2020, Editora Unijuí

Editor Rua do Comércio, 3000 Fernando Jaime González Bairro Universitário Diretor Administrativo 98700-000 – Ijuí – RS – Brasil Anderson Konagevski Capa Alexandre Sadi Dallepiane (55) 3332-0217 Imagem da capa freepik.com Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa [email protected] Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) www.editoraunijui.com.br

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Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí R129 Rádio no Brasil [recurso eletrônico]: 100 anos de história em (re) construção / organizadores Vera Lucia Spacil Raddatz ... [et al.]. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2020. 1 pdf. - (Coleção linguagens). Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader. E-book. ISBN: 978-65-86074-16-1 1. Rádio. 2. História. 3. Brasil. 4. Radiofonia. 5. Radiofusão pública. I. Raddatz, Vera Lucia Spacil. II. Título. III. Título: 100 anos de história em (re) construção. IV. Série. CDU : 654.195(81 Bibliotecária Responsável: Aline Morales dos Santos Theobald CRB10/1879 Proposta: Esta Coleção destina-se a publicações voltadas para a discussão das linguagens nos diferentes campos do conhecimento, relacionados aos cursos do Departamento de Ciências Administrativas, Contábeis, Econômicas e da Comunicação – Dacec – na sua interlocução com outras áreas. Tem como objetivo publicar textos que reflitam sobre as linguagens, a educação e a comunicação, a gestão, as transformações tecnológicas e as interlocuções de saberes na sociedade contemporânea. Temáticas: Linguagens, educação e comunicação; cultura e identidade; sociedade digital; mídias e tecnologias; criatividade e negócios; gestão, marketing e empreendedorismo. Conselho Editorial Adair Bonini (UFSC) Ana Cristina Matte (UFMG Angela Maria Zamin (UFSM/Cesnors) Beatriz Mariz Maia de Paiva (University of Essex) Carlos Gustavo Martins Hoelzel (UFG) Carlos Rafael Luis (UBA) Cicilia Krohling Peruzzo (Uerj) Claudia Luiza Caimi (UFRGS) Cleudemar Alves Fernandes (UFU) Debora Cristina Lopez (Ufop) Eugenio Andrés Díaz Merino (UFSC) Freda Indursky (UFRGS) Gesualda de Lourdes dos Santos Rasia (UFPR) Gilvan Müller de Oliveira (UFSC) Itiro Iida (UNB) Jean-Marc Dewaele (University of London) Júlio César Araújo (UFC) Karla Maria Muller (UFRGS) Kenny Basso (Imed) Leda Verdiani Tfouni (USP) Lucia Rottava (UFRGS) Luiz Francisco Dias (UFMG) Luis Riffo Pérez (Ilpes-Cepal) Maria Teresa Celada (USP) Marcela Guimarães e Silva (Unipampa) Marcos Paulo Dhein Griebeler (FACAAT) Marcos Silva Palacios (Ufba) Maria Ivete Trevisan Fossa (UFSM) Maria Onice Payer (Univas) Marilei Resmini Grantham (Furg) Monica Fantin (UFSC) Nelia Rodrigues Del Bianco (UnB) Roberto Leiser Baronas (Ufscar) Sirio Possenti (Unicamp) Solange Leda Gallo (Unisul) Valdir Nascimento Flores (UFRGS) Volnei Antonio Matté (UFSM) Comitê Editorial Airton Adelar Mueller Fernando Jaime González Lurdes Marlene Seide Fröemming Vera Lucia Spacil Raddatz SUMÁRIO

PREFÁCIO Um século de rádio no Brasil: o desafio dos pesquisadores...... 7 Marialva Barbosa APRESENTAÇÃO...... 11 Ana Regina Rêgo PARTE 1 – Radiofonia em Construção: os pioneiros UMA (RE)ESCRITA DA HISTÓRIA DO RÁDIO...... 16 Vera Lucia Spacil Raddatz, Marcelo Kischinhevsky, Debora Cristina Lopez, Valci Regina Mousquer Zuculoto AMADORES DA TELEGRAFIA SEM FIO Um século de pioneirismo, radiofonia e implicações políticas da Rádio Clube de Pernambuco PRA-8...... 26 Adriana Santana, Ana Veloso, Paula Reis Melo INTELECTUAIS DA RADIODIFUSÃO NAS PÁGINAS DA IMPRENSA ESPECIALIZADA: A Configuração do Campo Radioeducativo na Cidade do Rio de Janeiro (1920)...... 43 Luciana Borges Patroclo, Cintia Oliveira Conceição, Fernando Rodrigo dos Santos Silva A REDE VERDE-AMARELA, O PIONEIRISMO ESQUECIDO DA FAMÍLIA BYINGTON...... 62 Marizandra Rutilli

O INÍCIO DA NARRAÇÃO ESPORTIVA NO RÁDIO BRASILEIRO: As Transmissões Pioneiras...... 79 Carlos Gustavo Soeiro Guimarães PARTE 2 – Espetáculo Massivo de Influência Política ENTRE A OPINIÃO E A PANFLETAGEM, A CRÔNICA PASSEIA PELO COTIDIANO...... 97 João Batista de Abreu DE ABELARDO BARBOSA A : O Papel do Velho Guerreiro Como Comunicador de Rádio...... 118 Luiz Artur Ferraretto PERMANÊNCIAS E MUTAÇÕES DA ORALIDADE NOS PRIMEIROS JINGLES RADIOFÔNICOS BRASILEIROS...... 137 Fernanda Vasques Ferreira, Rafiza Varão MAPEAMENTO DAS EMISSORAS DE RÁDIO E GRAVADORAS ENVOLVIDAS NA PRODUÇÃO DE COLETÂNEAS DE SUCESSOS INTERNACIONAIS NOS ANOS 70...... 152 Johan Cavalcanti van Haandel

