Rui Barbosa, a formação do Brasil e o pensamento jurídico Rui Barbosa, Brazil’s construction and the juridical thought

Amélia Soares da Rocha*

Resumo

O presente artigo pretende apresentar reflexões sobre a importância de Rui Barbosa na formação do Brasil e do pensamento constitucional brasileiro bem como a atualidade de seu pensamento. Verifica-se a sua participação direta em discussões que redundaram na formação da base das instituições brasileiras bem como na própria afirmação da autoridade da Constituição quando contrastada com os poderes da Presidência da República. Observa-se a agudez de suas intuições e a profundidade de suas análises. Não se pretende, em absoluto, fazer apologia a Rui Barbosa que, acima de tudo, foi um homem, e como homem, sujeito de virtudes e defeitos. O que se sugere através deste trabalho é fazer uma leitura crítica de seus atos e trabalhos na busca de soluções para os problemas do presente. Ao invés de apenas citá-lo e homenageá-lo, como cotidianamente se faz, deve-se entender, estudar e aprimorar seus ensinamentos. Palavras-chave: Pensamento constitucional. Constituição. Poder Executivo.

Abstract

This article intends to present reflections on the importance of training Rui Barbosa of Brazil and the Brazilian constitutional thought and the actuality of his thinking. It is their direct participation in discussions that resulted in the formation of the base of Brazilian institutions as well as the very assertion of the authority of the Constitution when contrasted with the powers of the presidency. Notes to the sharpness of his insights and

* Defensora Pública/CE, Mestre em Políticas Públicas e Sociedade – UECE, Professora do Centro de Ciências Jurídicas da UNIFOR/CE

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depth of their analysis. It is not intended at all to apologize to Rui Barbosa, above all, was a man, and as a man, subject of virtues and defects. What is suggested by this essay is to read criticism of his actions and works on solutions to the problems of the present. Instead of just quoting him and honor him, as is done daily, we should understand, study and improve their teaching. Keywords: Constitutional thought. Constitution. Executive Branch.

Introdução O baiano Rui Barbosa, admirador de Voltaire e Homero,1 é conhecido e comentado por muitos, principalmente por sua grande capacidade de trabalho, dedicação à escrita e de aliar as ideias aos atos. (MACHADO, 2003, on-line). Rui Barbosa foi jornalista, deputado, ministro de Estado, senador, advogado, diplomata, jurista, candidato à Presidência da República Brasileira. Um homem e um mito. Faleceu antes de completar 74 anos, em 1923, após uma vida inequivocamente ativa e plural, com atuação das finanças ao ensino. Liberal, por convicção, aos que o criticavam por participar de campanhas eleitorais presumivelmente derrotadas, dizia implicitamente que o civilismo exigia o contraste de ideia, numa sutil afirmação da subjetividade da vitória. Sabia, sobretudo, que a omissão e a ausência de oposição seria catalisadora de um mal maior. O importante não era vencer, mas participar. Homem singular, pela história e pelo povo, tem sua “imagem” ora ampliada ora reduzida no sabor das convicções. Na “Casa Rui Barbosa”, no , já viu-se operário criticando-o e operário enaltecendo-o ao exibir, com orgulho, cartão de sua lavra. Chamam-no de mau pagador e ele exibe o pagamento das dívidas do pai, por ele honradas. Não se sabe onde termina o homem e começa o mito. Sabe-se, sim, da existência de sua obra e das referências materializadas nos mais diversos brasis. Sabe-se que é seu o decreto da República e o

1 Tinha sobre sua mesa de trabalho, segundo conta o seu criado Antonio Joaquim da Costa o busto de Homero e de Voltaire.

10 Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 1, p. 9-33, jan./jun. 2010. Rui Barbosa, a formação do Brasil e o pensamento jurídico coração de sua primeira Constituição. Sabe-se que para contrapor um dos únicos – senão o único – livro2 criticando-o – “Rui Barbosa, o homem e o mito” de R. Magalhães Junior – a defesa foi realizada igualmente em forma de livro, “Um piolho na asa da águia”, de Salomão Jorge (1965). Sabe-se, outrossim, que em “Ordem e Progresso” de Gilberto Freyre, existem 172 (cento e setenta e duas) referências a ele. Observa-se que inúmeras cidades brasileiras dão a Rui Barbosa o batismo de uma rua ou escola. Tratam-se, então, estes comentários, de tímidas considerações acerca da sua participação e influência na formação do Brasil3 e do pensamento jurídico, numa, inclusive, coincidente tentativa de obediência à sua lição aos jovens bacháreis de 1920, qual seja a de que os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas.4 Eis, assim, o desafio – não apenas deste trabalho –, mas de nós, brasileiros – de não apenas conhecer o pensamento de Rui Barbosa, mas, sobretudo, com ele, contribuir para a efetivação da democracia social brasileira, pregada pelo “Águia de Haia”, nos últimos anos de sua vida. Quanto mais portas são abertas, mais portas se vê, pois como já bradava o “maior dos brasileiros”5: “o saber de realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai aprendendo, como do que elabora”.

2 De autoria do Raymundo Magalhães Júnior, publicado na década de 60. 3 Este trabalho é fruto da disciplina “Formação do Brasil” do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará. 4 “Oração aos moços”, discurso na Faculdade de Direito de São Paulo, 1920. Editado em livro, 1921 e constante do Rui Barbosa, escritos e discursos seletos. 5 Expressão atribuída, segundo Evandro Lins e Silva, pelo Ministro Edmundo Lins, quando presidente da Suprema Corte do Brasil.

