O cuidado terapêutico crítico e libertador dirige sua atenção e suas suspeitas para contextos e posturas sexistas, racistas, classistas, de exclusão de gerações, exclusão da vida do cosmos, exclusão das di- mensões humanas como a corporeidade e a espiritualidade. Este cuidado terapêutico estará sempre atento para as pessoas mais necessitadas e sofridas da sociedade, incluindo simultaneamente uma visão terapêutica do contexto maior e da experiência específica de cada ser humano. Este processo quer incluir o cuidado mútuo como um modo de cuidado baseado na justiça, na justiça relacional e social, que preza um modo não hierárquico nas relações em que a disputa por poder é cons- tantemente anulada. Privilegia sempre o cuidado de um grupo maior de pessoas, olhando para o entorno do indivíduo, reconhecendo estruturas e sistemas que contribuem na construção do processo de adoecimento, e estabelecendo um modo de cuidado que se afirma pelo compromisso social, e pela mutualidade no processo de cura e salvação. O cuidado das relações humanas conflitivas e o cuidado preventivo, que cuida também das dimensões “ainda” sadias da vida, são premissas fundamentais deste modo de pensar o cuidado. Relações humanas revistas, refundadas em

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12anete.indd 157 25/11/2010 11:51:52 seus modos estereotipados de convivência, são espaços decisivos para que uma nova humanidade, uma nova sociedade possa se gestar. O cuidado terapêutico é responsável pela intuição e percepção dos novos referenciais de sentido que são almejados pela mulher, pelo homem, pela sociedade. O processo terapêutico é lugar de cuidado e ‘invenção’, lu- gar de fundação, de reconhecimento de novos modos de vida, novos modos de ser, de se relacionar, de conviver, de nova cultura relacional. O processo terapêutico é espaço e tempo para a criação e recriação da vida. Cuidado implica em uma tarefa - para a qual toda a criatura é cha- mada, e para qual cada uma é vocacionada. Expressa uma necessidade de todo ser humano e é uma tarefa e uma atitude gratuita. Cuidar implica em preocupação, desvelo, solicitude para com a pessoa necessitada, em atenção, e, especialmente, em cura. O cuidar também contempla o con- solo, o conforto, o ensino. O cuidado atento, ético, que oferece sossego, respeito, apoio, repouso, amizade, é cuidado que cura e que salva. O cuidado reserva uma dimensão crítica de renúncia ao poder dominador, percebe a presença do espírito em cada coisa, em cada movimento da vida; coloca-se ao lado da natureza em postura de coexistência. O cuidado espiritual é a tarefa genuína do fazer teológico. As palavras pastor e pastorear são alusivas ao cuidar (Sl 23.1); vem do trabalho de pastorear um “rebanho” (Lc 2.8), e implica em cuidar, acompanhar, guiar, coordenar, tomar responsabilidade diante de quem precisa de cuidado. A Bíblia testemunha Jesus como o bom pastor (Jo 10.11) que dá a vida pelas suas ovelhas; o cuidado espiritual, segundo esta imagem de Jesus, é também o acompanhamento espiritual, o cuidar terapêutico é também cuidado espiritual. O cuidado terapêutico contempla a atitude de sarar, cuidar, tratar, assistir outras pessoas; é um ‘estar próximo’; cuidar do ser, orar pelo ser humano e zelar pela sua integridade física, psíquica, espiritual e social; é cuidar mútuo para que haja paz na vida, sentido na vida; terapeuta também é guia que capacita, que orienta, que acompanha, que conduz para novos modos de vida. A terapia se revela, pois, como um processo de cuidado, um tempo que se abre para assistir, para estar próximo, para tratar de uma ou várias pessoas. A terapia é uma forma de sarar, de servir alguém, de instaurar, trazer de volta a cura; de render graças à vida, ao sopro que dá a vida. A terapeuta é uma serva. O terapeuta é um servo. Assim, somos as ser- vas e “os servos no processo de cura” (MORENO, 2001, p. 95). A terapeuta é guia na abertura, na iniciação de um modo de vida revisto, resignificado, é guia que acompanha a conversão para um estado de mais saúde e vida mais plena. O terapeuta é um hermeneuta que traduz o texto sagrado e o texto da vida em novos significados, capaz de compreender revelações implícitas no sofrimento e no processo de cura. A terapeuta vela pelo desejo

158 Anete Roese: Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos

12anete.indd 158 25/11/2010 11:51:52 e traz à memória os desejos olvidados, e cuida do grande sopro. Cuida do corpo alheio e do próprio, cuida da alma, cuida dos vínculos e da mente. O cuidado em questão aqui é terapêutico e espiritual, pois aponta para uma mediação espiritual e terapêutica. Desta forma o cuidado indica uma práxis que é a da cura e do acompanhamento do ser humano em busca de sua integridade e do despertar espiritual.

2. O indivíduo, o grupo terapêutico e o cuidado espiritual

As críticas em relação às metodologias de acompanhamento a indi- víduos não deixam de reconhecer a necessidade de acompanhamento in- dividual de pessoas, sobretudo em casos específicos. O problema está no excesso de atendimentos individuais e a individualização do ser humano, bem como a visão de que o sofrimento é algo causado no indivíduo e é do indivíduo, sem tomar em conta o contexto social deste sujeito. Trata- se de retomar a consciência da natureza social da existência humana e a compreensão sociopolítica que envolve a existência humana. O ser humano não existe fora das relações sociais, começando pelo nascimento, linguagem ou a troca de ideias e valores. Stephen Pattison aponta alguns fatores fundamentais que levaram a tal tipo de prática espiritual: o individualismo presente na ideologia do capitalismo ocidental; a ideologia capitalista que produz nas pes- soas concepções que levam menos em conta a coletividade do que o indivíduo e que torna as relações mercadológicas e o consumismo uma importante forma de ser; o individualismo oculta na sociedade os que são independentes e diferentes; teologicamente, a ideologia individualista concebe a cruz e a ressurreição como conseqüências da vida individual (PATTISON, 1994). O grupo terapêutico exerce funções que são primordiais para cada ser humano, como a de ser “continente”, ser suporte para as experiências dolorosas, que em situações de terapia individual são exercidas apenas pelo terapeuta. As angústias, ansiedades, raivas, defesas, emoções vivi- das pelo ser humano precisam de um “continente”, um apoio seguro que receba o conteúdo expressado em determinadas circunstâncias. Exercer o papel de continente é fazer a “função de acolher, reter durante algum tempo, decodificar e dar um significado, um sentido e um nome às expe- riências emocionais vividas” (ZIMERMAN, 1991, p. 120). Este é o papel, a função para a qual grupos podem ser capacitados. Pessoas que buscam cura e para tal buscam ajuda tem, no grupo, um espaço propício, seguro, para vivências passadas e presentes. O grupo de pessoas com buscas e necessidades semelhantes conforma uma homogeneidade e uma familiaridade que dá a sustentação e a confiança que cada pessoa precisa em situações de conflito e sofri-

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12anete.indd 159 25/11/2010 11:51:52 mento. “A homogeneidade dos participantes favorece que cada um assuma sua doença, ou limitação, com menor culpa ou vergonha e com abrandamento da terrível sensação de se sentir um marginal diante das pessoas ‘normais’” (ZIMERMAN, 1991b, p. 120). O processo terapêutico grupal gera uma solidariedade entre as pessoas envolvidas que e torna um agente curativo. “A terapia grupal propicia uma oportunidade ímpar, qual seja, a de um paciente, de alguma forma, poder ajudar a um outro” (ZIMERMAN, 1991c, p. 124). Zimerman observa que o grupo tem uma “função de espelho”, e que o contexto grupal funciona como uma “galeria de espelhos”, que é con- sequência de “um intenso e recíproco jogo de identificações projetivas e introjetivas.” Esse jogo revela a ação terapêutica do grupo que se dá no processo que cada pessoa faz ao se olhar e refletir em outras pessoas, e de ver espelhado nos outros, características próprias negadas a si mesmo. Esta “função de reconhecimento” é um potencial do grupo terapêutico e pode resultar em uma ação terapêutica decisiva para a cura (ZIMERMAN, 1991d, p. 121). Uma das características que diferencia a terapia individual da gru- pal é que esta última oportuniza excelentes condições de os indivíduos interagirem de uma forma menos egoísta e defensiva, como comumente acontece. [...] Abre-se uma possibilidade de contraírem novos vínculos fundados em uma mutualidade de confiança, respeito, solidariedade e amizade, inclusive com a eventualidade de alguns se tornarem amigos, mesmo fora da restrita situação grupal. Também contribui para o de- senvolvimento da sociabilização o fato de se sentirem compreendidos um pelo outro em razão de compartilharem uma mesma linguagem, o que facilita o importante processo da comunicação (ZIMERMAN, 1991e, p. 122). A história e a dinâmica da vida de cada pessoa pode se fortalecer, ganhar valor quando é ouvida, compreendida e respeitada por outras pessoas. E na medida em que muitas histórias, fatos são contados, muita culpa pode ser compartilhada e perdoada. A partilha respeitada de experiências doloridas possibilita a criação de novos significados para as histórias de vida. A convivência abundante e sadia cura. A partir do grupo a existência pode tornar-se mais leve, mais suave. O grupo é um espaço, um lugar, um tempo para ressurreição, renovação da vida. É

“ao mesmo tempo, espaço de proteção e espaço de transformação; espa- ço privado e público; espaço de reflexão e espaço da prática cotidiana da escuta de histórias; espaço de nascimento, de crescimento e espaço do despedir-se; espaço de silêncio e de protesto; espaço de caminhada; espa- ço para celebração e espaço para transgressão de limites desnecessários” (RIEDEL-PFÄFFLIN, 1999, p. 61).

160 Anete Roese: Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos

12anete.indd 160 25/11/2010 11:51:52 Os encontros de Jesus com as pessoas que padeciam de exclusões ou sofrimentos foram encontros criativos, que criaram nova vida, vida restabelecida, ressuscitada. Ele curou relações atrofiadas por fundamen- talismos, como aconteceu ao pé do poço, no encontro com a samaritana (Jo 4); ou com a mulher que sofria de hemorragia (Mc 5); ou com grupos que o ouviam e/ou o seguiam. Estes foram encontros criativos, pois agen- ciaram novas políticas relacionais, curas corporais, novas cosmovisões.

3. Espaços de reinvenção da subjetividade

O teórico francês Félix Guattari ao analisar as relações sociais dá uma importância ímpar à revisão dos modos de ser e de se relacionar. Ela fala da necessidade de uma micropolítica. Neste meio, ele é crítico, mas não é pessimista. O autor sinaliza para o que os grupos são capazes de produzir no campo sociocultural e nomeia estas produções de processos de singularização, e se refere aos novos modos de significação, às novas políticas cotidianas que podem nascer nos espaços de grupos. Podemos imaginar, então, que os processos de cuidado espiritual e terapêutico também podem ser este tipo de espaço e processo singular, bem como é fundamental pensar nos processos políticos que aí se engendram. Segundo Guattari, os processos de singularização são

uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação preestabe- lecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzem uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos (GUATTARI, 1999, p. 16-17).

Para Guattari, grupos são espaços para a criação de novas subjeti- vidades, processos de singularização, revoluções moleculares, relações humanas com uma nova suavidade. Os grupos comunitários podem ser agenciamentos de criação, recriação e cura da vida machucada, dolo- rida, e das relações estáticas. O trabalho terapêutico com grupos quer salientar o ser relacional da pessoa. Auxiliar os grupos a recriar relações, concepções e sentimentos é mais do que ajudar as pessoas a voltar para a vida normal; é mais do que aceitar papéis e sistemas preestabelecidos a partir de categorias e modelos estereotipados. Transformações sociais também acontecem em nível relacional (GUATTARI, 1999b, p. 283). Transformar relações, modos de conviver, de ser, de ver, de pensar faz

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12anete.indd 161 25/11/2010 11:51:52 parte da cura da vida. Na comunidade, no grupo, por meio dos encontros e das experiências que daí emergem, criam-se novos significados para as histórias de vida; novas narrativas e compreensões para o cotidiano; outras capacidades de viver e assumir a vida. O acompanhamento espiritual terapêutico de grupos possibilita que as pessoas sejam curadas como indivíduos, que fortaleçam a sua perso- nalidade, e, ao mesmo tempo, ajudem umas às outras no processo. Neste caso, todas as pessoas tornam-se agentes de cura e apoio no grupo e também além do grupo, fazendo com que este papel não se concentre somente nas mãos de uma pessoa (o agente espiritual, a psicóloga, por exemplo). Compartilhar sentimentos, dificuldades e experiências num grupo que se propõe respeito e compreensão mútua também faz nascer autocompreensão, respeito próprio, e motiva a vivência comunitária. O cuidado mútuo em grupos é a busca de compromisso mútuo pelas cau- sas do sofrimento, e comunhão na busca da cura, de transformação de estruturas, modelos e paradigmas. O sociólogo Michel Maffesoli lembra o papel dos pequenos grupos. São justo estes, – “os pequenos grupos que vão dar origem ao que vai ser o cristianismo”, pois eles têm um caráter instituinte. O que caracteriza o “instituinte”, ao contrário do instituído, é sua “força sempre renovada do estar-junto”, e “a proximidade de seus membros cria laços profundos, o que provoca uma verdadeira sinergia das convicções de cada um (MA- FFESOLI, 1987, p. 117-123). O acompanhamento de grupos pode ser um processo de singulariza- ção, no sentido proposto por Guattari, onde é possível enfocar e descons- truir experiências traumáticas construídas em contextos de sofrimento. O processo de singularização é a efetivação de um modo singular, inclusivo e libertador de vida (GUATTARI, 1999c). É um modo processual por onde pessoas em pequenos grupos podem encontrar formas de cuidado mútuo e cura que vence estruturas e sistemas hegemônicos que fazem adoecer. O grupo pode ser espaço de ensaio de outros contextos. Contextos onde convivem as pluralidades de gênero, etnia, idade, etc., numa dinâmica de justiça relacional, onde as pessoas podem relacionar-se entre si e com o cosmos, não em consenso, mas em mutualidade e em conflitualidade não excludente. Esta compreensão sobre a convivência em grupo não pressupõe um modelo linear que vê no grupo um lugar para consenso, relações hori- zontais, coesão, cooperação e ausência de conflitos (CARLOS, 1998). O contexto plural inerente a qualquer grupo, mesmo quando esta pluralidade está ocultada, reprimida, reproduz a pluralidade social. Isto permite uma profundidade muito grande no trabalho de cuidado terapêu- tico em grupos, e um alcance muito amplo de estruturas além do grupo, pelas pessoas que participam deste grupos e de outros grupos sociais. O grupo é um movimento constante, um processo nunca acabado, é “um

162 Anete Roese: Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos

12anete.indd 162 25/11/2010 11:51:52 eterno vir-a-ser. [...] Este processo é dialético. É constituído pela eterna tensão entre a serialidade e a totalidade. Há uma ameaça constante na dissolução do grupo e a volta à serialidade, onde cada integrante assume e afirma a sua individualidade sendo mais um na presença dos demais” (CARLOS, 1998b, p. 203). Os grupos são, pois, um contexto favorável para a proposição de um cuidado terapêutico espiritual criativo, crítico e libertador, uma vez que são locus de pluralidade de opiniões, experiências, modos de ser, etc. O grupo pode funcionar como um laboratório para a vida na sociedade, enquanto nele é possível descobrir ou inventar modos de se relacionar e de pensar - quando devidamente orientado e quando seu espaço de encontro é encaminhado nesta perspectiva, quando suas capacidades são exploradas terapeuticamente. Neste caso, é um espaço privilegiado para o cuidado mútuo, cuidado das relações humanas e cuidado preventivo. Poderíamos dizer que há um meio termo entre o extremo do in- divíduo e o extremo da sociedade generalizada. Entre os dois existem agrupamentos, – alguns passageiros e outros mais fixos, mas que são pequenos grupos onde as pessoas conseguem experimentar proximidade, segurança e pertença. Segundo Maffesoli, “o estar-junto convivial, afetivo ou banal, tem um lugar que não pode ser subestimado. [...] A valorização do grupo é uma desconstrução do individualismo” (MAFFESOLI, 1987b, p. 117-123).

4. O cuidado terapêutico em grupos: a perspectiva do psicodrama

O grupo terapêutico reúne pessoas que tomam alguma iniciativa em relação a si mesmas. Elas estão na busca de sentido para sua vida, para suas relações e para seus conflitos e sofrimentos. Estas pessoas sempre almejam mudanças para sua vida (BUSTOS, 1992). Segundo Zerka Mo- reno, “um grupo consiste em seres humanos individuais e suas relações uns com os outros. Essas relações se constituem por atrações e rejeições mútuas, que se transformam na base da percepção e consciência grupais” (MORENO, 2001b, p. 123). Jacob Levy Moreno parece dar uma definição que tem algo de cristã para o grupo terapêutico, quando afirma que “o tratamento de grupos concretos, a verdadeira psicoterapia de grupo, con- siste de sessões terapêuticas, nas quais três ou mais pessoas que tomam parte esforçam-se para resolver problemas comuns” (MORENO, 1993, p. 24). Esta afirmação é apenas um fragmento do que Moreno pensa ser um grupo terapêutico. Sabendo da formação judaica e cristã de Moreno e da influência religiosa no seu pensamento, não deixa de ser curiosa a afirmação “nas quais três ou mais pessoas...” estão juntas tentando resolver problemas comuns. Lembra a frase de Jesus: onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou no meio deles. Logicamente

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12anete.indd 163 25/11/2010 11:51:53 o psicodrama não acontece sob a invocação da presença de Deus. Mas Moreno acredita nesta presença de Deus, pois acredita que o psicodrama é um processo de criação. Esta, contudo, é uma diferença do psicodrama para um cuidado espiritual terapêutico. O psicodrama observa especialmente a capacidade de cada pessoa de se envolver, participar e se relacionar no âmbito do grupo. O enfoque do método é melhorar as relações humanas, pois o ser humano é um ser de vínculos. Uma relação sempre envolve mais de uma pessoa. Pertencer é uma característica e uma necessidade humana, disso depende a vida humana (MORENO, 2001c, p. 123). Na ótica moreniana, o grupo é uma espécie de “sociedade em miniatura” (MORENO, 1993b, p. 207). Com a diferença de que nesta sociedade as pessoas podem ser o que elas re- almente são, pois o espaço é um espaço de cuidado e é organizado para que haja cuidado mútuo, tem estrutura para apoio mútuo e intervenção para as necessidades de cada qual. Na abordagem grupal da psicoterapia o sujeito passou a deslocar-se do indivíduo para o próprio grupo. E cada integrante do grupo passou a ter o papel de ser terapeuta de outras, tornando-se uma agente terapêutica, levando a terapeuta a ser ela própria “uma parte do grupo”, resultando com isso que o agente da cura ou terapeuta não mais estivesse centrado na figura da terapeuta coordenadora (MORENO, 1993c, p. 74). O terapeuta não é mais aquele que cura, que tem a cura em suas mãos e a oferece. As psicoterapias de grupo aportaram uma conversão no papel da paciente e da terapeuta no contexto terapêutico. A paciente não é mais paciente no sentido passivo do termo, e a terapeuta não é mais a única a exercer o papel de terapeuta quando na presença de um grupo terapêutico. No âmbito das psicoterapias de grupo a paciente pode ser terapeuta de outra paciente. Nas palavras de Moreno, “um paciente é um agente terapêutico para outros. A essa influência mútua denominei de princípio da interação terapêutica, no qual a independência dos indivíduos participantes não se dissolve, como na massa, e no qual as suas capacidades terapêuticas são aproveitadas” (MORENO, 1993d, p. 24). Moreno destaca, além da importância desta interação terapêutica, o princípio da espontaneidade. Ele trata de toda a dimensão terapêutica da espontaneidade provocada pela liberdade de participação e criação que é criada no grupo, bem como a chance diagnóstica que este princí- pio permite, pois podem ser detectados os bloqueios de espontaneidade que irão impedir o ser humano de criar modos saudáveis de ser e de se relacionar. No grupo acontece uma interação direta entre as pessoas, que por ser muito espontânea é “uma prova da realidade”. Pois neste ambiente a pessoa se depara consigo, seus conflitos e sofrimentos e, ao mesmo tempo, com a realidade concreta de outras pessoas. Segundo Moreno, o perigo do tratamento individual, face a face com

164 Anete Roese: Cuidado terapêutico e espiritual: a abordagem de trabalho com grupos

12anete.indd 164 25/11/2010 11:51:53 o terapeuta, é de que aí acontece uma exclusão do mundo. O tratamento individual deixa a cargo da pessoa sozinha o teste do sucesso da terapia no confronto com a realidade. No contexto terapêutico de grupo, o “mundo todo, com seus medos e valores, se transforma numa parte da situação tera- pêutica” (MORENO, 1993e, p. 102). Neste tipo de tratamento em grupos

a adequação do seu comportamento ao mundo pode ser verificada dentro do quadro da terapia. Os problemas da sociedade humana assim como o problema do indivíduo – a representação de relacionamentos humanos – amor, matrimônio, doença e morte, guerra e paz, constituem a imagem do mundo, podem, agora, ser representados em miniatura, numa ‘microrreali- dade’, dentro do grupo (MORENO, 1993f, p. 102).

A convivência ou a participação em um grupo remete, segundo Zerka Moreno, a que cada participante tenha “problemas” éticos, de consciência e preocupações com o grupo. Estes princípios que regem o comportamen- to do ser humano quando toma parte de um grupo levam a um “estado de tensão e inclui a percepção do outro” (MORENO, 2001d, p. 123). Ou seja, há regras subjetivas de consciência e de boa convivência que cada qual tenta levar a cabo, a fim de ter reconhecimento, garantia de estima alheia e pessoal. Esse comportamento onde há respeito e aceitação mútua garante também que haja justiça nas relações intergrupais e da pessoa consigo mesma. Luiz Cuschnir analisa a perspectiva individualizada de temas e proble- mas coletivos dentro de um grupo e dá um exemplo ilustrativo. Num grupo terapêutico pode ser proposto um tema e um sentimento comum, como ‘o medo do homem hoje’. Diante deste sentimento comum cada pessoa tem sua percepção pessoal, que será o universo individual da experiência do medo. Estas experiências individuais, então, se cruzam, se juntam e formam o grande complexo social do medo. No grupo terapêutico, cada pessoa poderá vivenciar e nomear seu medo: “abandono, sacanagem, castigo, vergonha, covardia, fracasso”. Depois, a partir de uma cena, “cada um vai buscar uma resposta mais ampla: o que é ser homem no referencial coletivo. [...] Depois disso, cada um esboça o eu individual, a sua maneira particular de ser este homem” (CUSCHNIR, 1992, p. 78). Assim o individual e o social interagem no espaço grupal. Vincular, nomear, dramatizar os diversos medos em grupo – assim como outros temas emergentes da existência humana – resgata do iso- lamento a individualização de dado sentimento e experiência. A ideologia dualista da independência e da dependência pode ser desconstruída no espaço terapêutico do grupo e o ser humano pode resgatar sua condição de interdependência. Segundo Zerka Moreno, a sociedade humana se caracteriza pela inter- dependência entre quem dela faz parte. Nenhum ser vivo é capaz de viver

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12anete.indd 165 25/11/2010 11:51:53 e sobreviver no isolamento. A interdependência, a relacionalidade de tudo com tudo, e de forma singular da humanidade entre si, é a própria vida do cosmos, e a capacidade de manter estes vínculos de tudo com tudo e das pessoas entre si que vai resultar na vida sadia. Sobrepor o valor da inde- pendência à relacionalidade na sociedade pode ter sérias consequências para a humanidade. A independência pode levar à carência, à negação da necessidade de dar e receber afeto, ao isolamento, ao autoritarismo, ao poder agressivo, e por fim à psicopatia. “Pode-se, portanto concluir que hoje poderia ser útil para as pessoas, nas sociedades ocidentais, desen- volver mais confiança na dependência como objetivo terapêutico. [...] Em suma, creio que o oposto de ser dependente é ser saudavelmente interde- pendente” (MORENO, 2001d, p. 122). Para Maffesoli, “insistiram tanto na desumanização, no desencantamento do mundo moderno, na solidão que este engendra, que não conseguem mais ver as redes de solidariedade que nele se constituem” (MAFFESOLI, 1987c, p. 101).

Considerações finais

A reflexão proposta neste texto toca, a meu ver, em questões de- cisivas do campo do cuidado de pessoas como tem sido feito ao longo da trajetória das igrejas e de consultórios terapêuticos. As igrejas, em especial, se ocupam com a atenção espiritual e terapêutica de milhares de pessoas, e esta é uma tarefa que só tem aumentado em sua demanda, dado o aumento das crises existenciais, dos sofrimentos humanos e da busca desesperada por ajuda no campo espiritual. Pensar na descons- trução da ideologia individualista que permeia este campo, e no caráter político da ajuda espiritual e terapêutica a fim de que o processo de cui- dado seja um espaço de transformação das relações e da sociedade vai muito além de apenas oferecer um consolo imediato para aliviar o des- conforto momentâneo. Trata-se de repensar as nossas práticas e analisar as bases que tem fundamentado tais práticas, além disso é necessário ainda pensar sobre as metodologias às quais recorremos neste meio do cuidado terapêutico e espiritual de pessoas.

Referências

BUSTOS, D. M. Novos rumos em psicodrama. São Paulo: Ática, 1992. CARLOS, S. A. “O processo grupal”. In: STREY, Marlene Neves et al. Psicologia social contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 199-206. CUSCHNIR, L. Masculino/Feminina. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos tempos, 1992. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro, RJ: Forense-Universitária, 1987.

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12anete.indd 166 25/11/2010 11:51:53 MORENO, J. L. Fundamentos do psicodrama. 2. ed. São Paulo, SP: Summus, 1983. ______. Psicoterapia de grupo e psicodrama: introdução à teoria e prática. 2. ed. Revisada. Campinas, SP: Psy, 1993. MORENO, Z.; BLOMKVIST, L. D.; RÜTZEL, T. A realidade suplementar e a arte de curar. São Paulo, SP: Ágora, 2001. PATTISON, S. Pastoral care and Liberation Theology. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. RIEDEL-PFÄFFLIN, U. „Feministische Seelsorge: Kunst der Begegnung in trans- formativen Zeit/Räumen“. In: POHL-PATALONG, U.; MUCHLINSKI, F. Seelsorge im Plural: Perspektiven für ein neues Jahrhundert. Hamburg: E. B.- Verlag, 1999, p. 51-62. ZIMERMAN, D. “Como agem os grupos terapêuticos?”. In: ZIMERMAN, D. E., OSORIO, L. C. (orgs.). Como trabalhar com grupos. Porto Alegre : Artes Médicas, 1997, p. 119-125.