PARTE 3 – Educativo, Comunitário, Universitário: pluralidade no campo da radiodifusão pública A RÁDIO DA UNIVERSIDADE ENTRE AS DÉCADAS DE 60 E 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação...... 170 Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas PERCURSOS PIONEIROS DO WEBRÁDIO UNIVERSITÁRIO NO BRASIL E OS 20 ANOS DA RÁDIO PONTO UFSC...... 188 Valci Regina Mousquer Zuculoto, Karina Woehl de Farias Guilherme Gonçales Longo A VOZ DO BRASIL: A Adoção de Formatos Radiojornalísticos Pelo Programa Oficial ao Longo de Seus 85 Anos...... 203 Luciana Paula Bonetti Silva A HISTÓRIA DAS RÁDIOS COMUNITÁRIAS NO BRASIL. Pontos e contrapontos de lutas históricas pela democratização da comunicação ...... 219 Orlando Maurício de Carvalho Berti

PARTE 4 – A Que Rádio Chegamos? Os desafios do digital PODCAST: Modos Narrativos que Apontam Tensões Entre a Liberdade de Criar, de Escutar e de Monetizar...... 238 João Alves, Nair Prata, Sônia Caldas Pessoa RÁDIO E PODCAST JORNALÍSTICOS BRASILEIROS: Aproximações e Afastamentos Entre a Mídia Tradicional e o Novo Formato de Produção e Consumo de Áudio...... 256 Nivaldo Ferraz, Daniel Gambaro ARQUIVOS DIGITAIS E MEMÓRIA EM RÁDIOS EDUCATIVAS: Estudo de Caso da Rádio Ufop Educativa...... 275 Debora Cristina Lopez, Marcelo Freire, Gláucio Antônio Santos

PARTE 5 – Cartografias da Radiodifusão O CAIPIRA QUE VOS FALA: A História do Rádio em Goiás dos Alto-Falantes às Emissoras Profissionais (1920-1980)...... 291 Rosana Maria Ribeiro Borges, Ricardo Pavan RÁDIOS CIPÓS: Experiências Analógicas em Três Cidades Pequenas do Maranhão...... 309 Sonia Virgínia Moreira, Thays Assunção Reis RÁDIO E PODER POLÍTICO NO MARANHÃO, UMA HISTÓRIA DE 78 ANOS (1941-2019)...... 323 Izani Mustafá, Nayane Brito DO REGATÃO ÀS ONDAS SONORAS: O Rádio Ainda Integrando a Amazônia...... 338 Luciana Miranda Costa, Patricia Teixeira Azevedo Wanderley PANORAMA DA HISTÓRIA DO RÁDIO NO PARÁ: Um Estudo Exploratório das Rádios AMs...... 352 Netília Silva dos Anjos Seixas, Leonardo Santana dos Santos Rodrigues, Jessé Andrade Santa Brígida DO CORONELISMO À WEB: Panorama do Rádio no Sul da Bahia...... 370 Eliana Albuquerque O RÁDIO EM MATO GROSSO DO SUL: Um Resgate Histórico das AMs que Nasceram no Antigo Mato Grosso Uno...... 388 Hélder Samuel dos Santos Lima, Aline de Oliveira Silva, Daniela Cristiane Ota A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas

A RÁDIO DA UNIVERSIDADE ENTRE AS DÉCADAS DE 60 E 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação

Cida Golin1 Ana Laura Colombo de Freitas2

ascida nos fundos da Escola Eletrotécnica, a Rádio da Universidade acabara de conquistar um prédio próprio quando os Jogos Mun- Ndiais Universitários movimentaram , em 1963, e cha- maram a equipe para sua primeira saída a campo. A rádio foi escolhida como a emissora oficial do evento Universíade, e encarou o desafio de uma cobertura esportiva, fazendo transmissões diretamente dos locais das competições durante dez dias. Montou-se uma verdadeira força-tare- fa, com engajamento de todos os funcionários e colaboradores externos. Com o apoio de tradutores para diferentes línguas, foram produzidos bo- letins amplamente difundidos por meio das ondas curtas da Guaíba, que cedeu 30 minutos diários em sua programação noturna. O resultado foi uma “magnífica cobertura radiofônica”, na avaliação da Revista do Globo (Pinho et al., 1963, p. 47). Carregando o slogan de primeira rádio universitária do Brasil, a emissora inaugurada em novembro de 1957 vinha na esteira de um efervescente contexto cultural vivido pela cidade e pelo país, quando a Universidade tomava para si a missão de expandir o diálogo com a co- munidade (Golin; Freitas, 2019). Este texto dá seguimento à investigação anterior que buscou entender as condições culturais e o espírito de época