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1 Vida e obra No final do ano de 1849, quando Salvador contava com menos de 10.000 (dez mil) habitantes e era assolada por uma epidemia de cólera, nasce Rui Barbosa, filho de Maria Adélia e João José, este processado e preso pelo apoio fornecido aos rebeldes da Sabinada. (MELO FILHO, 2009, on-line) Conta-se que seu Pai, visionário, depositou no único filho homem todas as suas aspirações e desejos. Tal foi correspondido: com 5 (cinco) anos de idade, o então professor de Rui Barbosa (1960, p.38), Antonio Gentil Ibirapitanga disse “este menino de cinco anos de idade é o maior talento que já vi, em mais de trinta anos de magistério. Em 15 dias aprendeu análise gramatical, a distinguir orações e a conjugar todos os verbos regulares.” Com tal brilhantismo crescente, faz, em 1861, no Ginásio Baiano, seu primeiro discurso merecedor de medalha de ouro recebida das mãos do arcebispo da Bahia. Em 1864, já tendo terminado os estudos secundários e com atestado de capacidade devidamente expedidos, por ordem expressa do Pai, estuda alemão até completar a idade mínima legal de 16 (dezesseis) anos para ingresso na Faculdade de Direito do Recife. Lá chegando, constrangido por uma nota baixa em Direito Natural – e, seguindo a vontade do Pai de cursar as duas academias – é transferido para São Paulo. (CARVALHO, 1949, p.11). Segue, ao seu lado, , então seu colega em Recife, com quem, dada a desavenças desse com Eugênia Câmara, compartilha, por algum tempo, residência. Neste ínterim, falece-lhe a Mãe e sofre, tal qual ela, de um “incômodo cerebral”, mais tarde, diagnosticado por “anemia cerebral” e curado com um reforço alimentar. Inobstante até então tenha se revelado um estudante aplicado e calado, discreto, de poucos envolvimentos e conversas, em São Paulo, ao lado de Castro Alves, , Afonso Pena e Rodrigues Alves6 começa a revelar o seu conhecido talento jornalístico e passa a participar, paulatinamente, da questão abolicionista e a confirmar-se um liberal.

6 Os dois últimos – Afonso Pena e Rodrigues Alves – foram Presidentes da República brasileira.

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Tanto isto é verdade que participa da fundação, em 1868 – quando contava com 19 (dezenove) anos de idade – do Radical Paulistano. Em 1870, pela saudação aos soldados que regressavam da guerra do Paraguai, foi tido por “perigoso estudante”.7 Falando sobre esta época, Rui Barbosa disse que Nesse triênio de 1868 a 1870, em que inteirei aqui os meus estudos, encetados no Recife, o mundo acadêmico e o mundo político se penetravam mutuamente. O estudo aqui nunca foi livresco, egoístico, indiferente à vida social. Nunca o direito se regulou aqui em textos estéreis e mortos. O seu tirocínio escolar nesta cidade, sempre se animou ardentemente do espírito de luta, de civismo, de reação liberal. (MAGALHÃES, 2003, on-line) De volta à Bahia, em 1871, estreia na advocacia “e passou a escrever para o Diário da Bahia artigos defendendo a eleição direta, a abolição e a liberdade religiosa.” Em 1874, ano da morte de seu pai, o enche de orgulho8 na Conferência no Teatro São João sobre eleição direta. Com a orfandade, sucede o pai na administração da Santa Casa. Diretor do Diário da Bahia e com escritório de advocacia, casa- se em 1876, com D. Maria Augusta Viana Bandeira, filha de família da classe média baiana. Fala-se que se tratava de “mulher prática, que lhe passava segurança, o ajudava a decidir e a tomar resoluções objetivas.” (MAGALHÃES, 2003, on-line). Insere-se formalmente na vida pública, em 1877, ao eleger-se à Assembleia Legislativa Provincial da Bahia para logo em seguida, em 1878, promover-se à Assembleia Geral da Corte. Contrapõe, em 1879, no Legislativo, José Bonifácio, de quem é ex-discípulo.

7 República: Teoria e Prática (1978). 8 “Diz João que em 23 anos poucos o igualam; porque muito aplicado e com os dotes intelectuais que tem, meu filho propõe-se a escritor notável e a orador de primeira ordem. Agora mesmo num meeting que houve no Teatro, sobre a eleição direta, ele, falando, aqui, em público, pela quarta vez, foi aplaudido de um modo que me comoveu. O Dantas e outros dizem-me que o Rui Barbosa é superior a José Bonifácio, e sustentam que certamente hoje não se fala melhor do que ele.” Relato constante em Rui Barbosa Estudante.

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Acreditando na necessidade de separação da Igreja do Estado,9 aceita o convite de Saldanha Marinho de traduzir O Papa e o Concílio, no qual faz um prefácio maior que o próprio livro. Nesta publicação reside uma das maiores críticas do acadêmico R. Magalhães Júnior (1979, p.15) a Rui Barbosa, a seguir transcrita Não deixa de ser curioso o fato de ter, em 1877, quando a edição de O Papa e o Concílio estava em provas, na Tipografia Central, de Brown e Evaristo, no Rio, apressado o seu casamento com o receio de que, depois do aparecimento de tal livro, nenhum padre o quisesse casar10. Ele protestava contra o privilégio católico, de realizar casamentos, mas antecipava-se, garantindo o seu, para não ficar sujeito à humilhante alternativa do concubinato, a que aludia em seu escrito. No ministério Saraiva, em 1880, propôs projeto de lei da eleição direta. Pela participação política oriunda da democratização do voto oferecida à classe média incipiente. Esta lei colaborou para hegemonia de São Paulo e Minas Gerais. Participa, assim, da diminuição do poder até então hegemônico dos proprietários rurais. Sem o enfraquecimento da sociedade rural decorrente da ascensão da classe média – bem como a identificação do exército com a classe média –, provavelmente a República não teria vindo 9 (nove) anos depois. (DANTAS, 2002, p.31) Por esta razão, talvez a Lei da Eleição Direta seja o primeiro ato concreto no sentido da sua participação na formação do Brasil, como se confirma nas palavras de San Tiago Dantas (2002, p.29): Rui Barbosa foi, entre nós, refletida ou espontaneamente, o ideólogo de uma reforma da sociedade. Não de uma reforma ocasionada pela brusca avulsão de certos valores, pela eclosão revolucionária de novas formas de vida, mas de uma reforma iniciada difusamente

9 Em 1876 pronuncia conferência intitulada “Situação da Questão Religiosa” ou a “Igreja e o Estado”, de grande repercussão. 10 Revelação da esposa de Rui Barbosa a Francisco de Assis, em entrevista publicada no livro Retratos de Família, edição de José Olímpio.

