ANTONIO MARCOS LIMA DE OLIVEIRA

A CIDADE DE , 1948-1985: As espacializações do trabalho, do controle e das lutas

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO. ORIENTADOR: PROFº DR. NIVALDO VIEIRA DE ANDRADE JUNIOR CO­ORIENTADORA: PROFª DRA. NAIA ALBAN SUAREZ

Salvador 2017

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. E­MAIL: [email protected]

Lima de Oliveira, Antonio Marcos. A cidade de Paulo Afonso, 1948­1985: as espacializações do trabalho, do controle e das lutas.

Orientador: Prof. Dr. Nivaldo Vieira de Andrade Junior. Mestrado (dissertação) ─ Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2017.

ANTONIO MARCOS LIMA DE OLIVEIRA

A CIDADE DE PAULO AFONSO, 1948-1985: As espacializações do trabalho, do controle e das lutas

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ARQUITETURA E URBANISMO.

Salvador­BA, 09 de setembro de 2017.

BANCA EXAMINADORA

Nivaldo Vieira de Andrade Junior ­ Orientador______Doutor em Arquitetura e Urbanismo, UFBA Universidade Federal da Bahia

Naia Alban Suarez ­ Co­orientadora______Doutora em Arquitetura e Urbanismo, Universidad Politécnica de Madrid Universidade Federal da Bahia

Márcia Genésia de Sant'Anna______Doutora em Arquitetura e Urbanismo, UFBA Universidade Federal da Bahia

Rodrigo Espinha Baeta______Doutor em Arquitetura e Urbanismo, UFBA Universidade Federal da Bahia

Hugo Massaki Segawa______Doutor em Arquitetura e Urbanismo, USP Universidade de São Paulo

Para

Valdenice e Dona Linda.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à Valdenice Lima de Oliveira pelo apoio, amor, paciência e pelas doses de ânimo nos momentos difíceis dessa jornada, bem como à nossa família pelo o incentivo.

Ao Professor Nivaldo Vieira de Andrade Junior pela orientação precisa, pelas leituras atentas, pelas diversas contribuições e pelo encorajamento.

À Professora Naia Alban pelas observações e indicações de caminhos para a condução desse trabalho.

À Professora Doutora Márcia Sant'Anna e ao Professor Doutor Rodrigo Baeta pelas observações precisas, desde o primeiro exame de qualificação, que contribuíram de forma fundamental para a mudança de rumo desta pesquisa, revisão de conceitos e o resultado desta dissertação.

Ao Professor Doutor Hugo Segawa que, a partir do segundo exame de qualificação, contribuiu sobremaneira na indicação de bibliografia relacionada ao tema deste trabalho, e pelas sugestões de correções.

Ao Professor Doutor Luiz Antonio F. Cardoso pelas informações valiosas de sua dissertação de Mestrado.

À equipe do Programa de Pós­Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

À Paulinha pelas conversas, ideias e apoio.

À Maria José, Galdino e Zé Renato pelas consultorias e contribuições históricas.

Aos amigos Denis Matos e Sérgio Silva pelo apoio e pelas trocas de ideias.

Aos colegas do BNB, em especial à Helka Braga pela compreensão, paciência e estímulo.

Ao Memorial Chesf e à Casa da Cultura de Paulo Afonso, por terem cedido grande parte do material iconográfico deste trabalho.

À Regional da Chesf em Paulo Afonso pelo material cartográfico. Enfim, meus agradecimentos para todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para realização deste trabalho.

As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. (CALVINO, 1990, p. 44)

RESUMO

Esta dissertação investiga a constituição do sítio urbano de Paulo Afonso, na Bahia, no período entre 1948 e 1985, construído a partir da implantação da Usina Hidroelétrica da CHESF, como aproveitamento do potencial hidráulico da de Paulo Afonso. A construção dessa cidade está associada à prática de companhias hidroelétricas na implantação de núcleos urbanos como suporte aos seus empreendimentos, também chamados de company towns. A pesquisa, em conformidade com o seu recorte temporal, associa­se a três períodos históricos relacionados ao setor da indústria elétrica: à origem de companhias hidroelétricas estatais a partir de fins da década de 1940; à expansão do setor elétrico nacional; e à crise setorial em fins da década de 1970 que se agravou em meados da década seguinte. Tal periodicidade permitiu constatar as relações entre as políticas governamentais para o setor com três fases distintas do empreendimento da Chesf: a sua implantação na cidade, a sua expansão territorial e as mudanças de seu modelo de produção e gestão de espaço urbanizado. Tais mudanças ocasionariam a unificação de seu núcleo urbano com a Vila Poty, cidade­livre ou apêndice. Objetivou­se, nesse sentido, entender sob quais circunstâncias a Chesf, além de sua atividade­fim, aventurou­se como produtora de espaço urbanizado, quais os impactos dessa produção sobre a cidade e o território municipal e as mudanças no seu padrão de produção e gestão de núcleos urbanos. Através de revisão bibliográfica, pesquisa historiográfica e construção de mapas esquemáticos, numa hermenêutica entre análise crítica de textos e desenhos, tal abordagem visa analisar o papel dessa hidroelétrica como produtora de espaço urbanizado e modeladora territorial, ampliando o conhecimento sobre cidades­ companhia e sobre a história da urbanização brasileira. Palavras-chave: Paulo Afonso, Chesf, company town, cidade­livre, história urbana.

ABSTRACT

This dissertation investigates the constitution of the urban site of Paulo Afonso, Bahia, in the period between 1948 and 1985, built after the implementation of the São Francisco's Hydroelectric Company (CHESF) Power Plant, in order to take advantage of the hydraulic potential of the Paulo Afonso waterfall. The construction of this city is associated to the practice of hydroelectric companies in creating new urban settlements to support their enterprises, also called company towns. The research is associated to three historical periods related to the sector of the electric industry: the origin of public hydroelectric companies since the late 1940s; the expansion of the national electricity sector; and the sectoral crisis in the late 1970s that worsened in the middle of the following decade. This periodicity showed the relationship between public policies for the sector with three distinct phases of the Chesf enterprise: its implementation in the city, its territorial expansion and a period of changes in its model of production and management of urbanized space. Such changes resulted in the unification of its urban site with Vila Poty, a free­city or appendix. In this sense, the objective was to understand under what circumstances Chesf, in addition to its final activity, ventured as a producer of urban space, which were the impacts of this production on the city and the municipal territory, as well as the changes in its pattern of production and management of urban sites. This approach aims at analyzing the role of this hydroelectric as a producer of urban space and in changing the territory, increasing the knowledge about company towns and on the history of Brazilian urban history. Keywords: Paulo Afonso, Chesf, company town, free­city, urban history.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Planta de Situação da Vila do Empório Industrial do Norte / 57 Figura 2 Blocos residenciais na Vila Boa Viagem / 58 Figura 3 Praça e coretos da Vila do Empório Industrial do Norte / 58 Figura 4 Planta de situação e projetos da Vila Progresso / 60 Figura 5 Paisagem urbana do núcleo fabril de Pedra / 63 Figura 6 Planta de situação do núcleo fabril de Pedra / 63 Figura 7 Modelo de moradia do núcleo fabril de Pedra / 64 Figura 8 Casas desmontáveis da CESP no assentamento de Primavera / 71 Figura 9 Planta esquemática das vilas em Tucuruí pela Eletrobrás / 73 Figura 10 Vila Permanente da Eletrobrás em Tucuruí / 73 Figura 11 Moradia para operário na Vila Serra do Navio / 76 Figura 12 Moradia para funcionário de nível médio na Vila Serra do Navio / 77 Figura 13 Moradia para funcionário graduado na Vila Serra do Navio / 77 Figura 14 Plantas esquemáticas da Vila Serra do Navio e Vila Amazonas / 78 Figura 15 Hospital e Alojamentos (abaixo) em Paraaupebas da CVRD / 82 Figura 16 Centro de recrutamento de operários em Rio Verde / 83 Figura 17 Planta Esquemática do núcleo de Pilar da Caraíbas Metais / 91 Figura 18 Aspectos da arquitetura do núcleo de Pilar da Caraíbas Metais / 91 Figura 19 Plano Diretor da CESP para Primavera / 96 Figura 20 Placa da passagem de D. Pedro II na Cachoeira de Paulo Afonso / 101 Figura 21 Croquis da Cachoeira de Paulo Afonso por Theodoro Sampaio / 102 Figura 22 Pintura da cachoeira de Paulo Afonso de 1649 por Franz Post / 104 Figura 23 Usina Angiquinho / 108 Figura 24 Usina Piloto / 110 Figura 25 Primeira diretoria da CHESF / 112 Figura 26 Visita do presidente Eurico Gaspar Dutra à obra de Paulo Afonso / 113 Figuras 27 e 28 Visita de Getúlio Vargas à Paulo Afonso / 114 Figura 29 Inauguração da Usina Paulo Afonso (UH PA I) em 1955 / 115 Figura 30 Casa de máquinas da Usina PA I / 116 Figura 31 Visita de Marcondes Ferraz na Westinghouse / 117 Figura 32 Primeira etapa do Sistema de Transmissão da Chesf / 118 Figura 33 O presidente João Figueiredo na inauguração da Usina PA IV em 1980 / 120 Figura 34 Mapa do Arquipélago de Paulo Afonso desde setembro de 1954 / 126 Figura 35 Cerca que dividia o Acampamento da Chesf e a Vila Poty / 128

Figura 36 Veículo da CHESF em obra na Vila Poty / 131 Figuras 37 e 38 Escavoqueiros / 137 Figura 39 Barragens e reservatório formado / 139 Figura 40 Casas de comando e subestação / 140 Figura 41 Casa de comando / 140 Figura 42 Área do pátio de transformadores / 141 Figura 43 Usinas PA I, PA II e PA III / 142 Figura 44 Barragem e reservatório da Usina Moxotó / 143 Figuras 45 e 46 Pavilhão da Usina Moxotó / 144 Figuras 47 e 48 Usina PA IV e a sua via de serviços / 145 Figuras 49 e 50 Usina PA IV e seus blocos de operações / 145 Figura 51 A ilha de Paulo Afonso e os reservatórios das usinas / 146 Figura 52 Vila Poty, a muralha e reservatório da Usina PA IV / 147 Figura 53 Muralha da Usina PA IV a partir do plano da cidade / 147 Figura 54 Reservatório da Usina PA IV e a ilha / 148 Figuras 55 e 56 Ponte de acesso sobre o canal da Usina PA IV / 148 Figura 57 Plano Geral ­ usinas, reservatório e Acampamento da Chesf / 151 Figura 58 Vila Operária na década de 1950 / 152 Figura 59 Vila Operária e Vila Alves de Souza na década de 1950 / 152 Figura 60 Vila Operária e Bairro General Dutra na década de 1950 / 153 Figura 61 Vila Alves de Souza na década de 1950 / 153 Figura 62 Bairro General Dutra em fins da década de 1950 / 154 Figura 63 Parque Belvedere e o reservatório da Usina Paulo Afonso / 155 Figuras 64 e 65 A vegetação do Acampamento da Chesf / 155 Figura 66 Pavimentação do Acampamento da Chesf na década de 1950 / 156 Figuras 67 e 68 Hospital Nair Alves de Souza / 157 Figuras 69 e 70 Posto de Puericultura / 157 Figuras 71 e 72 Unidades móveis de saúde / 158 Figuras 73 e 74 De Hospital a Quartel do Exército / 158 Figura 75 Atividades no Artesanato Nossa Senhora de Fátima / 160 Figura 76 Marieta Ferraz doando roupas produzidas no artesanato / 160 Figuras 77 e 78 Missa católica celebrada na soleira da comporta em 1953 / 161 Figura 79 Procissão na Vila Operária e a Igreja São Francisco / 162 Figura 80 Igreja de São Francisco / 163 Figura 81 Representantes da Igreja e da Chesf na Casa da Diretoria / 163 Figura 82 Os dez mandamentos do servidor da Chesf / 164 Figura 83 Escola Adozindo Magalhães de Oliveira / 165

Figura 84 Escola Alves de Souza / 166 Figura 85 Escola Murilo Braga / 166 Figura 86 Ginásio Paulo Afonso, posteriormente chamado de COLEPA / 167 Figura 87 Escola do SENAI / 168 Figura 88 Atividades de aprendizagem na Escola do SENAI / 168 Figura 89 Atividades de aprendizagem na Escola do SENAI / 169 Figuras 90 e 91 Centro de Formação Profissional de Paulo Afonso ­ CFPPA / 169 Figura 92 Caixa d’Água Relógio / 170 Figuras 93 e 94 Ônibus convencional e o Papa­fila da Chesf / 171 Figuras 95 e 96 Hortas da Chesf / 172 Figura 97 Mercado e barracas da Feira­livre / 173 Figura 98 Restaurante da Chesf / 174 Figura 99 Interior do antigo Armazém / 175 Figura 100 COOCHESF na década de 1960 / 175 Figura 101 Banco da Bahia S.A. / 176 Figura 102 O Banco da Bahia, a Farmácia e o Mercado / 177 Figura 103 Conjunto de galpões e escritórios do Centro de serviços / 177 Figura 104 Vista aérea da pista de pouso do antigo Aeroporto / 178 Figura 105 Estação de passageiros do Aeroporto em 1950 / 179 Figura 106 Hangar do aeroporto da Chesf em 1960 / 179 Figura 107 Casa de Hóspedes / 181 Figura 108 Grande Hotel de Paulo Afonso / 182 Figura 109 Grande Hotel, o cânion, a Usina PA e de seu reservatório / 182 Figura 110 Casa de Hóspedes, COPA e Ruberleno / 183 Figura 111 Abrigos provisórios de madeira da Vila Alves de Souza / 184 Figura 112 Casas unifamiliares conjugadas na Vila Alves de Souza / 185 Figura 113 Planta baixa ­ modelo de casa da Vila Alves de Souza / 185 Figura 114 Casa unifamiliar isolada, construída na Vila Alves de Souza / 186 Figura 115 Casa do Bairro General Dutra / 187 Figuras 116 e 117 Eletrodomésticos disponibilizados nas casas / 187 Figura 118 Conjunto de casas unifamiliares no Bairro General Dutra / 188 Figura 119 Casa da Diretoria / 188 Figura 120 Alojamento para solteiros / 189 Figura 121 Alojamento para solteiros / 189 Figura 122 Casas conjugadas da Vila Operária / 190 Figura 123 Casas conjugadas da Vila Operária / 191 Figura 124 Grupo de casas da Vila Operária / 191

Figura 125 Grupos de casas da Vila Operária / 192 Figura 126 Grupo de casas da Vila Operária / 192 Figura 127 Planta baixa ­ modelo de casa do grupo “Tipo O” / 193 Figuras 128 e 129 Coreto e festivais da Vila Operária / 195 Figuras 130 e 131 Jogos no CPA / 195 Figuras 132 e 133 Festas na Vila Operária: As Pastorinhas e Carnaval no COPA / 195 Figuras 134 e 135 Réveillon no CPA / 196 Figuras 136 e 137 Festa junina no CPA e Alves de Souza acendendo fogueira / 196 Figura 138 Clube Paulo Afonso ­ CPA / 197 Figura 139 Clube Paulo Afonso ­ CPA / 197 Figura 140 Clube Operário ­ COPA / 198 Figuras 141 e 142 Campo de futebol Ruberleno Oliveira / 198 Figura 143 Casa encontrada em Forquilha / 202 Figura 144 Alojamentos provisórios para barrageiros na Vila Poty / 202 Figura 145 Armazém Sertânia / 205 Figura 146 Tipo de casa demolida pelo Prefeito Edson Teixeira / 206 Figura 147 Esgoto a céu aberto na Vila Poty (Rua 31 de Março) / 207 Figura 148 Fachadas das casas nos quarteirões da Rua da Frente / 208 Figura 149 Os quarteirões a partir da Rua da Frente / 209 Figura 150 Antiga Câmara de Vereadores / 211 Figura 151 Antiga Prefeitura Municipal / 211 Figura 152 Escola Casa da Criança / 212 Figura 153 Escola Evangélica Antônio Balbino / 212 Figura 154 Cine Coliseu / 213 Figura 155 Cine Paulo Afonso / 214 Figura 156 O grupo folclórico Cangaceiros / 215 Figura 157 O grupo folclórico Milícia / 215 Figura 158 Banheiro público/chafariz / 216 Figura 159 Posto de Saúde do Estado da Bahia / 217 Figura 160 Atendimento médico do Ministério da Saúde / 217 Figura 161 Presídio localizado na Rua da Frente / 218 Figura 162 Igreja N. S. de Fátima / 218 Figura 163 Igreja N. S. de Fátima e a Rua da Frente / 219 Figura 164 Igreja Pentecostal / 219

Figura 165 Casa mantida pela CHESF como modelo insalubre / 220 Figura 166 Casa da Vila Poty / 222 Figura 167 Casas da Vila Poty / 222 Figura 168 Desfile no dia 7 de setembro ­ Máquinas da CHESF / 226 Figura 169 Desfile no dia 7 de setembro ­ Comissões de funcionários da CHESF / 226 Figura 170 Desfile no dia 7 de setembro ­ Guarda da Chesf / 227 Figura 171 Instalação do Monumento do Trabalhador / 228 Figura 172 Praça do Trabalhador na Rua da Frente / 228 Figura 173 A Feira Livre na Rua da Frente / 229 Figura 174 Comemoração do dia do Trabalhador em 1981 na Rua da Frente / 230 Figura 175 Greve dos trabalhadores / 231 Figura 176 Guarita principal, cerca de arames e Guarda da Chesf / 232 Figura 177 Rua da Frente e a cerca de arames (à esquerda) / 232 Figura 178 Rua da Frente vista da cerca de arames e da guarita da Chesf / 233 Figura 179 Casa de Visitantes / 233 Figura 180 A Guarita Principal e as entradas da Vila Operária e das Obras / 234 Figura 181 Muro de pedras visto do Acampamento da Chesf / 235 Figura 182 Vista aérea da Rua da Frente e o Muro / 236 Figura 183 Primeira Companhia de Infantaria do Exército / 236 Figura 184 Gilberto Leal e o seu carro de anúncios “A Voz do Povo” / 237 Figura 185 Assinatura de acordo para abertura do Acampamento da Chesf / 239 Figura 186 O muro contemporâneo e os vestígios do muro de pedras / 239 Figura 187 O muro contemporâneo e os vestígios do muro de pedras / 240 Figura 188 O muro contemporâneo e os vestígios do muro de pedras / 240 Figura 189 A CHESF na Vila Xingó / 242 Figura 190 Casas de operários da Vila Xingó / 243 Figura 191 Centro comercial da Vila Xingó / 243 Figura 192 Escola da rede estadual na Vila Xingó / 243 Figura 193 Cartaz da campanha pelos Royalties em 1987 / 245 Figura 194 Esquema do sistema de ensecadeira e gaiola / 260 Figuras 195 e 196 Caixão flutuável ou “navio” / 260 Figura 197 Primeira Ensecadeira e do “navio” / 261 Figura 198 Ensecadeira seca e estrutura das comportas em construção / 261

Figura 199 Estrutura semiflexível (“gaiola”) / 262 Figura 200 Enrocamento ­ preenchimento da “gaiola” com pedras / 263 Figuras 201 e 202 Modelo reduzido / 265 Figura 203 Modelo reduzido da “gaiola” / 265 Figura 204 e 205 Modelo reduzido ­ testes de enrocamento / 265 Figuras 206 e 207 Conclusão da obra e abertura das comportas / 266 Figuras 208 e 209 Comportas do braço do Quebra e do Taquari (à direita) / 266 Figura 210 Barragens e reservatório formado / 267 Figura 211 Corte esquemático do sistema de adução e descarga da usina / 268 Figura 212 Octavio Marcondes Ferraz explicando o sistema / 269 Figura 213 Túnel aberto e estruturado / 269

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 Comissão Mista Brasil ­ EUA ­ Programa de energia elétrica (1952­1957) / 45 TABELA 2 Energia produzida pela CHESF por usina em 1982 / 133

LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS

ANA Agência Nacional de Águas

ANEEL Agência Nacional de Energia Elétrica

BNB Banco do Nordeste

CELPE Companhia Energética de Pernambuco

CESP Companhia Energética de São Paulo

CFPPA Centro de Formação Profissional de Paulo Afonso

CHESF Companhia Hidro Elétrica do São Francisco

CNAEE Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica

CODEVASF Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco

COELBA Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia

DNAEE Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica

DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra as Secas

DNPM Departamento Nacional de Produção Mineral

ELETROBRÁS Centrais Elétricas Brasileiras

ELETRONORTE Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.

FGV Fundação Getúlio Vargas

FUNDEG Fundação Delmiro Gouveia

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPT Instituto de Pesquisas Tecnológicas

SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

TVA Tennessee Valley Authority

UFBA Universidade Federal da Bahia

UNEB Universidade do Estado da Bahia

UNIVASF Universidade Federal do Vale do São Francisco

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 20

CAPÍTULO 1 ─ VILAS E CIDADES DA INDÚSTRIA ELÉTRICA 37 1.1 O SETOR ELÉTRICO E A INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA 38 1.1.1 A Revolução de 30 e o Código de Águas, 1930-1945 39 1.1.2 O Estado e o desenvolvimento da indústria elétrica nacional, 1946-1964 42 1.1.3 Expansão e crise do setor elétrico público, 1964-1984 48 1.2 AS CATEGORIAS DE VILAS E CIDADES INDUSTRIAIS 53 1.2.1 As vilas operárias 56 1.2.2 Os núcleos fabris 61 1.2.3 As company towns 65 1.2.4 A cidade-livre 80 1.3 COMPANY TOWNS E CIDADES­LIVRES: relações e transformações 85 1.3.1 Os sistemas de controle 86 1.3.2 Segregação entre a cidade-companhia e a cidade-livre e outros fatores 90 1.3.3 As mudanças da company town e a sua integração com a cidade-livre 93

CAPÍTULO 2 ─ DE ACAMPAMENTO DA CHESF E VILA POTY À CIDADE DE PAULO AFONSO 99 2.1 O LÓCUS, O RIO SÃO FRANCISCO E A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO 100 2.1.1 O aproveitamento da força hidráulica da Cachoeira de Paulo Afonso 107 2.2 MUTAÇÃO: DE VILA POTY E ACAMPAMENTO DA CHESF À CIDADE DE PAULO AFONSO 123

CAPÍTULO 3 ─ A CIDADE DA CHESF: Espacializações do trabalho e do controle 135 3.1 AS USINAS DA CHESF E A TRANSFORMAÇÃO TERRITORIAL DE PAULO AFONSO 136 3.1.1 As três primeiras usinas e a expansão urbana 138 3.1.2 A Usina Moxotó e a construção de novas vilas 142 3.1.3 A Usina Paulo Afonso IV e a ilha 144 3. 2 A CONSTITUIÇÃO DA CIDADE DA CHESF 149 3.2.1 O plano 150 3.2.2 Unidades de saúde 156 3.2.3 A oficina artesanal feminina 159 3. 2.4 A religião, a educação e o tempo na cidade da CHESF 160 3.2.5 Os equipamentos de subsistência, serviços e administrativos 171 3.2.6 Hospedarias, casas e alojamentos para solteiros 180 3.2.7 O lazer saudável 194

CAPÍTULO 4 ─ A VILA POTY E O MURO: Espacializações das lutas e do controle 200 4.1 A CONSTITUIÇÃO DA VILA POTY 201 4.1.1 Ocupação e forma urbana 201 4.1.2 Equipamentos urbanos 209 4.1.3 Moradias 220 4.1.4 Comércio 222 4.2 A RUA DA FRENTE E O MURO: Espacializações das lutas e do controle 224 4.2.1 A Rua da Frente: espacialização das lutas 225 4.2.2 O muro: espacialização do controle 231 4.3 A UNIFICAÇÃO DE PAULO AFONSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS 238

CONSIDERAÇÕES FINAIS 248

REFERÊNCIAS 252

APÊNDICE A - A construção da Usina de Paulo Afonso: o sistema de barragem e os experimentos tecnológicos 286

APÊNDICE B - Mapas 278 Mapa 1 ­ Transformação territorial de Paulo Afonso 279 Mapa 2A ­ Planta esquemática de Paulo Afonso em 1955 280 Mapa 2B ­ Planta esquemática de Paulo Afonso em 1955 281 Mapa 3A ­ Planta esquemática de Paulo Afonso, 1955­1971 282 Mapa 3B ­ Planta esquemática de Paulo Afonso, 1955­1971 283 Mapa 4A ­ Planta esquemática de Paulo Afonso, 1972­1983 284 Mapa 4B ­ Planta esquemática de Paulo Afonso, 1972­1983 285

ANEXO A - O aproveitamento hidrelétrico da cachoeira de Paulo Afonso dá ao Brasil energia e turismo_Revista MANCHETE nº 146, 05 de fevereiro de 1955 286

ANEXO B - A cidade da miséria é vizinha da fortuna _Revista MANCHETE nº 233, outubro de 1956 293

20

INTRODUÇÃO

21

Este trabalho se insere no campo temático da história da cidade, especificamente, dos núcleos urbanos constituídos por indústrias, dando ênfase aos casos relacionados ao setor de energia elétrica.

Através da análise de modelos de vilas e cidades instaladas por indústrias de diversos setores, objetivou­se encontrar subsídios à análise mais aprofundada do estudo de caso ─ a cidade implantada pela Companhias Hidro Elétrica do São Francisco ­ CHESF em Paulo Afonso, Bahia ─, cuja importância está relacionada às primeiras políticas de nacionalização do setor elétrico brasileiro, bem como pela produção de técnicas e introdução de tecnologias na construção de hidroelétricas de grande porte na região Nordeste.

Neste âmbito, a história do setor elétrico está intimamente relacionada às inovações científicas e tecnológicas promovidas nas últimas três décadas do século XIX1, as quais transformaram definitivamente as estruturas das sociedades urbano­industriais e o modus de produção nas indústrias, tal qual promoveram mudanças significativas na divisão do trabalho social, nos cotidianos das cidades e na criação de novas rotinas, não tradicionais, da vida moderna.

Esse período foi definido "[...] pela utilização de novas fontes de energia, como a eletricidade e o petróleo, pelo surgimento de novos ramos industriais, como a siderurgia, a indústria química e a indústria elétrica [...]", tendo como fundamento "[...] o estabelecimento de uma íntima relação entre ciência e técnica, laboratório e fábrica [...]", e requerendo "[...] não apenas certos conhecimentos da ciência pura, como também um processo mais consistente de experimentação científica e análise [...]" (CENTRO, 1988, p. 9­10). Assim, o laboratório se tornou o elemento fundamental da nova industria, um lugar para aprimoramento dos processos produtivos e para redução dos custos de produção2.

Esse desenvolvimento foi patente pela introdução da energia elétrica como fonte para iluminação, calor e força motriz. Essa e outras mudanças promovidas pela Segunda Revolução Industrial, com o uso de novas técnicas e tecnologias que promoveram o surgimento de novos setores industriais, originaram grandes empresas ou grupos empresariais e, consequentemente, estimularam o surgimento de diversos agrupamentos populacionais em

1 Esse período é conhecido como a "Segunda Revolução Industrial", pois não correspondeu apenas de um prolongamento da Revolução Industrial, mas trata­se de um período no qual houve um impulso na industrialização promovido por inventos científicos e pelos avanços tecnológicos, tendo limitação "[...] nos fins do século XIX à Europa Ocidental e aos Estados Unidos, o modelo de sociedade urbano­industrial ganharia escala global no decorrer do século XX, incorporando as regiões industrialmente menos desenvolvidas do resto do mundo". (CENTRO, 1988, p. 9) 2 Ibid., p. 10. 22

amplos conjuntos urbanos, ou seja, "[...] o que ocorreu foi a reunião da mão­de­obra em fábricas e a concentração dessas fábricas em cidades industriais e áreas urbanas." (CENTRO, 1988, p. 13­14).

O setor da indústria elétrica foi viabilizado pelo uso da eletricidade na iluminação das cidades, gerando vasto retorno econômico para as empresas do ramo. Esse ramo industrial é subdividido pela indústria de máquinas e equipamentos elétricos e pela indústria de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.

Até fins do século XIX, a necessidade de fornecimento de energia elétrica para iluminação e serviços públicos, bem como para alguns setores econômicos ─ como mineração, serrarias, fábricas têxteis e de beneficiamento de produtos agrícolas ─, originaram apenas pequenas usinas geradoras3, de pequena potência instalada. Esse quadro se reverteu após a virada do século com a chegada dos grupos estrangeiros, que dominaram o setor elétrico no Brasil nas primeiras décadas do século XX, sendo responsáveis por sua expansão até a década de 1930 e pelo crescimento de usinas hidroelétricas, reduzindo o predomínio de termoelétricas no país.

No caso da região Nordeste, a maior parte da produção de energia elétrica era de origem térmica. Em Pernambuco, por exemplo, toda a produção de energia vinha de uma única usina termoelétrica instalada em Recife por uma companhia inglesa4 em 1914. Essa situação era um impecilho ao desenvolvimento da indústria na região.

O impulso ao desenvolvimento industrial só foi percebido no Nordeste brasileiro, a partir de meados do século XX, no contexto de modernização dos maiores centros urbanos. Nesse período, houve um estímulo à urbanização em cidades nordestinas, sobremaneira a partir da implantação da primeira usina hidroelétrica de grande porte naquela região, como aproveitamento do potencial hidráulico da Cachoeira de Paulo Afonso na margem baiana do rio São Francisco. O empreendimento realizado pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco ­ CHESF foi representativo em relação aos programas políticos dos primeiros governos nacional­desenvolvimentistas, já que fazia parte de um plano de desenvolvimento integrado5 para a região, envolvendo não apenas a geração de energia elétrica, pois também

3 Majoritariamente, as unidades geradoras tinham pequena potência instalada, "registrando­se, em 1900, a existência de 10 usinas geradoras para uma capacidade instalada total de apenas 12.085 kW", além de predominar a energia de origem térmica. (CENTRO, 1988, p. 33) 4 A Pernambuco Tramways and Power Company Limited recebeu concessão de 50 anos em 1913, cf. CENTRO, 1988, p. 50. 5 Em reconhecimento à importância do rio São Francisco para o desenvolvimento integrado do Vale do São Francisco e região Nordeste, os constituintes de 1946 inseriram o "artigo 29" no "Ato das Disposições 23

abrangia projetos6 de irrigação, piscicultura, construção de infraestrutura de transportes e, por consequência, o desenvolvimento industrial na região.

Com a implantação da usina hidroelétrica na região da cachoeira de Paulo Afonso, foi deflagrado um processo migratório de trabalhadores, provenientes de várias cidades brasileiras, principalmente de estados nordestinos. Esse movimento de grandes contingentes de trabalhadores é um fenômeno comum em obras de hidroelétricas de grande porte, tal qual acontece também no setor de mineração. Neste contexto, companhias hidroelétricas e também mineradoras, dentre outros ramos, devido às suas implantações em lugares longínquos, isolados em relação aos maiores centros urbanos, são impelidos à produção de espaço urbanizado, passando a ser agentes produtores de núcleos urbanos como suportes aos seus empreendimentos. Notadamente, esta era uma situação referente ao período, imediatamente, pós­segunda Guerra Mundial, quando as estruturas de transportes e malhas rodoferroviárias ainda não estavam disponíveis como nos dias de hoje. Não obstante, pequenas fábricas têxteis foram implantadas em regiões rurais, com apoio de pequenas usinas geradoras, além da ocorrência de pequenos assentamentos urbanos ainda na República Velha. A constituição de vilas de companhias em regiões interioranas, naturalmente, era diversa da situação de assentamentos urbanos implantados por pequenas fábricas nos subúrbios das maiores cidades. Esses pequenos aglomerados eram construídos como forma de otimizar a produtividade fabril, no sentido de que o operariado estaria morando próximo à fábrica, evitando grandes deslocamentos e absentismo. Estas pequenas aglomerações eram chamadas de "vilas operárias" e foram implantadas no Brasil desde o momento em que a mão­ de­obra passou a ser remunerada, após a abolição da escravatura. Segundo o professor Luiz Antonio F. Cardoso ─ em sua pesquisa voltada à habitação proletária em Salvador durante a Primeira República (1889­1930) ─, o modelo de vila operária se apresentaria como solução de salubridade e de higiene às deletérias habitações disponibilizadas aos emergentes trabalhadores urbanos na zona central de Salvador em fins do século XIX: [...] a habitação dos seguimentos sociais da base da sociedade urbana soteropolitana, da época, aparece pintada nos mesmos tons da moradia

Transitórias", determinando a realização de um plano de aproveitamento das possibilidades econômicas da bacia hidrográfica, num prazo de 20 anos, destinando­se recursos da União equivalentes a 1% de sua receita tributária (SOUZA, 2009, p. 35). 6 Nesse sentido, criaram­se outras autarquias públicas para operarem na região do Vale do São Francisco, tendo como exemplo a criação da Comissão do Vale do São Francisco ­ CVSF, criada pela Lei nº 541 de 15 de dezembro de 1948. 24

proletária dos grandes centros industriais da Europa, cem anos antes. Cubículos escuros, mal cheirosos e sem ventilação, onde se amontoavam, às vezes, dezenas de pessoas [...]. (CARDOSO, 1991, p. 47) Em Salvador, as vilas operárias foram modelos urbanos implantados na Península de Itapagipe, onde havia um predomínio de fábricas de tecidos. Tais fábricas irão estabelecer, em fins do século XIX, pequenas vilas dotadas de habitações para os seus funcionários e equipamentos destinados à suprir as necessidades de subsistência dessas comunidades. Essa versão de vila operária será implantada em áreas rurais distantes dos centros urbanos, também por pequenas fábricas ainda nesse período da Velha República, sendo chamadas de "núcleos fabris". De acordo com a pesquisadora Telma de Barros Correia7, as diferenças entre vila operária e núcleos fabril estaria relacionada a alguns fatores, mormente, a localização desses assentamentos, sendo que ambos estariam submetidos ao controle da fábrica, o que vem a caracterizá­los como modelos "fechados". Quanto à questão do controle, essas vilas podiam ser fechadas através de portões, muros com guaritas ou, simplesmente, com o estabelecimento de horários de entrada/saída e regras de acesso, tal como regimentos disciplinares. A presença de dirigentes das fábricas nesses assentamentos habitacionais era comum nos dois modelos, ainda que, no caso do núcleo fabril essa sombra patronal era mais presente, tendo em vista que esses lugares eram isolados de cidades preexistentes. Segundo Correia (1998), tratava­se de um sistema de gestão da classe operária, da disciplinarização do trabalhador, preparando­o para o trabalho, doutrinando­o como forma do exercício de poder do patrão com o objetivo de otimização da produção nas fábricas. Tal análise teórica de Correia talvez encontre equivalência na noção de "corpo dócil", disciplinado, de Michel Foucault, em sua obra "Vigiar e punir" (FOUCAULT, 1987). De acordo com Foucault, o "corpo dócil" se relaciona aos métodos de adestramento do corpo que é alvo do poder em determinado contexto político­econômico. Em sua obra Michel Foucault cita o livro "O Homem máquina" (La Mettrie), que foi escrito em dois registros: o anátomo­metafísico que faz o corpo inteligível e o técnico­político que o torna útil. Segundo o autor: "[...] É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. [...]" (FOUCAULT, 1987, p. 118). Ainda conforme Foucault: "[...] em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições e obrigações. [...]" (FOUCAULT, 1987, p. 118). E em sequência, o filósofo discorre sobre a lógica disciplinar que se impõe através do espaço, seja em quartéis, cadeias, colégios e conventos, por exemplo,

7 CORREIA (1998; 1999; 2001). 25

ou seja, a construção de espaço fechado em sí para distribuição de indivíduos que serão submetidos à disciplina, pois de acordo com Foucault: "A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. [...]"(FOUCAULT, 1987, p. 122). Analogamente ─ ainda que as formas do exercício de poder nas sociedade sejam diversas, assim como são variados os espaços pelos quais são efetivadas as ações de controle social ─, poder­se­ia associar a noção de "corpo dócil" aos meios de controle de comunidades nas primeiras iniciativas de construção de vilas para operários de fábricas, conforme está subentendido no trabalho de Correia sobre vilas operárias e núcleos fabris e na pesquisa de Cardoso sobre as vilas operárias implantadas na cidade de Salvador. No entanto, cabe ressalvar que num período posterior à segunda Guerra Mundial, quando no desenvolvimento de grandes empreendimentos de empresas relacionadas aos ramos de energia elétrica e mineração, por exemplo, os métodos de controle em espaços de apoio por elas produzidos, mostravam­se atenuados por conta do contexto social e político. Os paradigmas de assentamentos urbanos fechados persistiram além dos modelos apresentados por Cardoso (1991) e Correia (1998). No entanto, apresentavam­se com outra configuração e sofisticação no padrão de gestão dessas vilas. Em estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas ­ IPT através dos pesquisadores Flavio Farah e Marta F. S. Farah, no período entre 1983 e 1986, sobre as vilas constituídas por empresas de mineração e por companhias hidroelétricas, verificou­se em diversos casos que as companhias, ao fundarem seus empreendimentos, a partir de fins da década de 1940, ainda constituíam vilas de suporte aos seus negócios no padrão "fechado". Esses pesquisadores atribuem a esse modelo a designação de company town clássica. Esse paradigma se diferencia dos modelos anteriores, devido à localização, porte, contexto histórico, estruturação espacial e organizacional e pela constituição dos membros das comunidades ali formadas. Notadamente, esses empreendimentos careciam de tecnologias de ponta e pessoal de qualificação superior à mão­de­obra operária dos modelos anteriores, embora não prescindisse desses trabalhadores, principalmente, nas fases iniciais de construção de seus empreendimentos. Outra característica colocada por Farah e Farah (1993) em seu estudo sobre as company towns está relacionada ao grande número de pessoas que ocupam essas vilas e acabam constituindo outros aglomerados em torno dos empreendimentos, designados pelo termo cidade­livre e também cidade­satélite, quando não são propriamente contíguos às vilas das companhias. 26

Nesse âmbito ─ já em relação ao estudo de caso da presente pesquisa ─, na implantação da primeira usina de Paulo Afonso, a companhia construía o seu Acampamento e, ao mesmo tempo, em torno de sua área de domínio, formava­se um aglomerado urbano de forma espontânea, conhecido como Vila Poty. A vila planejada por empresas se diferenciava, sobremaneira, da cidade­livre em termos de infraestrutura urbana e condições de sobrevivência das comunidades, o que gerava conflitos entre as partes colocadas em ambivalência. Neste contexto, faz­se necessário entender: como se dá o relacionamento entre as cidades­livres e as company towns? O que se encontra entre elas ou como são demarcados esses lugares de conflitos e lutas? Quais as mudanças promovidas através dessas relações? Farah e Farah (1993) identificam que durante o período de sua pesquisa já havia uma tendência na mudança de gestão das vilas controladas pelas empresas, culminando na abertura desses núcleos e, consequentemente, nas integrações de company towns com as cidades­livres (FARAH; FARAH, 1993, p. 80­81). Diante dessa problemática, estruturou­se o objeto dessa pesquisa, buscando­se entender sob quais circunstâncias as hidroelétricas, além de suas atividades­fim, aventuraram­ se como agentes de produção de espaço urbano, quais os modelos de sua produção e, enfim, como se deu o processo de transição entre o padrão de núcleo "fechado" para o "aberto" e as motivações para tais mudanças. Essas questões serão respondidas ao longo dos capítulos e nas considerações finais dessa dissertação. Dada à importância do estudo relacionado à produção de vilas e cidades por companhias do setor elétrico na implantação de empreendimentos de grande porte e as consequentes implicações quanto aos impactos sobre os territórios e a sociedade, entende­se que ─ além de alguns casos que serão apresentados no primeiro capítulo ─ o estudo de caso, Paulo Afonso, fornece respostas mais contundentes às questões anteriormente levantadas, pois representa a trajetória do contexto estudado, desde a estatização do setor de energia elétrica até a mudança do paradigma de company town. Nesse sentido e em conformidade aos dois cenários ─ o da "criação da Chesf" e o de "abertura de sua cidade" com a derrubada de seu elemento de segregação ─ a pesquisa foi delimitada no recorte temporal entre 1948 e 1985.

Nesse contexto, também é de igual importância estudar o fenômeno de formação de sua cidade­livre ─ a Vila Poty ─, a qual corresponde à capacidade que os empreendimentos hidroelétricos têm como promotores de movimentos de grandes contigentes que se aglomeram em suas periferias. Ademais, é relevante investigar a gestão e as formas de sobrevivência da 27

cidade­livre após o término de construção das barragens, considerando que, após essa fase, parte dos moradores desses assentamentos ─ operários8 ─ são dispensados de suas funções. Nesta perspectiva, Farah e Farah (1993, p. 77­79) apontam que a sobrevivência ou continuidade no desenvolvimento da cidade­livre depende da criação de alterrnativas econômicas aos negócios das companhias.

Nesse sentido, a Vila Poty representa uma experiência em que, por conta do fortalecimento da municipalidade e criação de fontes alternativas de renda, a vila perdurou, tornando­se cidade até a sua fusão com a company town da Chesf.

Como objetivo geral desta pesquisa, buscou­se analisar a forma de ocupação, produção de espaço urbanizado e de transformação do território ocupado pelas usinas hidroelétricas da Chesf na cidade de Paulo Afonso, Bahia. Quanto aos objetivos específicos, procurou­se:  Identificar os efeitos das políticas governamentais, a partir da Revolução de 1930, que culminaram na criação da Chesf, em fins de 1940, para a sua expansão e às mudanças de gestão de seus empreendimentos e da cidade­companhia;  Analisar o processo de abertura do núcleo urbano controlado pela Chesf, que ocasionou a unificação urbana da cidade de Paulo Afonso;  e, por fim, compreender as consequências da abertura da company town para a cidade e para a empresa. Dessa forma, objetiva­se contribuir para ampliar a história da produção de vilas e cidades constituídas por companhias do setor elétrico, que implantaram geradoras de energia elétrica de grande porte, transformando territórios numa lógica associada ao seus empreendimentos, da mesma maneira que deseja­se colaborar com a história de transição de modelos urbanos "fechados" para "abertos", que sobrelevou a capacidade de planejamento dessas companhias quanto à sua gestão empresarial e como produtoras e gestoras de espaço urbano. Além de tudo, objetiva­se inserir nessa história a parcela de contribuição da cidade­ livre ─ no caso da Vila Poty ─ como espacialização de lutas para o processo de democratização e unificação urbana.

[...] não se trata mais de contentar­se em descrever o meio ambiente no qual vivem e trabalham os homens; o que se procura compreender são as relações complexas que se estabelecem entre os indivíduos e os grupos, o ambiente que eles transformam, as identidades que ali nascem ou se desenvolvem. Este é um dos caminhos reais para compreender o mundo [...]. (CLAVAL, 2004, p. 71)

8 Trabalhadores também chamados de "barrageiros", que moram na cidade­livre. 28

O pensamento de Paul Claval suscita diversas questões complexas, de cunho multidisciplinar, que seriam essenciais à interpretação da história de uma cidade. Entretanto, não bastam todos os conhecimentos disponíveis para os pesquisadores, caso não entendam a natureza de relações do mundo, buscando­se o que está oculto ou invisível, o que está nas entrelinhas, por exemplo, do mundo de representações da historiografia oficial ou tradicional.

Entende­se que só uma análise crítica, proposta para solucionar o dilema da interpretação, seja eficaz ─ como metodologia hermenêutica ─ na análise de fatos urbanos, tendo como base, por exemplo, relatos locais como contribuições para leituras do conjunto e de suas relações sociais. Além disso, nesta pesquisa, perseguiu­se um método hermenêutico que também considerasse os registros presentes em textos produzidos pela historiografia produzida pelos meios oficiais ou institucionais.

O estudo através dos textos foi pertinente, considerando que a sociedade pauloafonsina tem certa tradição textual, guardando as memórias dentro de uma organização e seleção. Por outro lado, os registros históricos baseados em seleções intencionadas para determinado propósito social, político ou para respaldo das intervenções da empresa na região de seu empreendimento também teve papel importante nesse estudo. Assim, a metodologia hermenêutica foi intensionada como um meio capaz de corroborar para interpretação do estudo de caso, como análise dos conteúdos de narrativas da historiografia, buscando os não­ ditos e o silenciado, mas também a visão oficial dos fatos, nas suas interrupções, descontinuidades e recalques, pois cada uma delas teve certo grau de controle sobre seus registros históricos.

Essa diretriz metodológica foi utilizada como mecanismo para a construção das “cesuras”, apropriando­se das interrupções, recalques, esquecimentos e silenciamentos nos discursos das narrativas historiográficas, e evidenciando, com conhecimento de causa, as experiências e fatos históricos dos que se encontravam sob controle ou sob influência da empresa. Esta diretriz é fundada no que Gagnebin (2011, p. 100­103) defende sobre a teoria de Benjamin:

[...] Em sua teoria da narração e em sua filosofia da história em particular, o indício de verdade da narração não deve ser procurado no seu desenrolar, mas, pelo contrário, naquilo que ao mesmo tempo lhe escapa e a escande, nos seus tropeços e nos seus silêncios, ali onde a voz se cala e retoma fôlego [...]. No pensamento de Hölderlin e no de Benjamin a cesura é, deste modo, uma figura privilegiada da interrupção salvadora, pois não intervém somente de fora, de uma decisão subjetiva como a do historiador ou do crítico, mas escande muito mais profundamente o movimento mesmo do logos; ela é a expressão daquilo que, paradoxalmente, funda nossa linguagem e a entrega 29

ao aniquilamento – pois sua verdade não reside no infinito escoamento de nossas palavras, mas neste sopro ‘sem expressão’ que as forma e as traz ou dispersa e as perde. Portanto, trata­se de interromper a história que se repete continuamente como uma cadeia de fatos montados, cronologicamente e de forma determinista, para justificar as ações dos que a forjam. No caso do sítio em estudo, as cesuras permitiram inscrever, nessa narrativa oficial, as experiências e fatos silenciados, emergindo assim numa outra história, da qual pode se derivar em outras tantas histórias, pois não se trata de construir uma contra­história totalitarista, mas de evidenciar as descontinuidades dos fatos, relativizando os discursos ─ contraditórios e diversos ─ do pensamento para construção da cidade. Trata­se também de ir além da história "ufanista", da vitória e das conquistas da companhia em relação ao desenvolvimento da região Nordeste, embora sem lhe tirar o devido valor quanto à sua importância histórica.

Enfim, entende­se que só subvertendo o discurso estabelecido nas narrativas que forjaram a história da cidade de Paulo Afonso, é possível caracterizar a complexidade e diversidade de sua estrutura urbana. Por um lado, a company town da Chesf e, doutro lado, a cidade­livre que se desenvolveu na espontaneidade de seu povo e de suas lutas. Reunindo, assim, a história do conjunto de espacializações relacionadas ao trabalho, ao controle e às lutas.

Do ponto de vista prático, através da análise crítica historiográfica foi possível entender as relações que se fizeram entre essas partes de cidade, no início, segregadas, e as contribuições que esses vínculos conflituosos tiveram para a unificação urbana na mudança do modelo tradicional "fechado" à cidade "aberta".

No entanto, a análise historiográfica, por si só, foi insuficiente no entendimento das influências e impactos promovidos pelo empreendimento da Chesf em Paulo Afonso ─ embora tenha sido fundamental ─, considerando o seu papel como produtora de espaço urbano e como modeladora de território, entendendo que os elementos (barragem, canais, lagos e reservatórios) que definiram o seu empreendimento também causam modificações na paisagem a partir da transmutação de sua parte física.

Aqui se faz necessário conceituar "território" como a parte física e "paisagem" como resultado da ação do homem no território, ou seja, como forma final. Com outras palavras, o território é entendido aqui como suporte (físico) da paisagem, tendo em conta que tratamos do aspecto físico daquela paisagem como forma modelada através da intervenção da Chesf na 30

construção das usinas. Para melhor esclarecer as diferenças conceituais entre território e paisagem, recorre­se a seguinte explanação:

Creio que neste ponto surgirá com bastante facilidade uma definição de "paisagem" como "forma" que o ambiente ("função" ou "conteúdo" […]) confere ao território como "matéria" de que ele se serve. Ou melhor, se quisermos ser mais precisos, "paisagem" é a "forma" na qual se exprime a unidade sintética a priori [...] da "matéria (território)" e do "conteúdo ou função (ambiente)". […] O ambiente concreto, o ambiente que vivemos e do qual vivemos vivendo nele, é sempre o ambiente como forma de um território: paisagem. (ASSUNTO, 1976 apud SERRÃO, 2013b, p. 22, grifos nossos) No estudo em questão, o ambiente (conteúdo) é narrado através dos fatos revisados na historiografia e relatos que foram transcritos criticamente. No entanto, a transformação da paisagem ─ com a intervenção da companhia no território de Paulo Afonso─ se mostrou um desafio à pesquisa desde o início. Nesse ínterim, entre análises historiográficas e pesquisas de campo, buscou­se cartografias e fontes iconográficas que pudessem representar a modelagem do território, na transformação da paisagem natural até o estabelecimento da paisagem urbana promovida pela Chesf através de seu empreendimento.

Sabe­se que, com a necessidade de expansão do empreendimento da empresa, num período de obras que durou 35 anos, o território já tinha sido completamente modificado. Nesse sentido, buscou­se representar através de mapas esquemáticos esssas transformações, relacionado­as às expansões das usinas e, consequentemente, ao crescimento da cidade e à sua mutação.

Diante da impossibilidade de encontrar todas as fontes cartograficas necessárias, utilizaram­se as informações contidas nas histórias dos escritores locais e institucionais, sendo possível representar essas transformações através de pequenos mapas esquemáticos, num cruzamento de histórias e desenhos9.

Em suma, através de duas estratégias metodológicas, uma relacionada à revisão historiográfica e, a outra, à constituição das transformações urbanas através de mapas e fotografias, foi possível trazer à tona o papel da hidroelétrica como produtora de espaço ─ além de sua atividade­fim ─, e como esta atividade acessória influenciou na formação da cidade de Paulo Afonso e nas suas relações com a Vila Poty.

9 Cf. APÊNDICE B ­ Mapas. 31

Esta dissertação foi estruturada da seguinte forma: introdução, o desenvolvimento da pesquisa distribuído em quatro capítulos e as considerações finais, além de apêndices e anexos. O Capítulo 1, intitulado VILAS E CIDADES DA INDÚSTRIA ELÉTRICA, está estruturado em três partes que se relacionam entre si. Na primeira seção desse capítulo, intitulada O SETOR ELÉTRICO E A INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA, construiu­se um quadro panorâmico do setor brasileiro de energia elétrica relacionado à industrialização nacional. Nesta perspectiva, objetivou­se contextualizar as políticas governamentais ao setor como estratégica para o desenvolvimento regional, a partir do governo do general Eurico Gaspar Dutra, a continuidade dos investimentos, sobretudo, através do segundo mandato de Getúlio Vargas (1951­1954) e de Juscelino Kubitschek (1956­1961) e, finalmente, o regime dos governos militares (1964­1985) quando se mudaria a forma de gestão de companhias hidroelétricas, num período de grandes recessões econômicas. No entanto, a construção dessa trama corresponde aos fatos mais relevantes em respeito aos objetivos dessa pesquisa, tendo em conta que não se trata da história do setor elétrico em si, embora os fatos históricos selecionados estejam correlacionados a ela. As fontes utilizadas nessa fase são associadas ao Centro de Memória da Eletricidade no Brasil, que trouxeram informações fundamentais à análise do período da criação da Chesf e de outras companhias citadas durante o capítulo, suas trajetórias e as mudanças por elas sofridas na década de 1980. Na segunda seção do primeiro capítulo, intitulada AS CATEGORIAS DE VILAS E CIDADES INDUSTRIAIS, associaram­se algumas empresas citadas do setor elétrico às suas experiências na produção de espaços urbanizados, sendo vinculadas às constatações da primeira parte. Em seu desenvolvimento, foi necessário conceituar alguns modelos de núcleos urbanos implantados por empresas de setores industriais específicos em conformidade aos períodos em que foram concebidos. O desenvolvimento dessa seção e a finalização desse capítulo através de sua terceira parte, intitulada COMPANY TOWNS E CIDADES­LIVRES: relações e transformações, visaram demonstrar não apenas a caracterização de cada modelo urbano implantado por indústrias mas, sobretudo, apresentar o paradigma de company town clássico que se associa ao estudo de caso ─ Paulo Afonso ─, as suas relações com o aglomerado urbano constituído em torno de empreendimentos e fora do controle das companhias ─ a "cidade­livre" ─, e as transformações que esse modelo de cidade sofreu até a sua integração com o assentamento espontâneo ou com núcleos preexistentes, exemplificando 32

através de experiências de hidroelétricas e de mineradoras em conformidade às fontes consultadas. A partir do Capítulo 2, intitulado DE ACAMPAMENTO DA CHESF E VILA POTY À CIDADE DE PAULO AFONSO, a dissertação adentra no seu estudo de caso, a cidade de Paulo Afonso, tendo como recorte temporal o período entre 1948 e 1985, que corresponde ao intervalo compreendido entre a constituição e a chegada da Chesf à região e o período de redemocratização brasileira, quando o seu núcleo urbano foi aberto, unificando­se à Vila Poty. Neste capítulo, a trajetória específica da Chesf é traçada em relação aos programas governamentais que estimularam a sua criação, a expansão de seu empreendimento e de suas áreas de concessão, discorrendo, em linhas gerais, sobre a origem, o desenvolvimento e a mutação do seu núcleo e da cidade­livre. Na primeira seção do segundo capítulo, intitulada O LÓCUS, O RIO SÃO FRANCISCO E A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, objetivou­se contextualizar o território que seria ocupado pela cidade de Paulo Afonso, além de localizar o rio São Francisco e a sua cachoeira como os fulcros do desenvolvimento dessa história. Na segunda seção, intitulada MUTAÇÃO: DE VILA POTY E ACAMPAMENTO DA CHESF À CIDADE DE PAULO AFONSO, dissertou­se sobre o panorama urbano da cidade ─ limitado pelo recorte temporal deste trabalho ─, a construção de sua municipalidade, a criação do município de Segurança Nacional na época do Ato Institucional número 5 (1968) e a luta dos emancipalistas da Vila Poty até a unificação entre as partes segregadas. Não obstante o aspecto sintético desse capítulo, objetivou­se introduzir as questões que serão aprofundadas adiante. O Capítulo 3, intitulado A CIDADE DA CHESF: as espacializações do trabalho e do controle, trata do detalhamento ou da caracterização da experiência da Chesf na construção de sua company town, tal como se processou as transformações urbanas em função das necessidades de expansão de seu empreendimento. Além disso, foi possível realizar algumas análises pertinentes às formas de gestão do núcleo por parte da companhia, indicando as implicações dessa organização espacial ─ constituída por espacializações relacionadas ao trabalho ─ de acordo com a sua personalidade de "fechamento", "isolamento" e "autossuficiência"10.