1 Possui Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Doutorado em Linguística e Letras pela PUCRS. É professora no curso de Jornalismo e no curso de Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da UFRGS. [email protected] 2 Possui Graduação em Comunicação Social e Mestrado em Comunicação e Informação pela UFRGS. É servidora técnico-administrativa, com cargo de jornalista, na Rádio da Universidade (UFRGS). [email protected]

170 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas

que fez a rádio emergir. Nesta etapa procuramos sistematizar dados so- bre as primeiras décadas de sua atuação entre os anos 60 e início dos 70, período em que a rádio consolida seu perfil cultural e de programação. Vamos recorrer à pesquisa bibliográfica e às vozes registradas no arqui- vo da emissora, iluminando a perspectiva de profissionais que acompa- nharam os primeiros anos. Estas entrevistas foram concedidas durante as efemérides de 30 (1987) e 50 anos (2007) do veículo, além de uma nova gravação realizada em abril de 2019 com o crítico de cinema Hélio Nasci- mento. No horizonte da história cultural (Pesavento, 1999) buscaremos partir dos indícios encontrados nos depoimentos e na bibliografia para tecer relações entre a emissora e o sistema de cultura local, assim como observar fragmentos de seu percurso na trajetória da Universidade, par- ticularmente do Instituto de Filosofia e do curso de Jornalismo, dos quais ela também é tributária.

Anos 60: educação a distância e novos desafios para o rádio Em 1961, segundo dados do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), havia 530.964 receptores de rádio e apenas 14.302 aparelhos de televisão no Rio Grande do Sul. Ou seja, 52% dos mais de um milhão de domicílios recebiam transmissões sonoras das cerca de 90 emissoras instaladas no Estado. Este panorama mudaria radicalmente dez anos depois, quando o Ibope aferiu, em 1971, que havia 350 mil televi- sores, 65% deles na capital, ligados, sobretudo, das 20 horas às 22 horas (Ferraretto, 2007). Como os números apontam, ao longo da década de 60 o rádio perdeu protagonismo na sala de visitas e, possivelmente, aquela dimensão de escuta focada e contemplativa tão importante para a pro- posta de uma emissora jovem como a Rádio da Universidade. A populari- zação do transistor, porém, e dos famosos aparelhos japoneses da marca Spica, objeto de desejo dos ouvintes, fizeram com que o rádio reconfi- gurasse suas práticas. Aproximou-se do corpo do ouvinte, do ouvido do torcedor, da atenção distraída do cotidiano, das notícias da cidade. Foi o período também em que a radiodifusão educativa ganhou impulso. No início daquela década, além da força crítica das escolas ra- diofônicas do Movimento de Educação de Base (MEB), o governo reser- vou frequências exclusivas para a mediação da educação a distância. Em

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1962, a Rádio da Universidade Federal de Goiás recebeu outorga para o canal; em 63, foram concedidas licenças para a Rádio da Universidade Fe- deral de Pernambuco e para a rádio da Escola de Engenharia de Itajubá, em Minas. No ano de 1969, a Cultura (1936) de São Paulo passa a trans- mitir dentro dos propósitos da Fundação Padre Anchieta (Blois, 2004, p. 156; Zuculoto, 2010). Em Porto Alegre, após conquistar, em 1960, novas instalações no prédio histórico da rua Sarmento Leite, antes ocupado pelo Instituto Re- gional Meteorológico, a Rádio da Universidade consolidava sua reputação como veículo de caráter educativo-cultural. Sua discoteca tornava-se uma referência para ouvintes que por intermédio dela cultivavam seu gosto pela música de concerto, ainda que a emissora também fosse acusada de elitista por veicular uma tradição de origem europeia. Naquele ano, particularmente, as polêmicas culturais movimentaram a provinciana ca- pital, não apenas nas palavras de “marasmo cultural” com que o pintor Iberê Camargo tachou as artes locais. Na Universidade, a decisão final do Conselho Universitário impediu o encontro dos filósofos Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, durante sua visita ao Brasil, com a comunidade acadêmica porto-alegrense (Scarinci, 1982; Schirmer, 2000). A rádio era um dos principais frutos da gestão de Elyseu Paglioli, ex-prefeito de Porto Alegre, que teve quatro mandatos sucessivos na Rei- toria, entre 1952 e 1964. Nascera em 1957, em um período de abertura social da Universidade, com expressivo aumento do patrimônio imobiliá- rio da instituição, remodelação e criação de órgãos de difusão e extensão cultural, como teatro, orquestra, coral e gráfica (Soares; Silva, 1992). A emissora surgia, assim, na esteira “de um verdadeiro caldeirão cultural” (Appel, 2007). Até o final de sua primeira década de existência, no entanto, a emissora veria o cenário ao seu redor se transformar profundamente. Após o golpe militar de 1964, prisões e cassações fariam parte da rotina da Universidade, reprimindo o debate de ideias no meio acadêmico. Em 2 de abril daquele ano, a emissora participaria do movimento legalista de resistência, liderado por Leonel Brizola, recebendo um Grupo de Onze, formado por estudantes que assumiram as transmissões com o aval do comandante do 3º Exército, Ladário Telles, que apoiava Jango (Nasci- mento, 2019; Oliveira, 1994). Naqueles dias agônicos, o então deputado federal Leonel Brizola e aliados tentaram, sem sucesso, repetir via rádio

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Mayrinck Veiga, rádio Nacional e outras, a campanha exitosa da Legalida- de de 1961 pelo respeito às regras constitucionais e democráticas. Preca- vendo-se, no entanto, da reedição do levante sonoro, o governador Ildo Meneghetti, favorável aos militares, requisitou todas as rádios e TVs de Porto Alegre (Ferraretto, 2007, p. 127-128).