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nos últimos decênios da monarquia, que mergulhava nos primórdios na nacionalidade e suas terminações radiculares, e que encontrou no advento do regime republicano o momento essencial de sua fixação de rumo: essa reforma pode ser chamada, dentro de limites que indicarei, a ascensão da classe média. A questão da classe média, inclusive, sob a visão de seu conterrâneo Nestor Duarte (1966), se percebida e permitida mais cedo poderia ter determinado um presente mais próspero para o Brasil, posto que “seria essa classe média, se ela pudesse crescer, se ela pudesse ter peso econômico, a classe propriamente capaz de formar o melhor contingente de um povo político sobre o qual o Estado poderia, por sua vez, fundar-se e alagar-se, livre de autarquias concorrentes e de castas dominantes”. No ano seguinte, agora sob o ministério Martinho Campos, formula a reforma geral do ensino, oportunidade em que defendia a formação do “profissional completo” tão evidenciado pelas revistas de recursos humanos contemporâneas. Tal formação estaria consubstanciada, entre outros aspectos, na inserção de arte e cultura11 nos programas de educação tradicionalmente técnicos e castradores da criatividade – a rigidez religiosa da Constituição de 1824 provocava “restrição à autonomia de pensar”. (MARINHO, 2001, p.13). Tinha como lema que “educação é preparação para vida completa e vida completa exige educação integral.” Na sua inclinação liberal, proclama a liberdade do magistério, como se vê adiante: o direito de enunciar e discutir livremente todas as opiniões é inerente à ciência. O Estado não tem competência para definir ou patrocinar dogmas; e, se a tem, não abra estabelecimentos científicos; porque a existência dessas instituições é incompatível com a de crenças privilegiadas. Da condição essencial à ciência é o não obedecer a concepções a priori, duvidar do que não esteja metodicamente averiguado, e só adotar a

11 Pelo projeto de ensino, Rui Barbosa é considerado o precursor da educação física, do ensino musical, do desenho e dos trabalhos manuais.

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realidade verificada segundo os preceitos rigorosos da lógica experimental. (BARBOSA, 1942 apud MARINHO, 2001, p.13). Ainda em 1870, quando da sua passagem pela maçonaria, apresentou projeto de libertação do ventre das escravas pertencentes aos maçons, estabelecendo como condição prévia para admissão dos iniciados a aplicação desse compromisso. (MAGALHÃES, 2003, on-line) Com o mesmo ideal abolicionista, enquanto líder do gabinete na Câmara, apresentou projeto de libertação dos escravos sexagenários. Pela sua participação na causa, José do Patrocínio disse que “acenderam um vulcão na cabeça de Rui Barbosa” (BARBOSA, 1960, p.41). Afirmava, sobre o tema, que Pueril engano, realmente o dos que veem no abolicionismo o termo de uma aspiração satisfeita. A realidade é que ela exprime apenas o fato inicial de nossa vida na liberdade... É o lema de uma idade que começa... Abolicionismo é reforma sobre reforma... É organização radical do futuro... É renascimento nacional. (SILVA, 2003, on-line) Todavia, nesta participação libertária, – um dos pontos altos da biografia de Rui Barbosa – encontra-se outra grande crítica de R. Magalhães Júnior (1979, p.215), qual seja a de que Em 1880, por exemplo, votara contra a urgência, pedida por Joaquim Nabuco, para projeto idêntico, que obtivera apenas 18 votos favoráveis, sendo derrotado por 77 sufrágios entre os quais os de Rui Barbosa e de seu inseparável amigo Rodolfo Dantas, ambos obedecendo aos acenos do senador José Antonio Saraiva, notório escravagista e presidente do gabinete ministerial. E só a 1.º de junho de 1884, para que não lhe arguissem a contradição, Rui passou carta de alforria a sua escrava Lia, natural da Bahia, que houvera por herança vários anos antes. Rui Barbosa mandou queimar os livros de registros da escravidão. Segundo Alfredo Rui Barbosa, bisneto do eminente baiano, em depoimento à Revista ISTOÉ (1999), depois da abolição, ex-proprietários de escravos exigiram do governo indenizações astronômicas. “Para evitar que o tesouro da União fosse onerado em benefício dos fazendeiros,