10 Na verdade, autossuficiência "relativa" aos serviços urbanos, à administração própria e aos equipamentos comunitários. Nesse caso, a cidade Chesf necessitava ser abastecida por produtos agrícolas produzidos na região, além de importar eletrodomésticos, móveis, utensílios e materiais de construção na primeira fase de seu empreendimento, quando ainda não havia desenvolvimento do comércio local e regional. 33

Na primeira parte do desenvolvimento deste capítulo, intitulada AS USINAS DA CHESF E A TRANSFORMAÇÃO TERRITORIAL DE PAULO AFONSO, foi esmiuçado o processo de formação das instalações, barragens, canais e reservatórios, correlacionando este desenvolvimento do complexo de usinas às transformações do território original, embora sem o detalhamento dos métodos construtivos e tecnológicos11. Na segunda parte do terceiro capítulo, intitulada A CONSTITUIÇÃO DA CIDADE DA CHESF, finalmente, parte­se para descrição analítica da company town constituída pela Chesf, apresentando as suas vilas categorizadas, os equipamentos comunitários, a infraestrutura urbana e organizacional e as relações e interações sociais entre os grupos, dirigentes e os espaços. O Capítulo 4, intitulado A VILA POTY, O MURO E A UNIFICAÇÃO URBANA: as espacializações das lutas e as mudanças na company town da Chesf, foi elaborado analiticamente tendo em vista os depoimentos transcritos por escritores locais de personagens públicos e populares que, de alguma forma, participaram da emancipação política da cidade, das lutas contra a segregação urbana e no processo de unificação de Paulo Afonso. Esse capítulo foi estruturado em três partes. Na primeira seção, intitulada A CONSTITUIÇÃO DA VILA POTY, após as análises de depoimentos e da historiografia, traçou­se uma trama histórica sobre a formação da cidade relacionada às suas conquistas sociais, mas também nas dificuldades da municipalidade na gestão urbana, as intervenções da Chesf nesse sítio em termos políticos, mas também nas contribuições para infraestruturar a vila. Na segunda parte, intitulada A RUA DA FRENTE E O MURO DE PAULO AFONSO: as mudanças da company town da Chesf, analisaram­se as relações entre as partes segregadas através do elemento que as dividia, no espaço de seu centro cívico (a Rua da Frente), onde ocorreram os eventos mais notáveis da história pauloafonsina do ponto de vista político, social e cultural. Demonstrou­se, assim, que nesse espaço foram construídos movimentos que contribuíram para unificação da cidade, sem perder de vista outros fatores da conjuntura nacional à época. Na terceira parte, intitulada A UNIFICAÇÃO DE PAULO AFONSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS, por fim, foram apresentadas algumas consequências relacionadas à unificação entre as partes de cidade segregadas antes de 1985, bem como algumas constatações sobre as mudanças na cidade e na forma de gestão da Chesf em relação ao seu núcleo urbano, após a sua abertura.

11 Os quais reservamos ao APÊNDICE A. 34

Em relação a outras fontes, além da revisão bibliográfica, foram realizadas pesquisas de campo, com coletas de registros fotográficos e cartografias, tendo como fontes importantes o Memorial CHESF e a Divisão de Logística e Infraestrutura de Paulo Afonso ­ DGRPL, que forneceram, respectivamente, os arquivos de seu acervo fotográfico e os mapas e partes de mapas relacionados à formação da cidade desde a década de 195012. Também foi consultado o acervo da Casa da Cultura de Paulo Afonso (antiga Câmara de Vereadores) que nos cedeu arquivos de imagens da Vila Poty. Igualmente, a Senhora Fátima de Souza nos cedeu fotos de seu acervo pessoal, que ilustram o muro da CHESF. Além disso, também foram realizados registros fotográficos, que complementaram o estudo.

Finalmente, apresentamos as Considerações Finais, que são os resultados das análises e constatações, as respostas auferidas pela dissertação, considerando as consequências da unificação urbana para a Chesf e à cidade.

Como forma de complementar as informações dos capítulos, construímos apêndices e anexamos reportagens de periódicos da época de construção das usinas, que de certa forma retratavam a cidade, embora imbuídos de determinados preconceitos.

No Apêndice A, registramos o processo de construção da primeira usina de Paulo Afonso, evidenciando as técnicas e soluções utilizadas pela equipe da Chesf para construção da barragem e das perfurações de poços e das casas de máquinas em grandes maciços rochosos, correlacionando ao depoimento do engenheiro Bret Lôlas de Cerqueira Lima, o qual foi transcrito pelo autor desse trabalho. Ademais, acrescentaram­se algumas informações colhidas nos depoimentos de Marcondes Ferraz (apud CENTRO, 1993) e Alves de Souza (1955), e as imagens que representam esse processo tecnológico.

No Apêndice B, foram incluídos mapas esquemáticos, realizados pelo autor do presente trabalho, que representam as fases de construção da cidade de Paulo Afonso, relacionando essa expansão urbana à própria expansão do empreendimento da Chesf. Outrossim, os mapas informam a transformação do território em função da construção do complexo de usinas.

Complementando as informações anteriores, foram realizados quatro mapas correspondentes aos períodos de construção de usinas e expansão urbana:

 O Mapa 1, representa esquematicamente e de forma simplificada a transformação do território municipal de Paulo Afonso em três fases: a fase 1

12 Cf. APÊNDICE B. 35

representa a forma do território original, antes da chegada da Chesf; a fase 2, trata­se da primeira transformação territorial após a construção da Usina Paulo Afonso; a fase 3, por fim, representa a última transformação promovida através da construção da Usina Paulo Afonso IV.

 O Mapa 2, de 1955, representa a primeira fase de construção da cidade da Chesf e da Vila Poty, no ano de inauguração da primeira usina de Paulo Afonso (PA I), sendo sudividido em duas partes: o Mapa 2A é representado por manchas que correspondem à ocupação de cada vila implantada no núcleo urbano da Chesf e da Vila Poty; o Mapa 2B, representa os mesmos assentamentos urbanos do mapa anterior, contribuindo na identificando do conjunto de edificações habitacionais e equipamentos correspondentes ao texto dos capítulos sobre Paulo Afonso;

 O Mapa 3 representa o período entre 1955 e 1971, que corresponde à expansão urbana promovida pela construção de mais duas usinas (PA II e PA III) e o início de construção da quarta unidade (Usina Apolônio Sales). Por outro lado, nesse mapa, assim como no anterior, também estão representados os equipamentos de controle instalados13 na cidade e o reforço do elemento de segregação urbana. Este mapa também é subdividido em Mapa 3A e Mapa 3B, tendo as mesmas finalidades de representação das peças gráficas anteriores.

 O Mapa 4, por fim, representa o período entre 1972 e 1983, que corresponde ao término da quarta usina (Usina Apolônio Sales) e ao intervalo entre a construção e a inauguração da última usina hidroelétrica (PA IV) da Chesf em Paulo Afonso, que promoveram a transfiguração total do território municipal através da construção de reservatórios e a expansão urbana. Este mapa também está subdividido em duas partes, tendo as mesmas finalidades de representação das peças gráficas anteriores;

Cabe alertar que os mapas complementam os textos nos capítulos referentes a Paulo Afonso, nos quais também se encontram imagens que também representam essas realizações.

13 No período do regime militar no país foi instalado o quartel do exército e sua vila. 36

37

CAPÍTULO 1

VILAS E CIDADES DA INDÚSTRIA ELÉTRICA

38

1.1 O SETOR ELÉTRICO E A INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA

Com as inovações científicas e tecnológicas nas últimas três décadas do século XIX ─ período conhecido como Segunda Revolução Industrial ─, ocorreu a introdução no Brasil da energia elétrica, através de experimentos práticos, que também eram desenvolvidos nos países mais industrializados do mundo na mesma época.

Os primeiros passos do setor de energia elétrica foram viabilizados pelo uso da eletricidade na iluminação das cidades, na alimentação das linhas de bondinhos elétricos em capitais e na energia consumida por pequenas fábricas têxteis, serrarias e usinas de beneficiamento de produtos agrícolas.

Por outro lado, o desenvolvimento de novos materiais e aperfeiçoamento das formas de produção, aliadas à energia elétrica, viabilizou setores industriais como a siderurgia, possibilitando a disseminação do uso de materiais como o aço, que seria largamente utilizado na arquitetura, em obras de arte da engenharia e nas ferrovias, iniciando a construção da infraestrutura no país, na construção de arranha­céus nos grandes centros, bem como estimularia posteriormente o surgimento da indústria de máquinas pesadas.

Entre 1880 e 1900, o setor elétrico no Brasil alimentava basicamente as cidades ─ de forma deficitária ─, fornecendo energia elétrica para iluminação e serviços públicos, tal como para alguns setores produtivos da economia, mas ainda contando com pequenas usinas geradoras de energia elétrica de pequena capacidade instalada. Esse quadro foi revertido após a virada do século com a chegada de grupos estrangeiros, as Holding Companies, que dominaram14 o setor elétrico brasileiro até a primeira metade do século XX.

Com a explosão populacional no início do século XX nos grandes centros brasileiros, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro, motivada pelo desenvolvimento de indústrias localizadas nos subúrbios de capitais, essas holdings15 monopolizaram o setor elétrico nos estados mais desenvolvidos do Brasil, bem como em áreas que julgavam com maior potencial

14 Em termos de produção energética e capacidade instalada em relação às pequenas companhias nacionais até fins dos anos 40 do século XX. 15 A holding canadense Brazilian Traction, Light e Power Co. Ltd. controlava as empresas São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited e a São Paulo Electric Company Limited, que atuavam em São Paulo desde o início do século XX, e a Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited que atuava na capital federal (Rio de Janeiro) na mesma época. Esse grupo era conhecido simplesmente como Light. De outra parte, a American & Foreign Power Company ­ Amforp, empresa do grupo estadunidense Electric Bond & Share Corporation, começou a atuar no setor elétrico brasileiro a partir de 1927. A Light e a Amforp foram as maiores empresas estrangeiras instaladas no Brasil. 39

de desenvolvimento ─ no Sul, Sudeste e Centro­Oeste do país ─. Dessa forma, não mostraram interesse nos Estados do Norte e do Nordeste, as regiões brasileiras menos industrializadas, nas quais atuavam pequenas concessionárias com atividades concentradas no domínio municipal, praticamente autoprodutoras16, e que tinham termoelétricas como geradoras de energia17.

Dois elementos básicos caracterizavam a indústria de energia elétrica no Brasil durante a década de 1920: a construção de centrais geradoras de maior envergadura, capazes de atender à constante ampliação do mercado de energia, e a intensificação do processo de concentração e centralização das empresas concessionárias, que culminou, no final do decênio, com a quase completa desnacionalização do setor. (CENTRO, 1988, p. 55, grifos nossos) Os monopólios exercidos pelas empresas estrangeiras no setor de energia elétrica brasileiro, bem como as suas políticas de incorporação18 de pequenas companhias, serão dificultados a partir da Revolução de 1930, quando o Estado Brasileiro, concentrando em si um grande poder de decisão, criará um novo cenário para esse setor, regulamentando­o e lançando as bases para processos mais rigorosos e restritos de concessões na exploração dos recursos naturais em território nacional, o que levará à estatização desses recursos após o Estado Novo, principalmente, a partir do segundo Governo de Getúlio Vargas, originando as grandes companhias brasileiras desse setor.

1.1.1 A Revolução de 30 e o Código de Águas, 1930-1945

No contexto da Grande Depressão mundial, iniciada em 1929, com uma crise econômica agravada pelo excesso de produção do café na década de 1920, que prejudicou o mercado agroexportador brasileiro, e com o descontentamento de setores da sociedade pela conhecida política "café com leite"19, originou­se um movimento armado que culminou no Golpe de Estado conhecido como a Revolução de 1930, retirando o presidente Washington

16 Que produziam para consumo próprio, associadas à pequenas fábricas, ou alimentavam pequenas áreas urbanas. 17 Com exceção da Bahia que, até 1930, era o maior produtor de energia elétrica de origem "hidráulica" do Nordeste e o quarto no país, com 15 563 kW de potência instalada, perdendo para São Paulo (311 037 kW), Rio de Janeiro (172 600 kW) e Minas Gerais (85 416 kW), que eram os maiores produtores (IBGE, apud CENTRO, 1988, p. 67). Nota: valores referentes à potência instalada de origem "hidráulica". 18 No caso da Amforp, por exemplo, a estratégia dessa empresa, para expansão de suas atividades no setor elétrico, era a seguinte: "[...] assegurado o completo controle acionário de uma determinada companhia, esta era incluída no patrimônio da Amforp, permanecendo, porém, com personalidade jurídica própria." (CENTRO, 1988, p. 63) 19 A política "café com leite" tem relação com o domínio das oligarquias de Minas Gerais e São Paulo nas decisões do Estado Brasileiro. Estas oligarquias se mantinham no poder, através de eleições fraudulentas, alternando­se, na presidência da República, com políticos que representavam os seus interesses (FAUSTO, 1995, p. 261). 40

Luiz e levando Getúlio Vargas ao poder com apoio de militares rebeldes e de políticos dos Estados de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba20.

Nesse primeiro período, Getúlio Vargas permaneceu no poder entre 1930 e 194521 e, a partir dessa época, o pais passou por grandes transformações através de reformas na política e na economia, fundando as bases para o processo de desenvolvimento da industrialização nacional, inclusive contribuindo para o desenvolvimento da indústria de base nas regiões mais pobres do país a partir da década de 1950. Portanto, motivando uma nova fase de urbanização, após a segunda guerra mundial, e transformando a infraestrutura e estrutura de cidades, microrregiões e regiões.

O período do Estado Novo ─ devido à sua natureza ditatorial ─ se colocou como o oposto em relação ao papel do Estado durante a República Velha, a qual, por sua vez, não intervinha no âmbito da economia, limitando­se, sobretudo, com a política cambial relacionada à indústria cafeeira e de exportação, delegando aos estados e aos municípios da Federação plenos poderes nas decisões relativas às concessões para exploração dos recursos naturais, principalmente, com fins energéticos, intervindo, raramente, quando envolvia serviços da União22 e quando era necessário regulamentar os contratos com concessionárias que vinham se expandindo. Nesse sentido, considerando que as concessionárias estrangeiras tinham representantes nos poderes municipal e estadual, obtinham, então, grandes privilégios, refletindo o seu poderio econômico e político durante a República Velha, contrariando interesses de alguns empresários brasileiros23 do setor elétrico, que seguia sem a devida regulamentação.

20 Essa frente oposicionista era conhecida como "Aliança Liberal" (CENTRO, 2001). 21 Observa­se que este período teve diferentes fases e formas de governos: entre 1930 e 1934, Getúlio Vargas foi chefe do Governo Provisório, sendo eleito pela Assembléia Constituinte de 1934, e no período ditatorial entre 1937 e 1945 ficou à frente do Estado Novo. (CENTRO, 1988, p. 77). 22 "[...] Em 1904, o orçamento da União previu o emprego de recursos no aproveitamento de força hidráulica para produção de energia elétrica aplicada a serviços federais. Em dezembro do mesmo ano, o presidente Rodrigues Alves aprovou o decreto 5.407, que estabelecia regras para os contratos de concessão de aproveitamento hidrelétrico. Esse decreto tinha como princípios básicos a concessão sem exclusividade, o prazo máximo de concessão de 90 anos, a reversão para a União sem indenização do patrimônio constituído pelo concessionário e a revisão periódica das tarifas a cada cinco anos." (CENTRO, 1988, p. 71­72) 23 Um episódio representativo da tensão entre empresas nacionais e estrangeiras está relacionado à entrada da Light na cidade do Rio de Janeiro em 1907. Na ocasião, o grupo nacional representado pelos empresários Eduardo Guinle e Cândido Gaffrée tentou inviabilizar a instalação dos estrangeiros na Capital Federal, já que visavam atuar naquelas áreas de concessão. Assim, a Rio Light, através de seu representante Percival Farquhar, acionou sua influência política via Departamento de Estado dos EUA que, por sua vez, contatou o barão do Rio Branco e Lauro Müller, respectivamente, ministro das Relações Exteriores do Brasil e ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, descartando o grupo nacional da concorrência e estabelecendo o Grupo Light naqueles domínios. Entretanto, este não foi o único episódio de contenda entre esses dois grupos, que continuaram na disputa por concessões, inclusive na venda de energia para o Porto de Santos em 1909, tendo a Câmara 41

Essa situação mudaria na fase ditatorial do Governo de Vargas, que acabaria com a descentralização do poder instituído na República Velha, conferindo plenos poderes de intervenção à União sobre a economia e a sociedade, ou seja, iniciou­se ali o processo de centralização do poder federal. Em 1931, como uma das primeiras medidas de regulamentação do setor elétrico, foram "[...] suspensos todos os atos de alienação, oneração, promessa ou começo de transferência de qualquer curso perene ou queda d'água [...]". Assim, "[...] qualquer ato que envolvesse os dispositivos do decreto passava a depender da autorização expressa do governo federal [...]", evitando "[...] o intenso processo de concentração do setor elétrico verificado na segunda metade da década de 1920, comandado pelos grupos Light e Amforp [...]" (CENTRO, 1988, p. 80).

Com a abertura do regime por Vargas, a Assembleia Constituinte aprovou a Carta de 1934, a qual sancionou o poder da União como Estado intervencionista e de controle das áreas de interesse da nação, dos recursos naturais (áreas de minérios, quedas d'água, cursos de rios etc.). Nesse mesmo ano, o Código de Águas introduzia mudanças importantes para a exploração dos recursos naturais destinados à produção energética, tais como:

[...] separa a propriedade das quedas d'água das terras em que se encontram, incorporando­as ao patrimônio da Nação; atribui à União a competência de outorga de autorização e concessão para o aproveitamento de energia hidráulica para uso privativo ou serviço público; institui o princípio do custo histórico e do "serviço pelo custo", de lucro limitado e assegurado; e inicia a nacionalização dos serviços, restringindo sua concessão a brasileiros ou empresas organizadas no país. Ressalva, no entanto, os direitos adquiridos. (BIBLIOTECA DO EXÉRCITO, 1977, p. 62) Evidentemente, o Código de Águas encontrou muita resistência24 por parte das concessionárias estrangeiras e de seus representantes políticos, principalmente devido à cláusula referente ao princípio de definição tarifária pelo "custo histórico" (LIMA, 1995, p. 38). Apesar de toda a polêmica em torno do princípio de definição de tarifas, essa cláusula nunca foi posta em vigor, tendo o Governo relaxado, abrindo a possibilidade de alteração de tarifas através do decreto 5.764, de 1943. Entretanto, o setor elétrico entrou em crise pela retração de investimentos por parte das concessionárias estrangeiras, resultando no decreto de racionamento de 1942, que atingiu, principalmente, os centros mais desenvolvidos e com maior consumo de energia elétrica.

Municipal defendido a manutenção do monopólio da Light, apesar da Prefeitura de São Paulo ter deferido o pedido do grupo brasileiro para vender o excesso de energia de sua Usina de Itatinga (CENTRO, 1993, p. 59). 24 Por outro lado, o código encontrou apoio de personalidades notórias na época como, por exemplo, de Gustavo Capanema, que foi ministro da Educação e Saúde no primeiro governo de Vargas. 42

Nesse contexto, o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica ­ CNAEE25 e a Divisão de Águas do Departamento Nacional de Produção Mineral ­ DNPM26 elaboraram, com apoio do jurista Bilac Pinto, uma declaração de princípios, publicada em 1941. Tal declaração contribuiu para a criação das diretrizes necessárias à prestação de serviços públicos, relacionados ao setor elétrico, bem como sinalizava a metodologia de efetivação do Código de Águas, traçando uma nova trajetória para esse setor, destacando­se as seguintes orientações:

"[...] 7 ­ O Estado deve, pois, promover a regulamentação efetiva de todos os serviços de utilidade pública, com uma política inflexível e enérgica. 8 ­ Se a regulamentação efetiva falhar, há só um recurso, a estatização de todos esses serviços. [...]." (LIMA, 1995, p. 28). Em suma, esse período foi definido pela ruptura com a política econômica agroexportadora da República Velha, redefinindo o eixo dinâmico da economia com perspectiva urbano­industrial, sobrelevando os poderes do Estado brasileiro que centralizou os sistemas de controle e concessões de exploração de recursos naturais, e rompeu com a descentralização constituída pelo pacto oligárquico dos governadores.

1.1.2 O Estado e o desenvolvimento da indústria elétrica nacional, 1946-1964

Até a Segunda Guerra Mundial, o setor elétrico foi prejudicado pela impossibilidade de compra de máquinas e equipamentos elétricos no exterior, já que a indústria no Brasil ainda não fabricava tais maquinarias, impedindo a expansão do parque gerador de energia elétrica e interrompendo as obras em andamento. Entretanto, com o final do conflito, essa situação foi normalizada, o que coincidiu com o fim do regime do Estado Novo com a renúncia de Getúlio Vargas.

Enquanto isso, o CNAEE e a Divisão de Águas do DNPM constituíram uma Comissão Técnica Especial desde 1943 e elaboraram até 1946 o Plano Nacional de Eletrificação, prevendo algumas diretrizes básicas para a concepção de empreendimentos destinados à geração de energia elétrica na esfera pública e privada (LIMA, 1995, p. 41).

25 O CNAEE foi criado através do Decreto­Lei 1 285 de 18 de maio de 1939, o qual era vinculado diretamente à Presidência da República, ocupando o espaço de regulamentador conforme previsto pelo Código de Águas. 26 O DNPM, criado em meados de 1933, estava subordinado ao Ministério da Agricultura. A sua Divisão de Águas era formada por técnicos e engenheiros especialistas no setor elétrico e de minas, dentre eles, Luiz de Anhaia Mello, que foi prefeito de São Paulo na década de 1930, professor da Politécnica da USP e propagandista do New Deal no Brasil, e Antônio José Alves de Souza, que seria o presidente­fundador da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco ­ CHESF. 43

Observa­se que algumas iniciativas da esfera do Executivo público foram tomadas no período anterior, sendo importantes na definição do caminho trilhado pelo setor elétrico na nova fase de industrialização nacional, com destaque para: a construção, pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, da Usina Hidroelétrica de Macabu, para atender a região do norte fluminense, sul do Espírito Santos e localidades de Minas Gerais, ainda não atendidas pelas concessionárias estrangeiras; o surgimento, em Minas Gerais, das primeiras ideias de criação da Cidade Industrial em Belo Horizonte, durante o governo de Benedito Valadares; a realização, no Rio Grande do Sul, do primeiro plano regional de eletrificação no país, entre 1943 e 1944. Já na esfera federal, segundo Lima (1995, p. 42), "[...] a iniciativa de maior envergadura do Estado Novo foi a constituição da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, pelo Decreto­Lei 8.031, de 03.10.1945."

Ainda segundo o autor:

A linha básica da concepção da Chesf era o aproveitamento múltiplo das águas do rio São Francisco por meio da exploração da energia elétrica, da irrigação e da navegação. Inspirado no projeto do Tennesse Valley Authority (TVA), implantado nos EUA na década de 1930, Apolônio Sales27 vislumbrava superar a crônica escassez de recursos energéticos do Nordeste, agravada durante a II Guerra Mundial [...] (LIMA, 1995, p. 42) A referida Tennessee Valley Authority foi uma autarquia criada em 1933 por iniciativa do Governo dos Estados Unidos da América ­ EUA, visando o planejamento regional integrado a partir da bacia hidrográfica do rio Tennessee, durante a Grande Depressão eclodida em 1929. Tal plano era parte de um conjunto de medidas, conhecido como New Deal, implantadas pelo Governo de Franklin Delano Roosevelt, como forma de recuperar e reformar a economia estadunidense. Assim, a TVA teve como missão:

[...] o planejamento integrado da bacia hidrográfica sob a ótica do aproveitamento múltiplo das águas e desenvolvimento regional. A contenção das cheias, associada à geração de energia, navegação, piscicultura, turismo e outros usos, fomentou o desenvolvimento de todo o vale." (BRASIL, 2006, p. 27) Segundo o próprio diretor da Tennessee Valley Autority, David Lilienthal, o plano de desenvolvimento regional formulado para o Vale do rio São Francisco ─ que foi baseado na experiência empreendida pela TVA ─, foi analisado e teve parecer favorável daquela empresa estrangeira.

27 Apolônio Sales, pernambucano da cidade de Altinho, era engenheiro agrônomo. Em 1937, foi secretário de Agricultura do Estado de Pernambuco e, em 1942, assumiu o Ministério da Agricultura no Governo de Getúlio Vargas, sendo idealizador da CHESF e, posteriormente, presidente desta Companhia no período entre 1962 e 1974 (CHESF, 1998, p. 105). 44

[...] A pedido do governo, em 1946, o plano foi revisado pelo engenheiro chefe da TVA, Oren Reed, que visitou o São Francisco e emitiu parecer favorável ao projeto. Quando o presidente Eurico Dutra visitou os EUA, em 1949, também foi conhecer a TVA. (LILIENTHAL, 1953 apud BROSE, 2015, p. 21) No Governo de Eurico Gaspar Dutra (1946­1951), com lançamento do Plano Salte28, que previa um conjunto de medidas e obras públicas destinadas à resolução das carências nos âmbitos da saúde pública, da alimentação, da rede de transportes e do setor de energia elétrica, a CHESF foi finalmente constituída como empresa produtora de energia elétrica pública29, em 1948, conforme será detalhado no próximo capítulo. Entretanto, a criação dessa companhia federal fazia parte de um plano maior para o desenvolvimento do Vale do São Francisco e da Região Nordeste, sendo necessários outros estudos e outras linhas de ação30 ─ conforme o plano de desenvolvimento regional pretendido pelos constituintes de 1946, ainda não definido nessa época, e que foi­se fazendo ao longo dos anos e dos governos nacional­ desenvolvimentistas.

Em seguida, no segundo governo de Getúlio Vargas (1951­1954), deu­se início a uma política efetivamente mais incisiva do ponto de vista da intervenção do Estado na economia nacional, efetivando­se as medidas que estimulariam o desenvolvimento da industrialização nacional, com o aumento da produção de bens de consumo e o fortalecimento do mercado consumidor interno, melhorando a renda nacional com o estímulo do Governo nos setores da indústria de base e de infraestrutura.

[...] Getúlio Vargas, em sua segunda gestão presidencial (1951­1954), prosseguiu em sua política nacionalista e definiu uma estratégia privilegiando a presença do Estado nos serviços públicos de base, com ênfase em transportes e energia elétrica. Essa visão nacionalista definiu fronteiras de competências entre a iniciativa privada e o poder público: enquanto este se voltava para a ampliação do setor de geração, aquela se dedicou à distribuição de energia. (SEGAWA, 2014, p. 164)

28 O Plano Salte foi sancionado pelo Congresso em 1950 através da Lei nº 1.102, de 18 de maio de1950 (LIMA, 1995, p. 55). 29 "[...] por ocasião da implementação do Plano SALTE (1950), a CHESF juntamente com o Departamento Nacional de Obras contra a Seca ­ DNOCS, recebeu mais da metade dos investimentos destinados a todo o setor energético nacional." (VIANNA, 2012, p. 64) 30 Nesse contexto, foram criadas as seguintes empresas governamentais: a Comissão de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – CVSF, em 1848, a qual foi responsável pela elaboração do Plano Geral para o aproveitamento econômico do Vale, junto com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas ­ DNOCS (antiga Inspetoria de Obras Contra as Secas ­ IOCS criado em 1909), constituído em 1945; o Banco do Nordeste do Brasil ­ BNB, em 1952, sendo­lhe atribuída a prestação de assistência às populações do Polígono das Secas por meio da oferta de crédito, conforme diversos programas federais de incentivo à agricultura familiar e ao desenvolvimento dos setores industriais e comerciais, formais e informais, na região Nordeste e no Norte de Minas Gerais e Espírito Santos; e em 1959, por iniciativa do economista Celso Furtado que foi encarregado pelo presidente Juscelino Kubitschek, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste ­ SUDENE, por razão dos efeitos da seca de 1958, sendo uma autarquia federal com autonomia financeira (DUQUE, 2004, pp. 86­90). 45

A partir daí, novos acordos de cooperação internacional foram realizados entre o Brasil e os EUA, com aprovação de empréstimos pelo Banco Mundial, destinados aos programas de industrialização e de obras públicas. Segundo o relatório de 1954 da Comissão Mista Brasil ­ EUA31:

[...] cerca de 60% dos investimentos previstos para a expansão do setor de energia elétrica seriam destinados a projetos realizados por concessionárias particulares, por empresas e órgãos públicos organizados no período, como a Chesf, a CEEE, a Centrais Elétricas de Minas Gerais S.A. (Cemig) e a Usinas Elétricas do Paranapanema S.A. (Uselpa). Como decorrência dos trabalhos desenvolvidos pela comissão, foi organizado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), atual Banco Nacional de Desenvolvimento e Social (BNDES), agência que se tornaria responsável pela administração técnica e financeira de tais projetos. (CENTRO, 2001, p. 84­85)

TABELA 1 ─ Comissão Mista Brasil ­ EUA ­ Programa de energia elétrica (1952­1957) Empresas Investimentos (Cr$ milhões) Acréstimo de Capacidade Geradora(MW) Públicas (*) 4.240 331,2 Grupo Light 696 160,0 Grupo Amforp 2.179 170,6 Independentes (**) 114 21,1 TOTAL 7.229 682,9 Fonte: Relatório Geral da Comissão Mista Brasil ­ EUA (apud LIMA, 1995, p. 60) Notas: (*) Empresas públicas: CHESF, CEEE (RS), Cemig (MG) e Uselpa (SP); (**) Empresas independentes: Companhia Nacional de Energia Elétrica e Companhia Matogrossense de Eletricidade. O ano de 1954 foi marcado pelo projeto de lei do Plano Nacional de Eletrificação, que reestruturaria o setor elétrico, visando a expansão da geração de energia elétrica com origem hidráulica no país e a intervenção do Estado nos âmbitos de geração e transmissão, dando abertura às companhias controladas pelos governos federal e estaduais para concentrarem novos complexos geradores e, assim, serem as supridoras das empresas distribuidoras de energia elétrica. No entanto, esse projeto de lei não foi aprovado pelo Legislativo, embora as suas diretrizes tenham balizado a expansão das empresas geradoras controladas pelo Estado, resultando, posteriormente, na criação da Centrais Elétricas Brasileiras ­ Eletrobrás32, no ano de 1962, no governo de João Goulart (1961­1964).

Ainda sobre a influência da TVA em território nacional, devido à repercussões de projetos de mesma natureza ou inspirados na experiência dessa empresa, o governador do Estado de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek (1951­1955), fascinado pela experiência da

31 A Comissão Mista Brasil ­ Estados Unidos foi criada em 1951, também conhecida como Missão Abbink, destinou­se ao desenvolvimento econômico, sendo organizada pelo Ministério das Relações Exteriores sob a orientação do Ministério da Fazenda do Governo de Getúlio Vargas (CENTRO, 2001, p. 83­84). 32 O Projeto de lei 4 280 para criação da Eletrobrás teve origem em 1954, ainda no Governo de Getúlio Vargas. 46

CVSF, convocou o engenheiro Lucas Lopes33, criando em 1952 a Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG. Assim, "os engenheiros recém contratados cumpriam viagem de estudo para conhecer a TVA no Tennessee", e em seguida, a "Cemig aplicou no Brasil aquilo que ela aprendeu vendo o que ocorria no Tennessee [...]", alcançando "um salto tecnológico e intelectual com a adoção da concepção de grandes sistemas interligados. A Cemig teve a ousadia de iniciar Furnas." (LOPES, 1991 apud BROSE, 2015, p. 24)

A criação da Central Elétrica de Furnas S.A., em 1957, destaca­se como iniciativa do Governo Federal de Juscelino Kubitschek (1956­1961) no setor de geração e distribuição elétrica no Brasil. Furnas surgiu como forma de aproveitamento hidráulico do rio Grande, e devido à localização privilegiada da usina (500 km do Rio de Janeiro, 400 km de São Paulo e 300 km de Belo Horizonte), destinou­se à suprir os principais centros consumidores da região Sudeste, sendo embrião da interligação do sistema Centro­Sul. A hidroelétrica de Furnas foi instalada a partir de 1958, sendo concluída na década de 1970, atingindo a potência instalada de 1 216 MW, que a colocou entre uma das maiores da América Latina.

Outro projeto de esfera Federal, foi a criação, em 1960, da Companhia Hidrelétrica do Vale do Paraíba ­ CHEVAP, com coparticipação dos governos estudais de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Guanabara, com o intuito de promover o aproveitamento hidroelétrico do Salto do Funil, localizado no rio Paraíba do Sul, em Resende, Rio de Janeiro.

Em continuidade à política desenvolvimentista promovida no governo de Vargas, constatou­se, no governo de Kubitschek, o crescimento da economia nacional e um novo impulso à industrialização brasileira com o desenvolvimento de novos setores, como a indústria automobilística, de equipamentos de transporte, de materiais de comunicação e elétricos, da siderurgia e de bens de consumo duráveis. O Programa de Metas34 desse governo previa, para o setor elétrico, o investimento em novas unidades hidroelétricas, bem como o aproveitamento da produção excedente de carvão para geração de energia elétrica no Sul do país.

Com o crescimento de novos setores industriais, vinculados ao acelerado processo de urbanização, houve uma grande expansão da demanda de consumo de energia elétrica nas regiões e, como resultado, originou algumas iniciativas importantes na esfera estadual para o atendimento dessas demandas regionais. Em Minas Gerais, a Cemig inaugura em 1956 a

33 O engenheiro Lucas Lopes foi nomeado Diretor de Planos e Obras da CVSF em 1948. 34 Esse programa foi elaborado pelo Conselho de Desenvolvimento em 1956, incorporando parte dos planos da Comissão Mista Brasil ­ EUA. 47

hidroelétrica Salto Grande, com capacidade instalada de 104 MW, aproveitando os recursos hidráulicos do rio Santo Antônio, entre os municípios de Guanhães e Braúnas. Ainda na área de controle da Cemig, nos municípios de Três Marias e São Gonçalo do Abaeté, foi construída a Usina Hidroelétrica de Três Marias, situada no rio São Francisco, sendo responsável por controlar as cheias e a regularização fluvial desse rio, além da geração de energia elétrica, com potência instalada em 1962 de 396 MW, e a irrigação na região.

O grande avanço da industrialização paulista e a sua acelerada urbanização resultaram no crescente aumento de demanda por energia elétrica. Em contrapartida, a partir da década de 1930, os investimentos na expansão das unidades geradoras de energia por parte das concessionárias estrangeiras foram reduzidos, provocando constantes racionamentos durante a década de 1950. Assim, entre 1953 e 1956, o governo paulista criou o Plano de Eletrificação do Estado de São Paulo, constituindo também em 1953 as Usinas Elétricas do Paranapanema S. A. ­ USELPA ─ a primeira companhia de economia mista controlada pelo Estado de São Paulo ─, a qual, dentre outras, seria fundida na constituição da Centrais Elétricas de São Paulo S.A. ­ CESP35, em 5 de dezembro de 1966. A partir de sua criação, coube a USELPA a construção de algumas usinas controladas pelo estado paulista, dentre elas, a Usina Hidroelétrica Lucas Nogueira Garcez (conhecida também como Usina Hidroelétrica Salto Grande), no rio Paranapanema, localizada na fronteira com o Paraná, começando a operar em 1958 com potência instalada de 68 MW, dentre outras realizações.

Já no Rio Grande do Sul, em 1º de fevereiro de 1943, foi constituída, através do Decreto­Lei Estadual nº 328, a Comissão Estadual de Energia Elétrica ­ CEEE, a qual, em observância ao plano de eletrificação do Estado gaúcho, previa o aproveitamento dos potenciais hidráulicos em comunhão com as reservas carboníferas. Nesse período, como realização da CEEE, destaca­se a instalação/construção da Usina Canastra, com potência instalada de 44 MW, colocada em operação em 1956, sendo localizada no rio Santa Maria. Em seguida, em 1961, com exploração das reservas de carvão, foi colocada em operação a Usina Termoelétrica Candiota I, a vapor, com potência instalada de 20 MW.

35 A CESP nasceu através da fusão de cinco companhias estaduais: Usinas Elétricas do Paranapanema – USELPA, Companhia Hidroelétrica do Rio Pardo – CHERP, Centrais Elétricas de Urubupungá S.A. – CELUSA, Companhia Melhoramentos de Paraibuna – COMEPA e Bandeirante de Eletricidade S.A. – BELSA, e de mais seis empresas formalmente privadas que já eram controlada pelas empresas estaduais paulistas, dentre as quais, a S.A. Central Elétrica Rio Claro – SACERC e as suas associadas. 48

Por outro lado, também se constituíram diversas empresas de distribuição de energia elétrica estaduais como, por exemplo, a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia ­ COELBA, em 28 de março de 1960.

Em síntese, entre 1946 e 1962, evidenciou­se um período de criação de políticas governamentais baseadas no desenvolvimento urbano­industrial, introduzindo o Governo Federal e os Estados da Federação como os principais agentes de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica no país. A política de regulamentação, controle e concessão de recursos hídricos e os incentivos financeiros, considerando também os acordos de colaboração internacionais, efetivados principalmente no segundo governo de Getúlio Vargas e, em continuidade, somando­se ao Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck, criaram esse cenário favorável, gerando a expansão das indústrias de base, de bens de consumo duráveis e, sobremaneira, do setor de energia elétrica como parte estratégica para essa industrialização, estimulando também a criação das infraestruturas regionais, a interconexão de mercados das microrregiões e os meios de escoamentos das produções.

Neste ínterim, cabe destacar a constituição da Eletrobrás, que através de suas subsidiárias36, iria facilitar a integração dos sistemas de transmissão entre as regiões. Além disso, foram criados diversos órgãos técnicos, instituições e autarquias federais que atuaram no processo de desenvolvimento de regiões e microrregiões, dentre as quais, algumas dessas iniciativas foram inspiradas na experiência da TVA.

1.1.3 Expansão e crise do setor elétrico público, 1964-1984

A partir da década de 1960 e por mais de duas décadas, o Brasil experimentaria um longo ciclo de recessões econômicas, mas com fases de recuperação (1967­1968) e de "milagre econômico" (1968­1973), e retorno da depressão com arrochos salariais, endividamento público, retração de investimentos privados e lançamentos de diversos planos federais destinados à conter o fenômeno da hiperinflação.

Em abril de 1964, através de um movimento político de militares, o presidente da República João Goulart foi deposto do poder. Imediatamente após a deposição de Jango, o Congresso Nacional, a partir desse momento controlado pelos militares, convocou eleição indireta, levando o General Humberto de Alencar Castelo Branco (1964­1967) à presidência,

36 Sabe­se que a holding federal, Eletrobrás, e as suas subsidiárias utilizaram a mesma metodologia de expansão de suas áreas de atuação já utilizada pelas empresas estrangeiras, como a Light e a Amforp, incorporando diversas pequenas companhias geradoras de energia, além da construção de outras unidades. 49

inaugurando o regime de sucessivos governos militares até 1985, quando houve o processo de redemocratização e início da Nova República. Nesse intervalo de 21 anos, os militares intensificaram a centralização das decisões na esfera Federal, controlando autoritariamente a política social e econômica no país.

No ângulo do setor de energia elétrica, esse período foi marcado pela consolidação e expansão do Sistema Eletrobrás. A holding federal assumiu o papel de planejadora e coordenadora do programa de investimentos realizados no setor e, baseando­se em estudos desenvolvidos por empresas de consultoria estrangeiras37, desenvolveu projetos, executou construções e colocou em operação usinas geradoras.

Durante os primeiros 25 anos de existência da Eletrobrás, o setor de energia elétrica brasileiro passou por profundas transformações e experimentou um aumento extraordinário em sua capacidade instalada. Se em 1962, ano de constituição da holding estatal, o parque gerador do país somava, em números redondos, 5.728.800 kW, em 1986 esse total elevou­se para 42.860.000 kW, o que representa um incremento superior a sete vezes no período. (CENTRO, 1988, p. 231) Se, por um lado, a Eletrobrás promoveu a grande expansão da capacidade instalada, que proporcionou o atendimento da demanda crescente por energia elétrica no país, por outro lado, também foi responsável pela predominância da presença estatal nesse setor ─ a holding federal se coligou com as empresas públicas estaduais e absorveu pequenas concessionárias, promovendo a nacionalização completa do setor a partir da compra das subsidiárias da Amforp em 1964 e do grupo Light em 1979.

Entre 1964 e 1967, a política econômica do governo Castelo Branco foi destinada à recuperação dos investimentos públicos em infraestrutura e insumos básicos, que ficaram paralisados durante o período de instabilidade política e institucional ─ no fim do governo de Jango ─ anterior ao golpe militar. Já no período entre 1968 e 1973, a recuperação e a alavancada no processo de desenvolvimento da economia nacional deixou esse fenômeno conhecido como "milagre econômico", com crescimento verificado através de índices inéditos de cerca de 11% ao ano, sendo realizados investimentos com grandes montantes financeiros em infraestrutura no país (CENTRO, 2001, p. 116).

A partir da instalação do regime militar no Brasil, foram determinadas algumas mudanças institucionais relacionadas à reformulação do perfil das concessionárias públicas,

37 Dentre os estudos, evidenciam­se os realizados pelas empresas canadenses de consultoria Canambra Engineering Consultants Ltd. e G. E. Crippen and Associates Ltd. e pela estadunidense Gibbs and Hill Inc., com apoio do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento ­ BIRD, levantando os potenciais hidráulicos e de mercado do setor elétrico nas regiões brasileiras durante a segunda metade da década de 1960 (CENTRO, 2001). 50

que passaram a ter autonomia administrativa e financeira, transformando­se em empresas que geram lucro, acumulando reservas de capital (recursos próprios), que seriam destinadas ao autofinanciamento38 dos investimentos necessários à expansão de suas unidades geradoras de energia elétrica e à transferência de volumes crescentes de recursos à Eletrobrás. Por outro lado, a partir do governo Castelo Branco, instituiu­se uma tendência de crescimento da dívida externa, relacionada ao apoio em recursos externos para expansão de setores da economia nacional e, no caso do setor elétrico, esse endividamento foi reforçado39 em meados da década de 1970 com a construção da binacional Usina Hidrelétrica de Itaipu, localizada no Rio Paraná, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, sendo construída pelos dois países entre 1975 e 198240, com 18 unidades geradoras de 700.000 kW41, que fazia dela a maior hidroelétrica do mundo (CENTRO, 1988, p. 255).

Outro marco do setor elétrico no país, durante esse período, foi a interligação dos sistemas regionais da Eletrobrás, que facilitou a transmissão e distribuição de energia para regiões ainda com deficiência de infraestrutura. Com a "consolidação de empresas regionais, como Furnas e Chesf, a maturidade alcançada pela Cemig e a criação do Ministério das Minas e Energia e da Eletrobrás contribuíram decisivamente para o amadurecimento de uma visão integrada de planejamento" (CENTRO, 1988, p. 206).

[...] a Lei 5.899 reagrupou as empresas controladas pela Eletrobrás em quatro concessionárias de âmbito regional, que cobriam todos o território nacional: Eletronorte, Chesf, Furnas e Eletrosul. Além disso instituiu os Grupos Coordenadores para Operação Interligada ­ GCOI, [...] que foram incumbidos da coordenação operacional dos sistemas das regiões Sudeste e Sul. Esses grupos eram compostos por representantes do DNAEE [Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, atual Agência Nacional de Energia Elétrica ­ ANEEL], da Eletrobrás e das empresas geradoras e distribuidoras da região [...] (LIMA, 1995, p. 112) A eclosão da crise do petróleo, em outubro de 1973, provocou "a quadruplicação do preço internacional daquele produto"42, tendo como efeito uma crise energética de escala

38 A Lei 4 357 de 16 de julho de 1964 autorizou a emissão de obrigações do Tesouro Nacional, instituindo a correção monetária, a qual teve um impacto súbito sobre as tarifas de serviços públicos, contribuindo indubitavelmente para aumento da capacidade de autofinanciamento das concessionárias do setor elétrico (LIMA, 1995, p. 101). 39 "[...] com recursos provenientes da abertura, pela Eletrobrás, de uma linha de crédito à Itaipu Binacional, no valor de 3,5 bilhões de dólares, o maior empréstimo até então realizado no Brasil. A empresa holding brasileira foi também responsável pelo repasse de recursos obtidos junto ao BNH [Banco Nacional da Habitação] e a outros organismos de crédito. Os custos totais de Itaipu foram orçados na ocasião em 10,3 bilhões de dólares." (CENTRO, 1988, p. 255, grifos nossos) 40 Até 1982, construiu­se a parte civil da obra com enchimento do reservatório. Entretanto, as instalações eletromecânicas continuaram sendo adicionadas com a colocação das unidades geradoras. 41 Em 1986, a capacidade geradora instalada já era de 2.800.000 kW e já era previsto o incremento de mais 7.000.000 kW de potência até 1991. 42 Ibid., p. 113. 51

mundial e, consequentemente, um grande impacto em relação à dívida externa brasileira. No ano seguinte, o governo militar de Ernesto Geisel lança o II Plano Nacional de Desenvolvimento ­ II PND43, que objetivava estimular a economia nacional, ainda no âmbito do desenvolvimento industrial, e minimizar a dependência do petróleo como fonte energética e, assim, estimular o crescimento do setor de energia elétrica como propulsor dessa industrialização, além de prever investimentos em fontes alternativas de energia como a biomassa e o carvão mineral.

Dentro do II PND era previsto o desenvolvimento das indústrias de base para reverter o processo de importações dos produtos desses setores, substituindo­os por produtos manufaturados nacionalmente e fortalecendo as exportações. No entanto, "[...] tratava­se de setores cujo padrão tecnológico estava associado a elevado consumo energético [...]" (LIMA, 1995, p. 114) e, dessa forma, esse plano forçou a expansão das companhias geradoras de energia elétrica controladas pela Eletrobrás. Em consequência da política econômica do governo Geisel, do ponto de vista das metas contidas no II PND para o período de 1975 a 1979, foi intensificada a captação de recursos externos para os investimentos previstos nesse plano, levando ao agravamento do endividamento externo que, por sua vez, retardou a expansão das companhias hidroelétricas, principalmente, a partir dos impactos da segunda crise do petróleo em 1979, que ocasionou a recessão como tendência da economia a partir desse período.

Em 1984, pela primeira vez desde a instalação do padrão institucional e financeiro implantado a partir dos governos militares, houve um decréscimo em termos de crescimento da capacidade instalada no país44, o que significou a quase estagnação ou, melhor, a expansão forçada e desacelerada do setor elétrico no país. Essa situação forçou as companhias hidroelétricas à reestruturação de seus modelos de atuação no setor, adequando as suas estruturas administrativas e os seus departamentos de planejamento e obras, no sentido de priorizarem a atividade­fim, ou seja, limitar­se a gerar e a transmitir energia elétrica para as distribuidoras estaduais. Tal contexto também resultou no início do processo de desmobilização de parte do patrimônio em empresas como a Chesf, que, ao longo das décadas seguintes, privatizou os equipamentos comunitários e as áreas de domínio que davam suporte

43 O I PND foi lançado em 1971, no governo do general Emílio Garrastazu Médici. Segundo Lima (1995, p. 97), esse não era um plano de desenvolvimento propriamente dito, "[...] fundava­se em diagnóstico superficial do estágio de desenvolvimento da economia brasileira [...] sem a definição de prioridades para os projetos de desenvolvimento [...]". 44 De acordo com dados divulgados pela Eletrobrás, registrou­se, em 1984, taxa negativa de crescimento de 3,1 pontos percentuais (CENTRO, 1988, p. 232). 52

ao seu empreendimento em Paulo Afonso, desvinculando­as de suas áreas produtivas, como será visto adiante45.

As informações da CHESF (1998, p. 74­75), confirmam que:

Os problemas da economia brasileira no período 1984­1990 ─ inflação alta, retração das atividades produtivas e a crescente dívida externa ─ incidiram fortemente sobre o setor de energia elétrica brasileiro. A exemplo do que aconteceu nas demais concessionárias, a Chesf enfrentou problemas46 ocasionados pela redução do valor real das tarifas, determinado pela política de combate à inflação, e pelo endividamento a que fora conduzida nos anos anteriores, na busca de recursos para financiar sua expansão. As obras de geração e transmissão planejadas não puderam ser concluídas, acarretando um número crescente de problemas operacionais [...] A construção da hidroelétrica de Xingó, a maior do sistema, começou, em 1987, com grande atraso, o que impediu sua conclusão em 1990, conforme o cronograma original. As obras de Xingo foram suspensas em 1989 e só retornaram em junho do ano seguinte [...] Já a partir de 1974, durante a primeira crise energética, a CHESF tinha terceirizado a construção de suas hidroelétricas, tendo abandonado as escavações dos poços adutores na sua última usina do Complexo Paulo Afonso, a Usina PA IV, entregando essa e as obras posteriores às construtoras47 que se ergueram durante esse processo de desenvolvimento da tecnologia de construção civil, eletromecânica e da engenheira nacional.

Na mesma linha, a CESP, que já nasceu no período de "autonomização" (LIMA, 1995, p. 99) das empresas públicas ─ herdando um patrimônio proveniente de outras concessionárias paulistas e também um quadro multidisciplinar de profissionais, constituído por arquitetos, engenheiros e outros técnicos ─, foi criada como uma organização institucional que privilegiava o planejamento, orientação, acompanhamento e fiscalização de suas obras de barragens hidroelétricas, ou seja, atuava já priorizando a sua atividade­fim e terceirizando outras atividades. Segundo Vianna (2012, p. 273, grifos nossos, inserção nossa):

[...] entre 1964 e 1974, constatamos que se estabeleceu uma expansão autoalimentada e autofinanciada do setor [elétrico], com o estabelecimento de uma empresa única, a CESP, e com o desenvolvimento de um método próprio de planejamento através de recursos próprios e importantes aportes do governo federal e governos estaduais. Já, entre 1975 e 1982, aconteceu a fase de endividamento e, na década de 1980, evidenciou­se a dimensão dos

45 A experiência da Chesf em Paulo Afonso será o estudo de caso, a partir do Capítulo 2, onde se aprofundará as questões relacionadas no presente capítulo. 46 "O equilíbrio econômico­financeiro do setor de energia elétrica depende da interação entre a política tarifária, a dotação dos recursos orçamentários da União e dos estados e a obtenção de empréstimos e financiamentos no país e no exterior." (CENTRO, 1988, p. 216) 47 "[...] sete construtoras de grande porte figuram em 1985 na relação das doze maiores empresas de construção em termos de patrimônio líquido. Eram elas, a Andrade Gutierrez, a C.R. Almeida, a Norberto Odebrecht, a CBPO, a Servenge Civil­san, a Tenenge e a Queiroz Galvão". (CENTRO, 1988, p. 288) 53

interesses privados situados nas estruturas de planejamento e nas instâncias decisórias do setor [...]. Esse momento se configura como ponto de corte na presente pesquisa, levantando­se a hipótese de que esse período de grande crise do setor elétrico, iniciada na década de 1970 e agravada na década de 1980, significou as mudanças não apenas dos rumos da economia brasileira, mas acarretou também a mudança do perfil das companhias hidroelétricas em relação à sua forma de atuação ─ a partir daí, priorizaram a sua atividade­fim de geração e transmissão de energia elétrica ─, o que iria contribuir, isto posto, para mudanças no padrão de construção das estruturas de apoio aos seus empreendimentos. Nesse sentido, a CHESF passou a se limitar a planejar e a fiscalizar as obras de seus empreendimentos, bem como mudou a sua atuação como produtora de espaço, reformulando os modelos de estruturas de apoio à construção de seus empreendimentos, ou seja, modificou­se o paradigma de concepção e administração dos núcleos residenciais destinados ao apoio de seus funcionários e à mão­de­obra provisória, absorvida durante a construção das barragens, como será visto adiante.

1.2 AS CATEGORIAS DE VILAS E CIDADES INDUSTRIAIS

A difusão dos usos de energia elétrica, a partir do último quartel do século XIX, promoveu a criação de novos setores industriais nas cidades e em lugares ainda pouco povoados, estabelecendo­se a tendência de movimentos migratórios que, por sua vez, demandaram a expansão de cidades e a criação de novos núcleos urbanos.

Antes disso, alguns dos modelos de assentamentos urbanos que foram implantados por industriais em fins do século XVIII, na Europa, e disseminados a partir da segunda metade do século XIX, em países como o Brasil, foram influenciados por utopias de cidades ideais, mas que geralmente não correspondiam às ideias de seus pensadores, pelo menos nos efeitos esperados nas suas concepções ideológicas. Para Françoise Choay, esses paradigmas estão incluídos na fase do "pré­urbanismo" e são classificados como modelos "progressistas" e "culturalistas".

Com relação ao modelo progressista, segundo a autora: Em primeiro lugar, o espaço do modelo progressista é amplamente aberto, rompido por vazios e verdes. Essa é a exigência da higiene [...] Em segundo lugar, o espaço urbano é traçado conforme um análise das funções urbanas. 54

Uma classificação rigorosa instala em locais distintos o habitat, o trabalho, a cultura e o lazer [...] (CHOAY, 2013, p. 8­9, grifos nossos) A princípio, personagens como Fourier, Owen e Richardson, dentre outros, são movidos por proposições ideológicas de progresso social, mas que na prática originaram modelos com arranjos segregacionistas e sistemas de controle social ou como afirma Choay (2013, p. 11) "sistemas limitadores e repressivos".

Já o modelo culturalista:

É em grande parte o desenvolvimento dos estudos históricos e da arqueologia, nascida com o Romantismo, que fornecem a imagem nostálgica do que, em termo hegelianos, pode ser chamado a "bela totalidade" perdida [...] Na França, encontra­se esse tipo de evocação nas obras de Victor Hugo e de Michelet. Mais tarde, La cité antique de Fustel de Coulanges é em parte construída sobre esse tema [...] Na Inglaterra, as de Ruskin e Morris apóiam­ se em uma tradição de pensamento que, desde o começo do século, analisou e criticou as realizações da civilização industrial, comparando­as com as do passado. Séries de conceitos foram assim opostos dois a dois: orgânico e mecânico, qualitativo e quantitativo, participação e indiferença [...] (CHOAY, 2013, p. 11­12) Esse modelo de pré­urbanismo culturalista irá originar, posteriormente, as ideias da "cidade jardim"48 de Ebenezer Howard, a qual se constitui também como um paradigma de cidade ideal, como manifestação crítica aos problemas adquiridos pela cidade industrial, deixando em evidência a diferença estrutural entre os modelos progressistas e culturalistas, que seria, segundo Choay, consequência do “clima propriamente urbano" desta última. (CHOAY, 2013, p. 14).