A formação da discoteca e a produção de conteúdo por especialistas Aluno do curso de Letras, então vinculado à Faculdade de Filosofia, e ouvinte da rádio, Flávio Oliveira começou a colaborar com a emissora em 1964. Paralelamente à formação universitária, ele estudava música e atuava como compositor. “Eu propus que se fizessem programas de divul- gação da música, levando um pouco mais que os comentários usuais que saíam nos jornais, contracapas de discos, etc.” (Oliveira, 2007). A propos- ta aliava-se ao programa “Mestres da Música Alemã”, do compositor Ar- mando Albuquerque, figura essencial desde os primórdios da rádio, que exerceu especial influência para a definição do repertório da emissora. Mediante parceria firmada com o consulado da Alemanha em Porto Ale- gre, periódicas doações de discos tornavam-se conteúdo do programa e ajudavam na construção de uma discoteca referencial na área.

Figura 1 – O compositor Armando Albuquerque nos estúdios da Rádio da Universidade

Fonte: Arquivo da Rádio da Universidade

Com essa discoteca privilegiada e a presença de especialistas no assunto, a rádio se consagrava entre as instituições protagonistas no cam- po da música de concerto no Estado, na esteira de um contexto propício

173 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas para isso na própria UFRGS. Em 1962, o Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul era encampado pela universidade. Pouco antes, em 1961, o maestro húngaro Pablo Komlós, responsável pela criação da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) na década anterior, fundava o Coral da UFRGS para atuar junto a formação que dirigia. O movimento coral, aliás, iria agitar o campus universitário nos anos seguintes com os Festivais de Coros do Rio Grande do Sul, que ocorreram de 1963 a 1978 e atraíram grupos de outros Estados do Brasil e países da América Latina (Teixeira, 2015). Também atuavam na UFRGS à época o Coral de Câmara da Facul- dade de Filosofia e o Madrigal, regidos por Madeleine Ruffier, que dariam origem, em 1969, ao Conjunto de Câmara de Porto Alegre, dedicado à música renascentista e medieval. No relatório anual de sua gestão, em 1978, o reitor Homero Só Jobim destacaria o lançamento do LP “Música Renascentista” do Conjunto pela Universidade. O Salão de Atos da UFRGS, que nascera junto com a rádio no final dos anos 50, firmava-se como um dos principais palcos da cidade, abri- gando concertos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e de outros ar- tistas e formações. Também nomes ilustres da cena musical internacional ali se apresentaram nas temporadas da Pro Arte, dirigida em Porto Alegre por Eva Sopher, alemã recém-chegada à cidade (Hohlfeldt, 1991). Neste contexto, Flávio Oliveira (2007) relata que estudantes de música tinham na rádio um ambiente de aprendizagem, preparando reci- tais de meio e de fim de curso em apresentações no estúdio; conversando com os especialistas, escutando e consultando uma coleção de discos que chegou a reunir 18 mil vinis. Esses discos traziam praticamente a história da música contempo- rânea pra cá, tudo que se estava produzindo na Europa e nos Esta- dos Unidos. (...) Inclusive isso teve um papel muito importante na minha formação e na formação de muitos músicos, que se antena- ram que aqui na Rádio havia esse material. Pra tu teres uma idéia, o material era de tanta qualidade que algumas contracapas eram de Pierre Boulez, Theodor Adorno (Oliveira, 2007).

A riqueza dessa coleção era compartilhada com os ouvintes da emissora por meio de uma programação meticulosamente elaborada e alicerçada em uma missão de formação do gosto pela música de concer- to. O depoimento do programador Rubem Prates (2007), que atuou na rádio a partir de 1975 e por quase três décadas, ilumina esse ideal:

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Era função de todos nós darmos um caráter didático à programa- ção. Nós não colocávamos música apenas pra preenchermos espa- ço. Nós colocávamos a música com a intenção de transmitir uma forma de conhecimento, desenvolver a escuta do ouvinte e des- pertar nele a curiosidade por aquele autor, aquela obra.

