Entrevista do mês: Uma proposta para debater a relação entre mídia e educação 30/12/2005 Ana Rita Marini Redação FNDC

Wagner Bezerra, autor do livro Acorrentados – A Fábula da TV, fala ao e-Fórum sobre educomunicação e democracia. Argumentando que "Televisão é 100% educação", ele defende que pais e educadores passem a selecionar criticamente os programas que assistem. Desta forma, seus filhos também serão capazes de fazê- lo e ainda terão a chance de romper com a passividade diante da mídia e usar a razão para ler as cenas de sexo e violência oferecidas diariamente pelas emissoras comerciais. Uma das grandes bandeiras na democratização da comunicação é referente à análise dos conteúdos dos programas veiculados pela mídia. O desenvolvimento da televisão no Brasil garante a presença da “telinha” em 91% dos domicílios. Toda essa abrangência reforça a idéia de que as mensagens midiáticas são importantes demais para serem ignoradas pelo Estado, pais e educadores. Por isso, a educomunicação torna- se matéria essencial na formação de cidadãos críticos, que habitam uma sociedade democrática. Uma proposta de introdução ao debate sobre a relação entre mídia e educação com as crianças, jovens, pais e professores é o que pretende o autor do livro Acorrentados – A Fábula da TV, Wagner Bezerra, entrevistado para o e-Fórum desta semana:

O que significa e qual a importância da educomunicação? WB – O conceito de educomunicação traduz-se quando sugerimos que os pais devem procurar conhecer melhor os programas de TV que seus filhos assistem, e que também é missão da escola promover o debate com as crianças e com os pais a fim de instrumentalizá-los para uma leitura crítica da mídia. São os educadores ocupando a sua função de educar em todos os níveis. Há uma produção científica relevante, como a dos professores Ismar Soares, Armand Mattelart, Laurindo Leal Filho, Marlene Blois, dentre outros, que indicam a importância de se compreender a função educadora da mídia e para a mídia, que nos leva a definir educomunicação ou educação para os meios também como uma alternativa pública e política para instrumentalizar a sociedade para o audacioso rompimento do telespectador com a passividade diante do meio. Isto possibilitaria a existência de novas gerações de cidadãos capazes de escolher criticamente o que e quais produtos televisivos valeriam a pena ser consumidos. Além disso, educomunicação pode ser a materialização de uma política de educação que compreenda a regulação do conteúdo televisivo como uma demanda recorrente e não satisfeita da sociedade, que a cada dia torna-se cada vez mais um problema político e de Estado. No livro eu destaco como foco para a educomunicação a tríade pais/crianças e adolescentes/escola, pois crianças e adolescentes têm no ambiente familiar e no escolar as melhores possibilidades de adquirir o conhecimento crítico necessário para a compreensão e seleção de quaisquer conteúdos, inclusive o televisivo.

Qual narrativa você escolheu para tratar do tema, no livro, e por que? WB – Escolhi a fábula porque, assim como a narrativa mítica, é marcada por características fantástico- poéticas que nos ajudam a compreender coisas que muitas vezes estão presentes em nosso dia-a-dia sem que nos demos conta. Assim pude comparar os “acorrentados” de Platão, que carregam sua própria passividade e limitações diante da vida, aos “acorrentados” pela passividade diante da TV. Não podemos perder de vista que a TV é, freqüentemente, a principal fonte de informação e entretenimento de milhões de pessoas. A escolha do público infanto-juvenil se deu em função de sua importância enquanto nicho- consumidor-líder de programação televisiva no Brasil.

Você afirma que “Televisão é 100% educação”. Em que pesquisas apoiou-se para tirar esta conclusão? WB – Pesquisadores, como a brasileira Rosa Maria Bueno Fisher, dentre outros, têm se debruçado sobre os chamados “dispositivos pedagógicos da mídia”, demonstrando o quanto e de que modo a mídia educa as pessoas, especialmente a televisão. Eu acredito que a TV educa quando oferece um jeito novo para as pessoas se perceberem enquanto indivíduos e se comunicarem, seja na língua falada ou gestual, por exemplo. Educa quando massifica padrões de comportamento, de beleza, de estética, de consumo, de alimentação, de vestuário, de música, de apetite sexual, de opção política ou quando escolhe fazer do sexo e da violência os principais recheios da grade de programação. A TV educa quando ocupa a função de babá eletrônica no momento em que os indivíduos estão na plenitude do desenvolvimento cognitivo, preenchendo um espaço preferencialmente destinado aos pais que, na maioria dos casos, precisam trabalhar e acabam por deixar as crianças à mercê desse poderoso educador. Qual o papel da democratização da comunicação nesse processo de educar para a mídia? WB – O Brasil ainda está engatinhando em relação ao marco regulatório do setor audiovisual e a democratização da comunicação atua como um grande coadjuvante neste processo. Mas, há avanços, como a inserção da discussão sobre os conteúdos televisivos na agenda política e da própria mídia. Há ainda diversos projetos tramitando nas esferas do poder público, com perspectivas diferentes, mas que visam de alguma forma atender as demandas reprimidas dos atores envolvidos, seja a sociedade, sejam produtores e exibidores. Isto demonstra que há alguma disposição para a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas regulatórias específicas para o setor audiovisual. Uma das pedras no caminho é a posição de alguns formadores de opinião que ainda insistem em afirmar que regulação e censura teriam o mesmo significado, o que, às vezes, dificulta o debate. Não há dúvida que a democratização da comunicação é um passo firme no processo de educação para os meios.