Em síntese, do ponto de vista prático, segundo Choay esses modelos fracassaram por trazerem em seus arranjos aspectos "limitadores e repressivos", sendo concretizados em número reduzido de realidades distintas e em pequena escala: "[...] na Europa, as construções de Owen em New Lanark e de Godin no falanstério de Guise; nos Estados Unidos, as

48 Além da primeira cidade jardim inglesa em Letchwort, implantada em 1902, de propriedade da Letchwort Company e projetada pelos arquitetos Raymond Unwin (1863­1940) e Barry Parker (1867­1947), e da cidade de Welwin, desenvolvida em 1924, distante quinze quilômetros da primeira, de propriedade da Welwin Garden City Ltd (empresa constituída pelo próprio Ebenezer Howard), e de alguns outros casos isolados, esse paradigma de cidade industrial ideal não se concretizou, nem no Brasil nem no exterior, como um modelo, apesar de sua influência em termos paisagísticos e na absorção das formas sinuosas e radiais, servindo mais a outros propósitos em manifestações urbanísticas como os "bairros jardins" e "subúrbios jardins", que traziam em si o status de bairros planejados para a burguesia pelo mercado imobiliário (HOWARD, 1996). Um exemplo dessa manifestação é o bairro Jardim América, localizado na zona oeste da cidade de São Paulo, que foi derivado de um projeto encomendado pela City of São Paulo Improvements and Freehold Company Limited, também sediada na Inglaterra, com participação do arquiteto inglês Barry Parker, que fez um loteamento voltado ao público paulista de alto poder aquisitivo. Segundo Segawa (1994, p. 18): "[...] As idéias que nortearam as cidades­jardins na Europa foram apropriadas aqui como um modelo de urbanização simbolizando o 'chic', o 'civilizado', símbolo de uma elite, copiado e consumido como um bem socialmente valorizável." 55

'colônias' fundadas pelos discípulos de Owen, de Fourier e de Cabet. Sabe­se que todas se desestruturaram mui rapidamente [...]" (CHOAY, 2013, 15).

Em outro sentido, os núcleos urbano­industriais possuíam algumas particularidades em termos de composição urbana e também em relação à arquitetura das fábricas. No caso da indústria associada ao setor elétrico, tal especificidade compositiva está relacionada, principalmente, à forma arquitetônica das barragens, estruturas e instalações das hidroelétricas, incluindo também um conjunto constituído como suporte à construção desses empreendimentos.

Nesses núcleos urbanos, estabeleceram­se métodos racionalistas na produção do espaço, com moradias que eram reproduzidas em séries e baseadas em modelos projetados a partir de uma tipologia49, orientando­se em novas técnicas de construção e numa organização espacial voltada ao novo jeito de morar moderno50.

No Brasil, após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo no segundo Governo de Getúlio Vargas, surgiram diversos setores industriais, os quais estimularam o desenvolvimento da urbanização nas regiões brasileiras, tendo o setor elétrico como um dos responsáveis pelo impulso desse processo. Assim, para implantação de grandes hidroelétricas, foi necessária a construção de vilas destinadas ao abrigo dos operários, técnicos, engenheiros, arquitetos e dirigentes dessas companhias, pois, em geral, esses lugares estavam distantes dos centros urbanos, sendo também necessário dotar esses assentamentos urbanos de infraestrutura e equipamentos.

Por outro lado, fábricas de diversos setores industriais, como as têxteis, implantaram vilas para os seus funcionários em centros urbanos, aproveitando­se da infraestrutura preexistente e de seus equipamentos como apoio aos seus assentados e, às vezes, dotando esses aglomerados urbanos de alguns dispositivos de subsistência e assistência aos trabalhadores fabris e aos seus familiares.

49 Os conceitos de "tipo" e "modelo" são entendidos aqui segundo a seguinte definição: "A palavra tipo não representa a imagem de uma coisa a ser copiada ou imitada, mas a idéia de um elemento que deva servir como regra para o modelo... O modelo, entendido em termos da execução prática da arquitetura, é um objeto que deve ser repetido como é; o tipo, ao contrário, é um princípio que pode reger a criação de vários objetos totalmente diferentes. No modelo, tudo é preciso e dado. No tipo, tudo é vago." (QUATREMÈRE DE QUINCY, 1832, apud MAHFUZ, 1995, p. 76­77) 50 Tais modelos são associados às idéias precursoras de Fourier que criou o paradigma de habitação coletiva, conhecida como "falanstério", projetado para "alojar" o trabalhador das fábricas, ou da casinha isolada em área ajardinada com infraestrutura que favorecia a higiene e pensada como padrão progressista por Proudhon (CHOAY, 2013). Esses modelos foram reformulados e adaptados às diversas situações e países e aos seus respectivos climas, geografias, materiais disponíveis e técnicas construtivas, ficando a idéia, ou melhor, o tipo. 56

Diante do exposto, serão apresentados alguns conceitos de vilas e cidades implantadas por indústrias ─ e outras que se formaram espontaneamente em torno delas como apêndices urbanos ─, dos setores têxtil e de mineração51, até chegar aos casos relacionados às cidades de companhias hidroelétricas, considerando as nuances entre esses modelos, segundo as suas características gerais e específicas. Por outro lado, na presente análise, faz­se necessário acrescentar as relações socioespaciais e políticas que se fizeram entre as cidades de companhias e as vilas espontâneas e como isso contribuiu para a evolução desses sistemas fechados e segregados, creditando também a contribuição do contexto político e econômico, do período recessivo até meados da década de 1980, sobremodo, a influência que esse cenário de crises exerceu no setor de energia elétrica e, em consequência, na transformação de suas cidades.

1.2.1 As vilas operárias

As vilas operárias foram, em geral, incorporadas em territórios de cidades preexistentes. No entanto, como alguns desses assentamentos se encontravam nos subúrbios dos centros urbanos, as companhias necessitavam dotar essas áreas com infraestrutura básica, alguns equipamentos e serviços destinados à comunidade de operários e familiares.

Segundo Cardoso (1991, p. 152):

As vilas eram aglomerados habitacionais construídos sob forma de quadras, destinados à moradia de trabalhadores de uma ou mais fábricas existentes em suas imediações. Em Salvador, durante os anos compreendidos pela 1ª República, se registra a construção de quatro vilas operárias, todas ligadas a companhias fabricantes de tecidos. Um caso típico desse modelo, analisado por Cardoso (1991), foi a vila do Empório Industrial do Norte, inaugurada em 1892 na península de Itapagipe em Salvador, Bahia, implantada pelo industrial Luiz Tarquínio para abrigar os funcionários da Companhia Empório Industrial do Norte, uma fábrica do setor têxtil fundada por ele em 1891. Essa vila era constituída por 26052 unidades de habitação distribuídas em oito blocos paralelos, diferenciados por três modelos, os quais eram constituídos por dois pavimentos, rua com praça que incluía dois coretos e alguns equipamentos comunitários (escola, gabinete médico,

51 Isto não significa que outros setores industriais não implantaram vilas para os seus trabalhadores. Assim, os exemplos apresentados nesse trabalho não esgotam a abrangência de assentamentos criados por indústrias e empresas de ramos diversos, apenas foram utilizados os casos mais representativos para efeito dessa pesquisa. 52 Segundo Cardoso (1991, p. 153), foram projetadas 258 unidades habitacionais, sendo construídas, efetivamente, as 260 unidades. 57

loja, creche, açougue e armazém). Ademais, esse assentamento contava com a seguinte infraestrutura básica:

A vila dispunha, também, de rede de água ­ dois pontos em cada rua interna ­ iluminação elétrica e esgotos. Este último, inclusive com um sofisticado sistema de limpeza, para a época, que consistia no derramamento automático de 27.000 litros de água limpa na rede, a cada duas horas. (SAMPAIO, 1975 apud CARDOSO, 1991, p. 164) Nas vilas operárias já se observava uma organização espacial e a presença de infraestrutura baseadas em pressupostos como salubridade dos ambientes, com edificações arejadas e dotadas de infraestrutura sanitária, além de medidas higienistas destinadas à evitar problemas de saúde e epidemias nas comunidades, garantindo a manutenção da produtividade nas fábricas e evitando a rotatividade de mão de obra.

Segundo Telma de Barros Correia, as vilas operárias surgiram como um modelo que reformaria a habitação urbana, pois

[...] definiam­se como um padrão de moradia popular oposto à favela, ao mocambo e ao cortiço, supondo ordem, higiene e decência. O termo sugeria casas salubres e dotadas de ordem espacial interna, que se distinguia da falta de higiene, de espaço e de conforto atribuída às casas dos pobres urbanos. Também sugeria casas de famílias de trabalhadores estáveis, em oposição às misturas entre estes últimos e os indivíduos afastados dos empregos regulares (autônomos, vadios, prostitutas etc.), favorecidas pelas formas de moradia e relações de vizinhança nas habitações coletivas e em moradias precárias. (CORREIA, 2001, p.84) Figura 1 ─ Planta de Situação da Vila do Empório Industrial do Norte

Fonte: Cardoso (1991, p. 162) 58

Figura 2 ─ Blocos residenciais na Vila Boa Viagem

Fonte: Web.

Figura 3 ─ Praça e coretos da Vila do Empório Industrial do Norte

Fonte: Web.

Ainda segundo Cardoso (1991), foram observados três modelos adotados na produção da moradia proletária em Salvador, durante o período de 1890 a 1930, sendo eles classificados com a seguinte nomenclatura: as "avenidas", os "grupos de casas" e as "vilas operárias". 59

Além do paradigma de "vila operária" já representado anteriormente através do caso da Companhia Empório Industrial do Norte, o modelo chamado de "avenidas" ou conjuntos de habitação, "que ainda hoje persistem no tecido urbano de Salvador, eram compostos de pequenas casas conjugadas voltadas para uma rua de pedestres, articulada perpendicularmente com o logradouro principal [...]" (CARDOSO, 1991, p. 142). Por fim, os "grupos de casas" que também eram chamados de "correr de casas, aparecem como o mais frequente empreendimento construído por aqueles que investiram no campo da produção habitacional proletária, visando apenas o retorno financeiro que o empreendimento imobiliário, em si, poderia gerar [...] (CARDOSO, 1991, p. 145). Nesse último caso, fica evidente que a construção de habitações para trabalhadores também foi, desde o período da República Velha, uma fatia de mercado do ramo imobiliário nos centros urbanos.

Um exemplo diverso da experiência de construção de assentamentos destinados ao operariado foi a Vila Progresso, construída pela Companhia Progresso Industrial da Bahia e formada por um pequeno conjunto de 48 habitações53 para os operários de duas de suas fábricas têxteis ─ a fábrica São João e a Bonfim ─, também localizadas na Península de Itapagipe. Segundo Cardoso (1991, p. 169), "[...] em 1926, as suas casas comprovadamente construídas, estão distribuídas em duas pequenas quadras, com 24 unidades cada, de forma a permitir que todas elas fiquem voltadas diretamente para o logradouro público [...]". Ainda segundo o autor, esse conjunto de habitações operárias não contava com quaisquer equipamentos comunitários construídos pela empresa, pois essas moradias foram edificadas dentro de um "processo de diversificação dos investimentos, usualmente implementado pelas grandes empresas, em época de crises setoriais. A vila foi construída num período de fraco desempenho industrial [...]" (CARDOSO, 1991, p. 174).

Sobre esse aspecto de apropriação do termo "vila operária" como modelo não apenas de habitações construídas para os proletários, mas também utilizada como sinônimo de determinado produto do ramo imobiliário e também utilizada pelo próprio Estado como paradigma de habitação salubre, Correia (2001, p. 84­85) observa o seguinte:

A difusão do termo “vila operária” para designar tais grupos de casas, à medida que ele é estendido dos empreendimentos fabris para aqueles realizados por empreendedores imobiliários e pelo Estado, revela a grande aceitação do modelo pelas elites. O uso de uma mesma designação aplicada a situações diferentes buscava estabelecer relações positivas entre coisas

53 O projeto original previa a construção de 200 unidades habitacionais para operários, que também atenderiam os trabalhadores de mais duas fábricas da mesma empresa, a São Brás, localizada no bairro de Plataforma, e a Paraguassú, a qual não foi identificada pelo autor da citada pesquisa (CARDOSO, 1991, p. 173) 60

desiguais. Procurando incorporar os significados positivos associados aos projetos habitacionais fabris do início do século, o Estado não apenas se inspira nesses projetos, como toma emprestado o nome “vila operária” ou “vila” para suas primeiras realizações no campo da moradia. Os exemplos do uso dessa designação podem ser localizados desde iniciativas pioneiras, como a da Fundação A Casa Operária, instituída pelo Governo do Estado de Pernambuco, que edificou em 1924, no Recife, a Vila Operária Paz e Trabalho [...]. O termo "vila operária" ou simplesmente "vila" foi generalizado de diversas formas: por exemplo, para designar os assentamentos de empresas ferroviárias, utilizou­se a expressão "vila ferroviária". Do ponto de vista da produção do espaço por indústrias, o modelo de vila operária se caracterizou como o conjunto de habitações ─ com ou sem infraestrutura e equipamentos comunitários ─ inicialmente destinadas ao extrato social de operários de fábricas localizadas nos subúrbios de centros urbanos. Por outro lado, quando localizadas em áreas rurais afastadas das grandes cidades, essas vilas podiam se apresentar melhor estruturadas, contando com equipamentos comunitários e infraestrutura digna de pequenas cidades, como será visto adiante.

Figura 4 ─ Planta de situação e projetos da Vila Progresso

Fonte: Cardoso (1991, p. 171) 61

Ademais, as vilas operárias, ainda no âmbito de assentamentos industriais, podiam ser apenas partes das zonas constitutivas das cidades de companhias, sendo ainda utilizadas para abrigar os operários e diferenciadas, arquitetonicamente, das demais unidades residenciais, como forma de segregar os residentes por status funcional, ou seja, quanto maior o nível funcional do trabalhador, melhor seria a sua residência e localização.

1.2.2 Os núcleos fabris

Para Telma de Barros Correia, os "núcleos fabris" não são considerados como "a efetivação de utopias urbanas, embora estejam inseridos na mesma tradição de concepção de espaços modelares" (CORREIA, 1998, p. 11). A autora considera o núcleo fabril como "um equipamento de arregimentação, fixação e controle do trabalhador, em cuja organização a segurança da propriedade e da produtividade do trabalho foram questões centrais [...]"54.

Ainda de acordo com a pesquisadora, os núcleos fabris se diferenciam das vilas operárias, pois se encontram longe dos centros urbanos, em área rurais e sem infraestrutura preexistente. Nesse tipo de experiência, a empresa é forçada a disponibilizar toda a estrutura de apoio ao funcionamento de seu empreendimento, sendo a supridora e também a administradora exclusiva desses recursos, sem a interferência de outros poderes. Nesse sentido, originam­se mini­cidades caracterizadas pelo negócio da companhia, contando com relativa autonomia.

No âmbito de assentamentos implantados por indústrias, percebe­se que "[...] as designações que essas aglomerações têm recebido entre nós [...]" depende de determinados fatores que diferenciam cada caso como, por exemplo, o que difere o núcleo fabril da vila operária depende "[...] de suas características quanto a tamanho, forma, localização e condição político­administrativa, do tipo de atividade à qual estão ligadas e do momento histórico em que surgem." (CORREIA, 2001, p. 83­84)

Determinadas vilas operárias, ainda que fechadas e isoladas nos subúrbios de cidades, como no caso da vila operária da Companhia Empório Industrial do Norte, anteriormente analisada, não se configuram como núcleos autônomos, pois estavam inseridas em cidades preexistentes. Por sua vez, os núcleos fabris implantados por fábricas em áreas desabitadas e isoladas e controlados exclusivamente pelas empresas ainda assim se constituíam como pequenas aglomerações urbanas, sem emancipação e reconhecimento político e

54 Ibid., loc. cit. 62

administrativo, ou seja, não poderiam também ser considerados como cidades. Em outra perspectiva, esses núcleos fabris, grosso modo implantados até a década de 1930, não apresentavam grandes dimensões territoriais, nem grandes populações, mormente quando implantados por pequenas fábricas têxteis, pois tais negócios não demandavam grande fluxo de trabalhadores se comparado com setores como a mineração e o hidroelétrico.

O exemplar mais representativo no estudo desenvolvido por Correia (1998) está relacionado a uma experiência híbrida entre o setor têxtil e o setor elétrico no Sertão de Alagoas, no lado esquerdo da Cachoeira de Paulo Afonso, ou seja, o caso do

[...] núcleo habitacional criado, a partir 1912, pelo industrial Delmiro Gouveia junto à sua fábrica de linhas de costura localizada junto a Pedra, um pequeno povoado no sertão de Alagoas. [...] o núcleo residencial [...] contando em 1917 com cerca de 250 casas, chafarizes, lavanderias e banheiros coletivos, loja, padaria, farmácia, feira semanal, escolas, médico e dentista, cinema, pista de patinação, banda de música, posto do Correio e Telégrafo [...] O núcleo da fábrica – pertencente à empresa e com cotidiano controlado rigorosamente pelo industrial – permanecia uma fazenda ou uma vila operária de fazenda [...]55.(CORREIA, 2001, p. 88­ 89, grifos nossos) A experiência promovida pelo industrial Delmiro Gouveia representa, para o setor elétrico, um marco da implantação de hidroelétricas na região Nordeste, no início do século XX, classificando­se como uma usina autoprodutora, ou seja, que produzia energia elétrica para abastecer a sua fábrica têxtil e o núcleo fabril de Pedra que, por sua vez, tornou­se um cânone de comunidade exemplar à época, mesmo diante das contradições em torno da figura de seu criador/administrador e do sistema de controle por ele criado.

Outra característica importante do paradigma de núcleo fabril implantado até as três primeiras décadas do século passado é a inserção das espacializações, nas quais se realizam as diversas atividades relacionadas ao trabalho, no mesmo perímetro que compreende as habitações dos trabalhadores, abrigando também na mesma área a residência do dirigente da empresa e os equipamentos comunitários. Nesse contexto, os deslocamentos e o tempo são rigorosamente controlados entre a produção e o descanso, a produtividade é otimizada dentro de um sistema de turnos de trabalho, e as formas de lazer, educação e purificação são subordinadas ao próprio trabalho, submetendo os trabalhadores e familiares à rotina de um cotidiano limitado ao núcleo, desenvolvendo uma comunidade constituída por indivíduos treinados para respeitarem as regras impostas pelo patrão e o seu patrimônio.

55 O caso de Pedra foi o objeto da tese de doutorado de Telma de Barros Correia, sendo que seu estudo foi limitado à análise de núcleos fabris no Brasil e em outros países no período compreendido entre o século XIX e as primeiras três décadas do século XX. 63

Figura 5 ─ Paisagem urbana do núcleo fabril de Pedra

Fonte: Museu Delmiro Gouveia (apud CORREIA,1998, p. 208)

Figura 6 ─ Planta de situação do núcleo fabril de Pedra

Fonte: Correia (1998, p. 204)

Em termos de arquitetura e organização do espaço, esses núcleos seguem a mesma tendência racionalista das vilas operárias, com orientações de higiene e salubridade na concepção de suas construções. No caso de Pedra, na construção das habitações e dos 64

equipamentos foram priorizados a ventilação e o conforto térmico dos ambientes, já organizados funcionalmente, utilizando­se de materiais e artifícios característicos da arquitetura vernacular, como o alpendre e os beirais das coberturas, que amenizavam o calor demasiado daquela região. Já em relação à organização urbanística do conjunto, observa­se uma disposição em forma de arruamentos, já observado em vilas operárias, com a maior parte dos blocos alinhados e paralelos. (CORREIA, 1998, p. 222).

Figura 7 ─ Modelo de moradia do núcleo fabril de Pedra

Fonte: Correia (1998, p. 210)

Sumariamente, o núcleo fabril foi estabelecido como um sistema planejado para viabilizar o controle dos trabalhadores de fábricas, dentro de regras determinadas pela companhia e de acordo com a própria organização espacial do conjunto que, por si só, já limitava o movimento da comunidade na instituição de novos hábitos, objetivando­se alcançar maior eficiência na produção fabril, e descartando tendências comportamentais de operários e familiares que pudessem desestabilizar a autoridade dos dirigentes da empresa. Nesse sentido, eram descartados certos estabelecimentos como bares e implantados dispositivos de controle e punição, como será visto adiante. Nessa modalidade, tudo era capitalizado, o espaço, as 65

edificações, as maquinarias e o próprio trabalhador que, ao ser moldado como eficiente e obediente, tornava­se praticamente um produto desse meio e, assim, parte do patrimônio da empresa.

1.2.3 As company towns

Determinados empreendimentos industriais, como os do setor elétrico, movimentam, em função da tecnologia requerida tanto na construção de suas estruturas civis e eletromecânicas quanto na operação de suas usinas, grande número de trabalhadores de diversas categorias e formações. As características referentes às composições arquitetônicas e à organização urbanística das construções de usinas hidroelétricas, das barragens e reservatórios, de seus acampamentos e das edificações relacionadas aos equipamentos administrativos, de logística e comunitários permitiram a realização de verdadeiras cidades de companhias, concebidas no âmbito de políticas de desenvolvimento regional iniciadas após o período do Estado Novo, conforme dissertado anteriormente.

Diversos assentamentos urbanos foram criados por fábricas ou indústrias de setores diversos na Europa, desde fins do século XVIII, e no Brasil, a partir de meados do século XIX e ao longo do século XX, em extensões de cidades existentes e em áreas isoladas dos grandes centros urbanos, ganhando diversas designações, dentre elas a de língua inglesa company town.

Para Correia (2001, p 94, grifos nossos) é

[...] pertinente nomear “vilas operárias” os grupos de casas – algumas vezes acompanhados de equipamentos coletivos, como escola, igreja ou clube – localizados dentro de cidades ou em subúrbios. Em se tratando de assentamentos isolados criados por indústrias, dotados de moradias e serviços essenciais, consideramos adequado chamá­los “núcleos fabris” ou “núcleos operários”, quando conservam uma dimensão reduzida e as empresas mantêm o controle sobre a vida econômica e política do lugar e, sobretudo, o monopólio sobre a propriedade imobiliária [...] Os termos cidade-empresa, cidade-companhia e cidade operária aplicam­se, no nosso entender, aos casos nos quais uma aglomeração isolada, fundada por empresa, reúne uma população de mais de quatro mil moradores e envolvida com atividades urbanas, é sede de um município e oferece um certo grau de autonomia pessoal e política a seus moradores [...] De acordo com o discurso de Correia, deduz­se que há uma correspondência entre o termo company town com os termos "cidade­empresa" e "cidade­companhia", conforme as características por ela citadas em seus textos (CORREIA, 1998; 2001). Por outro lado, as 66

diferenças por ela apontadas em relação ao modelo de núcleo fabril e o de cidade­companhia, ou company town ainda são insuficientes, pois não caracterizam, sobretudo, o aparato tecnológico e as estruturas organizacionais e de planejamento deste último modelo. Já Vianna (2012, p. 113, grifos nossos) faz a seguinte distinção:

As company towns se diferenciam das demais vilas e cidades pela composição humana de seus moradores – staff e funcionários – e pelo modelo urbano “racional” de eficiência e eficácia de funcionamento. Crawford (1995) mostra que sua estrutura podia ser vista como fruto de uma intervenção planejada do urbano no contexto do funcionamento e das necessidades das empresas em questão. Segundo formas ou estratégias diferenciadas de inserção deste modelo urbanístico, elas podiam ser “fechadas” – núcleos habitacionais de uso exclusivo da empresa, com tendência à padronização, ao segregamento hierárquico e ao isolamento – ou “abertas” – tentativa de adaptar o modelo a uma realidade mais flexível [...] Segundo Flávio Farah e Marta Farah, em estudo sobre vilas de mineração e de hidroelétricas56, a company town seria um "assentamento humano" ou uma "mini­cidade", ou melhor, "um conjunto de habitações e de equipamentos comunitários, incluindo pequeno comércio, escola, hospital ou centro de saúde e clube, ligados exclusivamente a uma companhia [...]" (FARAH; FARAH, 1993, p. 3). Essas companhias seriam autarquias, privadas ou estatais, que demandam ou promovem um grande fluxo de mão­de­obra especializada e não especializada aos seus empreendimentos e, desta forma, necessitam de abrigos para os seus trabalhadores, bem como dotação de infraestrutura e equipamentos capazes de suprirem às necessidades do dia a dia em lugares longínquos dos centros urbanos.

No referido estudo, Farah e Farah (1993) diferenciam esse modelo, em termos de qualidade dos equipamentos e serviços mantidos pelas companhias, em "vilas de padrão modesto" e "vilas de alto padrão". Segundo os autores, a qualidade e padrão do acampamento da empresa está relacionado diretamente aos seguintes fatores:

 potencial e horizonte de exploração das jazidas ou das barragens, ou seja, quanto maiores o potencial e a perspectiva temporal de exploração dos recursos pelos empreendimentos, maiores seriam os investimentos em infraestrutura, equipamentos e serviços comunitários nas áreas;  tecnologia requerida pelo empreendimento, pois os investimentos em benefícios sociais estão relacionados ao investimento global das obras e equipamentos utilizados

56 O Estudo realizado por Farah e Farah (1993) foi patrocinado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo S.A. ­ IPT em convênio com a Sociedade Anônima Mineração de Amianto – SAMA, com apoio das companhias relacionadas aos núcleos urbanos pesquisados. 67

na indústria, ou seja, os investimentos em tecnologia são proporcionais aos investimentos em infraestrutura dos acampamentos;  porte e capacidade financeira do grupo empresarial relacionado ao empreendimento, que é um fator também determinante para os investimentos de longo prazo e, consequentemente, para manutenção das estruturas implantadas pelas empresas;  fases do empreendimento, ou seja, no período de implantação, os equipamentos comunitários são mais simples, especialmente, os destinados aos operários e, após o término das obras, no período de exploração das jazidas, eles sofrem melhorias, pois se estabelecem nas áreas permanentes dos assentamentos urbanos57.  o contexto econômico nacional irá influenciar no montante de investimentos necessários à dotação desses acampamentos, bem como o perfil de profissionais disponíveis no mercado de trabalho será um fator que influenciará no padrão dessas vilas, ou seja, no último caso, a necessidade de profissionais especializados e de nível superior obrigará as empresas a disponibilizarem maiores investimentos nessas infraestruturas para atração e fixação dessa mão de obra nas company towns;  os métodos de gestão de equipamentos e serviços comunitários podem comprometer a qualidade requerida pelas populações dessas vilas, que por sua vez poderão pressionar as companhias para melhorias desses serviços no âmbito do modelo clássico da company town. No supracitado estudo, fica evidente que as indústrias de mineração e do setor elétrico tem em comum o fato de serem implantadas, geralmente, longe dos centros urbanos, em regiões interiorizadas. No caso de usinas hidroelétricas, suas implantações dependem de quedas d'água, que geralmente se encontram em lugares distantes e de difícil acesso; já no caso de diversas mineradoras brasileiras, localizadas em regiões58 de jazidas descobertas em estados como Rondônia, Amapá e Amazonas, e pela própria característica desse tipo de empreendimento com relação à poluição, durante o processo de extração desses recursos minerais, esses lugares inóspitos devem se localizar distantes dos assentamentos humanos.

57 No caso de hidroelétricas, após a construção dos empreendimentos, mantém­se as áreas destinadas aos operadores de usinas e subestações; pessoal da administração, de recursos humanos e da manutenção desses acampamentos, mão­de­obra especializada e envolvida nas oficinas eletromecânicas e na construção de linhas de transmissão, além de setores de planejamento e construção de outras obras, dependendo do porte da empresa e da localização de sua matriz. 58 Há exceções nos casos estudados por Farah e Farah (1993) como a área de mineração localizada em Itabira, no Estado de Minas Gerais, e explorada pela Companhia Vale do Rio Doce. Nesse caso, a empresa já encontrou uma cidade constituída por infraestrutura e equipamentos comunitários, instalando apenas uma vila para os engenheiros e staff da companhia. 68

Entretanto, esses dois setores tem características estruturais distintas, sendo mais evidentes os seguintes fatores: o horizonte de exploração de hidroelétricas é mais longo do que o período de exploração de jazidas; a tecnologia requerida pelas hidroelétricas de grande porte é mais sofisticada, justificando o grande investimento inicial nas obras e infraestrutura de apoio, bem como é mais complexo o seu sistema de gestão e estrutura organizacional, devido à dimensão de seu quadro funcional e especialidades requeridas na construção e na fase de operação das usinas e subestações; a abrangência do impacto econômico sobre a região é maior no caso de usinas hidroelétricas de grande porte, pois a energia gerada e transmitida por essa indústria alimenta parques fabris em estados e regiões. Nesse sentido, tais diferenças resultam em características diferenciadas em relação ao poder econômico e político dessas companhias, bem como nos investimentos em seus acampamentos.

Farah e Farah (1993, p. 5) consideram que:

[...] O caráter efêmero da mineração é um fator preocupante, se for considerado o potencial que esta tem de detornar processos de urbanização, sem a contrapartida de uma diversificação de atividades econômicas. Toda a infra­estrutura implantada pode tornar­se ociosa, o que não é recomendável, especialmente em um país com carência de recursos financeiros como o Brasil. Apesar das diferenças entre esses dois setores, as características dos acampamentos constituídos como company towns são bastante semelhantes em sua concepção residencial e de equipamentos sociais, mas ainda mantém algumas especificidades referentes à própria estrutura organizacional dos espaços destinados às edificações da administração e manutenção, as estrutura das barragens, hidroelétricas e subestações que fazem parte do conjunto desses núcleos. De acordo com essas similaridades, Farah e Farah (1993) analisaram oito casos de vilas constituídas por companhias mineradoras59 e dois assentamentos urbanos constituídos por companhias hidroelétricas.

59 Farah e Farah estudaram os seguintes assentamentos de company towns: 1­ Vila de Cachoeirinha, localizada no Estado de Rondônia, e constituída pela Mineração Oriente Novo S.A.; 2­ Vila de Massangana, localizada também no Estado de Rondônia, e constituída pela empresa Mineração Taboca S.A.; 3­ Vilas Amazonas e Serra do Navio, localizadas no Território do Amapá, e constituídas pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. ­ ICOMI; 4­ Vila de Cana Brava, localizada no Estado de Goiás, e constituída pela Sociedade Anônima Mineração de Amianto ­ SAMA; 5­ Núcleo Urbano de Carajás, localizado no Estado do Pará, e constituído pela Companhia Vale do Rio Doce ­ CVRD; 6­ Itabira, que é a única cidade pré­existentes dos casos analisados, localizada no Estado de Minas Gerais, onde atua a Companhia Vale do Rio Doce ­ CVRD; 7­ Núcleo Residencial de Pilar, localizado no Estado da Bahia, e constituído pela empresa Caraíba Metais S.A.; 8­ Saramenha, que é um bairro da cidade de Ouro Preto, onde atua a empresa Alumínio do Brasil S.A. ­ ALCAN; 9­ Vila Residencial de Tucuruí, localizada no Estado do Pará, e constituída pela ELETRONORTE ­ Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.; 10­ Paulo Afonso, localizada no Estado da Bahia, e constituída pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco ­ CHESF (FARAH; FARAH, 1993, p. 7). 69

Dentro do âmbito das company towns, as duas fases que definem esses empreendimentos, ou seja, a temporada de construção e, posteriormente, o período de operação das hidroelétricas e subestações ou, no caso de mineradoras, a fase de extração propriamente dita de jazidas, definem também dois tipos de assentamentos: os "provisórios" e os "permanentes", respectivamente.

Dentro de perímetros das cidades­companhia ou contiguas a elas são construídas habitações, geralmente, com caráter "provisório", e destinadas aos operários não especializados, que em grande número compõem o contingente necessário à construção das barragens para formação dos reservatórios das usinas e de toda infraestrutura de suporte ao empreendimento.

Após essa primeira fase, que pode durar poucos anos60, nesses acampamentos restarão os operadores das usinas e subestações e todo o pessoal envolvido na administração e prestação de serviços ─ dos setores de manutenção e oficinas, recursos humanos, comércio, clubes etc. ─, dos departamentos de planejamento e obras, e dirigentes da empresa quando se trata de sedes ou regionais das companhias. Nesse caso, essa população irá constituir a parte "permanente" dos acampamentos já implantados na fase anterior.

Em outro sentido, a pesquisadora Maria Eliza Alves Guerra, em sua tese sobre as Vilas Operadoras de Furnas, considera que a atribuição às partes constitutivas de um acampamento como de caráter "provisório" e "permanente" não abrange todos os casos e as experiências do setor elétrico.

Estas especificidades aliadas ao termo “permanente” e “provisório” para indicar espacialmente a forma e o período de ocupação, no nosso entender não abrangem a totalidade de uma “aglomeração” vinculada ao setor elétrico. Os alojamentos e construções efêmeras para atender serviços e moradias, foram desativados, as demais construções ou a chamada “vila operária” tornou­se permanente. Neste sentido, conforme exposto no início desta introdução, assumimos o provisório como permanente em consonância com a prática do país. (GUERRA, 2008, p. 21) Nesse sentido, concordamos com Maria Eliza Guerra, entendendo que a condição de transitoriedade ou permanência é relativa e depende de determinados fatores, evidencia­se:

60 Se comparada com outros núcleos urbanos em situações normais de desenvolvimento urbano, a cidade­ companhia é construída em curto prazo, devido à urgência do cronograma físico­financeiro das obras e porque, considerando o isolamento desse assentamento modelar em regiões sem infraestrutura, geralmente, é o único meio de abrigar todos os trabalhadores e dirigentes do empreendimento. 70

 o período previsto para construção do empreendimento61, que está relacionado ao porte do empreendimento e ao horizonte previsto para exploração de determinado recurso natural;  a política de financiamento vigente para o setor, capitalizando ou não as empresas com montantes financeiros suficientes aos investimentos em suas estruturas de apoio;  e o planejamento local e regional, que poderá trazer outras perspectivas e alternativas econômicas para esses lugares, criando condições de sobrevivência e gerando outros empregos para o contingente dispensado pelas companhias após o período de pico das obras e, em outra fase, após o término da exploração de recursos naturais e, assim, transformando o que poderia ser transitório em permanente.

Por sua vez, a pesquisadora Nina Maria Janra Tsukumo, em estudo realizado sobre a metodologia de atuação da CESP na produção de espaço e de arquitetura nos conjuntos fabris da empresa, classifica essas duas fases da seguinte forma quanto às suas finalidades:

[...] As finalidades principais desses assentamentos têm sido abrigar os trabalhadores durante a construção da usina (barrageiros) e/ou abrigar os trabalhadores que cuidarão da operação da usina (operadores). (TSUKUMO, 1994, p. 111) Cabe aqui, de certo modo, relativizar a designação de "barrageiro" em termos de perfil profissional, pois durante a construção das barragens e infraestruturas de apoio às hidroelétricas, operários e também profissionais de formações e especialidades diversas são envolvidos nesse processo direta ou indiretamente.

Barrageiro é a designação geral da pessoa que desempenha alguma atividade ligada à construção de barragens. Embora a palavra, em seu sentido estrito, seja associada apenas ao trabalhador do canteiro de obras de uma usina, tal limitação de significado não condiz com o sentimento das pessoas que estão direta ou indiretamente envolvidas com a vida nas barragens. Médicos, assistentes sociais, administradores, profissionais da comunicação, enfim todo tipo de profissional que tenha vivido em função do erguimento de uma barragem é reconhecido como barrageiro. (CESP, 1988 apud GUERRA, 2008, p.23) Janra Tsukumo traz uma contribuição62 importante ao tema de vilas e cidades de companhias do setor de energia elétrica, abordando em sua pesquisa as experiências diversas que a CESP desenvolveu em termos de modelos de vilas operárias, vilas de operadores e

61 No caso do setor elétrico, depende do número de usinas que seriam construídas num mesmo território, ou seja, no caso de complexos constituídos por várias usinas, o tempo de permanência dos profissionais envolvidos na construção se torna maior do que o período da maioria de casos, onde é construída uma única usina. 62 A pesquisadora, no mesmo estudo, também trata da constituição da arquitetura das barragens e das partes constituintes das hidroelétricas (casas de máquinas, casas de comando etc.) e subestações, que no nosso entender, no caso do setor elétrico, são essenciais para a compreensão de cada company town, pois essas partes são projetadas de forma associada, formando um conjunto peculiar. 71

company towns, desde o uso da infraestrutura, equipamentos e serviços de cidades já existentes, construindo apenas os abrigos para os seus funcionários, como também na construções de núcleos urbanos com caráter aberto, prevendo de antemão um planejamento local para viabilizar a pós ocupação da estrutura constituída pela empresa.

Outro aspecto relevante de algumas vilas de caráter transitório, implantadas pela CESP, está no sistema criado para permitir a desmontabilidade e a reutilização dos componentes construtivos em outras vilas semelhantes, utilizando­se de peças pré­moldadas que permitiam o seu reaproveitamento63. Pode­se citar, como exemplo, o caso de "Primavera" (1980), assentamento urbano implantado pela companhia para apoio de construção das usinas Rosana e Porto Primavera no atual município de Rosana (emancipado em 1993), no Estado de São Paulo, onde registra­se que houve

[...] o reaproveitamento de 750 casas de madeira e dos alojamentos de solteiros utilizados anteriormente no canteiro da usina José Ermírio de Moraes, cuja desmontagem em Água Vermelha e remontagem em Porto Primavera propiciou economia significativa para a empresa.64 As vilas de caráter transitório ou temporárias da CESP eram destinadas aos "barrageiros", que segundo Tsukumo (1994) chegavam a atingir um contingente de 20 a 30 mil pessoas. De outra parte, o aglomerado de "operadores" das usinas e subestações, que constituíam a vila permanente ou vila de operadores, era em menor número, atingindo algumas centenas de pessoas, funcionários e suas famílias.

Figura 8 ─ Casas desmontáveis da CESP no assentamento de Primavera

Fonte: Tsukumo (1994, p. 127)

63 Esta metodologia empregada pela CESP em seus núcleos urbanos, deve­se à existência na empresa de um setor técnico denominado de Divisão de Arquitetura e Urbanismo, a qual era estruturada por uma equipe multidisciplinar, constando arquitetos, engenheiros e outros colaboradores responsáveis pelo acompanhamento ou fiscalização das obras das usinas hidroelétricas da empresa, mas também pelos projetos e planejamento dos núcleos urbanos e estruturas de apoio dos empreendimentos. Tal divisão de arquitetura era dirigida pelo arquiteto Hélio Pasta, que já trazia experiência no setor elétrico antes da criação da CESP em 1966, tendo colaborado com a Uselpa, a qual foi incorporada pela companhia paulista. 64 TSUKUMO, 1994, p. 126. 72

Outra experiência distinta no setor elétrico foi o caso da Vila de Tucuruí, implantada pelas Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. ­ ELETRONORTE a partir de 1976. Nesse caso, devido à abrangência da área prevista para composição do reservatório da usina hidroelétrica ─ cujo projeto concebeu um lago com extensão de 170 km, perfazendo um perímetro de 3.700 km ─, foram realocadas partes de diversos núcleos preexistentes (Repartimento, Breu Branco, Jacundá, Cajazeiras e Itupiranga) de baixa densidade populacional na região, sendo que cerca de 1.000 famílias foram atingidas nas áreas urbanas e realocadas para novos assentamentos construídos pela empresa; já para cerca de 2.300 famílias atingidas na zona rural, foram construídas agrovilas. Por outro lado, essa barragem também retirou indígenas de suas terras, que receberam indenização da Eletrobrás (FARAH; FARAH, 1993, p. 52).

Em relação ao contingente de trabalhadores envolvidos na construção de Tucuruí que, em 1979, chegou a 110 mil habitantes, quando as obras foram paralisadas65, em 1984, essa população foi reduzida para 60 mil habitantes, distribuídos em Tucuruí Velho e nas quatro vilas construídas pela Eletronorte: a "Vila Pioneira", de caráter provisório, que se localizava ao lado de Tucuruí Velho; em sequência, foram construídas mais dois assentamentos, a Vila Temporária I e a Vila Temporária II, que se destinavam apenas ao período de obras; e a Vila Permanente, destinada aos operadores e ao pessoal de manutenção da usina.

O caso de Tucuruí suscita uma questão importante em termos de transformação do território na produção do espaço industrial, ou seja, a construção espacial pelas companhias hidroelétricas vai além da edificação de suas vilas e das estruturas de apoio aos empreendimentos. A constituição dos lagos e reservatórios, geralmente, moldam os territórios, transformando as paisagens naturais ou urbanas preexistentes e impactando, sobretudo, a vida de populações que são realocadas para outros lugares como nesse caso66.

65 Segundo Farah e Farah (1993, p. 52), em 1984, após encerrar a primeira fase da obra, chegando a 4.000MW de potência instalada, devido a revisão da política federal, esta obra foi paralisada. De acordo com s informações apontadas anteriormente, este ano marcou a fase de desaceleração da expansão de capacidade instalada no país, devido à crise no setor. 66 Outras experiências semelhantes ocorreram nas áreas de atuação da CHESF. Dentre elas, na década de 1970, no processo de constituição da barragem e da Usina Hidroelétrica de Sobradinho (1 050,3MW de potência instalada) ─ na região do Médio São Francisco, cerca de 40km a montante das cidades de /BA e Petrolina/PE ─, diversas cidades coloniais (, Sento Sé, , Pilão Arcado e Vila de Sobradinho) foram submersas pelo grande reservatório (com 320km de extensão e superfície de espelho d'água com 4 214km²) da usina, sendo construídas novas cidades com os mesmos nomes das originais pela companhia. Nessa processo, houve grande impacto social e ambiental, inclusive, praticamente, extinguiu­se a navegação entre aquelas cidades, além da quase extinção da pesca. A empresa tentou minimizar os efeitos, construindo pela primeira vez uma eclusa nessa barragem. 73

Figura 9 ─ Planta esquemática das vilas em Tucuruí pela Eletrobrás

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 53)

Figura 10 ─ Vila Permanente da Eletrobrás em Tucuruí

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 59)

Após a definição do local da usina e da respectiva barragem e extensão do reservatório projeta­se o perímetro do núcleo urbano, posto que, por razões de otimização dos deslocamentos de pessoal, de suprimento da obra e de seu gerenciamento, esses assentamentos devem estar próximos ao empreendimento, constituindo­se como uma parte associada ao conjunto. Esta seria a tipologia básica da cidade­companhia, a qual reúne em si 74

as espacializações relacionadas ao trabalho e às diversas segmentações funcionais urbanas. As vilas de uma companhia são secundárias em termos de importância e em relação ao negócio propriamente dito. No entanto, desempenham papel essencial para os envolvidos na realização e na operacionalização fabril, que permanecem relativamente por muito tempo nesses lugares.

É necessário também assinalar que a company town, em sua versão clássica, não era formada por um núcleo homogêneo: evidentemente, a segregação funcional era uma de suas características mais patentes. As diferenças entre as vilas de engenheiros e dirigentes, as vilas operárias e as vilas de operadores não se restringiam às habitações, no que se refere à localização e ao padrão construtivo, mas podiam se manifestar em diferentes equipamentos para cada tipo de vila.

Do ponto de vista dos problemas envolvidos na concepção desses assentamentos urbano­industriais, de acordo com os casos analisados por Farah e Farah (1993, p. 85), os autores fazem as seguintes objeções em relação ao modelo clássico de company town:

[...] destacam­se três principais ordens de problemas concernentes às vilas de mineração e de barragens, no Brasil:  problemas internos característicos dos assentamentos de tipo "fechado", abrangendo a qualidade dos equipamentos comunitários oferecidos e aspectos sociológicos associados ao cotidiano dos moradores;  problemas associados à relação dos assentamentos com sua região de inserção, com destaque ao contraste com suas "cidades­satélites"; e  problemas decorrentes do caráter eminentemente setorial e da "exterioridade" dos empreendimentos de mineração (e de construção de barragens) em relação às suas regiões de implantação. Com relação aos efeitos produzidos por esses projetos, os pesquisadores sinalizam que

[...] nos aspectos de adequação das construções às condicionantes de suas regiões de implantação, alguns problemas se destacam. Em muitos casos, as áreas de mineração estão situadas em regiões de clima diverso dos centros onde se formam os projetistas. Ainda que fosse tônica, entre os entrevistados, a preocupação com a adequação das construções ao clima, notou­se que, mesmo experimentados projetistas nem sempre auferiram em suas obras, nas vilas visitadas, as características de conforto térmico pretendidas. Verifica­se a necessidade de aperfeiçoamento de instrumentos teóricos auxiliares que cubram essa deficiência. Outro ponto onde as deficiências de projeto são patentes é a inadequação cultural das construções, que, reafirmando o caráter de "enclave" das vilas, com relação a suas regiões de implantação, contrastam fortemente com a arquitetura e o urbanismo espontâneos. [...] (FARAH; FARAH, 1993, p. 79, grifos nossos) Farah e Farah (1993) também trazem aspectos positivos em relação aos casos analisados, destacando­se a Vila da Serra do Navio e a Vila Amazonas, que foram 75

implantadas67 a partir de fins da década de 1950 pela Indústria e Comércio de Minérios ­ Icomi, na região da Floresta Amazônica, no Estado do Amapá, numa área distante cerca de 200km de Macapá e do rio Amazonas. O empreendimento destinava­se à exploração e ao beneficiamento do manganês, bem como tinha como premissa a viabilização do escoamento desse minério para os centros industriais e, dessa forma, houve a necessidade de criar os meios para transporte por vias férrea68 e portuária. A companhia contratou o escritório do arquiteto paulista Oswaldo Arthur Bratke para o projeto, planejamento e fiscalização das obras dos núcleos.

Segundo Hugo Segawa (1997, p. 242), "[...] Bratke recebeu carta branca para desenvolver seu projeto de assentamentos urbanos dentro de sua filosofia pragmática de trabalho [...]". Como se tratava de uma região isolada, sem infraestrutura e que demandava determinados cuidados em relação aos efeitos insalubres da própria atividade de mineração, bem como outras dificuldades de transporte de materiais para construção dos núcleos numa região em que chovia durante a metade do ano, foi necessário bastante pesquisa e planejamento das obras. Nesse sentido, o arquiteto empenhou­se na busca de outras experiências de assentamentos do setor de mineração. Por outro lado, o seu contratante, Augusto Trajano Antunes, tinha preocupações quanto à pós ocupação desses núcleos e quanto aos impactos negativos causados por essa atividade (BRATKE apud SEGAWA, 1997, p. 239).

De acordo com o contrato firmado entre a Icomi e o arquiteto, percebe­se, como diz Segawa "o espírito do empreendimento" (SEGAWA, 1997, p. 239):

[...]. O principal centro urbano será o da Vila Serra do Navio, em relação ao qual os trabalhos do arquiteto abrangerão o projeto de urbanização, prevendo, inclusive, a distribuição de água, luz e força; a instalação de redes de incêndio, de esgotos, de águas pluviais; a construção de casas para os operários e para empregados categorizados e chefes de serviço, e, ainda, de prédios de interesse e usos coletivos, hospitais e edifícios destinados a serviços públicos, tudo objetivando a constituição de um centro urbano com a mais completa independência e auto-suficiência, tudo de acordo com as instruções que foram dadas pela Icomi ao arquiteto. [...]. Os demais projetos referir­se­ão, principalmente, à Vila de Porto Santana [efetivamente conhecida como Vila Amazonas] ­ zona industrial, comercial, portuária e residencial ­ e à Vila de Macapá, ou a outros centros que as substituam, tudo de acordo com as instruções que forem dadas pela Icomi ao arquiteto. [...]. (apud SEGAWA, 1997, p. 239­241, grifos nossos, inserção nossa)

67 Segundo Farah e Farah (1993, p. 18): "[...] concluiu­se a construção da Vila de Serra do Navio, em 1961, e de Vila Amazonas, em 1962. [...]." 68 A Icomi operava a ferrovia por um largo período, sendo o único meio de se chegar à Serra do Navio. Já o porto estava localizado próximo à Vila Amazonas. 76

De fato, nesse trecho do contrato, há uma descrição clara das diretrizes para construção da Vila Serra do Navio que, evidentemente, associa­se ao modelo clássico de company town, visto que há uma "segregação funcional" patente, ou seja, percebe­se uma categorização habitacional no assentamento baseada no nível profissional que o morador ocupava na empresa ─ embora, nesse caso, as habitações69 destinadas aos operários também tenham sido edificadas com uma boa qualidade arquitetônico­construtiva, inclusive com atenção ao conforto ambiental dessas casas situadas numa região com clima quente e úmido ─. Outra característica evidenciada é a busca pela "autossuficiência" dessa vila, devido ao próprio "isolamento" dessas áreas e à dificuldade de fornecimento de materiais e suprimentos de quaisquer naturezas, que também é uma característica comum entre as cidades­companhia. Interessante notar que, devido ao seu isolamento, agravado pela falta de rodovias no início de sua implantação, contando apenas com a linha férrea que era operada pela própria Icomi, essa vila se caracterizava como "fechada”: mesmo sem cercas e muros, era enclausurada pela floresta.

Figura 11 ─ Moradia para operário na Vila Serra do Navio

Fonte: Segawa (1997, p. 259)

A Vila Amazonas tinha as mesmas condições que a Vila Serra do Navio em termos de equipamentos e habitações, apesar de suas particularidades. De acordo com Farah e Farah (1993, p. 18): "[...] Ambas foram bem planejadas e projetadas, bem construídas e bem dotadas de infra­estrutura, assegurando condições excelentes de qualidade de vida a seus habitantes.

69 As casas tanto de funcionários graduados quanto de operários foram entregues mobiliadas e com fogão, geladeira e utensílios domésticos, cf. SEGAWA, 1997, p. 256. 77

Figura 12 ─ Moradia para funcionário de nível médio na Vila Serra do Navio

Fonte: Segawa (1997, p. 266)

Figura 13 ─ Moradia para funcionário graduado na Vila Serra do Navio

Fonte: Segawa (1997, p. 261­262)

Cada uma destas vilas destinava­se a uma população de 2.500 habitantes. [...]." Eles apontam também que esses núcleos urbanos são constituintes de "[...] um marco importante no desenvolvimento de projetos de vilas de mineração no Brasil e [...] como casos típicos e exemplares do modelo Company Town. [...]." (FARAH; FARAH, 1993, p. 18). Ademais, registram que são "[...] um dos poucos casos no país onde foram efetivamente previstas atividades substitutivas à mineração, com intenção de manter o nível de emprego regional, quando da previsível queda da atividade extrativa. [...]." (FARAH; FARAH, 1993, p. 19) 78

Figura 14 ─ Plantas esquemáticas da Vila Serra do Navio e Vila Amazonas

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 20)

É evidente que um provável meio dessas mini­cidades sobreviverem, após a estagnação das atividades de exploração de recursos naturais, seria promover alternativas econômicas diferenciadas, envolvendo outros agentes e empresas que não estão associadas ao processo produtivo das indústrias relacionadas às company towns ─ as quais, geralmente, polarizam o setor econômico local e regional ─, na perspectiva de desenvolver outros negócios para geração de emprego e renda à população formada nessas localidades70.

70 Após o Estado Novo, surgiram determinadas diligências associadas aos programas de desenvolvimento regional patrocinados pelo Governo Federal, principalmente na era Vargas, sendo que algumas delas eram 79

À vista disso, nos casos de Vila Serra do Navio e da Vila Amazonas, o Governo Federal, quando da concessão para exploração das jazidas de manganês, firmou contrato com a Icomi, a qual teria como obrigação usar parte de seus lucros em investimentos destinados ao desenvolvimento da região e, assim, parcelas desses ganhos foram aplicados em grandes plantações de dendê e de pinheiros, no trecho que se estendia pela via férrea entre as duas vilas, implantando também um complexo industrial para processamento do dendê e fabricação de compensados71.

Na "[...] década de 1980, a mineração de manganês, no Amapá, entrava em declínio, atingindo a exaustão da jazida [...]" (FARAH; FARAH, 1993, p. 19), sendo que a lavra foi encerrada em 1997 (MONTEIRO, 2003, p. 130). A Vila de Serra do Navio foi emancipada em 1992, constituindo­se como sede municipal e administrando alguns distritos, enquanto a Vila Amazonas se tornou um bairro da cidade de Santana.

Num apanhado sobre o modelo de company town, a sua "versão clássica" ─ desgastada em fins da década de 1970 e abandonada até meados da década de 1980 ─, caracterizava­se como um assentamento urbano­industrial associado, no caso de setor elétrico, à hidroelétrica e à sua estrutura de barragem e reservatório que a moldava ou a definia como espaço resultante da organização geral, formando um conjunto peculiar na história da urbanização. Essa pequena cidade realizava­se através de um conjunto de vilas categorizadas por nível funcional (vila operária, vila de operadores, vila de engenheiros e dirigentes), fechando­se em si com aparato de equipamentos de subsistência e serviços, que a isolava como um organismo de relativa autossuficiência. Nesse sistema, a empresa era detentora ou proprietária de toda a área por ela constituída, inclusive das edificações residenciais e dos equipamentos comunitários, sendo também a única administradora, condição que lhe permitia o controle de seu acampamento e da vida da comunidade ali formada.

Adiante, será verificado como esse paradigma urbano será modificado, evoluindo em função da reorganização das empresas, principalmente, do setor elétrico a partir de fins da década de 1970, quando já se configurava um cenário empresarial voltado às atividades­fim e

baseadas no modelo da TVA, conforme visto na primeira parte desse capítulo, que influenciou a metodologia de implantação de companhias em regiões pouco ou não desenvolvidas economicamente e, sobretudo, as do setor elétrico. 71 "[...] a ICOMI também criou a Companhia Ferro­Ligas do Amapá (CFA), a Bruynzeel Madeira S.A. (BRUMASA) – dedicada à produção de madeira compensada –, a Amapá Florestal e Celulose S.A. (AMCEL) – detentora de um projeto florestal que envolve 172 mil ha, voltado para o plantio, em áreas do cerrado amapaense, de pínus tropicais e para a produção de cavacos de madeira exportados para indústrias de celulose – e a Companhia de Dendê do Amapá (CODEPA) – uma agroindústria com atividade dirigida para o plantio de dendê. (MONTEIRO, 2003, p. 136) 80

ao abandono ou terceirização das atividades­meio72, que foi uma tendência promovida a partir dos governos militares na década de 1960, conforme dissertado anteriormente.

Todavia, os sítios urbanos constituídos em torno de fábricas e complexos fabris nem sempre foram planejados, em sua inteireza, ou seja, ocorreu a expansão da produção socioespacial além dos limites das company towns. Nesse contexto, formaram­se assentamentos espontâneos construídos pelos que necessitavam de moradias, geralmente empregando materiais elementares e mão de obra com domínios do saber fazer popular, das técnicas tradicionais de construção.

1.2.4 A cidade-livre

A produção edilícia e do espaço urbano informal criado em áreas em torno ou contíguas aos territórios controlados por indústrias está relacionada a um processo de manufatura arquitetônica, em geral, que não dispõe da figura do arquiteto ou de engenheiros, sendo iniciativas dos que buscavam o direito à moradia, pois estavam excluídos das cidades constituídas por companhias, embora muitos estivessem envolvidos no processo de produção fabril dessas empresas, compondo comunidades peculiares.