Com este objetivo, a Rádio da Universidade se caracterizou por apresentar as obras na íntegra, e por muitos anos acompanhadas por co- mentários informativos sobre a composição e seu autor. Apesar da espe- cificidade de ser um veículo que permite que as pessoas realizem outras atividades enquanto o escutam, a proposta da emissora não era servir de música de fundo para a rotina de seus ouvintes. A programação musical era pensada presumindo uma escuta atenta e interessada. Ao justificar sua preferência por veicular o repertório camerístico, Prates (2007) dei- xa isso claro: “Eu sempre imaginava a rádio sendo ouvida em um local confortável, sentado na sua poltrona favorita. Eu acho que a música de câmara conseguia retratar aquela situação”. Além das gravações, a rádio transmitia concertos ao vivo, direta- mente do Salão de Atos da Reitoria, do Theatro São Pedro e do Instituto de Belas Artes. Sem sair de casa, a comunidade tinha a chance de ouvir, por exemplo, as apresentações da Orquestra Filarmônica de Nova York, dos Meninos Cantores de Viena, da Orquestra de Câmara de Stuttgart e de alguns dos principais instrumentistas locais, como Jean Jacques Pag- not e Zuleika Rosa Guedes. O operador técnico Manuel Torres de Almeida (2007) recorda que, numa noite, a emissora irradiava o recital da violista Nobuko Imai no velho Theatro São Pedro, quando um spot de luz desabou ao lado dela. O teatro da Praça da Matriz estava em más condições de manutenção e seria fechado para uma grande reforma a partir de 1973. Talento porto-alegrense que despontava naquele cenário, o pianis- ta Roberto Szidon estrearia na Rádio da Universidade, em 1964, com o programa semanal chamado Brasil Musical, transmitido ao vivo, nas noi- tes de segunda-feira. Àquela época, ele já conquistava reconhecimento no Rio de Janeiro, gravando a música de Heitor Villa-Lobos e fazendo a plateia do Theatro Municipal aplaudir em pé (Noite..., 1964). Na emis- sora universitária, Szidon dava vida ao Grotrian-Steinweg de meia cauda recém-adquirido pela Reitoria, especialmente para o estúdio instalado na rua Sarmento Leite. O programa era focado na música de concerto brasi- leira, com especial atenção à produção contemporânea. Em 1967 o mú-

175 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas sico se transferiria para a Alemanha e passaria a desenvolver sua carreira internacionalmente e a gravar dezenas de discos para o selo Deutsche Grammophon. Tanto o programa de Roberto Szidon quanto os de Hélio Nascimen- to, Armando Albuquerque e Flávio Oliveira eram redigidos e roteirizados por eles, mas apresentados pelos locutores da Rádio da Universidade, como Celestino Valenzuela e Carlos Alberto Carvalho. Apenas em meados da década de 70 os especialistas seriam autorizados a fazer a locução de seus programas. Nascimento (2019) relata que, dada a especificidade do conteúdo veiculado pela emissora da UFRGS em relação aos comerciais, eram cometidos muitos erros de pronúncia. Além dessas dificuldades, Oliveira (2007) entende que passou a ser valorizado “o jeito de falar das pessoas” e a riqueza de sentidos que outros tipos de vozes podiam trazer ao texto radiofonizado. Essa mudança ocorria em meio a uma série de transformações pelas quais passava a Universidade.

A reforma universitária e o curso de Jornalismo Em 1970 seria efetivada a reforma universitária na UFRGS. A emis- sora, ligada até então ao gabinete do reitor, passou a integrar o Centro de Teledifusão Educativa. No mesmo ano o curso de Jornalismo, base de muitos dos profissionais da rádio, deixaria de estar vinculado ao Instituto de Filosofia para integrar a Faculdade de Biblioteconomia e Comunica- ção. De viés tecnicista e com profunda repercussão na organização dos saberes e de seus cruzamentos, a reforma aos moldes norte-americanos faria a Universidade se dividir em departamentos e optar pelo isolamento dos campi, de preferência bem longe das lidas cotidianas e da agitação citadina. Na contramão do isolamento, o Instituto de Filosofia, desde os anos 50, constituíra um local de convergência da vida intelectual da cida- de. O seu impacto na sociedade e o nível de excelência do professorado, com figuras exponenciais da cultura do Estado e do país, lhe garantiram autonomia dentro da estrutura universitária, vinculando-se diretamente à Reitoria no campus central, bem próximo ao prédio da rádio. Era uma espécie de “miniuniversidade”, polo de intercâmbio de alunos e profes- sores, de publicações, de eventos científicos e de integração interdisci- plinar. Ali estava, por exemplo, o professor de Filosofia Gerd Bornheim,

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não apenas aproximando os alunos das questões de fundo da vida, mas estimulando-os para produção de crítica cinematográfica e de atuação na imprensa cultural (Lunardelli, 2008, p. 106-110). Assistente do catedrático Guilhermino César, o professor de Litera- tura do Colégio Aplicação na década de 60, Carlos Jorge Appel, costumava fazer programas semanais de poesia na rádio, visitando desde o cancio- neiro medieval português até a voga do Concretismo. Para ele (2007), a programação da Rádio da Universidade tornava seus ouvintes “mais atua- lizados, mais concertantes com a modernidade e menos provincianos”, ampliando a circulação das ideias gestadas na Faculdade de Filosofia e da produção artística da Universidade. Na segunda metade dos anos 60, a repressão atingiu fortemente a Filosofia, com pelo menos duas levas de professores expurgados ou compulsoriamente aposentados. Em junho de 1968, no auge das mani- festações internacionais estudantis, pelo menos 700 estudantes tomaram o simbólico Instituto reivindicando sua participação nos processos deci- sórios da Universidade. A derrocada ocorreu em 1969, após uma greve discente de mais de um mês, quando muitos abandonaram seus cursos (Associação..., 2008). Naquele ano, o diploma de Jornalismo passaria a ser obrigatório para o exercício profissional. A criação das escolas de Co- municação, numa política gerida pelo Centro de Estudios Superiores de Periodismo para América Latina (Ciespal), da Unesco, determinava essa grande área como o guarda-chuva das habilitações profissionais numa proposta de formação híbrida e difusa. Assim, em 1970, definiu-se que o curso de Jornalismo, e logo depois o de Biblioteconomia, locado na Fa- culdade de Economia, integraria a recém-inaugurada Fabico no prédio da Gráfica, no Campus Saúde. O então estudante Carlos Urbim (2010), estagiário da Rádio da Uni- versidade desde 1969, acabou pegando a passagem do curso de três anos “nas salas com menos janelas da velha Filô” para o novo Bacharelado em Comunicação Social, com quatro anos de novas disciplinas. No meio do caminho, haveria a escolha entre Jornalismo e a nova área de Relações Públicas/Publicidade que naquele momento se criara. Trazendo a cente- lha acesa da Filosofia, o happening Saco 70, semana artística organizada pelos alunos da Fabico em 1970, agitou, pela primeira vez, um salão tér- reo que servira de almoxarifado, justo quando havia proibição expressa dos formatos “festivais” nas universidades do país (Schneiders, 2010).