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12anete.indd 167 25/11/2010 11:51:53 O Estagio Supervisionado nas Faculdades de Teologia: teoria e prática de um dos componentes curriculares The Supervised Internship in Schools of Theology: theory and practice of one of the components of the curriculum Las prácticas supervisadas en las facultades de teología: la teoría y la práctica de un de los componentes Geoval Jacinto da Silva

Resumo O presente ensaio tem por finalidade refletir sobre a implantação e organização do estágio supervisionado em instituições teológicas que oferecem cursos de teologia com vista a formação de pessoas para o ministério pastoral. Com o advento, em 2000, do reconhecimento do Curso de teologia, pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), como curso de nível superior, as instituições tiveram que adaptar a grade curricular incluindo o estágio supervisionado. Para tanto, foi necessária a criação de uma coordenação de estágios para acompanhar, orientar e supervisionar o/a estudante que deverá realizar o estágio supervisionado no decorrer do curso. Palavras-chave: Estágio supervisionado; projetos; teoria e prática; ensino; aprendizado; supervisão; avaliação; formação.

Abstract This essay has a purpose to reflect about the implementation and organization of supervised training in Theological Institutions, which offers theology courses with a view to training people for the Pastoral Ministry. With its arrival in 2000, the recognition of a Theology Course, by the Ministry of Education and Culture, as a degree course, teaching institutions had to adapt its curriculum to include supervised training. Therefore it was necessary to create a department to follow, guide and supervise the student who must carry out a supervised training throughout the course. Key words: Supervised training; projects; theory and practice; teaching and learning; supervision; evaluation; formation.

Resumen El presente ensayo tiene la finalidad de propiciar la reflexión sobre el estableci- miento y la organización de la práctica pastoral supervisada en las instituciones teológicas que imparten cursos de teología y se dedican a la formación de per- sonas para el ministerio pastoral. Con el advenimiento del reconocimiento que el Ministerio de Educación y Cultura –MEC – hiciera al curso de teología en el 2000, aceptándolo como un curso de nivel superior, las instituciones adaptaron su ma- triz curricular y asumieron la supervisión de la práctica pastoral como disciplina. Para llevar a cabo tal propósito, fue necesario crear la Coordinación de Prácticas Pastorales para acompañar, orientar y supervisar al estudiantado durante la realización de la referida actividad en el transcurso del período lectivo. Palabras-clave: Práctica supervisada; proyectos; teoría y práctica; enseñanza; aprendizaje; supervisión; evaluación; formación.

Geoval Jacinto da Silva: O Estagio Supervisionado nas Faculdades de Teologia

13geoval.indd 168 25/11/2010 11:52:16 Introdução

O presente ensaio tem por objetivo apresentar pautas do estágio supervisionado como um dos componentes curriculares do curso de te- ologia oferecidos pelas faculdades de teologia e a reflexão da maneira como os/as alunos/as podem realizá-lo. Com o advento, em 2000, do re- conhecimento do Curso de teologia, pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), como curso de nível superior, as instituições tiveram que adaptar a grade curricular incluindo o estágio supervisionado. O estágio supervi- sionado em qualquer curso de graduação faz parte da grade curricular e por sua natureza tem legislação própria. Ao abordar o tema do estágio supervisionado nos cursos de teologia, vez ou outra neste artigo, será feita referência direta a experiência que é desenvolvida na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista, que além de sua experiência com o estágio realizado pelos/as alunos/as antes do reconhecimento do curso, têm hoje uma estrutura de Coordenação de estágios supervisionados para o curso presencial e outras modalidades.

1. Faculdade de Teologia da Universidade Metodista e seu processo histórico de ensino e prática do estágio

1.1 Definição de estágio supervisionado O estágio supervisionado favorece a relação teoria-prática a partir da interação entre a reflexão oriunda da academia e atuação em situa- ções concretas da realidade socioeconômico-religioso-cultural do País (Regulamento de Estágio Supervisionado – Teologia/2001). Moraes Bianchi afirma que:

O estágio quando visto como uma atividade que pode trazer imensos benefí- cios para a aprendizagem, para a melhoria do ensino e para o estagiário, no que diz respeito a sua formação, certamente trará resultados positivos. Estes tornam-se ainda mais importantes quando se tem consciência de que as maio- res beneficiadas serão a sociedade e, em especial, a comunidade a que se destinam os profissionais egressos da universidade (BIANCHI, 2003, p. 8).

1.2 Um pouco de história da prática do estágio supervisionado na Facul- dade de Teologia da Igreja Metodista Segundo Silva (2010) o processo de ensino e aprendizagem desen- volvido pela Faculdade de Teologia da Igreja Metodista é marcado por uma dinâmica própria, tão logo que iniciou sua trajetória acadêmica em São Bernardo do Campo, SP, em 1938, como junção das duas Facul- dades de Juiz de Fora, MG, e Porto Alegre ,RS. Procurou desenvolver

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13geoval.indd 169 25/11/2010 11:52:16 suas atividades na perspectiva ensino-aprendizado teoria e prática. Nestes anos de funcionamento da Faculdade de Teologia desenvolve com os/as alunos/as a dimensão do ensino-aprendizado e a prática que no decorrer dos anos foi sendo estruturada como estágio prático. Estes estágios práticos eram realizados nas comunidades próximas a faculdade onde os/as alunos/as a partir do primeiro ano escolar eram motivados a se envolverem gradualmente na vida de uma igreja local. Isto porque, já entendia os educadores, que não era possível, nem recomendável, o ensino puramente teórico, em que a parte prática era limitada aos laboratórios. Era indispensável que o/a aluno/a pudesse ver no campo todos os diferentes aspectos da cultura. Desta forma, uma prática sim- ples como dirigir uma reunião pode “converter-se em uma prática amena e cheia de interrogações, fazendo com o que o aluno pense no porquê da tarefa realizada e desenvolva sua iniciativa” (Regulamento de Estágio Supervisionado Teologia/2001). Por se tratar de uma instituição com finalidade primeira de formação do quadro de pastores/as para a Igreja Metodista, a modalidade de es- tágio era bem absorvida e desenvolvida pelos/as alunos/as, em especial aos sábados e domingos nas comunidades onde eles/elas realizavam sua prática. Embora em sua origem não havia o caráter estrutural de estágio supervisionado, o/a aluno/a tinha que realizar uma prática na co- munidade, onde muitas destas eram realizadas com o acompanhamento de um professor-pastor ou o/a aluno/a estava sempre acompanhado de um/a pastor/a responsável por uma comunidade. É importante destacar que o processo de ensino-aprendizagem era composto de uma parte teórica em sala de aula e uma prática progressiva em uma comunidade local. Desta forma, o ensino sustentado por uma prática possibilitava a reflexão do teórico sobre as ações realizadas pelos/as estudantes. O ensino-aprendizagem tinha um caráter objetivo e o/a aluno/a era levado/a a aprender diretamente no campo de ações, praticando ele/ela próprio/a as tarefas relacionadas à sua formação. O teórico da sala de aula era vivenciado pelo/a estudante e ele/ela mesmo era motivado/a a desenvolver sua prática em uma comunidade. O/a aluno/a tinha que “ver e tinha que fazer”. No decorrer dos anos e com o aperfeiçoamento do processo ensino- aprendizagem e prática, a Faculdade de Teologia com o advento, em 2000, do reconhecimento do Curso de Teologia, pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), como curso de nível superior estabelece a modalidade acadêmica do estágio supervisionado que possibilitou o início e o cres- cimento de novos conhecimentos nas diversas áreas do saber e das relações humanas. Desta forma amplia-se as possibilidades do estudante da Faculdade de Teologia realizar estágios supervisionados ampliando

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13geoval.indd 170 25/11/2010 11:52:17 o seu universo teórico e relacionando o mesmo com outras disciplinas interligadas com sua formação visando o ministério pastoral. O curso superior da Faculdade de Teologia, conforme está desenha- do, pauta-se por uma metodologia participativa, que estimula o/a aluno/a ao exercício do pensamento e da elaboração e formulação de discurso que dê conta do específico religioso em que está inserido. Para tanto, na construção do saber, a consulta as fontes, as leituras e a pesquisa devem ser elementos fundamentais no trabalho extraclasse. O estágio realizado pelos/as estudantes tem priorizado áreas que exigem do povo cristão uma participação mais consciente para a qual, nem sempre, ele se encontra devidamente preparado. Embora a Faculdade de Teologia esteja voltada para atender o ministério pastoral, a mesma reconhece a diversidade de ministérios existentes nas comunidades cristãs e tem enfa- tizado, em particular, aquelas áreas que requerem a atenção especial da Igreja em nossos dias. Assim sendo, para os cursos de teologia o estágio supervisionado deve ser entendido como um processo de aprendizagem que envolve projeto, pesquisa e a inserção e intervenção do aluno na realidade. Nesta direção Bianchi declara que:

as tarefas a serem desenvolvidas durante o período de estágio super- visionado devem envolver uma organização tal que parta da elaboração de um projeto, cujo resultado culmine com um Relatório circunstanciado das ocorrências vivenciadas e nele projetadas, com linguagem científica e dados estatísticos comprobatórios. Tal processo de elaboração do estágio compreende a organização, o planejamento, a análise e a redação dos diferentes dados pelos quais se pôde aprender e produzir conhecimentos novos. Assim sendo, o estágio supervisionado deixa de ser uma atividade meramente formal para se constituir como um verdadeiro aprendizado. O estágio é, nesta perspectiva, uma maneira peculiar de fazer pesquisa e ao mesmo tempo inserir na realidade de maneira a intervir (BIANCHI, 2003, p. 7).

Neste contexto histórico a Faculdade Teologia, inicialmente conhe- cida como Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, de certa forma é pioneira em desenvolver no contexto acadêmico a proposta de ensino, aprendizagem e prática. O estágio era por certo interpretado como um ponto de convergência do curso de Bacharel em Teologia. Tal procedimen- to de ensino, aprendizagem e prática, possibilitavam uma aproximação das disciplinas que foi aperfeiçoando a proposta de ensino e pesquisa nos estudos de grupos. Possibilitando não só o envolvimento do/a aluno/a no processo ensino-aprendizagem como também envolvendo os professores na interdisciplinaridade acadêmica.

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13geoval.indd 171 25/11/2010 11:52:17 2. Estágio supervisionado: histórico e legislação do MEC

2.1 Quando e como surge o estágio acadêmico? Na primeira parte foi visto como se organizou e se desenvolveu o processo do estágio na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. Por- tanto, o estágio, como prática de ensino, tem uma história que remonta a um período anterior às discussões sobre o tema em várias esferas do ensino profissional, em especial na área da formação dos/as pastores/as. Podemos dizer que a Faculdade de Teologia se antecipou ao implantar o estágio em seu curso sem que isso viesse como uma imposição por meio da legislação do MEC, uma vez que é recente o reconhecimento do curso. O curso da Faculdade de Teologia, a partir do ano 2000, re- cebeu o reconhecimento oficial do MEC, portanto, passa a fazer parte da estrutura da Universidade Metodista. Com a nova estrutura, iniciou- se o processo de reformulação do estágio acadêmico. Neste sentido, buscou-se acompanhar a legislação que orienta o estágio como parte da formação profissional. No início da década de 70, ocorreu em Bra- sília o 1º Encontro Nacional de Professores de Didática. Na ocasião, as discussões apontavam para a necessidade de inserção dos/as es- tudantes no mercado de trabalho em suas áreas afins para um contato prévio do que viria a ser o exercício em sua profissão. No contexto do encontro, tanto o coordenador do evento professor Valnir Chagas, como o Ministro, senador Jarbas Gonçalves Passarinho, discorreram, com um não-contido entusiasmo, sobre a legislação que tornava obrigatório o estágio de estudantes (Bianchi, 2003, p. 10). Anteriormente a data citada, em 1966, por ocasião do Encontro Nacional do Estágio Supervisionado de Administração (Enaescar) foram estabelecidas as diretrizes para a implantação do estágio supervisionado contemplando os itens abaixo que podem com os devidos cuidados serem aplicados nas instituições de ensino teológico:

1. Os trabalhos de Estágio deverão desenvolver em função das exigências das organizações, direcionadas às áreas de interesse dos alunos e das respectivas IESs às quais pertencem. 2. Os trabalhos e a orientação de Estágio deverão ter acompa- nhamento e avaliação sistemática, previamente definidos em Regulamento da Instituição. 3. O Estágio deverá ser interpretado como ponto convergente do curso, devendo ter como critérios orientadores a excelência, a praticidade, a qualidade e a utilidade da produção acadêmica. 4. O trabalho de Estágio deverá gerar um banco de dados no qual estejam inseridos conhecimentos, por parte do aluno, de forma

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13geoval.indd 172 25/11/2010 11:52:17 que possam ser relacionadas e aplicados em outra Organizações e outras Instituições de Ensino. 5. O trabalho de Estágio deverá ser um elo facilitador no ajustamen- to natural do aluno no campo profissional dos Administradores. 6. A avaliação do trabalho de Estágio deverá contemplar, simulta- neamente, o produto final gerado e o processo que conduziu a este produto. 7. As horas dedicadas ao trabalho de Estágio deverão ser distribu- ídas em atividades teóricas e de campo. 8. As IESs deverão gerar sistemas de controle para o processo de acompanhamento e avaliação dos conhecimentos teóricos e práticos dos alunos adquiridos no Estágio. 9. O produto final do Estágio deverá ser em forma de relatório, con- forme metodologia específica da IES, atendendo a normatização da ABNT, e defendido perante banca examinadora. 10. O Estágio deverá ser realizado após um processo cumulativo, de acordo com o projeto pedagógico de cada IES, vinculado-se a área especifica à conclusão do estudo da matéria pertinente. 11. A sistemática do Estágio deverá ser avaliada periodicamente e os resultados documentados. 12. Cada IES editará o seu Manual de Estágio Supervisionado. 13. O estagiário deverá estar respaldado por um instrumento legal, celebrado com a Organização concedente e a interveniência da Instituição de Ensino, remunerando ou não e com seguro de acidentes pessoais obrigatório (BIANCHI, 2003, p. 11-12).

Essas diretrizes representam orientações a fim de que as IES possam desenvolver procedimentos para que os/as estagiários/as realizem a con- tento a prática do estágio supervisionado, entretanto, diversas legislações, decretos e documentos complementares já foram emitidos com a finalidade de aperfeiçoar o exercício do estágio. Entre todos os procedimentos legais até então em vigência a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), 1996, no artigo 82, afirma que: “Os sistemas de ensino estabele- cerão as normas para a realização dos estágios dos alunos regularmente matriculados no ensino médio ou superior em sua jurisdição”. Com objetivo de ajudar na administração e relacionamento do estágio com empresas ou outras instituições o Boletim IOB – Informações Objetivas, afirma:

Item 9 – Estágio não é emprego. O estágio de Estudantes não se confunde e não se deve confundir com emprego, quer de caráter temporário, quer de duração indeterminada. São figuras totalmente distintas. O estágio, desenvolvi- do ao longo do curso do estudante, em atividades correlacionadas à sua área

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13geoval.indd 173 25/11/2010 11:52:17 de formação profissional, não é, portanto, emprego. Logo, não cria vínculo empregatício entre as partes e é regulamentado por legislação específica. Item 14 – Estágio no próprio emprego. O empregador que, por ser estu- dante, necessitar da realização de um período de estágio, pode fazê-lo nas dependências da própria empresa, sem perder a condição de empregado. Nestes casos, se o período de estágio ocorrer no horário ou áreas distintas do expediente normal de trabalho do empregado, a empresa deve formalizar o estágio com a documentação legal exigida e com a interveniência obri- gatória da instituição de ensino, para comprovação perante a fiscalização trabalhista (IOB – 40/93 (BIANCHI, 2003, p. 13-14). Segundo Bianchi (2003), o conhecimento da legislação facilita ao/à aluno/a a caracterização do estágio como parte da formação profissional que requer o acompanhamento e a avaliação por parte dos supervisores responsáveis. Há uma distinção significativa, pois o objetivo principal da inserção do estágio desde o início do curso superior oportuniza a familiari- zação do/a aluno/a com a sua profissão. Também, é um elemento facilita- dor ao processo reflexivo quanto ao compromisso ético e social necessário ao exercício profissional. Para dirimir dúvidas quanto à caracterização do estágio e a diferença da relação do trabalho formal desenvolvido por pro- fissionais já habilitados com vínculo empregatício, por meio de legislação própria é garantido o direto de ambas as partes. Ao recordarmos os instrumentos legais sobre o estágio supervisio- nado aos/às alunos/as possibilitamos conhecimentos e oferecemos as garantias legais quando de sua inserção no mundo do trabalho. Chama- mos a atenção, pois o fundamental é a clareza de que o processo de estágio supervisionado tenha como característica principal a abertura para que os/as alunos/as possam experenciar a práxis, entendo práxis como ação refletida e transformadora (Floristan, 2003, p. 180). O estágio é a oportunidade específica no qual ao mesmo tempo em que atuam, também podem refletir sobre suas futuras atividades. O estágio supervisionado é uma oportunidade oferecida aos/às alunos/as de entrarem em contato com a realidade na qual desenvolverão seus ministérios; assumindo assim, com responsabilidade o compromisso de participação em seu processo de formação. A educação pressupõe essa parceria em que os/as alunos/ as são sujeitos de seu processo educativo.

3. Elaboração do projeto de estágio supervisionado – procedimentos na realização

3.1 Orientações para o supervisor local e acadêmico A forma de organização do estágio supervisionado no curso de teologia proporciona um crescente aprendizadoque o/a aluno/a possa ir

174 Geoval Jacinto da Silva: O Estagio Supervisionado nas Faculdades de Teologia

13geoval.indd 174 25/11/2010 11:52:17 familiarizando-se com a realidade na qual desenvolverá a intervenção de sua prática. Neste momento do curso, espera-se do/a aluno/a o manejo dos pressupostos que embasam um trabalho científico. Na sua formação acadêmica já cursou disciplinas que permitem a construção de um co- nhecimento que saia do senso comum. A partir da observação científica, há o levantamento dos dados necessários para o passo inicial da elaboração do projeto de estágio. É um momento importante da formação do/a aluno/a, pois o modo de apro- ximação das instituições nas quais irá intervir pressupõe embasamento teórico e capacidade de desenvolver um olhar interrogativo. As leituras orientadas permitem a construção de um caminho para a realização do estágio efetivo como passo seguinte à elaboração do projeto. Neste momento o/a aluno/a deve buscar orientação de leitura específica nas áreas que irá elaborar o seu projeto. Por exemplo, para caracterizar o espaço religioso ou a ONG precisa levantar o histórico da instituição, objetivo, recursos (materiais, humanos e outros), disponibilizados para atendimento do objetivo institucional, formas de comunicação, fontes de conflito, recursos da comunidade. É necessário que o/a aluno/a não se atenha apenas à apresentação dos dados concretos. Exige-se a capacidade de saber ler essas informações à luz da literatura dispo- nível nas disciplinas cursadas e pesquisas bibliográficas específicas à área que propôs realizar seu estágio. Por meio do acompanhamento dos/as supervisores/as acadêmicos/as a feitura do projeto vai culminar com a apresentação da versão final para ser submetida à aprovação do colegiado do curso. Após a aprovação o/a aluno/a está autorizado/a a receber o encaminhamento oficial para as instituições onde realizará seu estágio acadêmico.

3.2 O que é o projeto de estágio? Uma das maneiras de superar certas barreiras na vida e no processo de ensino-aprendizagem é ter clareza no que deseja alcançar, para tanto é oportuno ter em vista um projeto como resultado de um bom planejamento. Neste sentido, o estágio supervisionado requer um projeto que indique o caminho onde as diversas atividades serão desenvolvidas de forma clara, detalhada e com prazos bem definidos para o seu cumprimento.

o projeto é um trabalho de elaboração mental e de apresentação que tem por finalidade guiar os passos do/a aluno/a e demonstrar, em linhas gerais, o que pretende fazer, como deve fazê-lo e onde poderá chegar. Preparar o projeto é planejar. Planejar é um caminho de desenvolvimento das atividades, de forma clara, detalhada e rigorosa, incluindo-se a escolha de bibliografia, métodos, técnicas e recursos (BIANCHI, 2002, p. 19).

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13geoval.indd 175 25/11/2010 11:52:17 O estágio supervisionado pode ser desenvolvido a partir de diver- sas possibilidades de atuação, no caso da Faculdade de Teologia tem-se atuado em duas áreas com duas possibilidades de prática de estágio supervisionado: prática ministerial e promoção humana, formando para efeitos acadêmicos uma só junção de horas. O estágio supervisionado em prática ministerial consiste em possibilitar o/a aluno/a envolver-se e ter conhecimento das ações realizadas no ministério pastoral e na vida da igreja nas áreas: missão e evangelização, docentes, administrativas e do serviço social. Já o estágio supervisionado em promoção humana permite que o/a estagiário/a tenha conhecimento e atuação em situações limites que o ser humano pode vivenciar. Neste sentido os hospitais, lares de idosos, casas de recuperações de pessoas dependentes químicas, escolas, creches, ONGs e outros constituem espaços privilegiados para a realização do estágio. O estágio supervisionado é um momento fundamen- tal para a formação profissional e para isso é necessário que o/a aluno/a assuma o compromisso de realizá-lo com seriedade e competência. O encaminhamento dos/as alunos/as às igrejas, instituições (ONG’s, hospitais, etc), tem por objetivo estabelecer parceria com esses seg- mentos, uma vez que a experiência só pode ser realizada nos espaços específicos que oportunizam ao discente a aprendizagem por meio da atuação/reflexão. Nesse sentido, busca-se estabelecer esse caminho de diálogo entre a academia e os futuros espaços de atuação profissional dos/ as nossos/as alunos/as. A forma de organização do estágio foi pensada para atender as necessidades dos/as alunos/as nesse período de forma- ção, que é acompanhado pela coordenação de estágio supervisionado da Faculdade de Teologia.

3.3 Estrutura do estágio supervisionado na Faculdade de Teologia da Metodista A partir do ano de 2000, o curso Bacharel em Teologia da Metodista passou a ser reconhecido pelo MEC. Para adequar o mesmo às exigên- cias da legislação atual, foi necessário organizar o projeto pedagógico dentro dos novos parâmetros curriculares. Um dos itens importantes que consta na formação do/a aluno/a diz respeito ao estágio supervisionado. O processo de estágio supervisionado tem os seguintes passos: • 1º ano do curso: o estágio tem seu início a partir da realização de disciplinas específicas e acompanhamento supervisionado no trabalho de observação de campo. • 2º ano: o/a aluno/a recebe orientação para a observação do futuro local para realizar o estágio e acompanhamento para a elaboração do projeto de estágio em prática ministerial e pro- moção humana.

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13geoval.indd 176 25/11/2010 11:52:17 • 3º ano: o/a aluno/a está apto/a a exercer, sob a supervisão aca- dêmica e local o que propôs em seu projeto de estágio.

3.4 Etapas do estágio • 1º ano = 20h de observação do local em que se pretende realizar o estágio. • 2º ano = 70h de observação e preparação do projeto de estágio supervisionado. • 3º ano = 180h de inserção, observação e supervisão – 30h de supervisão: local e Faculdade Teologia – totalizando 300h, para efeito de aprovação curricular.

Esse momento da formação é significativo, pois nele o/a aluno/a poderá experienciar a superação da aparente dicotomia entre a teoria e a prática. É um período que requer do/a aluno/a a seriedade necessária para o preparo teórico e a capacidade de propor e realizar atividades práticas.

3.5 Competências do local do estágio supervisionado: igreja, entidade, instituição, empresa ou outros • Respeitar o contexto básico da profissão e plano de estágio acordado com o/a aluno/a e a faculdade; • Assinar o termo de compromisso de estágio supervisionado e o convênio proposto; • Designar um/a responsável para realizar os contatos com o/a aluno/a, igreja, instituição, empresa e a faculdade no que se refere à questão do estágio supervisionado; • Comunicar à faculdade qualquer alteração ou interrupção no estágio supervisionado; • Solicitar, se necessário, a presença do/a coordenador/a do es- tágio supervisionado para discussão e solução de problemas comuns; • Conceder à faculdade a oportunidade de acompanhamento do/a aluno/a na igreja, instituição, etc., sempre que houver necessi- dade; • Preencher a ficha de acompanhamento e avaliação do/a aluno/a (regulamento de estágio supervisionado – Teologia/2001).

3.6 Competências do/a supervisor/a local da prática ministerial e promo- ção humana a) Conhecer o projeto de estágio supervisionado que será desen- volvido pelo/a aluno/a, após aprovação pela coordenação de estágio da Faculdade de Teologia;

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13geoval.indd 177 25/11/2010 11:52:17 b) Facilitar a aproximação do/a aluno/a com os segmentos onde o estágio supervisionado está sendo realizado; c) Reunir-se com o/a aluno/a para fornecer as orientações necessá- rias quanto a horário, amplitude e limitações do local onde será feito o estágio supervisionado; d) Apoiar o/a aluno/a no que for necessário, esclarecer dúvidas e apontar as oportunidades de crescimento na realização do estágio supervisionado; e) Comunicar à autoridade local qualquer alteração ou interrupção no estágio supervisionado; f) Preencher a ficha de estágio que consta: local, atividade reali- zada, horário e assinatura; g) Preencher, assinar e carimbar a ficha, quando o/a aluno/a concluir suas atividades de estágio supervisionado.

4. Estágio supervisionado uma experiência de duas vias

Segundo Lima e Olivo (2007), um dos maiores desafios enfrentados por lideranças acadêmicas comprometidas com a formação do/a aluno/a, consiste em criar condições que auxiliem os/as estudantes de graduação a articular as dimensões teóricas e práticas. O tempo e a experiência mostram que, na prática do estágio, o/a aluno/a pode contribuir com novas experiências adquiridas no estágio supervisionado e aplicar os conteúdos adquiridos por meio das diversas disciplinas cursadas, possibilitando assim que seja possível um novo olhar sobre determinado tema tanto da parte do/a aluno/a, como do/a professor/a. Portanto, Bianchi considera que:

estagiar é tarefa do aluno; supervisionar é incumbência da instituição de ensino que está representada pelo/a professor/a. Acompanhar, fisicamente se possível, tornando essa atividade incomum, produtiva é tarefa do professor, que visualiza com o/a aluno/a situações de trabalho passíveis de orienta- ção”. Afirma mais que: “Compete ao/a aluno/a estar atento, demonstrar seu conhecimento pela teoria aprendida, realizar seu trabalho com dignidade pro- curando, dentro da sua área de atuação, demonstrar que tem competência, simplicidade, humildade e firmeza, lembrando-se que ser humilde é saber ouvir para aprender, ser simples é ter conceitos claros e saber demonstrá- los de maneira cordial (BIANCHI, 2003, p. 8).

Considerando essa via de mão dupla no estágio supervisionado “é importante ressaltar que a validade do estágio supervisionado está dire- tamente ligada a “quanto o estudante e o professor foram capazes de

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13geoval.indd 178 25/11/2010 11:52:17 desaprender e reaprender com a realidade vivenciada” (LIMA; OLIVO, 2007, p. 11). Em se tratando de um curso de teologia a imersão do es- tagiário nas mais diversas realidades poderá oferecer novas ferramentas para suas futuras ações pastorais que possam responder as exigências de uma prática pastoral contextual.