Telma de Barros Correia (2001, p. 93) nos informa sobre alguns termos que esses assentamentos urbanos receberam no Brasil como, por exemplo, a chamada "cidade­livre", que era um tipo de aglomeração onde não se encontrava o domínio da empresa, onde sua influência política não tinha alcance ou onde não lhe interessava a gestão urbana, pois esse agrupamento informal se encontrava além de sua área planejada e de controle. A cidade­livre era uma extensão da vila operária, do núcleo fabril ou da company town, onde viviam pessoas atraídas pela possibilidade de emprego e que constituíam ali suas moradas, tornando­se operários nas obras, estabelecendo relações de contraponto às restrições que as companhias impuseram em seus acampamentos.

[...] A autonomia de gestão de seus assentamentos pelas empresas permitiu, em muitos casos, impedir o surgimento, neles, de atividades vistas como incompatíveis em relação ao cotidiano regrado e produtivo que se pretendia

72 Segundo Feijó (2011, p. 58): [...] a expressão atividade­fim é comumente utilizada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, no sentido de designar a atividade que contribui para obtenção do lucro. A expressão atividade­meio é usada para designar as atividades auxiliares na realização das atividades­fim.". Com relação à terceirização das atividades­meio, o autor afirma que (Ibid., p.75): " As empresas, procurando desincumbir­se das atividades de mero suporte, têm utilizado desse mecanismo para especializar­se nas tarefas pelas quais foram criadas. Dessa maneira, as empresas contratam outras especializadas na execução de tarefas que para as primeiras são de mero suporte. Tendo maior especialização nas tarefas, as empresas podem tornar­se mais eficientes, reduzindo os seus custos." 81

impor à população, afastando­se do local a presença de atividades, como bares, bordéis, sedes de sindicatos e de partidos operários, templos de umbanda ou espíritas. A “cidade livre”, por sua vez, constitui­se no reverso e complemento do núcleo urbano criado por empresa, reunindo tudo o que é vetado nesses núcleos [..] concentrando atividades como prostíbulos, templos protestantes e sede de sindicato. [...] (CORREIA, 2001, p. 93) De modo geral, esse assentamento espontâneo não se configurava, na realidade, como cidade, pois não dispunha de infraestrutura nem de autonomia político­administrativa suficiente à autogestão73. Por este motivo, configurava­se de fato em sua fase inicial como vila ou, relacionando à ideia de cidade­livre, poder­se­ia chamá­la de "vila­livre". Numa fase mais avançada, essa vila poderia se emancipar politicamente, tornando­se uma cidade­livre, quando desenvolvia atividades econômicas alternativas em relação ao empreendimento hidroelétrico ou de outro setor que monopolizasse a economia nesses territórios.

A vila­livre ou cidade­livre, como extensão do território operário, era utilizada pelas companhias como sede de convocação de trabalhadores não qualificados na fase de pico das obras. Na construção de barragens e hidroelétricas, esses operários se submetiam a grandes jornadas de trabalho, devido ao curto cronograma previsto para realização desse tipo de empreendimento. A comunidade desses assentamentos estava submetida às condições precárias, sem a infraestrutura e os serviços urbanos de que dispõe a vila operária pertencente à cidade­companhia, na qual os trabalhadores almejavam morar.

Farah e Farah (1993) trazem no escopo de suas pesquisas diversos exemplos de cidades­livres, referindo­se também aos assentamentos em torno dos núcleos das empresas através do termo "cidade­satélite". Um caso atípico aconteceu no Estado do Pará, com a instalação da Companhia Vale do Rio Doce ­ CVRD para a exploração das minas de ferro em Carajás. Simultaneamente à implantação da company town de Carajás, a empresa reservou também uma área para o contingente de operários que, por consequência, seria atraído pelo empreendimento. Parauapebas seria uma espécie de vila provisória, situada, porém, fora do acampamento da companhia:

[...] o projeto previu e instalou uma "cidade­satélite" planejada, denominada Parauapebas, onde além de equipamentos comunitários básicos (escola, hospital, delegacia de polícia etc.), implantou­se arruamento e lotes urbanizados, destinados à fixação de pessoal que, atraído pelo empreendimento, para lá se destinasse e se fixasse, procurando, de alguma forma, participar das atividades econômicas que se estabeleciam na região. Junto a Parauapebas, localizava­se a portaria de ingresso à área de Carajás, onde se exercia rigoroso controle de entrada e saída. Apesar de planejado e dotado de alguma infra­estrutura básica, este assentamento apresentava

73 Correia (2001) também questiona essa designação. 82

características bem mais modestas que o Núcleo Residencial de Carajás. (FARAH; FARAH, 1993, p. 30) Figura 15 ─ Hospital e Alojamentos (abaixo) em Parauapebas da CVRD

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 33) Dos casos analisados por Farah e Farah, este foi o único74 em que a companhia planejou um núcleo além de sua área de domínio, mesmo tendo qualidade construtiva inferior e desenvolvimento subjacente à cidade­companhia. Além disso, como extensão da ocupação de Parauapebas, constituiu­se outro assentamento espontâneo chamado de Rio Verde que, por sua vez, também foi formado por operários e outros grupos de pessoas atraídas pelo empreendimento.

[...] o maior contraste ocorria com relação a Rio Verde, assentamento espontâneo que surgiu ao lado de Parauapebas, onde as condições de vida

74 Porém, em outro caso do início da década de 1960, a Vila de Minaçú, em Goiás, teve apenas o seus traçado viário projetado pela Metais de Goiás Ltda, sem outras diretrizes de planejamento (FARAH; FARAH, 1993, p. 24). 83

eram extremamente precárias, constituindo um bolsão de miséria. Ligado à fase de obras de Carajás e de Parauapebas, Rio Verde acabou por assumir um duplo papel: o de centro de recrutamento de mão­de­obra não­ especializada, para onde afluíam trabalhadores não só do Pará como de outros Estados das regiões norte e nordeste, e o papel de local de "lazer" para estes operários. [...]. A ausência de qualquer tipo de infra­estrutura propiciava ainda a presença de diversas moléstias que atingiam severamente seus habitantes. (FARAH; FARAH, 1993, p. 30) Figura 16 ─ Centro de recrutamento de operários em Rio Verde

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 33)

Em outra perspectiva, a constituição espacial da vila­livre é produto da experiência de indivíduos treinados no saber­fazer popular, no conhecimento relativo à atividade da construção vernácula, originada do conhecimento precedente, cristalizado e passado entre gerações de pedreiros e mestres populares e, em outros casos, também na autoconstrução (MARICATO, 1982) não acompanhada por esses artífices da arte edilícia, caracterizadas em edificações experimentadas com o uso de materiais toscos, considerando a falta de recursos disponíveis nesses lugares. Em determinadas ocasiões, especificamente na fase inicial da construção dos empreendimentos, essas aglomerações poderiam servir também como partes provisórias para abrigar os operários, quando não eram construídos alojamentos suficientes nos núcleos planejados.

Nesse contexto, a cidade­livre, apesar de não ser administrada pela companhia ali instalada, sofria dela as influências políticas e socioeconômicas. Dependendo do cenário político nacional e regional, a vila poderia ter representantes políticos indicados e que faziam 84

parte do quadro funcional da empresa. Assim, o termo "livre" é impreciso, embora de certo modo sirva para distinguir75 esses assentamentos.

Esse tipo de assentamento, ainda na fase de vila, faz parte do território de algum município, cuja sede em alguns casos se encontra distante dele, achando­se relegado à própria sorte, pois acaba sendo encarado pelo poder municipal como problema da companhia, já que foi esta que o originou através da capacidade de atração de seu empreendimento.

Ao longo do tempo, com a dinâmica da sociopolítica dessas localidades, surgem líderes comunitários e movimentos sindicalistas e, como resultado, o assentamento espontâneo passa a ter representantes na esfera municipal, resultando numa certa organização social que irá motivar políticas dirigidas às melhorias das condições de vida de sua comunidade, embora, em geral, poucos resultados sejam alcançados. Assim, a falta de ação do poder público para com a vila­livre abre espaço à ação da companhia que se compele a tomar medidas paliativas em relação aos problemas dessas comunidades, tendo em conta que ali moram também trabalhadores empregados em sua organização. De outra forma,

[...] pessoas de confiança [da empresa] tentam ocupar postos­chave na administração local, dado o vazio do espaço político nessa esfera. Se, por um lado, isto pode possibilitar uma melhor gestão de recursos públicos, pela atuação de elementos com melhor preparo técnico e administrativo, por outro, corre­se o risco de projetar, para fora da esfera do próprio empreendimento, os vícios decorrentes de uma ótica empresarial, de privilégio à atividade­fim. [...]. (FARAH; FARAH, 1993, p. 83, inserção nossa) Em meio a todos os problemas e dificuldades na vida desses assentamentos, são construídos laços sociais afetivos que são promovidos no cotidiano da produção compartilhada, nos mutirões, mas que estão além das práticas edilícias dessas comunidades, pois são campos também de enfrentamento e conflitos, desempenhando um papel importante na construção de movimentos socioculturais, no desenvolvimento de relações dos trabalhadores e na constituição de bases para conquistas dos diretos trabalhistas, de lutas por

75 Em outro tipo de contexto da urbanização brasileira, Milton Santos, em análise da cidade de Brasília, comparando o seu plano piloto com as cidades satélites, chama a atenção ao seguinte aspecto da designação "cidade livre": "[...] Brasília é igualmente um organismo heterogêneo. Nisso se irmana às demais capitais e grandes cidades da América Latina, reunindo em bairros de características opostas, populações com qualificações também contrastantes. Aqui, a oposição é original e tornou persistente. Daí, ao lado das imponentes edificações do Plano Piloto, os casebres, típicos de «bidonville» de aglomerações como o Núcleo Bandeirante, também chamado «Cidade Livre». Esta resultou da necessidade de alojar construtores da Capital e os que, tendo ou não ocupação fixa, se sentiram atraídos pelos trabalhos da construção. Chamou-se «Cidade Livre» para evidenciar a oposição relativamente à outra, construída segundo normas rígidas. (SANTOS, 1964, p. 78, grifos nossos) 85

moradia e melhores condições de sobrevivência. Porquanto, esses lugares constituem espacializações relacionadas à lutas cotidianas.

1.3 COMPANY TOWNS E CIDADES­LIVRES: relações e transformações

As vilas e cidades implantadas por indústrias são retratos de seu tempo, da evolução das técnicas, do desenvolvimento de utopias transfiguradas em modelos urbanos, bem como de crenças e ideologias que geraram transformações profundas nas sociedades. Tais mudanças76 sociais, econômicas e políticas marcaram diversas fases desde a República Velha até a redemocratização em meados da década de 198077. Isto implica na constatação de que os paradigmas de urbanização, adotados por indústrias no Brasil, são também referências das conjunturas ou dos períodos históricos, aos quais estão associados.

Nessa perspectiva, o padrão de núcleo urbano "fechado" era afiliado a crenças e a ideologias relacionadas aos regimes de governos e aos representantes deles, na esfera pública e privada. Nesse contexto, as formas de controle nesses assentamentos faziam parte do mesmo sistema de isolamento, manifestando­se de diversas formas e naturezas, dependendo também das estruturas sociais envolvidas.

A segregação também era patente, interna e externa, ou seja, internamente essas mini­ cidades (no caso de company towns) eram organizadas e continham vilas segregadas por categorias funcionais, e como conjunto se separavam de assentamentos espontâneos formados por pessoas atraídas pelo empreendimento. Em consequência, essa segregação socioespacial provocou tensões sociais e movimentos políticos que impulsionaram ou contribuíram com o processo de integração dessas partes distintas de cidade e territórios ao longo do tempo.

Ainda sobre a mudança da cidade­companhia, relacionada ao setor elétrico brasileiro, o seu caráter de fechamento irá se modificar, sobremodo, com a introdução de políticas econômicas e novos padrões de gestão das empresas públicas em meados da década de 1960, conforme visto anteriormente, resultando na flexibilização de seu modelo clássico a partir de fins da década de 1970, bem como culminando na introdução de novas maneiras de inserção

76 Essas mudanças foram analisadas sumaria, parcial e especificamente em relação ao setor elétrico no presente trabalho, pois não houve a intenção de fazer uma análise sociológica, mas buscou­se apresentar alguns aspectos que fundamentam as transformações dos modelos de vilas e cidades aqui estudados. 77 Não significa que não houve outras mudanças após essa fase, apenas foi limitado o período devido ao recorte temporal relacionado ao presente trabalho. 86

de agrupamentos edificados em comunhão com o planejamento das empresas, que nesse período, irão voltar­se, prioritariamente, para as suas atividades­fim.

1.3.1 Os sistemas de controle

Desde a implantação, nas últimas décadas do século XIX, de vilas operárias nos subúrbios das cidades e de núcleos fabris nas regiões interiorizadas do Brasil, esse modelos serviram ao propósito de industriais como forma de minimizar os custos de produção e otimizar a produtividade em seus empreendimentos, controlando a população desses pequenos núcleos urbanos através de um sistema rígido de regras de conduta e, ao mesmo tempo, disponibilizando recursos que estimulavam a permanência dos operários e familiares nesses lugares.

[...] as vilas operárias foram erigidas com o intuito de redução do custo de reprodução da força de trabalho. Sem dúvida, a solução da vila operária, além de reduzir tais custos aparece, também, como um instrumento de controle ideológico e social das classes operárias, dos mais eficazes. Os trabalhadores tinham acesso às casas das vilas através do pagamento de aluguéis, o que criava uma situação bastante peculiar: o capitalista, além de empregador, passava também a ser locador, ou seja, proprietário da residência dos seus empregados, permitindo ao primeiro, com esta superposição de papéis, o acesso a um duplo instrumento de dominação sobre o inquilino/empregado. Esta situação submetia o operariado a uma condição de pressão das mais violentas, já que, com a articulação da relação casa/trabalho, a perda do empregado implicava diretamente na perda da moradia. (CARDOSO, 1991, p. 154­155) Nesse sentido, Cardoso dá como exemplo o caso da Vila do Empório Industrial do Norte, já citada anteriormente, que

[...] Através do pagamento de aluguel mensal, equivalente a 20.000 (vinte mil réis) para a casa padrão, os trabalhadores da fábrica tinham acesso à moradia na vila operária, sendo dispensados desse pagamento após um período de cinco anos, aqueles considerados eficientes. Depois de mais um período de cinco anos, quando deveria ser comprovada mais uma vez esta "eficiência", eram então contemplados com a doação de uma casa fora da vila, que continuava sendo um centro formador de "bons trabalhadores". (CARDOSO, 1991, p. 154­155) Segundo o autor, a proximidade dessas vilas com a fábrica resultava no maior controle do cotidiano dos operários nesses assentamentos, que se tornavam extensões do empreendimento fabril. Ademais, em alguns casos ─ como na Vila do Empório Industrial do Norte que tinha portões que fechavam as suas ruas de acesso (CARDOSO, 1991, p. 156) ─, os terrenos desses agrupamentos edificados possuíam muros e seguranças que controlavam o 87

acesso de pessoas, além dos horários estabelecidos para entrada e saída dos moradores. Nessa vila:

"...os costumes, igualmente, eram objeto de zelo. Não se admitiam mulheres de vida duvidosa (mulher dama), bêbados, nem namorados nos portões que eram fechados às vinte e uma horas. Qualquer infração ao regulamento era rigorosamente punida." (PENTEADO, 1962 apud CARDOSO, 1991, p. 157) Outras formas de controle eram postas através de mecanismo de alienação ideológica do trabalhador. Segundo Matos (2008), ainda sobre a vila implantada por Luiz Tarquínio:

A preocupação do empresário em modelar o comportamento dos trabalhadores da fábrica com vistas a incutir­lhes a crença na participação dos frutos da riqueza produzida pelo trabalho aparece nos artigos do jornal de circulação dominical no interior da vila operária, intitulado O Operário, no qual Luiz Tarquínio “redigia os editoriais, de instrução e conselhos”. Posteriormente, alguns destes editoriais foram reunidos pelo próprio empresário em um livro intitulado Preceitos Moraes e Cívicos. O jornal foi substituído posteriormente por uma revista com o significativo nome de Cidade do Bem, que teve o seu 1º exemplar distribuído em 1º de janeiro de 1899. Tal como em O Operário, a Cidade do Bem veiculava os “conselhos” do empresário aos seus empregados. No caso da versão de vila operária localizada em regiões isoladas, ou seja, o núcleo fabril, que era administrado exclusivamente pelo industrial, as formas de controle eram ainda mais categóricas, chegando­se ao caso narrado por Correia (1998) do núcleo fabril de Pedra, onde eram incluídas diversas formas de punição como multas, expulsão do núcleo e até agressões físicas.

A obediência às normas e aos regulamentos que regiam a vida em Pedra era apoiada por uma vigilância sobre cada pessoa, exercida por vigias, vizinhos, chefes, professoras e pelo próprio patrão. Para evitar situações favoráveis à contravenção às rígidas normas impostas e reprimir os infratores, uma guarda privada e o próprio industrial realizavam uma inspeção constante, percorrendo as dependências da fábrica, as ruas, os locais de lazer, a feira e as moradias.[...]. O que chama a atenção, em Pedra, são as formas de punição: o patrão muitas vezes envolvia­se diretamente na execução do castigo, que chegava a incluir agressões corporais. Desempenhando funções policiais e judiciais no limite do núcleo fabril, Delmiro ─ auxiliado por capangas e vigias ─ impunha suas próprias leis na regulação da vida privada e do trabalho, policiando, julgando e punindo os que as violavam.[...] Até então, em Pedra, a polícia não entrava sem autorização e a justiça não interferia nos conflitos: o patrão era a lei. (CORREIA, 1998, p. 212, 254) As ocorrências de núcleos fabris estudados por Correia estão relacionadas ao período compreendido entre o século XIX e as primeiras três décadas do século XX. No Brasil, só a partir de 1889, inaugurava­se o novo seguimento de trabalhador, ou seja, o operário assalariado. Nesse sentido, faz­se necessário ressalvar que pelo fato de dada temporalidade 88

estar muito próxima à abolição da escravatura78 brasileira, deixa evidente que essas formas de controle narradas por Correia, ainda são manifestações ou influências da fase de escravidão da mão­de­obra. Conforme Cardoso (1991, p. 15):

[...] a partir da segunda metade do século XIX [...]. Na realidade, os últimos quarenta anos do Império representam uma época de transição entre o sistema escravista e o regime de trabalho livre, tendo em vista que, o primeiro, inicia uma fase de profundo declínio com a extinção total do tráfico de escravos a partir de 1850. Por sua vez, o modelo de company town estava associado ao período histórico posterior à Segunda Guerra Mundial, num contexto de desenvolvimento da tecnologia e da indústria nacional, quando já se formava um contingente de engenheiros e arquitetos que constituíram os quadros e as direções de novas companhias e quando já havia regulamentação dos direitos e deveres trabalhistas79. Nesse contexto, não era mais possível sustentar as formas de controle dos modelos anteriores, pois as relações de trabalho tinham outras implicações. Assim, na cidade­companhia, os controles eram mais sofisticados e o seu caráter de fechamento se justificava pela égide do patrimônio da empresa e de seus empregados (FARAH; FARAH, 1993, p. 79).

Segundo Farah e Farah (1993, p. 66):

Nos assentamentos do tipo Company Town, o domínio exercido pela empresa sobre os moradores é total, subordinando­os, integralmente, à sua influência e ao seu controle. Sendo não apenas a empregadora, mas, também, a proprietária das moradias e dos equipamentos sociais, esta determina as regras a serem cumpridas, tanto no trabalho como fora dele. Essa presença se faz sentir em todos os momentos do cotidiano na vila, podendo ser destacadas as seguintes situações:  controle de entrada e saída;  estabelecimento de normas de higiene a serem obedecidas nas habitações;  definição de regras relativas aos equipamentos sociais;  definição de padrões de comportamento a serem observados. Quanto ao seu fechamento, a company town clássica poderia se utilizar dos seguintes artifícios ou elementos: "cercas ou muros, [...] acidentes naturais (como matas ou rios)80, [...] "cinturões" agrícolas de proteção e de sistemas de segurança envolvendo a colocação de guardas nos pontos de acesso ao núcleo." (FARAH; FARAH, 1993, p. 79)

78 A Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888, foi o dispositivo legal que formalizava o fim da escravidão no Brasil. 79 A Consolidação das Leis do Trabalho ­ CLT foi decretada no primeiro governo de Getúlio Vargas, no Estado Novo, em 1º de maio de 1943, regulamentando as relações trabalhistas, tanto do trabalho urbano quanto do rural, de relações individuais ou coletivas. 80 No caso de Serra do Navio, apresentada anteriormente, o seu fechamento se dava através da floresta amazônica e do rio Araguari (FARAH; FARAH, 1993, p. 79). 89

A escola e a igreja, de certo modo, também foram instrumentos utilizados para o controle social, tanto em casos de núcleo fabril quanto em company towns tradicionais, pois eram equipamentos instalados nesses assentamentos e que exerciam um papel muito claro de treinamento ou doutrinação da comunidade para o trabalho.

Com relação à escola, segundo Bresciani (1985), nesses núcleos:

A escola era vista como um mecanismo de enclausuramento das crianças pobres, voltado a torná­las aptas para o trabalho ─ pela difusão de conhecimento úteis e de hábitos regrados, incluindo o da obediência ─ e para transformá­las em aliadas e instrumentos na moralização das famílias (apud CORREIA, 1998, p. 145­146). Já em relação ao papel da igreja nesses contextos, Telma Correia afirma que:

Quando a Igreja está presente, é na condição de subordinada à fábrica, com padre comprometido com o industrial desenvolvendo uma pregação e uma prática coerentes com os objetivos e interesses do patrão [...] (CORREIA, 1998, p. 81) Ressalva­se que esses mecanismos de controle social eram atenuadores de problemas81 que já eram minimizados através dos recursos disponibilizados na cidade­companhia, pois o quadro de empregados graduados necessitava de maiores incentivos, uma vez que para trocarem as facilidades dos grandes centros urbanos por uma vida regrada em lugares longínquos era necessário que fossem disponibilizadas condições melhores de moradia, até mesmo em relação às habitações em que moravam nas grandes cidades.

Outra forma de amenizar o isolamento nessas vilas, era o lazer no clube social. Em alguns casos, os clubes eram segregados por categoria funcional, ou seja, havia clube para operário e clube destinado aos profissionais graduados e aos dirigentes da empresa. Esses equipamentos eram utilizados durante a maior parte do tempo livre, pois ali eram promovidas as festas e confraternizações da empresa, reunindo as famílias de trabalhadores e da diretoria. Para Correia (1998), o clube também tinha uma finalidade de controle sobre a vida da comunidade nessas vilas.

[...] Nele, não há lugar para o ócio ─ entendido como algo que induz aos vícios e à vagabundagem ─ e para o prazer desregrado ─ que esgota as forças e compromete o orçamento do trabalhador. Promoviam­se, ao contrário, atividades de regeneração das energias para o trabalho, submetidas ao controle da fábrica. Favorecia­se a prática de esportes sadios e submetidos a regras, como o futebol [...] e de espetáculos de conteúdo moralizante nos teatros e cinemas. O lazer promovido, além de ser uma atividade julgada útil, deveria ser ─ e isso parece o essencial ─ visível e

81 Como a questão do "isolamento" em lugares desprovidos de recursos e de lazer. Esse problema era maior para os profissionais graduados, que em sua maioria eram oriundos de cidades do centro­sul do país, (FARAH; FARAH, 1993, p. 63). 90

coletivo. Os esportes modernos encontraram um lugar privilegiado entre as formas de diversão promovidas, fato justificado pelos impactos que são capazes de gerar sobre a produtividade no trabalho. Com efeito, o aumento das aptidões, [...] pelo aumento do desempenho físico e pela disposição que cria no praticante no sentido de integrar­se à ação disciplinada e submetida a uma coordenação coletiva. (CORREIA, 1998, p. 135­136) De fato, nesses clubes eram promovidas atividades sadias, recreativas e sob supervisão da diretoria da companhia. Por outro lado, a qualidade desse equipamento dependia do porte do empreendimento, mas a presença da empresa na administração do clube também garantia não apenas a preservação desse bem, mas também o bom nível da prestação do serviço (FARAH; FARAH, 1993, p. 79). Nos empreendimentos de grande porte, esses clubes eram equipados, contando até com salas para exibição cinematográfica.

1.3.2 Segregação entre a cidade-companhia e a cidade-livre e outros fatores

A questão da segregação entre a cidade implantada por companhias e a cidade­livre formada em torno ou nos limites da primeira deu­se de formas diversas, conforme indicado anteriormente, e suscita uma diversidade de discussões de cunho sociológico. De forma objetiva, nesse trabalho, identificam­se alguns efeitos dessa separação, sem a intenção de esgotar o assunto, mas apenas observando que alguns eventos ocasionaram, ou melhor, contribuíram para as mudanças do modelo clássico da company town.

Alguns projetos de assentamentos de empresas, em termos urbanísticos e arquitetônicos, podem causar estranhamento à comunidade da região e esse aspecto, por si só, já é um efeito de contraste entre esses lugares. De um lado, habitações e equipamentos projetados com materiais e aspectos exógenos à arquitetura popular constituída no lado mais pobre. Segundo Farah e Farah (1993, p. 79):

Outro ponto onde as deficiências de projeto são patentes é a inadequação cultural das construções, que, reafirmando o caráter de "enclave" das vilas, com relação a suas regiões de implantação, contrastam fortemente com a arquitetura e o urbanismo espontâneos. Nesse sentido, o projeto do núcleo de Pilar merece destaque positivo, uma vez que procurou incorporar traços culturais de suas região de implantação, seja na arquitetura das habitações seja na concepção urbanística do núcleo. 91

Figura 17 ─ Planta Esquemática do núcleo de Pilar da Caraíbas Metais

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 44)

Figura 18 ─ Aspectos da arquitetura do núcleo de Pilar da Caraíbas Metais

Fonte: Farah e Farah (1993, p. 45) 92

O núcleo residencial de Pilar ─ implantado em 197982 pela Caraíba Metais S.A. no município baiano de ─ foi um caso excepcional em relação aos analisados pelos autores. Entretanto, segundo eles, embora Pilar tenha se constituído como cidade aberta, "[...] a política da empresa vinha desincentivando a fixação, no seu entorno, de pessoal estranho às atividades de mineração, comércio e serviços. Alguns barracos, construídos por indivíduos que queriam se fixar ao lado de Pilar, foram sumariamente removidos. [...]" (FARAH; FARAH, 1993, p. 43).

Outra decorrência da segregação e das diferenças nas condições de vida entre esses assentamentos está relacionada às revoltas de populares e trabalhadores que perderam seus empregos nas companhias em razão do término da implantação dos empreendimentos83, o que, em alguns casos, significava também perder o direito à moradia dentro dos núcleos planejados. No caso da cidade­livre de Rio Verde, algumas revoltas geraram incidentes de violência:

Com a desaceleração das obras, Rio Verde tornou­se um foco de tensões sociais que somava a miséria e a ausência de infra­estrutura com outros conflitos característicos da região (principalmente associados ao garimpo, em sua relação com a CVRD, e à questão fundiária). Tais tensões chegaram a gerar episódios mais violentos, como manifestações que redundaram em depredação de alguns dos equipamentos comunitários implantados em Parauapebas. No sentido de abrandar estas tensões, a Companhia Vale do Rio Doce, através de seu setor de segurança em Carajás, utilizando medidas de caráter assistencial e preventivo, passou a atuar de forma mais sistemática no assentamento espontâneo. (FARAH; FARAH, 1993, p. 30­31) A ausência de infraestrutura e equipamentos comunitários, bem como a impossibilidade de acesso às instalações e aos serviços prestados nos assentamentos das empresas, causa insatisfação na população carente da vila­livre ou cidade­livre. Essa situação é agravada pela imobilidade do poder público que, geralmente, não dispõe de recursos suficientes para atacar os problemas estruturais desses lugares. Os incentivos federais, como a isenção de impostos para fixação de empreendimentos nas regiões, desobrigava as companhias ao pagamento de impostos nos municípios, cujas receitas se limitavam ao recolhimento das taxas de alvarás e de IPTU. Este foi o caso da prefeitura de Tucuruí Velho, que não tinha condições financeiras para resolver os diversos problemas dessa cidade­livre,

82 O núcleo de Pilar foi implantado já em período de crise econômica no Brasil, que culminou na reformulação da atuação das empresas. Assim, a Caraíba Metais S.A., baseada na perspectiva de duração de 20 anos para exploração das jazidas, projetou sua cidade para ser construída em etapas, prevendo um desenvolvimento controlado para evitar um crescimento abrupto que comprometeria a sua administração (FARAH;FARAH, 1993, p. 42). 83 Em outros casos de operários que moravam, temporariamente, nos núcleos planejados, perder o emprego significava também perder o direito à moradia. 93

pois a ELETRONORTE, assim como outras empresas, estava desobrigada84, até meados da década de 1980, de pagar royalties ou quaisquer tipos de compensação financeira pela exploração dos recursos naturais do município.

A permanência das desigualdades entre esses lugares desperta, por um lado, a ambição de alcançar o status de morador da cidade­companhia por parte dos trabalhadores alocados na vila­livre e, por outro lado, motiva o crescimento de levantes destinados à abertura dos núcleos, objetivando­se a democratização do uso dos equipamentos sob a égide das companhias. Esses movimentos são reforçados pela organização social estabelecida através de representantes comunitários, sindicalistas e membros do poder municipal não coligados às empresas. Entretanto, não se pode afirmar que esses movimentos foram os responsáveis pela abertura do modelo fechado, pois outras implicações de ordem político­econômica vieram a transfigurar a atuação dessas companhias.

1.3.3 As mudanças da company town e a sua integração com a cidade-livre

No caso das vilas operárias, controladas pelas fábricas, devido às crises econômicas durante a Repúblicas Velha, a tendência de repasse desses núcleos edificados ao mercado imobiliário foi patente, tal como foi visto no caso da Vila Progresso, construída pela Companhia Progresso Industrial da Bahia. No caso da Vila do Empório Industrial do Norte:

[...]. O reflexo destas oscilações [econômicas] para os moradores da vila se revelou em momentos distintos como no ano de 1918, por ocasião da Primeira Grande Guerra Mundial. A empresa trabalhava, em grande medida, com matéria­prima importada em virtude dos tecidos que produzia em grande escala e o longo período da guerra dificultava as importações. A falta de matéria­prima forçou a fábrica a estabelecer um escalonamento dos dias da semana que a fábrica funcionaria. [...]. O complexo residencial criado por Luiz Tarquínio sofreu profundas transformações e muitas delas foram noticiadas em jornais baianos que procuraram registrá­las a partir das falas dos ex­empregados da empresa. [...]. O depoimento colhido pelo Jornal A Tarde em 1989 do Sr. Lino Silva Santos, então com 72 anos e ex­servente da empresa por mais de 40 anos é emblemático para se perceber a compreensão que os moradores tiveram sobre as interferências ocorridas naquele espaço. [...]. Para ele os problemas iniciaram com a venda de um quarteirão para a empresa Coca­cola instalar um depósito. Esta venda teria obrigado “muita gente a procurar outro lugar para morar, distante da fábrica”. Relatou a destruição dos coretos, as desativações do armazém, açougue, consultório médico e substituição da escola por uma maior pela Secretaria de Educação do Estado. Para o

84 Segundo Farah e Farah (1993), a implantação de hidroelétricas e de empreendimentos de mineração era decidida na esfera federal, deixando os municípios e estados excluídos das negociações e isentando essas companhias de pagamento de impostos como forma de incentivo à fixação nessas regiões. 94

entrevistado a situação foi se agravando e “quando as coisas começaram a ficar pretas para a Empório, eles já não sabiam o que fazer com a gente”. (MATOS, 2008, p. 5­6) Em relação ao núcleo fabril, o resultado da abertura desse modelo é semelhante ao que ocorreu com a company town, respeitadas as suas devidas diferenças e escalas, pois, em geral, foram núcleos que se integraram às cidades­livres, formando sedes de municípios, ou que foram absorvidos por cidades preexistentes, passando a ser caracterizados como bairros dessas urbes.

Finalmente, o modelo clássico da cidade­companhia ─ o qual tinha um caráter de fechamento, autonomia e isolamento ─ foi reformulado a partir da segunda metade da década de 1970. Dentre essas alterações, já se procurava extinguir o caráter de fechamento desses acampamentos de companhias, bem como já se abria caminho à terceirização da gestão de equipamentos comunitários, desonerando as empresas de responsabilidades que não estavam relacionadas às suas atividades­fim.

Poder­se­ia afirmar que algumas experiências da CESP já estavam associadas a um novo padrão de assentamento, dando abertura para iniciativas privadas relacionadas à gestão de equipamentos comunitários, comerciais e de abastecimento, o que proporcionava uma perspectiva temporal maior em relação à sobrevivência desses núcleos e menores encargos sociais à empresa, que poderia se concentrar na atividade para a qual foi criada.

Esta reformulação da implantação de assentamentos urbanos pela CESP pressupunha o estudo dos contextos urbanos e regionais em torno dos empreendimentos, considerando a distância de cidades já infraestruturadas e que dispusessem de equipamentos que pudessem ser aproveitados pelos seus funcionários, bem como o sistema viário que viabilizasse os deslocamentos entre as vilas e as obras. Este estudo culminava, segundo Tsukumo (1994, p. 111), na seguinte linha de ação:

a. recrutamento de mão­de­obra disponível na região; b. aluguel de casas em cidades já existentes, próximas ao empreendimento; c. construção de casas integradas a cidades próximas já existentes; d. construção de vila anexa à cidade mais próxima já existente; e. construção de cidade que, ao fim das obras principais, possa se integrar ao contexto regional servindo de apoio aos operadores e pólo de desenvolvimento. Outros aspectos deveriam estar aliados a esse conjunto de ações, tais quais:

a. necessidades mínimas de equipamentos comunitários, tais como: escolas, hospitais, áreas de lazer, centros de abastecimento; b. eventual complementação dos equipamentos das cidades preexistentes; 95

c. participação de outros setores da administração pública e da iniciativa privada em cidades a serem construídas. (TSUKUMO, 1994, p. 111) O núcleo urbano de Ilha Solteira85 foi a primeira experiência de cidade aberta implantada pela CESP, já em 1967 (um ano após a sua fundação). Nesse núcleo, totalmente planejado, a Companhia abria "espaço para a instalação de iniciativa privada para comércio e serviços, fazendo surgir uma parcela de população independente do controle da empresa. [...] um modelo intermediário entre o paternalismo do acampamento e a estrutura liberal de uma cidade comum." (TSUKUMO, 1994, p. 102).

Destaca­se também a construção, em 1980, do assentamento urbano de Primavera, citado anteriormente, como outra experiência particular da CESP, pois a sua implantação também trazia a efetivação de outras diretrizes complementares de sua metodologia, referente ao reaproveitamento de construções provisórias, além de confirmar a tendência de implantação de núcleos urbanos abertos e integrados à malha rodoviária regional, de forma que, após servir de apoio às obras, "[...] tivesse condições de prosseguir como elemento significativo para o desenvolvimento da região."( TSUKUMO, 1994, p. 121)

Em Primavera, além das diversas soluções para as habitações86 dos funcionários da empresa, foram previstos lotes destinados à iniciativa privada para atividades diversas (comércio, serviços, habitação, igrejas etc.). Por outro lado, os serviços públicos ficaram por conta das concessionárias que atuavam na região, bem como os equipamentos comunitários voltados à educação, à saúde e à segurança ficaram sob responsabilidade do Estado.

85 Este assentamento foi construído como apoio à Hidroelétrica de Ilha Solteira, instalada no rio Paraná, que formava, com a usina Engenheiro Souza Dias, o conjunto hidroelétrico Urubupungá. Esta usina entrou em operação em 1973 com capacidade instalada de 3 230 MW, cf. TSUKUMO, 1994, p. 54. 86 Um conjunto de habitações formado por: "1.255 residências permanentes, 3.635 residências desmontáveis e 43 pavilhões igualmente desmontáveis para alojamentos [...]" (JAMRA­TSUKUMO, 1994, p. 121) 96

Figura 19 ─ Plano Diretor da CESP para Primavera

Fonte: Tsukumo (1994, p. 122)

No entanto, essas experiências da CESP já dizem respeito à implantação de um novo padrão de cidade aberta constituída por uma companhia do setor de energia elétrica. Já do ponto de vista da ruptura com o modelo anterior, ou seja, das mudanças promovidas nas cidades implantadas com base no paradigma de vila "fechada", Farah e Farah (1993, p. 75) fizeram algumas constatações relacionadas às transformações em curso no período observado de 1983 a 1986.

Nesse estudo, verificou­se que:

Ao transferir a gestão da infra­estrutura para terceiros, a empresa se concentra em sua atividade­fim, e seu funcionamento aproxima­se, neste sentido, ao de empresas situadas em centros urbanos consolidados. [...] Do ponto de vista empresarial, os custos e toda a problemática relativa à manutenção das habitações, de equipamentos coletivos de saúde, educação, lazer etc., constituem um ônus indesejável, que afasta a empresa de sua atividade­fim. [...]. (FARAH; FARAH, 1993, p. 75­87) Nesse sentido, a abertura de sua cidade representa a desoneração da companhia quanto às obrigações não relacionadas à sua atividade prioritária.

Embora as vilas sejam fechadas no início, observou­se uma aspiração, por parte das empresas, à sua abertura, independentemente do projeto original ter previsto ou não este evento. Esta aspiração se dá no âmbito de uma tendência mais geral, relativa aos equipamentos sociais, e que consiste em um processo de minimização dos encargos relativos à manutenção da mão­ de­obra por parte da empresa. [...]. A abertura da vila significa o início de um processo de integração com o centro urbano adjacente que, no limite ─ 97

da perspectiva da empresa ─ deverá significar sua integração administrativa, passando ao Poder Público local a responsabilidade pela manutenção da vila. [...]. (FARAH; FARAH, 1993, p. 80) A ideia de integração entre a cidade­companhia e a cidade­livre87, neste contexto, representou uma vantagem também à empresa, que outrora se fechava ao assentamento espontâneo, o qual era encarado por ela como sinônimo de miséria e de problemas a serem administrados. Esse processo ocorreu em diversos lugares, como no caso de Vila Amazonas, que se integrou a partir de 1985 com a Vila Maia, sendo que as casas da Icomi foram vendidas aos seus funcionários e aos empregados de outras empresas. No caso da ELETRONORTE, em Tucuruí, a Vila Pioneira ─ vizinha à sede do município ─ foi aberta na mesma época, dando apoio aos funcionários de outras instituições públicas que atuavam na região, dentre outros casos (FARAH; FARAH, 1993, p. 81).

Do ponto de vista da indústria elétrica no Brasil, diante de recessões na economia a partir da década de 1960 ─ agravadas com os impactos da segunda crise do petróleo em fins da década seguinte e perpetuadas nos anos 80 ─, somando­se ao enfraquecimento de seu sistema tarifário e, por conseguinte, redução de sua capacidade de autofinanciamento. Por esses motivos88, as concessionários públicas que já se encontravam endividadas, tiveram que se reestruturar, voltando­se prioritariamente às suas atividades­fim.

Parte­se do princípio que essa reformatação do modelo de gestão e atuação dessas companhias tenha sido a maior causa para a mudança do paradigma da company town, ressalvando que empresas como a CESP, que se originou de uma fusão de outras companhias paulistas em 1966, trazia um know how em termos de planejamento e, assim, já implantava, pioneiramente, núcleos urbanos distintos da clássica cidade­companhia, apesar de suas antecessoras, por ela absorvidas, terem implantado modelos de company town fechadas89.

Essa hipótese se confirma com base nas pesquisas realizada por Farah e Farah (1993, pp. 71­72), entre 1983 e 1986, nas quais os autores constataram90 que nesse período se

87 A cidade­livre, nesse estágio, já poderia se apresentar emancipada, quando nela se desenvolviam atividades econômicas alternativas ao empreendimento da companhia. 88 Para maior aprofundamento no assunto, consultar LIMA, 1995, p. 89­131. 89 Como por exemplo a Vila de Jupiá, localizada entre Três Lagoas, no Estado de Mato Grosso do Sul, e Castilho, São Paulo, que foi implantada como apoio à Usina Hidroelétrica Engenheiro Souza Dias, projetada em 1961, foi baseada no modelo "fechado". Esse empreendimento foi construído para a Centrais Elétricas de Urubupungá S.A. – CELUSA, que foi absorvida pela Cesp, cf. TSUKUMO, 1994, p. 101. 90 "O processo de transformação foi identificado em Vila Amazonas, na Vila de Cana Brava, na vila da CHESF em Paulo Afonso e em Itabira. A implantação, desde o início, de novas formas de gestão, foi verificada em Pilar, junto à mina de cobre da Caraíba Metais S.A., nas vilas da ELETRONORTE, em Tucuruí e no Núcleo Urbano de Carajás. Mesmo nestes casos, entretanto, a marca do modelo clássico Company Town ainda se mostrava presente, sobretudo no que se refere à relação vila­região [...]." (FARAH; FARAH, 1993, p. 72) 98

efetivou a tendência de transformação do modelo tradicional de company town e, assim, chega­se à conclusão de que esse período histórico, com as suas implicações sociais, políticas e econômicas foi decisivo para tais mudanças. De um lado, as lutas pela redemocratização, greves por direitos trabalhistas e melhores condições de vida dos trabalhadores excluídos das company towns e, de outro lado, as implicações da política econômica dos governos militares, levaram à derrocada desse modelo.

Em síntese, cabe ressaltar que o processo de integração entre a cidade­livre e a cidade­ companhia, em concordância com os casos estudados Farah e Farah (1993, pp. 71­72), foi procedido através de acordos com o poder público municipal que, por seu turno, passa a responsabilizar­se pelos serviços de manutenção dos sítios urbanos constituídos pelas empresas; os equipamentos tiveram a sua gestão terceirizada ou foram cedidos em regime de comodato a cooperativas de funcionários no primeiro momento e, em seguida, foram vendidos à iniciativa privada; já as habitações foram comercializadas aos funcionários aposentados, tal como foram vendidas, em último estágio, dentro da mesma lógica e regras do mercado imobiliário. Diante dessas constatações, vê­se que a integração se dá através de um processo capitalista de redução de custos, desoneração de responsabilidades administrativas e de ganhos de capital imobiliário.

Nos próximos capítulos, esta dissertação abordará o seu estudo de caso ─ Paulo Afonso ─, onde será verificado, por um lado, um modelo clássico de company town, implantada pela Chesf e, por outro lado, uma cidade­livre, a Vila Poty, que se desenvolveu em contiguidade ao núcleo urbano da companhia. As relações entre esses assentamentos representam, a princípio, conflitos gerados por sua segregação socioespacial e, com o desenvolvimento de sua história, verificar­se­á o seu processo de unificação urbana.

Por outro lado, este estudo de caso, representa as ações de políticas governamentais destinadas ao desenvolvimento da indústria elétrica, desde fins da década de 1940, bem como as mudanças político­econômicas que influenciaram na alteração da gestão de seu núcleo urbano na década de 1980. Ademais, serão averiguadas as ações dessa Companhia como produtora de espaço urbanizado e sob quais circunstâncias isso se processou.

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CAPÍTULO 2 DE ACAMPAMENTO DA CHESF E VILA POTY À CIDADE DE PAULO AFONSO

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2.1 O LÓCUS, O RIO SÃO FRANCISCO E A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO

A cidade de Paulo Afonso, localizada no Estado da Bahia, é conhecida pelo seu complexo de usinas hidroelétricas e, principalmente, por sua cachoeira. Assim, falar de sua origem é falar também deste elemento que sempre marcou a sua paisagem natural, considerando também que o fenômeno de produção energética ocorrido no Nordeste, em meados do século passado, deve­se à grande potencialidade hidráulica do rio São Francisco e da cachoeira de Paulo Afonso para geração de energia elétrica. Ademais, cabe aqui, antes de discorrer sobre a história urbana de Paulo Afonso, evidenciar as motivações, forças ou fenômeno que modelaram o seu território e deram origem à cidade. Neste sentido, cabe dissertar, mesmo que sucintamente, sobre o contexto geográfico, sociopolítico, econômico e cultural, começando pelo lugar do rio nesta história como o elemento de desenvolvimento econômico e social, idealizado pelo Estado brasileiro a partir da década de 1940.

[...] Desde 4 de Outubro de 1501, quando a caravela em que viajava Américo Vespuccio descobriu o formoso estuario do nosso grande rio central, as riquezas sem numero desta região attrahiram a attenção dos viajantes e a cobiça do homem, sempre á cata de opportunidade de enriquecer [...] (ROCHA, 1940, p. 1­2) O Rio de S. Francisco nasce na Serra da Canastra, Provincia de Minas Geraes, a 20º 44’ de lat. Sul e 30º 20’ de long. [...]. O seu longo curso pode ser dividido em tres partes ou grandes regiões: alta, media, e baixa. A primeira da nascente á Pirapora, a segunda d’ahia á Várzea Redonda, e a terceira de Piranhas ao Oceano; de Várzea Redonda a Piranhas é uma extensa cordilheira de cachoeiras inteiramente fora de questão, quando se trata de navegação. A primeira foi explorada pelo distincto astronomo Emm. Liais; a segunda pelos engenheiros Halfeld, Krauss e Burton; da Villa de Guaycuhy, Provincia de Minas Geraes, até a Boa Vista, Provincia de Pernambuco, já foi percorrido em principios de 1871 pelo vapor Saldanha Marinho, commandado pelo 1º tenente F.M. Álvares de Araújo, que veio da Cidade de Sabará; da Cidade de Januaria ou Porto Salgado até a Villa do em Dezembro de 1872 pelo vapor Presidente Dantas, sob o commando do 1º tenente Emilio Alvim”. (MONTENEGRO, 1873, p. 141­ 142, grifo nosso) O Rio São Francisco também conhecido como o rio da "integração nacional" ou denominado como o "Mediterraneo brasileiro"91, conforme observado por Theodoro Sampaio, apesar dos relatos de sua descoberta por Américo Vespúcio e André Gonçalves no século XVI, vem sendo estudado de fato só a partir do século XIX. Uma das mais importantes expedições pelo rio foi realizada, entre 1852 e 1854, pelo engenheiro alemão Henrique

91 Segundo Sampaio (1998, p. 5), a denominação se dá devido à posição geográfica do rio em relação ao litoral povoado e enriquecido e também por proporcionar uma ligação entre as regiões centrais, norte e sudeste. 101

Guilherme Fernando Halfeld a pedido do imperador D. Pedro II que, por seu turno, visitou a cachoeira no ano de 185992 ─ o produto desta expedição foi a confecção de 48 mapas litografados e reunidos no Atlas e Relatório do Rio São Francisco.

Figura 20 ─ Placa da passagem de D. Pedro II na Cachoeira de Paulo Afonso

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Outra expedição pelo rio que merece destaque foi realizada pela equipe da "Comissão Hydraulica", constituída em 1879 por engenheiros sob a direção do estadunidense William Milnor Roberts, que tinha como assistente o jovem engenheiro baiano Theodoro Sampaio, tendo como missão os estudos para o melhoramento dos portos do Brasil e a navegação dos grandes rios que desembocavam na costa. A Comissão Hydraulica realizou um estudo minucioso, produzindo diversos mapas e croquis que descreviam a geografia e a geologia, além dos relatos sobre as paisagens e povoações da região ribeirinha (SAMPAIO, 1998).

92 Este evento foi um marco na história da cachoeira, comemorado através de um placa confeccionada em bronze que indica a visita do imperador à Cachoeira de Paulo Afonso. Esta placa foi instalada em 1869 por ordem imperial (BONFIM, 2012). 102

Figura 21 ─ Croquis da Cachoeira de Paulo Afonso por Theodoro Sampaio

Fonte: Sampaio (1998, p. 20)

Estes estudos evidenciam, dentre outras questões, um aspecto de qualificação do rio São Francisco através da Cachoeira de Paulo Afonso, que se por um lado é uma barreira natural à navegação, por outro lado representou um dos meios de desenvolvimento de suas potencialidades, ou seja, a sua força hidráulica para produção de energia elétrica.

A navegação dos grandes rios da capitania também não se aproveita por insignificantes empecilhos, fáceis de remover. A do S. Francisco está interrompida pela espantosa cachoeira de Paulo Afonso, que seria, com 103

efeito, impossível destruir; mas não parecia difícil sangrar o rio mais acima, e separar dêle um braço que tomasse outra direção. As vantagens seriam imensas para todos [...] por não haver meio de exportar as suas preciosas produções. (Cartas Econômico­Políticas sôbre Agricultura e Comércio da Bahia, Lisboa, 1821, apud LACERDA, 1964, p. 135) Por outro lado, a cachoeira de Paulo Afonso ficou famosa por sua beleza, sendo retratada por diversos artistas93 como o pintor holandês Franz Post no século XVII e virou poesia do notável poeta baiano Castro Alves.

A Cachoeira de Paulo Afonso94 (CASTRO ALVES, 1876) Lê­se no Dezesseis de Julho: "Depois de quatorze léguas de viagem, desde a foz do Rio S. Francisco, chega­se a esta cachoeira, de que se contam tantas grandezas fabulosas. Para bem descrevê­la, imaginai uma colossal figura de homem sentado com os joelhos e os braços levantados, e o rio de S. Francisco caindo com toda sua força sobre as costas. Não podereis ver sem estar trepado em um dos braços, ou em qualquer parte que lhe fique ao nível ou a cavaleiro sobre a cabeça. Parece arrebentar de debaixo dos pés, como a formosa cascata de Tivoli junto a Roma. Um mugir surdo e continuado, como os preparos para um terremoto, serve de acompanhamento à música estrondosa de variados e diversos sons, produzidos pelos choques das águas. Quer elas venham correndo velocíssimas ou saltando por cima das cristas de montanhas; quer indo em grandes massas de encontro a elas, e delas retrocedendo: caindo em borbotão nos abismos e deles se erguendo em úmida poeira, quer torcendo­ se nas vascas do desespero, ou levantando­se em espumantes escarcéus; quer estourando como uma bomba; quer chegando­se aos vaivéns, e brandamente e com espandanas ou em flocos de escuma alvíssima como arminhos — é um espetáculo assombroso e admirável. A altura da grande queda foi calculada em 362 palmos. Há 17 cachoeiras, que são verdadeiros degraus do alto trono, onde assentou­se o gigante de nome Paulo Afonso. Muitas grutas apresentam os rochedos deste lugar, sombrias, arejadas, arruadas de cristalinas areias, banhadas de frígidas linfas. S.M, o imperador visitou esta cachoeira na manhã de 20 de outubro de 1859. O presidente, Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas, teve a idéia de erigir um monumento à visita imperial."

93 Além do pintor Frans Post, há uma pintura do artista E. F. Schute de 1850 na coleção do MASP, além de ter sido retratada em 1850 pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius; há também croquis detalhados do engenheiro alemão Henrique Guilherme Fernando Halfeld e do imperador D. Pedro II; há fotos antiguíssimas como a realizada pelo fotógrafo Theophile Auguste Stahl em 1960, dentre outros registros iconográficos. 94 Nota incorporada por Castro Alves no final do texto de seu poema, escrito em 1870 e publicado em 1876. 104

Figura 22 ─ Pintura da cachoeira de Paulo Afonso de 1649 por Franz Post

Fonte: Web (2014)

A origem do nome da cachoeira está relacionada à presença do antigo sesmeiro, chamado de Paulo Viveiros Afonso que, em 03 de outubro de 1725, tornou­se donatário 105

daquelas terras. De acordo com Rocha (1963, p. 86­87) esta é uma versão95 histórica confirmada pela pesquisa do "historiador José Antônio Gonçalves de Melo, no Livro de Confirmação de Cartas Patentes, realizada no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, nos anos de 1951 e 1952". Essas Cartas Patentes96, por sua vez, comprovam "as revelações do historiador Felisbelo Freire sôbre a presença de Paulo de Viveiros Afonso na região do <> do rio S. Francisco, no primeiro quartel do século XVIII" (ROCHA, 1963, p. 86­87), quando narrou97 sobre os alvarás de concessão das sesmarias no Estado da Bahia.

Nos primeiros dias de outubro de 1725, três sesmeiros foram oficialmente constituídos na região da "cachoeira grande", em Alvará do dia 3, foi dada a Paulo de Viveiros Afonso uma área de uma légua de largura e três de comprimento, correndo pela serra Branca e incluindo a margem esquerda do "sumidouro"; no dia 6, outro Alvará concedeu uma sesmaria de igual tamanho, na mesma região, a Silvestre da Silva Viveiros; e dois dias após, também por um Alvará, Francisco Pereira de Castro obteve a terceira sesmaria de área igual, nas vizinhanças de Paulo Afonso e Silvestre Viveiros.( ROCHA, 1963, p. 86) Já segundo Galdino (2014, p. 25), de acordo com os arquivos de Portugal e Brasil, a cachoeira era conhecida anteriormente como "Sumidouro, Cachoeira Grande ou Forquilha98".