A televisão é muito criticada e, ao mesmo tempo, muito assistida no Brasil. Que características movem essas críticas e por que, apesar delas, somos um país que assiste tanto à TV? WB – É verdade que as críticas que apontam a duvidosa qualidade do conteúdo médio da programação regular, principalmente na TV aberta, já se acumulam e ecoam em diversos segmentos da sociedade. É justo afirmar também que pelos números que apontam o Brasil como um dos campeões mundiais de consumo televisivo, principalmente entre crianças e adolescentes, há um imenso contingente de cidadãos que consome tudo o que a TV oferece, sem distinção. Contudo, é preciso considerar que há milhares de famílias que não têm condições de possuir uma antena parabólica, nem tampouco de pagar por uma assinatura de canais a cabo, que, teoricamente, oferece um cardápio mais variado de opões de programas. Finalmente, devemos aceitar que não há como neutralizar a ação magnetizadora e fascinante deste eletrodoméstico, tanto para crianças e adolescentes, quanto para os adultos. Seria um desafio inútil tentar anular o poder de persuasão da TV. É justamente esta constatação que torna relevante o conceito de educomunicação, pois, se não podemos fugir desse “bicho-papão”, deveríamos aprender a lidar com ele, sem, contudo, deixar-nos devorar impunemente, instrumentalizando jovens, adultos e crianças para selecionar criticamente a sua programação. Não podemos esquecer que a cultura é algo vivo, dinâmico, que se produz cotidianamente a partir da própria interação social.

O Brasil possui grandes produções em teledramaturgia. Entretanto, há pouco espaço nas grades de programação das emissoras nacionais para conteúdos regionais, realizados por produtores independentes. As TVs ainda importam muitos programas (muitas vezes de qualidade duvidosa), ao contrário do que incentiva a Constituição Federal. Segundo seus estudos, no que esta característica contribui para o “empobrecimento” cultural da nação? WB – É inegável a qualidade técnica e artística da teledramaturgia brasileira. Todavia, não podemos confundir qualidade técnica e artística com qualidade de conteúdo. O empobrecimento cultural se dá na medida em que um determinado padrão é massificado como se pudesse representar toda a cultura brasileira. Felizmente, há núcleos de produção televisiva que se afirmam como antídoto contra este chamado empobrecimento cultural, como as equipes comandadas por criadores como Guel Arraes, Regina Casé, Serginho Groissman, Jô Soares, Netinho de Paula com a sua TV da Gente, O Sílvio Santos com o Show do Milhão, as pioneiras TVE e TV Cultura, a turma do Castelo Ratimbum, programas como o Globo Rural, o projeto TV Escola, as ações da Multirio, as TVs Sesc Senac, Rede Vida, o Canal Futura, a Globo News, nas TVs regionais, nas comunitárias, nas TVs públicas, como a TV Senado e a TV Câmara, o Canal Brasil e tantas outras iniciativas que buscam consolidar seus espaços. É que ainda impera o “empacotamento das produções” e a importação de programas de má qualidade, mas os núcleos de criação e produção acima citados, por exemplo, têm buscado diversificar o olhar sobre o Brasil, nos fazendo conhecer um país que é multifacetado e não padronizado, com diferentes sotaques, preferências e características próprias de cada lugar. É por isto que a bandeira da regionalização e das produções independentes é tão importante, pois possibilita e garante a diversidade de olhares sobre o Brasil.