Conclusão

O histórico do processo ensino-aprendizagem e prática tocupam especial parcela de orientação por parte das IES, por meio dos seus di- versos segmentos. Atualmente, os cursos de nível superior desenvolvem diversos processos que possibilitem aos/às estudantes sua aproximação com sua futura área de atuação. Com o reconhecimento do curso de te- ologia pelo MEC, como curso de nível superior tal preocupação também se faz presente nas faculdades de teologia, daí então decorre a necessi- dade das faculdades responderem a demanda do ensino-aprendizagem e prática pela implantação, desenvolvimento e supervisão do estágio supervisionado. Neste sentido, o estágio deverá ser acompanhado e avaliado sistematicamente por meio de regulamento próprio estabelecido por cada instituição. O estágio supervisionado é parte do processo de ensino-aprendiza- gem e prática; ele não pode ser visto como um apêndice dentro do cur- so, isto porque a legislação o inclui com parte da grade curricular, neste sentido exigem-se novas posturas e novos olhares dos três segmentos: instituição, professor/a e aluno/a.

Referências

BIANCHI, M. C. A. Manual de Orientação Estágio Supervisionado. São Paulo: Thomson, 2003. FLORISTAN, C. Teologia Practica: Teoria Y Práxis de la Accion Pastoral. Sala- manca: Sigueme, 1993. LIMA, C. M; OLIVO, S. (Orgs.). Estágio Supervisionado e Trabalho de Conclusão de Curso. São Paulo: Thomson, 2007. FACULDADE DE TEOLOGIA. Regulamento de Estágio Supervisionado. São Bernardo do Campo, 2001. SILVA, G. J. Educação Teológica e Pietismo. A Influência do Pietismo na Edu- cação Teologia no Brasil – 1930 – 1980. São Bernardo do Campo: Metodista/ Editeo, 2010.

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13geoval.indd 179 25/11/2010 11:52:17 Culto e entretenimento na sociedade do espetáculo

Worship and entertainment in a society of spectacle

Culto y entretenimiento en la sociedad del espectáculo

Luiz Carlos Ramos

Resumo Este artigo aborda o fenômeno contemporâneo da espetacularização da experi- ência religiosa, a partir de conceitos como sociedade do espetáculo, entreteni- mento, coersedução, entre outros, e busca-se analisar a relação mídia-religião no cenário brasileiro atual. A partir dessa abordagem, que constata a aproximação cada vez maior entre culto e entretenimento, também se procura apontar pistas pastorais para uma prática litúrgica criteriosa na idade mídia. Palavras-chave: Culto; liturgia; entretenimento; sociedade do espetáculo.

Abstract This article considers the contemporary phenomena of the spectacularization of religious experience. The approach is based, among others, on the concepts Society of Spectacle, Entertainment, Coerseduction, in order to analyses the relation between media and religion in todays Brazilian context. Considering the more and more growing approximation between worship and entertainment, it is tried to offer pastoral orientation and criterias for a liturgical practice in the media-age. Keywords: Worship; liturgy; entertainment; Society of the Spectacle.

Resumen Este artículo aborda el fenómeno contemporáneo de la espectacularización de la experiencia religiosa, a partir de conceptos como sociedad del espectáculo, entretenimiento, coerseducción, entre otros, y busca analizar la relación “medios— religión” en el escenario brasileño actual. A partir de ese abordaje, que constata la aproximación cada vez más estrecha entre culto y entretenimiento, también se procura indicar pistas pastorales para una práctica litúrgica criteriosa en la “edad midia”. Palabras clave: Culto; liturgia; entretenimiento; sociedad del espectáculo.

Luiz Carlos Ramos: Culto e entretenimento na sociedade do espetáculo

14luiz.indd 180 25/11/2010 11:52:41 Videmus nunc per speculum… (1Co 13.12)

1. Diversão e entretenimento na sociedade do espetáculo

Para Freud, a sanidade do indivíduo está no confronto dosado entre o pincípio do prazer e o princípio da realidade, entretanto, no mundo do- minado pela ideologia do entretenimento, promove-se um comportamento patológico decorrente do hiperestímulo do elemento “prazer”, em contraste com a sublimação do referencial da realidade. Por essa razão, conquanto sejam vários os elementos conjugados que compõem o atual quadro que conforma a sociedade do espetáculo (tais como o sexo, a violência e o jogo), nesta abordagem, nos limitaremos àquele que lhe é mais notório e caricato: o entretenimento. Sim, o elemento que marca a persuasão especializada do discurso espetacular é o jogo, isto é, a diversão, o lúdico, o brinquedo, o passa- tempo, o entretenimento – e é mais fácil experimentá-lo do que explicá-lo. Tentemos, assim mesmo, compreender melhor o que é isso de que estamos falando (e, tão frequentemente, usufruindo). Em português, a palavra jogo tem origem latina em jocus, gracejo, graça, pilhéria, mofa, escárnio, zombaria. A relação com o humor, o riso, o cômico fica evidente. Quanto à palavra diversão, do latim diversìo,ónis, remete a “digressão, diversão”, do verbo divertère, afastar-se, apartar-se, ser diferente, divergir. Tal termo sugere um desvio do corrente por meio do dis- tanciamento, o que o liga ao conceito de alienação. A palavra lúdico carrega a ideia de sua etimologia ludibrium, que denota joguete, zombaria, insulto, ultraje, engodo e ludìus, que é o pantomimo, o comediante. Ao termo lúdico também se liga a brinquedo, definido como algo “que se faz por gosto, sem outro objetivo que o próprio prazer de fazê-lo”. A palavra brinquedo inclui, ainda, o elemento de composição antepositivo brinc-, ou vrinc- (vinclu), que significa ligar, prender, amarrar, atar, juntar, enfim, sugere a ideia de liame, laço, atadura, vínculo. Sugere a ideia de algo a que alguém se liga por mero prazer. A expressão passatempo, por sua vez, sugere a atividade que se faz por puro divertimento, para “matar o tempo”, como se diz popularmente, e também sugere uma digressão, um desvio, não somente do contexto de espaço, sugerido pela palavra diversão, mas da própria noção de tempo. Todos esses termos estão concentrados de maneira muito particular na noção de entretenimento que caracteriza a sociedade espetacular e, parti- cularmente, o universo mediado (cf. HOUAIS, 2001). Um estudo relevante sobre o entretenimento na sociedade moderna foi feito por Neal Gabler que, tomando a sociedade estadunidense como referência, procura entender por que o entretenimento tornou-se o seu valor número “um”. Para esse autor,

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14luiz.indd 181 25/11/2010 11:52:41 de fato, Karl Marx e Joseph Schumpeter parecem ter errado ambos. Não se trata de nenhum “ismo”, mas talvez o entretenimento seja a força mais poderosa, insidiosa e inelutável de nosso tempo – uma força tão esmagadora que acabou produzindo uma metástase e virando a própria vida (GABLER, 2000, p. 17).

Gabler demonstra o nexo existente entre entretenimento e sensação. O elemento sensório do entretenimento é tão central que está envolucrado na própria palavra. Como notou o autor, etimologicamente, entretenimento vem do latim inter (entre) e tenere (ter). Conquanto se entenda entrete- nimento como sendo “aquilo que diverte com distração ou recreação” ou “um espetáculo público ou mostra destinada a interessar ou divertir”, na constituição mesma da palavra está presente a ideia de “ter entre”. Isto é, os filmes (cinema), os musicais (shows), os romances e as histórias em quadrinhos (livros), as telenovelas (TV), os jogos eletrônicos, para citar alguns, atraem os indivíduos, “mantendo-os cativos” levando-os cada vez mais para dentro de si mesmos, de suas emoções e sentidos (novamente a ideia de espelho da realidade interior do indivíduo). Gabler sugere que com o entretenimento se dê o oposto da arte. A ideia que se tinha era a de que a arte propiciava o eckstasis – cuja ideia é a de “deixar sair, colocar para fora”; enquanto que “o entretenimento em geral fornece justamente o oposto: inter tenere, puxando-nos para dentro de nós mesmos para nos negar a perspectiva” (GABLER, 2000, p. 25). Se a arte era dirigida a uma pessoa, o entretenimento se volta ao maior número possível de pessoas, isto é, lida com uma plateia numerosa que é considerada como massa, “um conjunto de estatísticas” (GABLER, 2000, p. 26). Se a arte é concebida como invenção, o entretenimento é tido como convenção, porque “busca constantemente uma combinação de elementos que já despertaram certa reação no passado, na suposição de que a mesma combinação provocará mais ou menos a mesma reação de novo” (GABLER, 2000, p. 26). As emoções e as sensações são os fins do entretenimento e isso ele obtém porque se apresenta “divertido, fácil, sensacional, irracional” (GABLER, 2000, p. 27). Manuel Castells comenta o fato de que a ex- pectativas de demanda por entretenimento “parecem ser exageradas e muito influenciadas pela ideologia da ‘sociedade do lazer’” (CASTELLS, 1999, p. 390). Trata-se de um mundo onde os sentidos triunfaram sobre a mente, a emoção sobre a razão, o caos sobre a ordem, o id sobre o superego. A estética do entretenimento torna-se cada vez “maior, mais célebre, mais barulhenta, como se o desejo de uma sobrecarga sensória fosse, assim como o sexo, um impulso biológico em estado bruto, difícil de resistir” (GABLER, 2000, p. 25).

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14luiz.indd 182 25/11/2010 11:52:41 2. Culto espetacular

Historicamente, a religião institucionalizada opôs-se veementemente ao entretenimento, a exemplo da pregação de João Crisóstomo (354- 407) (cf. RAMOS, 2005, p. 48-50). E constata-se a frequente repressão e censura religiosa que marcou a separação entre o mundo secular e a religião tradicional, ao longo de toda a Idade Média, e que se disseminou principalmente entre os protestantes puritanos. Estes se notabilizaram pelas objeções às expressões populares “licenciosas”, tais como dramatizações, canções, danças, jogos e festas sazonais.1 Entretanto, em meados do século 19, teve início uma ruptura com essa postura histórica em relação ao entretenimento. Isso coincidiu com o surgimento de um grande número de novas denominações religiosas, que passaram a disputar os fiéis como os estabelecimentos comerciais concorrentes disputam clientes. Segundo Gabler, a proliferação de inúmeras denominações religiosas diferentes, que rapidamente se expandiam e espalhavam, nos Estados Unidos do século 19, “entre as quais se podia escolher livremente”, resultou em uma prática religiosa que se tornou “tão altamente divertida que acabava por minar bastante as expressões obrigatórias de desdém dirigidas ao entretenimento”. Referindo-se ao protestantismo evangélico, Gabler afirma tratar-se de “uma religião democrática – altamente pessoal e não hierár- quica, vernácula, expressiva e entusiástica” que “evitando a doutrina e o comedimento” preferiu a emoção à teologia. Isso porque essa estratégia funcionava melhor para atrair o público do que as tradicionais posturas puritanas (cf. GABLER, 2000, p. 30). A profundidade da fé passa a ser medida não pela plausi- bilidade teológica dos seus postulados, mas pela intensidade da emoção sentida pelo indivíduo que se abandona no fervor re- ligioso, experimentado no contexto dos cultos. Em tais cultos, os fiéis são tomados por “ataques de catalepsia, convulsões, visões, acessos incontroláveis de riso, súbitas explosões de cantoria e até mesmo de latidos [urros, gemidos, grunhidos, e todo tipo de afetação]” (GABLER, 2000, p. 31). Essa prática marca o maior movimento religioso da atualidade, não somente nos Estados Unidos, mas em todo o conti- nente americano e em muitas outras regiões do planeta. Na constatação de Gabler, “ao rejeitar uma religião racional em favor de uma religião emocional e imoderada” os evangélicos terminaram por disseminar-se “nas mesmas fileiras do entretenimento”.

1 Sobre o puritanismo e a cultura popular, ver Cunha ( 2004, p. 68-72).

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14luiz.indd 183 25/11/2010 11:52:41 Assim, a teatralidade2 começa a “insinuar-se nos serviços religiosos” (GABLER, 2000, p. 32): sermões outrora marcados pelo severo rigor te- ológico dão lugar a anedotas, historetas, episódios engraçados e apartes coloquiais; rituais circunspectos são substituídos por manifestações extá- ticas, condutas extravagantes e exultações joviais – em grande sintonia com a ascensão da cultura popular. Até o final do século 19, a cultura popular já se transformara na cultura dominante nos Estados Unidos e, por essa razão, Gabler afirma que, “dali em diante” estaria declarada e promulgada “a República do Entretenimento” (GABLER, 2000, p. 37), e esta, desde então, vem se expandindo por toda parte. Em nossos dias, pode-se verificar o resultado disso tudo para o culto público, tanto das igrejas de confissão cristã como o das diferentes expressões e culturas religiosas. Podemos arriscar a seguinte categorização: 1ª geração: celebrantes midiáticos intuitivos; 2ª geração: celebrantes midiáticos tecnicistas; e 3ª geração: celebrantes midiáticos especialistas. Vivenciamos, ainda, o final da primeira geração, a dos celebrantes midiáticos intuitivos. Sem formação na área tecnológica ou da comunica- ção mediada, mas com espírito empreendedor e grande iniciativa, são os pioneiros da tele-religião e conquistaram lugar definitivo na mídia. Aos poucos, essa primeira geração vai dando lugar aos seus sucesso- res, já melhor preparados tecnicamente para o desempenho do seu papel de tele-celebrantes. Mas trata-se ainda de uma presença muito tímida. Estes sabem que a mídia exige a substituição do discurso oral-verbal pela expressão imagético-visual. Sabem que o meio exige uma dinâmica mais veloz e ágil, esforçam-se para descobrir caminhos. Mas saber “o quê” não é o mesmo que saber “o como”. De modo que o que temos ainda é a reprodução das cerimônias reais nos meios de comunicação. Teremos que aguardar a próxima geração, a dos especialistas, que com o know-how acumulado à custa dos erros e acertos das gerações anteriores, poderão amadurecer a inter-relação entre a fé na mídia e a mídia na fé. No momento presente, lamentavelmente, ainda temos muitos tele- celebrantes incompetentes (tanto técnica como teologicamente falando). Alguém já disse que não há nada pior do que um incompetente com iniciativa e empreendedorismo. Os estragos que causam podem ser irreversíveis. É preciso, portanto, mais do que iniciativa e espírito empreendedor. É necessária uma competência tecnoteológica.

2 Para uma abordagem sobre a relação entre teatro e religião, ver (CAMPOS, 1997, p. 61-114).

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14luiz.indd 184 25/11/2010 11:52:41 É notório o despreparo teológico dos religiosos que estão em destaque na mídia. Na área de Bíblia, percebe-se o quão superficial é o conhecimen- to demonstrado. O procedimento exegético é tão raro que os poucos casos que eventualmente apareçam são a exceção que confirma a regra. Em temos de teologia, cristologia e pneumatologia dos tele-religio- sos, a única coisa que é sistemática é o desprezo pelos teólogos e por suas elaborações teológicas. São raríssimas as alusões aos grandes teólogos, sejam os da atualidade, sejam os da história da Igreja. Quando algum deles é mencionado, é para depreciá-lo, e desautorizá-lo com pilhérias e gracejos humilhantes. No entanto, a teologia midiática está muito mais próxima da medieval do que da reformada, pelo esvazia- mento do conceito da graça, e pela ênfase numa soteriologia meritória, baseada na teologia da retribuição. Pastoralmente, não há a preocupação com a criação de “comunidade”, e a solidariedade não é virtude que mereça lugar de destaque. A educa- ção cristã também está em baixa, o estudo é desestimulado com base na falácia de que a razão milita contra a fé. A concepção do culto deixa clara a ignorância histórica da caminhada litúrgica, homilética e hinológica do cristianismo (a inanição litúrgica é comovente!). A missiologia presente na mídia pouco tem a ver com a implantação dos valores do Reino de Deus, anunciado por Jesus de Nazaré, mas está preocupada muito mais com as vantagens e benesses que se pode auferir da religião. A poimênica midi- ática é generalista e generalizadora. Incapaz de um atendimento pessoal e humanizado pautado pelo bom-senso, limita-se a oferecer orientações alinhadas aos estereótipos e às generalizações do senso-comum – que amiúde é preconceituoso, discriminatório, reducionista, simplista, e, a rigor, reflete a ideologia dominante. Diante de tanta “incompetência”, qual é o segredo então do “tremen- do” sucesso dos astros e estrelas da fé? Este espaço não nos permite aprofundar a questão como gostaríamos, no entanto, quero aqui fazer algumas indicações que podem nos ajudar: Devemos levar em conta a estratégia da mídia, que, para alcançar seus objetivos, recorre a elementos coersedutores tais como o narcisismo, o mecanismo de transferência, o fascínio das estrelas e os estereótipos. Destes, gostaria de destacar o fascínio das estrelas. “A estrela é ar- quetípica” e fascina porque se torna “a expressão sublimada das próprias crenças, das próprias necessidades” (FERRÉS, 1998, p. 113). A veneração dos fãs pelas estrelas ou celebridades nem sempre depende do talento destas e é comum que se dê mais importância às suas qualidades físicas do que à competência profissional. No dizer de Gabler, não é necessário “haver talento algum para obtê-la [a fama]”, pois tudo de que precisa é “a santificação da câmara de televisão” (GABLER, 2000, p. 179). Para

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14luiz.indd 185 25/11/2010 11:52:41 Ferrés, “a pessoa que seduz, de certo modo, se apodera da alma do se- duzido”, num ato de vampirismo espetacular, pois o seduzido se entrega incondicionalmente reconfigurando sua própria personalidade segundo os moldes da estrela, por associação ou transferência de tudo o que ela encarna – a moda ditada pelas celebridades seria um claro indício desse processo (FERRÉS, 1998, p. 120-121). No campo religioso, essa tendên- cia mimética, ou vampírica, também é notória na reprodução de trejeitos, expressões, posturas e convicções ideológicas tanto por parte da lide- rança clériga quando laica, ditados pela moda religiosa espetacular. São as estrelas que determinam o padrão de beleza física, de postura moral, de estatura espiritual... A reprodução desse comportamento espetacular se nota, inclusive, na veneração pia a expoentes (astros) religiosos por parte de fiéis (fãs) devotos. Acontece que, em grande parte, isso se dá de maneira despercebida e desapercebida. Não se trata de um processo consciente porque, como exemplificou Ferrés, quando uma estrela parece vender lágrimas, está vendendo sabão, e quando parece estar vendendo produtos, está vendendo valores (cf. FERRÉS, 1998, p. 126-127).

3. Desafios pastorais para o culto na idade mídia

Videmus nunc per speculum in enigmate tunc autem facie ad faciem nunc cognosco ex parte tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum (1Co 13.12) Retomo aqui os desafios que eu já havia apontado, anos antes, em relação à homilética, aplicando-os ao culto como um todo, e à religião em geral, frente à sociedade do espetáculo. A religião tradicional mantém seu foco no significado, ao passo que a espetacular focaliza-se, sim, sobre o significante ou sobre a forma da mensagem enunciada. Entretanto, nem a convencional, nem a espetacular ajustam seu foco para centralizar os intersujeitos comunicantes, isto é, nos seres humanos que estão interagindo nesse processo comunicacional. Talvez seja possível encontrar alternativas para a tele-religião, mas estas só serão legítimas se conseguirmos resistir à força desumanizadora, robotizadora, coisi­fi­cadora dos meios tecnológicos, principalmente os de comunicação de massa. Está sobre a mesa a questão da humanização da mídia. Seria possível um processo de reversão humanizadora da ten- dência coisificadora atual? Será possível uma espiritualidade mediada humanizada? Se de al- guma forma isso for possível, só se dará mediante a interação de todas as pessoas envolvidas como sujeitos ativos que podem opinar e interferir diretamente no curso do processo comunicativo (tal interação deve ser

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14luiz.indd 186 25/11/2010 11:52:41 possível entre as pessoas e os meios, e entre as próprias pessoas) – não se trata mais de emissores e receptores de mensagens, mas de intersu- jeitos comunicantes. Será necessário, ainda, por parte das igrejas e dos fiéis, o enfren- tamento crítico e lúcido das “megamudanças”3 que ocorrem no campo teórico e tecnológico contemporâneo, o que implica na abertura para aceitá-las e, até mesmo, para promovê-las, quando percebidas como ferramentas legítimas que podem estar a serviço de uma ação ética, razoável e democrática. Essa espiritualidade deverá também se preocupar com a sensi- bilização ética de todo o corpo humano: suas dores e prazeres, suas dúvidas e interesses; tratar com respeito e consideração a emoção e o sentimento humanos. Nas relações com a sociedade tecnológica, se deverá buscar a superação das redes de máquinas (de computadores, de TVs, de emis- soras de rádio...) por uma rede de gente: pois não faz sentido haver máquinas conectadas se não houver interação entre as pessoas que as utilizam. Deve-se buscar, portanto, a constituição, ainda que virtual, de uma comunidade real. Isso implica na dominação das máquinas pelas pessoas e não das pessoas pelas máquinas (a maneira de dom[in]ar as máquinas é aprender a usá-las). Também os homiletas, liturgos e hinólogos, deverão engajar-se na “alfaBITização”4 tecnológica. As comunidades celebrantes deverão ainda abrir-se às amplas possibilidades e estilos intelectuais; engajar-se no desenvolvimento de uma inteligência coletiva (os resultados da inteligência humana devem ser socializados para beneficiar a todos, bem como os problemas podem ser resolvidos coletivamente, inclusive no âmbito da fé); e convencer- se de que sua missão, e sua tarefa especificamente comunicativa, não se dão no isolamento, antes, só é viável se realizada coletivamente na inter-relação, na multi-relação e mesmo na trans-relação entre saberes, competências e experiências tanto cognitivas como vitais. Não será desejável uma única liturgia, ou uma única homilética, nem mesmo uma única hinologia, mas várias, interagindo e integrando saberes e sabores, prosa e poesia, harmonias e ritmos, palavras e ima- gens... Ou então, como alternativa, se pode aspirar pela concepção de uma única liturgia-homilética-hinologia, mas com muitas faces: sensível

3 sobre as grandes transformações pelas quais o mundo está passando, ver (DERTOU- ZOS, 1997). Compare-se com escritos de três décadas atrás: (RAP, 1970). Ver também (NEGROPONTE, 1995). 4 o neologismo “alfaBITo” associa ao conceito “alfabeto” o BIT, unidade de informação padrão no mundo da informática. Os internautas costumam zombar dos inexperientes nas questões digitais referindo-se a eles como “analfaBITs de pai e placa-mãe”.

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14luiz.indd 187 25/11/2010 11:52:41 e polisensorial, afetiva e comunal, dialógica e democrática, multi e co- inteligente, inter-multi-transdisciplinar, humanizada e humanizante. Não se deve esquecer que o acontecimento celebrativo se dá sem- pre como processo de construção e reconstrução memorial. Portanto, não seria demais repetir: o culto é, em parte, expectativa e, em parte, memória: é acontecimento, é instante, é alocução, é atuação, é status predicandi, é sedução em andamento, é silêncio em eloquência e som em persuasão; enfim, o culto é(!). Nisso está o seu fascínio, seu encanto. Por um pouco é palavra/gesto esperado-desejado; num átimo, torna-se palavra-gesto encarnado-experimentado, para logo a seguir submergir e ressurgir como memória sagrada, pela magia da misteriosa dança dos gestos sagrados e das palavras bem-ditas.

Referências

CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um em- preendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997. CASTELLS, M. A sociedade em rede. Tradução de MAJER, R. V. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CUNHA, M. D. N. “Vinho novo em odres velhos”: Um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. (2004). 347 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. DERTOUZOS, M. O que será: como o novo mundo da informação transformará nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. FERRÉS, J. Televisão subliminar: socializando através de comunicações desper- cebidas. Tradução de NEVES, E. R. B. A. Porto Alegre: Artmed, 1998. GABLER, N. Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. HOUAIS, A. Dicionário eletrônico Houais da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2001. NEGROPONTE, N. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. RAMOS, L. C. A Pregação na Idade Mídia: os desafios da sociedade do espe- táculo para a prática homilética contemporânea. (2005). 280 f. Tese (Doutorado em Ciências da Religião – Práxis e Sociedade), Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2005. RAP, H. R. Cibernética e teologia: o homem, Deus e o número. Petrópolis: Vozes, 1970.

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14luiz.indd 188 25/11/2010 11:52:41 As ferramentas perdidas da educação: tradução comentada [parte 1] The lost tools of learning: a commented translation [part 1] Las herramientas perdidas de la educación: la traducción anotada [parte 1]

Gabriele Greggersen

Resumo Dorothy Sayers, autora britânica de contos de detetive e especialista em me- dievalismo, brinda-nos com a transcrição de uma palestra sobre a educação medieval, por ela proferida em 1947, na Universidade de Oxford. Após uma crítica à escassez de bons escritores e bons debatedores, que saibam conduzir um debate, livre de falácias lógicas, erros gramaticais e de lógica, ela aborda o currículo das chamadas “artes liberais”, originária da Grécia Antiga destacando o “Trivium”, que antecedia o “Quadrivium” das disciplinas específicas. Tais discipli- nas são como “ferramentas” universais do estudo, que facilitam a aprendizagem, tornando-a mais prazerosa. Embora elas tenham se perdido ao longo da história, elas têm tudo para serem resgatadas e adaptadas ao contexto atual. Palavras-chave: Trivium; dialética; gramática; retórica.

Abstract Dorothy Sayers, a British authoress of detective stories and specialist Middle Ages, provides us with the transcription of a lecture on medieval education, given by in 1947 at Oxford University. After pointing out the shortage of good writers and good panelists, who are not able to conduct a debate, free of fallacies, grammati- cal and logic errors, she introduces the curriculum of the “liberal arts”, detaching the “Trivium”, which preceded the “Quadrivium” of the specific disciplines. Such disciplines are universal “tools” of the study, which facilitate the learning and to make it more enjoyable. Although they were lost throughout history, they have great chances to be redeemed and adapt them to the current context. Key-words: Trivium; dialectic; grammar; rhetoric.

Resumen Dorothy Sayers, autora Británica de cuentos de detective y especialista en me- dievalismo, nos ofrece la transcripción de una conferencia sobre la educación medieval, que ella profirió en 1947, en la Universiad de Oxford. Después de una crítica a la escasez de buenos escritores y buenos panelistas, que sepan con- ducirse en un debate, libre de falacias lógicas, errores gramaticales y de lógica, ella trata del curriculum de las llamadas "artes liberales" que se originaron en la Grecia Antigua, destacando el "Trivium", que antecedía al "Quadrivium" de las disciplinas específicas. Tales disciplinas son como "herramientas" universales de estudio, que facilitan el aprendizaje haciéndolo más placentero. Aunque se hayan perdido a lo largo de la historia, lo tienen todo para ser redimidas y adaptadas al actual contexto. Palabras-clave: Trivium; dialéctica; gramática; retórica.