16 Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 1, p. 9-33, jan./jun. 2010. Rui Barbosa, a formação do Brasil e o pensamento jurídico mandou queimar todas as provas existentes.” No despacho que negava o pedido de indenização, escreveu uma única frase e foi aplaudido pelos abolicionistas: “mais justo seria se pudesse descobrir meio de indenizar os escravos. 11.11.1890. Até hoje os historiadores rogam pragas à memória de Rui Barbosa pelo feito.” (ISTOÉ, 1999). Em junho de 1889 recusa-se a participar do Gabinete Ouro Preto12 dizendo que não pode “ser membro de um ministério que não tome por primeira reforma a Federação (BARBOSA, 1960). Enquanto redator- chefe do Diário das Notícias, iniciou a campanha que ficou conhecida como Queda do Império”. (MAGALHÃES, 2003, on-line). Sua atuação na Imprensa com desiderato revolucionário foi registrada por Benjamin Constant que, ao comentar artigo de Rui Barbosa, publicado em 9 de novembro de 1889 (6 dias antes da proclamação da República), afirmou que “Seu artigo de hoje, ‘Plano Contra a Pátria’, fêz a República e me convenceu da necessidade imediata da revolução”. Com a Proclamação da República, nomeado por Deodoro da Fonseca, Rui Barbosa torna-se, em 31 de dezembro de 1889, “Primeiro Vice-Chefe do Governo Provisório”. Logo em seguida, em 06 de maio do ano seguinte, convence Deodoro a permanecer “Chefe do Governo Provisório” sob a alegação de que não podemos abandonar o andor na rua e o andor é a Constituição. Não vamos assumir a responsabilidade de deixarmos a República sem Constituição. (CHIAGIO apud BARBOSA, 1960, p.41). No governo de Floriano Peixoto, seu amigo pessoal, reage aos atos arbitrários e deixa o governo, passando a defender os presos políticos, numa série de habeas corpus em que intentava provocar o Supremo Tribunal Federal a que exercesse a sua função de proteger e viabilizar o exercício das garantias constitucionais, como se verá em tópico posterior. Escapou de plano homicida e exilou-se.13 Na Inglaterra continuou a escrever.14

12 No programa de Ouro Preto estava incluso somente a descentralização. Dizia que “a federação pressupõe a União, e deve destinar-se a robustecê-la.” 13 “O Manoel da Confeitaria Pascoal, servindo no palácio do governo, ouvira a combinação: ‘dois agentes de polícia, disfarçados, tomariam passagem no Madalena com destino à Bahia. Lá chegando, prenderiam Rui Barbosa ao desembarcar, e assasiná-lo-iam em seguida, sob o pretexto de que havia resistido à prisão’.” (CHIACHIO apud BARBOSA,1960, p. 43). 14 Deste período, inclusive, consta a publicação do seu livro denominado “Cartas à Inglaterra”.

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Em 1902, protagoniza o episódio conhecido como a “A Réplica”, no qual, apresenta inúmeras críticas ao projeto do cearense Clóvis Beviláqua do Código Civil de 1916, o que para R. Magalhães Júnior (1979, p.212) significava que sua inteligência se devotava melhor às tarefas de obstrução que às de construção. [...] no Senado caprichosamente obstruíra durante três lustros o projeto do Código Civil, armando em torno dele simples e mesquinha batalha gramatical, sem inovar uma só letra no terreno jurídico [...] Atribui-se a conduta de Rui Barbosa à aberta desaprovação do nome de Clóvis Beviláqua para a elaboração do projeto de Código Civil. O cearense fora convidado pelo também nordestino Epitácio Pessoa, então Ministro da Justiça. Rui Barbosa considerava Clóvis “que então contava com 40 anos, imaturo demais para uma empresa de tal porte.” (ROCHA, 2001, p.33). “Por isso, criticara duramente Epitácio Pessoa pela escolha, dizendo que a ideia tinha sido um rasco do coração”15. Além disso, consta a existência anterior de artigo em que Clóvis discorda de posicionamentos jurídicos do mestre baiano. Todavia, acredita-se que “a réplica” deva-se a um rompante de vaidade de Rui Barbosa que não teve “o seu nome lembrado pelo ministro – e nem sequer ter sido consultado sobre quem deveria recair a escolha.” (ROCHA, 2001, p.35). No Senado, o projeto do Código Civil foi relatado por Rui Barbosa. De fato, muitas das críticas de Rui Barbosa foram acatadas pelo Senado (e admitidas pelo próprio Clóvis Beviláqua); outras, porém, assemelhavam-se a caprichos de intelectual erudito, por exemplo, substituir a expressão direito autoral – constante do projeto original – por direito do autor (da preferência de ) por ter a locução (do autor) similar na língua erudita. (CHIACHIO apud BARBOSA,1960, p. 40).

15 Ambos eram nordestinos, de tal forma que para Rui a indicação poderia ser reflexo de um bairrismo exacerbado.

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Não obstante tudo isto, não se encontra registro de que Clóvis Beviláqua – que chegou a renunciar convite para compor o Supremo Tribunal Federal – tenha catalisado a guerra de vaidades. Ao contrário, permaneceu-se discreto e humilde. Tanto que, embora tenha elaborado o festejado Código, na capa de “O Imparcial” – jornal de grande circulação e prestígio na época – que anuncia a chegada da lei civil, o tamanho da foto de Rui Barbosa é praticamente o triplo da de Clóvis. Em 1905, candidata-se, pela primeira vez, à Presidência da República. Renuncia em favor de Afonso Pena, que, posteriormente, o convida para representar o Brasil na famosa Conferência de Haia. Polêmica participação. Alguns dizem que realmente este foi o “Águia de Haia”, outros que foi um argentino que brilhou porquanto se diga igualmente que Rui Barbosa mostrou um novo nacionalismo brasileiro hábil a indicar a incipiente influência do Brasil na política externa. Neste sentido Antonio Olinto (2003, on-line), defendendo que Rui Barbosa deu rumo ao Encontro, disse: Mas mudaram. Mudaram o regulamento que estavam estudando, seguindo Rui e quando atualmente, alguém me diz: – Mas foi um exagero, Rui Barbosa não fez tanto sucesso assim – responda-se: – Não é questão de sucesso, ele mudou a conferência, mudou uma situação que seria vergonhosa para todo o mundo. Gilberto Freyre, em o seu “Ordem e Progresso”, ao abordar a questão, aduz que: Rui Barbosa só veio a ter a consagração popular depois dos seus triunfos em Haia, quando sua idealização pelo folclore brasileiro tornou-se parte de todo um complexo mito nacional: o da exaltação da figura do nativo amarelinho, do caboclo franzino e até feio, do brasileiro pequeno em tamanho, mas grande em inteligência. Em suma, o brasileiro que fazia a Europa curvar-se ante o Brasil, como dizia a canção de Eduardo das Neves, manifestação espontânea e sincera daquele ingênuo e embevecido nacionalismo, ao celebrar os feitos de Santos Dumont em Paris. (MAGALHÃES, 1979, p.301) A certeza se o tamanho da repercussão deve-se ao markenting ou a consequência natural dos acontecimentos, não se terá. Todavia, não

Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 1, p. 9-33, jan./jun. 2010. 19 Amélia Soares da Rocha se pode negar que a imagem internacional do Brasil alterou-se após a Conferência de Haia. Em 1909, após ter recusado prêmio pecuniário pela participação em Haia, inicia a Campanha Civilista na segunda candidatura à Presidência da República. Em 1913, pela Convenção Nacional, no Teatro Politeama do Rio, lança-se pela terceira vez candidato à Presidência, ocasião em que, pela segunda vez, renuncia. Em 1919, concorrendo com Epitácio Pessoa – adversário na indicação para a Conferência de Paz em Paris e mentor da nomeação de Clóvis anteriomente citada –, que vence a eleição. Sobre a sua participação política, em certa oportunidade, disse: “no Império não passei de deputado. Na República, não me toleraram Senador. E jamais me aceitariam como Presidente.” Considera-se vitoriosa a campanha de 1919 pelo nível de discussão por ela propiciado, principalmente no que concerne à questão social, anteriormente tímida no pensamento ruiano, até então excessivamente liberal. Defendeu, assim, no fim da vida, a democracia social, de modo que afirmou, em 1982, que talvez “o maior peso democrático da campanha de 19 tenha sido exatamente esse tratamento frontal do tema da questão social”. (MARINHO, 2001, p.19). No mesmo sentido é a opinião do acadêmico Murilo Melo Filho (2003, on-line) que, vislumbrando a influência da campanha civilista na formação do Brasil, disse que Essa Campanha Civilista foi o primeiro apelo histórico e republicano, por uma reforma nos nossos costumes políticos, uma espécie de rio, que nasceu em 1910, transitou e fluiu pelo tenentismo de 1922 e 1924, até desaguar, caudaloso e triunfante, na Revolução de 1930. Sobre a evolução do seu pensamento, Rui Barbosa(1981,on- line) dizia que “só a ignorância e a imbecilidade se não contradizem; porque não são capazes de pensar. Só a vulgaridade e a esterilidade não variam; porque são a eterna repetição de si mesmas.” Em 1922, um edema pulmonar anuncia a proximidade da morte. Entretanto, teimoso, continuava a trabalhar nas letras e na política. Faleceu em 28 de fevereiro de 1923, tendo tido a sua última reunião política no dia anterior, 27 de fevereiro. Foi enterrado com honras de presidente.

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2 Influência no constitucionalismo brasileiro Na casa de Rui Barbosa, na Praia do Flamengo, foram realizadas as reuniões que redundaram na primeira Constituição da República. Com a presença dos próceres, durante aproximadamente 15 dias, foi feita a Magna Carta, ardorosamente defendida por Rui Barbosa em toda a vida. Desde o seu nascedouro encontrou resistências do Executivo, principalmente no que concerne à independência de poderes.16 Queria vê-la efetiva, fundamentando os atos da vida brasileira. Neste intento é que, após o rompimento com Floriano Peixoto, decorrente da reação aos atos arbitrários do Executivo, impetrou inúmeros habeas corpus pelos presos políticos, como já dito. Tais medidas judiciais revestiam-se de singular importância, haja vista que era a primeira vez que se confrontava a autoridade da Constituição com os poderes do presidente da República. Em um deles, constou o seguinte Mas nenhuma virtude pode pôr acima da lei o chefe de uma nação republicana; e os desvarios de um governo quando sacode os freios da lei... Está em vossas mãos restituirdes a nação à posse de seus representantes, ou condenardes a nação à hipocrisia do governo representativo, manipulado pelos secretas policiais. A sentença que proferirdes cativa o futuro, decidindo se de ora em diante as maiorias legislativas serão determinadas pelos debates da palavra, ou pelos golpes do estado de sítio. É para o Congresso que se vos pede habeas corpus na pessoa dos senadores e deputados presos. [...] Se, pelo contrário, se coagular morta, no texto como no sangue de um cadáver, a Constituição de 1891 estará perdida. Ora, é a primeira vez que essa aspiração se vai ser submetida à prova real. E aqui está por que eu tremo, senhores, receando que o julgamento desta causa venha a ser o julgamento desta instituição. (SILVA, 2003, on-line)

16 Consta que Deodoro inicialmente recusou-se a assinar a Constituição pelo fato dela negar-lhe o fechamento do Congresso.