Há na sociedade, de um modo geral, uma tendência a ignorar a necessidade de se educar para a mídia. Essa característica sugere que existe uma brecha cultural também nas instâncias que deveriam ser os pilares dessa educação. Como começar, afinal, o trabalho da educomunicação? WB – O viés da educomunicação para o qual quero chamar a atenção neste momento está relacionado à relação pais/crianças e adolescentes/escola. Este trabalho pode ocorrer de modo voluntário e independente nas escolas, sejam privadas ou públicas, preferencialmente envolvendo os pais-professores-alunos, bem como simplesmente no âmbito familiar. Seria muito importante que o poder público compreendesse a educomunicação enquanto formação de um pensamento crítico, num sentido um pouco diferente de algumas experiências até relevantes, como a de algumas escolas que investiram maciçamente na aquisição de equipamentos próprios da produção audiovisual, como câmeras e ilhas de edição, em detrimento da discussão sobre conteúdo. Iniciativas como estas acabam inviabilizadas por se tornarem excessivamente dispendiosas para realidade brasileira, e, com freqüência, acabam por reproduzir os conteúdos oferecidos pela mídia de massa. Portanto, este é um problema a ser tratado com políticas públicas. Como iniciativas práticas que atuam na direção da construção de tais políticas, eu cito a experiência pedagógica disponibilizada no livro “Acorrentados, a fábula da TV” e um projeto de lei , infelizmente engavetado há alguns anos, do ex-senador Geraldo Cândido, que indicou a educomunicação como tema a ser incluído de forma transversal na grade curricular do ensino fundamental e médio, e na educação infantil.

Qual deveria ser o papel de cada instância – família, Estado, escola – na formação das crianças e jovens para que se tornem cidadãos críticos, que aprendam a “ler” as informações que recebem? WB – Em todos os casos, o debate franco e a liberdade de opinião ainda são as melhores soluções. Além disso, nenhuma dessas instâncias deve abrir mão das suas responsabilidades. Para os pais, a principal sugestão é a de que, sempre que possível, assistam TV junto com os filhos. Retomem velhos hábitos, como a de contar histórias ou ler um livro em família, brincar com os filhos, coisas que podem ser muito mais divertidas do que assistir os velhos e repetidos programas de TV. Reduzir o número de aparelhos de TV em casa é uma possibilidade de reunir toda a família em torno de um programa e pode abrir espaço para conversas interessantes. Desligar a TV no horário das refeições e não utilizá-la para evitar ou substituir o diálogo em família. Não ter medo de emitir opinião ou mesmo desligar a TV quando os conteúdos ultrapassarem os limites do que considerar tolerável, nem fazer de conta que não há mal nenhum no fato das crianças assistirem uma cena de sexo mais “caliente” na novela ou uma seqüência de violência crua num filme ou mesmo num desenho animado. Guardem bem esta frase: TV é 100% educação. Já o Estado deveria distanciar-se de velhos preconceitos e conhecer a fundo os modelos disponíveis de regulação existentes em muitos países, nos quais os conteúdos televisivos fazem parte da pauta de discussão das agências que cuidam da questão da regulamentação das telecomunicações. É preciso que se entenda e se aceite, de uma vez por todas, que regulação não é censura. Quanto à Escola, é importante compreender a educomunicação como um conteúdo essencial para todo e qualquer projeto pedagógico “que esteja de fato comprometido com a educação que liberta e forma o aluno crítico, que exercerá a maior de todas as liberdades: a de escolha”, como diz a pedagoga Vera Lúcia Midéa, que prefaciou o livro “Acorrentados...”.

Como você pretende levar o livro até ao seu público? WB – O livro pode ser adquirido através do site da editora (www.letralegal.com.br) e em algumas poucas livrarias, como a Cortez (Perdizes/SP). Algumas escolas já demonstraram interesse em fazer do livro uma ferramenta de trabalho, dentre as quais destaco aquela que primeiro aderiu ao projeto, a escola de educação infantil Criança e Cia, que fica em Barbacena/MG. Temos ainda escola de educação infantil Grupo Oficina/SP- Osasco, onde ocorreu o primeiro lançamento do livro, comandada pela pedagoga Vera Lúcia Midéa, ambas interessadas em realizar no próximo ano atividades que envolvam o livro. Para levar adiante esta discussão, estou neste momento buscando patrocínio para viajar pelo país realizando debates e lançamentos. Quero também me colocar à disposição de escolas públicas e particulares de educação infantil, ensino fundamental, médio e superior, ONGs, e demais instituições que tenham interesse em conhecer e/ou praticar educomunicação. Contatos podem ser feito através do e-mail: [email protected] Sobre o entrevistado: Wagner Bezerra é redator e diretor de criação publicitária, diretor e roteirista de programas educativos para TV e especialista em políticas públicas pela Escola de Políticas Públicas e Governo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de livros e artigos sobre educomunicação e sobre o papel da mídia na educação de crianças e adolescentes, dentre os quais, Manual do Telespectador Insatisfeito, Editora Summus, 1999.