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15gabriele.indd 189 25/11/2010 11:53:04 Introdução do tradutor

Gabriele Greggersen

Quando o mundo ocidental ainda chorava o saldo de destruição e de mortos deixado pela 2ª Guerra Mundial, e passava por uma profunda crise intelectual, emocional e religiosa, surgia “The Lost Tools of Learning”. Foi em 1947, em meio a uma sociedade espiritualmente angustiada e devas- tada, que Dorothy Sayers proferiu essa palestra ímpar sobre educação. Sayers nasceu em Oxford, em 1893, como filha de um bispo anglica- no, que também era diretor da escola pertencente à igreja. Na Inglaterra, que segue basicamente a mesma estrutura e funcionamento da educação americana, todas as escolas são públicas e gratuitas, financiadas por uma taxa cobrada de todos os cidadãos pelo governo, exceto as escolas especiais e confessionais, que também não recebem verbas públicas. Aprendeu latim e francês, especializando-se em línguas modernas no “Somerville College”, onde foi condecorada como primeira da classe. Em seguida, tornou-se uma das primeiras mulheres a ingressar na Universidade de Oxford, uma das mais antigas da história (século 12), na qual tornou-se autoridade em estudos medievais. Sua obra acadêmica mais comemorada foi a tradução da Divina Comédia de Dante, do latim para o inglês1, mas também se popularizou como escritora de contos de detetive, particularmente, os do seu personagem principal, o “detetive nas horas vagas”, “Lord Peter Wimsey”. Era, além disso, poetisa e escritora de peças teatrais, que se popularizaram bastante nos países de língua inglesa. Ela fazia parte do mesmo clube da consagrada escritora de contos de detetive, Agatha Christie, que chegou a presidir e também integrava outro grupo, os “Inklings”, em especial de C.S. Lewis, Charles Williams e T.S. Eliot. Ela também mantinha uma amizade pessoal e projetos em comum com os integrantes dos mesmos grupos. Como se pode ver no início da adaptação para o cinema de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas, a primeira da mundialmente famosa série de Crônicas de Nárnia de C.S. Lewis, a preocupação com as marcas deixadas pela guerra e seus destroços espirituais espalhados por toda Europa e Estados Unidos (sem falar do Japão e outros países envolvidos direta ou indiretamente) é um dos temas de debate comum a esses grupos. Eles atribuem à literatura, particularmente à literatura imaginativa, de mistério, ou romântica – dos mitos, contos de fada, e quem sabe dos nossos contos de cordel –, um grande potencial de cura de traumas e feridas, físicas, psicológicas e espirituais, deixadas pela história, tanto na vida pessoal, quanto em toda a coletividade. Outra bandeira desse rol, além da paixão pela literatura, era o com- bate à ideia amplamente disseminada naquele período – e que marca a pós-modernidade até os dias de hoje – de que tudo o que dissesse 1 N.T. A obra, que ficou inacabada, foi completada por sua discípula, Bárbara Reynolds, que também é escritora.

190 Gabriele Greggersen: As ferramentas perdidas da educação: tradução comentada [parte 1]

15gabriele.indd 190 25/11/2010 11:53:04 respeito ao passado fosse necessariamente superado e associado ao embotamento, ao tédio e à ingenuidade. Usavam também de sua força argumentativa para defender as bases de sua fé cristã, principalmente no que diz respeito à ética, na qual, afinal de contas, todas as sociedades ocidentais, autodenominadas “cristãs” se encontram fundamentadas, ao menos em tese. Entre os anos de 1924-25, Sayers trocou cartas com um ex-namora- do. Uma de suas críticas mais fortes, tanto ao “relativismo moral”, quanto ao seu oposto complementar, o “moralismo” de uma sociedade que perdeu de vista a fé e ética cristãs foi “The Devil is an English Gentleman” (O Diabo é um Gentleman Inglês). Em 1926, ela decidiu casar-se com um jornalista de nome “Captain” Oswald Atherton “Mac” Fleming, mais conhecido por “Atherton Fleming” que era divorciado e tinha dois filhos. Eles permaneceram casados até a morte repentina de Sayers, de ataque cardíaco, quando estava finalizando a sua tradução de Dante. Ambos eram escritores. Entretanto, devido a ferimentos na 1ª Grande Guerra, Fleming adoeceu a ponto de não poder mais escrever, de modo que passou a ser sustentado por Sayers, cujo sucesso estava to- mando proporções mirabolantes, ofuscando grande parte do seu trabalho. Entre as obras mais conhecidas de Sayers encontram-se “Strong Poison” (Veneno Forte) e “Gaudy Night” (Noite Assombrosa), um livro de suspense que retrata muito bem a sua própria história no mundo acadê- mico. O título é retirado de uma das obras de Shakespeare. A história tem por personagem central uma acadêmica, Hariet Vane, que era novelista. Como Sayers, ela teve que lutar contra o preconceito forjado em cartas anônimas e pichações nos muros da escola. Ela mesma é solicitada a colaborar, juntamente com o “Lord” Peter Wimsey, para a solução do crime do qual foi vítima, nesse caso, de chantagem. Muitos consideram essa obra, o primeiro conto de detetive “feminista” da história. Trata-se de uma narrativa marcada não apenas pelo mistério, mas também pela filosofia e luta pelos direitos da mulher, sem falar da “pitada” adicional do romance, ambientado na Inglaterra dos anos 1930. A história foi adaptada para a televisão e transformada em uma série em 1987 e em 2005 foi adaptado para o rádio BBC. Em 2006, foi transformada em peça teatral que estreou no Teatro “Lifeline Theatre” em Chicago. O enredo também foi aproveitado pela série americana “Diagno- sis: Murder” (Diagnóstico: Assassinato), que estreou em 2000. Suas obras podem ser encontradas ao redor do mundo entre os “clássicos”2 da literatura mundial, em que ela é colocada ao lado com obras de Alexandre Dumas, Charles Dickens, Júlio Verne, Jack London, e Mark Twain.3 2 N.T. Não me refiro aqui ao cânone oficial dos clássicos da literatura mundial, mas ao conceito mais popular dos autores que se mostraram dignos de tradução por editoras de algum destaque. 3 N.T. Como no caso do livro de sua autoria, Five Red Herrings. London: Nelson, 1971, que foi incluído numa série de clássicos como os citados.

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15gabriele.indd 191 25/11/2010 11:53:04 A autora também mereceu destaque em outro campo dominado pelos homens até os dias de hoje, o da teologia, com obras importantes como “The Mind of the Maker” (A Mente do Criador) e “The Man Born to be King” (O Homem nascido para ser Rei). Antes de deixar o/a leitor/a deliciar-se com a leveza do estilo e as surpresas que a autora reserva à mentalidade moderna, a cada parágrafo, nesse texto, nada convencional ou ortodoxo sobre educação, é preciso contextualizá-lo. Sugerimos assim, deixar fluir a leitura, suspendendo as armas do es- pírito de “suspeita”, que ainda subsiste no pensamento pós-moderno, per- mitindo que Sayers o “transporte” para o “mundo” da educação medieval.

As ferramentas perdidas da educação4 Dorothy Sayers (trad. Gabriele Greggersen)

Aceitar um convite para debater a educação, considerando minha curta experiência como professora, dispensa apologia. Mesmo porque esse é um tipo de comportamento aplaudido na atual efervescência de opiniões. Religiosos ventilam suas opiniões sobre a economia; biólogos, sobre a

4 N.T. Somente no título encontramos nosso primeiro desafio: Traduzir “learning” por estudo ou aprendizagem? Depois de pesquisar outras traduções livres existentes, che- gamos à conclusão de que as ferramentas às quais a autora se refere, são mais de estudo, do que já, de aprendizado, que é uma decorrência. O estudo, ao contrário da aprendizagem, pode ser manejado e submetido a ferramentas. Se há algo passível de manejo, é o estudo, e não o aprendizado, que sempre envolve uma dimensão de mistério e da imprevisibilidade, mesmo independente do estudo, qualquer que seja o método. Assim, The Lost Tools of Learning diz respeito mais à didática ou uma metodologia, mas entendida em um sentido ainda não divorciado da filosofia, de modo que “estudo” e/ou “aprendizado” podem ser entendidos sinônimos na palavra “learning”. Esse é um dos aspectos que cativam o/a leitor/a, particularmente o tradutor (mais do que o ouvinte original) desde o começo. A aprendizagem é o resultado desse “uso” (estudo) teórico e especulativo, em outras palavras, filosófico das ferramentas do saber. Não por acaso, além destas duas significações, de estudo e aprendizado, o inglês “learning” é sinônimo ainda de “acquire skill, knowledge” (adquirir habilidades ou conhecimento – HINDMARSH, 1987, p. 82). No Webster’s, (1999, p. 262) e no Houaiss (2003, p. 448) lemos: “estudo, cultura, saber, erudição, ciência; aprendizado, aprendizagem”. E, para surpresa do/a leitor/a desavisado/a, no dicionário de sinônimos do Word também encontramos wisdom (sabedoria). Isso aproxima learning do conceito Greco-judaico resgatado pelo historiador Werner Jaeger, em um dos clássicos da educação, Paideia, e mostra a preservação da complexidade e escopo do sentido dessa palavra complexa, que nós decidimos por tra- duzir, no título, por educação. Optamos por essa solução, uma vez que a autora limita o que se propõe a discutir, às “ferramentas” da educação, contidas no Trivium, sem deixar de mencionar, que além dessas “disciplinas” existem ainda os conteúdos propriamente ditos. Então, reservamo-nos o direito de variar a tradução da palavra learning, entre es- tudo, aprendizagem e educação, de acordo com o contexto. Vale notar que no alemão, o verbo lernen pode significar o estudo ou o aprendizado, dependendo do contexto. Já o substantivo gelernt, significa culto, estudado, erudito.

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15gabriele.indd 192 25/11/2010 11:53:05 metafísica; químicos inorgânicos, sobre teologia; indivíduos irrelevantes são apontados para cargos de alto nível técnico; e homens embotados e simplórios publicam nos tablóides, que Epstein e Picasso simplesmente não entendiam nada de arte. Até certo ponto, e desde que a crítica fosse feita com razoável modéstia, coisas assim são até admiráveis. A especia- lização excessiva nunca foi coisa boa. No caso da educação, o que não faltam são motivos para amadores se sentirem gabaritados para emitir opiniões. Pois, ainda que nem todos aqui sejamos educadores profissio- nais, todos já fomos alunos5 em algum momento da vida. E, mesmo se não tivermos aprendido nada – e, quem sabe, especialmente, se nunca tivermos estudado de verdade6 – nossa capacidade de contribuição para essa discussão será um valor potencial. Entretanto, é bem pouco provável que as reformas propostas aqui sejam, algum dia, levadas a sério. Ninguém: nem os parentes; nem os/ as professores/as de cursinhos vestibulares; nem as bancas acadêmicas; nem as bancadas de governo; nem os ministros da educação, lhes dariam um só minuto de atenção. Pois elas se resumem a isso: se quisermos formar uma sociedade de gente educada, preparada para preservar a sua liberdade intelectual em meio às pressões da sociedade moderna, teremos que voltar a roda do tempo quatro ou cinco séculos atrás, até fins da Idade Média. Teríamos que voltar ao preciso ponto em que a educação começou a perder de vista o seu real objetivo. Antes de me dispensarem, carimbando-me com o bastante apropriado rótulo de: reacionária, romântica medieval, laudator temporis acti (saudo- sista), ou qualquer outro lugar-comum que lhe vier à cabeça – peço-lhes o favor de ponderar uma ou duas questões bastante complexas que talvez ainda se encontrassem escondidas na face oculta das mentes de todos nós, e que só emergem ocasionalmente, dando ocasião a preocupação. Consideremos a tenra idade com a qual os jovens começavam a frequentar a escola nos tempos, vamos supor, da dinastia Tudor, depois da qual passavam a ser considerados prontos para assumir responsabi-

5 n.T. À primeira vista, consideramos a hipótese de usar, ao invés de alunos, que é mais comum no Brasil, pupilos, palavra já bastante esquecida e distorcida. Ao invés do dis- cípulo, afilhado e protegido; ou seja, o que é amparado e acudido por pessoa de maior autoridade e influência, o sentido pejorativo daquele órfão ou abandonado, que tem com outra pessoa, mais velha, por tutor parece predominar, razão pela qual não o usamos. Também optamos por não usar “estudantes”, por sua associação e limitação muitas vezes ao ensino superior. 6 n.T. Sayers parece estar aqui, valendo-se precisamente da ambiguidade comentada na nota anterior, usando de ironia, para deixar claro: mesmo quem não aprendeu nada com a escola que aí está, ou mesmo quem nunca teve a oportunidade de estudar com as ferramentas certas, tem uma contribuição a dar à educação. Com isso, mesmo sem ser entendida, Sayers prova sua intuição do sentido mais abrangente e inclusivo da educação, com toda a sua complexidade.

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15gabriele.indd 193 25/11/2010 11:53:05 lidade pela condução de seu próprio nariz. A partir daí, como encarar a ampliação artificial da formação infantil e juvenil até os anos de maturidade física, tão característica dos dias de hoje? Postergar ao máximo a hora de assumir responsabilidades traz consigo uma série infinita de transtornos psicológicos que podem até ser interessantes para o psiquiatra, mas que são de bem pouca serventia, ao indivíduo ou à sociedade. O principal argumento que se usa em favor do adiamento da idade de despedida da escola e da prorrogação da idade escolar é que hoje em dia haja muito mais para se estudar, do que na Idade Média. Isso em parte é verdade, mas não inteiramente. O menino e a menina7 de hoje, têm, sem dúvida, mais assunto8 para estudar, mas será que isso significa necessariamente que tenham mais conhecimento? Nunca lhe pareceu estranho ou lamentável que na atualidade, em que a quantidade de livros existente por toda a Europa ocidental é maior do que nunca, a suscetibilidade das pessoas à influência de anúncios e de propaganda em massa tenha crescido em proporções até então desconhecidas, ou sequer imaginadas? Você atribuiria isso ao mero fato físico de que a imprensa, o rádio e outros meios tivessem tornado a pro- paganda bem mais ágil e capaz de cobrir um vasto território? Ou será que você às vezes carrega a inquietante suspeita de que o produto dos métodos modernos de educação seja inferior ao que seja capaz de ser, em distinguir o fato da opinião; e o provado do plausível? Quem é que já não se irritou, ao acompanhar um debate entre adultos e pessoas supostamente responsáveis, com a extraordinária e generalizada incapacidade do debatedor de se ater às perguntas, ou de opor-se a elas, refutando os argumentos dos palestrantes de opiniões diferentes das dele? Ou será que você já ficou se pergun- tando sobre a incidência altíssima de assuntos irrelevantes surgidos

7 N.T. Sayers não se limita a esse cuidado de incluir o sexo feminino somente aqui, mas em todo o seu discurso, como o/a leitor/a haverá de observar. Isso é notável, se consi- derarmos que, pela falta de declinações masculinas e femininas no inglês ou mesmo de pronomes diferenciados quanto ao gênero, parece surpreendente a autora lembrar-se desse gesto inclusivo. E isso, muito antes da Paulo Freire ter inventado ou trazido esse cuidado e respeito para o discurso educacional brasileiro. 8 n.T. Essa palavra é muito utilizada em vários sentidos no texto. No dicionário Houaiss (2003, 766) encontramos “tópico, tema, assunto, matéria; objeto, motivo; [...] a mente [...], sujeito de conhecimento [...]; substância ou substrato de algo [...].” Hoje em dia, chamaríamos esses “subjects” mais de “conteúdos” como rezam os Parâmetros Cur- riculares Nacionais (PCN). Nos Parâmetros de Língua Portuguesa das Séries Iniciais (1ª a 4ª série), por exemplo, não encontramos a palavra “matéria”. Para isso, nota-se uma abundância de “assunto”, ao qual demos prioridade, e, um pouco mais modesta, de “conteúdo”. Daí que nos limitemos a essas duas palavras para “subject”. A palavra “tópico” é usada poucas vezes, mas muito ligada à “disciplina” de Língua Portuguesa, que também são usadas poucas vezes, mas sempre no sentido técnico da disciplina. Então, mais uma vez, procuraremos nos adaptar ao contexto.

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15gabriele.indd 194 25/11/2010 11:53:05 em encontros de conselhos, e sobre a incrível escassez de pessoas capazes de presidir comissões? Quem é que, ao refletir sobre isso e lhe ocorrer que a maioria dos assuntos públicos são decididos precisa- mente nesses debates e comissões, não sente um aperto no coração? E quem já não acompanhou uma discussão nos jornais ou outro meio de comunicação qualquer dando-se conta das muitas vezes em que os escri- tores deixam de definir os termos que usam? Ou notou o quanto é frequente, na hipótese de alguém definir os termos que está usando, o outro responder, pressupondo na sua resposta, que o primeiro estava usando esses termos em sentido exatamente oposto àquele? Você já se sentiu honestamente preocupado com tantos usos de linguagem9 gramaticalmente errada10? E, em caso afirmativo, você se sente incomodado, por sua deselegância ou porque receia o grave mal-entendido em que isso poderia resultar? Quem é que já não teve a impressão de que os jovens, assim que completado o período escolar, não apenas se esquecem da maior parte do que aprenderam (já era de se esperar), mas também se esquecem, ou revelam nunca ter aprendido de fato, como lidar por si mesmos com um conteúdo novo? Você lamenta com frequência, ver homens e mulheres adultos, incapazes de distinguir um bom livro, do ponto de vista acadêmi- co, e apropriadamente indexado, de um, que não chega a tanto? Ou que não saibam como manusear um catálogo de biblioteca? Ou que, quando estiverem face a face com um livro de referência, sejam flagrados por uma curiosa incapacidade de extrair dele os trechos relevantes para o problema que seja de seu particular interesse? Quantas vezes você já topou com gente para quem, por toda vida, “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra”, separada de todas as demais, como se estivessem separadas em compartimentos estanques? Tanto, que elas sentem grande dificuldade em estabelecer associação mental entre, digamos, a álgebra e a ficção policial, entre o saneamento básico e o preço de salmão – ou, de maneira mais genérica, entre esferas distintas como as do conhecimento filosófico e o econômico, ou o químico e as artes?11

9 N.T. A palavra language do inglês é particularmente difícil de traduzir, uma vez que ela pode significar língua, que podemos entender como um idioma específico, e linguagem, pela qual nos referimos usualmente às línguas em geral, no seu sentido linguístico- literário. A distinção já provocou várias discussões entre os linguistas e literatos, à seme- lhança do que acontece com aprendizado e aprendizagem, mas como essas discussões não são nosso foco aqui, optamos mais uma vez, pelo uso mais comum no Brasil. 10 n.T. A autora provavelmente não descarta com isso a possibilidade de reformas na orto- grafia, como as que vivemos recentemente no Brasil, já que era conhecedora de várias ortografias de várias línguas em várias épocas. 11 n.T. Mais uma vez, Sayers parece se antecipar a seu tempo (avant lettre), quando se refere a algo que os pedagogos costumam chamar de interdisciplinaridade, mesmo que entendendo coisas bem diversas sob essa palavra.

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15gabriele.indd 195 25/11/2010 11:53:05 Já se sentiu incomodado com certas coisas escritas por homens e mulheres adultos para leitores e leitoras adultos? Um biólogo bastante co- nhecido, que escreve para uma revista semanal disse que “Um argumento contra a existência de um Criador” (acho que ele colocou de forma ainda mais forte, mas já que eu, infelizmente, perdi a referência, parafrasearei seu raciocínio da forma mais agressiva possível) – “... um argumento contra a existência de um Criador é que os escritores que publicam em massa, conseguem produzir ao seu bel prazer, o mesmo tipo de diversi- dade produzida pela seleção natural”. Não ficamos tentados a dizer que este é, antes, um argumento a favor da existência de um Criador? Na verdade, é claro que isso não prova nem uma coisa nem outra; tudo o que essa argumentação prova é que as mesmas causas materiais (seja a recombinação dos cromossomos, pelo seu cruzamento e assim por diante) sejam suficientes para explicar toda diversidade observável no mundo. Isso seria o mesmo que dizer que o mesmo conjunto de notas musicais combinadas entre si, sejam a causa material capaz de explicar tanto a Sonata ao Luar de Beethoven, quanto os sons produzidos por um gatinho andando sobre as teclas de um piano. No entanto, tal comportamento do gato não prova nem contesta a existência de Beethoven; tudo que se prova pelo argumento do biólogo é que ele não era capaz de distinguir entre uma causa material e uma causa final.12 Eis aqui outro exemplo retirado de fonte não menos acadêmica, a primeira página do Suplemento Literário, nada mais, nada menos do que o Times:

“O Francês Alfred Epinas, afirmou que certas espécies (por exemplo, formigas e vespas) só são capazes de encarar os horrores da vida em associação com a morte”. Não sei bem o que o francês quis dizer com isso, mas o que o repórter inglês diz que ele disse é que é um absurdo flagrante. Não temos como saber, se a formiga encara a vida com horror ou não, nem, em que sentido se pode dizer que a vespa que é esmagada contra uma vidraça “enfrenta” a morte com “horror”. O objeto do artigo me parece ser antes o comportamento humano nas massas; assim, os motivos humanos foram transferidos, de forma muito sutil, da proposta inicial, para o caso, a que deveria dar suporte. Assim, o argumento acaba tomando por pressuposto, precisamente o que pretendia provar – fato este que se tornaria logo patente se fosse apresentado num silogismo formal. Este é um reles e aleatório exemplo de um vício que permeia livros inteiros – em especial livros escritos por homens da ciência, [que se metem] a escrever sobre temas metafísicos.

12 N.T. Em filosofia, Aristóteles foi quem fundou a teoria da causalidade, ou da causa e do efeito. Segundo ele, existem apenas quatro causas de todos os fenômenos da mais direta, à mais conclusiva: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. A causa material é o material em que essa coisa consiste (por exemplo, a causa material de uma cadeira pode ser o PVC ou o alumínio). Já a causa final, que também está ligada à sua teleologia, é o objetivo ou finalidade ou propósito ou de uma coisa, como por exemplo, a causa final do estudo é o aprendizado.

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15gabriele.indd 196 25/11/2010 11:53:05 Outro artigo da mesma edição do Suplemento Literário do Times, exemplar nesta coleção aleatória de pensamentos aflitivos – desta vez oriunda da resenha da obra Algumas Tarefas para a Educação, escrita por Sir Richard Livingstone, diz: “[O autor] enfatiza, mais de uma vez, o valor de um estudo intensivo de pelo menos uma matéria, se quer captar o significado desse conhecimento em um nível de precisão e persistência suficientes para alcançá-lo. Todavia, noutro ponto, reconhece plenamente o angustiante fato de que uma pessoa pode chegar a se tornar mestre num determinado campo, sem demonstrar capacidade crítica mais refinada, do que qualquer vizinho de outro campo qualquer; ele até se lembra do que aprendeu, mas se esquece por completo de como foi que aprendeu”. Peço a sua atenção particular para a última sentença, que oferece uma explicação a que o escritor se refere propriamente quando fala do “fato angustiante”, de que as habilidades intelectuais a nós conferidas pela nossa educação, não sejam imediatamente transferíveis13 para outros campos14, diferentes daqueles, nos quais nós as adquirimos: “ele se lembra do que aprendeu, mas se esquece por completo de como aprendeu”. O grande defeito da nossa educação atual – defeito este detectável por meio de todos os inquietantes sintomas do problema que mencionei – não é que, embora nós muitas vezes tenhamos sucesso em ensinar “conteúdos” aos/às nossos/as alunos/as, falhamos lamentável e inteira- mente em ensinar-lhes como pensar; eles/elas aprendem tudo, menos a arte de aprender. É como se tivéssemos ensinado uma criança tocar “O Ferreiro Harmonioso” ao piano, mas de maneira exclusivamente mecânica, sem nunca ter-lhe ensinado a escala musical ou a ler uma partitura. Desse modo, por mais que ela tivesse memorizado “O Ferreiro Harmonioso”, no

13 n.T. A crença de que conhecimentos possam ser transferidos de um campo ao outro se assenta no pressuposto de que conhecimentos e habilidades sejam, de fato, transferí- veis. Quando se fala em “educar” como “transmitir” (ou pior “passar”) conhecimentos, vai-se mais longe, pressupondo que o conhecimento possa ser transferido até de uma mente para a outra, numa espécie de telepatia, tão presente no ensino tradicional, mas também no comportamentalismo, foi amplamente refutada por educadores, como Sayers, que defendem a importância do aluno não ser passivo no processo, mas sim, que vá conquistando uma crescente autonomia. De acordo com Berman (2007, p. 38), o que pode ser transferido, sim, pela tradução é o sentido. Mas mesmo esse processo tem suas limitações, uma vez que “vastos setores da escrita só exigem uma transferência de sentido. Cada cultura deve saber se apropriar das produções de sentido estrangeiras. Mas isso não concerne às ‘obras’. Evidentemente, as ‘obras’ fazem sentido e querem a transmissão de seu sentido. Elas são mesmo uma formidável concentração de sentido. Mas nelas, o sentido está condensado de maneira tão infinita que excede toda possibi- lidade de captação”. 14 n.T. Piaget chamava esse fenômeno de transferência de “raciocínio reversível”, conside- rado um dos indícios de alcance do estágio máximo de desenvolvimento cognitivo como um todo e que acontece em cada momento de real “superação” de um estágio para outro, ou seja, de real acomodação daquele saber, para além da mera assimilação.

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15gabriele.indd 197 25/11/2010 11:53:05 entanto, não tivesse a mínima noção de como, a partir daí, encarar outra música como “A Última Rosa do Verão”. Por que eu digo “como se”? Em certos campos das artes e dos trabalhos manuais, é precisamente isso que fazemos – esperamos que uma criança “se expresse” com o pincel, antes mesmo de ensinar-lhe a lidar com cores e com o [próprio] pincel. Há uma corrente de pensamento que defende esta como a maneira mais correta de sequer começar a trabalhar. Em contrapartida, entenda bem: este já não é o método preferido por um artista treinado que está empe- nhado em ensinar-se a si mesmo um novo método de pintura. Ele, que descobriu pela experiência a melhor forma de economizar esforços para pegar o jeito da coisa, começará rabiscando em um rascunho qualquer, a fim de “aguçar a sensibilidade em relação à ferramenta”.