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No mesmo sentido é a afirmação de Paulo Bonavides (2002, p.485) que disse que “um dos constitucionalistas que mais se empenharam em introduzir na linguagem constitucional de uso corrente ao conceito de garantias constitucionais foi Rui Barbosa.” Quanto ao Supremo Tribunal Federal é importante que se destaque que a sua “criação republicana [...] tendo por artífice Rui Barbosa, baseou-se na Corte Suprema Americana, tanto em relação às competências, como em relação à composição, forma de investidura, garantia e impedimentos.” (MORAES, 2003). Josaphat Marinho (2001, p.17), ao falar deste período, anota que Rui Barbosa buscava fixar princípios basilares do regime em formação. A superioridade da Constituição sobre leis e atos; a delimitação dos poderes no estado de sítio e a suspensão de seus efeitos com a cessação dele; a valorização do habeas corpus como garantia de direitos individuais, e além da segurança da liberdade de locomoção, pela inexistência de remédios específicos; o reconhecimento da competência do Poder Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal, para interpretar o Estatuto Maior, essas teses, ora aceitas, ora rejeitadas, acabaram por ser vitoriosas e se incorporaram a cartas políticas anteriores, até a atual. Sobre a atuação de Rui Barbosa na busca – até hoje não alcançada – da efetivação constitucional, Evandro Lins e Silva (2003, on-line) assevera que Rui Barbosa não foi só o autor da Constituição, ele foi, depois, o divulgador, o grande comentarista da Constituição de 1891. Em seguida, o João Barbalho editou o livro, mas que ele escreveu: o seu discípulo Homero Pires publicou os comentários da Constituição de 1891, tirados das defesas que Rui Barbosa fazia de seus clientes. Não se pode negar, inclusive, que a proteção à educação dada pela Constituição vigente guarda semelhança com a, há mais de um século, idealizada por Rui Barbosa em seu projeto de reforma do ensino. Tanto isto é verdade que Josaphat Marinho (2001, p.13), na mesma oportunidade em que afirma ser de Rui Barbosa a redação contida no artigo 226, inciso II da Magna Carta vigente, disse que, “Sem nunca ter

22 Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 1, p. 9-33, jan./jun. 2010. Rui Barbosa, a formação do Brasil e o pensamento jurídico sido professor, antes ou depois desse Parecer, já aos 33 anos de idade, reinvindicava condição elementar ao ensino decente, agora consagrada nas Cartas da democracia social.” O mesmo ocorre ao se analisar a ordem econômica no texto constitucional. Há reais possibilidades de crer-se que a “renovação da sociedade” – atribuída por San Tiago Dantas (2002, p.29) a Rui Barbosa – contribuiu com o advento do mercado de consumo, essencial ao capitalismo. Ou seja, a sociedade imperial era, como todos sabem, uma sociedade composta de proprietários agrícolas, cuja vida repousava nos preços dos produtos de exportação; de escravos, que em 1850 eram mais de 30% da população; e de homens livres não proprietários, vivendo de ínfimos salários nas cidades, onde frequentemente se desocupavam. E, por consequência, entre esses extremos sociais não havia uma classe produtora que enchesse o vazio, e que pela situação econômica pudesse lançar no país os empreendimentos que o desenvolvimento deste reclamava. (PRADO JR., 1945, p.131 apud DANTAS, 2002). No Governo Provisório, como visto, Rui Barbosa foi Ministro da Fazenda e, portanto, foi responsável pela política financeira do primeiro governo republicano. Tal período colocou Rui Barbosa no centro de um dos períodos negros da história do Brasil, o Encilhamento, o qual, segundo (2003, on-line), não foi outra coisa senão uma inflação desordenada. A antipatia ao Ministro Rui Barbosa – foi a única vez que exerceu cargo público no Executivo, ficou tido como alguém que criava mais problemas que soluções – provavelmente deve-se a uma suposta incoerência de comportamento. Celso Furtado (2003, on-line), não obstante adepto de uma forma clássica de administrar as finanças (gold standard), uma vez no Governo adota postura contrária. Celso Furtado (2003, on-line) argumenta que a ausência de uma teorização – a qual só surgiu meio século depois – sobre a política de Rui Barbosa, contribuiu para a ausência de entendimento e para a ferocidade das críticas, como se vê a seguir:

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Rui Barbosa não teorizou sobre a experiência dos anos 90. Ao contrário: volta à posição ortodoxa, quando se candidata à Presidência da República, em 1910. O que ele intuiu quando estava no poder, nos albores da recém- criada República, foi que o Brasil podia ter acesso a um desenvolvimento muito mais harmonioso, se superasse o modelo primário exportador e se voltasse para o fomento do mercado interno. Sua Lei de Similares apontava nessa direção. Mas as classes dirigentes da época não entenderam a sua mensagem e o condenaram ao ostracismo. A falta de comunicação, assim, fez com que antigos críticos, a exemplo de Ramiro Barcelos (1960, p.41), mais tarde dissessem que a “desgraça da República fomos nós, os históricos, não termos compreendido logo a grandeza de Rui Barbosa”. Sobre tal incompreensão reflete, ainda, Celso Furtado (2003, on-line), “Vejam que personalidade tão intrigante! É fácil criticar Rui Barbosa, fazer dele uma caricatura, como é fácil endeusá-lo: mas é difícil captar as intuições dele, o alcance dessas intuições, o que eu, na verdade, um pouco tento fazer.” Aliando economia a soberania, mais tarde, na Conferência de Haia, defendia Rui Barbosa que o ponto de vista do credor é sempre só o pagamento pontual da dívida que lhe devem. Mas o do Governo de um país não pode ser exclusivamente este, porque as mais honradas nações se tem visto obrigadas a retardar, por meio de recursos leais e honestos, o pagamento de suas dívidas, atendendo à situação moral e econômica do povo a que eles têm de servir. Daí partem importantes princípios das relações internacionais. A formação da cidadania foi tida por Rui Barbosa como premissa para a tão ansiada efetividade constitucional. É o que se conclui da leitura atenta de seus textos. Neste sentido, Tarcísio Padilha, em Ciclo de Palestras proposto pela Academia Brasileira de Letras em homenagem ao sesquiscentenário de Rui Barbosa – o qual sucedeu na presidência – já disse quanto mais os problemas mudam, mais eles permanecem os mesmos. Porque os desafios com que nos defrontamos – é, claro, hoje, com outra magnitude,