A referência ao sumidouro é uma das tantas lendas sôbre o S. Francisco, encontrada no folclore da região. Contaram­me, por diversas vêzes, alguns pescadores, o episódio de um vapor engolido pelo sumidouro com tôda a sua carga e passageiros, em época não remota. Os autores antigos quase todos se referem ao sumidouro. SIMÃO DE VASCONCELOS, por exemplo: "É êste sumidouro uma notável invenção com que saiu a natureza, porque vai sorvendo todo êste rio com suas águas pelas cavernas de uma furna medonha subterrânea, aonde se escondem de maneira que não se vê mais rastro delas, senão quando depois de passadas doze léguas, é visto tornar a rebentar com o mesmo brio e poder de águas." (LACERDA, 1964, P. 17­18) As diversas referências à cachoeira não cessam ou não se limitam à busca pela origem de seu nome, mas nas diversas tentativas de descrição deste elemento geográfico. Sampaio

95 Há outras versões que segundo Galdino (1981, p. 6) não têm documentos que fundamentem suas histórias: "A origem do seu nome tem versões contraditórias. Algumas de sabor puramente popular e sem fundamentação histórica. Outras misturando as duas coisas e outra ainda ─ a aceita até hoje como a correta ─ baseada em dados [...] Entre as versões populares há uma que fala da existência de dois frades, chamados Paulo e Afonso que, descendo o rio São Francisco em suas viagens de catequese tiveram a sua pequena embarcação engolida pelas quedas d'água de Paulo Afonso. [...] Outra conta a existência de um comerciante nas proximidades da Cachoeira, chamado Paulo Afonso. Os viajante o tinham como referência em suas jornadas. [...] Ha quem queira sustentar que o nome atual da Cachoeira vem de Paulo Afonso, um suposto integrante da comitiva de Martin Afonso de Souza que teria descoberto a Cachoeira em 1553." 96 Segundo Rocha (1963, p. 86) é na carta patente, de 17 de março de 1701, onde aparece pela primeira vez uma referência à cachoeira de Paulo Afonso; já em outra carta patente, de 28 de fevereiro de 1703, já existe referência explícita sobre o "Distrito da cachoeira de Paulo Afonso". 97 Felisbello Freire publicou sua obra intitulada de "Historia Territorial do : Bahia, Sergipe e Espirito Santo", volume único, em 1906, trazendo informações de documentos referentes às sesmarias, seus donatários e sobre a ocupação desses três Estados brasileiros, bem como dos processos de colonização. 98 Não há referência antiga e conhecida sobre o topônimo "Forquilha" e não foi indicada por este autor. Entretanto, outros autores contemporâneos também fazem uso desse mesmo topônimo. 106

(1998, p. 21) tenta se esquivar, por um momento, de tal tarefa afirmando "Paulo Afonso vê­ se, sente­se, não se descreve". Entretanto, acaba se obrigando a fazê­la:

A cachoeira de Paulo Affonso, o famoso sumidouro dos antigos chronistas e viajantes, é, de facto, um dos espectaculos mais estupendos que se pode imaginar. Não tento descrevel­o, direi apenas o quanto baste para explicar as vistas photographicas que aqui reproduzimos e que por si sós dispensam qualquer descripção sempre pallida daquelle prodigioso e inesquecivel quadro da natureza. [...] Chegando porém mais perto, depois de transpôr largo trecho do leito rochoso em secco, com as lages corroidas, desgastadas, lisas, tão lisas como se foram polidas a capricho e cobertas de um verniz metallico, sui generis, e alcançando a margem do profundo talhado ou canhão, para onde as aguas se precipitam em rolos de espuma alvissima, em explendido contraste com as rochas negras do granito, o bramir do colosso torna­se então formidavel, ensurdecedor. [...] O espectaculo é, de veras, indescriptivel, tão vario, tão grande, tão estupendo elle se nos offerece, atravéz dos mais bellos effeitos de luz e coroado com o diadema phantastico, fugidio do Iris, tantas vezes apagado quantas renovado ao embate da luz obliqua e dos vapores ascendentes, que não me sinto com forças para pintal­ o. (SAMPAIO, 1998, p. 20­21) Por seu turno, o engenheiro Antônio José Alves de Souza a descreve e traz, em seu ponto de vista, a questão do aproveitamento de seu potencial hídrico:

Destaca­se, entretanto, pela imponência do espetáculo que oferece obrigando as águas do São Francisco a se despenharem de mais de 80 metros de altura, em três saltos que se sucedem imediatamente, pelos quais elas violentamente se precipitam, entre­chocando­se, atirando­se contra as margens, em borbotões que sobem e descem espumejando; redemoinhando e revoluteando entre as pedras que eriçam o fundo do rio; desfazendo­se, nos choques e entrechoques que sofrem no tumulto frenético com que se lançam no abismo, em fina névoa, que paira sôbre a voragem fragorosa, brilhando ao sol e, às vêzes, propiciando a formação de múltiplos arco­iris, que, com sua beleza, dão uma nota encantadora à paisagem portentosa. [...] Mas a cachoeira de Paulo Afonso não se destaca dos outros desníveis do São Francisco nêsse trecho apenas por seus singulares e deslumbrantes aspectos paisagísticos. Destaca­se também por sua maior potência e por seu mais fácil aproveitamento econômico. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 1­2) Através de diversos relatos, percebe­se que são atribuídos alguns valores à Cachoeira de Paulo Afonso, do ponto de vista estético e de suas potencialidades para o desenvolvimento da região, mas também a qualificam como desafio ao homem na tentativa de domar as forças da natureza e de transformar o território99 em função dos planos de desenvolvimento da época. Neste sentido, foram empreendidos diversos esforços para o aproveitamento de suas potencialidades, bem como foram criados instrumentos legais no sentido de dinamizar o

99 Devido à construção do complexo de usinas, aquele território sofreu diversas modificações em sua estrutura geográfica original ao ponto de transformar a cidade numa ilha fluvial, conforme os desvios do curso do rio para formar as lagoas (reservatórios) das Usinas (PA I, PA II, PA III , Moxotó e mais tarde PA IV), conforme descrição no Capítulo 3. 107

desenvolvimento da região Nordeste, que marcaram os Governos de Dutra e Vargas no período pós Estado Novo, conforme será demonstrado adiante.

2.1.1. O aproveitamento da força hidráulica da Cachoeira de Paulo Afonso

Com o crescimento industrial e a aceleração do processo de urbanização no país, ocorridos no final da década de 1930 e início da década de 1940, houve um aumento da demanda de energia e conseqüente crise no abastecimento, levando o poder estatal a implementar medidas saneadoras, entre as quais se inclui a decisão de promover o aproveitamento do potencial energético da cachoeira de Paulo Afonso, no rio São Francisco. (CENTRO, 1993, p. 10) Antes deste fenômeno, já em 1913, no lado alagoano da Cachoeira de Paulo Afonso, o empreendedor cearense Delmiro Gouveia instalou uma pequena usina, chamada de Usina de Angiquinho, gerando 1500 HP (1 102 kW) de energia elétrica destinada à sua fazenda100 e à instalação de uma indústria têxtil conhecida por Fábrica da Pedra (Companhia Agro Fabril Mercantil) em 1914 na Vila da Pedra, anteriormente apresentada, onde hoje se encontra estabelecida a cidade de Delmiro Gouveia no Estado de Alagoas ─ este foi o marco inicial no aproveitamento do potencial hidráulico da cachoeira.

Concluída a montagem da turbina hidráulica, gerador elétrico e bomba centrífuga, sob a direção técnica do engenheiro italiano Luigi Borella, as linhas transmissoras e os canos adutores levaram de Paulo Afonso até a Pedra, vencendo um percurso de 24 km, a luz e a água que o pioneiro prometera fazer chegar ao núcleo industrial que fundara no meio das caatingas alagoanas. O grande acontecimento ocorreu a 26 de janeiro de 1913, antes que a cidade do Recife, metrópole do Nordeste, começasse a possuir serviços públicos de iluminação e transportes elétricos [...] E no dia 6 de junho de 1914 [...] o grande industrial inaugurou a Fábrica da Pedra. Mas quando o algodão foi colocado nos "batedores" não somente se começou a produzir linhas de coser em terras do sertão, como também se abriu uma nova fase na história econômica e social da região semi­árida do Brasil [...] (ROCHA, 1963, p. 106­107) A Usina Hidroelétrica de Angiquinho foi desativada em 1960 e o seu complexo foi tombado em 2006 como "patrimônio histórico" em nível estadual, recebendo intervenção de conservação e restauro nos anos seguintes e, atualmente, é administrada como museu pela Fundação Delmiro Gouveia ­ FUNDEG, com apoio da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco ­ CHESF (BONFIM, 2012).

Antes disso, mesmo na monarquia, não houve nenhuma idéia de aproveitamento do potencial da cachoeira. O Imperador quando a visitou, não havia tecnologia para a implantação de geração de energia hidroelétrica.

100 Denominada "Fazenda Rio Branco", na qual, segundo Rocha (1963, p. 103), "era o empório do negócio de peles de todo o Nordeste". 108

Na República, com a conhecida pobreza de combustíveis fósseis da época, a omissão passou a ser pouco compreensível. (MELLO, 2011, p. 168) Figura 23 ─ Usina Angiquinho

Fonte: CHESF (2012)

A ideia precursora de Delmiro Gouveia abriu as perspectivas ao desenvolvimento hidroenergético com aproveitamento das potencialidades da bacia hidrográfica do rio São Francisco. Assim, na década de 1920, o Serviço Geológico e Mineralógico do Ministério da Agricultura realizou um estudo preliminar sobre o potencial hidráulico do rio no trecho entre Juazeiro e a Cachoeira de Paulo Afonso, chegando­se à conclusão de que havia a possibilidade de implantação de usinas hidroelétricas de grande porte (ALVES DE SOUZA, 1955).

[...] Isto possibilitaria a irrigação das áreas ribeirinhas e também o início de industrialização do Nordeste, o que ainda não havia em outras partes do território nacional cuja economia era essencialmente agrícola. A equipe era constituída pelos engenheiros Antonio José Alves de Souza, Jorge de Menezes Werneck, Jayme Martins de Souza, Mário Barbosa de Moura e Mengalvio da Silva Rodrigues. O levantamento foi um marco para o desenvolvimento do Nordeste, tendo sido efetuado em região agreste no tempo do cangaço, inclusive do bando de Virgulino Ferreira, o Lampião. O Serviço Geológico e Mineralógico deu origem mais tarde à Divisão de Águas, precursora do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica 109

DNAEE que por sua vez, foi substituído em passado recente pelas Agências, Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e Nacional de Águas (ANA). (MELLO, 2011, p. 168, grifos nossos) Corroborando com essa ideia e numa linha estatizante, a partir do Código de Águas de 1934101, segundo Ferreira (2012, p. 114):

[...] A partir daí, passaram a ser parte do patrimônio da União todas as fontes de energia hidráulica situadas em águas públicas de uso comum e dominiais. As empresas estrangeiras perderam a hegemonia de atuarem como únicas concessionárias, mas foi resguardado o direito de exploração daquelas já instaladas no país, até o final da concessão. Em 1945, como consequência dos estudos realizados na bacia do São Francisco, em Paulo Afonso foi empreendido a construção de uma pequena usina hidroelétrica como projeto piloto.

[...] Naquela época, não havia energia elétrica na região. O Ministério da Agricultura estava fazendo aquela usininha de que já falei, mas ela só ficou pronta dois anos depois que estávamos lá. Então, logo no início fez­se uma pequena usina térmica a diesel para suprir as coisas mais importantes. (FERRAZ, 1987 apud CENTRO, 1993, p. 113, grifo nosso) A "usininha" a qual o engenheiro Octavio Marcondes Ferraz102 se refere é conhecida como Usina Piloto103 e foi projetada pela Divisão de Águas do Ministério da Agricultura, que teve este empreendimento aprovado através da Exposição dos Motivos número 598 de 23 de maio de 1944. Essa Divisão também foi a responsável pelo início de sua construção, sendo concluída pela Chesf. O gerador da Usina Hidroelétrica Piloto começou a operar em 8 de outubro de 1949 com potência instalada de 2 000kW. A Usina Piloto foi importante para fornecer energia à construção das primeiras usinas do Complexo Hidroelétrico de Paulo Afonso e do Acampamento da Companhia, substituindo a pequena usina térmica referida por Octavio Marcondes Ferraz. Além disto, mesmo sendo uma pequena geradora de energia elétrica, foi a responsável por estimular o primeiro movimento de trabalhadores que se alocaram no território em torno da Cachoeira de Paulo Afonso, no antigo povoado de Forquilha já em 1945, como será verificado adiante. A usina auxiliar foi completada em 1949 [...] e é ela que fornece a energia necessária aos trabalhos em Paulo Afonso, suprindo também de energia a cidade de Glória no Estado da Bahia e, em parte, a fábrica de tecidos de Delmiro. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 4)

101 Conforme o Capítulo 1. 102 Octavio Marcondes Ferraz foi o primeiro diretor técnico da Chesf e autor do projeto das três primeiras usinas hidroelétricas de Paulo Afonso. "(CENTRO, 1993). 103 Esta usina está situada à margem esquerda do riacho do Gangorra e distante 500m da margem direita do rio São Francisco, com aproveitamento do lago Capuxu (CHESF, 2015b). 110

Figura 24 ─ Usina Piloto

Fonte: Memorial CHESF (1954)

Segundo Mello (2011, p. 168):

"[...] A partir de 1943 o ministro da Agricultura, Apolônio Sales, cujo Ministério incluía o Setor Elétrico comandou a campanha para a construção de uma hidroelétrica na cachoeira de Paulo Afonso". Essa ideia sofreu grande oposição de diferentes áreas, principalmente, foi refutada pelo engenheiro civil e economista Eugênio Gudin, o qual argumentava que os parcos recursos federais deveriam ser concentrados no Sudeste onde já havia grande demanda reprimida de energia elétrica. Contudo, mesmo diante de tais pressões políticas, graças ao ministro Apolônio Sales104 o projeto de Paulo Afonso foi à frente. Com efeito, os planos do ministro iam além da geração de energia elétrica, mas tinha o setor elétrico como um dos instigadores do desenvolvimento da região Nordeste e a Chesf como agente para realização desse plano.

[...] O advento da Chesf, além de marcar o envolvimento do Estado no campo da geração de eletricidade, trouxe à luz a preocupação governamental com o desenvolvimento econômico e social do Nordeste, precariamente atendido por usinas termelétricas que inibiam o processo de industrialização

104 O qual foi, supostamente, influenciado pela experiência da Tennessee Valley Authority ­ TVA na bacia do rio Tennessee, na década de 1930, construindo estruturas geradoras de energia elétrica, irrigação, dentre outros projetos relacionados ao desenvolvimento regional integrado naquela região. O Memorial CHESF guarda registros de obras de barragens que estavam em construção também na bacia do rio Mississippi, voltadas ao plano de desenvolvimento daquela região. 111

da região, e abriu espaço para que se consolidasse uma nova mentalidade no setor de energia elétrica: a opção por grandes usinas. (CENTRO, 1993, p. 10, grifo nosso) Através da criação da CHESF, a Cachoeira de Paulo Afonso teria o seu potencial hidráulico intensamente aproveitado. Entretanto, apesar do decreto105 de criação da Companhia datar de 1945, apenas no Governo de Eurico Gaspar Dutra, em 15 de março de 1948, firmou­se a organização e constituição da empresa. Neste mesmo ano, a Companhia organizou o seu canteiro de obras em Paulo Afonso, constituindo o acampamento de apoio ao empreendimento, realizando e detalhando os seus projetos e, em 1949, já iniciava a obra de sua primeira usina hidroelétrica.

Em 1950, após vistoriar o andamento das obras da Usina Hidroelétrica Paulo Afonso, o presidente Eurico Gaspar Dutra declarou:

Esta obra reveste excepcional significação, interessando ao problema da unidade nacional e destinando­se a minorar o desequilíbrio econômico entre as zonas do norte e do centro­sul do país, mediante o ataque, pela base, das causas da reduzida produtividade da região e da inquietação social ali reinante. Se nada interromper o curso da grande obra ­ criada e conservada isenta de qualquer infiltração de política regional ou eleitoral – é de esperar a sua conclusão para 1953. (MENSAGEM DO PRESIDENTE DUTRA 09/11/50 apud BROSE, 2015, p. 22)

105 Em se tratando da existência da própria CHESF, no dia 3 de outubro de 1945, Getúlio Vargas assinava três decretos­leis: 1) o de nº 8.031, autorizando a organização da empresa; 2) o de nº 8.032, abrindo um crédito especial, junto ao Ministério da Fazenda, para subscrever as suas ações ordinárias; e 3) o de nº 19.706, outorgando à empresa a concessão, por 50 anos, do aproveitamento progressivo da força hidráulica do rio São Francisco, no trecho entre Juazeiro (BA) e Piranhas (AL), com o objetivo de fornecer energia elétrica em alta­ tensão aos concessionários de serviço público, na área compreendida por uma circunferência de 450 km de raio, centralizada na cachoeira de Paulo Afonso (VAINSENCHER, 2004).

112

Figura 25 ─ Primeira diretoria da CHESF106

Fonte: Cento da Memória da Eletricidade no Brasil (1993, p. 97)

106 Na Figura 26: Primeira diretoria da CHESF. Da esquerda para direita: Adozindo de Oliveira (diretor administrativo), coronel Carlos Berenhauser (diretor comercial), Antônio José Alves de Sousa (presidente) e Octavio Marcondes Ferraz (diretor técnico), constituída no Rio de Janeiro­RJ em 1948. 113

Figura 26 ─ Visita do presidente Eurico Gaspar Dutra à obra de Paulo Afonso em 1950

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Do ponto de vista dos recursos necessários à realização de uma usina de grande porte, o governo de Dutra foi essencial para concretizar o plano de Paulo Afonso, que exigia volumosos montantes destinados à organização do canteiro, estudos, construção de laboratórios para simulações em modelos reduzidos, constituição da equipe de funcionários graduados, técnicos e consultores e, finalmente, a construção de seu núcleo residencial e das obras civis da primeira usina. Segundo Vianna (2012, p. 64), "[...] por ocasião da implementação do Plano SALTE (1950), a CHESF juntamente com o Departamento Nacional de Obras contra a Seca ­ DNOCS, recebeu mais da metade dos investimentos destinados a todo o setor energético nacional."

Nessa época, as obras eram conduzidas a todo vapor, tendo em conta que a diretoria da Chesf criara uma expectativa relacionada a possíveis mudanças na política energética no país após a sucessão presidencial. Entretanto, a obra, que começou no Governo Dutra, teve seguimento com a posse de Vargas, após as eleições de 1950, basta ver a sua importância para o Nordeste e para o país. O engenheiro Octavio Marcondes Ferraz comenta sobre esta preocupação em seu depoimento: 114

Getúlio não fez nenhuma intervenção na Chesf. Porque houve o seguinte: nós vimos que não daria para terminar a construção de Paulo Afonso no governo Dutra, que mudaria o presidente, mudaria todo mundo, e podia ser que o sujeito que entrasse não estivesse de acordo com aquele projeto e desmanchasse tudo. Então pensei em manter uma boa imagem da obra e gastar bastante dinheiro, gastar bem, para o pessoal ficar com medo de mexer ─ naquele tempo havia um pouco mais de respeito. E isso foi feito. Compramos material, fizemos as obras e as pessoas que iam nos visitar ficavam impressionadas com o andamento dos trabalhos; viam o serviço, viam o material empregado, e faziam uma idéia do quanto já se havia gasto. [...] Estávamos isolados em Paulo Afonso, trabalhando com muita intensidade as 24 horas do dia, e não tínhamos tempo de pensar em outra coisa. (apud CENTRO, 1993, p. 130, grifos nossos) Figuras 27 e 28 ─ Visita de Getúlio Vargas à Paulo Afonso em 1952

Fonte: Memorial CHESF (1952)

A Chesf foi criada com a missão de gerar e transmitir energia hidroelétrica para a região Nordeste. Assim, após a sua organização, estruturou­se de imediato um plano para construção de um complexo pioneiro, o qual se constitui pelas primeiras três usinas107 subterrâneas instaladas no continente americano, com turbinas que se encontram a cerca de 81m abaixo do nível de seu reservatório ─ este fato é um marco da engenharia moderna brasileira. Neste sentido, o engenheiro Octavio Marcondes Ferraz responde à respeito desta solução, numa

107 A Usina Paulo Afonso I foi projetada pela CHESF, tendo início das obras em 1948 e entrou em operação em dezembro de 1954, com 3 unidades geradoras e potência instalada de 180.001 kW (CHESF, 2015c); a Usina Paulo Afonso II foi projetada pela CHESF, tendo início das obras em 1955 e entrou em operação em 1961, com 6 unidades geradoras e potência instalada de 443.000 kW (CHESF, 2015d); e a Usina Paulo Afonso III também foi projetada pela CHESF, tendo início das obras em 1967 e entrou em operação em 1971, com 4 unidades geradoras e potência instalada de 794.200 kW, completando assim as primeiras usinas de Paulo Afonso previstas pelos pioneiros (CHESF, 2015e). Entretanto, posteriormente, a CHESF construiu outras usinas (PA IV e Moxotó) que formam o complexo de usinas de Paulo Afonso. 115

série de entrevistas108 realizadas em 1987, sendo coordenadas e compiladas pela Memória da Eletricidade no Brasil.

[...] cheguei a uma solução completamente diferente: não localizei a usina lá em cima, mas embaixo, ganhando portanto muito mais potência. Para que não inundasse, pensei em fazê­Ia subterrânea, dentro da rocha ­ às vezes a usina está funcionando com quatro, cinco, oito ou dez metros de água acima do seu teto, mas está funcionando. Fui fazendo o projeto. Fazia um esboço, os cálculos, modificava: fazia outro... Fiz cinco. [...] Eu tinha experiência na matéria, havia visitado diversas usinas subterrâneas em quase todos os países da Europa, França, Itália, Suécia, Noruega, Suíça de modo que desenvolvemos o projeto, atacamos a obra e construímos a primeira usina subterrânea da América ­ hoje há também nos Estados Unidos e no Canadá, mas na época não havia. (FERRAZ, 1987 apud CENTRO, 1993, p. 99­100)

A Usina Hidroelétrica de Paulo Afonso ─ posteriormente chamada de Paulo Afonso I ou PA I ─ começou a ser construída no primeiro trimestre de 1949 e inaugurada em 15 de janeiro de 1955 pelo presidente Café Filho. O projeto constava de uma sala de máquinas escavada em rocha com 60 metros de comprimento por 16 de largura e 30 de altura, onde se instalou três unidades geradoras de 60 MW cada, totalizando numa potência instalada de 180MW (CHESF, 1998, p. 33).

Figura 29 ─ Inauguração da Usina Paulo Afonso (UH PA I) em 1955

Fonte: Memorial CHESF (1955)

108 Esta série de depoimentos de Octavio Marcondes Ferraz trouxe detalhes não apenas relacionados às decisões e soluções técnicas do projeto e construção das primeiras três usinas do Complexo Hidroelétrico de Paulo Afonso, bem como narra fatos do panorama político, econômico e social, principalmente, do período pós Estado Novo. Outrossim, revela as peculiaridades da política interna da CHESF e das influências que esta empresa sofreu entre os diversos governos em sua trajetória. 116

Figura 30 ─ Casa de máquinas da Usina PA I

Fonte: Memorial CHESF (1955)

No mesmo ano de sua inauguração, a primeira usina de Paulo Afonso foi homenageada através de uma música, de autoria de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, chamada de "Paulo Afonso", que narrava a trajetória até a sua realização:

Delmiro deu a idéia Apolônio aproveitou Getúlio fez o decreto E Dutra realizou O Presidente Café A Usina inaugurou E graças a esse feito De homens que têm valor

Meu Paulo Afonso foi sonho Que já se concretizou

Olhando pra Paulo Afonso Eu louvo o nosso engenheiro Louvo o nosso cassaco 117

Caboclo bom, verdadeiro Pois vejo o Nordeste Erguendo a bandeira De ordem e progresso A nação brasileira Vejo a indústria gerando riqueza Findando a pobreza

Ouço a usina Feliz mensageira Dizendo na força Da cachoeira

O Brasil vai, O Brasil vai, Vai, vai Vai, vai...109 Com relação à maquinaria referente ao projeto das usinas de Paulo Afonso, elaborado por Octavio Marcondes Ferraz, foram especificados os geradores, turbinas e demais máquinas e equipamento, negociando­se um empréstimo com o Banco Mundial de 15 milhões de dólares e, logo após, abriu­se concorrência entre empresas estrangeiras fabricantes da maquinaria, ganhando a Westinghouse, conforme Octavio Marcondes Ferraz:

[...] quem ganhou foi a Westinghouse. E ganhou a usina completa, porque eu não quis comprar turbinas de uma firma, de outra... Isso foi bom, uma vez que no decorrer da obra apareceram diversas coisas que nos teriam dado muito trabalho se tivéssemos de acertar com dois fabricantes. Assim, ficou tudo por conta da Westinghouse, que deu as turbinas, compradas no Canadá, e todo o material elétrico. (apud CENTRO, 1993, p. 102) Figura 31 ─ Visita de Marcondes Ferraz na Westinghouse

Fonte: Cento da Memória da Eletricidade no Brasil (1993, p. 102)

109 A música "Paulo Afonso" faz parte do álbum "Luiz Gonzaga canta seus sucessos com Zé Dantas" de 1959, sendo lançado pela Gravadora RCA, com relançamento em 2006. 118

O Decreto Lei número 19 706, de 3 de outubro de 1945, delimitava a área de atuação da CHESF numa circunferência de 450 quilômetros de raio com centro na Cachoeira de Paulo Afonso, abrangendo os municípios dos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Ao longo dos anos, com a efetiva operacionalização das duas primeiras usinas (PA I e PA II), portanto, houve aumento do capital da empresa e a sua área de atuação cresceu para 700 quilômetros de raio, conforme um novo decreto de 20 de outubro de 1964, chegando ao Maranhão e ao norte de Minas Gerais (GALDINO, 1981, p. 10). Segundo a Chesf (1998, p. 37), em 1973, o sistema ganhou "nova ampliação, com a incorporação do sistema da Companhia Hidro Elétrica da Boa Esperança (Cohebe) [...]". Até 1974, a sua área de atuação cresceu para 1 542 milhão de quilômetros quadrados.

A Chesf atribui o crescimento de seu parque gerador e da malha de seu sistema de transmissão110 ao planejamento que marcou as suas ações desde a sua origem.

[...] Cada um dos planos de expansão implementados pela companhia foi resultado de detalhados estudos e projeções de crescimento de mercado, e contou, em sua elaboração, com o apoio dos governos estaduais e dos principais órgãos governamentais dedicados aos desenvolvimento do Nordeste (Comissão do Vale do São Francisco ­ CVSF; Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste ­ Sudene; Departamento Nacional de Obras Contra as Secas ­ DNOCS e o Banco do Nordeste do Brasil ­ BNB).111 (CHESF, 1998, p. 40) Figura 32 ─ Primeira etapa do Sistema de Transmissão da Chesf

Fonte: Alves de Souza (1955)

110 Em 1984, tinha 12 116 km de linhas de transmissão, chegando a 15 043 km em 1990, cf. CHESF, 1998, p. 77. 111. 119

Imediatamente após a conclusão da primeira usina em 1955, foi iniciada a edificação da Usina Hidroelétrica Paulo Afonso II, prevendo a construção de mais uma tomada d'água e mais uma casa de máquinas subterrânea. Esta usina entrou em operação em 1961, tendo um grupo gerador constituído por 6 unidades, sendo que:

"[...] A primeira, de 75 MW, entrou em operação no final de 1961. Duas novas unidades de igual portênica foram acionadas em 1962 e 1964. Os três últimos geradores, de 85 MW cada um, começaram a funcionar em 1966, 1967 e 1968, respectivamente, perfazendo uma capacidade instalada final de 480 MW. (CHESF, 1998, p. 41) Em 1972, a CHESF inaugurava a Usina Hidroelétrica PA III, que dois anos depois sofreu incremento em seu grupo gerador, ficando com potência instalada de 864 MW. Assim, em 1974 "[...] somando 1.524 MW de capacidade instalada, as três usinas de Paulo Afonso constituíam o maior conjunto energético do país e o primeiro a ultrapassar a casa dos 1.000 MW." (CHESF, 1998, p. 43)

Em 28 de maio de 1978 foi inaugurada mais uma usina em Paulo Afonso, a chamada Usina Hidroelétrica Moxotó (atual Apolônio Sales), com potência instalada de 440 MW, tendo reservatório com capacidade para acumulação de "1 bilhão de metros cúbicos de água e tem como principal finalidade a regularização plurissemanal do fluxo do rio São Francisco em Paulo Afonso." (CHESF, 1998, p. 58). Esse reservatório foi responsável pela inundação da cidade de Glória antiga, na Bahia, que foi substituída por uma "Nova Glória", construída em 1974 pela Chesf.

Entre 1975 e 1983, com o crescimento da demanda por energia elétrica em sua área de atuação, na época do II Plano Nacional de Desenvolvimento lançado no governo militar de Geisel, a Companhia "[...] implantou um ambicioso programa de ampliação de seu sistema elétrico [...]", sobretudo os projetos para geração de energia hidroelétrica "em função do aumento do preço do petróleo [primeira crise mundial do petróleo], sentido mais intensamente na economia brasileira na segunda metade da década de 1970." (CHESF, 1998, p. 50)

Nesse período a empresa já sentia os efeitos causados pelo crescimento forçado por conta do II PND, que estimulou a instalação de indústrias que demandaram maior volume de energia elétrica. Desde 1972, a Companhia tinha iniciado o seu quinto empreendimento em Paulo Afonso, a chamada Usina Hidroelétrica Paulo Afonso IV, que iria melhorar o suprimento de energia para essas indústrias de base. 120

O mercado consumidor da Chesf tinha setores industrias como maiores consumidores de energia elétrica do Nordeste, sobretudo com a implantação de indústrias eletrointensivas, que:

"[...] promoveu o crescimento da participação dos consumidores industriais no total da energia elétrica consumida na região, entre 1975 (53%) e 1981(59%). A partir de 1982, a recessão que atingiu o país reverteu essa tendência: esse consumidor teve sua participação reduzida para 52%. [...]. (CHESF, 1998, p. 56) Em 20 de novembro de 1980, o Presidente João Batista Figueiredo inaugura a última das usinas localizadas e que compõem o Complexo Hidroelétrico de Paulo Afonso, a Usina PA IV. O represamento desta usina é constituído de barragens e diques com comprimento total de 7 430m e altura máxima de 35m; estruturas de concreto num comprimento total de 1 053,50m, compreendendo: vertedouro com oito comportas, casa de máquinas do tipo subterrânea com seis unidades geradoras cada uma, com capacidade nominal de 410 MW, perfazendo até 1983, após instalação da sexta e última unidade geradora, uma capacidade instalada total de 2 462MW, ou seja, sendo a maior das usinas situadas nesse complexo. O reservatório dessa usina é alimentado por um canal de derivação oriundo do reservatório da Usina Moxotó com extensão de 5 200m, largura de 135m e profundidade média de 13m. As águas turbinadas dessa e das três primeiras usinas jorram para o cânion do São Francisco e, em seguida, desembocam na Usina Hidroelétrica de Xingó, a qual está localizada no Estado de Alagoas (CHESF, 1998, p. 61­62).

Figura 33 ─ O presidente João Figueiredo na inauguração da Usina PA IV em 1980

Fonte: Jucá (1982) 121

A construção do complexo de hidroelétricas de Paulo Afonso foi um marco para o desenvolvimento da industria na região Nordeste do Brasil, modificando também os modos de vida das populações que foram beneficiadas com a "luz de Paulo Afonso". Ferreira (2012) narra histórias relativas à chegada da energia nas cidades como, por exemplo, a chegada de energia elétrica na cidade de Juazeiro do Norte no Ceará.

Foi a chegada da energia da CHESF, ou da luz de Paulo Afonso, como era chamada a energia elétrica proveniente da hidrelétrica do São Francisco. O fato ocorreu no início da década de 60, mais precisamente no dia 22 de julho de 1961 [...]. A nova energia era ininterrupta e não servia apenas para iluminação [...] Foi uma correria às compras de geladeiras, enceradeiras, liquidificadores, batedeiras de bolo, ferro de engomar, ventiladores... Paralelamente, foram substituídos o candeeiro, a lâmpada petromax, o ferro de engomar a carvão, a geladeira a querosene, e até as velas de cera que iluminavam os quadros e as imagens de santos durante à noite. (WALKER, 2010 apud FERREIRA, 2012, p. 117) Por sua vez, Jânio Soares fala sobre um episódio relacionado à chegada da energia na cidade de Salvador:

Para os baianos nascidos antes da década de 50, a chegada da energia elétrica gerada pelo funcionamento da usina Paulo Afonso I foi um verdadeiro acontecimento. Que o diga dona Canô, que num recente depoimento revelou que a coisa que mais a impressionou ao chegar a Salvador, não foi a grandeza da capital, tampouco seu movimento, mas sim o simples gesto de apertar um botão e ver tudo clarear ao seu redor. Igualmente a ela, milhares de nordestinos também ficaram encantados com a novidade, que à época era saudada por muitos como a luz de Paulo Afonso (SOARES, 2009 apud FERREIRA, 2012, p. 117). Com o complexo hidroelétrico de Paulo Afonso concluído em 1983 e a Usina Hidroelétrica de Sobradinho em 1982, o parque gerador da Chesf teve um crescimento de 230% entre 1975 e 1983, passando nesse período de 1 839 MW para 6 097 MW, desse total essas usinas juntas somavam 3 950 MW. A empresa absorveu em 1978 a Usina Hidroelétrica de Pedra112, com potência instalada de 23MW, e possuía também usinas termoelétricas:

[...] Em 1975, a Chesf possuía as termelétricas de Aratu, desativada em 1980, tendo seus geradores transferidos para a Centrais Elétricas de Manaus (Cem); , desativada em 1979, tendo suas máquinas transferidas para Imperatriz; e Mossoró, que teve suas máquinas desmontadas em 1977. Estas totalizavam 158 MW, cerca de 8% da capacidade instalada da companhia. Nesse mesmo período, em contrapartida, três usinas termelétricas a gás passaram a integrar o sistema Chesf. Camaçari I começou a operar em 1979 e foi concluída em 1981, atendendo às necessidades energéticas do pólo petroquímico de Camaçari, e Bongi entrou em operação em 1977, para complementar as necessidades de ponta e atender às emergências na capital

112 A Usina Hidroelétrica de Pedra foi instalada no , a cerca de 18km da cidade baiana de Jequié. Essa usina começou a ser construída em 1971 pela Coelba, mas a continuidade dos trabalhos ficaram sob responsabilidade da Chesf em 1975, que a concluiu em 1978. 122

pernambucana. Juntas, elas somavam 432,5 MW, quase 7% da capacidade global do sistema. (CHESF, 1998, p. 52­53) A empresa continuou a se expandir após 1983, mesmo no período de grande recessão (1984­1990), que culminou em atrasos nos cronogramas de suas obras. Por exemplo, em Pernambuco, cerca de 50 km a montante do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso, foi construída a Usina Hidroelétrica de Itaparica, com 1 479MW de potência instalada; já no baixo São Francisco entre os Estados de Alagoas e Sergipe, a Usina Hidroelétrica de Xingó começou a ser construída a partir de 1987, tendo sua primeira unidade geradora inaugurada em 1994 com 527MW de potência instalada; entre 1995 e 1996 foram inauguradas mais quatro geradoras de igual potência, e em 1997 começou a operar a sexta e última unidade de geração, perfazendo uma capacidade instalada total de 3 162MW. Segundo a empresa: "Graças a usina de Xingó, a Chesf completou mais de 10.700 MW instalados, tornando­se assim detentora do maior parque gerador do país." (CHESF, 1998, p. 98). Porém, essas duas obras passaram por paralisações113 e atrasos, durando uma década para construção de Xingó, entre obras civis e eletromecânicas.

De acordo com a Chesf (1998, p. 80):

Entre 1984 e 1987, o volume de vendas foi bastante modesto, chegando a registrar taxas negativas em 1985 e 1987. Em 1985, a redução das vendas deveu­se à absorção pela Eletronorte dos mercados do Maranhão e parte do Pará e, em 1987, por conta do racionamento, as vendas de energia diminuíram 6,7% com relação ao ano anterior. Nos anos que se seguiram ao racionamento, a taxa média de crescimento das vendas foi de 5,8%, bem inferior à média de 12% ao ano, registrada entre 1981 e 1984. Nesse período, a partir de 1984, a Companhia teve que se adequar às novas condições do mercado consumidor e, além disso, ajustar as suas prioridades, promovendo alterações na administração dos equipamentos e estruturas por ela mantidas na cidade de Paulo Afonso, como será visto adiante, pois tinha que se voltar à sua atividade­fim.

Sumariamente, explanou­se sobre as histórias de construção das usinas pela Chesf, bem como dos instrumentos e políticas de desenvolvimento que promoveram a sua criação e a sua expansão como empresa estatal, objetivando localizar o fato urbano de Paulo Afonso dentro de um contexto muito particular da industrialização brasileira, no âmbito do setor elétrico já dissertado no capítulo anterior. Assim, cabe a partir daqui, apresentar e analisar a cidade constituída por essa companhia e as alterações que se fizeram ao longo dos anos, no período compreendido entre 1948 e 1985.

113 A obra de Xingó foi paralisada no final de 1989, por falta de recursos, retornando em junho de 1991 e só concluída em 1997, cf. CHESF, 1998, p. 94. 123

2.2 MUTAÇÃO: DE VILA POTY E ACAMPAMENTO DA CHESF À CIDADE DE PAULO AFONSO

[...] A 29 de Março de 1549 aportou á Bahia Thomé de Souza, primeiro Governador Geral da Colonia, encarregado por D. João III, o sabio monarcha luso, de lançar as bases da fundação do grande imperio colonial descoberto [...] Na comitiva de Thomé de Souza vinha Garcia d’Avilla, o precursor de nossos bandeirantes. Circunscriptas ao litoral na primeira metade do seculo XVI, só após a chegada de Thomé de Souza começaram as penetrações pelo sertão. O gado trazido pelas multiplicou­se com rapidez. Garcia d’Avilla, penetrando o São Francisco em correrias contra os selvagens lobrigou as vantagens de aproveitar os vargedos, vasantes e carnaúbaes para o desenvolvimento da pecuaria no Valle em questão [...] E, obtidas as grandes sesmarias, Garcia d’Avilla, Guedes de Britto e seus successores espalharam em fins do seculo XVI e por todo o seculo XVII os seus curraes pelas margens do São Francisco e nas dos seus affluentes, de lá se propagando pelos sertões nordestinos de Pernambuco, Ceará, Goyaz, Rio Grande do Norte, Parahyba e Maranhão. Foi assim o Valle do São Francisco o condutor do desbravamento e aproveitamento econômico da maior parte do territorio nacional [...] Na fhase assucareira da Colonia, quando o Brasil detinha o sceptro do fornecimento de assucar ao mundo civilizado, era o gado originario do Valle do grande rio quem abastecia de carne a população lavradora do litoral, accionava as engenhocas ou transportava canna nos pesados carros coloniaes para as proximidades das moendas [...] Garcia d’avilla [...] Penetrando pelo Valle do São Francisco, do norte para o sul, em direcção opposta á corrente, elle escolheu pontos apropriados, construindo curraes primitivos, deixando em cada um delles um casal de escravos, dez novilhas, um touro e um casal de eqüinos, lançando assim a semente da maior e mais estavel das riquezas nacionaes”. (ROCHA, 1940, p. 2­4) Foi nesse espaço histórico e geográfico, por volta do século XVII, onde surgiram os primeiros núcleos de povoamento que originaram as cidades do médio, submédio e baixo114 São Francisco, sendo que do lado direito do rio São Francisco, em terras baianas, os descendentes de Garcia d'Ávila ─ o notório fundador da Casa da Torre ─ receberam da Coroa imensas sesmarias. Todavia, segundo Lins (1952, p. 218) não foram os sesmeiros que povoaram o Vale do São Francisco: "[...] Os verdadeiros povoadores foram os que ficaram na servidão do deserto, escravos de si mesmos, pastoreando o gado miúdo e fraco, ainda na fase de adaptação deste ao meio hostil". Ainda segundo o autor:

Com o passar do tempo, aquelas primitivas sesmarias se foram transformando, multiplicando­se em centenas de fazendas menores, muitas

114 O rio é composto por quatro trechos distintos: das nascentes até a cidade de Pirapora ­ MG, é denominado de Alto São Francisco; de Pirapora ­ MG até Remanso ­ BA é denominado de Médio São Francisco; de Remanso ­ BA até Paulo Afonso ­ BA é denominado de Submédio São Francisco; e de Paulo Afonso ­ BA até a sua foz, entre os Estados de Sergipe e Alagoas, é denominado de Baixo São Francisco. A Bacia Hidrográfica do rio São Francisco abrange 639.219 km², possuindo sete unidades da federação: Bahia (48,2%), Minas Gerais (36,8%), Pernambuco (10,9%), Alagoas (2,2%), Sergipe (1,2%), Goiás (0,5%), e Distrito Federal (0,2%) – e 507 municípios (cerca de 9% do total de municípios do país) (CBHSF, 2015). 124

vezes constituídas apenas de uma capineira cercada e o curral colado à casa do proprietário. Com o rolar dos anos, os descendentes dos sesmeiros com as índias se foram misturando com as filhas dos vaqueiros também. As antigas fazendas dos papaléguas foram sendo retalhadas entre centenas de herdeiros, e são hoje os sítios e fazendas da ribeira e das caatingas interiores do São Francisco [...] (LINS, 1952, p. 28) Mais tarde, a partir da segunda metade do século XIX, o Vale do São Francisco teve alguns de seus caminhos consolidados, os quais foram abertos ainda com as bandeiras sertanistas e boiadas e transformados em estradas de ferro e outros, já no século XX, em rodovias que uniam Salvador ao Nordeste e ao Centro­Oeste, cruzando o São Francisco numa sinalização desenvolvimentista que se confirmaria com os planos de desenvolvimento nacional a partir do Estado Novo.

Um grupo de bandeirantes chefiados por Garcia d'Ávila aportam em terras povoadas por nativos indígenas, das tribos Mariquitas e Pancarus, estabelecendo­se e formando um primitivo núcleo onde seria, posteriormente, a cidade de Glória no Estado da Bahia. Logo após, por volta de 1705, chega nessas terras uma missão religiosa de padres católicos, encontrando os primeiros colonos que se estabeleceram anteriormente, dando vazão a uma civilização e organização territorial, onde a pequena agricultura e criação de gado eram as suas práticas de subsistência. Esse povoado era conhecido, nessa época, por "Curral dos Bois", sendo elevado à categoria de vila pela Lei Provincial número 60 de 08 de abril de 1842 e passando a se chamar de Santo Antônio da Glória (IBGE, 1958).

Em 1º de maio de 1886, através da Lei Provincial número 2 553, a vila passa à categoria de cidade, sendo desmembrada do município de . Em razão do que determinou os Decretos Estaduais de números 7 455, de 23 de junho de 1931, e 7 479, de 8 de julho de 1931, esse município teve o seu nome simplificado para Glória (IBGE, 1958).

A Glória Velha, entanto, marca um período da civilização colonial do Brasil, o dos currais, passagem obrigatória que era das boiadas que demandavam para os sertões do Norte. Foi cognominada, de Curral dos Bois [...] Sua feira semanal era bastante concorrida, atraindo ruralistas dos seus vastos limites territoriais e até do vizinho Estado de Pernambuco [...]. (MANUEL MOURA apud GALDINO, 1981, p. 13). Por sua vez, o povoado chamado Forquilha, situado à margem direita do rio São Francisco e da Cachoeira de Paulo Afonso, era um pequeno núcleo do município baiano de 125

Glória, distante cerca de 30km da antiga sede municipal115, antes da criação do conhecido complexo de usinas de Paulo Afonso. Segundo Rocha (1963, p. 86­87):

[...] o sertanista Paulo de Viveiros Afonso já ligara o seu nome à última grande cachoeira do S. Francisco. [...] ocupou realmente as suas terras, inclusive as ilhas fronteiras, de que a maior tomou êste nome sintomático: ilha da Tapera de Paulo Afonso. Mais de um século após a ocupação, o engenheiro Halfeld ainda ouviu na zona esta nomenclatura, que transcreveu tanto no relatório como no atlas do seu levantamento do S. Francisco (1852/54). Paulo de Viveiros Afonso não se contentou, porém, com a sesmaria e as ilhas pernambucanas: parece que aproveitou a circunstância de estarem devolutas as terras da margem baiana do rio para também ali construir um curral, que mais tarde se transformou na "Tapera de Paulo Afonso". Halfeld ainda encontrou no mesmo lugar uma fazenda com êste nome [...] Atualmente, não mais existe notícia dessa fazenda e a própria ilha da Tapera de Paulo Afonso possui três nomes: Tapera, junto à margem baiana; Izidro, junto ao braço principal; e Barroca, a montante das outras duas partes. A ilha Tapera de Paulo Afonso se encontra submersa pelo reservatório das primeiras usinas. Entretanto, o povoado conhecido por Forquilha, topônimo herdado de um dos antigos nomes da cachoeira, antes mesmo da implantação da CHESF em 1948, já absorvia as centenas de pessoas atraídas pelas obras da Usina Piloto, passando ao longo dos anos a ser chamado de Vila Poty116.

O pequeno povoado de Forquilha vivia na sua centenária letargia econômica de pequenas fazendas de gado e de caminho de boiadas, que acorriam até esta cidade, até que, em 1945, foi sacudido pela chegada de centenas de homens e máquinas que lá se instalaram para construir a Usina Piloto. Depois, vieram as obras do acampamento da Chesf e da Usina Paulo Afonso I, atraindo ainda mais gente para a localidade. Vinha gente de todo lugar: a mão de obra especializada era oriunda do Sudeste e Sul do país, além de alguns vindos de capitais nordestinas e de estrangeiros; a mão de obra sem especialização, os “cassacos”, era composta de gente do entorno da região de Paulo Afonso e dos demais estados nordestinos. Para Forquilha rumaram, aos milhares, pernambucanos, alagoanos, sergipanos, baianos, paraibanos, e, em menor número, cearenses, piauienses, maranhenses, dentre outros. (FERREIRA, 2012, p. 122­123, grifos nossos)

115 Com o represamento do rio São Francisco no trecho entre Paulo Afonso­BA e Petrolândia­PE e construção da Usina Hidroelétrica Moxotó a partir de 1971, a antiga sede de Glória foi submersa, apagando toda a sua antiga estrutura urbana. 116 O nome Vila Poty decorre da utilização dos sacos de cimento vazios, da marca Poty, utilizados na obra e descartados pela CHESF, para cobertura das casas pelos moradores dessa vila. (JUCÁ, 1982, p. 272)

126

Figura 34 ─ Mapa do Arquipélago de Paulo Afonso, parcialmente recoberto desde setembro de 1954

Fonte: Rocha (1963)

O lugarejo chamado Forquilha estava localizado a cerca de 480km da capital baiana, com uma posição geográfica fulcral à comunicação entre os Estados da Bahia, Alagoas e Pernambuco, estando também muito próximo de Sergipe. Quando a Divisão de Águas do Ministério da Agricultura aportou nessas terras, iniciando a construção da Usina Piloto, neste momento, impulsionou o primeiro movimento de trabalhadores em busca de emprego na pequena obra. A Divisão edificou uma minúscula estrutura de apoio, apenas a Casa de Hóspedes que abrigava os engenheiros e um galpão almoxarifado para a obra. O contingente de operários, que iam aportando nessas terras, construiu um aglomerado de barracos improvisados.

Segundo Francisco de Souza (2012, p. 139):

Com a delimitação da área que foi reservada para implantação do acampamento da CHESF, os casebres próximos ao canteiro de obra onde residiam os operários que trabalhavam na construção da Usina Piloto foram destruídos, e seus habitantes tiveram que ir morar na vila que estava se formando do lado de fora da área cercada.

127

Em 1948, a Chesf chegava em Forquilha trazendo um plano de grandes dimensões à época, necessitando de edificar uma cidade pois, naquele momento, o pequeno povoado não dispunha de infraestrutura para abrigar a quantidade de pessoas que chegavam, todos os dias, em busca de trabalho nas obras da companhia. Assim, a aglomeração urbana crescia desordenada e improvisada, no sentido de estruturas provisórias, tendo em vista a expectativa criada pela construção do acampamento da nova companhia.

A cidade de Sofrônia é composta de duas meias cidades. Na primeira, encontra­se a grande montanha­russa de ladeiras vertiginosas, o carrossel de raios formados por correntes, a roda­gigante com cabinas giratórias, o globo da morte com motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula do circo com os trapézios amarrados no meio. A segunda meia cidade é de pedra e mármore e cimento, com o banco, as fábricas, os palácios, o matadouro, a escola e todo o resto. Uma das meias cidades é fixa, a outra é provisória [...] (CALVINO, 1990, p. 61) A descrição da cidade de Sofrônia no livro "Cidade Invisíveis" lembra em alguns aspectos a cidade de Paulo Afonso, principalmente em sua segregação e nas diferenças estruturais, física e socioeconômica, que ali se fizeram no início de sua história urbana.

De acordo com a seleção de fatos ou relatos históricos descritos anteriormente, a história urbana de Paulo Afonso é imbricada à própria história das usinas e de sua Companhia. Entretanto, cabe salientar que parte da estrutura urbana não foi planejada, pois a cidade se desenvolveu em duas partes distintas: a primeira através de um plano de cidade planejada pela própria CHESF e associada às usinas, conhecida como "Acampamento da Chesf" ou "cidade Chesf"117; e a segunda conhecida por Vila Poty, a qual foi formada por uma ocupação espontânea estimulada pelo fenômeno de construção dessas usinas. A primeira intentada, ordenada e desejada; a segunda derivada, desordenada e rejeitada.

Vila Poti não existe no mapa. Fica na margem do rio São Francisco, debruçada, quase, sôbre a Cachoeira de Paulo Afonso. Nela vivem perto de 10 mil pessoas, com 80% de mulheres e crianças a quem os homens deixaram para buscar, mundo afora, um qualquer trabalho. [...] Vila Poti é a cidade da miséria. Mas, vizinha da fortuna: a cidade da Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco, para a qual os desgraçados ocorreram em busca de um emprêgo nas obras da reprêsa. Lá chegando, deram com uma cêrca de arame farpado a barrar­lhes a entrada àquele paraíso que brotara no chão torrado do sertão baiano. Vila Poti nasceu, então, e cresce sempre, como um campo de concentração invertido, de olhos voltados para o outro lado da cêrca. Não convém que Vila Poti exista no mapa. (FREITAS118, 1956, p. 56, grifos nossos)

117 CHESF, 1998, p. 27. 118 Cf. ANEXO B. 128

Figura 35 ─ Cerca que dividia o Acampamento da Chesf e a Vila Poty

Fonte: fotógrafo Jackson Cisino (FREITAS, 1956, p. 57)

Na época que perdurou a construção do complexo hidroelétrico, as revistas de tiragem nacional119 publicaram notícias das obras das usinas e do desenvolvimento da região promovido pela nova companhia estatal, mas também as diferenças entre o Acampamento da Chesf e a Vila Poty, a qual era um campo de pequenas casas, das quais muitas foram construídas com objetivo de servirem como abrigos provisórios, pois seus moradores almejavam pertencer à cidade projetada e mantida pela empresa. Entretanto, a Chesf não

119 Galdino (2014, p. 49­60) revela diversas reportagens ao longo das três primeiras décadas pós fundação da CHESF, que trazem notícias sobre Paulo Afonso e, principalmente, sobre o desenvolvimento que a empresa trouxe para região Nordeste. Estas reportagens foram publicadas por revistas famosas da época como Manchete, Cruzeiro e Realidade.

129

disponibilizou casas para todos os seus operários no seu Acampamento, então, muitos moravam na Vila Poty, alguns provisoriamente120 e outros permanentemente.

Fora do Acampamento, a cidade se expandia no mesmo ritmo das necessidades da Chesf. Como o número de funcionários, nos primeiros anos da obra, cresceu acima do esperado e a empresa não oferecia residência a todos os seus funcionários, a cidade fora do muro se expandia num primeiro momento, de forma desordenada. [...] (REIS, 2004, p. 226, grifos nossos) Quando a companhia aportou no sítio escolhido para construção das primeiras usinas, precisou alojar os seus funcionários graduados, técnicos e operários da obra. Nesta época, os prepostos da empresa recém criada encontraram uma realidade geográfica e climática121 desfavorável à habitabilidade, obrigando­se a planejar e construir um microclima próprio à sua cidade, conforme será elucidado no terceiro capítulo deste trabalho, além de poucos recursos em termos agrícolas à subsistência. O engenheiro Octavio Marcondes Ferraz explanou este aspecto:

As condições de vida da região eram muito precárias, mas logo entramos em grande atividade para construir uma verdadeira cidade [...] Fora a maleita122, a única doença que havia naquela região era a miséria. [...] Nossa alimentação vinha praticamente toda de fora, porque ali é tudo caatinga e havia muito poucos trabalhadores agrícolas, embora fosse possível obter frutas e outros gêneros, como de fato obtivemos. (FERRAZ, 1987 apud CENTRO, 1993, p. 113) A cidade Chesf foi estruturada urbanisticamente numa organização espacial composta por habitações, equipamentos administrativos, comerciais, educacionais, de lazer, contemplativos, de culto religioso, e infraestrutura logística relacionada à produção das usinas, além de instrumentos de controle de seu acampamento.

[...] Enquanto o projeto básico da usina estava sendo elaborado, em outubro desse ano [1948] começava a ser construído o Acampamento, local que abrigaria a massa de operários e técnicos encarregados da edificação do projeto hidrelétrico. O grupo de trabalho encarregado de providenciar a execução do projeto iniciou, logo que chegou a Forquilha, a organizar a infra­estrutura do futuro Acampamento. Definiu, de imediato, o local dos escritórios e dos canteiros de obras. Construiu uma cerca provisória [...] Foram edificados galpões para servirem de depósitos com materiais diversos [...] Dentro do Acampamento, construíram os prédios dos escritórios, das oficinas, onde hoje funciona a escola Alves de Souza [...] (REIS, 2004, p. 20, inserção nossa)

120 A chesf construiu alguns alojamentos provisórios para solteiros na Vila Poty, no início das obras. 121 Paulo Afonso, por sua posição geográfica, está localizada numa região de caatinga, com clima quente­seco, vegetação de xerófilas e geomorfologia pedregosa (ROCHA, 1963). 122 Conforme depoimento do engenheiro Bret Lôlas de Cerqueira Lima, transcrito na íntegra no APÊNDICE A, houve uma epidemia de "malária" na região. 130

Enquanto o Acampamento da Chesf era estruturado, de acordo com um planejamento, e dispunha de equipes especializadas para a sua construção, de outra parte a:

Vila Poti foi nascendo assim. As famílias chegavam, não tinham onde abrigar­se, punham­se à cata de material para erguer um barraco. A região, porém, é despida e árida, de vegetação apenas rasteira, de modo que nem madeira era possível encontrar, além de gravetos. Um homem, no entanto, encontrou a solução, logo por todos adotada: os sacos vazios de cimento, presos uns aos outros, seriam a melhor cobertura para a armação do barraco. A CHESF jogava fora êsses sacos, e os barracos foram nascendo dêles. Ao bater­se com os olhos [...] dava­se com milhares de inscrições "Poti", que tal era o nome do cimento, gravado nos sacos. Logo [...] recebia o nome de Vila Poti. Aos poucos os sacos foram substituídos pelo sapê, fôlhas de latão, palmas, porém o nome ficou. (FREITAS, 1956, p. 57)123 Já nos primeiros anos, a Poty teve aumento populacional ao ponto de ser elevada à distrito124 de Glória em 1953. Esta população crescia em função da velocidade e continuidade da obra, em sua fase de pico, chegando cada vez mais pessoas atraídas pela oportunidade de emprego na companhia. Consequentemente, como distrito, ganhou representação na câmara de vereadores do município de Glória já em 1954, dando início a um processo de lutas políticas pela busca de sua emancipação.

Aproveitando a oportunidade das eleições municipais em Glória, no ano de 1954, Abel Barbosa e outros nomes apareceram como candidatos a vereador pelo Distrito de Paulo Afonso e das onze cadeiras daquela Câmara Municipal, quatro delas foram ocupadas pelos representantes desse Distrito [...] (GALDINO, 2014, p. 65) O grupo de vereadores, com liderança de Abel Barbosa, por muitos anos defendeu a emancipação política de Paulo Afonso, que segundo Galdino (2014) tinha como foco a luta contra a segregação entre o Acampamento da Chesf e a Vila Poty e contra os seus contrastes, pois acreditava­se que com a emancipação haveria unificação da cidade e, como resultado, a melhoria da infraestrutura urbana da Poty e das condições de vida de sua população, a qual já era maior125 do que a população de sua sede (Glória).