O currículo da educação medieval Observemos a estrutura da educação medieval mais de perto agora – ou seja, o currículo seguido por essas escolas. Não importa, para o momento, distinguir aquele destinado a crianças pequenas daquele pen- sado para estudantes mais velhos, nem a sua duração esperada. O que importa é a luz que ele lança sobre o que o homem medieval supunha ser o objeto e a ordem certa do processo educacional. O currículo era dividido em duas partes: o Trivium e o Quadrivium. A segunda parte – o Quadrivium – era composta por “conteúdos”, que não nos preocupam por ora. O que nos interessa aqui é discutir o Trivium, que precedia o Quadrivium e era composto por disciplinas consideradas prerrogativas. Consistia ele de três partes: Gramática, Dialética e Retó- rica, nessa ordem. Agora, a primeira coisa notória é que duas destas “disciplinas”, não importa em que ordem, não são o que chamaríamos de “disciplinas”: elas não passam de métodos de como lidar com as disciplinas de conteúdo. A Gramática é uma “disciplina” de fato, no sentido de que ela significa o aprendizado decisivo de um idioma – naquela época, a gramática pres- supunha o aprendizado do Latim. Mas a língua em si é simplesmente o meio pelo qual se expressa o pensamento. Na verdade, o Trivium todo tinha a intenção de ensinar ao aluno o uso apropriado das ferramentas [de estudo] da educação, antes que ele começasse a aplicá-las às “ma- térias” [propriamente ditas]. Primeiro ele aprendia o uso apropriado das ferramentas; não apenas como fazer um pedido no restaurante, numa língua estrangeira, mas a estrutura da língua, e assim, da própria lin- guagem – em que situação se encontrava, como se constituiu, e como funcionava. Depois, ele aprendia a usar o idioma; como definir os seus termos e elaborar asserções mais refinadas; como construir um argumento e como detectar falácias em um argumento. Em outras palavras, a gra-

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15gabriele.indd 198 25/11/2010 11:53:05 mática abarcava a lógica e o uso do senso crítico. Em terceiro lugar, ele aprendia a se expressar usando aquela língua – a como dizer o que ele tinha para dizer de forma elegante e convincente. Ao final dessa fase, solicitava-se ao aluno que elaborasse uma mo- nografia sobre algum tema apresentado por seus mestres ou proposto por ele mesmo, e, em seguida, a sua tese era submetida à crítica da comunidade acadêmica. A essa altura ele tinha que dar mostras de que tinha aprendido tudo – ou entraria em desespero – não apenas a escrever um ensaio15 ou trabalho acadêmico, mas também a falar em público de maneira sonora e inteligente e a fazer a defesa, sem perder a pose. É bem verdade que ainda subsistem traços e resquícios da tradi- ção medieval no currículo das escolas comuns de hoje, ou de quando foram resgatados [em algum momento da história]16. Algum conhe- cimento de gramática ainda é exigido quando se estuda uma língua estrangeira – talvez eu devesse dizer “voltou a ser necessário.” Na minha época mesmo, passamos por uma fase assim, quando o ensino de declinações e conjugações era criticado, passando-se a dar prefe- rência a abordar esses assuntos, à medida que iam surgindo. O debate sociológico florescia nas escolas; vários ensaios foram escritos; frisan- do a necessidade da “livre expressão”, de forma um tanto exagerada. Mas essas atividades são cultivadas de forma mais ou menos isola- das, como se pertencessem a algum departamento isolado, tratadas como supérfluas, ao invés de formarem uma estrutura coerente de exercício mental, à qual todas as demais “disciplinas” estejam subordinadas. No caso da gramática, ela foi atribuída ao “departamento” de línguas estran- geiras. E a escrita de ensaios pertence a um “departamento” de “Inglês”; ao passo que a dialética acabou praticamente divorciada do restante do currículo, e é frequentemente praticada de maneira assistemática e que foge ao programático, por meio da prática exercícios extracurriculares, cuja relação com o que chamamos de estudo é bem distante. Tomada de forma ampla, a enorme discrepância de ênfases en- tre essas duas concepções abriga algo de bom: a educação moderna concentra-se em “ensinar conteúdos,” enquanto os métodos de raciocí- nio, argumentação e expressão de conclusões, concentrada em primeiro

15 n.T. A modalidade de ensaio não é costumeira no Brasil, em que as escolas técnicas, faculdades e universidades costumam aceitar apenas monografias, dissertações e teses como trabalhos de final de curso e/ou disciplina. 16 n.T. Um desses momentos deu-se com a Reforma, em que Martinho Lutero e João Cal- vino, cada um à sua maneira, beberam da sabedoria e do currículo das artes liberais, através de um Agostinho ou dos próprios clássicos gregos. Na Academia de Genebra, fundada por Calvino, esse currículo não apenas era praticado, como atraiu estudantes de todo o mundo e de todas as áreas, por sua proposta universalizante.

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15gabriele.indd 199 25/11/2010 11:53:05 aprender a forjar e a lidar com as ferramentas [de estudo] da educação, independentemente do assunto em pauta, era deixada para os estudiosos, que gozavam de uma educação mais medieval. Esse último caso pode ser comparado a pegar uma peça bruta e trabalhar nela até que o resultado do uso da ferramenta se transforme como que em uma segunda natureza. Que é preciso ter algum tipo de “conteúdo”, ninguém duvida. Não se pode aprender a teoria da gramática de um idioma sem aprender o próprio idioma, ou aprender a argumentar e falar em público, sem falar sobre ne- nhum assunto em particular. Os temas de debate da Idade Média vinham em grande parte da teologia, ou da ética e da história da Antiguidade. De fato, muitas vezes, eles se tornavam jocosos, especialmente perto do final desse período. Os absurdos aberrantes do argumento escolástico desse período, que tanto enervavam a Milton, são, até hoje motivos de chacota e riso. Mas não saberia dizer se esses temas eram mais tolos e prosaicos do que os temas escolhidos nos dias de hoje para a escrita “dissertativa”. Atrevo-me a dizer que ficamos um tanto entediados com propostas de redação do tipo “como foram as minhas férias” e por aí afora. Mas grande parte desses gracejos é indébita, na medida em que se perderam de vista o objetivo e objeto da tese em debate. Certa vez, um palestrante demagogo entreteve a sua audiência no “Brains Trust”17 (expondo a memória de Charles Williams à fúria da plateia) ao afirmar que, na Idade Média, a discussão sobre quantos arcanjos18 seriam capazes de dançar na ponta de uma agulha era uma “questão de fé”. Espero não ter que defender que isso jamais foi [mera] questão de fé; tratava-se antes de um exercício de senso crítico, cujo objeto era a natureza da substância angelical: seriam os anjos seres materiais? Em caso afirmativo, poderiam ocupar lugar no espaço? A res- posta usualmente aceita como correta era que os anjos são inteligências puras; não materiais, mas limitadas, de modo que eles podem ter um lugar no espaço, porém não podem ter extensão19. Podemos fazer uma

17 N.T. O Brains Trust era nome popular e informal para a radio britânica BBC e que mais tarde se tornou o programa de televisão, marca registrada do Reino Unido ao longo dos anos 1940 e 1950. 18 N.T. O estudo dos anjos, angiologia é uma parte da teologia, campo do conhecimento só recentemente reconhecido pelo governo federal brasileiro como digno de reconheci- mento oficial como “acadêmico”. Isso mostra o caráter temporão da política educacional brasileira, principalmente no ensino superior, uma vez que a teologia está na raiz de grande parte dos pensadores e instituições acadêmicas de renome por todo o mundo. Nas livrarias, na internet, na mídia em geral, e, portanto, na cabeça da maior parte das pessoas, esse assunto está atrelado ao esoterismo e autoajuda, e não, à ciência. 19 N.T. De acordo com Abanano (2007, p. 487), extensão é o “caráter fundamental dos corpos físicos dotados das três dimensões do espaço. Com base nesse caráter Aristóteles definiu o corpo”.

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15gabriele.indd 200 25/11/2010 11:53:05 analogia disso com o pensamento humano, que também não é material e limitado. Assim, se o seu pensamento está concentrado numa coisa – vamos supor, na ponta de uma agulha – ele estará lá, no sentido de que não está em nenhum outro lugar. Por mais que esteja “lá”, ele não ocupa espaço algum, e não há nada que impeça um número infinito de pensamentos de diversas pessoas se concentrem na mesma ponta de agulha, ao mesmo tempo. Espero não ter que lembrá-los que isso nunca foi uma “questão de fé”; tratava-se, antes, de um exercício de debate, cujo tema era a substância da natureza angelical. Teriam os anjos uma substância material e, em caso positivo, ocupariam eles algum espaço? A resposta usualmente aceita como correta é, penso eu, que os anjos são inteligências puras; não materiais, mas limitadas, de modo que eles podem ser localizados no espaço, mas não têm extensão. Pode-se fazer uma analogia disso ao pensamento humano, que também é similarmente não material e limitado. Assim, se o seu pensamento está concentrado em uma só coisa – digamos, a ponta de uma agulha – ele está lá, no sentido em que não está em nenhum outro lugar; mas embora ele es- tivesse “lá”, ele não ocupa espaço ali, e nada impede que um número infinito de pensamentos de pessoas diferentes se concentrem na mesma ponta de agulha, ao mesmo tempo. O tema em debate pode ser enca- rado, portanto, como sendo a distinção entre a localização e a extensão no espaço; acontece que o tema escolhido para suscitar tal debate foi a natureza dos anjos (embora, como vimos, pudesse ter sido qualquer ou- tro); a lição prática a ser tirada desse debate é a de não se usar palavras como “lá”, num sentido descuidado e não científico, sem especificar, se o que se quer dizer é que “está lá” ou que está “ocupando espaço lá”. A paixão medieval pela discussão do “sexo de anjos”20 sempre foi alvo de chacota, mas quando vejo o uso abusivo e petulante de expres- sões controversas, com conotação ambígua e de sentido diverso, seja por escrito, seja em público, sinto o desejo no fundo do coração de ver cada leitor/a e cada ouvinte “armado” de forma tão defensiva21 pela sua educação, que esteja em condições de contestar: “distinguo”22.

20 n.T. Embora “hair-splitting” fosse uma expressão associada à pontualidade, julgamos que o contexto merecia um equivalente, em termos de aspecto enfadonho, insosso e moralista. 21 n.T. A expressão paradoxal “armado de forma defensiva”, que lembra a expressão estar na defensiva, tem valor negativo na sociedade moderna ocidental. Mas o adjetivo “defensivo” tem recentemente sido resgatado pela educação contra a violência no trânsito, principal- mente nos grandes centros urbanos. As autoescolas falam em “direção defensiva”; mas mesmo sem policiais de todos os tipos recomendam a não reação a assaltos; os educadores nas escolas são orientados a tomar medidas defensivas e preventivas contra a violência escolar, que tem crescido assustadoramente, ao invés de medidas repressivas. 22 n.T. A palavra é derivada de dis-+ stinguere, do latim, que significa distinguir, discernir. Essa palavra parece ter, no latim, o mesmo efeito que a expressão “Eureka!”, do grego, ou

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15gabriele.indd 201 25/11/2010 11:53:05 Pois nós nos damos ao luxo de deixar nossos jovens, rapazes e moças, saírem desarmados, em tempos em que uma “armadura” nunca foi mais necessária.23 A partir do momento em que os ensinamos a ler, acabamos deixando-os à mercê da palavra impressa. Com a invenção do rádio e do cinema, temos a garantia de que nenhuma aversão à leitura os livrará de um incessante bombardeio de palavras, palavras e mais palavras. Eles não conhecem o significado dessas palavras; eles não sabem manter distância delas, nem desarmá-las, nem repudiá-las; são verdadeiras “reféns emocionais” das palavras, ao invés de serem os seus mestres, pelo uso de suas faculdades mentais. Não entendo porque é que nós que, em 1940, nos escandalizamos de ver homens sendo destacados para lutar contra tanques, armados de metralhadoras, não nos escandali- zamos de ver jovens, rapazes e moças, destacados para o mundo, para lutar contra a propaganda em massa, com um conhecimento limitado e superficial de “conteúdos”; e ao vermos classes sociais e nações inteiras se deixando hipnotizar pelas artimanhas do Flautista de Hamelin, temos a arrojo de nos espantar. Damos esmolas para a educação para provar que lhe damos importância – por meio do trabalho voluntário e apenas ocasional, ou pequenas doações em dinheiro; nós prorrogamos a idade para a finalização dos estudos, e planejamos a construção de escolas maiores e melhores; os/as professores/as escravizam-se deliberadamente, seja durante ou fora do horário de aulas; e, no entanto, pelo que vejo a devoção de todo esse esforço é amplamente frustrada, devido ao fato de termos perdido as ferramentas de estudo da educação, e na falta delas, acabamos realizando um serviço malfeito e desconjuntado.

seja, “descobri!”, o que em filosofia e na ciência em geral, é sinal de “insight”. Na filosofia clássica, esse fenômeno é um dos frutos da virtude da sabedoria e discernimento das coisas. Em outras palavras, para se passar por uma experiência como essa, é necessá- rio, usando uma analogia bíblica, saber “separar o joio do trigo”, que é característico da sabedoria. A autora toca de leve aqui novamente na questão do elitismo na educação. Ela confessa o “desejo” profundo por uma educação mais “defensiva” para toda e qualquer pessoa, principalmente considerando o assédio moral que enfrenta na sociedade industrial e capitalista, mostra sua postura favorável à democratização da educação. Mas não de uma educação qualquer, e sim, daquela que era (e ainda é) privilégio das elites de outrora. 23 n.T. É claro que a autora se refere aqui aos tempos de guerra. Mas a nosso ver, os tempos de hoje exigem ainda mais esse preparo defensivo, numa sociedade cada vez mais agressiva e cuja agressividade é muitas vezes canalizada e expressa, de todas as maneiras possíveis, nas escolas.

202 Gabriele Greggersen: As ferramentas perdidas da educação: tradução comentada [parte 1]

15gabriele.indd 202 25/11/2010 11:53:05 Nota do editor: na próxima edição da revista Caminhando, vol. 16, n .1 (1-2011) segue a segunda parte da tradução do texto com os capítulos Que fazer? O estágio da gramática O estágio da lógica Em defesa do Trivium.

Referências

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BERMAN, A. A Tradução e a Letra. Rio de Janeiro: 7letras/PGET, 2007. CARDIM, A. Novo Webster’s: Dicionário Universitário. 7. ed., Rio de Ja- neiro: Record, 2008. HART, R. D. Increasing Accademic Achievement with the Trivium of Clas- sical Educacion. Linconl – NE: Iuniverse, 2006. Disponível em: < http:// books.google.com.br/ >. Acesso em: 26 mar.2010. HINDMARSH, R. Cambridge English Lexicon. 3. ed. – Cambridge: Cam- bridge University Press, 1987. HOUAISS, A. (ed.), CARDIM, I. (co-ed). Dicionário Inglês-Português. 14. ed. atual. Rio de Janeiro: Record, 2003. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros de Língua Portuguesa das Séries Iniciais (1ª a 4ª série). Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2010. SAYERS, D. L. The lost tools of learning: paper apresentado em um curso de férias sobre educação, Oxford, 1947 / by Dorothy L. Sayers. Methuen, London: 1948. Disponível em: < http://www.gbt.org/text/sayers.html >. Acesso em: 01 abr. 2010. ______Five Red Herings. London: Nelson, 1971. SCHAKEL. “Faith and Imagination”. Disponível em: < http://hope.edu/ academic/english/schakel/tillwehavefaces/contents.htm >. Acesso em: 28 mar. 2010.

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15gabriele.indd 203 25/11/2010 11:53:05 15gabriele.indd 204 25/11/2010 11:53:05 Documentos e Declarações

16landner.indd 205 25/11/2010 11:53:30 “Que ninguém pense em fazer todos os homens iguais”: uma reação meto- dista brasileira de 1910 ao Congresso em Edimburgo

“Let no one think to make all men equal”: a Brazilian Methodist reaction from 1910 concern- ing the Congress of Edinburgh

“Que nadie piense hacer todos los hombres iguales”: una reacción Metodista brasileña en relación a el Congreso in Edimburgo

J. M. Lander; A. Cardoso da Fonseca e Helmut Renders

206 Lander; Fonseca; Renders: “Que ninguém pense em fazer todos os homens iguais”

16landner.indd 206 25/11/2010 11:53:31 A Unidade J. M. Lander e A. Cardoso da Fonseca

A oração de Christo, a aspiração do crente, e o esforço da Egreja, é pela unidade dos fieis. Tanto queria a Egreja alcançar essa unidade, que a Commissão organizadora do grande Congresso Missionario de Edimburgh convidou as Egrejas Gregas e Romana para nelle tomarem parte. (Essas Egrejas, comtudo, – dizemos por parenthese – declinaram o convite). Para muitos é lastimavel o numero das divisões ou seitas, no meio dos Protestantes. Para os pagãos (não-christãos), as diferenças histori- cas, seculares e, como parece, fundamentaes, entre os grandes ramos da Egreja Christã, são um tropeço e um escandalo. A unidade da Egreja, pois, é uma questão de actualidade, é um assumpto de palpitante interesse. Sobre a materia queremos dizer duas palavras: 1) Que os de fóra augmentam a importancia das differenças na Egreja, e 2) Que muitos de nós esperamos a unidade por um processo im- proprio. As nossas differenças pertencem, principalmente, ás coisas visiveis: a fórma das vestes, dos sacramentos, das palavras, etc. No fundo d´alma, no espirito e no coração, as differenças são menos importantes. Alguma diversidade, porém, talvez nos seja conveniente, si não ne- cessaria. Si olharmos, em horizontes largos, ao redor de nós, veremos que a lei do universo é revelada na phrase: Unidade com diversidade. E, si considerarmos as grandes aggremiações da humanidade, para o governo, a defeza, a instrucção, a salvação, etc., notaremos que, como por necessidade, divide-se e subdivide-se por todos os lados. Para o governo, temos o estado; mas, qual o paiz que tem uma só divisão (quer seja provincia, departamento, cantão, etc.)? Como, por exem- plo, poderia ser o Brazil um só estado? Como poderia qualquer estado ter um só municipio ? Ou qual o municipio com um só districto, etc., etc? Para a defeza, temos o exercito e a armada; e o exercito tem infan- teria, e artilheria, e cavallaria, e engenharia, o departamento de saude, de estatistica, de fornecimentos, de arsenaes, etc. E, a armada, egualmente, se subdivide em tantas e tantas repartições diversas. Para a instrucção do povo, não poderia haver uma só escola, ou escolas de um só curso. Multiplicidade e variedade, é a exigencia peda- gogica de todo o paiz grande e civilizado. Para a salvação do mundo, não é de admirar, portanto, que na orga- nização da Egreja, haja tambem diversidade, subdivisões e differenças.

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16landner.indd 207 25/11/2010 11:53:31 Levará muito tempo, para a Europa ser um só paiz, ou o Brazil ter um só estado, ou a França ser uma só cidade. Tambem existem differenças nas escolas de philosophia, medicina, etc. Por estas e muitas outras considerações, vemos que, si há opprobrio nas diferenças, esse opprobrio deve cahir sobre quasi tudo que e humano; ao menos, não toca exclusivamente na religião e na egreja. Por outro, as differenças são naturaes no terreno da opinião, e pódem ser proveitosas. (p. 1 / p. 2) Em segundo logar, havemos de alcançar a unidade almejada, não por organização e auctoridade, porém por natureza; não tanto por con- venções, congressos, regulamentos, etc., como pela vida natural, e es- piritual; não por esforço propositado, mas por natureza inconsciente. Onde quer que formos, a rosa é rosa, rainha do jardim. Em todos os climas e paizes, em todos os jardins e canteiros, verifica-se a unidade desta especie de plantas. Agora, as rosas nunca celebraram um pacto, nunca tiveram uma assembléa geral ou internacional; ellas não têm leis e regulamentos para se dirigirem. E´ da natureza dessa planta ser rosa. Os christãos pódem apprender a licção que Deus nos ensina pelo seu “lírio do campo” e pela “rosa de Saron”. A unidade que Christo de- seja não será união organica, nem conformidade ecclesiastica, porém semelhança da natureza. Essa semelhança será alcançada, não por fazerem-se todos os crentes methodistas, romanistas, lutheranos, ou greguistas, – mas sim christãos. Nunca acontecerá que todos os brazileiros sejam gauchos, ou nor- tistas, ou cariocas, ou mineiros. Isso será impossivel, isso nem será de- sejavel. Esperamos que todo o cidadão seja uma coisa mais importante, mais nobre, mais grandiosa, – que seja brazileiro de todo o coração! Quando todo o crente tiver a mente do Mestre, o caracter de Chris- to, o proposito de Deus, resultará uma semelhança, uma egualdade de natureza; – resultará a unidade christã. Qua faremos pois? Esforcemo-nos por chegar á altura do varão perfeito em Christo Jesus, purifiquemo-nos das imperfeições da carne, imitemos o Mestre, bebamos do seu Espirito, façamos a vontade do Pae; e um dia, sem sa- bermos, acharemos no caracter de todo crente aquelles traços distinctivos do Pae celeste, seremos semelhantes, como irmãos, pertenceremos á mesma familia – familia divina. Que ninguém pense em fazer todos os homens iguaes a si próprio; mas sejamos transformados na imagem daquelle Varão perfeito que nos salvou! Na sua semelhança chegaremos á unidade christã.

208 Lander; Fonseca; Renders: “Que ninguém pense em fazer todos os homens iguais”

16landner.indd 208 25/11/2010 11:53:31 Comentário Helmut Renders

No ano das celebrações do centenário da conferência missionária de Edimburgo publicamos este texto de dezembro de 1910, ou seja, pu- blicado meio ano depois da conferência. Como o artigo não é assinado, supomos que respondam por ele os redatores do Expositor Cristão da época, J. M. Lander e A. Cardoso da Fonseca. Comentamos em seguida o texto e destacamos alguns itens de interesse. Os autores publicam que tanto a Igreja Católica como a Igreja Ortodoxa teriam rejeitado um convite para a conferência. Com certeza John Raleigh Mott manteve contatos com ambas as igrejas durante as suas viagens de- pois do congresso (MEWS, 2004, p. 380). Entretanto, Gairdner ([1911?], p. 17-26), no capítulo “A preparação”, não menciona um convite para igrejas não protestantes ou anglicanas, e usa a expressão “igreja católica” durante tudo seu livro no sentido de “universal” ([1911?], p. 7, 34, 112, 150). Com uma única exceção em qual delegados expressaram a sua esperança de uma futura colaboração com a Igreja Católica Romana ou lembraram que nenhuma igreja deve ser simplesmente identificada com a sua liderança:

Eu posso dar testemunho”, disse um delegado, “do fato de que é possível para nós cooperar com a Igreja Católica Romana de uma maneira muito prática, e lembre-se que a Igreja Católica Romana não se reduz ao Vaticano ou às diferentes hierarquias, mas à grande massa de pessoas devotas com as quais estamos constantemente em contato. [...] “Anseio pelo momento em que veremos uma nova Conferência, e quando a Igreja Grega e a Igreja Católica Romana falarão conosco sobre todos os temas que envolvem o serviço de Cristo (GAIRDNER, ([1911?], p. 199 e 200). Visto na luz da discussão depois que Edimburgo levou à Conferên- cia Missionária de Panamá de 1916 o comentário representa talvez um posicionamento contra a proposta de incluir a Igreja Católica no corpus christianum e considerar, assim, América Latina como cristã (Cf. MEN- DONÇA; FILHO, p. 31-32). O argumento dos redatores seria então que elas talvez fizessem parte da Igreja Cristã, mas, praticamente, ter-se- iam autoexcluídas da colaboração missionária1. Entretanto, os autores

1 Segundo Mendonça (2005, p. 55) o objetivo inicial foi somente alcançado em parte: “A política do pan-americanismo, provocada pelo presidente norte-americano James Monroe (1817-25), não desejava desagradar os países latino-americanos, todos católicos, alguns ainda mantendo a ligação Igreja Estado. Assim, a pauta do congresso, toda preparada nos Estados Unidos, praticamente manteve a política de Edimburgo ao decidir pela pru- dência em relação à Igreja Católica. A mensagem final do congresso recomendou que a ação missionária deveria buscar áreas não atendidas pela Igreja Católica, principalmente entre os índios” (BONINO, 2003, p. 17-18).

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16landner.indd 209 25/11/2010 11:53:31 não comentam diretamente a tendência de Edimburgo de marginalizar as missões protestantes na América Latina e levantam a pergunta das consequências para as relações entre as igrejas protestantes. Assim introduzem o tema da “Unidade com diversidade”, assunto que se tornaria numa leve variação – unidade em diversidade – o lema oficial do movimento ecumênico na conferência de Bangkok em 1973. Em seguida dão diversos exemplos de uma unidade em diversidade e das suas vantagens, como o federalismo estatal, as diferentes culturas que formam a nação brasileira sem deixarem de ser gaúchos, nordestinos, etc. e termina com a frase programática: “Que ninguém pense em fazer todos os homens iguais”. Esta frase pode se dirigir tanto contra a articulação da reconquista da hegemonia católica no Brasil por meio do movimento do ultramontanismo e quanto a Igreja Católica, da romanização, como contra esperanças protestantes de transformar a América Latina num continente evangélico. Talvez seja também uma afirmação a favor da diversidade protestante e assim, um argumento a favor da colaboração intraeclesiástica na missão. Finalmente, chama a atenção que os autores não favorecem o modelo da evangelização como promoção da civilização [protestante] ou de “cristia- nizar” o mundo. Mesmo que não se tratasse de um simples conversionismo individualista (Cf. MENDONÇA; FILHO, p. 32-33), eles focalizam no indiví- duo e no ideal da transformação de todo crente até que ele representasse “... a mente do mestre, o caráter de Cristo, o propósito de Deus... – que levaria “naturalmente” à “unidade cristã”, objetivo que eles não rejeitam, mas consideram um mandato divino. Em consequência os autores pon- deram que a busca da unidade por “congressos internacionais” seja um caminho impróprio. Fica a pergunta se seu elogio aos valores das diferenças conside- rando-as “naturais” e “proveitosas” não pudesse inspirar os/as leitores/as a desenvolverem este aspecto além da defesa da autonomia institucional numa direção de aceitação da alteridade como base da convivência e colaboração mais ampla entre as igrejas e as igrejas e a sociedade, por- que “... alguma diversidade, porém, talvez nos seja conveniente, si não necessária”. Para dizer isso de uma forma mais protestante: o discurso da diferença garante um aspecto mais includente quando ele se une com a promoção da

... herança protestante da liberdade, da identidade própria e da respon- sabilidade da pessoa na solidariedade da comunidade, da autonomia da razão humana (da razão da vida e do amor ativo) na construção da cidade terrena da racionalidade da esperança numa história da qual Jesus Cristo é o Senhor. O que cabe é a re-interpretação dessa história como história

210 Lander; Fonseca; Renders: “Que ninguém pense em fazer todos os homens iguais”

16landner.indd 210 25/11/2010 11:53:31 em busca de um futuro [...] com os marginalizados de nossas sociedades... (BONINO, 2003, p. 29).

Edimburgo provocou uma discussão em prol do autoentendimento e da projeção da identidade protestante latino-americana que depois de diversas reviravoltas no século 20 pode ser considerada ainda inacabada...