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– têm as mesmas raízes, ainda se vinculam ao tipo de evolução do nosso país, que ainda não saiu da puberdade. É esse problema que constitui o grande desafio. Por isso, muita vez, eu me pergunto se não está na formação da cidadania o ponto de partida da mudança que deve ser operada no Brasil, para que este possa atingir a sua maturidade. (FURTADO, 2003, on-line). Ao ajuizar ações de reparação civil em favor dos militares e civis, reformados e demitidos pelos atos de Floriano Peixoto, sem qualquer dúvida, Rui Barbosa (1960) dá mostras de exercício de cidadania e da afirmação da jurisdição constitucional. Como demonstra em o seu livro “A Constituição e os Atos Insconstitucionais do Congresso e do Executivo”, Se atos do executivo demitindo funcionários indemissíveis, reformando militares irreformáveis, se tornassem válidos por autorização prévia, ou ratificação ulterior do Congresso, assentada estava a regra de que o governo, com o concurso das duas câmaras, põe e dispõe de direitos individuais. É a fórmula mais absoluta da onipotência da legislatura, senão da onipotência do chefe de estado, servido por uma chancelaria parlamentar. Ressalte-se, por verdadeiro, que a reparação civil só veio a disseminar-se na vida forense brasileira ao final do século passado, após a promulgação da Constituição vigente. Se existem dúvidas acerca de sua influência na jurisdição constitucional brasileira basta que se leia nas bibliografias dos principais livros de direito constitucional do Brasil, a inserção de suas obras.

3 Atualidade do pensamento Graça Aranha, no ano de nascimento da Academia Brasileira de Letras, ao proferir conferência, logo após comparar Rui Barbosa a Joaquim Nabuco e Machado de Assis, disse que O Sr. Rui Barbosa é um publicista, um polemista formidável, um escritor épico e um doutrinário. É um desses homens que se poderiam chamar de acumuladores das forças

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intelectuais de uma geração, e ele é a tal ponto que, se por um desses cataclismas imaginários, se queimassem os livros dos atuais autores da língua portuguesa, e só escapassem os seus, a posteridade cuidadosa poderia restaurar quase toda a língua, que hoje falamos, no que há de mais puro, copioso e forte, e bem compreender a cultura contemporânea no que tem de solene e superior. (SILVA, 2003, on-line) Na posteridade, como há mais de 100 anos profetizou Graça Aranha, as palavras de Rui Barbosa são repetidas com reverência. Tal fato, além de ser público e notório, pode ser ilustrado com a denúncia do então Presidente Fernando Henrique Cardoso feita, em maio de 2001, por um grupo de juristas de imenso prestígio nacional e internacional. Tal grupo tem como um dos representantes mais atuantes, justamente o filho de Graça Aranha, Celso Antonio Bandeira de Melo.17 Na epígrafe da denúncia consta a seguinte lição de Rui Barbosa (2001,on-line) constante do seu livro “Ruínas de um Governo” Todas as crises, que pelo Brasil estão passando, e que dia a dia sentimos crescer aceleradamente, a crise política, a crise econômica, a crise financeira, não vêm a ser mais do que sintomas, exteriorizações parciais, manifestações reveladoras de um estado mais profundo, uma suprema crise: a crise moral. Nas palavras do presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, Mário Machado, “o seu ideário político ainda é atual. Sonhava com uma ordem jurídica livre e democrática e também com uma justiça social, que até hoje está longe de ser resolvida.”18 Segundo Evandro Lins e Silva (2003, on-line), Rui Barbosa influenciou o representante brasileiro nos trabalhos de que resultou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. A democracia social, por sua vez, objeto de inúmeras políticas públicas na atualidade, foi assim abordada por Rui Barbosa:

17 A denúncia em alusão de 18.05.01 foi assinada também por Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato, Goffredo da Silva Telles Júnior e Paulo Bonavides. 18 Depoimento à revista IstoÉ por ocasião da eleição “brasileiro do século”.

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A concepção individualista dos Direitos Humanos tem evoluído rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo, restringidas, agora, por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já se não vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o individuo à associação, o egoísmo à solidariedade humana. Estou, senhores, com a democracia social. Foi Rui Barbosa quem, pela necessidade de tornar o orçamento uma instituição inviolável e soberano em sua missão de prover contas públicas, criou o Tribunal de Contas, justificando que “nenhuma instituição é mais relevante, para o momento regular do mecanismo administrativo e político de um povo, do que a lei orçamentária. Mas em nenhuma também há maior facilidade aos mais graves e perigosos abusos.” (MAGALHÃES, 2003, on-line) Projetos “ruianos” continuam na pauta do nosso Legislativo e Judiciário. Entre eles, a própria preocupação na formação de um verdadeiro regime federativo, a liberdade política social, como bem assevera Leonel Severo da Rocha em o seu “A Democracia em Rui Barbosa”. Seu nome, hoje, é um ponto de referência. Como disse Salomão Jorge (1965), “mesmo os que fazem restrições à obra do gigante, por mais que queiram fugir dele, encontram- no, a todo momento; sentem-se sob o fascínio da luminosa, inarredável presença.” No mesmo sentido é a afirmação de Evandro Lins e Silva (2003, on-line), adiante transcrita No Brasil, Rui Barbosa representou um grande papel, o da influência. A minha geração sofreu muito a influência de Rui Barbosa, e a influência dele foi sempre benfazeja para o país. Ele era um liberal, ele foi atacado, houve mesmo um ex-confrade nosso que escreveu um livro, intitulado, O homem e o mito, mas não é mito coisa nenhuma. Ele não é mito, ele é uma realidade. Não há no Brasil, eu creio, quem tenha escrito quanto Rui Barbosa.