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A caixinha dos estagiários

Nos últimos anos da década de 60, da Filô e da Fabico vieram mui- tos estagiários para fazer sua formação na rádio e, não raro, questionar critérios editoriais e de padrão musical, defendendo a abertura do per- fil de programação. Segundo Iara Bendatti (1987), integrante da primeira equipe da emissora e uma das primeiras mulheres a ocupar as redações na década de 50, a entrada dos jovens estudantes significou um “elemen- to renovador”. Em 1970 havia pelo menos cinco televisões instaladas no Rio Grande do Sul e vivia-se a hegemonia do grupo Caldas Júnior no setor de imprensa; a primeira experiência de transmissão do som ambiente em FM ocorreria em 1973, e os jovens de classe média já tinham sua emis- sora predileta desde 1971, a Continental, que tocava música brasileira e estrangeira e noticiava de um jeito irônico e muito porto-alegrense (Fer- raretto, 2007; Haeser, 2007). No segmento educativo, há uma expansão do sistema estatal e centralizado de educação não formal por meio do rádio, e o Projeto Minerva (1970), de transmissão obrigatória a todas as emissoras, foi o paradigma daquele período (Blois, 2004). Na redação da Rádio da Universidade, Bendatti zelava criteriosa- mente pela checagem dos dados e pelo texto rigoroso. Dentro de uma caixa de madeira em formato de meia folha A4, eram colocadas as no- tícias que seriam lidas pelos locutores nos intervalos da programação musical da Rádio da Universidade, textos que, não raro, exasperavam a jornalista. Em 1976, após o final do expediente, escreveu uma carta para seus jovens estagiários:

[...] Não é que eu queira ser caxias, paparicar a diretora, o reitor, a ordem estabelecida, o que quiserem. O problema é profissional. Em termos mais modestos, até mesmo de domínio da língua fa- lada, trivial, feijão com arroz. Há verbos como ver, poder, assistir – conjugados sempre no mesmo tempo, em construções absolu- tamente iguais, em textos um ao lado do outro. Há textos iguais colocados sem intervalo ou com apenas um ou dois espaços. Há rasuras absurdas, que o locutor não pode decifrar num correr de olhos. Há informações erradas, como uma “Secretaria da OEA nesta cidade”. Há textos de apenas uma frase – quando expliquei que sempre devemos fazer, no mínimo, dois períodos. Há textos com menos de quatro linhas, capengas, esqueléticas [...] (Bendatti, 2010).

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Figura 2 – A Kombi estacionada em frente à Rádio da Universidade

Fonte: Arquivo da Rádio da Universidade.

Em 1973 a equipe de jornalismo ganhara uma Kombi a sua dispo- sição para coberturas externas, mas a mobilidade facilitada durou poucos anos. O veículo sofreu um acidente próximo ao prédio da emissora, no Túnel da Conceição (Urbim, 2007). A passagem ainda era uma novidade no trânsito da capital. Havia sido inaugurada em 1972, quando Porto Ale- gre era um verdadeiro canteiro de obras. Sob a administração de Telmo Thompson Flores, viadutos e perimetrais cortavam ruas estreitas e enter- ravam para sempre o desenho delicado do Centro Histórico. O famigera- do muro da Mauá estava sendo construído para deixar a cidade segura e de costas para o rio nas décadas seguintes, enquanto arrancavam-se os trilhos dos bondes a fim de dar passagem à lógica individualista do auto- móvel. Ao mesmo tempo em que ganhava fôlego, a equipe de jornalismo da rádio passou a dividir seu espaço com a Fundação Educacional e Cultu- ral Padre Landell de Moura (Feplam), criada dentro do prédio da Rádio da Universidade, que expandia suas atividades a ponto de colocar em xeque o escopo inicial da emissora. A Feplam foi criada em 1967 no âmbito das iniciativas estatais que propunham centros produtores regionais de radio- fonia educativa. Foi quando surgiu também a Fundação Padre Anchieta em São Paulo e o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb). Se-

179 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas gundo Blois (2004), buscava-se introduzir uma postura científica nas fases de produção do rádio educativo. O advogado e cronista Nilo Ruschel, pro- fessor catedrático de Rádio do curso de Jornalismo, fez parte da primei- ra equipe da Feplam. Em 1963, como diretor da Rádio da Universidade, viajou para os Estados Unidos e, em 1968, para a Inglaterra e Alemanha a fim de conhecer instituições congêneres, além da televisão educativa (Duval, 2005). Conforme registro de Iara Bendatti em entrevista (1987), por volta de 1968 a Feplam tomava conta da sala do setor de Jornalismo, causando atritos. A Fundação pagava técnicos e locutores da rádio para produzir seus programas. “Nossa programação começou a ficar um pouco distor- cida”, conta Herculano Coelho (1987), primeiro administrador da Rádio da Universidade. A dimensão do incômodo foi tamanha que levou Iara e Armando Albuquerque a se reunirem com o reitor José Carlos Fonseca Milano. O resultado foi a saída de Nilo Ruschel da direção da rádio, então assumida pela jornalista Vacilia Derenji.