Lembro como se fosse hoje o sofrimento daquela gente e de todos nós da Vila Poty. Do lado de lá da cerca, piorada com o muro, as ruas calçadas, clubes sociais com cinema, piscinas, quadras de jogos, entretenimento, lazer, praças, farta iluminação. Do lado de cá, poeira, escuridão e esgotos escorrendo no meio da rua. (ABEL BARBOSA, 2013 apud GALDINO, 2014, p. 66)

123 Conforme Anexo B. 124 Através da Lei Estadual nº 62 de 30 de dezembro de 1953. 125 Segundo o IBGE (1958), já em 1950 a população da Vila Poty era de 10 mil habitantes, maior que a população urbana da sede (Glória), a qual tinha apenas 863 habitantes em 1950.

131

Em 10 de outubro de 1956, após diversos debates entre os vereadores, o projeto de emancipação política de Paulo Afonso, de autoria do vereador Abel Barbosa, foi aprovado pela Câmara de Vereadores de Glória, sendo encaminhado para Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, tramitando até a sua aprovação em 28 de julho de 1958, com sanção da respectiva Lei número 1 012/1958 pelo então governador Antônio Balbino de Carvalho, assim criando o município de Paulo Afonso (SOUZA, 2012).

A partir da emancipação política de Paulo Afonso, a administração municipal se deparou com grandes dificuldades para resolver os problemas urbanos encontrados, tendo em vista que não contava com nenhuma infraestrutura socioeconômica, e o Governo do Estado, ignorando o novo município, delegou as suas responsabilidades à Chesf, que além de ser fonte de emprego, começou a assumir responsabilidades como provedora local, concedendo à população da Vila Poty alguns serviços relativos à educação e à saúde, bem como no empréstimo de veículos, máquinas e operários necessários à realização de serviços urbanos (MELO DA SILVA, 1985, p. 34).

Figura 36 ─ Veículo da CHESF em obra na Vila Poty

Fonte: Paulo Afonso (1998)

Jucá (1982) considera, de certa forma, negativo o apoio que a empresa forneceu aos moradores da vila vizinha, pois:

[...] dentro da perspectiva do tempo, até diríamos que a absorção pela CHESF dos problemas sociais da Vila Poty, o seu profundo envolvimento com aquela população tão carente, resultaram, paradoxalmente, em conseqüências negativas para a vida da comunidade. Os poderes governamentais se sentiram "desobrigados" e esses supostos encargos sociais continuaram a ser "cobrados" à empresa que não viu, em seus primórdios, 132

outra alternativa senão a do atendimento àquela população carente. Como lá estavam numerosas famílias dos operários das obras, também essas passaram a receber, como as famílias residentes dentro do acampamento, as noções elementares de higiene, como o banho diário, o uso do sabão, o leite, a assistência médica e educacional [...]. (JUCÁ, 1982, p. 65­66, grifos nossos) Poucos anos após a emancipação política de Paulo Afonso, já na década de 1960, houve um novo impulso à política de industrialização do Nordeste através do "dispositivo fiscal número 31/18", o qual autorizava "as pessoas jurídicas nacionais e estrangeiras a deduzirem 50% do imposto devido à União caso investissem na região", contribuindo para chegada de diversos grupos industriais como Ferbasa, Salgema, Caraíba Metais, Alcan, Copene etc. Assim, cresceu a demanda por energia elétrica, e a Chesf passou a ser fornecedora direta para essas empresas. Por conseguinte, foi nessa mesma década que a Companhia expandiu a sua produção através da construção de mais três grandes usinas (Sobradinho, Moxotó e Paulo Afonso IV), como já mencionado anteriormente, e em 1982 chegou a uma produção de 20,60 trilhões kWh, dos quais 99,99% de origem hidráulica, sendo que desse percentual o Complexo Paulo Afonso­Moxotó contribuiu para 75,43% e, dessa forma, representou a base do sistema de produção e transmissão da Chesf ─ fato que caracterizou Paulo Afonso como área de segurança nacional126 por sua importância estratégica para economia da nação (MELO DA SILVA, 1985, p. 30­31).

Para Souza (2012), a economia da região e do município de Paulo Afonso crescia, no período de construção de cada usina, em função do andamento das obras, atingindo um determinado nível de desenvolvimento, e decrescia no término dos serviços de construção. Segundo o autor:

Entre 1948 e 1979, todo o desenvolvimento econômico do município girou em torno da construção das usinas, sendo a CHESF a fonte dos recursos financeiros. Com o término do ciclo dessas construções, a cidade de Paulo Afonso sofreu uma grande queda em suas condições socioeconômicas porque não houve ao longo desse tempo nenhum investimento com o objetivo específico de assegurar o desenvolvimento sustentável da região. (SOUZA, 2012, p. 125­127)

126 Paulo Afonso se torna área de segurança nacional a partir de 1968, no ano do Ato Institucional 5 do governo militar do general Costa e Silva e segundo a doutrina de segurança nacional, perdendo a sua autonomia administrativa e política até 1985, quando foram restabelecidas eleições diretas (MELO DA SILVA, 1985).

133

Tabela 2 ─ Energia produzida pela CHESF por usina em 1982 USINAS Produção (kWh) Participação (%)

Hidroelétricas 20.602.578.914 99,994% Paulo Afonso I, II e III 5.796.968.116 28,135% Paulo Afonso IV 7.872.430.000 38,208% Moxotó 1.872.960.000 9,090% Sobradinho 4.166.819.460 20,223% Boa Esperança 718.488.892 3,487% Funil 106.071.626 0,515% Pedras 46.805.040 0,227% Curemas 20.820.960 0,101% Piloto 1.214.820 0,006%

Termelétricas 1.306.680 0,006% Camaçari 560.000 0,003% Bongi 232.000 0,001% Imperatriz 314.680 0,002% São Luiz 200.000 0,001%

Total 20.603.885.594 100,00% Fonte: CHESF (apud MELO DA SILVA, p. 32)

Logo após a transferência de sua sede do Rio de Janeiro para a cidade de Recife entre 1975 e 1977, a Chesf interrompeu o processo de ampliação de seu Acampamento e entregou a construção das novas usinas à iniciativa privada, focando apenas na administração de seu complexo e fiscalização das obras. Já a partir da Usina PA IV, a companhia começou as escavações dos poços de adução, mas logo em seguida a Construtora CETENCO assumiu toda a construção civil e a empresa TENENGE se responsabilizou pela montagem eletromecânica das turbinas e geradores das casas de máquinas da usina. (SOUZA, 2012)

Em 1974, durante a primeira crise enérgica, a partir da terceira diretoria da empresa, a Chesf entendeu que determinadas atividades que realizava fugiam à sua atividade­fim, que era gerar e comercializar energia elétrica. Assim, alguns investimentos destinados ao seu Acampamento foram cortados ou reduzidos, desde investimentos em sua infraestrutura até os destinados à educação técnica127, a qual era uma referência na época e que foi responsável pela auto­suficiência de mão de obra especializada à própria companhia (SOUZA, 2012).

127 A CHESF mantinha dentro de seu Acampamento uma escola técnica chamada de Centro de Formação Profissional de Paulo Afonso ­ CFPPA, também conhecida por "Escolinha", em convênio com o SENAI, que dispunha de salas de aula e laboratórios equipados, e professores (engenheiros e técnicos) que formaram 134

Este processo de desinvestimento da companhia para com a sua cidade perdurou até que, consequentemente, desembocasse no processo de abertura de sua company town em meados da década de 1980, no período de distensão e declínio do regime militar no país. Consoante à situação econômico­financeira que as empresas do setor elétrico passavam com endividamento e falta de recursos para executarem as suas obras de expansão, somando­se às pressões populares ─ capitaneadas pelo prefeito Abel Barbosa (1979­1985) ─, a Chesf derrubou as suas guaritas de controle e grande parte de seu muro que segregava a cidade128.

Segundo Farah e Farah, a abertura de company town foi uma tendência observada pelos autores em relação aos núcleos analisados em meados da década de 1980, dentre eles, a cidade Chesf.

Deixar o abastecimento da vila e o comércio, de um modo geral, aos cuidados de particulares, constitui a tendência mais recente entre as empresas [...]. Esta tendência se manifesta, desde a década de 80, tanto nas vilas mais recentes (em que o abastecimento vem sendo implantado, a partir do início129, desta forma) quanto nas vilas mais antigas, através da transferência da gestão, da empresa para particulares, ou para cooperativas dos próprios funcionários. Foi o que ocorreu em Cana Brava, em Vila Amazonas e em Paulo Afonso. ( FARAH; FARAH, 1993, p. 73) A unificação urbana promovida através da abertura da cidade Chesf, trouxe algumas mudanças para a vida da população, que antes se dividia entre chesfianos e a comunidade da Poty, compartilhando, nesse momento, do mesmo espaço como será visto adiante com maiores detalhes.

milhares de técnicos dos cursos de Mecânica, Eletrônica e Eletrotécnica. Esta escola formou diversos profissionais chesfianos, mas atualmente se encontra desativada e cedeu espaço aos cursos ministrados pela Universidade do Vale do São Francisco ­ UNIVASF. Outrossim, a CHESF também desativou a sua "fazenda escola", a qual foi criada na gestão do presidente Apolônio Sales e que abastecia o seu restaurante e a população do Acampamento, além de ensinar o cultivo em solo do semiárido. 128 Conforme será detalhado no quarto capítulo deste trabalho. 129 Como as experiências precursoras da Cesp a partir de 1967 em Ilha Solteira, relatadas no capítulo 1. 135

CAPÍTULO 3

A CIDADE DA CHESF: Espacializações do trabalho e do controle

136

3.1 AS USINAS DA CHESF E A TRANSFORMAÇÃO TERRITORIAL DE PAULO AFONSO

A partir da composição da CHESF, em 1948, o engenheiro Octavio Marcondes Ferraz, diretor técnico da empresa130, formou a sua equipe técnica, constituída por engenheiros e desenhistas, responsáveis pelo desenvolvimento dos projetos executivos e pelo gerenciamento das obras civis e eletromecânicas, já que a Companhia não contratou empreiteiras durante as obras das primeiras usinas, sempre contando com equipe própria e especializada, além de um grande número de técnicos de nível médio e operários já na obra da primeira hidroelétrica de Paulo Afonso.

A obra foi feita sem empreiteiros: compramos o equipamento central de concreto, compressores, tudo o que era preciso, e fizemos nós mesmos. Foi uma coisa de morte! [...] Mas, para se fazer uma concorrência honesta, tem­ se de desenhar até o último parafuso, sem o que não se pode saber se virá um parafuso de prata, de platina ou de ferro. Para se elaborar um projeto detalhado são precisos dois anos, e acabaria o governo Dutra sem que tivéssemos construído nada. Então montei o projeto básico ­ chamava­se assim ­ e, com um pouco de coragem, atacamos a obra ainda desenhando os detalhes na medida das necessidades do andamento dos trabalhos. Se não encaixassem, daria um galho danado!(apud CENTRO, 1993, p. 103) Quando interpelado sobre a forma de contratação de sua equipe técnica, o engenheiro Octavio Marcondes Ferraz esclareceu o seguinte:

Como fiz a vida inteira, publicando anúncio, perguntando, convidando alguns e selecionando outros que nos procuravam, porque muitos sabiam que havia trabalho e apareciam. Nomeei todos os meus diretores e assistentes sem sofrer qualquer interferência política. O governo Dutra estava interessado na obra e viu que, se começasse a haver intervenção, as coisas não andariam. Assim, tomei engenheiros para meus assistentes, um para engenharia civil, um para engenharia eletromecânica e um para direção de obras. O primeiro assistente que tratei, como disse anteriormente, foi o Domingos Marchetti131, que era especialista em túneis. E foi muito interessante ter esse engenheiro em Paulo Afonso, porque decidimos construir a usina subterrânea e tivemos que fazer um trabalho de túneis ­ isto

130 O engenheiro Octavio Marcondes Ferraz foi um engenheiro eletricista, formado 1918 no Instituto de Engenharia Eletrotécnica de Grenoble na França. "[...] Ao lado de Antônio José Alves de Sousa, de Carlos Berenhauser Júnior e de Adozindo de Magalhães, compõe a primeira diretoria da Chesf, assumindo o cargo de diretor técnico, em cujo exercício torna­se o responsável pela construção da hidrelétrica de Paulo Afonso, considerada a maior obra da engenharia nacional até então executada [...]". Por outro lado, Octavio Marcondes Ferraz era filiado à União Democrática Nacional (UDN) e mantinha relações com participantes de movimentos da aeronáutica de oposição ao governo de Kubitschek ─ um desses movimentos foi a conhecida Revolta de Jacareacanga, deflagrada em 11 de fevereiro de 1956. Entretanto, Marcondes Ferraz negou envolvimento nesse movimento, alegando que apenas ajudou financeiramente determinado oficial, o major Haroldo Veloso, em momentos difíceis. Este episódio contribuiria para sua saída da empresa em 1961. (CENTRO, 1993, p. 158). 131 Domingos Marchetti foi um engenheiro italiano radicado no Brasil, que foi essencial no processo de abertura dos túneis nos maciços rochosos de Paulo Afonso. Marchetti em pouco tempo concluiu que as usinas de Paulo Afonso podiam ser subterrâneas devido à satisfatória opacidade da rocha e à sua quase impermeabilidade, tendo supervisionado os trabalhos de escavações das usinas (apud CENTRO, 1993, p. 123). 137

não estava definido na ocasião em que o contratei. Depois tratei o Júlio Miguel de Freitas, o Dermeval Resende, que foi o engenheiro de obras ­ esses dois nos procuraram ­, o Jason Marques, o Cyril lwanow, o Bujnik ­ gente russa, gente eslava ­ e o Hermínio Kerr, que atualmente está nos Estados Unidos. Esses são os principais. (apud CENTRO, 1993, p. 111) Logo após, o direto técnico Marcondes Ferraz fala como contratou os operários das obras:

[...] Tivemos cinco mil homens. Alguns já haviam trabalhado em outras usinas, e os que não conheciam o serviço, a gente ia ensinando na obra mesmo, e eles aprendiam com facilidade. Ensinar um sujeito a bater um martelete, precisava­se ensinar sempre." (apud CENTRO, 1993, p. 113) A constituição de uma equipe tão especializada foi fundamental para o empreendimento que se pretendia, considerando que as obras das três primeiras hidroelétricas se constituíram como laboratórios de experimentações da moderna engenharia. A princípio, a sua equipe técnica encontrou grandes dificuldades para implementar o projeto das usinas, pois se depararam com uma situação geográfica desafiadora do ponto de vista dos obstáculos naturais e também de natureza técnica e tecnológica132.

A partir de 1949, o início da construção da Usina Hidroelétrica de Paulo Afonso instigou expedientes criativos e penosos, principalmente, porque, de acordo com a solução criada por Marcondes Ferraz, foram escavados os túneis, poços e a sala de turbinas em grandes maciços rochosos133, com grande compacidade, além de que não havia cimento suficiente no Brasil, dificultando o suprimento desse material à obra.

Figuras 37 e 38 ─ Escavoqueiros

Fonte: Memorial CHESF (1950)

132 Cf. APÊNDICE A. 133 As pedras extraídas desses maciços eram britadas e utilizadas na concretagem da obra, tendo sido montada uma estação de concreto no local, facilitando a logística (ALVES DE SOUZA, 1955). 138

Nas Figuras 37 e 38, vê­se grupos de trabalhadores134, no início da obra, chamados de escavoqueiros135, na sua rotina cotidiana de perfuração dos túneis, sendo submetidos à grande jornada de trabalho136 em função dos desafios colocados à época. Conforme Alves de Souza (1955, p. 21), "dois eram os problemas do projeto de Paulo Afonso, cujas soluções apresentavam dificuldades especiais", referindo­se às escavações subterrâneas e ao grande desafio de domar a força da correnteza do rio, etapa necessária à construção da barragem móvel das usinas, o que acarretou na busca de soluções técnicas inusitadas, experimentações técnicas e tecnológicas, transformando aquela obra num verdadeiro laboratório com a construção de modelos reduzidos que simulavam as probabilidades nos desvios e barragens137.

Posteriormente ao fechamento total do braço principal do rio, aproximadamente, em um ano foram concluídas as comportas e constituída a bacia de decantação da Usina Paulo Afonso. A barragem do rio e a formação do reservatório transformaram o território, mudando a paisagem natural, pois diversos arquipélagos138 foram inundados parcialmente, dentre eles, os maiores eram a Ilha da Tapera e Ilha do Izidro.

3.1.1 As três primeiras usinas e a expansão urbana

Com o término da construção da primeira usina em 1955, o conjunto contava com as barragens móveis, o reservatório de adução, a sala subterrânea de máquinas e as edificações que abrigavam os transformadores, salas de comandos, as subestações e demais instalações eletromecânicas.

As obras das três primeiras usinas se estenderam até 1971, quando entrou em operação a usina PA III. Em sequência, houve ampliação do número de edificações, túneis e outras casas de máquinas subterrâneas, bem como incremento da maquinaria relacionada ao grupo de geradores da usina PA III até 1974.

Durante a construção da primeira usina hidroelétrica da Chesf, essas obras atraíram grande contingente de trabalhadores e pessoas motivadas pelo empreendimento. Segundo

134 Apesar da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ter ocorrido em 1943, com o intuito de unificar a legislação trabalhista brasileira, apenas em 1978 foram aprovadas as normas regulamentadoras (NR) de segurança no trabalho, sendo visível (na foto) que os trabalhadores não dispunham de equipamentos de proteção individual. 135 Os operários também eram chamados, pejorativamente, de "cassacos". Não se sabe a origem desse apelido. 136 Nesse caso, a extensão da jornada de trabalho, que durava 24 horas, devia­se à urgência na aceleração da obra por fatores políticos relacionados a possíveis mudanças de governo e política energética, já comentados no Capítulo 2. 137 Cf. APÊNDICE A. 138 Vide APÊNDICE B ­ Mapa 1. 139

dados da empresa, no fim de 1949 ─ um ano após a sua instalação ─, Paulo Afonso já possuía mais de 6 000 habitantes; entre 1950 e 1955 a companhia mantinha cerca de 4 500 pessoas139 residentes em seu Acampamento, em contrapartida a Vila Poty em 1950140 já tinha 10 000 habitantes e, até a sua emancipação política, em 1958 já possuía mais de 13 000 residentes141. A cidade da Chesf sofria ampliações em função da expansão de seu complexo de usinas em Paulo Afonso e, ao mesmo tempo, o território também era moldado142 à medida que os lagos e reservatórios eram constituídos.

Figura 39 ─ Barragens e reservatório formado

Fonte: Memorial CHESF (1956)

Até 1955, quando a primeira usina foi inaugurada, a cidade da Chesf já tinha grande parte de seu conjunto urbano formado, contando com as vilas segregadas por função e diversos equipamentos comunitários, além da área do centro de serviços do Acampamento, onde se encontravam as edificações da administração e manutenção. Por outro lado, a Vila Poty estava se desenvolvendo rapidamente, mas ainda sem infraestrutura básica143.

139 Cf. ALVES DE SOUZA, 1955, p. 18. 140 Cf. IBGE, 1958. 141 Cf. CHESF, 1998, p. 27. 142 Vide APÊNDICE B ­ Mapa 1. 143 Vide APÊNDICE B ­ Mapa 2A e 2B. 140

No lado de Alagoas, a Chesf também implantou uma pequena vila como suporte à obra da Usina Paulo Afonso. Segundo Alves de Souza (1955, p. 18):

O Acampamento é dividido em dois grupos, o Acampamento Alagoano, que fica no Estado de Alagoas, à margem esquerda do Braço Principal do rio e o Acampamento Baiano, que fica no Estado da Bahia, à margem direita do Braço da Salina, separado um do outro pelo arquipélago onde se assentou a usina. O Acampamento Baiano é uma verdadeira cidade, dotada de confôrto e das comodidades básicas essenciais a um padrão de vida razoável. No Acampamento Alagoano há 15 casas residenciais, um ambulatório e vários galpões para depósito. Figura 40 ─ Casas de comando e subestação

Fonte: Memorial CHESF (1962)

Figura 41 ─ Casa de comando

Fonte: Memorial CHESF (1954) 141

Figura 42 ─ Área do pátio de transformadores

Fonte: Memorial CHESF (1954)

No período entre 1955 e 1971, que corresponde ao período de construção e operação de mais duas usinas ─ Paulo Afonso II e Paulo Afonso III ─ a cidade Chesf sofre mais alguns incrementos de casas e alojamentos nas suas vilas144.

Percebe­se, portanto, que o crescimento de seu núcleo urbano se relacionava à ampliação de seu empreendimento. Cabe também observar que os investimentos na sua cidade tinham relação com o montante de recursos disponibilizados pelas políticas governamentais para a realização das hidroelétricas, que requeriam um alto nível de aplicação tecnológica, demandando volumosos recursos. Relacionando­se a esta ideia, Farah e Farah (1993, p. 66) observavam que: "[...] A tecnologia exigida condiciona o montante de investimentos, refletindo­se, de forma indireta, no padrão dos equipamentos oferecidos aos empregados. [...]".

144 Vide APÊNDICE B ­ Mapa 3A e 3B. 142

Figura 43 ─ Usinas PA I, PA II e PA III

Fonte: CHESF (2015)

3.1.2 A Usina Moxotó e a construção de novas vilas

Em 1971, quando foram iniciadas as obras da Usina Moxotó (atual Apolônio Sales), foi necessário a contratação de novos funcionários graduados e de nível médio. Foram construídas duas novas vilas para funcionários de nível médio que trabalhariam na construção dessa quarta usina, uma no lado baiano, chamada de Vila Moxotó Bahia e a outra, no lado alagoano, chamada de Vila Moxotó Alagoas145. Os engenheiros foram destinados à vila da categoria na company town.

Nesse tipo de empreendimento, as vilas de funcionários são construídas em concomitância à instalação do canteiro de obras. Nesse caso, as vilas de Moxotó se encontravam próximas das subestações que foram construídas nos lados baiano e alagoano. Nessas vilas, atualmente, moram outras famílias não chesfianas, principalmente, a Vila Moxotó Bahia, que se expandiu sobremaneira, contando com infraestrutura completa e localizando­se fora dos limites da ilha de Paulo Afonso.

O projeto de Moxotó está relacionado à necessidade de ampliação do primeiro reservatório, pois não havia capacidade suficiente para armazenar o volume de água necessário à operação das três usinas simultaneamente. Assim, construiu­se uma nova represa

145 Vide APÊNDICE B ­ Mapa 3A e 3B. 143

a montante e com maior capacidade de reserva, a qual, além de abastecer as três usinas, também guarnece a Usina Moxotó146, de modo que a água turbinada em suas máquinas aciona também as Usinas de Paulo Afonso I, II e III (CHESF, 2015f).

Nesse período, o bairro General Dutra foi sofrendo ampliações e, na sua adjacência, foi construído o bairro Oliveira Brito, o qual foi destinado ao abrigo de novos engenheiros; o pessoal de nível médio ocupou novo conjunto de casas construídas na Vila Operária147.

A Vila Poty também se encontrava em processo de melhorias urbanas, devido ao papel da economia promovia pelo comércio local, conforme será visto adiante.

Figura 44 ─ Barragem e reservatório da Usina Moxotó

Fonte: CHESF (2015)

Além da barragem e do reservatório, no conjunto da Usina Moxotó foi incluída uma ligação viária (controlada) entre os Estados da Bahia e Alagoas. A usina dispõe de pavilhão de máquinas e controle, áreas ajardinadas, estacionamentos para os funcionários, e guaritas de controle em suas extremidades. A partir da construção desse reservatório, seriam realizadas outras mudanças no território municipal, quando houve a necessidade de ligação dessa reserva hidrográfica com a última PA IV.

146 Apesar de inaugurada em 1978, começou a operar em abril de 1977. Segundo a CHESF (2015f): "O represamento de Moxotó consta de uma barragem mista terra­enrocamento, com altura máxima de 30 m e comprimento total da crista de 2.825m, associado às estruturas de concreto tais como: 01 (um) descarregador de fundo, 01 (um) vertedouro com descarga controlada dotado de 20 comportas do tipo setor, com capacidade máxima de descarga de 28.000 m3/s e casa de força com 4 unidades geradoras, acionadas por turbinas Kaplan, cada uma com 100.000 kW, totalizando uma potência instalada de 400.000 kW." 147 Vide APÊNDICE B ­ Mapa 4. 144

Figuras 45 e 46 ─ Pavilhão da Usina Moxotó

Fonte: CHESF (2015)

3.1.3 A Usina Paulo Afonso IV e a ilha

Acontece que o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) que iria financiar 30 milhões de dólares do projeto, estava com outro estudo hidrológico do rio que indicava uma vazão decamilenar148 de 33.000 metros cúbicos por segundo. Como os vertedouros149 das Usinas Paulo Afonso I, II e III não foram construídos para operar com um fluxo d'água dessa ordem, foi necessário se projetar a construção de um canal no contorno da Vila Poty para que a vazão de 7.000 metros cúbicos por segundo excedente fosse extravasada a partir do reservatório da Hidrelétrica Apolônio Sales. (SOUZA, 2012, p. 155, grifos nossos) Ainda segundo Souza (2012, p. 155), a ideia150 de construção desse canal foi considerada "genial porque, além de encontrar a solução para o problema da vazão decamilenar", também "permitiu que a Usina Paulo Afonso IV151 fosse construída no aproveitamento do desnível de 115 metros da queda d'água no cânion do Rio São Francisco".

Com o início da operação da Usina Paulo Afonso IV em 1979 e de sua conclusão em 1983, quando se instalou o seu último gerador, completou­se o complexo hidroelétrico de Paulo Afonso, sendo constituído assim pelas Usinas PA I, PA II, PA III, pela Usina Moxotó (atual Apolônio Sales) e pela Usina PA IV. Esse complexo marcou a história da cidade, dando­lhe uma identidade relacionada à produção de energia elétrica, ficando conhecida

148 Decamilenar se refere, neste caso, a maior cheia do rio no período de dez mil anos. 149 Vertedouro consiste num dispositivo de segurança em barragens, servindo como sistema de escape do excesso de água, impedindo a passagem da água por cima da barragem quando ocorrem cheias no rio. 150 A ideia desse canal foi do engenheiro José Mário Ramagem, componente da equipe da segunda diretoria técnica da CHESF (SOUZA, 2012, p. 155). 151 Segundo a CHESF (2015g): "O represamento de Paulo Afonso IV é constituído de barragens e diques de seção mista terra­enrocamento num comprimento total de 7.430 m e altura máxima de 35,00 m; estruturas de concreto num cumprimento total de 1.053,50m compreendendo: vertedouro com 8 comportas tipo de crista/controlado, com capacidade de descarga de 10.000 m3/s, tomada d'água, casa de máquinas do tipo subterrânea com 6 unidades geradoras cada uma, com capacidade nominal de 410.400 kW, totalizando 2.462.400 kW." 145

também como a "capital da energia". No início das obras da usina PA IV em 1972, a Chesf construiu a última vila na sua company town, denominada de Vila Nobre152 e destinada à abrigar os técnicos de nível médio que trabalhariam nessa hidroelétrica.

Figuras 47 e 48 ─ Usina PA IV e a sua via de serviços

Fonte: CHESF (2015)

Com relação à construção da Usina PA IV, ao contrário das outras usinas do complexo hidroelétrico de Paulo Afonso, sua execução ficou sob responsabilidade de empreiteiras153. Nesse momento, a empresa já se voltava à sua atividade­fim, terceirizando as atividades­meio, limitando­se ao planejamento e fiscalização de suas obras.

Figuras 49 e 50 ─ Usina PA IV e seus blocos de operações

Fonte: CHESF (2015)

152 Cf. APÊNDICE B ­ Mapa 4A e 4B. 153 A CETENCO ficou responsável pela execução das obras civis da Usina PA IV e montagem dos condutos forçados, e a TENENGE ficou responsável pela montagem eletromecânica das turbinas e geradores da casa de máquinas, sendo que coube a CHESF apenas a fiscalização dos serviços das obras (SOUZA, 2012, p. 157). 146

Por outro lado, a construção do canal da Usina PA IV foi o evento definitivo na transformação do território ocupado pelo Acampamento da CHESF e pela Vila Poty, pois estes primeiros núcleos urbanos ficaram ilhados. Portanto, grande parte da cidade situou­se abaixo do nível do canal dessa usina ─ cerca de 30 metros na cota mais alta ─ e seu barramento se apresenta como uma espécie de muralha cercada por águas do canal e dos reservatórios154.

A partir desse momento, houve a necessidade de construção de pontes de acesso à cidade, a qual passou a ser um artefato urbano produzido pela Chesf ou, pelo menos, teve a sua paisagem urbana vinculada, simbolicamente, ao negócio da empresa. Nesse sentido, isolou­se a parte original da cidade dos bairros periféricos que se formaram, posteriormente, fora da ilha155.

A percepção da cidade mudou, passando de uma cidade situada à margem de um rio para uma cidade sitiada pelos reservatórios das usinas, tendo parte de seu território cercado pela muralha da PA IV.

Figura 51 ─ A ilha de Paulo Afonso e os reservatórios das usinas

Fonte: Composição do autor a partir de imagem do Google Earth Pro (2016)

154 Cf. APÊNDICE B ­ Mapa 4A e 4B. 155 Alguns moradores desses bairros periféricos se referem ao centro da cidade (antiga Vila Poty e Acampamento da Chesf) como "ilha". 147

Figura 52 ─ Vila Poty, a muralha e reservatório da Usina PA IV

Fonte: CHESF (2014)

Figura 53 ─ Muralha da Usina PA IV a partir do plano da cidade

Fonte: Foto do autor (2014)

148

Figura 54 ─ Reservatório da Usina PA IV e a ilha

Fonte: CHESF (2014)

O tráfego de veículos nas vias de serviço das usinas (PA IV e Apolônio Sales) só era permitido aos funcionários autorizados e em serviço. Por sua vez, o acesso autorizado à ilha se faz através da ponte de concreto protendido, construída acima do canal da PA IV, e controlado através do posto da polícia militar.

Figuras 55 e 56 ─ Ponte de acesso sobre o canal da Usina PA IV

Fonte: Google Earth Pro (2015)

A transformação territorial de Paulo Afonso é uma expressão ou uma forma derivada da construção do empreendimento da Chesf, ali a companhia imprimiu a sua marca.

149

3. 2 A CONSTITUIÇÃO DA CIDADE DA CHESF

O modelo clássico de vila de empresa ou Company Town se apóia em projeto que define uma estrutura espacial fechada, mera extensão da atividade produtiva. [...]. As vilas de Rondônia, do Amapá, a de Cana Brava e as de Paulo Afonso e Tucuruí, de apoio a hidroelétricas, obedeceram a projetos com estas características, tendo sido concebidas como vilas fechadas. [...]. (FARAH; FARAH, 1993, p. 78, grifo nosso) O Acampamento da Chesf enquanto modelo de assentamento urbano se caracterizou como uma clássica company town, guardando as suas particularidades que lhe conferem uma história que não se encerrou nesse paradigma.

Quanto ao seu fechamento, essa cidade­companhia utilizava­se de cercas e muros, bem como de guaritas de vigilância e controle com a justificativa de proteção de seu patrimônio e funcionários. A comunidade desse acampamento era automatizada por rotinas, entre produção e lazer, supervisionadas pela empresa que, por outro lado, disponibilizava bons equipamentos e boas condições de vida aos seus funcionários, preservando o isolamento do núcleo, já que se evitava as interações com a cidade­livre ─ a Vila Poty.

Quanto à sua estrutura urbana, o Acampamento da Chesf foi fragmentado por setores: o habitacional foi segregado através de vilas por categorias de funcionários; o setor de serviços e administração; pela fazenda Chesf e pela área das hidroelétricas.

Sobre outro aspecto, segundo Farah e Farah (1993, p. 79) é comum verificar a inadequação dos projetos urbanísticos e arquitetônicos em relação às condicionantes das regiões de implantação dos núcleos urbanos produzidos por empresas, bem como se verifica o contraste desses assentamentos urbanos em relação à arquitetura e urbanismo espontâneos das cidades­livres. Em Paulo Afonso, esse contraste em termos de forma e estrutura espacial urbana é patente em relação à Vila Poty. Entretanto, cabe observar que, do ponto de vista dos materiais e das soluções construtivas utilizadas em geral nas edificações do Acampamento da Chesf, percebe­se que os projetistas tentaram adequar as construções ao clima quente da região, utilizando­se de alpendres, avanços de cobertura constituídas por telhados cerâmicos, janelas com sistema de venezianas e disseminou­se a "pedra" como material que marcou aquela arquitetura, pois se tratava de um recurso abundante na região, e que estava também disponível como material retirado dos grandes maciços rochosos na construção da Usina de Paulo Afonso. 150

3.2.1 O plano

Com a instalação do canteiro de obras da Usina Hidroelétrica Paulo Afonso em 1948, foi necessário o imediato projeto e construção do Acampamento da CHESF para os seus funcionários, que se encontravam em alojamentos provisórios. A localidade destinada à implantação do empreendimento estava distante de qualquer centro urbano e as estradas de acesso eram ruins ou inexistentes, dificultando os deslocamentos. Em cerca de um ano, após a chegada da companhia em Forquilha, a primeira fase do assentamento foi concluída.

Particularmente, a cidade Chesf foi projetada para ser uma cidade completa, constituída não apenas por moradias para os seus trabalhadores, mas também dispondo de equipamentos destinados à suprir as necessidades cotidianas de sua população, constituindo­se como um modelo capaz de atrair e motivar a permanência dos trabalhadores da industria. Nesse sentido, era fundamental que os trabalhadores, especialmente os funcionários graduados ─ que eram oriundos dos centros urbanos mais desenvolvidos ─ tivessem disponibilidade de bons equipamentos e moradias, já que nas suas cidades de origem156 tinham acesso às facilidades da vida moderna, ou seja, a disponibilidade de boas moradias e equipamentos era uma condição necessária à fixação desse pessoal no acampamento da empresa.

O modelo planificado seguiu uma lógica de ordenamento e hierarquização arquitetônica e urbanística, conforme extratos de classes sociais bem definidas. A organização espacial desse assentamento foi baseada num plano estruturado hierarquicamente não apenas em relação ao seu sistema viário, mas em correspondência aos equipamentos e moradias de forma categorizada, ou seja, por nível de função que os funcionários ocupavam na empresa. O Acampamento foi segregado em três vilas: Vila Operária, destinada aos operários selecionados157, Vila Alves de Souza, destinada aos técnicos de nível médio, e a vila destinada aos engenheiros, médicos, advogados e demais funcionários titulados e da diretoria da companhia que ficou conhecida como Bairro General Dutra158.

[...] O projeto do Acampamento previa a construção de três vilas ou bairros, dotados de toda a infra­estrutura básica como água, energia, telefone, esgoto, etc. A primeira, a Vila Operária, para abrigar os operários, a segunda, a Vila Alves de Souza, para os funcionários de formação média e finalmente a terceira, o Bairro General Dutra para os funcionários mais graduados. [...] (REIS, 2004, p. 21)

156 A maioria dos funcionários graduados era oriunda de cidades do sudeste do país, onde dispunham de maiores facilidades de sobrevivência. 157 Grande parte dos operários não conseguiu moradia dentro do Acampamento da CHESF, permanecendo na Vila Poty. 158 Cf. APÊNDICE B ­ Mapas. 151

De acordo com as diretrizes da Diretoria Técnica da Chesf, o programa básico do conjunto planejado para construção da cidade­companhia previa: vias hierarquizadas com traçado radial e concêntrico que articulam os equipamentos urbanos e subdividem as zonas; um conjunto de praças, áreas verdes e lagos artificiais; segregação entre vila operária e vilas dos técnicos e engenheiros; cinturão de casas construídas de forma isolada em seus respectivos lotes; baixa densidade construtiva; áreas administrativas entre as vilas; clubes (dos operários e dos trabalhadores titulados); centro médico; hangar e campo de aviação; casa de hospedes; mercado; armazém; padaria; escolas; agência bancária; agência dos correios; farmácia; centro médico dentre outros equipamentos.

Outro aspecto peculiar do plano diz respeito à proximidade do Acampamento com a área de produção, sendo um fator estratégico da empresa, pois facilitava o deslocamento de seus trabalhadores e a disposição ao trabalho de acordo com a conveniência da Companhia. Além disso, este tipo de organização e arranjo dos espaços concorria para criação de nexos entre as atividades produtivas, sua logística e as demais práticas do cotidiano.

Figura 57 ─ Plano Geral ­ usinas, reservatório e Acampamento da Chesf

Fonte: Alves de Souza (1955) 152

Figura 58 ─ Vila Operária na década de 1950

Fonte: Memorial CHESF (1953)

Figura 59 ─ Vila Operária e Vila Alves de Souza na década de 1950

Fonte: Composição do autor a partir de foto cedida pelo Memorial CHESF (1953)

153

Figura 60 ─ Vila Operária e Bairro General Dutra na década de 1950

Fonte: Composição do autor a partir de foto cedida pelo Memorial CHESF (1954)

Figura 61─ Vila Alves de Souza na década de 1950

Fonte: Memorial CHESF (1958)

154

Figura 62 ─ Bairro General Dutra em fins da década de 1950

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Na segunda metade da década de 1950, a malha viária a cidade da Chesf foi pavimentada, utilizando­se de paralalepípedos de pedras, e os passeios foram executados, trazendo a segregação entre carros e pedestres como qualquer cidade moderna. Por sua vez, as praças, os canteiros, as áreas verdes, os lagos artificiais159 e, em especial, o Parque Belvedere160 foram responsáveis pela criação de um microclima próprio no Acampamento.

Com suas ações humanitárias, ele161 criou áreas de lazer através da implantação de um jardim zoológico, embelezamento de praças com arborização de árvores de grande porte, ornamentação de taludes com pedras naturais e flores provenientes de outras regiões, urbanização da Ilha do Urubu e construção de trinta e seis lagos. Graças a sua ação, a temperatura ambiente se tornou mais amena, e os logradouros ficaram com maior beleza [...] (SOUZA, 2012, p. 151)

159 Cf. APÊNDICE B ­ a partir do Mapa 2. 160 O Parque Belvedere foi inaugurado em 1958, ainda no período da primeira diretoria da CHESF, incorporando em sua área o monumento ao presidente e à diretoria pioneira, encontrando­se próximo do reservatório das primeiras usinas. 161 Souza (2012) se refere ao engenheiro Amaury Alves de Menezes que ocupou o cargo de diretor técnico (na segunda diretoria) entre 1962 e 1972. Ele também foi o responsável pela construção do "modelo reduzido" das três primeiras usinas e do Acampamento da CHESF, o qual está situado na área do antigo Centro de Formação Profissional de Paulo Afonso ­ CFPPA. 155

Figura 63 ─ Parque Belvedere e o reservatório da Usina Paulo Afonso

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Figuras 64 e 65 ─ A vegetação do Acampamento da Chesf

Fonte: Fotos do autor (2012)

156

Figura 66 ─ Pavimentação do Acampamento da Chesf na década de 1950

Fonte: Memorial CHESF (1957)

Na configuração espacial do Acampamento houve um aproveitamento das curvas de nível topográficas, ou seja, os arruamentos foram realizados seguindo os desníveis e, assim, facilitou­se a drenagem das águas nas ruas e praças, conformando a sua malha harmonicamente com a topografia natural. Ademais, desfrutava­se de água canalizada, iluminação e rede de esgoto, além dos serviços de limpeza e de manutenção das áreas públicas e de suas unidades, realizadas por equipe da própria companhia.

3.2.2 Unidades de saúde

A Chesf mantinha duas unidades de saúde: o Hospital Nair Alves de Souza162, com atendimento médico e ambulatorial, além de internamento, serviços odontológicos, pequenos procedimentos cirúrgicos e contava com farmácia e análises clinicas; e o Posto de Puericultura163, o qual era dedicado às ações pré­natais e à prevenção de enfermidades e anormalidades que se desenvolvem no feto, além de ser um centro de distribuição de leite para as famílias dos chesfianos.

162 O Hospital Nair Alves de Souza recebeu esse nome em homenagem à esposa do primeiro presidente da CHESF, tornando­se um hospital regional, ainda em funcionamento, atendendo a população citadina e de cidades circunvizinhas. Em 2015, a CHESF transferiu a titularidade do imóvel e gestão dos serviços do HNAS para a Universidade Federal do São Francisco (UNIVASF) com a finalidade de se tornar um hospital universitário. 163 O posto funciona hoje como unidade da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). 157

As duas edificações se apresentavam com uma linguagem arquitetônica semelhantes entre si, guardadas as suas particularidades. Nesses equipamentos, foram utilizadas coberturas constituídas por duas águas com telhas cerâmicas; alpendres sob os avanços dos telhados que ressaltavam lambrequins de madeira; fenestrações distribuídas em todo o perímetro, com esquadrias de madeira constituídas por venezianas e bandeiras envidraçadas, aproveitando­se da iluminação e ventilação naturais que proporciona ambientes arejados, e o uso de cobogós de cimento no caso da Puericultura; uso da pedra e tijolos cerâmicos como materiais para alvenaria e revestimento aparente. Esses elementos e soluções construtivas, bem como os materiais serão repetidos164 em todo o Acampamento, com algumas variações.

Figuras 67 e 68 ─ Hospital Nair Alves de Souza

Fonte: Memorial CHESF (1957)

Figuras 69 e 70 ─ Posto de Puericultura

Fonte: Memorial CHESF (1953)

164 Assim, limitar­se­á a realizar outras observações referentes aos objetivos desse trabalho. 158

Figuras 71 e 72 ─ Unidades móveis de saúde

Fonte: Memorial CHESF (1950 à esquerda e 1953 à direita)

Segundo o presidente pioneiro da companhia Antônio José Alves de Souza, no início da construção do Acampamento foi pleiteado um montante de recursos ao Governo Federal, durante a presidência de Eurico Gaspar Dutra, para construção de um hospital165 e de um hotel. Por conseguinte, após aprovação do pleito, as edificações foram construídas até a fase de superestruturas de concreto armado. Porém, como os recursos acabaram após esta etapa, em 1951, as obras ficaram paralisadas. Assim, foi necessário ampliar as dependências do Hospital Nair Alves de Souza, que ganhou novas instalações e equipamentos.

Diante da paralização das obras do Hospital do Govêrno, a CHESF teve de ampliar o seu pequeno ambulatório, que é hoje um hospital que, embora modesto, dispõe de boa sala de operações, de laboratórios para os exames mais necessários, aparelhos de Raio X, enfermaria e Maternidade, além de isolamento para moléstias contagiosas e um pequeno sanatório para tuberculosos. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 47) Até fins da década de 1960, a edificação que seria destinada ao hospital foi concluída, embora tenha sido destinada a outro fim, ou seja, foi adaptada para o que veio a ser a Primeira Companhia de Infantaria do Exército Brasileiro.

Figuras 73 e 74 ─ De Hospital à Quartel do exército

Fonte: Memorial CHESF (1956 e 1960)

165 Esse hospital foi projetado pelo arquiteto baiano Diógenes Rebouças (ANDRADE JUNIOR, 2012).

159

A chesf não limitou os seus cuidados com a higiene e com a saúde ao seu Acampamento, tendo em conta que muitos de seus operários residiam na Vila Poty e era necessário conter as epidemias de malária e outras doenças que ameaçavam a região e, por conseguinte, a saúde de seus trabalhadores, evitando baixas na produção e impedindo a proliferação de doenças em sua área de domínio. Assim, alguns dos residentes da Poty tinham acesso ao hospital da empresa.

3.2.3 A oficina artesanal feminina

A Companhia mantinha uma escola de artesanato administrada, em sua área de serviços, por Marieta Ferraz166, cujo trabalho estava relacionado à educação e à organização da produção das artesãs ─ esposas e filhas de operários ou moradoras da Vila Poty ─, as quais não dispunham de outra renda ou que complementavam a renda familiar com esse trabalho.

A escola de artesanato, que se tornou o Artesanato Nossa Senhora de Fátima, fornecia produtos de artesanato como bolsas, objetos de palha, rendas e bordados e também o fardamento dos funcionários da Chesf (JUCÁ, 1982, p. 82­83). Além disso, a oficina de costura do Artesanato também fabricava roupas que eram distribuídas gratuitamente, em época natalina, pela companhia aos seus operários.

O Artesanato estava localizado no Centro de serviços da Chesf, próximo dos escritórios e do Hospital Nair Alves de Souza, sendo idealizado por Marieta Ferraz, que também comercializava os produtos produzidos nessa oficina: "artigos tão finos, de tanto bom gosto, que passaram a ser vendidos, através dela, em Estocolmo, New York, Paris, bordados de Florença, rendas de Bruxelas e de Veneza" (JUCÁ, 1982, p. 83).

166 Marieta Marcondes Ferraz foi a esposa do diretor técnico Octavio Marcondes Ferraz. 160

Figura 75 ─ Atividades no Artesanato Nossa Senhora de Fátima

Fonte: Memorial CHESF (1956)

Figura 76 ─ Marieta Ferraz doando roupas produzidas no artesanato

Fonte: Memorial CHESF (1952)

3. 2.4 A religião, a educação e o tempo na cidade da CHESF

A Igreja estava presente no espaço da produção, na escola e no ambiente propriamente dito eclesiástico. Concomitante à construção das moradias do Acampamento, já em 1949, 161

iniciou­se a construção de uma igreja em homenagem a São Francisco de Assis e em referência ao rio que trouxe a razão de ser da empresa e de sua cidade.

Após o fechamento da primeira metade do braço do rio167 e já com o andamento da construção das bases das comportas, no dia 04 de outubro de 1953, dia de São Francisco de Assis168, foi construído um altar sobre a soleira da comporta e celebrada uma missa católica, glorificando a superação de mais uma etapa do trabalho de fechamento do rio. Percebe­se a crença em valores religiosos no discurso do presidente da Chesf na época, ao narrar este episódio:

Tais trabalhos exigiram competência e um gráu excepcional de dedicação, de senso de responsabilidade e de espírito de sacrifício. Foi um trabalho gigantesco, hercúleo, que honrará para sempre o corpo técnico desta Companhia, nêle incluidos não sòmente o Diretor Técnico da CHESF e os engenheiros que com êle cooperaram mas também os mestres e os operários que ali atuaram [...] no dia 4 de outubro de 1953, dia de São Francisco de Assis, e ali, durante a missa celebrada em altar erguido sôbre a soleira, elevaram uma fervorosa prece a Deus de ação de graças pelo êxito alcançado em trabalho de tanta responsabilidade e de execução tão penosa. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 30, grifos nossos) Figuras 77 e 78 ─ Missa católica celebrada na soleira da comporta em 1953

Fonte: Memorial CHESF (1953)

A atuação da igreja católica, nesse contexto, não se limitou a este evento, pois as missas faziam parte constante dos eventos comemorativos e de inauguração após os términos das etapas da obra. Aliás, a igreja também atuou em outros espaços do cotidiano da comunidade chesfiana, no regime de educação nas escolas do Acampamento e na promoção de eventos

167 Conforme APÊNDICE A. 168 São Francisco de Assis também é o santo padroeiro da cidade de Paulo Afonso, sendo a ele dedicada uma semana de festa religiosa no calendário municipal, além de procissão e intervenções decorativas no espaço urbano.

162

eclesiásticos próprios, dentre eles, as procissões e a tradicional festa169 de São Francisco de Assis.

A Igreja de São Francisco de Assis foi um dos primeiros equipamentos construídos na Vila Operária, sobre uma pequena colina. O entorno imediato da Igreja era formado por um grande largo limitado por vegetação de pequeno e médio portes e pelas casas térreas dos operários nos quarteirões delimitados pelas ruas em torno da colina. Assim, por conta deste aspecto, a Igreja de São Francisco se tornava monumental, apesar de não ter grandes dimensões170.

Figura 79 ─ Procissão na Vila Operária e a Igreja São Francisco

Fonte: Memorial CHESF (1950)

169 A festa de São Francisco ocorre anualmente, no mês de outubro, durando uma semana com a promoção de diversas missas, procissões e shows. 170 A sua nave tem, aproximadamente, 9m quadrados de área útil e o topo de sua torre tem cerca de 9m de altura. 163

Figura 80 ─ Igreja de São Francisco

Fonte: Foto do autor (2015)

Figura 81 ─ Representantes da Igreja e da Chesf na Casa da Diretoria

Fonte: Memorial CHESF (1953) 164

Figura 82 ─ Os dez mandamentos do servidor da Chesf

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Se por uma lado a Igreja supria as necessidades religiosas dos trabalhadores e familiares, agindo na exaltação do trabalho como fator de honradez, por outro lado, a escola operava no preparo dessa comunidade também para o trabalho. Assim, a CHESF oferecia em seu núcleo escolas voltadas à educação básica (primária e ginasial) e à educação profissionalizante.

Nas nossas três Escolas Primárias matricularam­se no corrente ano cêrca de 1.200 crianças, como também acontecera no ano anterior, tendo sido a frequência de mais de 900 crianças. A Companhia, para evitar o constrangimento que às crianças pobres poderia causar uma diferença muito grande de vestuário, lhes dá dois uniformes e um par de calçados por ano. Fornece, diariamente, uma merenda a cada criança. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 48­49) Nas escolas primárias171 ─ Escola Adozindo Magalhães inaugurada em 1949, Escola Murilo Braga inaugurada em 1952 e Escola Alves de Souza também inaugurada em 1952 ─, mantidas pela CHESF, eram admitidas as crianças dos trabalhadores da companhia residentes e não residentes do Acampamento, sendo admitidas também algumas crianças moradoras da Vila Poty, que não tinham pais empregados na empresa. Por outro lado, o Ginásio Paulo Afonso, posteriormente renomeado de Colégio Paulo Afonso (COLEPA), dedicava­se ao

171 Posteriormente, a CHESF construiu outras escolas na sua rede de ensino: a Escola Parque, onde hoje funciona a unidade da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), as Escolas Moxotó I e II, a Escola Boa Ideia (JUCÁ, 1982, p. 78). 165

ensino secundário a partir de 1953, priorizando os alunos que eram filhos de funcionários da empresa, e reservando um pequeno número de vagas aos alunos residentes na Poty.

Segundo Alves de Souza (1955, p. 49), até 1955, o Governo do Estado da Bahia admitiu 11 professoras nas "Escolas Primárias" e a Companhia mantinha o mesmo número de docentes, totalizando 22 professoras em sua rede primária. Nessa época foi construído um alojamento para as professoras na Vila Operária.

Já o professorado do COLEPA era constituído por funcionários da companhia, que ocupavam cargos de engenharia, arquitetura, medicina dentre outras profissões. Além do ensino básico, eram oferecidas também disciplinas extras, de natureza técnica, tais como: técnicas industriais172, técnicas agrícolas, técnicas comerciais e educação para o lar, a última voltada à educação das meninas, que aprendiam tarefas voltadas à subsistência e à administração do lar. Além disso, também fazia parte da grade escolar uma disciplina denominada "Educação Moral e Cívica", que perdurou até o fim do regime militar no país.

Cabe destacar que a disciplina "técnicas agrícolas" era ministrada na Fazenda Escola173, a qual foi implantada por Apolônio Sales, que assumiu em 1962 a presidência da Chesf após a morte de Alves de Souza, permanecendo na empresa até 1974. Apolônio Sales tinha formação em agronomia e, segundo Souza (2012, p. 152), implantou essa escola "com o objetivo principal de ensinar como se podem transformar terras do semiárido das margens do Rio São Francisco em áreas produtivas".

Figura 83 ─ Escola Adozindo Magalhães de Oliveira

Fonte: Memorial CHESF (1952)

172 A disciplina de "técnicas industriais" era ministrada nas oficinas localizadas em frente ao Obelisco da CHESF, sendo, ensinado entre outras coisas, a marcenaria. 173 Chamada também de "Fazenda Chesf". 166

No caso da Escola Alves de Souza, segundo Souza (2012, p. 149), antes de ser escola, era um prédio onde funcionava as oficinas e escritório de apoio durante a construção da Usina Piloto, sendo reformulado e ganhando uma nova função pela CHESF.

Figura 84 ─ Escola Alves de Souza

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Figura 85 ─ Escola Murilo Braga

Fonte: Memorial CHESF (1952)

167

Figura 86 ─ Ginásio Paulo Afonso, posteriormente chamado de COLEPA

Fonte: Memorial CHESF (década de 1950)

A Chesf formava grande parte de sua mão de obra especializada na Escola Delmiro Gouveia, que era mantida através de convenio entre a empresa e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial ­ SENAI, passando a ser conhecida como Escola do SENAI, a qual era voltada à formação de jovens aprendizes, oferecendo os seguintes cursos: eletricista de manutenção, mecânica de autos e eletrônica em nível básico. Ao longo dos anos, já na sua segunda diretoria, a companhia transferiu essa escola para novas instalações, constituídas por laboratórios, salas de aulas específicas para cada curso, equipamentos, oficinas, área administrativa, quadra de esportes, tudo dentro de um perímetro ajardinado e pavimentado, sendo que a escola passou a ser conhecida como Centro de Formação Profissional de Paulo Afonso ­ CFPPA, mantendo os cursos para os jovens aprendizes com duração de dois anos ─ enquanto eles estudavam174 nas escolas da Companhia entre a sétima e oitava séries do ginásio ─, e passando a oferecer também cursos técnicos de nível médio: eletrotécnica, mecânica, eletrônica, auxiliar de laboratório, análise química e contabilidade (JUCÁ, 1982, p. 274).