Referências

BONINO, J. M. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo: Sinodal, 2003. GAIRDNER, W. H. T. Echoes from Edinburgh, 1910: an account and interpretation of the World Missionary Conference. New York; Chicago; Toronto; London and Edinburgh: Fleming H. Revell Company, [1911?] Disponível em: < http://www.archive.org/details/cu31924029346776 >. Acesso em: 12 jun. 2010. MENDONÇA, A. G.; FILHO, P. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo / São Bernardo do Campo, SP: Edições Loyola / Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião [Umesp], 1990. . “O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas”. In: Revista USP, n.67, p. 48-67 (set. /nov. 2005). Disponível em: < http://www.usp. br/revistausp/67/05-mendonca.pdf >. Acesso em: 2 jul. 2010. MEWS, S. “John R. Mott (1865-1955)”. In: Theologische Realenzyklopädie [TRE], vol. 23. Berlin: Walter de Gryter, 2004, p. 379-382.

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16landner.indd 211 25/11/2010 11:53:31 Manifesto dos Ministros Batistas do Bra- sil de 1963: o evangelho social num documento direcionado às Igrejas da Convenção Batista Brasileira

Manifest of the Baptist Ministers of Brazil 1963: the social gospel in a document addressed to the Churches of the Brazilian Baptist Convention

Manifiesto de los Ministros Bautistas del Brasil de 1963: el evangelio social en un documento dirigido a las Iglesias de la Convención Bautista Brasileña

Helmut Renders e Nicanor Lopes

Ordem dos Ministros Batistas do Brasil da Convenção Batista Brasileira

Resumo Fac-símile do texto Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963 da autoria de membros da Ordem dos Ministros Batistas do Brasil da Convenção Batista Brasileira. Introdução por Nicanor Lopes e Helmut Renders. Palavras-chave: Hélcio da Silva Lessa; evangelho social; batismo brasileiro; teologia pública.

Abstract Facsimile of the text of the Manifest of Order of Baptist Pastors of Brazil In 1963 authored by members of the Order of Baptist Ministers of Brazil of Brazilian Baptist Convention. Introducción por López y Nicanor Helmut Renders.. Keywords: Hélcio da Silva Lessa; social gospel; Brazilian baptism; public the- ology.

Resumen Facsímil del texto del Manifiesto de Ministros Bautistas del Brasil en 1963 escrito por miembros de la Orden de los Ministros Bautistas Brasileños de la Convención Bautista Brasileña. Con una introducción de Nicanor Lopes e Helmut Renders. Palabras clave: Hélcio da Silva Lessa, evangelio social; bautismo brasileño; teología pública.

Helmut Renders e Nicanor Lopes: Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963

17nicanor.indd 212 25/11/2010 11:53:58 1. Uma pequena introdução

Recentemente foi publicada uma série de artigos relacionados com o evangelho social1 e documentamos a sua expressão mais recente, o Credo Social [sustentável] de 2007 (RENDERS, 2010, p. 175-180). Acredi- tamos que seja importante a memória desse movimento no momento que se discute em algumas igrejas evangélicas e protestantes a proposta do evangelho integral, sua vez baseada ao movimento missionário evangeli- cal de Lausanne, representado na América Latina pelo Congresso Latino Americano de Evangelização (CLADE). Em seguida publicamos um manifesto social batista que nos foi envia- do pelo discente Ernesto Eduardo Ramos. O manifesto vem até nos como parte do caderno “Ação Social Cristã” escrito pelo pastor batista Hélcio da Silva Lessa (1926-2009) em 1964, em recordação do “`Movimento´ Diretriz Evangélica”2. Além do manifesto de 1963 o texto de Lessa continha

• O Manifesto Sobre A Liberdade Religiosa do Congresso Batista Mundial, Cleveland, Ohio, 25 de Julho de 1950; • O Credo Social da Igreja Metodista do Brasil de 1960; • A declaração Elementos Perma- nentes de Uma Ética Social Cristã da Igreja Reformada Francesa, 29 de mar- ço de 1963.

Lessa (1963, p. 21) insiste na im- portância do discernimento sociopolítico a partir da experiência do revelador impacto do movimento integralista no meio evangélico na década de 30 do século passado:

... mais expressivas foram as experiências vividas, nesse sentido, por volta de 1936, com o advento do Integralismo. A insistência com que os adeptos daquela agremiação política citavam as Escri- turas e a doutrina cristã, entusiasmou a muitos evangélicos. As características totalitárias, eivadas de absurdos preconceitos, daquele movimento, no entanto,

1 Credo Social da Igreja Metodista (JOSGRILBERG, 2010, p. 171-174; RENDERS, 2007, p. 167-176; 2003, p. 51-73), Walter Rauschenbusch (RENDERS, 2008, p. 100-117), o movimento do Evangelho Social no Brasil (RENDERS, 2009, p. 43-65) e projetos práticos no nível da igreja local (LOPES, 2003). 2 Uma revista batista da ação social.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, p. 212-221, jul./dez. 2010 213

17nicanor.indd 213 25/11/2010 11:53:58 evidenciaram logo a in-autenti-cidade da experiência, desfazendo, inclusive, as esperanças e a disposição daqueles entusiasmados de utilizarem os princípios e preceitos escriturísticos como elementos normativos da vida pública brasileira.

Coube à Igreja Metodista, entre os evangélicos brasileiros, a primazia nesse campo [checar no original], com a criação de uma Junta Geral de Ação Social em 1930. O VIII Concílio Geral, reunido em julho de 1960, aprova “O Credo Social da Igreja Metodista do Brasil” (Vide anexos). Além de cultivar a preocupação dos fiéis pela realidade nacional, através de mensagens e documentos diversos, nos momentos de crise para o país, sempre procuraram os seus elementos representativos sugerir à nação, diretrizes que emanavam da Palavra de Deus (grifo nosso). Num nobre espírito ecumênico Lessa reconhece os esforços da Igreja Metodista na área da ação social, destaca o compromisso metodista tanto com o povo como com a Bíblia e alerta da possibilidade de usar a Bíblia como ferramenta da defesa do totalitarismo. E Lessa reconhece em 1963 também a abertura da Igreja Católica, expressa pelo II Vaticano:

Esta não é, no entanto, como dissemos a princípio, uma cogitação recente, nem apenas nossa. Católicos e protestantes a têm expressado mais ou menos intensamente através dos tempos. A natureza do nosso trabalho não nos permitirá considerar aqui a apreciável contribuição que nesse campo têm dado ao Cristianismo os Católicos Romanos, particularmente após o Concilio Ecumênico Vaticano II (grifo nosso).

O autor lembra que o Manifesto publicado em seguida foi assina- do, na época, por 200 pastores batistas. Enquanto Lessa se refere ao “evangelho social” como parâmetro da ação social, o próprio Manifesto o omite. Porém o Manifesto se coloca na tradição de um dos maiores repre- sentantes do Evangelho Social, Walter Rauschenbusch, e chamando-o “o arauto das implicações sociais do Evangelho” e menciona também Martin Luther King, Jr., admirador declarado de Rauschenbusch. Especialmente por ter enfrentado logo em seguida uma dura repres- são no seu próprio meio (NOGUEIRA, 1965) precisa-se lembrar desse Manifesto de 1963 por documentar uma abertura considerável para o Evangelho Social entre os batistas da época. Era um período extremamen- te frutífero para a reflexão social, tanto na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (SCHUENEMANN, 1992; WEINGAERTNER, 2001), como na Igreja Metodista do Brasil e seu Credo Social de 1970, como na Igreja Presbiteriana, cuja preocupação nos lembramos pelas letras de João Dias de Araújo e Décio E. Lauretti (apud BUYERS, 1987, p. 113):

214 Helmut Renders e Nicanor Lopes: Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963

17nicanor.indd 214 25/11/2010 11:53:58 O que estou fazendo se sou cristão? Se Cristo deu-me o seu perdão? Há muitos pobres sem lar sem pão, Há tantas vidas sem salvação. Meu Cristo veio pra nos remir O homem todo sem dividir: Não só a alma do mal salvar, Também o corpo ressuscitar.

Aos poderosos eu vou pregar, Aos homens ricos vou proclamar Que a injustiça é contra Deus, E a vil miséria insulta os céus.

Há muita fome no meu país, Há tanta gente que é infeliz. Há criancinhas que vão morrer, Há tantos velhos a padecer. Milhões não sabem como escrever, Milhoes de olhos não sabem ler, Vivendo em trevas sem perceber Que são escravos de outro ser.

Neste contexto há de se reconhecer a busca por um compromisso social mais relevante por parte dos batistas brasileiros na época, assun- to retomado e visível no documento “Filosofia de Ação Social da CBB” (CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA, 1997; p. 175 a 186). Neste esforço contemporâneo, os batistas revelam suas preocupações com a dimensão da Ação Social da Igreja, é importante observar algumas afirmações sig- nificativas na dimensão da Responsabilidade Social:

1.2 – Reconhece que temos uma dívida social para com os pobres e que devemos avançar, como denominação organizada, para ajudar na solução de graves problemas como fruto de nossa preocupação social; 1.3 – Reconhece que nosso discurso de amor deve ser acompanhado de ações práticas (1 João 3.18,19); 1.4 – Reconhece em particular, o problema do menor abandonado, como dos mais graves acontecimentos da época presente e que devemos ser participantes das soluções; 1.5 – Reconhece que a evangelização sem a ação social é a descaracteri- zação do evangelho, pois a Palavra diz que “fé sem obras é morta”; 1.6 – Reconhece que a acepção de pessoas é pecado condenado nas Es- crituras e que devemos evitar a culpa de mal; 1.7– Reconhece que é nossa missão profética denunciar os males de cor- rupção, sem nos omitirmos ou acomodarmos.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, p. 212-221, jul./dez. 2010 215

17nicanor.indd 215 25/11/2010 11:53:58 Os batistas também, na década de 90 do século passado, organi- zaram um livro, que aborda a discussão da responsabilidade social. Os temas revelam não somente a preocupação com a ação social da igreja, como também apresenta uma análise de conjuntura da sociedade brasi- leira. São estes os temas tratados:

A questão social e a realidade brasileira, a Bíblia e a responsabilidade social, a igreja relevante para a comunidade, voltando os olhos para a família, as desigualdades sociais, o trabalho e o desafio para a modernidade, a terra e o seu uso, o imperativo da alimentação, moradia, a saúde está doente, a educação e o progresso social, cidadania e dignidade, Jesus Cristo e as carências humanas (BERNARDO; MORAES, 1998).

E não parou por aí. As articulações mais recentes são de um grupo de batistas chamado Aliança de Batistas do Nordeste3. Sua Carta de intenção da Aliança de Batistas do Brasil – (ALIANÇA DE BATISTAS, 2005) responde de forma abrangente ao desafio social – e com grande proximidade ao evangelho social, como o manifesto de 1963:

1. Desenvolver uma espiritualidade integral em todas as nossas práticas. 2. Promover oportunidade de relacionamento dentro e fora da Aliança, bus- cando a plena reconciliação proporcionada pelo Evangelho de Cristo. 3. Celebrar a diversidade da vida e da humanidade em todas as suas formas, respeitar as diferenças e promover o diálogo. 4. Proporcionar lugares de acolhimento para os feridos ou ignorados pela igreja, sendo deliberadamente inclusivos e oferecendo a graça e a hos- pitalidade de Deus a todas as pessoas. 5. Defender a causa dos empobrecidos e proscritos da sociedade. 6. Lutar pela justiça com e para os oprimidos. 7. Empreender todos os esforços necessários para o cuidado do planeta. 8. Trabalhar incansavelmente em prol da paz com justiça. 9. Honrar a sabedoria e o aprendizado contínuo.

Talvez estivesse chegando a hora de se lembrar dessa época em conjunto – anglicanos/as, batistas, congregacionalistas, católicos/as, metodistas, luteranos/as, pentecostais e presbiterianos/as– para lembrar dos/as pioneiros/as, para comparar as propostas do Evangelho Social com as do Evangelho Integral e do Conselho Mundial das Igrejas e para unir esforços para o bem comum do Brasil.

3 não podemos esquecer da importância dessa região para a “conscienciação” das Igrejas Protestantes na década de 60 no nível nacional, década do Manifesto aqui apresentado. Confere a Conferência do Nordeste do Setor da Responsabilidade Social da Igreja da Confederação Evangélica do Brasil (1962).

216 Helmut Renders e Nicanor Lopes: Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963

17nicanor.indd 216 25/11/2010 11:53:58 2. O texto de 1963

Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963

Ordem dos Ministros Batistas do Brasil da Convenção Batista Brasileira A Ordem dos Ministros Batistas do Brasil, entidade que congrega os pastores que servem às Igrejas da Convenção Batista Brasileira, em sua última Assembléia Geral, realizada na cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo, resolveu apresentar à Nação Brasileira e à Denominação Batista em particular, o seguinte

Manifesto

Reconhecemos ser um privilégio dos Batistas Brasileiros a iniludível responsabilidade de contribuir não somente para a solução dos proble- mas que no momento assoberbam o nosso povo, como também para a determinação do seu destino histórico. Não o afirmamos apenas porque sejamos uma parcela apreciável desse mesmo povo, mas porque enten- demos ser essa participação inerente à missão de “sal da terra e luz do mundo”, que o Senhor mesmo nos outorgou. Nossas preocupações estão em consonância não só com as dos Profetas bíblicos, que se constituíram nos intérpretes da vontade de Deus para os seus povos nos momentos de maior gravidade de sua história, como também do próprio Cristo, que além de partilhar, quando da encar- nação, na sua inteireza a condição humana, afirmou ser o seu Evangelho uma resposta satisfatória a todos os anseios da criatura, e uma solução cabal para todos os problemas da humanidade (Lucas 4.16-21). Entenderam-no assim também Guilherme Carey, o pai das missões modernas, e corajoso batalhador contra o sistema das castas na Índia, Roger Williams, o pioneiro da liberdade religiosa em nosso continente, Walter Rauschenbusch, o arauto das implicações sociais do Evangelho, Martin Luther King Jr., o campeão da luta pelos direitos da minoria negra oprimida, e tantos outros batistas através dos tempos. Resulta daí não só a legitimidade, mas também a necessidade de os membros das nossas Igrejas assumirem as suas responsabilidades como cidadãos, participando efetivamente na vida política do país e integrando- se nas organizações de classe, a fim de influírem nas decisões de que resulta a configuração do nosso destino como nação.

Os Direitos da Pessoa Humana

Ainda que reconheçamos a importância e a significação das insti- tuições, acreditamos ser o homem o fulcro das nossas preocupações,

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17nicanor.indd 217 25/11/2010 11:53:58 porquanto “criado à imagem e semelhança de Deus”. Por isso, enten- demos estar a legitimidade de qualquer regime, sistema ou instituição condicionada à medida que possibilite à criatura a plena realização da sua humanidade. Esta convicção nos fez, desde sempre, intransigentes defensores da liberdade em todas as suas formas de expressão – liberdade de consci- ência, de religião, de imprensa, de associação, de locomoção, etc., bem como de autodeterminação dos povos livremente manifesta como condição imprescindível à vida humana. Por corresponderem à nossa concepção dos direitos e deveres da pessoa humana, insistindo em que os princípios a esse respeito consa- grados na Constituição Federal de 1946, na Carta das Nações Unidas e da Declaração dos Direitos dos Homens, sejam universalmente aplicados, de sorte a serem banidos da face da terra a exploração do homem pelo homem ou pelo Estado, em qualquer das suas formas, e os totalitarismos de toda espécie, assegurando-se a prática da verdadeira democracia.

Igreja e Estado

Inspirados no preceito bíblico “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21), temos propugnado pela existência de Igrejas livres num Estado livre, preconizando a delimitação inteligente e respeitosa das esferas de responsabilidade e ação da Igreja e do Es- tado, sem interferências abusivas ou relações aviltantes de dependência, embora permitindo a cooperação construtiva entre ambos. Por isso, temos repugnado a concessão de privilégios ou de favores financeiros destinados ao sustento e promoção do culto de quaisquer grupos religiosos. Assim é que, entendendo ser o ensino religioso uma atribuição espe- cífica dos lares e da Igreja, consideramos imperiosa a reforma do disposi- tivo constitucional que estabelece o ensino religioso nas escolas mantidas pelo governo, que deverão continuar leigas, assim como é leigo o Estado que as mantém, para que não se propicie a criação de um clima de intole- rância e de preconceito religioso em nossas instituições de ensino público.

Justiça Social

Embora nos regozijemos pelas conquistas sociais do povo bra- sileiro, reconhecemos a inadequação da presente estrutura social, política e econômica para a realização plena da justiça social, pelo que insistimos na necessidade de um reexame corajoso, objetivo e despreconcebido da presente realidade brasileira, com vistas à sua estruturação em moldes que possibilitem o atendimento das justas aspirações e necessidades do povo.

218 Helmut Renders e Nicanor Lopes: Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963

17nicanor.indd 218 25/11/2010 11:53:58 Essa necessidade ressalta da constatação da ineficiência dos institutos assistenciais do Estado, que transformam num favor concedido a custo, direitos líquidos dos trabalhadores; da irracional aplicação dos recursos públicos, que deveriam antes de se destinar, mais liberalmente, aos mi- nistérios da Saúde, Educação e Agricultura, para a solução de problemas sociais angustiantes; da sobrevivência de regimes feudais de propriedade e exploração da terra; da generalizada pobreza das populações carentes mesmo do alimento indispensável à sobrevivência; da injustiça na distribui- ção das riquezas, e da utilização destas para o cerceamento das liberdades essenciais; da inadequada exploração das nossas riquezas naturais, cujo aproveitamento não só deveríamos intensificar, como fazer revestir-se de significação social; do crescente empobrecimento do patrimônio nacional pela remessa para o exterior dos lucros, extraordinários auferidas em nos- so país; da corrupção que tem campeado nos pleitos eleitorais, na prática policial (quer preventiva, quer corretiva), na previdência social, no preen- chimento de cargos públicos, na aplicação dos recursos sindicais, etc. São ainda evidências daquela afirmação o tratamento meramente policial dado aos movimentos populares da cidade e do campo, que mereciam ser antes objetiva e carinhosamente estudados, para que viessem a ser orien- tados construtivamente para o bem geral, através do atendimento das suas justas reivindicações; como também aos movimentos de greve, que, se muitas vezes desvirtuados, se constituem, entretanto, num instrumento legítimo de reivindicação social e de preservação dos direitos dos trabalhadores, e que deveriam, por isso mesmo, ser objeto de uma cuidadosa regulamentação. Embora afirmemos ser a renovação do homem, mediante a transforma- ção da personalidade, operada por Jesus (Visto, o fundamento básico sobre que terá de se alicerçar uma sociedade realmente nova, propugnamos também pela realização de reformas de base na vida nacional, de sorte a possibilitar à criatura a concretização de seus legítimos anseios terrenos. Por isso, preco- nizamos a promoção urgente de reformas tais como: a) reforma agrária, que venha atender às reivindicações do homem do campo explorado; b) reforma eleitoral, que venha liquidar as circunstâncias que possibilitam e estimulam os nossos maus costumes políticos; c) reforma administrativa, que ponha termo ao nepotismo, ao filhotismo e à ineficiência tão generalizada quanto onerosa dos serviços públicos; d) reforma da previdência social, que venha pôr em funcionamento as nossas leis sociais com o pleno reconhecimento e o efetivo atendimento dos direitos dos que trabalham.

Recomendação Final

No cumprimento, pois, da missão profética que recebemos do Se- nhor, concitamos o Povo Batista Brasileiro a integrar-se cada vez mais no

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17nicanor.indd 219 25/11/2010 11:53:59 processo histórico da nossa nacionalidade, contribuindo para que o futuro corresponda aos desígnios de Deus para a nossa Pátria. Debrucemo-nos, portanto, sobre a realidade brasileira, procurando compreender-lhe os problemas, sentir-lhe as angústias, partilhando as suas dores. Busquemos nas Escrituras as soluções divinas para os problemas do homem. E, co- rajosamente, desfraldemos, em nome do Cristo, a bandeira da redenção total da criatura. Da redenção temporal e eterna do povo brasileiro! Pela Ordem dos Ministros Batistas do Brasil,

A Diretoria: Presidente – José dos Reis Pereira 1° Vice-Presidente – José Lins de Albuquerque 2° Vice-Presidente – Hélcio da Silva Lessa Secretário Geral – Tiago Nunes Lima 1° Secretário – Irland Pereira de Azevedo 2° Secretário – José dos Santos Filho Tesoureiro – Otávio Felipe Rosa Procurador – David Malta Nascimento Bibliotecário – Tércio Gomes Cunha Vitória, em 1963

Referências

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220 Helmut Renders e Nicanor Lopes: Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963

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17nicanor.indd 221 25/11/2010 11:53:59 17nicanor.indd 222 25/11/2010 11:53:59 Resenhas

Repensando a práxis da missão da igreja à luz dos desafios do século 21

Rethinking the practice of the Church’s mission in the light of the challenges of the 21st century

Repensar la práctica de la misión de la iglesia a luz da de los desafíos del siglo 21

Pedro Jiménez Celorrio

Resumo Resenha de SILVA, Geoval Jacinto da. Abrindo espaços para a práxis da missão de Deus. São Bernardo do Campo: Igrejas Sem Fronteiras, 2009.

Abstract: Book review of Resenha de SILVA, Geoval Jacinto da. Abrindo espaços para a práxis da missão de Deus. São Bernardo do Campo: Igrejas Sem Fronteiras, 2009.

Resumen: Reseña del libro Resenha de SILVA, Geoval Jacinto da. Abrindo espaços para a práxis da missão de Deus. São Bernardo do Campo: Igrejas Sem Fronteiras, 2009.

A obra “Abrindo espaços para a práxis da missão de Deus” oferece bases bíblicas, históricas e pastorais para que a Igreja possa usar de forma sistemática e criativa os lugares e espaços de que dispõe. O teor do livro emerge de preocupações relativas à vida do autor como pastor, bispo, professor, pesquisador e conferencista. Estas nuances são bem perceptíveis no corpo do texto: às vezes a reflexão tem um tom pastoral, e em outras a análise caminha para aspectos alusivos à lógica de trabalho

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18pedro.indd 223 25/11/2010 11:54:23 da instituição; em ocasiões o texto assume um matiz didático, e em outras se volta para questões acadêmicas. Neste sentido, o livro constitui um instrumento de apoio, tanto às pessoas leigas quanto ao corpo pastoral, para o melhor desenvolvimento da tarefa missionária da Igreja. O conteúdo do livro agrupa-se em seis capítulos: O primeiro, intitu- lado Abrindo espaços para a missão de Deus: Visão bíblico-teológica e pastoral erige-se sobre três grandes eixos: 1) definição de conceitos, 2) visão bíblica dos espaços de missão, 3) o caráter privado e público da práxis da missão. Entre outros vocábulos, o autor destaca os seguintes: missão, prática, práxis e espaço. Neste sentido, missão interpreta-se como ação salvífica, na acepção ampla do termo, que se manifesta por meio dos diversos serviços que a Igreja presta às pessoas envolvidas na sociedade; prática alude às ações repetitivas desenvolvidas a partir de algo apreendido; práxis, em compensação, é uma ação criadora, re- flexiva, libertadora e radical; já a palavra espaço remete à dimensão em que a vida acontece e se desenvolve, onde ela é vivenciada com todas as suas complexidades. Na perspectiva do autor, todos estes vocábulos estão estreitamente ligados: se a missão da Igreja é a mudança positiva dos seres humanos e da sociedade, tal empenho ancorar-se-á tanto em ações práticas concretas, quanto numa práxis transformadora que traga a luz os interstícios, isto é, os espaços, para a materialização dessa mis- são. Como referencial para o aproveitamento de tais espaços, aspecto constitutivo do segundo eixo do primeiro capítulo (sob o título Uma visão bíblica dos espaços de missão), Silva (2009), usa três modelos bíblicos: a) o paradigma de Abraão, b) o projeto da Nova Jerusalém e c) a dimen- são profética. No primeiro caso, a partir do chamado de Abraão, o autor adentra-se na pastoral urbana: Abraão teve que abandonar sua cidade para instalar-se em outra, espaço em que recebe um chamado que impli- ca a possibilidade de restauração da humanidade, dispersa e difusa. No segundo caso, destaca-se a pluralidade presente na Nova Jerusalém e a necessidade de reconhecer e aceitar o pluralismo humano inerente ao contexto urbano. No terceiro caso, se alude à pregação profética como uma mensagem que, embora estivesse marcada tanto por um tom de conscientização como de juízo, era determinada pela esperança. Depois de abordar aspectos conceituais e bíblico-teológicos, Silva salienta o ca- ráter privado e público da práxis da missão, partindo do critério de que a aderência ao Evangelho provoca nas pessoas o desejo de se tornarem seres humanos públicos, a deixarem de ter uma fé privada, para se tor- narem seres de uma fé pública. O segundo capítulo, intitulado Abrindo espaços para a missão de Deus: Uma visão da práxis wesleyana, desenvolve-se a partir de três pon- tos: 1) o solo da herança cristã na Inglaterra, 2) as origens do movimento metodista e as motivações de sua práxis e 3) a práxis do movimento na

224 Pedro Jiménez Celorrio: Repensando a práxis da missão da igreja à luz dos desafios do século 21

18pedro.indd 224 25/11/2010 11:54:23 cidade de Londres e sua dimensão pastoral urbana. No primeiro tópico, o autor descreve o cenário nacional em que surge o movimento metodista, principalmente o período de Henrique VIII e seus sucessores; o cenário europeu, que se deparava com o surgimento do capitalismo e a revolução industrial; e o cenário religioso da Inglaterra do século 18. No segundo tópico, oferecem-se informações sobre elementos que proporcionaram à família Wesley o desenvolvimento de uma vida cristã bem regrada; e sobre a práxis cristã de John Wesley em Oxford, na Geórgia e em Lon- dres. No terceiro tópico, Silva presta especial atenção à visitação pastoral num contexto urbano, à formação de leigos/as e à dimensão da práxis educacional. O terceiro capítulo, intitulado Abrindo espaços para a reflexão e a práxis da missão de Deus hoje, versa sobre três questões: 1) a busca de um referencial teórico para compreender a filosofia da práxis, 2) a práxis necessária para o contexto e o espaço e o lugar onde se deseja realizar a missão e 3) a práxis e a teologia da Missão: uma transformação na raiz da sociedade. Na primeira parte, Silva apresenta a evolução do conceito práxis, partindo de Aristóteles e Platão, passando pela concepção mar- xista da práxis para se deter no estudo do conceito de práxis cristã em Casiano Floristan. À luz da abordagem deste último autor, entre outros aspectos, destacam-se quatro traços característicos da práxis cristã: ação criadora, ação reflexiva, ação libertadora e ação radical. Na segunda parte, que tem como tela de fundo o contexto latino-americano, enfatiza-se a pertinência de uma práxis que supere as práticas assistencialistas, bem como a necessidade de revisar a lógica de trabalho do Terceiro Setor (isto é, das diversas organizações não-governamentais, cooperativas e associações, que buscam servir como intermediárias entre o Estado e a sociedade). Já a terceira parte tem uma perspectiva teológico-missiológica, estabelecendo-se uma diferença entre a missão de Deus e a missão da Igreja. Neste sentido, a missão de Deus é maior que a missão da Igreja. Aquela tem como finalidade a plenitude da promessa do Reino de Deus: a vida, a justiça e o amor; esta tem a ver com as diferentes ações de- senvolvidas pelas igrejas em prol da materialização desse Reino. O texto destaca ainda o passo da noção de missão orientada para a vinda de Jesus para a ideia de missão como um agir em prol da justiça, e constata que tem havido mais atividades assistencialistas e legitimadoras de prá- ticas neoliberais do que uma práxis cristã que possibilite espaços para a missão de Deus. Neste item Silva também discorre sobre a importância de prestar especial atenção à teologia wesleyana, cujos traços estavam diretamente desenhados em função de uma práxis cristã positivamente transformadora. O quarto capítulo, sob o título Abrindo espaços para a práxis da mordomia cristã hoje, traz à luz três momentos da mordomia: 1) origem