A rádio e o cinema

Figura 3 – O crítico de cinema Hélio Nascimento na discoteca da Rádio da Universidade

Fonte: Arquivo da Rádio da Universidade.

A relação da Rádio da Universidade com o cinema está em sua gê- nese. Foi com Descobrimento do Brasil, composição de Heitor Villa-Lobos, que ela entrou no ar na noite de 18 de novembro de 1957. A obra foi originalmente escrita como trilha para o filme homônimo de Humberto Mauro, estreado em 1937, e depois foi transformada em quatro suítes

180 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas

sinfônicas que passaram a integrar o repertório das salas de concerto. Nos primeiros meses de transmissão da emissora, nasceria o programa Cinema de Segunda a Segunda. Inicialmente redigido pelo aluno de Ar- tes Dramáticas Claudio Heemann, que se tornaria um dos principais crí- ticos de teatro no Rio Grande do Sul, e depois assumido por J. A. Moraes de Oliveira, o programa ganharia especial projeção nas mãos de Hélio Nascimento, a partir de 1972. O destacado crítico de cinema produziu o programa até 2001. “É o programa que mais durou, é uma evidência que tinha ouvintes e que Porto Alegre tinha bastante gente interessada na qualificação de um processo de assistir a filmes” (Nascimento, 2019). Durante aquelas primeiras décadas de consolidação da rádio, po- de-se afirmar que a crítica cinematográfica foi vivida em Porto Alegre com a voracidade de uma paixão. Mesmo distante do centro do país, a capital ocupava uma posição privilegiada no circuito distribuidor-exibidor, tendo acesso a todos os filmes disponibilizados no mercado, inclusive os de arte (Lunardelli, 2008, p. 26-31). Para se ter uma dimensão da importância desse circuito, em 1952, quando a cinelândia se restringia aos arredores da Praça da Alfândega, a companhia americana Metro-Goldwyn-Meyer decidiu abrir o cinema Avenida exclusivamente para seus lançamentos, a exemplo do que fazia em Nova York, Los Angeles, Buenos Aires e Mon- tevidéu. Mesmo distante do perímetro central, a estreia do novo cinema com O Grande Caruso fez a fila dar a volta no quarteirão da Avenida João Pessoa, e as bilheterias superavam com folga as do Rio e de São Paulo (Nascimento, 2019). A crítica cinematográfica local foi catalisada pela forte influência do Clube de Cinema de Porto Alegre, fundado em abril de 1948, no con- texto do movimento internacional do “cineclubismo”. Esse movimento pós-guerra defendia a qualificação do filme como produção artística e a dimensão coletiva do assistir e debater, tendo consciência do quanto o ci- nema formava um horizonte histórico e cultural. Como escreve Lunardelli (2008), o “cineclubismo” foi parte essencial da sensibilidade cinematográ- fica em Porto Alegre, demarcando as disputas entre correntes de cinéfilos ligados ao Clube de 48 e a dos católicos do Cineclube Pro Deo, fundado em 1954 e ligado ao jornal O Dia. Assim como os diversos institutos culturais da cidade – Goethe, Aliança Francesa, Cultural Americano e outros – a Universidade também fez parte do empenho para dar acesso não apenas aos títulos comerciais,

181 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas mas, sobretudo, às cinematografias alternativas a Hollywood, além de fo- mentar o pensamento crítico e o debate. O Salão de Atos, que contava com modernos projetores 16 mm e 35 mm da marca Gaumont, abrigaria grandes mostras internacionais a partir de 1962. Em plena voga dos cine- mas novos em vários países, a abertura deu-se com um ciclo de cinema russo e soviético. Sob o espírito da guerra fria e de polarização política no país, as críticas dos católicos foram tão duras que o diretor da Cinemate- ca Brasileira, Paulo Emilio Salles Gomes, precisou vir a Porto Alegre para convencer o reitor sobre a relevância de realizar tais exibições. Durante a mostra houve ainda mais acirramento das críticas nos jornais, com direito à distribuição de panfletos na saída das exibições, manifestos contra e a favor... (Nascimento, 2019; Lunardelli, 2008). À época de sua entrada para a Rádio da Universidade, Hélio Nas- cimento já era conhecido pela verve crítica. Ele havia ingressado no Jor- nal do Comércio em 1961, aos 25 anos, e também assinava textos para o Correio do Povo. Tal como preconizavam Brecht (2005) e Walter Benjamin (2015), o rádio, para ele, seria um meio de formação do ouvinte, assumin- do a função de abordar a produção cinematográfica com profundidade. Para além de propagar uma opinião, a proposta de Hélio era dar subsí- dios para que seus leitores ou ouvintes interpretassem as obras (Corrêa, 2009). A compreensão do crítico é de que um filme não é apenas uma realização técnica, mas uma “janela que se abre para o mundo”, um pon- to de vista sobre o que está acontecendo ao nosso redor (Nascimento, 2011). É fundamental, quando se fala de um filme, que se fale de seu di- retor, do seu passado, sua filmografia, os temas que ele aborda- va. O programa não pretendia simplesmente ser uma relação de obras, uma simples enumeração de nomes de elenco, de técnicos. Procurava ressaltar que cada diretor tinha uma obra, uma preocu- pação temática. Ressaltar a autoria. Era um pouco decorrente da tal da política do autor, que na época dos anos 60 e 70, vigorava muito na crítica cinematográfica (Nascimento, 2007).