174 Os estudantes cumpriam uma carga horária que ocupava os turnos matutino e vespertino, dividindo­se entre a escola de ensino básico e a escola técnica. 168

O CFPPA175 ou "Escolinha" ─ como era chamada pelos estudantes ─ teve grande importância para a educação técnica do setor industrial, não apenas para a Chesf, conforme o que Souza (2012, p. 152) afirma:

No que se refere ao ensino profissional, Amaury Menezes incentivou a criação do Centro de Treinamento de Paulo Afonso que passou a funcionar através de um convênio entre o Brasil e a França. A partir das ações desse organismo de ensino a CHESF se tornou autosuficiente em mão de obra especializada e contribuiu para abastecer o mercado de outras regiões com profissionais qualificados para trabalhar no setor hidrelétrico. Figura 87 ─ Escola do SENAI

Fonte: Memorial CHESF (1951)

Figura 88 ─ Atividades de aprendizagem na Escola do SENAI

Fonte: Memorial CHESF (1951)

175 O CFPPA, a partir de 15 de setembro de 2014, começou a abrigar o Campus da Universidade Federal do Vale do São Francisco ­ UNIVASF. 169

Figura 89 ─ Atividades de aprendizagem na Escola do SENAI

Fonte: Memorial CHESF (1951)

Figuras 90 e 91 ─ Centro de Formação Profissional de Paulo Afonso ­ CFPPA

Fonte: Fotos do autor (2014)

O preenchimento do cotidiano dos moradores do Acampamento da Chesf com as diversas atividades que demandavam o tempo disponível entre produção, instrução, descanso e sociabilidades diversas, era um fator que requeria uma organização desse tempo e uma automação dos controlados por ele (o tempo), visando a otimização da produção, das produtividades dos operários e de um eficiente funcionamento da company town. Nesse sentido, a empresa instalou, logo no início da construção de seu assentamento, um artefato curioso, o qual será aqui denominado de "Caixa d'Água Relógio". 170

A Caixa d'Água Relógio é um artefato icônico para história da Chesf e da cidade, pois esta caixa tinha como acessório uma sirene que soava em horários diversos e determinados, conforme à rotina operacional da companhia, ou seja, marcava os horários de início e término dos expedientes de trabalho, bem como os intervalos para o almoço e retorno ao trabalho, servindo de relógio para toda cidade, pois o som de sua sirene era ouvido em todo o Acampamento e também na Vila Poty e, assim, adquiriu um valor simbólico e de utilidade pública já que nem todos dispunham de relógios naquela época; este artefato era destinado à cumprir uma função análoga ao conhecido "apito da fábrica" e, assim, pode­se dizer que cada silvo produzido pela sirene, automatizava os movimentos dos moradores, sobretudo, dos operários e estudantes que precisavam estar nos pontos de ônibus das vilas em horários definidos.

O artefato176 foi construído na Vila Operária, localizado na atual Praça das Mangueiras, apresentando­se com uma composição simples, uma estética do imediato, de um artefato construído para ser funcional, mas que adquiriu um valor simbólico para os pauloafonsinos.

Figura 92 ─ Caixa d'Água Relógio

Fonte: Memorial CHESF (1949)

Por sua vez, o transporte era disponibilizado gratuitamente pela companhia, passando em pontos específicos de cada vila, e transportando operários e estudantes que se deslocavam às usinas, escritórios, oficinas e aos diversos colégios do Chesf. A empresa disponibilizava

176 Atualmente, a Caixa d'Água Relógio funciona, exclusivamente, como sanitário público para os que frequentam a Praça das Mangueiras. 171

alguns ônibus177 que trafegavam entre as vilas. O transporte foi um meio de otimizar o tempo no "ir e vir" dos operários, ajudando na organização dos ciclos de produção e no funcionamento desse assentamento.

Figuras 93 e 94 ─ Ônibus convencional e o Papa­fila da Chesf

Fonte: Memorial CHESF (1951 à esquerda e década de 1980 à direita)

3.2.5 Os equipamentos de subsistência, serviços e administrativos

O isolamento da cidade Chesf devido à distância em relação aos grandes centros urbanos da época, seu modelo de aglomeração urbana enclausurada, bem como a sua característica como sistema autônomo e de gerenciamento do cotidiano dos trabalhadores, foram fatores que contribuíram para a produção de equipamentos e de um conjunto de ações destinadas à subsistência da comunidade de seu Acampamento. Farah e Farah (1993, p. 69) classificava a cidade implantada pela Chesf em Paulo Afonso como exemplo de company town clássica "com equipamentos e serviços de alto padrão".

[...] a Companhia instalou e manteve sempre em eficiente funcionamento um Armazém de Subsistência, 2 hortas, um Mercado, um Restaurante [...] são fornecidas refeições a preços baixos tanto a operários como a funcionários. O Armazém de Subsistência não tem objetivo de lucro, havendo redução substancial, de 25%, nos preços dos gêneros alimentícios básicos, para os operários que ganham salários mínimos (Cr$ 5,00 por hora na região) e que têm responsabilidade de família. No Mercado, onde há lojas alugadas a terceiros, funciona permanentemente e na ampla ao redor dêle, preparada pela Companhia, de sexta­ feira à tarde até domingo ao meio dia, uma grande feira, onde algumas

177 Um dos modelos de transporte coletivo ─ que talvez seja o mais conhecido pelos chesfianos e estudantes ─ foi apelidado de "Papa­fila, pois era um veículo grande e capaz de engolir grandes filas de pessoas. O Papa­fila era um veículo pintado na cor azul e articulado: uma espécie de Trailler gigante puxado por uma cavalo mecânico, do tipo que puxa carretas.

172

centenas de pessoas, procedentes de larga área circunvizinha de Paulo Afonso, vêm semanalmente vender as mais diversas mercadorias. As hortas produzem legumes e hortaliças e algumas frutas, que são vendidas aos habitantes da cidade. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 47­48) A feira semanal, que se desenvolvia em torno do mercado, localizava­se entre a Vila Operária e a Vila Alves de Souza. Essa feira era um evento comercial, mas também era um suporte, no qual ocorriam trocas diversas entre os moradores do Acampamento, moradores da Vila Poty e da zona rural da região. O mercado criava condições de abastecimentos de produtos de subsistência para a cidade e também a oportunidade de interação entre chesfianos e não chesfianos.

Já as duas hortas, mencionadas por Alves de Souza (1955), também abasteciam essa feira, mas produziam uma menor quantidade de gêneros agrícolas se comparada com o número de produtos trazidos da zona rural da região. Mas, ao longo dos anos, com o crescimento da demanda e desenvolvimento do comércio na Vila Poty, a feira foi ganhando maior dimensão e importância, extrapolando os limites de seu assentamento urbano, quando foi transferida para a Poty.

O Acampamento da Chesf também contava com a Fazenda Escola, mencionada anteriormente, que além de ser um equipamento voltado à educação técnica, também, em certo momento, passou a ser provedor de produtos agrícolas para abastecimento de sua cidade, conforme o que Souza (2012, p. 153) afirma:

[...] no auge de seu funcionamento, produzia leite, mel, ovos, mangas, pinhas e uvas, ao tempo em que ensinava aos seus alunos tecnologia agrícola. Os produtos da fazenda­escola eram adquiridos pelos restaurantes da CHESF ou vendidos aos funcionários dessa empresa [...]

Figuras 95 e 96 ─ Hortas da Chesf

Fonte: Memorial CHESF (1953) 173

O Restaurante da Chesf produzia e vendia refeições à baixo custo aos funcionários da empresa, utilizando­se de produtos cultivados em suas hortas, na Fazenda Escola e produtos da região, sendo um espaço de sociabilidade entre os diversos trabalhadores das usinas, escritórios, oficinas e de estudantes da rede ensino da CHESF. Esse equipamento foi importante para otimizar também o tempo destinado à produção, tendo em vista que livrava um número considerável de funcionários "solteiros" de fabricarem o seu próprio alimento, evitando atrasos no trabalho e mantendo a energia do trabalhador voltada apenas ao trabalho nas áreas de produção. A edificação se localizava no Centro de serviços da Chesf, contíguo à Vila Operária, na vizinhança com os blocos de escritórios da Companhia.

O Mercado se constituía por boxes distribuídos numa edificação com forma quadrada e com um pátrio central descoberto, através do qual se visualizava todas as lojas, além de abrigar bancas de vendedores que não dispunham de espaço no interior da edificação. Os acessos ao interior se faziam através de quatro passadiços localizados nas posições centrais de cada lado do quadrado. Os vendedores que tinham boxes no mercado e nem conseguiam armar sua barraca no pátio interno da edificação, iam se aglomerando na parte externa e formado o aglomerado da feira­livre.

Figura 97 ─ Mercado e barracas da Feira­livre

Fonte: Memorial CHESF (1950)

174

Figura 98 ─ Restaurante da CHESF

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Neste conjunto de serviços era mantido um armazém que fornecia, para comunidade de seu núcleo, produtos diversos. Esse equipamento, ao contrário do mercado, não admitia pessoas "não chesfianas", dispondo de um placa fixada em sua entrada com a seguinte advertência: "ATENÇÃO: NÃO ATENDEMOS PESSOAS ESTRANHAS À CHESF". Esse fato denota o controle com o consumo dentro do acampamento, ou melhor, a coibição de distribuição dos produtos além de sua fronteira, já que se tratava de mercadorias subsidiadas pela empresa.

Além desses equipamentos, no início da década de 1960, foi edificado um prédio destinado ao novo supermercado do acampamento. A edificação se diferenciava do conjunto, apresentando­se com elementos pré­moldados, mas ainda empregando a pedra como elemento característico daquela arquitetura. Esse equipamento foi a primeira iniciativa da empresa em repassar parte de seus serviços aos comerciantes locais, tendo grande reação dos empregados que se contrapuseram à decisão, pois temiam a queda na qualidade do serviço e o aumento dos preços subsidiados. Farah e Farah (1993, p. 70) relatam que o resultado dessa reação foi a expulsão do comerciante e, assim, os próprios empregos assumiram a administração do mercado, dando origem à Cooperativa dos Operários da Chesf ­ COOCHESF, que se localizava na Vila Operária. 175

Figura 99 ─ Interior do antigo Armazém

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Figura 100 ─ COOCHESF na década de 1960

Fonte: Memorial CHESF (1962)

A comunidade chesfiana também contava com a única agência bancária da cidade, o Banco da Bahia S.A., que foi construída pela Companhia e alugada àquele Banco, 176

localizando­se nas imediações do mercado e em frente à farmácia do acampamento. Posteriormente, essa agência bancária foi transferida para a Vila Poty, devido à pressão dos comerciantes locais, já que o acesso ao Acampamento era dificultado pelo sistema de controle da companhia.

Figura 101 ─ Banco da Bahia S.A.

Fonte: Memorial CHESF (1950)

O Centro de serviços do acampamento aglutinava uma série de blocos de escritórios, galpões de almoxarifados, garagens e edificações da administração de seu empreendimento, localizados entre a Vila Operária e o Bairro General Dutra, formando um conjunto importante para manter a organização e logística de sua área de domínio. Além disso, a cidade Chesf também contava com farmácia, padaria e uma agência dos Correios e Telégrafos, a qual também foi transferida posteriormente para Poty.

177

Figura 102 ─ O Banco da Bahia, a Farmácia e o Mercado

Fonte: Memorial CHESF (1952)

Figura 103 ─ Conjunto de galpões e blocos de escritórios no Centro de serviços

Fonte: Memorial CHESF (1959)

Na época de constituição da Chesf, a sua sede178 foi instalada na cidade do Rio de Janeiro, estabelecendo também escritórios nas cidades de Salvador e Recife. Diante disso, era

178 A sede da CHESF funcionou no Rio de Janeiro até 1974, quando foi transferida para a cidade de Recife, após uma grande disputa política entre alguns Estados nordestinos, na época da terceira diretoria da empresa. Segundo Souza (2012, p. 160): "[...] Diante da importância econômica dessa empresa, a sua sede passou a ser alvo de disputa por três Estados da região. Em Alagoas o governador Afrânio Lages defendia a transferência da sede para Maceió sob o argumento de que a posição geográfica do eu Estado era estratégica para o funcionamento da empresa no Nordeste. Na Bahia, havia o governador Antônio Carlos Magalhães com grande força política que 178

necessário o deslocamento dos funcionários entre a sede, o empreendimento hidroelétrico de Paulo Afonso e os escritórios, além das viagens dos funcionários oriundos de cidades do sudeste e de outras regiões do país. Assim, a companhia construiu:

Uma pista para pouso de aviões, construída por conta do Ministério da Aeronáutica e uma estação de passageiros construída pela CHESF formam o aeropôrto179 de Paulo Afonso, servido pela Real, cujos aviões pousam ali três vêzes por semana, vindo do Rio, passando por Salvador e dirigindo­se a Recife ou Fortaleza e outras três vezes, regressando para o Rio de Janeiro. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 50) Figura 104 ─ Vista aérea da pista de pouso do antigo Aeroporto

Fonte: Composição do autor a partir de foto cedida pelo Memorial CHESF (1954)

lutava para que a cidade de Salvador fosse contemplada. Em Pernambuco, o secretário do Ministério das Minas e Energia, Arnaldo Barbalho articulava a transferência da sede para o Recife, sob a justificativa de que esse Estado consumia 54% da energia gerada pela CHESF, enquanto na Bahia o consumo não passava de 25%." 179 Posteriormente, construiu­se um aeroporto maior, com instalações mais adequadas ao programa estabelecido pela Infraero, em área fora dos limites da ilha. 179

Figura 105 ─ Estação de passageiros do Aeroporto em 1950

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Figura 106 ─ Hangar do aeroporto da Chesf em 1960

Fonte: Memorial CHESF (1960)

O Hangar de aviação foi construído pela Chesf e inaugurado em 1960, localizando­se na área do antigo aeroporto. Na década de 1980 foi construído um novo aeroporto fora da ilha. Assim, essa edificação ficou sem uso durante muitos anos. Atualmente, funciona como o Centro Cultural Lindinalva Cabral. 180

Além dos equipamentos citados anteriormente, a empresa mantinha um setor responsável pelos serviços de conservação e limpeza, chamado de SPOM, que era vinculado a sua diretoria administrativa. Esse setor operava na manutenção das residências e das áreas do acampamento, atuando em serviços de pintura, consertos em geral, serviços de capinação, dentre outras ações.

3.2.6 Hospedarias, casas e alojamentos para solteiros

No plano do Acampamento da CHESF foi prevista a ocupação de moradias para os seus trabalhadores, a priori, em três vilas ─ Vila Operária, Vila Alves de Souza e Bairro General Dutra180 ─, sendo projetados os diversos modelos de casas baseadas nas diversas categorias de funcionários, inserida em lotes ajardinados com uma organização espacial racionalista e cuidados com a higiene e conforto, dispondo de infraestruturas de água canalizada, esgotamento sanitário e rede elétrica,.

Quando se constituiu a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, havia em Paulo Afonso apenas duas casas dispondo de condições de confôrto indispensáveis ─ a chamada Casa Grande e a Casa dos Montadores, anexa esta a um amplo galpão que servia de Almoxarifado ─ levantadas pela Comissão da Divisão de Águas, que estava construindo a usina auxiliar. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 46) A casa grande, mencionada anteriormente, ficou conhecida como a Casa de Hóspedes, a qual deu abrigo aos primeiros engenheiros no inicio das obras. Essa casa se localiza na Vila Alves de Souza, onde se constituiu a ocupação de residências destinadas aos técnicos de nível médio e ao pessoal dos escritórios de administração da Chesf.

A Casa de Hóspedes cumpriu o seu papel como estrutura de apoio aos funcionários, no início das obras, até a construção de casas nas vilas, além de hospedar os visitantes do empreendimento da companhia. No entanto, como estrutura de hospedaria era limitada, assim a empresa solicitou ao Governo Federal a construção de um hotel para turistas, que segundo Alves de Souza (1955, p. 47) foi aprovado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, mas a verba destinada foi suficiente apenas para execução das fundações e da superestrutura da edificação, que ficou com sua obra paralisada no período entre 1951 e 1971.

180 Com a expansão das usinas hidroelétricas da Chesf, as vilas iam sofrendo acréscimos com novas residências e alojamentos para solteiros. Na construção da última usina, por exemplo, foi criado um novo bairro adjacente ao bairro General Dutra, denominado de Oliveira Brito, que também foi destinado aos funcionários graduados da empresa, mantendo o mesmo padrão construtivo adotado no bairro vizinho. 181

Figura 107 ─ Casa de Hóspedes

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Esse hotel ficou conhecido como Grande Hotel, sendo projetado pelo arquiteto baiano Diógenes Rebouças entre 1948 e 1949. Ainda sobre o projeto de Diógenes Rebouças, com relação às edificações da época do plano, o Grande Hotel é um dentre os três181 exemplares da arquitetura moderna na cidade, tendo sido implantado na margem do cânion do São Francisco, na "ponta do espigão entre o [rio] Gangorra e o [rio] S. Francisco" (ANDRADE JUNIOR, 2012, p. 535), onde se tem visão direta do cânion e também das primeiras usinas da CHESF (PA I, PA II e PA III).

O Grande Hotel teve um papel importante na história urbana de Paulo Afonso, pois além de suprir as necessidades hoteleiras dos que visitavam a cidade e as obras da Companhia, também foi um equipamento que disponibilizava uma área de lazer182 para visitantes da própria cidade. Entretanto, segundo Andrade Junior (2012, p. 539) o hotel só foi "finalizado e inaugurado na década de 1980, após a estrutura ser comprada pela Varig".

181 As outras edificações associadas à arquitetura moderna na cidade foram: o Posto médico do Estado, o qual foi construído na Vila Poty, e a edificação da Primeira Companhia de Infantaria do Exército Brasileiro, a qual seria a priori um Hospital Regional, que também foi projetado pelo arquiteto Diógenes Rebouças (ANDRADE JUNIOR, 2012). 182 Na parte externa do hotel, encontrava­se uma área de piscinas, uma sorveteria e um para o cânion do São Francisco, onde diversas famílias se postavam nos fins de semana. 182

Figura 108 ─ Grande Hotel de Paulo Afonso

Fonte: Memorial CHESF (1953)

Figura 109 ─ Grande Hotel, o cânion, a Usina PA e de seu reservatório

Fonte: Memorial CHESF (1954)

Por outro lado, a Chesf, no início de implantação de seu Acampamento, tinha outras prioridades, dentre elas a construção das moradias para os seus trabalhadores. Nesse sentido, a Vila Alves de Souza foi uma das primeiras ocupações residenciais da company town, e suas primeiras casas foram construções de madeira importadas do Paraná como abrigos provisórios, os quais logo foram substituídos por casas de alvenaria projetadas e construídas 183

pela própria Companhia (JUCÁ, 1982, p. 69). Essa Vila se encontra mais próxima da Usina Piloto e do cânion do São Francisco, ocupando uma área delimitada de um lado pela Casa de Hóspedes e no outro extremo pelo Clube Operário (COPA) e o pelo Estádio Ruberleno Oliveira.

Essas casas de madeira não constituíram uma vila de caráter "provisório" da mesma forma como aconteceu em outro casos de vilas implantadas por outras companhias hidroelétricas ou mineradoras. Nesse caso, tratava­se de casas para o pessoal de nível médio, que permaneceria na Vila Alves de Souza, enquanto as residências de alvenaria estavam em fase de construção. As vilas de caráter provisório são constituídas por alojamentos improvisados183, geralmente sendo implantadas para abrigarem os operários nas fases de construção dos empreendimentos. No caso da Chesf, houve construção de alojamentos provisórios na Vila Poty, como será visto no próximo capítulo. Por outro lado, os alojamentos construídos no Acampamento foram conservados, pois lá moravam os funcionários solteiros que permaneceram no acampamento nos setores de operação da usinas e subestações ou, ao constituírem família, mudaram­se para residências unifamiliares.

Figura 110 ─ Casa de Hóspedes, COPA e Ruberleno

Fonte: Memorial CHESF (1958)

183 Ou, no caso da Cesp, desmontáveis para o reaproveitamento em outras obras (TSUKUMO, 1994). 184

Figura 111 ─ Abrigos provisórios de madeira da Vila Alves de Souza

Fonte: Memorial CHESF (1948)

As casas projetadas para a Vila Alves de Souza foram construídas como moradias unifamiliares, sendo recuadas em relação aos limites do lotes, isoladas184 das casas vizinhas por uma área ajardinada, quintal, dispondo infraestrutura completa. Nesse conjunto residencial, foram projetados diversos modelos baseados numa tipologia de casa salubre, capaz de cumprir os pré­requisitos higiênicos, um modelo idealizado pela Companhia para ser a materialização de uma casa funcional, ordenada internamente por sala de estar, sala de jantar, dois ou três quartos (dependendo do modelo e tamanho da família), cozinha e área de serviços. Nas edificações foram utilizados, praticamente, os mesmos materiais e elementos construtivos dos equipamentos comunitários como cobertura de telhas cerâmicas e varandas que protegiam as moradias do calor da região.

Esses aspectos funcionais, construtivos e de materiais empregados serão repetidos nas casas de toda a Vila Alves de Souza. Porém, houve variações quanto às dimensões, ao acabamento e à qualidade construtiva, especialmente, em relação às moradias dos funcionários graduados, dentre outros aspectos. Farah e Farah (1993), observam que a diferenciação nos projetos de casas, por categoria de funcionários, também foi um meio de segregação nesse modelo de núcleo urbano ou separando a vila de graduados das vilas dos demais funcionários através de outros modos como: "[...] seja impedindo que de uma área se aviste a outra, seja através de uma localização privilegiada do setor staff na paisagem local

184 Na Vila Alves de Souza, houve casos em que a casa era conjugada de um lado com outra casa, mas sempre dispondo de uma área livre lateral, além dos recuos frontal e nos fundos. 185

como, por exemplo, o ponto mais elevado no relevo da área." (FARAH; FARAH, 1993, p. 68). Este aspecto foi observado na cidade Chesf, basta ver que cada vila mantém a sua distância, sendo separadas por equipamentos e localizadas em planos topográficos com diferentes elevações, isolando­os em termos de vista185.

Figura 112 ─ Casas unifamiliares conjugadas na Vila Alves de Souza

Fonte: Memorial CHESF (1953)

Figura 113 ─ Planta baixa ­ modelo de casa da Vila Alves de Souza

185 Vide APÊNDICE B ­ Mapas. 186

Fonte: SPOM da CHESF (1992)

Figura 114 ─ Casa unifamiliar isolada, construída na Vila Alves de Souza

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Já no Bairro General Dutra186, os funcionários titulados recebiam uma casa diferenciada das casas construídas nas outras duas vilas, além de móveis e eletrodomésticos187. As casas eram maiores, contavam com bloco de garagem, ocupavam um lote maior, apresentavam­se com um padrão de acabamento melhor e ainda recebiam serviços de jardinagem particular, conforme o depoimento de Lourival Burgos Muccini188:

[...] na época se recebia a casa com uma geladeira GE importada (no Brasil não se fabricava geladeira) e um fogão elétrico e um jardineiro para cada casa. Esse jardineiro era nada mais nada menos do que um empregado doméstico; a gente mandava fazer compras ─ os jardins ainda estavam se arrumando ─ e realmente era uma mordomia necessária e a gente tinha tudo o que precisava [...] (apud JUCÁ, 1982, p. 69)

As moradias do Bairro General Dutra também variavam quanto ao seu padrão construtivo, conforme o cargo ocupado pelo funcionário titulado na Companhia. Nesse sentido, podia­se encontrar no bairro alguns exemplares de casas com dois pavimentos e com sacadas ─ o exemplo mais representativo é a chamada Casa da Diretoria, localizada em frente ao Clube Paulo Afonso (CPA), apresentando­se com uma arquitetura que materializava o

186 E, posteriormente, no Bairro Oliveira Brito que se originou como ampliação do Bairro Geral Dutra, tendo as mesmas características em termos de modelos e padrão construtivo. 187 Os móveis e eletrodomésticos eram inventariados e recebiam numeração do patrimônio da empresa. 188 Muccini foi um médico e primeiro diretor do Hospital Nair Alves de Souza, permanecendo como cirurgião entre 1950 e 1974 (JUCÁ, 1982, p. 273). 187

Status Quo do poder dos diretores da Chesf em relação aos seus subordinados, delegando à arquitetura o papel de representante do poder instituído na company town.

Figura 115 ─ Casa do Bairro General Dutra

Fonte: Memorial CHESF (1958) Figuras 116 e 117 ─ Eletrodomésticos disponibilizados nas casas

Fonte: Memorial CHESF (1950)

188

Figura 118 ─ Conjunto de casas unifamiliares no Bairro General Dutra

Fonte: Memorial CHESF (1960)

À Casa da Diretoria foi destinada uma quadra inteira, ocupada pela edificação e por seus jardins. Essa edificação está localizada em frente ao Clube Paulo Afonso (CPA), sendo constituída por dois pavimentos, pátio interno, sacada com balaustrada com pilaretes de madeira ornamentais, dentre outras características.

No Bairro General Dutra não havia casas conjugadas, apenas moradias unifamiliares isoladas nos seus respectivos lotes. No entanto, foram construídos alojamentos para os funcionários solteiros, ou seja, blocos de habitação coletiva constituídas por apartamentos com estruturas independentes.

Figura 119 ─ Casa da Diretoria

Fonte: Memorial CHESF (1954) 189

Os alojamentos destinados aos funcionários solteiros se apresentavam com acabamento semelhante às casas mais simples das outras vilas e a área da unidade habitacional era menor que a área convencional daquelas casas, apresentando­se com uma organização espacial mais simplificada. Além disso, os alojamentos construídos no Bairro General Dutra eram ocupados por funcionários solteiros com a premissa de serem titulados. Além deles, também foram construídos alojamentos para solteiros na Vila Operária, os quais eram ocupados por técnicos de nível médio que trabalhavam na operação das usinas e subestações.

Figura 120 ─ Alojamento para solteiros

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Figura 121 ─ Alojamento para solteiros

Fonte: Memorial CHESF (1959) 190

Por sua vez, na Vila operária todas as casas eram conjugadas, tendo uma variação maior em relação aos modelos e combinações como, por exemplo, nas ruas A, B, C, D e E, dentre outras ruas da vila, as casas eram combinadas em duplas, com acessos independentes e separadas por anteparos frontais, que eram extensões da parede que dividia as duas habitações, mantendo uma área lateral livre para cada residência e isolando­a dos demais grupos; esse modelo de moradia também era recuado em relação à frente e ao fundo do lote, criando quintais ocupados por jardins. As casas dos operários tinham uma acabamento mais simples, mas se apresentavam com uma organização espacial semelhante à moradia da Vila Alves de Souza, variando de acordo com o número de membros da família e o grau funcional do operário na Companhia, ou seja, mesmo na Vila Operária havia estratificação social, a qual se derivava em modelos de moradia operária.

Figura 122 ─ Casas conjugadas da Vila Operária

Fonte: Memorial CHESF (1956)

191

Figura 123 ─ Casas conjugadas da Vila Operária

Fonte: Memorial CHESF (1956)

Figura 124 ─ Grupo de casas da Vila Operária

Fonte: Memorial CHESF (1950)

192

Figura 125 ─ Grupos de casas da Vila Operária

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Figura 126 ─ Grupo de casas da Vila Operária

Fonte: Memorial CHESF (1950)

As casas mais simples, em relação ao padrão construtivo e de acabamento, eram destinadas aos operários mais pobres, sendo localizadas no conjunto de moradias chamado de "Tipo O" ─ eram casas que não dispunham, por exemplo, de fogão elétrico, pois eram 193

construídos fornos de alvenaria de tijolos cerâmicos com três bocas ─. Entretanto, eram moradias unifamiliares dotadas com a mesma infraestrutura da vila.

Figura 127 ─ Planta baixa ­ modelo de casa do grupo "Tipo O"

Fonte: SPOM da CHESF (1993)

Os residentes de todo o acampamento não recebiam cobrança pelo consumo de água e energia elétrica. Ademais, a Chesf não cobrava alugueis189 das casas em seu acampamento, as quais faziam parte de seu patrimônio imobiliário190. Então, perder o emprego significava que o trabalhador também perderia o direito de morar no acampamento. Nesse sentido, a moradia estimulava a permanência do trabalhador no emprego. Segundo Farah e Farah (1993, p. 70):

[...] a ausência de qualquer gasto associado à habitação contribuiu para atrair profissionais de nível superior e a mão­de­obra como um todo. Os moradores não pagam aluguel, não tem gastos com água, eletricidade, e quando a moradia necessita de reparos de manutenção, como pintura ou substituição de componentes, as despesas são assumidas pela Companhia. Há casos em que o próprio mobiliário é fornecido pela empresa [...] A habitação no acampamento era limitada à prática de morar, sendo específica e objetiva como espacialização do repouso e da convivência familiar, pois foram eliminadas outras atividades distintas através das regras e vigilância local. Já na Vila Poty, em muitos casos, as casas tinham parte de seu espaço dedicado à atividade comercial ─ pequenos

189 A cessão gratuita da residência também ocorreu nos casos das vilas Amazonas e Serra do Navio, constituídas pela Icomi, dentre outros exemplos descritos por Farah e Farah (1993), conforme visto no primeiro capítulo. 190 O qual seria comercializado a partir de meados da década de 1980. 194

cômodos transformados em minúsculas bodegas para vendas de produtos de primeiras necessidades ou pequenos bares.

Além de tudo, diante da limitação da casa operária, este modelo não se qualificava como espaço de longa permanência do trabalhador, tendo em conta que na maior parte do dia, os operários se ocupavam do trabalho, da produção, e o tempo que lhes restava naquele cotidiano era preenchido pelas idas aos clubes sociais, participando de eventos e formas de lazer promovido e com a presença dos dirigente da empresa. As mulheres, por sua vez, quando não trabalhavam na companhia, ocupavam­se das atividades do lar e na preparação dos filhos para a escola e, nas horas livres, acompanhavam os seus maridos nas idas ao Clube.

3.2.7 O lazer saudável

O clube era a nossa 2ª casa, o nosso 2º lar, onde vivíamos em comunidade como se todo mundo fosse uma grande família. Às vezes chegávamos até ao máximo de preparar as nossas lições e fazer os nossos deveres no clube. De modo que eu diria que em Paulo Afonso nós tínhamos, realmente nossas horas de lazer praticamente vividas no clube; a casa servia para dormir. Porque, também no clube, nós estávamos com os nossos pais. As famílias, todas, se deslocavam quase que diariamente para lá. (CAVALCANTI, 1981 apud JUCÁ, 1982, p. 70, grifos nossos) Dentro do perímetro do acampamento não era permitido a implantação de equipamentos, como bares, que porventura desviassem os trabalhadores das práticas permitidas pela empresa. Isto posto, os eventos festivos eram realizados nos dois clubes do acampamento, sob supervisão do presidente e dos diretores da companhia, além das práticas esportivas e competições saudáveis entre os funcionários.

No cidade Chesf, foram construídos dois clubes: o Clube Paulo Afonso ­ CPA, que era destinado aos profissionais titulados e ao pessoal da direção da empresa; e o Clube Operário ­ COPA, o qual era destinado aos operários, ao pessoal de nível médio e às suas famílias. Nesses clubes eram promovidos lazeres supervisionados pelos diretores e pelo presidente da companhia, os quais participavam ativamente dessas sociabilidades.

Na Vila Operária tinha um "Coreto", localizado na praça da Rua A, onde eram promovidos pequenos eventos entre crianças ─ o "pau de sebo"; a competição de quem bebe mais rápido o refrigerante; dentre outros pequenos lazeres ─. Por sua vez, nos clubes eram realizadas festas populares como o São João e o Carnaval, as festas de Natal e Réveillon, além da promoção de práticas de esportes como natação, futebol de salão, vôlei, basquetebol e 195

tênis, além de competições esporádicas como as competições de xadrez. Outrossim, nos dois clubes havia exibição de filmes.

Figuras 128 e 129 ─ Coreto e festivais da Vila Operária

Fonte: Memorial CHESF (1949)

Figuras 130 e 131 ─ Jogos no CPA

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Figuras 132 e 133 ─ Festas na Vila Operária: As Pastorinhas e Carnaval no COPA

Fonte: Memorial CHESF (1952) 196

Figuras 134 e 135 ─ Réveillon no CPA

Fonte: Memorial CHESF (1952)

Figuras 136 e 137 ─ Festa junina no CPA e Alves de Souza acendendo fogueira

Fonte: Memorial CHESF (1950)

Em relação à arquitetura, os clubes foram projetados assim como os demais equipamentos, em termos construtivos e de acabamentos, variando de padrão de acordo com a localização, ou seja, o CPA191 tinha um padrão de acabamento melhor que o COPA192. Entretanto, as organizações funcionais desses clubes eram semelhantes, apresentando poucas diferenças. Ambos tinham: salão de bailes, lanchonete/restaurante, bar, quadra de esportes, vestiários, banheiros, cinema, área administrativa e estacionamento. O CPA tinha piscina e áreas ajardinadas, que o diferenciava do clube para operários.

Ademais, ao lado do COPA, a Chesf construiu o Estádio Ruberleno Oliveira com capacidade para abrigar quatro mil e seiscentos espectadores. Nesse equipamento, eram realizados os torneios de futebol entre os times formados pelos trabalhadores.

191 Esse Clube se localiza no Bairro General Dutra, próximo da Casa da Diretoria e tinha um acesso controlado. 192 O COPA se localiza na Vila Alves de Souza. 197

Figura 138 ─ Clube Paulo Afonso ­ CPA

Fonte: Memorial CHESF (1953)

Figura 139 ─ Clube Paulo Afonso ­ CPA

Fonte: Memorial CHESF (1950)

198

Figura 140 ─ Clube Operário ­ COPA

Fonte: Memorial CHESF (1953)

Figuras 141 e 142 ─ Campo de futebol Ruberleno Oliveira

Fonte: Memorial CHESF (1958)

Segundo Farah e Farah (1993, p. 70):

Padrões urbanos de lazer eram transpostos para as vilas [...] da Company Town clássica, procurando reproduzir, independente do local de implantação das vilas, condições de convívio e de ocupação do tempo livre a que têm acesso, sobretudo, a classe média alta e a classe alta, nos centros urbanos bem equipados. Nesse cotidiano, desenvolveram­se diversas práticas sociais que, de certa forma, isolava a cidade Chesf, tendo em conta que os equipamentos disponibilizados nesse núcleo 199

supriam satisfatoriamente as necessidades básicas dos trabalhadores e de suas famílias, que também tinham os melhores meios de lazer à época. Diante de tais recursos, ser morador da cidade­companhia significava ter uma espécie de identidade que lhe concedia status na cidade. Em outras palavras, a Chesf além de transformar o território municipal, também imprimiu a sua marca nessa comunidade, autodenominada chesfiana.

200

CAPÍTULO 4

A VILA POTY E O MURO:

Espacializações das lutas e do controle

201

4.1 A CONSTITUIÇÃO DA VILA POTY

A Vila Poty foi constituída a partir de um movimento migratório de pessoas atraídas pela expectativa de empregos nas obras da CHESF e que ocuparam o antigo povoado de Forquilha193, de uma forma não planejada, estruturando­se em função de uma economia atrelada e, a princípio, dependente do desenvolvimento da hidroelétrica.

O seu conjunto urbano encontrava­se contíguo ao núcleo residencial chesfiano. Essas duas partes eram segregadas e uma rua se encontrava entre elas, servindo como um elemento aglutinador de diversos interesses urbanos.

A história da constituição dessa vila é organizada em consideração aos eventos relacionados à sua ocupação e motivados por conquistas sociais.

4.1.1 Ocupação e forma urbana

A Vila Poty tratava­se de uma "cidade­livre", uma vila que se configurava como extensão socioespacial do operariado, de trabalhadores diversos, de empreendedores, de nômades e de famílias em busca de melhores condições de vida.

Em 1958, quando passou a se estruturar como a cidade de Paulo Afonso, ainda se mostrava ambivalente à cidade Chesf e, ao mesmo tempo, complementar, tendo em vista que detinha recursos ou práticas que a companhia não permitia em sua área de domínio. Na Poty estavam os bares, armazéns de produtos diversos, sindicatos de trabalhadores, igrejas evangélicas etc.

Os trabalhadores chesfianos que não foram contemplados com habitações no acampamento da companhia moravam nessa vila, porém tinham alguns benefícios garantidos pela empresa como o acesso de seus filhos às escolas e usufruíam de outros equipamentos de seu centro de serviços. Entretanto, habitavam em moradias diferentes das projetadas do outro lado da cerca, em ruas que, nas primeiras décadas194, não dispunham de pavimentação e

193 Durante a pesquisa, não foi possível identificar cartografias ou outros registros da ocupação espacial da antiga Forquilha, apenas poucos relatos, superficiais e imprecisos, de que se tratava de um povoado rural constituído por "habitações esparsas". Este termo segundo Farah e Farah (1993, p. 4) serve para: "designar unidades habitacionais distribuídas ao acaso, dentro de uma comunidade urbana existente ou no campo, com ausência de conotação que vincule uma residência a outra." 194 Somente a partir de meados da década de 1960, já na segunda diretoria da CHESF, e na gestão do terceiro prefeito, o médico Edson Teixeira, a Vila Poty começou a dispor, parcialmente, de infraestrutura básica, quando suas principais ruas receberam rede de esgoto, água canalizada e pavimentação (SOUZA, 2012, p. 159). 202

iluminação pública, nem de saneamento básico e água encanada. Assim, era natural que esses operários desejassem se tornar moradores da company town.

Figura 143 ─ Casa encontrada em Forquilha

Fonte: Memorial CHESF (1948).

A Chesf implantou alguns alojamentos "provisórios"195 na Vila Poty, localizados entre as atuais Avenida Landulfo Alves e Rua Otaviano Leandro de Moraes, que eram destinados ao abrigo de operários solteiros que trabalharam no início da construção da primeira usina de Paulo Afonso. Eram alojamentos simples construídos com madeira e telhas de fibrocimento.

Isto significa que a Chesf utilizava o território da Vila Poty como um centro de recrutamento de sua mão­de­obra não especializada, disponibilizando poucos recursos, neste caso, apenas esses alojamentos que foram desmontados em fins da década de 1950.

Figura 144 ─ Alojamentos provisórios para barrageiros na Vila Poty

Fonte: Memorial CHESF (1952)

195 Cf. APÊNDICE B ­ Mapa 2B. 203

A Sra. Risalva Toledo196, em depoimento ao professor e historiador Antônio Galdino, destaca a situação da Vila Poty no início de sua formação:

Isso aqui era um vilarejo, grande parte das casas ainda casebres, coberto com sacos de cimento Poti. Nós não tínhamos energia, não tínhamos água. Água Água, apenas nos chafarizes construídos pela Chesf, que Dr. [Antonio José Alves de] Souza botou, para os operários daquela época que estavam fazendo ainda as casas tipo "O", na Chesf. O chafariz então servia para todo mundo. (apud GALDINO, 2014, p. 77, inserção nossa) Tal carência, forçou a empresa a tomar algumas medidas paliativas em relação à situação da vila, tendo em conta que parte de seus trabalhadores nela moravam. A Companhia em certas ocasiões, fez doações de materiais de construção e disponibilizou máquinas e mão de obra para realização de serviços urbanos (SOUZA, 2012, p. 164), além de ter construído banheiros públicos e chafarizes para suprir as necessidades higiênicas de seus moradores.

Em contrapartida, a companhia exerceu grande influência política em relação aos rumos da Poty, lançando os seus candidatos à gestão municipal ─ a partir da emancipação política em 1958 ─ e, durante o regime militar, o interventor político197 era engenheiro da empresa. Após o período de distensão e derrocada do regime militar no país, a partir das diretas já, a empresa ainda lançou outros candidatos. Tal intervenção estava fundada no temor dos dirigentes da Chesf, que se contrapunham à abertura de seu Acampamento, utilizando­se como justificativa a proteção de seu patrimônio, como afirma Francisco de Souza (2012, p. 143, grifos nossos, inserção nossa):

[Antônio José] Alves de Souza era contrário à eleição de Abel198 porque, na condição de vereador, ele sempre defendia a derrubada da cerca que separava a Vila Poty do acampamento da CHESF, para que houvesse um trânsito livre. Essa ideia contrariava o interesse da diretoria dessa empresa, que queria manter o acampamento isolado do restante do município com sua

196 A Sra. Risalva Maria de Toledo foi comerciante e vereadora na cidade de Paulo Afonso e, junto com Abel Barbosa, lutou pela emancipação política do município (GALDINO, 2014, p. 74). 197 Segundo Galdino (2014, p. 113, inserção nossa): "Da gestão de Otaviano Leandro de Morais [primeiro prefeito de Paulo Afonso], iniciada em 7 de abril de 1959 à de Abel Barbosa, encerrada em 31 de dezembro de 1985, o município de Paulo Afonso viveu anos de intensa turbulência política, com o município sendo gerido sob os olhares do governo militar desde abril de 1964.". Ainda de acordo com o autor, o Engenheiro Chesfiano José Rodrigues de Figueiredo Barbosa foi nomeado em 1975 pelo "governo militar para ser prefeito de Paulo Afonso por indicação do governador da Bahia, Roberto Santos. Assumiu a prefeitura no dia 16 de outubro de 1975 e ficou no cargo até 19 de março de 1979 [...]" (Ibid., p. 129). 198 Abel Barbosa, conhecido na cidade como Chefe Abel (por ter sido líder dos escoteiros em Paulo Afonso) foi um político pauloafonsino que lutou pela emancipação política de Paulo Afonso e contra a segregação entre a Vila Poty e o Acampamento da CHESF, tendo sido vereador e prefeito do município duas vezes. Segundo Galdino (2014, 136), Abel Barbosa assumiu a prefeitura municipal, interinamente, quando era vereador, em 14/05/1974, devido à renúncia do prefeito Edson Teixeira (médico da CHESF), permanecendo até 16/10/1975, haja vista que durante o governo militar não havia eleições e, em caso de renúncia do prefeito, o presidente da Câmara de Vereadores era quem assumia o cargo de prefeito. Abel Barbosa voltou à prefeitura em 1979, só que dessa vez foi nomeado pelo governo militar por indicação de Antônio Carlos Magalhães, que era governador da Bahia, permanecendo na prefeitura até 31/12/1985. 204

segurança física própria, sob o argumento de que o patrimônio da CHESF precisava ser preservado. Para se ter ideia dessa influência política, durante a campanha para primeiro prefeito de Paulo Afonso, o presidente da Chesf, Antônio José Alves de Souza, posicionou­se em apoio ao candidato Otaviano Leandro de Morais, pois desaprovava a possibilidade do vereador Abel Barbosa ser eleito, embora ele tivesse apoio de grande parte da população, pois foi um dos responsáveis pela emancipação política do município (SOUZA, 2012, p. 142).

Segundo Galdino (2014, p. 107):

A euforia da comemoração e o crescimento do apoio popular para eleger Abel Barbosa como o primeiro prefeito de Paulo Afonso não lhe assegurava a vitória [...] apesar do seu grande empenho nas lutas para a emancipação do Distrito, nas ruas, nas escaramuças com a Chesf, na Câmara de Glória ou junto aos deputados na Assembléia Legislativa da Bahia. Essa disposição demonstrada por Abel Barbosa durante anos e os seus embates com a Chesf levaram os dirigentes da hidrelétrica a ter outros planos para a gestão do novo município e se mobilizaram para eleger outro candidato. O Sr. Severino Alves dos Santos, em depoimento ao historiador Antônio Galdino, afirma que a companhia tinha conhecimento de que o vereador Abel Barbosa seria eleito nessa primeira eleição. Assim, mobilizou toda a empresa ─ isto significa que incluía também os seus funcionários e moradores do acampamento ─ à eleger o candidato Otaviano Leandro de Morais.

Abel, naquela época, não era bem visto pela Chesf, pelas pessoas com quem eu mais tinha amizade. Apesar de tudo isso eu não fiquei indiferente com Abel, e via que ele seria o candidato eleito, então fiz Otaviano ver que não ia vencer as eleições. (apud GALDINO, 2014, p. 109) Assim, com o apoio irrestrito da companhia, Otaviano Leandro de Morais foi eleito como o primeiro prefeito de Paulo Afonso em 7 de outubro de 1958199. Segundo Francisco de Souza (2012, p. 142), o primeiro prefeito200 não dispunha de verbas para melhorar as condições de habitabilidade da Vila Poty, pois a arrecadação de tributos municipais era irrisória diante dos problemas urbanos, realizando poucas obras e doando recursos de seu empreendimento comercial (Armazém Sertânia) para construção de escolas, sendo também responsável pela criação do Magistério Primário.

De acordo com Galdino ( 2014, p. 115):

199 GALDINO, 2014, p. 109. 200 A gestão municipal de Otaviano Leandro de Morais foi de 07 de abril de 1959 até 07 de abril de 1963, cf. GALDINO, 2014, p. 114. 205

[...] Otaviano logo se frustrou com o apoio esperado da Chesf e que não veio a ele, teve de amargar uma administração dificílima, sem nenhuma infraestrutura municipal, sem apoio do governo estadual e sem essa ajuda prometida pelas lideranças Chesfianas que o levaram a ser candidato [...] Após a emancipação política do município, os mesmos problemas urbanos persistiram e cada solução era promovida através de algum embate político, lutas que não cessavam naquele cotidiano, mas estendiam­se às altas cúpulas do poder, tendo como exemplo o caso da conquista de sua iluminação pública através do projeto de lei do vereador José Rudival que chegou ao conhecimento do Presidente Jânio Quadros, quando em visita às obras da Chesf. Tal projeto previa a compra de um gerador movido a óleo diesel para iluminar as ruas da vila, enquanto que o Acampamento era todo iluminado. Este contraste poderia desgastar a imagem dessa empresa e, por conseguinte, negativar a reputação do Governo Federal como agente de desenvolvimento diante da opinião pública. Assim, o presidente determinou que a Chesf instalasse postes de iluminação pública, no prazo de três meses, em parte da Poty (SOUZA, 2012, p. 144).

Figura 145 ─ Armazém Sertânia

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1950)

Em 1963, o segundo prefeito Adauto Pereira de Souza, por falta de recursos no cofre público, limitou­se a poucos melhoramentos urbanos, destacando­se apenas pela regularização fundiária de 1 018 quilômetros quadrados do município, que outrora pertenciam à Companhia Agro­Fabril Mercantil (SOUZA, 2012, p. 158). 206

O terceiro prefeito de Paulo Afonso, Edson Teixeira201, que foi médico da Chesf, avançou em termos de instalação da infraestrutura na Vila Poty e, de acordo com uma política higienista, iniciou as obras de saneamento básico e pavimentação das ruas, desobstruindo algumas ruas da vila ─ demolindo diversas casas que fechavam as vias ou que se encontravam fora do alinhamento das demais ─. Segundo Souza202, este prefeito conseguiu avançar em termos de melhoria urbana, devido ao aumento da arrecadação municipal durante as obras da Usina Moxotó.

Figura 146 ─ Tipo de casa demolida pelo Prefeito Edson Teixeira

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (1960)

Ainda segundo Souza (2012, p. 159), foi na gestão do Prefeito Edson Teixeira, com a apoio do segundo diretor técnico da Chesf, o engenheiro Amaury Menezes, que parte da Vila Poty recebeu água tratada e encanada, pois antes disso, dependia­se dos chafarizes instalados pela companhia.

201 O Prefeito Edson Teixeira assumiu a gestão municipal a partir de 1967, permanecendo no cargo durante dois mandatos, até o ano de 1974, tendo em vista que durante o governo militar não havia possibilidade de eleições diretas. Segundo Galdino (2014, p. 125), após a renúncia em 1974 de Edson Teixeira, para se candidatar à deputado estadual, Abel Barbosa (que era o presidente da Câmara de Vereadores) assumiu interinamente o cargo de Prefeito de Paulo Afonso até 16/10/1975. 202 SOUZA, 2012, P. 159. 207

Figura 147 ─ Esgoto a céu aberto na Vila Poty (Rua 31 de Março)

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1960)

A expansão urbana da cidade­livre foi inevitável, pois com a construção das novas usinas, ao mesmo tempo, iam chegando novas famílias em busca de emprego e abrigo, embora tenha se limitado ao perímetro da muralha da Usina PA IV quando a cidade foi transformada numa ilha fluvial. Com as novas obras, a Poty se expandiu com novos bairros como o BNH, Panorama, Tapera (atual Centenário) e, fora dos limites da ilha, nasceu o Mulungú (atual Tancredo Neves) e o Jardim Bahia, dentre outros. Em outro sentido, os limites estabelecidos pela muralha da PA IV, contraditoriamente, tornou sitiada a cidade­livre, pois nesse contexto a cidade ficou, literalmente, sem horizontes.

A sua forma urbana se configura num tecido constituído por vias locais, em sua maioria, e o quarteirão é o elemento morfológico que a definiu e que evidencia a organização de seu espaço. O quarteirão nessa vila é formado por pequenas parcelas, de lotes com área média de 199,84m²203, ocupadas por edificações geminadas e espaços residuais, os quintais, os quais se confrontam com outros quintais de outras unidades residenciais.

As edificações, por sua vez, são cravadas nos lotes, sem afastamento em relação ao limite frontal do terreno, e as suas fachadas desempenham um papel importante não apenas como elementos de delimitação e articulação entre os espaços público e privado, mas também

203 Área de lote médio conforme Termo de Referência de Políticas Urbanas do PDDU de Paulo Afonso de 2000. 208

como representantes das unidades arquitetônicas, basta ver que nesse caso não há elementos de transição como varandas ou áreas ajardinadas (oriundas de recuos laterais e frontais), como acontece nos casos das moradias do Acampamento da Chesf.

Não haveria sentido em falar de seu traçado viário como algo preconcebido, pois não houve planejamento dessa vila. O seu traçado é resultante da organização dos quarteirões formados pelas edificações, em sua maioria, residenciais (no início da ocupação da vila). Dessa mesma forma, originaram­se as praças, largos e terreiros, geralmente, como espaços desobstruídos nas reformas, sobremaneira, do Prefeito Edson Teixeira, que visavam abrir ruas e espaços para construção de infraestrutura de saneamento básico.

As suas praças desempenham um papel importante como espaço de permanência e de encontro, onde se desenvolvem práticas sociais relacionadas aos movimentos festivos, culturais e políticos da cidade, sendo também espacializações de lutas marcadas pelos comícios políticos, protestos e celebrações, como é o caso da Praça do Trabalhador ou da Praça da Tribuna, ambas localizadas na Rua da Frente. Nessas praças, no início da formação urbana, não havia mobiliário, apenas grandes largos onde as pessoas se reuniam sem comodidade.

Os elementos morfológicos que definiram a forma urbana da Vila Poty são resultantes das circunstâncias fundiárias, considerando que os espaços destinados às moradias eram restritos, culminando no emparelhamento das unidades residenciais, que compartilhavam as paredes divisórias e eram cravadas em pequenos lotes que se aglomeravam naquele disputado território.

Figura 148 ─ Fachadas das casas nos quarteirões da Rua da Frente

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (fins da década de 1950) 209

Figura 149 ─ Os quarteirões a partir da Rua da Frente

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1960)

4.1.2 Equipamentos urbanos

Antes da emancipação política do município de Paulo Afonso, em 1958, a Vila Poty não contava com unidades administrativas, considerando que era apenas um distrito até 1953 ─ denominado distrito de Paulo Afonso ─ pertencente à Glória.

Segundo o depoimento da Sra. Risalva Toledo, antes da emancipação política, os emancipalistas204, que eram liderados pelo vereador Abel Barbosa, promoviam reuniões secretas em casas da Poty, devido à perseguição política205 por parte da companhia e dos representantes do poder de Glória:

Havia muita perseguição. Então, as reuniões tinham que ser escondidas, na calada da noite. Muitas vezes a gente tinha medo da própria sombra. Mas, a gente tinha que lutar pela emancipação. [...] a gente se reunia secretamente, no último cômodo das casas, à luz de candeeiro que era para não chamar a atenção. (apud GALDINO, 2014, p. 76­77) Após a emancipação municipal, o movimento dos vereadores contra a segregação urbana continuou, mas agora de forma não clandestina e com um novo endereço. A primeira Câmara de Vereadores se localizou na Rua da Frente, onde hoje funciona a Casa da Cultura

204 Segundo Galdino (2014, p. 85), o objetivo final dos emancipalistas era: "a independência política de Paulo Afonso do município de Glória e autonomia em relação à Chesf.". Nesse sentido, segundo o depoimento de Abel Barbosa: [...] Mas a resistência inicial era natural. Afinal, a emancipação do Distrito de Paulo Afonso, cuja população já era maior que a de todo o restante do município de Glória significava expressiva perda de receita e de grande área territorial". (apud GALDINO, 2014, p. 87) 205 Segundo Galdino (2014, p. 99) "[...] muitas pessoas foram perseguidas, humilhadas, demitidas da Chesf e Abel Barbosa, o alvo principal dos que não queriam a emancipação política de Paulo Afonso sofreu ameaças e até tentativas de morte." 210

de Paulo Afonso. A sua localização foi estratégica, já que os movimentos políticos citadinos ocorriam, geralmente, nessa rua, estando assim numa situação de centralidade.

A primeira Prefeitura Municipal se localizou, onde hoje se encontra o Centro Cultural , entre a Avenida Landulfo Alves e a Rua Otaviano Leandro de Moraes, na atual Praça Abdon Sena. A edificação se encontrava próxima dos alojamento provisórios implantados pela Chesf no início das obras.

A Prefeitura e a Câmara de Vereadores eram os únicos equipamentos administrativos que o município dispunha logo que foi emancipado. Eram edificações simples206 e representavam uma estrutura administrativa improvisada e enxuta no início da história da gestão político­administrativa de Paulo Afonso.

Na mesma época, a Poty também apresentava déficit educacional. Embora a Chesf permitisse o acesso "limitado" de crianças da cidade­livre às escolas localizadas no seu acampamento, ainda era insuficiente. Segundo Ferreira (2012, p. 129):

[...] A primeira escola da Poty só foi construída no início da década de 1960, do século passado. Até 1986, a Prefeitura Municipal só dispunha de dez salas de aula na zona urbana e alguns grupos escolares na zona rural. Para auxiliar a deficiente educação municipal, a Diocese local implantou escolas, denominadas Casa da Criança. [...].

Esta escola foi construída adjacente à Igreja Nossa Senhora de Fátima, sendo chamada de "Casa da Criança". Posteriormente, até a década de 1980, outras escolas foram construídas, tais como a Escola Municipal Vereador João Bosco Ribeiro, que se dedica ao ensino da primeira a quarta série, a Escola Polivalente, que era voltada ao ensino da quinta a oitava série, o Centro Integrado de Educação de Paulo Afonso – CIEPA que era dedicado ao ensino médio, ministrando também cursos técnicos, dentre outros colégios da rede pública. Na rede particular, foi inaugurado o Colégio Sete de Setembro já em 1964, ampliando as opções de ensino desde o primário até o ensino médio e, atualmente, também disponibiliza cursos de nível superior.

206 Posteriormente, a sede da Prefeitura e a Câmara de Vereadores foram transferidas para a Avenida Apolônio Sales, contando com estruturas mais adequadas. 211

Figura 150 ─ Antiga Câmara de Vereadores

Fonte: Foto do autor (2017)

Figura 151 ─ Antiga Prefeitura Municipal

Fonte: Fotos do autor (2017)

212

Figura 152 ─ Casa da Criança

Fonte: Memorial CHESF (1961)

Figura 153 ─ Escola Evangélica Antônio Balbino

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1960)

No início de sua história urbana, a Poty também tinha limitações quanto aos equipamentos de lazer e cultura. Estes espaços foram sendo criados ao longo do tempo, através de iniciativas de empresários pioneiros207, como foi o caso de Cícero Lins de Albuquerque, conhecido como Cícero da Padaria, que após estabelecer o seu empreendimento

207 O Sr. Cícero Lins de Albuquerque não foi pioneiro no ramo do cinema na cidade. Entretanto, foi um dos pioneiros no ramo alimentício, sendo conhecido como Cícero da Padaria devido ao seu negócio. A sua contribuição foi inestimável para a cidade quando construiu e fundou o Cine Coliseu, o qual foi o cinema mais reconhecido pelos moradores da cidade em termos de efervescência cultural. 213

alimentício, resolveu construir um cinema. O Cine Coliseu208 representou não apenas a sétima arte na Vila Poty, mas abrigava também shows de música, promovendo artistas locais, além de eventos com artistas populares em evidência à época, já que possuía uma organização espacial que favorecia desde exibição de filmes até shows musicais, o que lhe colocou num lugar de destaque em termos culturais.