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Nos comentários, na Constituição, na vida política, ele era um personagem indispensável no seu tempo, solicitado por toda gente, não só para a sua defesa; ele foi advogado, realmente. A alteração de postura dos agentes públicos, vivenciada atualmente no Brasil, de que é exemplo a Lei de Responsabilidade Fiscal e a cassação sem crise civil de Presidente da República, foi prevista por Rui Barbosa em Conferência em Versalhes, ao dizer que Mais cedo ou mais tarde, a nação vai rebelar-se contra a corrupção nos costumes políticos e a favor do direito de governar-se. Será a revolução contra os vícios desta época. Milhares de excluídos aí se acham para embocar os clarins da alvorada. (MELO FILHO, 2003, on-line) Por sua verdadeira atualidade é que não são poucos os textos e palestras que dela tratam. Provavelmente, ele próprio já antevia sua perenidade ao dizer que quando praticamos uma ação boa, não sabemos se é para hoje, ou para quando. O caso é que os seus frutos podem ser tardios, mas são certos. Uns plantam a semente da couve para o prato de amanhã, outros a semente do carvalho para o abrigo do futuro. Aqueles cavam para si mesmos; estes lavram para o seu país, para a felicidade dos seus descendentes, para o beneficio do gênero humano. (MELO FILHO, 2003, on-line)

Conclusão Verifica-se, assim, a inequívoca influência de Rui Barbosa na formação do Brasil, sendo possível aventar a veracidade das palavras de Celso Furtado (2003, on-line) de que talvez o homem que mais influenciou este país, provavelmente foi Rui Barbosa. Naturalmente polêmico, dele o que ninguém pode dizer é que se manteve inerte e à margem dos acontecimentos de seu tempo. Participou, e o fez ativamente. Falar de Rui Barbosa em um artigo não só é inadequado, como impossível. Cada aspecto da sua vida gera não um, mais muitos artigos. A sua vasta obra – a Fundação casa de Rui Barbosa já editou 137 tomos

28 Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 1, p. 9-33, jan./jun. 2010. Rui Barbosa, a formação do Brasil e o pensamento jurídico e ainda resta material para outras publicações – compõe as prateleiras da grande maioria da elite política e intelectual brasileira. É sempre citado quando se quer refletir erudição e conhecimento, sendo indicado como fundamento de muitas causas. Pode-se aplaudi-lo ou criticá-lo, mas nunca à sua inteligência ser indiferente. O simples fato da participação ativa na Proclamação da República, sendo voz influente no primeiro governo republicano, elaborado a primeira Constituição do novo regime e esforçar-se para tirá-la do papel, já é hábil a confirmar a sua influência na formação do Brasil. Sem exercer cargo público no Executivo – só o fez nos quartoze meses que permaneceu no ministério da fazenda – fomentou debates acerca das instituições públicas brasileiras, sugerindo soluções e aglutinando propostas. A questão social, objeto da campanha civilista, é exemplo de tal participação. Todavia, tais fatos tratam-se apenas da influência direta, palpável, possível de ser enumerada a partir da História. A verdadeira e mais forte influência de Rui Barbosa certamente é a agudez de suas intuições e a profundidade de suas análises. Por pensar à frente de seu tempo, por inúmeras vezes, foi incompreendido. E ainda o é. Não se quer, em absoluto, fazer apologia a Rui Barbosa que, acima de tudo, foi um homem, e como homem, sujeito de virtudes e defeitos. O que se necessita é fazer uma leitura crítica de seus atos e trabalhos na busca de soluções para os problemas do presente. Ao invés de apenas citá-lo e homenageá-lo, como cotidianamente se faz, deve- se entender, estudar e aprimorar seus ensinamentos. É a homenagem que ele gostaria.19

19 Por ocasião de discurso na Biblioteca Nacional, em 12.08.1918, Rui Barbosa disse “[...] de bustos e estátuas não sou lá grande entusiasta. Um homem em metal ou pedra me parece duas vezes morto. Muito pode valer a estátua pelo merecimento da obra-prima. Mas então o seu lugar adequado será no museu [...]. Se eu pudesse ter a minha escolha, um monumento verdadeiro do trânsito da minha mediocridade pela terra, o que me agradaria recomendar seria uma ferramenta de trabalho com o nome do operário, e a inscrição daquilo de São Paulo na primeira (carta) aos coríntios: Abundantius illis omnibus laboravi. Bem- aventurados os que a si mesmos se estatuaram em atos memoráveis, e, sem deixarem os seus retratos à posteridade, esquecediça ou desdenhosa, vivem a sua vida póstuma desinteressadamente pelos benefícios que lhe herdaram.”

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Não se pode esquecer, inclusive, que tanto no episódio das eleições diretas, como no Encilhamento – em que ao estimular a produção sofreu o boicote da aristocracia dominante –, Rui Barbosa contribuiu na abertura de caminho para o advento concreto da classe média, numa verdadeira renovação da sociedade20. Com seu espírito público, discutiu e importou-se com o público. É preciso igualmente lembrar que o advento da classe média redundou na atual sociedade de consumo; que sem educação não há cidadania e sem cidadania inexiste democracia. Fica, portanto, a provocação à leitura das obras de Rui Barbosa, ao aprofundamento de suas ideias, à utilização de suas teorias nas políticas públicas contemporâneas no sentido da afirmação da democracia social. Se não deixou respostas, iniciou debates. Se não concluiu projetos, apresentou-os. No século 19 já propugnava a necessária – e ainda inexistente – reforma agrária. Defendeu a primazia da educação, dizendo que uma democracia só se faz com cidadãos, não se faz cidadãos senão com homens, não se fazem homens senão pela educação. Provavelmente, o verdadeiro entendimento da realidade brasileira passa pela revisita de suas ideias e teses. Não é à toa que se diz, diuturnamente, que a leitura de Rui Barbosa continua perfeitamente atualizada. E não há quem não concorde que tudo o que existe pode e deve ser sempre e continuamente melhorado. Melhoremos, pois!

Referências

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20 Expressão utilizada por San Tiago Dantas (2002).

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Recebido: Janeiro/2010 Aprovado: Fevereiro/2010

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