Na elaboração dos roteiros, Nascimento explica ter seguido o for- mato de seus antecessores. Trazia os lançamentos da semana, músicas relacionadas a esses filmes ou a efemérides e, por fim, a crítica sobre a produção mais importante. Tudo isso em 30 minutos de programa, trans- mitidos às segundas-feiras, às 7h30min e às 13h. As informações difun-

182 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas

didas pelo Cinema de Segunda a Segunda vinham dos materiais infor- mativos que as próprias distribuidoras dos lançamentos entregavam nas redações, além do recurso a publicações especializadas internacionais e de difícil acesso à época, como Cahiers du Cinéma e Sight & Sound, bem como aos jornais do centro do país. Nas décadas de 60 e 70 era uma ex- periência única nas rádios porto-alegrenses. Nascimento (2019) comen- ta que havia algo similar apenas na Rádio MEC, do Rio de Janeiro, com produção de Alberto Chatovsky, que ele ouvia pelas ondas curtas, e se inspirava. Havia também o costume dos críticos porto-alegrenses, entre eles Hélio Nascimento, de organizar excursões de final de semana a Montevi- déu para assistir aos lançamentos censurados no Brasil pelo governo mili- tar. No mesmo período, início de 1973, o Festival de Cinema de Gramado iniciaria sua tradição expositiva como resultado da força da cinefilia gaú- cha, transformando-se tanto em vitrine como em reflexão sobre o cine- ma brasileiro durante aquela década. O primeiro vencedor foi Toda nudez será castigada, proibido de circular após a estreia. Apesar de não ter recebido restrições expressas, no programa Ci- nema de Segunda a Segunda Hélio Nascimento (2019) se debruçava ape- nas sobre produções liberadas no circuito: “Eu sabia o país em que estava vivendo”. E, aparentemente, a censura o conhecia bem. O crítico relata um encontro fortuito no aeroporto, no final do governo Geisel (1974- 1979), em que o novo censor João Bispo da Ordem o abordou para in- formar que a tendência era de flexibilização, e que a censura passaria a ser classificatória. Foi preciso, no entanto, esperar a promulgação de uma nova Constituição Federal, em 1988, para que se tornasse inconstitucio- nal a proibição de um filme.

Considerações finais Mesmo em meio a um contexto de profundas mudanças na estru- tura acadêmica e sob intensa repressão à liberdade de pensamento no ambiente universitário, os anos de 60 e 70 foram de consolidação de um projeto educativo-cultural para a Rádio da Universidade. A emissora legi- timava seu lugar como agente do sistema de cultura local, assumindo um papel de formação dos ouvintes, na escuta da música de concerto e no olhar para o cinema, ao mesmo tempo em que orientava e servia de la-

183 A Rádio da Universidade Entre as Décadas de 60 e 70: A Consolidação do Perfil Cultural e de Programação Cida Golin, Ana Laura Colombo de Freitas boratório para as primeiras gerações de futuros jornalistas com diploma. No seu DNA, visualiza-se o anseio pela expansão da crítica e do debate de ideias que emergiam a partir da mítica “Filô”, local de cruzamento de saberes posteriormente separados. Nascida em um período de pujança da universidade, na gestão de Elyseu Paglioli (1952-1964), a Rádio da Universidade chega ao final da dé- cada de 70 com deficiências técnicas e de recursos humanos (Universida- de..., 1981). A crise do petróleo, em 1979, também obrigaria a UFRGS a rever o funcionamento da emissora com gerador movido a óleo diesel. Os transmissores são, então, retirados da Ilha do Chico Inglês, no arquipéla- go em frente à cidade, e transferidos para outro município com energia elétrica, Eldorado do Sul, onde se encontram até hoje. Com a aprovação do Conselho Universitário, é adquirido um trans- missor de 10 Kw em abril de 1979. Assim, a emissora ganharia maior al- cance, penetrando em outros estados e países fronteiriços, e ampliaria o período de transmissão, das 7h à 1h da madrugada. Neste contexto, um grupo de trabalho seria designado pela Pró-Reitoria de Extensão para reestruturar a programação (Universidade..., 1979). Terminamos aqui este segundo movimento de leitura e sistemati- zação de dados pelas mais de seis décadas de história da Rádio da Uni- versidade. Ao trazer à tona a voz arquivada dos primeiros trabalhadores, buscando interpretar fragmentos e vestígios da história singular de um veículo na sua relação contextual, esperamos concretizar uma pequena contribuição para uma história cultural que ainda deve ser prosseguida e aprofundada.

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