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18pedro.indd 225 25/11/2010 11:54:24 da práxis da mordomia, que tem a sua gênese no Antigo Testamento, 2) a práxis do dízimo como motivação de gratidão e 3) o dízimo como prá- xis de prioridade no projeto do cotidiano. Entre outros objetivos, o autor apresenta uma visão abrangente da mordomia que não esteja restrita somente à questão do dízimo. Nesta perspectiva, a práxis da mordomia cristã é um exercício que exige pleno reconhecimento de que os bens administrados constituem recursos oferecidos por Deus, que Ele é o pos- suidor de tudo, o doador de tudo e o redentor da humanidade. Porém, a mordomia é definida como o ato de colocar tudo a serviço de Deus e o dízimo é assumido como um resultado advindo de uma vida dedicada ao Senhor. No intuito de que se compreenda bem o papel do dízimo, Silva dialoga com textos bíblicos que lhe oferecem alicerces para se referir ao dízimo como uma experiência que evoca a companhia do Deus de paz e prosperidade; como ações de gratidão pela possibilidade de participarmos da obra de Deus como gestores; como auxílio às pessoas necessitadas. Percebe-se, no texto, que missão e mordomia têm uma estreita relação, e que o dízimo, como um dos aspectos da mordomia, se interpretado adequadamente, ajuda na prática missionária da Igreja. O quinto capítulo, Abrindo espaços para a práxis da pregação e suas implicações hoje, na era da mídia. O uso da Bíblia na pregação assume a pregação como uma arte, como um exercício que requer paci- ência, dedicação e estudo. Nessa linha, abordam-se quatro pontos: 1) o ministério de Jesus e suas implicações para a pregação hoje, 2) a visão bíblico-teológica e pastoral da pregação, 3) as implicações da pregação na Reforma Protestante e 4) orientações wesleyanas para a prática da pregação. No primeiro ponto, entre outros aspectos, Silva enfatiza a di- mensão de esperança messiânica e a necessidade de quem prega de se envolver no cotidiano para conhecer as angústias humanas, os sistemas opressores e os anseios das pessoas a quem será destinado o sermão. No segundo ponto, destacam-se vários traços da pregação, tais como: seu caráter teológico, evangélico, persuasivo e litúrgico; a sua dimensão antropológica e escatológica; bem como o seu sentido eclesial. Enfatiza- se também a criatividade da pregação e seu vínculo com o cotidiano. Na perspectiva do autor, o cotidiano tem a ver com o que “no dia-a-dia se passa quando nada parece passar”. No terceiro ponto, sublinha-se a necessidade de saber lidar bem com o texto bíblico, isto porque a Bíblia constitui o critério para tudo que se disser em nome de Deus e de Jesus Cristo na comunidade cristã; se destacam as vantagens e os riscos da pregação a partir de textos bíblicos; e se oferecem orientações para a pregação a partir da perspectiva de Lutero. No quarto e último ponto, o autor constrói seu raciocínio, no que se refere à prática da pregação, to- mando como referência os quatro anseios de Wesley ao pregar (convidar, convencer, oferecer a Cristo, construir); a sua metodologia ao preparar um

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18pedro.indd 226 25/11/2010 11:54:24 sermão; e o fruto esperado a partir da pregação (amar a Deus de todo o coração, ter coração e vida devotados a Deus; recuperar a imagem integral de Deus; ter a mente de Cristo; andar como Cristo andou). O sexto capítulo, Abrindo espaços para o exercício de elaboração de sermões, apresenta de forma sucinta modelos de esboço de sermões úteis para a pessoa que lida com a pregação ou para quem pretenda ensinar a Bíblia. O texto divide-se em duas partes: uma mais voltada para a meto- dologia e para a escolha do texto bíblico; outra mais interessada em trazer à luz exemplos concretos de elaboração de sermões. No que se refere à metodologia, destacam-se sete aspectos: informação sobre a realidade na qual a pregação será realizada; necessidade de quem prega de reservar um tempo de oração; estudo do texto bíblico; análise tridimensional da mensagem do texto: passado, presente e futuro; análise gramatical do texto; admissão da Bíblia como o livro que relata a história da salvação e a inutilidade de procurar outros sentidos e outras verdades na Palavra. No que diz respeito à elaboração de sermões, Silva apresenta três esboços: O rei que foi aprovado por Deus, tomando como referência o texto de 2 Reis 18.1-7; Uma decisão missionária, a partir de João 4.1-31; A viagem que não terminou. Os caminhantes de Emaús, que aparecem em Lucas 24.13-35. O autor reforça que o uso da Bíblia como instrumento de ensino da Palavra constitui um dever para toda pessoa que tenha a responsabili- dade de pastorear e ensinar; manifesta o seu desejo de que os exemplos propostos possam ajudar no desenvolvimento da pregação nas diversas comunidades. A partir do conteúdo explicitado intui-se que a obra é relevante para toda pessoa interessada em áreas tais como Missão, Teologia Prática, Administração Eclesiástica, Ministério e Liturgia. O conteúdo do livro também é útil para quem lida com política, religião, história, sociologia, antropologia e filosofia, toda vez que a sua proposta leva em considera- ção tanto aspectos relativos ao ambiente histórico-político-econômico da Inglaterra, o solo em que o metodismo surgiu, como questões alusivas ao contexto sociocultural latino-americano. A obra apresenta uma linguagem direta numa abordagem clara e objetiva. O teor nela exposto serve, ao mesmo tempo, como fonte de conhecimento e de pesquisa, fornecendo referenciais teóricos e pistas para futuros estudos na área de práxis re- ligiosa e sociedade.

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18pedro.indd 227 25/11/2010 11:54:24 Vivenciar a com-paixão: a missão na América Latina diante o século 21

Living with com-passion: the mission in Latin Amer- ica before the twenty-first century

Viver com-pasión: la misión en América Latina ante el siglo 21

Helmut Renders

Resumo Resenha do livro ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-paixão: para uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo / Quieto: Sinodal / CLAI, 2008. 432p.

Abstract Book review of ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-paixão: para uma teo- logia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo / Quieto: Sinodal / CLAI, 2008. 432p. [Translation: Mission as com-passion: towards a Theology of Mission in Latin American perspective].

Resumen Reseña Del libro ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-paixão: para uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo / Quieto: Sinodal / CLAI, 2008. 432p.

Com alegria e admiração lemos este livro rico em informações, análises, intuições e propostas em relação à missão na América Latina, com ênfase na segunda metade do século 20 até os nossos dias. Apesar do seu tamanho – 432 páginas requerem certa dedicação – ajudam a linguagem acessível e a organização clara na rápida assimilação dos seus conteúdos. Trata-se de uma investigação muito bem construída que testemunha um engajamento intelectual e paixão pessoal pela causa da missão.

Organização

As ideias do autor são desenvolvidas e expostas em quatro capítulos. No primeiro – Contexto e referências teóricas (p. 19-94) – Zwetsch contex- tualiza seu estudo na história da missão na América Latina e desenvolve pressupostos para um novo paradigma (p. 50-94).

Helmut Renders: Vivenciar a com-paixão: a missão na América Latina diante o século 21

19helmut.indd 228 25/11/2010 11:54:48 O segundo capítulo – Contribuições protestantes à teologia da missão (p. 95-206) – introduz às missiologias do metodista José Míguez Bonino (2.1, p. 95-145) e do batista René Padilla (2.2, p. 146-206) como repre- sentantes de igrejas da missão. Já no terceiro capítulo o autor familiariza os/as leitores/as com Valdir Raul Steuernagel (3.1, p. 207-263) e Hermann Brandt (3.2, 264- 312), dois missiólogos luteranos, ou seja, teólogos de uma igreja da imigração. Sublinhamos as palavras “introduzir” e “familiarizar” porque Zwetsch toma tempo para apresentar, contextualizar e discutir os quatro autores detalhadamente. Com isso ele constrói e convalida permanente e indiretamente seu argumento central que a missão vive da com-paixão, também no sentido de uma paixão compartilhada. Para alguns estas 200 páginas serão desafiadoras, pois perseguem com muito respeito e sem pressa o desenvolvimento dos caminhos assumidos pelos autores – não somente resumindo apressadamente os seus resultados. Assim vivencia o autor uma atitude de diálogo e convivência que não se encontra muito nos dias atuais. O quarto capítulo – Missão como com-paixão: para uma teologia da missão cristã em perspectiva latino-americana (p. 313-402) – o autor reserva para a sua contribuição e a desenvolve em sete pontos. Nele apresenta uma organização interessante. No centro do capítulo Zwetsch posiciona a Igreja (4.4; p. 349-361). A sua missão é preparada em três subcapítulos paradigmáticos (4.1 Missão como com-paixão, p. 314-326; 4.2 Missão e contexto, p. 327-334; 4.3 Missão libertadora, p. 335-348) e depois estruturada em mais três subcapítulos (4.5 Missão ecumênica, p. 362-372; 4.6 Missão e ecologia, p. 373-376; 4.7 Missão e teologia, p. 377-385). Assim a igreja nem é o ponto de partida nem último objetivo da missão, mas, mesmo assim, parceira e instrumento “central”. Com tanto material apresentado é muito pedagógico que o autor apresente seis sínteses: no fim do primeiro capítulo (1.3, p. 91-94), de- pois da apresentação de cada dos seus quatro interlocutores principais, sempre como “Síntese e questões para debate” (2.1.4, p. 143-145; 2.2.4, p. 204-206; 3.1.4, p. 257-263 e 3.2.4, p. 309-312) e no final do quarto capítulo (4.8, p. 386-394). Neste quarto capítulo o autor integra também o aspecto pessoal da participação na Missio Dei. “... é no poder do Espírito que a igreja cumpre a sua missão” (4.1, p. 315) e a “espiritualidade libertadora [...] fonte e motivação para a ação missionária” (4.8, p. 390). Participar na Missio Dei significa, então “assumir as consequências do discipulado, do seguimento de Jesus, de modo lúcido e crítico, usufruindo uma liberdade espiritual e alegre que caracterizam a fé no evangelho...” (4.8, p. 391). Para os metodistas destacamos a sua interpretação do dis- cipulado (p. 386ss) que segue Bonhoeffer.

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19helmut.indd 229 25/11/2010 11:54:48 Os tamanhos equilibrados dos capítulos entre si e em si revelam os cuidados na redação final e um sentido estético que combina bem com um texto teológico dessa importância.

Conteúdo

O texto é um texto ecumênico e, no mesmo momento, luterano. Típico para isso é a ênfase na Missio Dei, por um lado, uma espécie de expres- são da ortodoxia luterana em busca de um recomeço, depois da segunda guerra mundial e, por outro lado, uma superação do seu isolamento e seu ingresso na teologia ecumênica. O aspecto ortodoxo transparece no seu radical teocentrismo: caindo bem, destaca-se por meio dele a graça divina como força transformadora em tudo universo. O desafio dessa abordagem está na articulação realista e adequada da reposta humana, da importância dessa resposta em si para o desenvolvimento da própria Missio Dei e da relação entre a realização da Missio Dei e a qualidade ou maturidade dessa resposta cristã. A escolha de Míguez Bonino como interlocutor serve aqui como contrapeso. Dele Zwetsch segura

... o conceito da obediência para a realização do amor eficaz que (segundo Bonino, o autor) começava a vigorar em setores do protestantismo latino- americano mais abertos para a dimensão profética ou até revolucionária do evangelho de Jesus cristo. [...] Obediência é compromisso não apenas espiritual com Cristo, mas, é um compromisso histórico com transformações que atualizam o significado da obra de Cristo e de seu reino já agora neste mundo (p. 145; cf. também p. 313).

Superou-se em termos missiológicos a contraprodutiva distinção luterana entre as esferas distintas dos “dois” reinos. A abertura para a contribuição do evangelho integral é certamente um passo ecumênico – e hoje em dia provavelmente também intralutera- no – importante. Entretanto, o respectivo movimento não é contemplado como parceiro em “4.5 Missão ecumênica” (p. 362-373). Talvez seja pela identificação de ecumênico com o CMI, mas, vale a pena registrar que o evangelho integral, antes de ser um fornecedor de ideias e interlocutor acadêmico é um movimento missionário. Mesmo assim fica evidente que o autor quer promover também este novo diálogo e estabelecer alianças além dos caminhos classicamente usados, pelo bem do tudo, mesmo que nem na expectativa mais otimista de uma colaboração mais abrangente “... será tarefa fácil acreditar na compaixão divina se consideramos apenas o testemunho das igrejas cristãs” (4.1, p. 315). Entendemos que não se trata aqui de uma tendência normalmente mais encontrada na teologia calvinista a não depositar muita esperança mesmo na igreja visível. Dife-

230 Helmut Renders: Vivenciar a com-paixão: a missão na América Latina diante o século 21

19helmut.indd 230 25/11/2010 11:54:48 rentemente, sinaliza-se aqui a convicção da atuação de Deus para além da igreja. Isso é um aspecto importante que a teologia wesleyana articula por meio da sua compreensão da graça preveniente. Feliz a integração da eclesiologia no capítulo da sua proposta mis- sionária, inclusive a escolha do título: “Igreja-em-missão: proclamar, servir, acompanhar” (4.4; p. 349-361). Isso lembra aos/às metodistas brasileiros/as do seu próprio lema: “Igreja Metodista, comunidade missionária a serviço do povo”. Além de afirmações mais clássicas encontramos reflexões importantes como: “Uma das características dessa igreja que aceita rever seu passado de colonialismo, de aliança de poderes opressores e de um divisionismo escandaloso, é assumir o desafio de se tornar igreja-com-os-outros” (p. 361). Talvez isso ajudasse a mudar o autoimaginário eclesiástico de uma igreja que está “a serviço do povo” em uma igreja que faz missão, “lado ao lado com os pobres” (alongside the poor), lema proposto pelo metodismo inglês em 1983. A diferença entre o lema metodista brasileiro e Zwetsch está no avanço missiológico desde a década de 80 e na busca da superação de vestígios de certo paternalismo missionário, inclusive quando ele vinha envolto numa vestimenta “progressista”. Outros avanços são a tematização da construção de uma missiolo- gia que dá conta dos desafios da sustentabilidade (4.6, 373-377). Para Zwetsch isso significa, primeiro, assumir o papel profético em relação às políticas econômicas estabelecidas e suas subjacentes ideologias (p. 375). Acresceríamos que igrejas preocupadas com seu sustento ou autossus- tento – aquelas longe da ideologia da prosperidade – em grande parte enxergam seu futuro somente num crescimento numérico. O fato que os projetos da garantia do [auto-]sustento eclesiástico e as intuições do pro- jeto da sustentabilidade estão na rota de colisão será um tema importante para a missiologia latino-americana contemporânea e prática. Em diversos momentos o autor reflete sobre o lugar da missiologia na própria teologia, como parte da teologia prática (proposta europeia - 4.7, p. 377) ou disciplina própria (práxis estadunidense - 4.7, p. 377). Ele opta pela primeira (4.2, p. 328ss) e critica que a missiologia seja tratada na academia – e na teologia prática?! – de forma periférica, apesar de ser de certo modo uma forma de teologia pública (“seu aspecto dimensional, que traduz precisamente essa abertura da teologia para o mundo”; 4.7, p. 378), assunto atualmente com certeza in vogue, tanto na academia luterana (Rudolf von Sinner) como na metodista (Clovis de Pinto Castro e Nicanor Lopes). Podemos perguntar se o seu objetivo seria melhor atendido pela valorização e talvez até expansão da disciplina ou pela criação de um eixo transversal envolvendo todas as disciplinas. A respeito da última ten- dência, segundo ele, típica para os seminários latino-americanos, o autor desconfia: “Ocorre que dessa forma se perdeu espaço para a reflexão

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19helmut.indd 231 25/11/2010 11:54:48 sistemática da missão” (4.7, p. 377). Esta discussão é importante e talvez seja a melhor forma para uma combinação entre uma transversalidade para valer e uma disciplina que dá conta do seu “... aspecto funcional [...] que responde pelo fazer missionário em diferentes contextos” (4.7, p. 378), de “... exercer uma função crítica ao desafiar a teologia a ser teologia viatorum, ou seja, teologia que caminha junto com os que caminham na missão de Deus” e de “... interagir com a práxis missionária com qual a missiologia convive numa permanente tensão criativa” (4.7, p. 379). Indo além dessa contribuição de Bosch, Zwetsch menciona ainda a tarefa a desenvolver em sua área com a ajuda de uma “imaginação cria- dora” (4.7, p. 379). Isso vale com certeza para toda teologia. O acréscimo a Bosch corresponde à relação geral do autor com esta missiologia sul- africana: Zwetsch quer dar continuidade à contribuição de Bosch (2002) e construir adiante, numa perspectiva latino-americana (Introdução, p. 16). Seria uma ampliação interessante de incluir então, numa futura edição, a contribuição presbiteriana na missiologia latino-americana. Pensamos aqui em Richard Shaull, Rubem Alves, Zwinglio Mota Dias e Luis Lon- guini Neto, apesar de que eles sejam, pontualmente, mencionados (por exemplo, em 3.1.1, p. 210 e Introdução, p. 14). Já a ausência de con- tribuições pentecostais o autor justifica com a lamentável falta de textos mais consistentes (1.1, p. 47-49). Concordamos com a necessidade de dialogar com a vertente do evan- gelho integral. Não foi comentado que algumas das igrejas que caminham hoje nesta direção já estavam mais avançadas em quanto à promoção da justiça (4.2, p. 333). Isso aconteceu na época da sua proximidade com o evangelho social. Constatamos aqui uma perda de memória, entretanto, isso é menos a tarefa da teologia luterana – que de fato nunca participou neste movimento – do que das igrejas calvinistas1 e, em parte, metodis- tas (cf. RENDERS, 2009, p. 43-65). Esqueceu-se, por exemplo, que o evangelho social, inclusive sua abertura ecumênica (Edimburgo 1910), fez parte do berço teológico de José Míguez Bonino e Rubem Alves (veja sua continua apreciação para o batista Walter Rauschenbusch; ALVES, 2007). Mesmo que o evangelho social não seja, historicamente falando, o missing link entre evangelho integral e teologia da libertação, ele poderia talvez servir como uma espécie de ponte entre os dois movimentos apro- ximando duas memórias: uma parte do movimento chamado depois da 2ª Guerra Mundial evangelical – e promotora do Congresso Missionário de Lausanne – fez parte do evangelho social e o evangelho social inspirou parte dos teológicos protestantes da teologia da libertação (Bonino, Alves), dos direitos cíveis (Martim Luther King, Jr.) e do movimento ecumênico 1 Esta memória contém os seus traumas com a grande crise presbiteriana entre 1938 e1940. Cf. a frase emblemática do âmbito da Igreja Presbiteriana Conservadora, fundada em 1940: “Não cremos no evangelho social, mas no Evangelho de Cristo”.

232 Helmut Renders: Vivenciar a com-paixão: a missão na América Latina diante o século 21

19helmut.indd 232 25/11/2010 11:54:48 (Vincent van Hooft), teólogos brasileiros da primeira parte do século 20 como Erasmo de Carvalho Braga, Epaminondas Mello do Amaral, Hugh Tucker e Guaracy Silveira e participantes do Setor de Responsabilidade Social da Igreja (1955-1964) da Confederação Evangélica do Brasil, por sua vez “... referência do Brasil...” (CUNHA, p. 146) do movimento Igreja e Sociedade na América Latina que partiu do Brasil (ISAL; cf. 2.1, p. 110- 111). Esta parte da história e conceituação da missão na América Latina, como já afirmamos, não será tarefa da missiologia luterana. Uma teologia da missão com o título com-paixão com tanta valoriza- ção da práxis sempre inclui um aspecto pessoal. Instituições promovem justiça, mas, não têm paixão, pessoas sim. Mas, para Zwetsch esta com- paixão jamais se esgotaria num com-sentimento, pelo contrário trata-se de um estilo de vida que ele descreve da seguinte forma (4.8, p. 390-391): • Viver a conversão como processo contínuo [...]; • Assume um modo de vida simples, mas não ingênuo; • Experimenta a graça de Deus como libertação e abertura ao outro [...]; • Entende a luta pela justiça e transformação de estruturas como desafio à própria fé e não como lago opcional; • Aprende a conviver com a dúvida e a incerteza, sem sucumbir a elas; • Abre-se a diversidade humana [...]; • Enfrenta a tentação e aprende a não julgar, mas a perceber a radicalidade do que significa amar o próximo como a si mes- mo; • Aprende a ouvir a palavra de Deus e a ouvir o outro como o coração e não apenas com a razão. Quanto à forma dessa vivência, Zwetsch afirma que o sacerdócio universal precisa ser desdobrado na direção de uma “atitude missionária universal”, leiga, contínua e cotidiana. A importância da “laicização” da missão é de fato uma das grandes lições tanto do impacto dos movimentos leigos católicos quanto das missões evangelicais e pentecostais. Zwetsch devolve seu argumento nessa linha e toca na questão da qualificação ou do conteúdo dessa missão leiga. Seria bom, se ele fosse ouvido.

Perspectivas

Um trabalho com a abrangência e estrutura dialogal em pro- pósito fraternal como este nos faz também sonhar. Por exemplo, com uma missiologia protestante, senão ecumênica, escrita em conjunto por diversas igrejas. O CLAI, co-editor do livro, seria uma adequada plata- forma para isso.

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19helmut.indd 233 25/11/2010 11:54:49 Um trabalho com 432 páginas, rico em informações, abordagens e diálogos com um número significativo de teólogos/as e missiólogos/as mereceria um índice remissivo, tanto de assuntos como de nomes. Assim consagrando este título com ainda mais facilidade como livro de trabalho e estudo para os cursos de teologia.

Referências

ALVES, R. Orações por um mundo melhor. Editora Nossa Cultura, 2007. [Audio Book]. Cf. RAUSCHENBUSCH, Walter. Orações por um mundo melhor. Com uma intro- dução de R. Alves. São Paulo: Paulus, 1997. 112p. Original: RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People: Prayers of the Social Awakening, Pilgrim Press, 1910. A primeira edição em português era da editora da Confederação Evangélica do Brasil: RAUSCHENBUSCH, Walter. Preces fraternais. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade, 1936. 106 p. (Série: Horas de recolhimento). BOSCH, D. J. Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. CUNHA, M. N. “‘O passado nunca está morto’. Um tributo a Waldo César e sua contribuição ao movimento ecumênico brasileiro”. In: Estudos de Religião, ano XXI, n. 33, p. 136-158 (jul./dez. 2007). Disponível em: < https://www.metodista. br/revistas/revistas-metodista/index.php/ER/article/view/192/202 >. Acesso em 10 jul. 2010. RENDERS, H. “`75 anos´ do Credo Social brasileiro: A Igreja Metodista em busca da formulação do seu papel cidadão”. In: Simpósio, vol. 11 (5), ano 33, n. 49, p. 43-65 (nov. 2009).

234 Helmut Renders: Vivenciar a com-paixão: a missão na América Latina diante o século 21

19helmut.indd 234 25/11/2010 11:54:49 O sagrado na política

The Sacred in Politics

El sagrado en la política

Lothar Carlos Hoch

Resumo Resenha do livro ROSA, Ronaldo Sathler. O Sagrado da Política. A dimensão esquecida na prática cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. 122 p. ISBN 978- 85-86671-29-6

Abstract Book Review of ROSA, Ronaldo Sathler. O Sagrado da Política. A dimensão esquecida na prática cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. 122 p. ISBN 978-85-86671-29-6 [Translation of the title: The Sacred in Politics: a forgotten dimension of Christian praxis]

Resumen

Reseña del libro ROSA, Ronaldo Sathler. O Sagrado da Política. A dimensão esquecida na prática cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. 122 p. ISBN 978- 85-86671-29-6

Inicialmente quero dizer da minha satisfação pela oportunidade de escrever esta breve resenha do mais recente livro do professor Ronal- do Sathler Rosa. Trata-se de um colega e amigo de longa data, com o qual tenho compartilhado sonhos e ideais na área da Teologia Prática, especialmente do Aconselhamento e da Psicologia Pastoral. O professor Ronaldo tem contribuído significativamente para a articulação de uma Teologia Pastoral voltada ao cuidado integral da pessoa, da família e de grupos marginalizados da sociedade. Nesta qualidade ele tem sido con- vidado como conferencista e autor de artigos em periódicos e coletâneas em diferentes contextos da América do Norte, da América Latina e da Europa. Em sua sabedoria, Ronaldo sempre soube conjugar sua função docente com a sua vocação pastoral, e assim foi construindo pontes entre a academia e as igrejas, num espírito de ampla abertura ecumênica. Ronaldo foi um dos pioneiros, no Brasil, a doutorar-se em Teologia Pastoral no exterior, na Claremont School of Theology, uma das mais con- ceituadas universidades dos USA, sob a orientação do saudoso professor Howard J.Clinebell. Ronaldo soube perceber e valorizar a amplitude e o

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20lothar.indd 235 25/11/2010 11:55:15 alcance da proposta do seu mestre e relacioná-la com a realidade política, social, cultural e eclesial do nosso contexto brasileiro e latino-americano. Um dos paradigmas centrais da teologia de Clinebell é o da integralidade (wholeness), considerado por ele, como o objetivo unificador de toda a ação pastoral. Ele entende a Igreja como “um lugar em que se liberta, sustenta e potencializa vida em toda sua plenitude, em indivíduos, em relações íntimas e na sociedade e suas instituições. O objetivo do ministério... é a liberta- ção o mais plena possível das pessoas na totalidade de seus contextos relacionais e sociais”. (CLINEBELL,2007, p.27). Eu leio o livro de Ronaldo “O Sagrado da Política” como uma tentativa de exercitar este ideal e de ampliá-lo para dentro do âmbito da política e da nossa existência cidadã. À primeira vista o título do livro surpreende e desperta a curiosi- dade no leitor, na medida em que fala da política em termos de uma categoria “sagrada”. Em que medida pode ser “sagrada” a política num país como o Brasil, no qual política é associada à corrupção e ao trá- fico de influências em benefício próprio ou de um determinado grupo? Jung Mo Sung, colega de Ronaldo na UMESP, em seu prefácio ao li- vro, aponta nesta mesma direção, ao dizer que “as igrejas cristãs vêem diante de si dois possíveis caminhos. Um, o mais fácil e mais tentador, é continuar o caminho que tem dado certo: a de só cuidar das pessoas no interior das suas igrejas e nos aspectos do cotidiano, sem se preo- cupar com o mundo mais distante da política ou das grandes questões econômicas” (p.8). Isso, como bem registra Mo Sung, reduziria “a missão cristã ao mundo da igreja, deixando de lado a missão de ser “sal da terra” para o mundo, de transformar o mundo com os valores do cristianismo” (id.ibid). O próprio Ronaldo, na introdução ao livro não deixa dúvidas a respeito da sua inquietude com respeito à estreiteza da compreensão de missão de algumas igrejas. Textualmente ele diz: “Os instrumentos tradicionais de cuidado pastoral foram estabelecidos para atender a pro- blemas do indivíduo em suas relações primárias... Contudo, resta uma lacuna: como lidar com as aflições, crises sofrimentos de pessoas se essas situações de desamparo e dor têm sua causa em circunstâncias externas, alheias ao indivíduo, tais como o descaso de poderes polí- ticos, a ineficácia de leis, ou a ausência delas, na ‘exuberante irracio- nalidade’ da ciranda financeira que gera desemprego e apatia?” (p.16). Nesta atitude de “indignação profética”, Ronaldo alerta, de um lado, para o risco dos cristãos e das igrejas de entenderem o preceito bí- blico da “obediência, da fé e da humildade” no sentido de uma sub- serviência aos poderes políticos instituídos (p.31s). De outro lado, adverte para a artimanha de determinados líderes políticos de bus- carem a “bênção” das igrejas e o voto dos seus fiéis, por meio da canalização de recursos públicos para finalidades de interesse ins- titucional das igrejas ou para o benefício pessoal da sua liderança.

236 Lothar Carlos Hoch: O sagrado na política

20lothar.indd 236 25/11/2010 11:55:15 O livro destaca a importância de a igreja ter uma atitude de vigilância em relação ao poder político constituído (pergunta: daria para se afirmar o mesmo também em relação ao poder judiciário?), visando contribuir para a instauração / restauração da dignidade da ação política como meio de promoção da saúde integral dos povos e de suas instituições (p.45s). A caminho da “Teologia articulada politicamente à política temperada pela Teologia” (cap. IV) Ronaldo faz uma interlocução interessante com as seis proposições do professor Carlos Josaphat. Eis a sua síntese: existe uma correlação entre a visão autêntica da política e a verdadeira com- preensão da fé evangélica; a fé baseada no Evangelho é fonte do amor e do discernimento humanos; a partir daí se espera tanto dos políticos e governantes quanto dos cidadãos a necessária lucidez na implementação do bem comum; por último, a busca desse ideal precisa estar respalda- da numa antropologia realista que tem plena consciência da natureza perversa do coração humano que tende a colocar os seus interesses particulares acima do bem comum (p.63ss). Deveras desafiadora é a tese apresentada no capítulo final, segundo a qual, “com a modernidade as culturas se tornam cada vez mais autô- nomas em relação à religião” (p.97). Ela é desafiadora na medida em que vislumbra a possibilidade de que a forma da sociedade se estruturar culturalmente viesse a tornar a religião supérflua. Porém, não seria a produção simbólica e, por con- seguinte, a religião uma característica intrínseca a qualquer cultura? Para finalizar, cabe dizer que Ronaldo Sathler Rosa escreveu um livro interessante e atual, na medida em que conseguiu abordar assuntos al- tamente complexos como a política, o sagrado e a cultura de forma que se evidenciassem tanto a especificidade quanto a inter-relação dinâmica entre essas esferas. Por força do caráter essencialmente encarnatório do sagrado, é impossível, separar de forma absoluta entre a esfera política e a esfera cultural/religiosa da existência humana. Por isso a pergunta continuará nos atormentando: “Quanto de sagrado é salutar para a política? E quanto de política é indispensável, respectivamente, nefasto para a religião? As relações incestuosas entre trono e altar que temos vivido no âmbito no cristianismo ocidental, de um lado, e a forma como se articulam as relações políticas e religiosas no âmbito dos países islâmicos no oriente, por outro lado, evidenciam de sobejo a atualidade e a perenidade desta pergunta”.

Referências Clinebell, H. Aconselhamento Pastoral. Modelo centrado em libertação e cresci- mento. São Leopoldo : EST/Sinodal, 4. ed. 2007, p.27.

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20lothar.indd 237 25/11/2010 11:55:16 Educação e espiritualidade: pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência

Education and spirituality: persons with disabili- ties, their invisibility and emergency

La educación y la espiritualidad: las personas con discapacidad, su inivisbilidad y emergencia

Rosa Gitana Krob Meneghetti

Resumo Resenha do livro COSTA-RENDERS, Elizabete Cristina. Educação e espiritu- alidade: pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência. São Paulo: Paulus, 2009. Coleção Pedagogia e educação.

Abstract Book Review of COSTA-RENDERS, Elizabete Cristina. Educação e espiritua- lidade: pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência. São Paulo: Paulus, 2009. Coleção Pedagogia e educação.

Resumen Reseña del libro COSTA-RENDERS, Elizabete Cristina. Educação e espiritua- lidade: pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência. São Paulo: Paulus, 2009. Coleção Pedagogia e educação.

A obra apresentada é fruto do processo de vivência, reflexão e sis- tematização da autora em um tema relevante, não só para a sociedade civil quanto para o âmbito da prática da espiritualidade: a questão da deficiência. No texto de apresentação do livro, Jung Mo Sung, ao se referir aos problemas que o convívio com as pessoas com condições diferentes nos apresentam, diz: “A verdade escondida da condição humana é revelada pela presença das pessoas com deficiência ou por pessoas e grupos sociais que sofrem outros tipos de exclusão ou marginalização”. Isto é: o ser humano na sua bela imperfeição, que o torna diferente e instigante, permanece escondido na sociedade de mercado que vivemos. Enquanto isso, aqueles para quem as diferenças são mais evidentes, ocupam o cenário e recebem os olhares mais certeiros e... excludentes. Mas cer- tamente isto não é à toa. Poucos desejam olhar para si mesmos, como

Rosa Gitana Krob Meneghetti: Educação e espiritualidade

21rosa.indd 238 25/11/2010 11:55:39 Elizabete propõe, para perscrutar seu corpo, sua alma, sua espiritualidade e por que não, sua consciência. Provavelmente porque este desnudamento implicaria assumir posturas éticas e valorativas diante das vulnerabilidades humanas. E segundo Boaventura Santos isto incomoda. O tema é por si só relevante para a compreensão da dinâmica da sociedade desde a formulação de suas políticas públicas até o estabeleci- mento da agenda da educação do País, em todas as suas instâncias. No entanto, sob o olhar apresentado no texto, a pergunta sobre a visibilidade das pessoas com deficiência em nossas comunidades, não pode se calar: Onde elas estão? Como vivem? Com que condições facilitadoras contam? Quem são seus aliados? Como realizam suas tarefas rotineiras que são também as de todos? Elizabete é pronta ao afirmar que “a face das pesso- as com deficiência ainda é uma face ausente” na sociedade! Mas a autora vai ainda mais fundo e pergunta: de onde podem vir as possibilidades de emergência? Quem pode abrir as portas, talvez as frestas das portas, para deixar entrar um novo modo de lidar com a questão? Sua resposta vem, então, do relato de algumas iniciativas, no âmbito da Teologia, que se afiguram como novas compreensões e entendimentos do problema. O livro é rico em citações e sua estrutura é propiciadora de um per- curso bem formulado para o/a leitor/a, no qual, pouco a pouco, capítulo a capítulo, ele/ela é convidado/a a participar de uma reflexão apurada e comprometida com a inclusão pelas formas de Vida. A metáfora do caminho entendido como processo pessoal e social, andança, percurso, movimento, dinâmica é muito feliz, pois se ajusta à natureza humana, tão frágil... tão lenta na compreensão... tão humana. Sou muito grata pela oportunidade de acompanhar como membro da comunidade acadêmica o trabalho realizado pela autora.

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21rosa.indd 239 25/11/2010 11:55:39 21rosa.indd 240 25/11/2010 11:55:39 Registros

Relação de autores e autoras

Notes on contributors

Relación de autores y autoras

Ms. Anderson de Oliveira Lima Bolsista de Doutorado do CNPq no Programa de Pós-Graduação em Ciências de Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Ber- nardo do Campo, SP. E-mail: [email protected]

Dr.ª Anete Roese Professora no Instituto de Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica de Minas Ge-rais, Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected]

Dr.ª Gabriele Greggersen Pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Catálise da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. E-mail: [email protected]

Drª Elnora Maria Gondim Machado Lima Professora de Filosofia no Centro de Ciências Humanas e Letras da Uni- versidade Federal de Piauí, Teresina, PI. E-mail: [email protected]

Dr. Geoval da Silva Bispo honorário da Igreja Metodista, nomeado para a IM de Ipiranga, São Paulo, SP. Professor do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, e coordenador do Estágio Supervisionado e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 241

22autores.indd 241 25/11/2010 11:56:02 Dr. Helmut Renders Presbítero da Igreja Metodista, nomeado para a IM de Rudge Ramos, São Bernardo do Campo, SP. Professor, Secretário do Centro de Estudos Wesleyanos e Coordenador da Editora Editeo da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected] Ms. Hugo Fonseca Professor tutor do Curso EAD na Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]

Dr. Lothar Carlos Hoch Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Professor de Teologia Prática na Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, RS. E-mail: [email protected]

Ms. Moisés Abdon Coppe Presbítero da Igreja Metodista nomeado para a Igreja Metodista Bela Aurora,Juiz de Fora, MG. Bolsista recém-doutor no Programa de Pós-Gradu- ação em Ciências de Religião da Universida-de Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]

Ms. Nicanor Lopes Presbítero da Igreja Metodista, nomeado como supervisor para IM de São Bernardo, Campi-nas, SP. Professor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo e coordenador do curso Bacharel em Teologia EAD [Educação a Distância]. E-mail: [email protected]

Dr. Norberto da Cunha Garin Professor de Filosofia, Reitor do Centro Universitário Metodista [IPA] e Diretor Geral da Rede Metodista de Educação do Sul [IPA, Americano, Centenário e União]. E-mail: [email protected]

Osvaldino Marra Rodrigues Mestrando de Filosofia na Universidade Federal de Piauí, orientado pela Drª Elnora Gondim. E-mail: [email protected]

Ms. Pedro Jiménez Celorrio Pastor da Igreja Presbiteriana Reformada de Cuba. Professor do Seminário Ecumênico Teoló-gico em Matanzas, Cuba. E-mail: [email protected]

242 Autores

22autores.indd 242 25/11/2010 11:56:02 Ms. Paulo Nogueira Presbítero e Superintendente Distrital da Igreja Metodista, nomeado para a Catedral Metodista de Piracicaba, SP. E-mail: [email protected] Dr. Robert Ervino Zwetsch Pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Professor de Missiologia e Teologia Prática na Escola Superior de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, RS.. E-mail: [email protected]

Dr.ª Rosa Gitana Krob Meneghetti Professora da Universidade Metodista de Piracicaba, Faculdade de Ci- ências da Religião. E-mail: [email protected]

Dr.ª Roseli Fischmann Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Humanidades e Di-reito da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 243

22autores.indd 243 25/11/2010 11:56:02 Normas para colaboração

A Caminhando é uma revista científica publicada semestralmente pela Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Ela está aberta para pesquisadores/as e docentes/as da área da Teologia e das Ciências da Religião que possuam o grau de doutor ou mestre ou estejam prestes a obtê-lo.

Apresentação de artigos O texto poderá ter no máximo 25.000 caracteres com espaços (digita- das em espaço duplo, fonte Times New Roman Times 12 ou equivalente, margem 2,5 cm) incluindo-se notas e bibliografia. Os artigos submetidos à revista Caminhando deverão ser nacionalmente inéditos e não estar, no momento, sendo objeto de apreciação por quaisquer outros meios de publicação impressa. A página de rosto deverá conter o título do artigo, nome do autor, um resumo em português e, se for possível, também em inglês e espanhol (no máximo 250 caracteres com espaços). Como infor- mações sobre o/a autor/a solicitamos a titulação, a ocupação e o e-mail do/a autor/a. Os artigos serão encaminhados para um/a parecerista, com base nos quais o editor tomará a sua decisão. A remessa do artigo poderá deve ser feita via Internet no portal da revista Caminhando:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para rodapé e referências bibliográficas As citações devem ser inseridas no corpo do texto, seguindo as for- mas (Autor, ano) ou (Autor, ano, página) como no exemplo (WEBER, 1991, p. 95). Se houver, do mesmo autor, mais do que um título citado, deve-se acrescentar uma letra após a data, tal como no exemplo: (WEBER, 1991b, p. 32). As notas de rodapé estão reservadas para informações comple- mentares. A bibliografia ou referências bibliográficas, quando houverem, devem ser colocadas no final do texto e obedecer à norma NBR 6023 da ABNT, 2002. Seguem alguns exemplos:

Livro: SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. Título da obra: subtítulo. Número da edição se não for a primeira, Local de publicação, estado: editora, data. RIBEIRO, C. de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Normas para colaboração

23normas.indd 244 25/11/2010 11:56:25 Artigo: SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do artigo”. In: Título do periódico, número da edição, páginas (data). PAULA, B. de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11, n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletânea: SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do capítulo”. In: iniciais do nome seguidas do sobrenome do organizador. Título da cole- tânea. Número da edição quando não for a primeira. Local de publicação, Estado: editora, data. MENDONÇA, A. Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós-gradu- ação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referências da Internet: Acresce-se, depois da citação do livro ou do artigo: Disponível em: < link >. Acesso em: dia[s]/mês/ano (somente números). RAUSCHENBUSCH, W.. For God and the People. Prayers of the Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Disponível em: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rau- suoft >. Acesso em: 20/03/2009.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 245

23normas.indd 245 25/11/2010 11:56:25 Guides for contributors

Caminhando is an scientific journal published semesterly by the Faculty of Theology of the Methodist University of Sao Paulo. It is open to resear- chers and professors in the area of Theology and Religious Studies who have a doctor’s or master’s degree or who are about to acquire one.

The presentation of articles The text may have a maximum of 25,000 characters including spa- ces (typed in double line spacing, Times New Roman font or equivalent, with a margin or 2.5 cm) notes and bibliography included. The articles submitted to Caminhando must be unpublished nationally and cannot be under appreciation by any means of press publication at the time. The title page must contain the article title, name of the author, an abstract in Portuguese and, if possible, in English and Spanish also (in a maximum of 250 characters including spaces). As information about the author we request the author’s academic degree, occupation and e-mail address. The articles will be submitted to an analyzer, and based upon his/her evaluation the editor shall decide. The article may be submitted by internet on the website of the Journal Caminhando:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Criterions for quotations and bibliographical references The quotations must be inserted in the text body following the format (Author, year) or (Author, year, page), e.g. (WEBER, 1991, p. 95). Existing more than one title quoted by the same author, a letter must be added after the date, e.g. (WEBER, 1991b, p. 32). The footnotes are reserved for complementary information. A few examples on the rules above:

Book: AUTHOR’S SURNAME, first name. Title of the book: subtitle. Num- ber of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing house, date. RIBEIRO, C. de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Guides for contributors

24ingles.indd 246 25/11/2010 11:56:49 Article: AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: Title of the periodical, number of edition, pages (date). PAULA, B. de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11, n. 17, p. 105-114 (2006).

Collection of articles: AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: name initials followed by organizer’s surname. Title of the collection of texts. Number of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing house, date. MENDONÇA, A. Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pósgradu- ação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Internet references: After the quoting of the book or article add: Available in:. Access in: day[s]/month/year (only numbers). RAUSCHENBUSCH, W. For God and the People. Prayers of the Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Available in: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft >. Access in: 20/03/2009.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 247

24ingles.indd 247 25/11/2010 11:56:49 Normas para colaboradores

Caminhando es una revista cientifica publicada semestralmente por la Facultad de Teología de la Universidad Metodista de São Paulo. Está abierta para investigadores/as y docentes del área de Teología y Cien- cias de la Religión que posean el grado de doctor o máster, o que estén próximos de obtenerlo.

Presentación de artículos El texto podrá tener como máximo 25.000 caracteres con espacios (digitados a doble espacio, tipografía Times New Roman 12 o equivalente y márgenes de 2,5 cm) incluyendo notas y bibliografía. Los artículos so- metidos a la revista Caminhando deberán ser nacionalmente inéditos y no estar, siendo objeto de apreciación por ningún otro medio de publicación impreso. La portada deberá contener el título del artículo, nombre del autor, un resumen en portugués y, caso sea posible, también en inglés y español (con un máximo de 250 caracteres con espacios). Solicitamos, como informaciones sobre el/la autor/a, la titulación, la ocupación y el e-mail. Los artículos serán enviados a un/a parecerista, basado en el/la cual el editor tomará su decisión. La remesa del artículo se podrá hacer vía portal de la revista on-line:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/ user

Normas para notas al pie y referencias bibliográficas Las citaciones deben figurar en el cuerpo del texto, siguiendo las formas (Autor, año) o (Autor, año: Página) como en el ejemplo (WEBER, 1991, p. 95). Caso haya más de un título citado del mismo autor, se debe añadir una letra después de la fecha, tal como en el ejemplo: (WEBER, 1991b, p. 32). Se deben reservar las notas al pie para informaciones complementarias. La bibliografía o referencias bibliográficas, caso existan, se deben colocar al fin del texto y seguir la norma NBR 6023 de la ABNT, 2002. A continuación, algunos ejemplos:

Normas para colaboradores

25espanhol.indd 248 25/11/2010 11:57:13 Libro: APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. Título de la obra: subtítulo. Número de la edición en caso de no ser la primera, Lugar de publicación, estado: editora, año. RIBEIRO, C. de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Artículo: APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del artí- culo”. In: Título del periódico, número de la edición, páginas (año). PAULA, B. de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11, n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletánea: APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del capí- tulo”. In: iniciales del nombre seguidas del apellido del organizador. Título de la coletánea. Número de la edición en caso de no ser la primera. Lugar de publicación, Estado: editora, año. MENDONÇA, A. Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós-gradu- ação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referencias de Internet: Añádase, después de la citación del libro o del artículo: Disponible en: < link >. Acezado a: día[s]/mes/año (solamente números). RAUSCHENBUSCH, W. For God and the People. Prayers of the Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Disponible en: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft >. Acezado a: 20/03/2009.

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25espanhol.indd 249 25/11/2010 11:57:13 Relação de Permutas

Journals exchange

Intercambio de revistas

ACTUALIDAD LITÚRGICA Boletín de La Comisón Episcopal para La Pastoral Litúrgica de México – MEX.

ANÁLISE E SÍNTESE Faculdade São Bento da Bahia – BRA.

THE ASBURY THEOLOGICAL JOURNAL Asbury Theological Seminary – EUA.

CADERNOS DA ESTEF Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, Porto Alegre, RS – BRA.

CARTHAGINENSIA Instituto Teológico de Murcia, Murcia – ESP.

CAMINOS: REVISTA CUBANA DE PENSAMIENTO SOCIOTELÓGICO Centro Martin Luther King, Jr, La Habana – CUB.

CIÊNCIA DA RELIGIÃO, HISTÓRIA E SOCIEDADE Instituto Presbiteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

COLETÂNEA Instituto Filosofia e Teologia do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, RJ – BRA.

COMPARTILHAR PASTORAL – REMNE Seminário Metodista Teológico do Nordeste – Região Missionária do Nordeste da Igreja Metodista – BRA.

CONTANDO NOSSA HISTÓRIA Instituto Teológico João Wesley, Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, RS – BRA.

CUADERNOS DE TEOLOGIA Instituto Universitário ISEDET – ARG.

DAVAR LOGOS Associación Colégio Adventista Del Plata – ARG.

Relação de permutas

26permutas.indd 250 25/11/2010 11:57:38 DESAFIOS DA REMA Revista da Região Missionária da Amazônia da Igreja Metodista – BRA.

DIDASKALIA Faculdade de Teologia de Lisboa / Universidade Católica Portuguesa – POR.

ENCONTROS TEOLÓGICOS Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, SC – BRA.

ESPAÇOS Instituto São Paulo de Estudos Superiores, São Paulo, SP – BRA.

ESTUDOS TEOLÓGICOS Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, São Leopoldo, SP – BRA.

FIDES REFORMATA Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper do Instituto Presbiteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

FRAGMENTOS DE CULTURA Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO – BRA.

HERMENÊUTICA Seminário Adventista Latino Americano de Teologia, Cachoeira, BA – BRA.

HORIZONTE Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, MG – BRA.

HORIZONTE TEOLÓGICO Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos religiosos do Instituto Santo Tomás de Aquino, Belo Horizonte, MG – BRA.

IGREJA LUTERANA Seminário Concórdia, São Leopoldo, RS – BRA.

INICIAÇÃO CIENTÍFICA CESUMAR Centro Universitário de Maringá-Cesumar, Maringá, PR – BRA.

KAIRÓS: REVISTA ACADÊMICA DA PRAINHA Faculdade Católica da Prainha, Fortaleza, CE – BRA.

LITTERARIUS Faculdade Palotina, Santa Maria, RS – BRA.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 251

26permutas.indd 251 25/11/2010 11:57:38 MAIÊUTICA DIGITAL: REVISTA DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS AFINS Faculdade Batista Brasileira, Salvador, BA – BRA. REVISTA MIRADA Centro Ignaciano de Espiritualidad de Guadalajara – MEX.

MISSIONEIRA Instituto Missioneiro de Teologia, Santo Ângelo, RS – BRA.

OIKODOMEIN Comunidad Teológica de México, Coyoacan – MEX.

LOGOS: REVISTA DE FILOSOFIA Universidad La Salle – MEX.

PASSO A PASSO Tear Fund.

PERSPECTIVA TEOLÓGICA Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – BRA.

PRÁXIS EVANGÉLICA Faculdade Teológica Sul Americana – BRA.

PISTIS & PRÁXIS Pontifícia Universidade Católica de Curitiba, PN – BRA.

PHRONESIS Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

RAZÃO E FÉ Universidade Católica de Pelotas, RS – BRA.

REDES: REVISTA CAPIXABA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Instituto de Filosofia e Teologia, Vitória, ES – BRA.

REFLEXUS Faculdade Unida de Vitória, ES – BRA.

REFLEXÃO E FÉ Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, Recife, PE – BRA.

REVISTA DE EDUCAÇÃO DO COGEIME Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA 18 Centro de Cultura Judaica – Casa de cultura de Israel, São Paulo, SP – BRA.

252 Relação de permutas

26permutas.indd 252 25/11/2010 11:57:38 REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIA Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, RJ – BRA. REVISTA DE CATEQUESE Centro Universitário Salesiano de São Paulo – BRA.

REVISTA DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO UNICAP Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE – BRA.

REVISTA DE CULTURA TEOLÓGICA Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA DE FILOSOFIA Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

REVISTA IMPULSO Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP – BRA.

REVISTA INCLUSIVIDADE Centro de Estudos Anglicanos, Londrina, PR – BRA.

REVISTA TEOLÓGICA Seminário Presbiteriano do Sul da Igreja Presbiteriana do Brasil, Campinas, SP – BRA.

REVISTA REFLEXÃO Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

REVISTA REDES Instituto Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Faculdade Salesiana de Vitória, ES – BRA.

REVISTA RELIGIÃO & CULTURA Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – BRA.

RHEMA-REVISTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antonio, Juiz de Fora, MG – BRA.

TEAR: LITURGIA EM REVISTA Centro de Recursos Litúrgicos da Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS – BRA.

REVISTA TEO-COMUNICAÇÃO Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS – BRA.

THEOPHILOS: REVISTA DE TEOLOGIA E FILOSOFIA Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS – BRA.

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 253

26permutas.indd 253 25/11/2010 11:57:38 TEOLOGIA Y VIDA: ANALES DE LA FACULDAD DE TEOLOGÍA Pontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago – CHL.

THEOLOGIE FÜR DIE PRAXIS Revista do Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen – RFA..

TQ TEOLOGIA EM QUESTÃO Faculdade Dehoniana, Taubaté, SP – BRA.

REVISTA UNICLAR União das Faculdades Claretianas, São Paulo, SP – BRA.

VIA TEOLÓGICA Faculdade Teológica Batista do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

VIDA Y PENSAMIENTO Universidad bíblica Latino Americana, San Jose – CRI.

VISÃO TEOLÓGICA Faculdade de Teologia Batista Ana Wollerman, Dourados, MS – BRA.

VOX SCRIPTURAE: REVISTA TEOLÓGICA BRASILEIRA Faculdade Luterana de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, São Leopoldo, RS – BRA.

254 Relação de permutas

26permutas.indd 254 25/11/2010 11:57:38 Diretórios e Indexações

Directories and Indexation

Directorios e Indización

1. DOAJ - Directory of Open Access Journals [DOAJ] 2. Ibict – Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas 3. LivRE! – Portal para periódicos de livre acesso na Internet 4. Methodistische Kirche WELTWEIT 5. Online Wesleyan/Methodist Journals – Duke Center for Studies in the Wesleyan Tradition

Indexações

Indexation

Indización

Nacional: 1. Sumários.org – Indexação de Revistas Eletrônicas Brasileiras 2. J-Gate [India] - Informatics (India) Ltd. 3. Portal de periódicos da CAPES [solicitado]

Internacional 4. DOAJ Content – Directory of Open Access Journals 5. Latinindex

Revista Caminhando v. 15, n. 2, jul./dez. 2010 255

27indexações.indd 255 25/11/2010 11:58:01 Pareceristas em 2010

Reviewers in 2010

Revisores en 2010

Dr.ª Anete Roese Dr.ª Blanches de Paula Dr. Claudio Ribeiro Dr.ª Débora Bretanha Junker Ms. Edson Lopes Dr. Etienne Alfred Higuet Dr. Fernando Bortolleto Filho Dr. Helmut Renders Dr.ª Ivoni Richter Reimer Dr. José Carlos de Souza Dr. Luís Wesley de Souza Dr.ª Magali de Nascimento Cunha Ms. Marcelo Carneiro Dr. Márcio de Oliveira Dr. Marcos Paulo Bailão Ms. Nicanor Lopes Dr. Paulo Ayres Mattos Dr. Paulo Nogueira Dr. Ronaldo Cavalcante Dr.ª Rosa Gitana Meneghetti Dr. Saulo Baptista Dr. Sérgio Marcus Lopes Ms. Suely Santos

Pareceristas em 2010

28pareceristas.indd 256 25/11/2010 11:58:26