Segundo Galdino (2014, p. 355):

O Cine Coliseu foi inaugurado no ano de 1972 e era a grande atração da cidade na época onde se realizavam shows com cantores famosos como: Valdick Soriano, Tonico e Tinoco, Evaldo Braga, Teixeirinha, Odair José, dentre outros. [...] era realizado aos domingos pela manhã o programa de auditório Coliseu Show, iniciado ainda no Cine Palace, apresentado por Nilson Brandão, Antônio Galdino e Rubem Marques tendo como atrações locais Edemir Rodrigues, Aroldo do Hospital (in memoriam), Isac Freire, Leonan, Oscar (atualmente cantor evangélico), Manoel França, dentre outros. Figura 154 ─ Cine Coliseu

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1970)

Na Poty, quase duas décadas antes da inauguração do Coliseu, a população já contava com outros cinemas, o Cine Palace ─ chamado também de Cine Paulo Afonso e também batizado de Cine Tupy ─ e o Cine São Francisco, ambos localizados na Rua da Frente,

208 Esse cinema foi construído durante cinco anos pelo empresário Cícero Lins de Albuquerque, o chamado Cícero da Padaria. Entretanto, um ano após sua inauguração, o cinema foi vendido ao empresário José Rudival de Menezes, o qual já era proprietário do Cine Palace e do Cine São Francisco (GALDINO, 2014, p. 355). Atualmente, no antigo Cine Coliseu funciona a Igreja Universal do Reino de Deus. 214

representando duas dentre as poucas opções de lazer e cultura à comunidade da vila naquele tempo. Além disso, havia outros tipos de lazer apreciados por alguns moradores da Poty e também do Acampamento da Chesf, como os bares, que ofereciam bebidas de alambiques da região e jogos de sinuca. Segundo Souza (2012, p. 148):

As opções de lazer da Vila Poty se concentravam mais na sorveteria Brasil, de Artur de Brito, que se destacava com um ambiente descontraído de encontro da juventude local; o prédio do Alicipe, que funcionava como uma espécie de cassino, onde se jogava sinuca e baralho até altas horas da noite e o bar São Francisco de Dernival Oliveira, situado nas proximidades da guarita principal do acampamento, que era muito frequentado pelos empregados da CHESF depois das 17:00 horas, quando terminava cada jornada diária de trabalho. O cine Tupy conseguia competir com os cinemas da CHESF porque era aberto ao ingresso da população em geral e projetava filmes do tipo faroeste de boa aceitação pelos cinéfilos da época. Antes do início da exibição de cada filme a calçada do cine Tupy se transformava em um mercado de troca de revistas em quadrinhos onde os garotos que gostavam de ler gibis faziam suas transações. Figura 155 ─ Cine Paulo Afonso

Fonte: Memorial CHESF (1954)

Em 1973, na gestão do Prefeito Edson Teixeira, surgiu o Clube Recreativo Independência ­ CREIA209, que devido a construção do reservatório da Usina PA IV, ficou localizado fora da ilha. Esse clube era aberto à população que não tinha acesso aos clubes sociais da Chesf. Além do CREIA, havia outros clubes, como a Associação Atlética Banco do

209 A Prefeitura Municipal na gestão de Edson Teixeira doou os terrenos onde foram construídos o CREIA e a AABB, sendo que o projeto de lei foi aprovado quando Abel Barbosa era presidente da Câmara de Vereadores. Abel Barbosa é um dos sócios fundadores do Clube (GALDINO, 2014, p. 127). 215

Brasil ­ AABB, restrito aos funcionários do Banco e sócios, e o Olímpico, associado ao time de futebol local de mesmo nome.

Outras opções de lazer e movimentos culturais estavam relacionadas às sua festas populares, principalmente, nas épocas de São João e Carnaval. No São João eram promovidos concursos de quadrilhas juninas, formadas nas ruas da vila, disputando a melhor apresentação na Rua da Frente. Já no carnaval, esta rua era palco da disputa teatral entre os grupos folclóricos dos "cangaceiros" e da "milícia", além dos blocos carnavalescos de rua.

Figura 156 ─ O grupo folclórico Cangaceiros

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1960)

Figura 157 ─ O grupo folclórico Milícia

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1960) 216

Sobre outro aspecto, antes da emancipação política do município, a Chesf instalou banheiros públicos e três chafarizes210 nessa vila. Já o Governo da Bahia construiu um equipamento de saúde, denominado de Posto do Estado, com apoio da companhia na Rua das Flores, sendo inaugurado por volta de 1951, atendendo a população em casos mais simples e em campanhas de vacinação.

A Poty também recebeu algumas visitas de agentes de saúde em campanhas do Governo Federal.

O que tem sido feito em favor de Vila Poti é devido exclusivamente à Companhia Hidrelétrica. A ela coube, voluntariamente, instalar torneiras e sanitários [...] os doentes mais graves são, quase sempre, tratados no hospital da Companhia. [...] Do govêrno, mesmo, Vila Poti nada havia recebido até que, no final de agôsto passado, foi visitada pela Unidade Sanitária Aérea, que lhe foi enviada pelo ministro da Saúde, prof. Maurício de Medeiros, e pelo dr. Noel Nuttels. Dezesseis dias passou a Unidade Sanitária em Vila Poti. O tisiologista Antônio Miranda examinou 7.800 pessoas, enquanto o dentista Celino Gomes da Silva fêz perto de 2.500 extrações. Foram aplicadas mais de 14 mil vacinas antiamarílicas e antivariólicas, recebendo vacinação de BCG mais de 6.500 crianças. O índice de tuberculose localizada atingiu a 0,9%, e assim mesmo porque os tuberculosos identificados são, em maioria, enviados pela CHESF a cidades onde possam encontrar tratamento. [...] (FREITAS, 1956, p. 58, grifos nossos)211 Figura 158 ─ Banheiro público/chafariz

Fonte: Memorial CHESF (1951)

210 Em relação aos chafarizes construídos pela CHESF na Vila Poty, segundo Galdino (2014, p. 424): "Eles foram construídos, um nas proximidades das Casas de Tábuas, entre as ruas Otaviano Leandro de Morais e Landulfo Alves, hoje. Outro na praça Bráulio Gomes, conhecida como Praça dos Sete Dias, construída nesse tempo por Metódio Magalhães, quando foi prefeito por 17 dias e um terceiro na região da Feirinha, próximo à rua Padre João Evangelista." 211 Conforme Anexo B. 217

Figura 159 ─ Posto de Saúde do Estado da Bahia

Fonte: Memorial CHESF (1951)

A assistência médica aos habitantes da Vila Poty era limitada ao Posto do Estado e, em alguns casos, o Hospital Nair Alves de Souza aceitava pacientes que necessitavam de cuidados emergenciais. Mas, nos casos mais graves, os pacientes da vila eram encaminhados para outras cidades.

[...] Como lá estavam numerosas famílias dos operários das obras, também essas passaram a receber, como as famílias residentes dentro do acampamento, as noções elementares de higiene, como o banho diário, o uso do sabão, o leite, a assistência médica [...]. (JUCÁ, 1982, p. 64­66, grifos nossos) Figura 160 ─ Atendimento médico do Ministério da Saúde

Fonte: Memorial CHESF (1956) 218

Como medida de segurança pública, a Chesf construiu um presídio na Vila Poty, localizado na Rua da Frente. Esse presídio foi construído com uma linguagem arquitetônica que lembrava um pequeno castelo medieval.

Figura 161 ─ Presídio localizado na Rua da Frente

Fonte: Memorial CHESF (1956)

Do ponto de vista dos equipamentos religiosos, a Vila Poty era mais diversificada do que a cidade­companhia, pois além da representação católica, havia algumas igrejas cristãs evangélicas. Dentre as igrejas pioneiras, destaca­se a Igreja Nossa Senhora de Fátima, a qual está localizada na cota nível mais elevada da Rua da Frente, sendo construída através de um sistema de mutirão pela Comissão Construtora da Igreja, que era formada por cidadãos da Poty e por operários da Chesf, sendo inaugurada em 1955.

Figura 162 ─ Igreja N. S. de Fátima

Fonte: Memorial CHESF (1956) 219

Figura 163 ─ Igreja N. S. de Fátima e a Rua da Frente

Fonte: Memorial CHESF (1956)

Posteriormente, foi construída outra igreja católica na ilha, denominada Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ademais, foram edificadas algumas igrejas evangélicas, dentre elas a Igreja Evangélica Pentecostal do Brasil, inaugurada em 1952, localizada na Praça Libanesa, próximo ao Cine Coliseu.

Figura 164 ─ Igreja Pentecostal

Fonte: Foto do autor (2017)

220

4.1.3 Moradias Antes da Chesf chegar na antiga Forquilha, os nativos construíam as suas casas com a técnica de pau a pique212, também conhecida na região como taipa de sopapo ou de mão e muito comum na área rural do município. Eram casas simples, com cobertura de duas águas, piso de chão batido, com a meia parede como o elemento organizador do espaço interno, a qual também servia de suporte ao escoramento da cobertura.

Essas moradias foram utilizadas pela Chesf como exemplos de casas não apropriadas à habitação, como casas insalubres. A empresa mantinha, nos primeiros anos, na sua Vila Operária um modelo desse tipo de habitação com uma placa fixada, contendo a seguinte informação: "TIPO DE CASA EXISTENTE EM PAULO AFONSO ANTES DAS ATIVIDADES DA CHESF".

Esse não foi o modelo de casa construído pelos moradores ou que perdurou na Vila Poty, embora alguns exemplares dessas construções tenham permanecido por algumas décadas nessa vila. As primeiras construções de casas da Poty foram produzidas como habitações provisórias, chamadas de barracos, sendo improvisadas, construídas com materiais que sobravam das obras das usinas. Assim, poder­se­ia dizer que até determinado período, pelo menos até meados da década de 1950, quando foi finalizada a obra da primeira usina, a Poty era uma espécie de vila provisória da empresa, ainda que não fosse planejada.

Figura 165 ─ Casa mantida pela CHESF como modelo insalubre

Fonte: Memorial CHESF (1950)

212 Pau­a­pique é uma técnica construtiva antiga que consiste numa trama de madeiras verticais fixadas no solo, com vigas horizontais (utilizando­se de galhos de vegetação local) amarradas entre si por cipós, resultando na produção de um grande painel perfurado, o qual é preenchido por barro projetado através das mãos. Geralmente, o acabamento permanece rústico, as vezes mais liso. 221

As primeiras construções improvisadas, ou barracos, foram sendo substituídas, ao longo dos anos, por casas mais elaboradas do ponto de vista das técnicas e materiais de construção, quando os seus moradores passavam a ser funcionários da companhia ou quando retornavam à vila com recursos financeiros oriundos de trabalhos213 em obras de outras regiões do país. Desse modo, foram substituídas por construções com alvenaria de tijolos cerâmicos maciços, cozidos em olaria local. Essas habitações, apresentando­se com uma organização espacial simples, conforme as necessidades e o número de membros da família. Todavia, a moradia da Poty, por sua situação, ou seja, por ocupar o lote sem afastamentos laterais entre as casas, tinha ventilação e iluminação naturais limitadas à frente e ao fundo do lote, e dispunha, geralmente, de banheiro separado da estrutura da casa, localizado no quintal, onde a priori era feita uma fossa séptica e ali também se fazia uma pequena área de serviços.

Tais habitações foram construídas em pequenos lotes, ocupando cerca de dois terços do terreno, e mantendo espaços residuais como quintais e hortas no fundo dos terrenos. Essa organização em forma de quarteirão, promoveu uma relação de vizinhança distinta da vizinhança no Acampamento da Chesf, ou seja, proporcionava a comunicação entre as casas através de outras formas, onde os passeios se tornaram extensões dessas casas. Eram neles que os moradores posicionavam as suas cadeiras e até promoviam festas, principalmente, em época junina, compondo o tradicional "araial junino"214 de rua, tendo como exemplo o famoso "Arraial de Zé Pastel" na Rua Castro Alves ou o "Arraial da Mama Vitória" na Rua Alto Novo.

Já do ponto de vista da paisagem urbana, pode­se afirmar que a produção de sua arquitetura popular foi importante para formar uma imagem urbana distinta de sua vizinha, principalmente, na produção das casas. Nesse sentido, a fachada era o elemento principal da composição, onde eram empreendidos esforços para obtenção de um resultado estético satisfatório nos parâmetros dos construtores populares. Por outro lado, esta casa não se restringia à função residencial ─ como foi o caso da moradia no Acampamento da Chesf ─. Algumas abrigavam pequenos cômodos frontais, onde funcionava um negócio comercial, geralmente uma bodega, uma pequena mercearia, um negócio de família.

213 É notório a situação de trabalhadores, residentes da Vila Poty, que eram obrigados a se deslocar para outras regiões do país, sobretudo para o Sudeste, em busca de empregos, retornando no fim das obras com recursos financeiros e construindo, assim, as suas casas. 214 Arraial junino é uma estrutura provisória tradicional montada em ruas de cidades do interior na Região Nordeste, sendo que as ruas são decoradas com balões, cercados decorados com folhas de coqueiro, bandeirolas etc. No arraial são promovidas danças, quadrilhas e comidas típicas do São João. No caso de Paulo Afonso, algumas quadrilhas oriundas dos arraiais das ruas da Vila Poty, participavam de concursos de quadrilhas na Rua da Frente. 222

Figura 166 ─ Casa da Vila Poty

Fonte: fotos do autor (2017)

Figura 167 ─ Casas da Vila Poty

Fonte: fotos do autor (2017)

4.1.4 Comércio

Os residentes da Vila Poty, em sua maioria, não tinham acesso aos equipamentos da Chesf, limitando­se ao Mercado em dias de Feira Livre, tendo dificuldades para utilizar os serviços dos Correios e do Banco da Bahia, que eram localizados no acampamento dessa empresa. Segundo Souza (2012, p. 146):

Para ter acesso ao Banco da Bahia, aos Correios e à Feira Livre, os habitantes da Vila Poty tinham que entrar pela guarita do acampamento que 223

era monitorada pelos guardas da CHESF. As pessoas que por acaso divergissem dos interesses da direção dessa empresa corriam o risco de ficar impedidas de terem acesso a essas instalações. Essa situação ficou insustentável, já que a única agência bancária da região também tinha clientes não chesfianos. Assim, segundo Souza (2012, p. 146), por influência do Governo da Bahia, o Banco e os Correios foram transferidos para a Poty. A Feira Livre, por sua vez, foi transferida para a Rua da Frente apenas em 1960, graças à bandeira levantada pelos emancipalistas215.

De acordo com o depoimento de Dona Risalva Toledo, houve tentativas de impedir que os feirantes entrassem no Acampamento. Os emancipalistas e os comerciantes locais questionavam a manutenção da feira na cidade­companhia, entendendo que o lugar mais apropriado seria o centro da cidade­livre, onde já se encontravam diversos estabelecimentos comerciais antes mesmo da emancipação política do município (GALDINO, 2014, p. 298).

Não era brincadeira, a Chesf botava um determinado funcionário pra fora, por isso ou por aquilo, cismava assim e dizia: você não entra mais na guarita e lá dentro estavam o Banco da Bahia, a feira livre, o hospital, uma igreja, a única da época. Então a gente se chateou com aquilo ali, e fez um movimento para a feira vir para a Vila Poti. (Dona Risalva Toledo, 2013, apud GALDINO, 2014, p. 77) Essa feira tem bastante importância para o município e região, pois se tornou ao longo dos anos um centro de abastecimento regional. Segundo Malta (2008, p. 138):

[...] Sua importância [da feira livre] extrapola a esfera do abastecimento local, alcançando o circuito do abastecimento regional, no qual exerce o papel de redistribuidora dos produtos para alguns municípios que integram a região polarizada pelo município de Paulo Afonso­BA. A feira também foi essencial no suprimento de alimentos básicos para as populações do Acampamentos da Chesf e da Vila Poty, desde o início das obras da companhia. Em 1975, por decisão da Câmara de Vereadores, a Feira Livre foi novamente transferida, ocupando um quarteirão de boxes e se estendendo pelas ruas adjacentes, passando a ser conhecida como "Feirona", localizando­se na Avenida Contorno que, por sua vez, foi resultado de uma ampliação urbana na época de construção da Usina PA IV.

O centro da vila abrigava uma diversidade de estabelecimentos voltados ao comércio varejista, dispondo de lanchonetes, bares, pequenos restaurantes, padarias, farmácias, casas de

215 Segundo Galdino (2014, p. 298) a transferência da Feira Livre para a Vila Poty foi uma bandeira levantada na campanha de Abel Barbosa. Essa conquista só ocorreu durante a gestão do primeiro prefeito, Otaviano Leandro de Morais, através do Projeto de Lei número 22, de 18 de abril de 1960, de autoria do vereador José Rudival de Menezes. 224

materiais de construção, armarinhos, distribuidora de doces, supermercados, lojas de tecidos, lojas de roupas dentre outros negócios.

[...] comerciantes e prestadores de serviço ali instalados, envolviam­se com toda sorte de negócios, lojas, empórios, padarias, transportes autônomos, cujos serviços destinavam­se ao atendimento das demandas da CHESF e do abastecimento do contingente consumidor que se formou naquela área. [...] (MALTA, 2008, p. 137) O centro comercial se formou, a princípio, na Rua da Frente, estendendo­se através de ruas transversais a ela, formando áreas de convergência de interesses como foi o caso da Praça Libanesa, onde se encontrava o Cine Coliseu. Ao longo dessa via, denominada Amâncio Pereira, desenvolveram­se importantes estabelecimentos comerciais da cidade, tendo como exemplo a primeira loja dos Supermercados Pesqueira, que se tornou uma rede de oito lojas localizadas em Paulo Afonso e região. Outras ruas comerciais se desenvolveram a partir da Rua da Frente, a qual não está marcada apenas por seu comércio na historia urbana.

4.2 A RUA DA FRENTE E O MURO: Espacializações das lutas e do controle

Caso fosse possível sintetizar um artefato urbano num único elemento de sua estrutura, um componente morfológico, arquitetônico ou paisagístico que reunisse simbolicamente as características e a natureza da cidade, um único elemento impregnado de uma espécie de identidade citadina, representativo da sua heterogeneidade social, então esse seria o caso da Rua da Frente em relação à cidade de Paulo Afonso.

Nessa rua foram reunidas diversas funções urbanas ao longo de sua história: residencial; comercial; gestão urbana; lazer e cultura; além de abrigar todos os eventos cívicos, políticos, festivos e culturais da cidade. Por outro lado, essa rua foi um lugar de transição e de conflitos ─ de um lado, a Vila Poty que era representada pelos que lutavam contra o muro e pela unificação urbana e, doutro lado, a companhia que impunha o seu poder político sobre a cidade­livre, recusando­se a unificar as partes segregadas.

225

4.2.1 A Rua da Frente: espacialização das lutas

No lado do Acampamento da CHESF, as vias eram apenas estradas de rodagem, que ligavam um lugar a outro, não havia grandes avenidas, largos216 ou grandes espaços abertos que permitissem a aglomeração de pessoas. Por sua vez, na Poty, a Rua da Frente tinha uma estrutura física que permitia a concentração de multidões, de manifestações e realização de práticas sociais em grande escala.

O espaço dessa rua foi resultado da imposição da CHESF, que determinou um afastamento (de proteção de seu núcleo) superior a 80 metros a partir de seu muro, quando ainda era uma cerca de arames farpados, ou seja, a ocupação da Vila Poty deveria respeitar esse recuo em relação ao limite imposto pela empresa, conforme o que Souza (2012, p. 140, grifos nossos) afirma:

Na Vila Poty as casas da rua "da frente" foram sendo construídas em obediência a um afastamento superior a 80 metros da cerca de arame farpado que isolava o acampamento do restante do município. Esse limite foi estabelecido pela diretoria da CHESF para evitar que as habitações particulares da Vila Poty fossem erguidas nas proximidades dos domínios dessa empresa. Graças a essa providência, a "rua da frente" se tornou tão larga que foi transformada na Avenida Getúlio Vargas. Por conseguinte, a Rua da Frente era utilizada não apenas pelos moradores da Vila Poty, mas os próprios representantes da Chesf promoviam desfiles cívicos, evidenciando a sua presença através de comissões de funcionários fardados que desfilavam sobre carros ao longo da rua, bem como desfilava a sua milícia, que era conhecida como a "guarda da Chesf". Nesses desfiles, também estavam presentes os estudantes de suas escolas, a sua banda de música. Posteriormente, durante a Ditadura Militar, o exército também exibia o seu poderio militar.

216 Com exceção do largo em torno da Igreja São Francisco, que reúne, anualmente, um grande número de pessoas na festa do padroeiro no mês de outubro. 226

Figura 168 ─ Desfile no dia 7 de setembro ­ Máquinas da CHESF

Fonte: Memorial CHESF (1956)

Figura 169 ─ Desfile no dia 7 de setembro ­ Comissões de funcionários da CHESF

Fonte: Memorial CHESF (1956)

227

Figura 170 ─ Desfile no dia 7 de setembro ­ Guarda da Chesf

Fonte: Memorial CHESF (1967)

Essa rua se tornou também o espaço do trabalhador, tanto do comércio local quanto dos trabalhadores da Chesf que buscavam algum tipo de diversão em seus bares, lanchonetes e cinemas. Em primeiro de maio de 1960, foi instalado o "Monumento do Trabalhador", em homenagem aos operários que participaram das obras de perfuração dos maciços rochosos, nas primeiras usinas, na localização que ficou conhecida como a Praça do Trabalhador.

Ao longo dos anos e de gestões municipais, a Rua da Frente foi sofrendo reformas, ganhando pavimentação e outras praças, as quais eram sempre localizadas em seu eixo, configurando­se como uma grande avenida, passando a ser chamada de Avenida Getúlio Vargas. A transformação física dessa rua está associada à transformação de seu comércio, que se consolidou e se expandiu através de outras ruas, mas também reflete as transformações urbanas e mudanças político­administrativas.

228

Figura 171 ─ Instalação do Monumento do Trabalhador

Fonte: Centro de Cultura de Paulo Afonso (1960)

Figura 172 ─ Praça do Trabalhador na Rua da Frente

Fonte: Foto do autor (2016)

Além de seu comércio, através da luta política dos emancipalistas com o apoio de comerciantes, a Feira Livre que se realizava em torno do Mercado do Acampamento da Chesf foi transferida para essa rua em 1960. Essa foi uma luta antiga, que começou desde o tempo em que Paulo Afonso ainda era um distrito de Glória. A feira permaneceu na Rua da Frente durante 15 anos (GALDINO, 2014, p. 298). 229

Figura 173 ─ A Feira Livre na Rua da Frente

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (1970)

Esse espaço foi palco de diversas manifestações estudantis e também de greves trabalhistas históricas, já no período de distensão do regime militar no país, quando se discutiam os direitos trabalhistas nos grandes centros urbanos e em lugares de lutas operárias217. Em 1979, os estudantes pauloafonsinos se uniram aos trabalhadores e ao Sindicato dos Eletricitários da Bahia e promoveram campanhas voltadas aos direitos trabalhistas, mas também questionavam a situação da Vila Poty em relação ao muro da Chesf e aos problemas urbanos.

Os anos 80 em Paulo Afonso começaram em 1979. É o ano de uma grande greve da CHESF que durou poucos dias, mas que unificou trabalhadores da empresa e jovens estudantes. Surgem duas lideranças importantes nesse evento: José Ivaldo e Evandro Paiva, o primeiro era estudante em Recife e o segundo professor de Educação Física no COLEPA. Em torno de José Ivaldo forma­se um grupo coeso de militantes estudantis: é o núcleo original que vai criar a UNESPA (União dos Estudantes Secundaristas de Paulo Afonso), que terá papel importante nas mobilizações populares nesta década. (SANTANA, 2012, apud FERREIRA, 2012, p. 148). A segunda greve de trabalhadores da Chesf, ocorrida em 1982, foi um estopim para ações de intransigência da empresa, que acionou o Exército, e do Governo do Estado,

217 Segundo Ferreira (2012, p. 144): "[...] Em 1978, eclodem as primeiras grandes greves na região do ABC paulista, tendo como sua principal liderança do novo sindicalismo, Luís Inácio Lula da Silva, que viria a ser eleito anos depois Presidente da República. Greves sindicais, passeatas estudantis, movimentos de atingidos por barragens, movimentos comunitários espalham­se pelo país como um rastilho de pólvora, todos unidos pelo fim da ditadura e pelo restabelecimento da democracia. Anistia, convocação de Assembléia Nacional Constituinte, eleições diretas, melhorias salariais e reforma agrária eram as grandes bandeiras defendidas na época." 230

conduzido nessa época pelo governador Antônio Carlos Magalhães, tendo como saldo a perseguição política, a violência contra os trabalhadores, as prisões de líderes e as demissões. De acordo com Ferreira (2012):

Em 1982, nova greve é deflagrada. Desta vez, aproveitando­se da tensão existente, ainda nos estertores da ditadura que teimava em se prolongar, a Chesf não transige e decide recorrer à legislação de exceção, que proibia que a categoria recorresse à paralisação. A greve é declarada ilegal e o aparelho repressivo estatal é acionado. Forças do Exército entram de prontidão e ocupam as usinas e a polícia de choque baiana, enviada pelo governador Antonio Carlos Magalhães invade a sede do sindicato em Paulo Afonso, espancando e prendendo trabalhadores. As lideranças que não foram presas passam a ser caçadas pela Polícia Federal e pelo Serviço Nacional de Investigações (SNI). Tentando evitar a desarticulação do movimento, algumas das lideranças que permaneceram na cidade, reforçados pelo apoio de líderes estudantis e da Igreja Católica, articulam a resistência e passam a distribuir panfletos, fazer pichações e veicular propaganda em serviços de som volantes, procurando convencer os trabalhadores a manter a greve. São presos os sindicalistas Inácio Catingueira e Zé Gomes e o estudante Dimas Roque. Outros passaram a ser procurados pelos órgãos da repressão, entre eles o professor Evandro Paiva e o líder estudantil Zé Ivaldo. (FERREIRA, 2012, p. 156, grifos nossos) A Rua da Frente como um suporte físico de manifestações foi fundamental à efetivação das conquistas dos cidadãos pauloafonsinos, que lutaram por seus direitos como trabalhadores e como moradores de uma vila marginalizada. Ali se fundou uma cultura de lutas e sociabilidades pela busca de cidadania, culminando em conquistas populares e democráticas. Mas, a maior luta travada pela população da Poty está relacionada ao processo de reivindicações e efetivação da derrubada do muro, que conservava a company town isolada de todos os ataques políticos.

Figura 174 ─ Comemoração do dia do Trabalhador em 1981 na Rua da Frente

Fonte: Arquivo de José Ivaldo (1981) 231

Figura 175 ─ Greve dos trabalhadores

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (1979)

4.2.2 O muro: espacialização do controle

A empresa adotou medidas de contenção de sua área de domínio, dando acesso apenas às pessoas autorizadas e aos seus funcionários mediante identificação. Essas medidas foram, basicamente, a criação da guarda da Chesf e a construção de uma cerca constituída por mourões e arames farpados, da mesma maneira que alocou as guaritas de controle que eram guarnecidas por sua milícia.

Aproximadamente em meados da década de 1960, no período do regime militar, esta cerca se estabeleceu na sua forma mais robusta, como um muro de pedras. O Acampamento se fechava em seu sítio amuralhado, controlando o acesso e a permanência de pessoas estranhas à companhia.

[...] havia discriminação porque algumas pessoas às vezes ficavam na dependência da boa vontade dos guardas, postados na guarita de entrada do acampamento da CHESF, para poder ter acesso às suas instalações. (SOUZA, 2012, p. 140, grifo nosso) Três guaritas de controle se localizavam ao longo do muro que, por sua vez, encontrava­se entre a Rua da Frente e a Rua da Harmonia (do lado do acampamento). Estas guaritas tinham vigilância permanente e os operários chesfianos só tinham acesso à cidade­ companhia após apresentarem identificação própria (crachá) emitida pela empresa. O historiador Antônio Galdino recorda dessas principais guaritas e sobre o sistema de controle: 232

[...] colocação de guaritas com vigilância em três pontos ­ Guarita Principal, Guarita da Rua D e Guarita da Escola Murilo Braga [...] O controle de entrada e saída das áreas da hidrelétrica era rigoroso. Em cada uma das guaritas estavam afixadas fotografias de pessoas que estavam impedidas de ter acesso à área da Chesf e, nelas, especialmente na principal, todas as bolsas, pacotes eram revistados pelos guardas que às vezes até ficavam constrangidos com essa medida com pessoas conhecidas, colegas de trabalho mas precisavam cumprir as ordens do delegado da Chesf. (GALDINO, 2014, p. 44­45) Figura 176 ─ Guarita principal, cerca de arames e Guarda da Chesf

Fonte: Memorial CHESF (1948)

Figura 177 ─ Rua da Frente e a cerca de arames (à esquerda)

Fonte: Memorial CHESF (1956) 233

Figura 178 ─ Rua da Frente vista da cerca de arames e da guarita da Chesf

Fonte: Memorial CHESF (1950)

A mencionada "guarita principal" possuía uma estrutura mais complexa, dispondo de passagem de pedestres e também de via para carros, além de uma edificação onde era realizada a preparação dos visitantes das obras, a chamada "Sala dos Visitantes", a qual é descrita por Alves de Souza (1955, p. 19) da seguinte forma:

A entrada do Acampamento foi estabelecida a Sala dos Visitantes, onde êstes são recebidos por funcionários designados para êsse fim, os quais, depois de fazerem uma exposição rápida sôbre o projeto, diante de desenhos afixados na mesma Sala, acompanham os visitantes às obras e demais serviços da Companhia. Figura 179 ─ Casa de Visitantes

Fonte: Memorial CHESF (1952)

234

Figura 180 ─ A Guarita Principal e as entradas da Vila Operária e das Obras

Fonte: Memorial CHESF (1950)

O artefato que dividiu a cidade de Paulo Afonso simbolizava a segregação entre as classes, que, para além da estratificação social218, significava também ser ou não chesfiano, ou seja, significava ser incluído ou excluído da cidade da companhia. Essa situação suscitou revoltas e uma luta constante pela retirada do muro, desde quando Paulo Afonso ainda era distrito de Glória, sendo uma bandeira levantada no início pelos emancipalistas, liderados por Abel Barbosa, que reivindicavam a unificação urbana, conforme o relato do chefe Abel:

A discriminação revoltante entre a cidade da Chesf, dos ricos, e a Vila Poti, dos miseráveis, irmãos separados por uma cerca de arame farpado, que conseguiu ser piorada quando em seu lugar ergueram um grotesco muro de pedras, o muro da vergonha, motivou muito a nossa luta. Esta foi a minha bandeira de campanha para Vereador pelo Distrito de Paulo Afonso na Câmara de Glória, em 1954. (apud GALDINO, 2014, p. 99, grifo nosso) O "muro da vergonha" foi o apelido dado ao artefato da Chesf por Abel Barbosa, sendo reproduzido pela população até os dias de hoje. Sobre outro aspecto, a estruturação da barreira, transformada num robusto muro de pedras, com aproximadamente 1,60m de altura, e coroado por vegetação constituída por xerófilas e arames farpados, representou também a época de exceção política pela qual passou o Brasil a partir do Golpe Militar de 1964. A cidade foi classificada como "área de segurança nacional", devido a sua caracterização como área estratégica aos interesses do Estado, por conta da existência do seu complexo de usinas hidroelétricas.

218 Conforme o que foi dissertado anteriormente, havia estratificação social até mesmo na company town da Chesf, dividindo as classes por vilas, clubes sociais, escolas etc. 235

Em 4 de julho de 1968, em obediência à lei federal, de nº 5.449 do período da Ditadura Militar, esta cidade tornou­se área de segurança nacional. Através do decreto­lei federal de nº 2.183, de 19 de dezembro de 1984, foi revogada a lei anterior, após 16 anos de intervenção [...]. (REIS, 2004, p. 27) Como área de segurança nacional, a partir de 1968, na cidade de Paulo Afonso foi aplicada uma política de controle. Segundo Melo da Silva (1985, p. 28):

"Paulo Afonso é uma 'zona geopolítica' de sensibilidade onde se aplica a política de consecução dos ONAS ­ Objetivos nacionais atuais. Como tal, o município [...] perdeu sua autonomia política [...]" Ainda segundo o autor, "a militarização e o coroamento da ação centralizadora do Estado na esfera da administração local" é que caracteriza o "município de segurança nacional"219.

Tais municípios, são consequência direta do "modelo de governo" ideado e implantado, a partir de 64, pelos militares e os outros setores dominantes da sociedade. Situados no âmbito da "política nacional de segurança", são tidos como "áreas estratégicas", locais onde se aplica a "idéia de manobra" militar e os fundamentos da geopolítica (espaço político, posição geográfica, etc.) [...]. (MELO DA SILVA, p. 23­24) Dentro desse âmbito da política nacional de segurança e com a instalação da Primeira Companhia de Infantaria do Exército Brasileiro, onde seria o Hospital Regional de Paulo Afonso, o muro ganhou uma dimensão militar. Esse aspecto é perceptível, quando se verifica a posição do Quartel do Exército e da Vila Militar, localizados nas extremidades da Rua da Frente220.

Figura 181 ─ Muro de pedras visto do Acampamento da Chesf

Fonte: Arquivo pessoal de Fátima dos Santos (1974)

219 MELO DA SILVA, 1985, p. 15. 220 Cf. APÊNDICE B ­ Mapa 4A e 4B. 236

Figura 182 ─ Vista aérea da Rua da Frente e o Muro

Fonte: Composição do autor a partir de foto cedida pela Casa da Cultura de Paulo Afonso (1969)

Figura 183 ─ Primeira Companhia de Infantaria do Exército

Fonte: Memorial CHESF (1960)

Durante muitos anos, a cidade sofreu com os efeitos do Estado de Exceção, evidenciado pela presença do Exército na cidade. Durante esse regime, os que discordavam de alguma forma da política da empresa eram perseguidos e proibidos de entrar no seu acampamento, tendo os seus nomes e fotos fixados nas guaritas, sendo trabalhadores ou não 237

da Chesf. A título de exemplo, o comunicador Gilberto Leal, embora fosse funcionário da companhia, foi de pronto demitido porque era aliado de Abel Barbosa, conforme afirma:

Como todos os que chegavam na região, o objetivo era trabalhar na Chesf, o que também aconteceu com ele. Mas, ficou no emprego por pouco tempo. Ignorando os sinais de hostilidade contra Abel Barbosa, que tinha até fotografia exposta nas guaritas e era impedido de entrar nas áreas de hidrelétrica, Gilberto Leal se tornou amigo de Abel e passou a ser reconhecido como "abelista", o que lhe custou o emprego na Chesf [...]. (GALDINO, 2014, p. 366) Essa situação começou a mudar a partir do período de afrouxamento do regime militar no país, quando a sociedade civil pauloafonsina começou a se organizar e forçar a mudança política na cidade. Segundo Melo da Silva (1985, p. 37):

Não obstante todo esse clima político desfavorável, a população de Paulo Afonso, a partir da "política de distensão" do general Geisel, dentro dos limites permitidos, conseguiu se organizar. E foi a partir daí que se delineou duas forças [...] A primeira formada por setores populares, a outra por grandes comerciantes e pessoas ligadas ao poder ou prestigiadas na CHESF, empresa que lhes dá apoio através de seus diretores. Figura 184 ─ Gilberto Leal e o seu carro de anúncios "A Voz do Povo"

Fonte: Casa da Cultura de Paulo Afonso (década de 1960)

Nessa perspectiva, em meados da década de 1980, diante da crise econômica no país que atingiu empresas como a Chesf, em colaboração com as pressões populares, o muro que 238

dividia a cidade foi derrubado. Este movimento foi capitaneado por Abel Barbosa221, que era prefeito da época, notadamente, com apoio do movimento estudantil222 e outras lideranças progressistas da política pauloafonsina. Segundo Ferreira (2012), em 1982, durante a greve dos eletricitários, os estudantes em comunhão com os trabalhadores, questionam a existência do artefato, exigindo a sua queda:

[...] os trabalhadores da empresa, depois de 15 anos de arrocho salarial e de mordaça imposta pela ditadura, começavam a se manifestar, exigindo reposição das perdas e melhores condições de trabalho. Os estudantes, por seu turno, reivindicavam mais e melhores escolas, mobilizavam a população para cobrar dos poderes públicos uma cidade melhor e desafiavam o poderio da Chesf, exigindo a derrubada do muro e maior responsabilidade social da empresa. (FERREIRA, 2012, p. 158, grifos nossos)

4.3 A UNIFICAÇÃO DE PAULO AFONSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

[...] foi uma ação para lavar a alma quando dei as primeiras marretadas, no gesto simbólico da derrubada do muro que durante décadas separou os moradores da Vila Poty e depois cidade de Paulo Afonso do Acampamento da Chesf. Ao longo do muro fiz um loteamento para construção de bares, lojas comerciais, hotéis, ficando a Avenida Getúlio Vargas, a antiga Rua da Frente, com duas ruas comerciais. (ABEL BARBOSA, apud GALDINO, 2014, p. 46) Este evento foi um divisor de águas para história da cidade. No entanto, com a retirada do muro e guaritas, entre 1984 e 1985, a companhia não entregou de imediato a gestão do seu acampamento à Prefeitura Municipal, embora a Chesf tenha assinado um acordo de abertura de seu acampamento223. Isto só ocorreu em 29 de novembro de 2001, quando o município passou a ser o gestor oficial do antigo acampamento, passando a cobrar tributos aos seus moradores.

Com a retirada da maior parte do muro, foram construídas diversas edificações do lado da Vila Poty, anos após esse evento. Entretanto, partes daquele artefato ainda tangenciam as novas construções. Este fato culminou numa situação paradoxal, pois a área que tangenciava o muro, após ser loteada, deu lugar a uma série de edificações, reforçando a natureza de segregação do antigo artefato, e impossibilitando a integração entre as partes de cidade.

221 Abel Barbosa encontrava­se em sua segunda gestão municipal, no período de 04/08/1979 a 31/12/1985 (GALDINO, 2014, p. 136). 222 Nesse caso, representantes da União dos Estudantes Secundaristas de Paulo Afonso ­ UNESPA, fundada em 1983. 223 O processo de negociação foi iniciado em 1983, quando Rubens Vaz Costa assumiu a Presidência da Chesf (SOUZA, 2012, 167). Este ano também foi marcado pela finalização das obras da Chesf em Paulo Afonso, quando instalou­se o último gerador na Usina PA IV. 239

Perdeu­se, dessa forma, a oportunidade de criação de um espaço público que representasse a transição da "cidade segregada" para a "cidade unificada" e, assim, atenuou­se o calor das antigas reivindicações através desse resultado de concessão de lotes aos comerciantes. Neste conjunto, algumas edificações aproveitaram o antigo muro como base e outras foram construídas tangenciando­o ou sobrepondo­se aos vestígios.

A unificação urbana significou vantagens para o município, não apenas pelo aumento da arrecadação de tributos, mas porque também democratizou o uso de equipamentos localizados dentro do Acampamento da Chesf.

Figura 185 ─ Assinatura de acordo para abertura do Acampamento da Chesf

Fonte: Souza (2012, p. 168)

Figura 186 ─ O muro contemporâneo e os vestígios do muro de pedras

Fonte: Fotos do autor (2014) 240

Figura 187 ─ O muro contemporâneo e os vestígios do muro de pedras

Fonte: Fotos do autor (2014)

Figura 188 ─ O muro contemporâneo e os vestígios do muro de pedras

Fonte: Foto do autor (2014)

Segundo Souza (2012, p. 167):

Com a retirada das guaritas, os funcionários da CHESF, que residiam em casas cercadas por muros muito baixos dentro do acampamento, se sentiram desprotegidos. A saída para se ter maior segurança consistiu na elevação da 241

altura dos muros e a contratação de vigilantes autônomos que circulavam pelas ruas dos bairros no período da noite. De acordo com isso, verifica­se que o muro de pedras foi substituído por muros individuais, edificados por uma motivação relativa à noção chesfiana de segurança que o artefato supostamente proporcionava aos moradores do Acampamento. Aparentemente, enquanto a derrubada do muro foi uma vitória para os moradores da Vila Poty, por outro lado, para os chesfianos significou uma invasão de seus domínios, pelo menos nos primeiros anos após a sua queda.

Até 1985, as alterações na company town foram restritas à retirada do muro. Os pontos onde se encontravam as guaritas de controle foram rasgados por vias da malha urbana. Por outro lado, a Chesf paralisou os seus investimentos, desvinculando­se da administração dos equipamentos e entregando a sua gestão para terceiros224. Nesse processo, a empresa iniciou a comercialização de seus bens na cidade, o que garantiu um retorno financeiro de seu investimento que correspondeu ao período de implantação e expansão de seu empreendimento.

Dessa forma, o período pós­muro representa a desmobilização ou, melhor, desvinculação da Chesf com a sua company town em termos de investimentos, pois desabonou a empresa de prestação de serviços, manutenção de seu núcleo e ainda lhe trouxe retorno financeiro promovido pela comercialização, a princípio, de residências e, nas décadas seguintes, dos equipamentos de seu centro de serviços.

Como consequência dessa tendência, na década de 1990, a Chesf acelerou o seu programa de desmobilização de seu núcleo, repassando suas casas aos seus funcionários (moradores), através de venda a preço acessível.

A CHESF, em atendimento ao processo de desmobilização estabelecido pelo Tribunal de Contas da União, vinha desde 1995 contratando avaliações junto à CAIXA, para obter os valores de mercado que subsidiassem a venda de 5.000 unidades habitacionais. Deste total, apenas 1.500 unidades foram vendidas restando 3.500 unidades e o ônus da manutenção das mesmas gerava impactos no resultado operacional da CHESF. Isto se devia em parte a promulgação da LEI 8.883/94, cujo art.17 estabelecia que esses imóveis deveriam ser alienados aos seus possuidores diretos, ou na falta destes, ao Poder Público. (BRAZ, 2006, p. 2­6) Segundo Farah e Farah (1993, p. 91):

De acordo com informações da CHESF [...] Através de reforma administrativa, a empresa tem vendido casas da vila a funcionários que se

224 A Coochesf já era administrada pelos funcionários desde a década de 1960. Entretanto, era subsidiada pela companhia. 242

aposentam. Neste sistema, até março de 1992, já haviam sido vendidas 230 residências. Ao longo dos anos, as escolas construídas e administradas pela Chesf foram repassadas ao Governo do Estado da Bahia, à rede municipal e para universidades (UNIVASF, UNEB e ao IFBA); o Restaurante foi demolido, dando espaço à sede do Ministério do Trabalho e ao prédio da Receita Federal; a Coochesf foi cedida à Justiça Federal, sendo readequada funcionalmente; a Padaria da Chesf foi leiloada, sendo reformada e transformada no posto de combustíveis; já o Grande Hotel foi colocado em leilão e não se sabe o seu destino; diversas edificações residenciais da Vila Operária foram reformadas e descaracterizadas. Excetuando­se os conjuntos mais conservados que estão localizados na Vila Alves de Souza e nos Bairros General Dutra e Oliveira Brito, onde ainda residem diversos funcionários e aposentados da Chesf.

Verificou­se também que, a partir da experiência de Paulo Afonso, a Chesf mudou a sua postura na gestão de núcleo urbano de suporte aos seus empreendimentos, demonstrando uma lógica de planejamento diversa em relação ao passado. Pelo menos, observou­se este aspecto na implantação da Vila Xingó, constituída em fins da década de 1980 como suporte à construção da Usina Hidroelétrica de Xingó. Esse núcleo urbano foi concebido como um modelo "aberto", sendo localizado a cerca de um quilômetro da cidade de Piranhas em Alagoas. Na Vila Xingó, os equipamentos comerciais e de serviços (mercados, padaria, banco etc.) eram administrados desde a sua implantação por terceiros, as escolas faziam parte da rede pública e os serviços urbanos como água e energia elétrica eram administrados pelas concessionárias estaduais.

Figura 189 ─ A CHESF na Vila Xingó

Fonte: foto do autor (2015)

243

Figura 190 ─ Casas de operários da Vila Xingó

Fonte: foto do autor (2015)

Figura 191 ─ Centro comercial da Vila Xingó

Fonte: foto do autor (2015)

Figura 192 ─ Escola da rede estadual na Vila Xingó

Fonte: foto do autor (2015) 244

Em 1997, após o término das obras, a Vila Xingó foi sendo esvaziada pelos trabalhadores de diversas categorias da companhia e, concomitantemente, ocupada por moradores da cidade­livre, denominada Piranhas Nova, que também foi formada na época da construção da hidroelétrica. Atualmente, a antiga Vila Xingó e Piranhas Nova, constituem­se como um único assentamento chamado de Bairro de Xingó.

Entretanto, ao contrário do que aconteceu em Paulo Afonso, a Vila Xingó e sua cidade­livre não desenvolveram outras atividades econômicas alternativas ao empreendimento da Chesf, ficando vazia, nos primeiros anos após o término das obras, e se desenvolvendo timidamente como bairro de Piranhas, tendo um pequeno comércio deficiente. Aparentemente, não houve um planejamento de pós ocupação dessa vila225.

Do ponto de vista do município de Paulo Afonso, com a unificação urbana, a Prefeitura ainda não contava com os recursos necessários às melhorias requeridas pela parte mais pobre da cidade. Segundo o ex­prefeito José Ivaldo226:

Para se ter uma idéia da disparidade de recursos à disposição da Chesf e os que dispõe a Prefeitura – explica o prefeito ­ a verba destinada pela Chesf, em 1986, à manutenção do que ela chama de acampamento foi de Cz$ 140 milhões, enquanto que o orçamento da prefeitura, no mesmo ano, foi de Cz$ 28 milhões, um quinto da verba aplicada para a manutenção da área da Chesf. (TRIBUNA DA BAHIA, 1987, apud FERREIRA, 2012, p. 163). Esta situação mudou a partir da conquista dos Royalties227 em 1988 ─ sistema de compensação financeira incluído na Constituição Federal de 1988 em seu Art. 20, § 1º, e regulamentado pela Lei nº 7990 de 28 de dezembro de 1989 e Decreto número 1 de 11 de janeiro de 1991 ─, obrigando a Chesf à pagar compensações financeiras ao município de Paulo Afonso pelo uso de seus recursos hídricos na produção de energia elétrica, uma espécie de "tributo ambiental" (FERREIRA, 2012). Segundo a Constituição Federal (Art. 20):

225 Isto suscita questões importantes relacionadas ao planejamento entre empresa e município, carecendo de estudos mais aprofundados, que não fazem parte do âmbito desse trabalho. 226 José Ivaldo de Brito Ferreira foi o primeiro prefeito eleito de Paulo Afonso, entre 01/01/1986 a 31/12/1988, após o período dos Governos Militares, sendo eleito pelo Movimento Democrático Brasileiro (atual PMDB) com apoio dos eletricitários, trabalhadores rurais, Igreja Católica local e movimento estudantil. Outrossim, foi o responsável pela luta e conquista dos Royalties (compensação financeira) devidos ao município de Paulo Afonso pela CHESF em 1988. Entretanto, apesar dessa conquista, o município não recebeu compensações financeiras durante o seu mandato, apenas no mandato do seu sucessor, ou seja, esses recursos começaram a ser recolhidos a partir de 1991. 227 A proposta inicial para o pagamento de Royalties por parte da CHESF ao Município de Paulo Afonso surgiu durante a II Feira Cultural de Paulo Afonso em 1980, promovida pelo movimento estudantil, durante debate sobre alternativas para o desenvolvimento de Paulo Afonso, com a presença de representantes da Igreja Católica e da Associação Comercial local. Na ocasião, José Ivaldo, como lider estudantil, baseando­se nos Royalties pagos pela Petrobrás aos municípios e estados produtores de petróleo, defendeu esta ideia (FERREIRA, 2012).

245

§ 1º É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração. Entretanto, a conquista dos Royalties não foi um processo fácil, devido aos esforços e poder da Companhia que se empenhou em dificultar o êxito da reivindicação. Segundo Ferreira (2012, p. 164):

A Chesf, entretanto, resolveu trabalhar para inviabilizar o movimento. Para tal, espalhou boatos de que os royalties seriam pagos pelos contribuintes, principalmente os eletricitários que residiam na sua vila [...] Ademais, usou de toda a sua força para pressionar os prefeitos das cidades circunvizinhas que poderiam ser beneficiadas a não aderirem à campanha. A partir dessa conquista, que só se efetivou em 1991, a cidade de Paulo Afonso começou a dispor de uma das maiores receitas municipais do Estado da Bahia em termos de compensação financeira pelo uso de recursos hídricos.

Do total de R$ 48.629.272,08 distribuídos aos municípios baianos em 2011, a título de compensação financeira de hidrelétricas, o Município de Paulo Afonso recebeu mais de R$ 21 milhões (o valor exato foi de R$ 21.531.184,01), conforme dados da Aneel, equivalente a 11,33% da receita municipal total do mesmo ano, que foi de R$ 189.945.291,52. Este percentual tem variado ao longo do período entre 10% e 20% da receita total municipal. O Estado da Bahia recebeu em 2011 o valor de R$ 48.629.272,08. (FERREIRA, 2012, p. 171) Figura 193 ─ Cartaz da campanha pelos Royalties em 1987

Fonte: Ferreira (2012, p. 166) 246

Percebe­se, então, que a conquista dos Royalties contribuiu para melhorar as receitas do cofre público no Município de Paulo Afonso e, assim, para melhoria da infraestrutura urbana da Vila Poty e, por conseguinte, da qualidade de vida de sua população, já que:

Os recursos da compensação financeira e royalties podem ser aplicados em quase todas as despesas municipais, exceto pagamento de dívida e do quadro permanente de pessoal. Por este motivo é utilizado principalmente na realização de obras e serviços de infra­estrutura, tais como pavimentação, construções, praças, energia elétrica, transportes, etc. (GALDINO, 2014, p. 156) De outro ponto de vista, o centro comercial ─ constituído na Rua da Frente e nas suas adjacências ─, bem como a sua feira­livre regional, desempenharam um papel econômico alternativo aos negócios da Chesf, proporcionando uma sobrevida à cidade­livre, antes dos benefícios das compensações financeiras. Segundo o pesquisador Sérgio Malta, a feira­livre agregou valor ao comércio de Paulo Afonso, gerando uma economia não apenas local, mas mobilizou comerciantes da região:

[...] a feira livre não funcionou como elemento em contraposição aos interesses dos supermercadistas. A presença de feirantes e consumidores, tanto da área urbana quanto da rural desse município como do seu entorno regional, criou uma economia de escala intra­ urbana e inter­urbana, embora relativamente restrita, principalmente aos dias de funcionamento da feira que é a sexta e o sábado. Trata­se de um caso, comum nas economias em desenvolvimento, de suporte mútuo entre os setores formais e informais da economia urbana [...] (MALTA, 2008, p. 138) Com o fortalecimento da municipalidade e a chegada de instituições de desenvolvimento no município, foram fomentadas atividades voltadas à agricultura familiar e à pecuária, notadamente a caprinocultura, sendo construído um parque de exposições agropecuárias na urbe. A piscicultura de tanques e redes também aqueceram a economia municipal, a partir dos primeiros anos desse século, trazendo para cidade a fábrica de pescados Netuno. A criação de determinadas condições elevaram o município a pólo regional na produção de tilápias:

[...] percebe­se que a condição de pólo regional de produção de tilápia é resultante da confluência de vários fatores, destacando­se a disponibilidade de recursos hídricos de boa qualidade nos lagos formados com a construção de hidrelétricas na região, a qualificação profissional para o setor, dado a existência de um curso de Engenharia de Pesca, em Paulo Afonso, conduzido pela UNEB ­ Universidade do Estado da Bahia e o direcionamento de ações institucionais de apoio e fomento a atividade, através da Prefeitura Municipal, SEBRAE, UNEB e BANCO DO NORDESTE. (MALTA, 2008, p. 156) 247

A unificação urbana de Paulo Afonso contribuiu para a democratização do assentamento urbano antes sob controle da Chesf. Porém, este evento não representou, a princípio, as melhorias tão clamadas pelo movimento político da Vila Poty. Ao longo das décadas, foi necessário a criação de novas fontes econômicas independentes do negócio daquela empresa.

248

CONSIDERAÇÕES FINAIS

249

Esta Dissertação comprometeu­se a estudar, através da experiência da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco ­ CHESF em Paulo Afonso, os núcleos urbanos produzidos por uma indústria elétrica. No entanto, neste trabalho, não houve a intenção de dar por encerrado a história de company towns e de cidades­livres no Brasil228. Dessa forma, revela­ se como contribuição aos estudos de história urbana relacionados ao setor elétrico. Como constatamos, ao longo do trabalho, a CHESF foi a primeira experiência da indústria elétrica estatal, atuando não apenas como geradora mas, também, produzindo espaço urbanizado e transformando o térritório municipal de Paulo Afonso numa paisagem associada ao seu empreendimento, imprimindo nele a sua própria razão de ser. Verificou­se que a construção de uma hidroelétrica pode causar grandes impactos no território e na sociedade, pois as suas barragens e reservatórios se constituem em extensas áreas, alagando regiões e cidades, realocando famílias229 e transformando a paisagem. Por outro lado, esse tipo de empreendimento ─ considerando sua inserção em regiões interiorizadas e de difícil acesso ─ não seria realizado sem a construção de assentamentos urbanos. São necessários como suportes aos empreendimentos e variam em termos de padrão de qualidade, dependente do poder econômico do grupo empresarial e da tecnologia requerida pelo seu negócio. No caso de indústrias estatais, como a Chesf, verificou­se que determinados programas e medidas governamentais beneficiaram o seu empreendimento e, por consequinte, o investimento no seu núcleo urbano. Em Paulo Afonso, o sistema organizacional da company town chesfiana correspondeu às formas de gestão dos trabalhadores, objetivando a geração de melhores resultados para empresa e controle dos fluxos, tempo e logística. Esse modelo se mostrou segregacionista no seu interior, através da segmentação de vilas por categoria funcional. Por outro lado, essa mini­cidade se fechava à Vila Poty, gerando diversos conflitos ao longo de sua história urbana. A Vila Poty, por sua vez, apresentava­se como um apêndice da cidade­companhia, mantendo uma relação de dependência econômica e social por algumas décadas. A Chesf utilizava a Poty como um depositório de sua mão de obra não especializada, contribindo, de um lado, com algumas melhorias de infraestrutura da vila, na qual também atuava politicamente.

228 Foram indicadas apenas algumas experiências no capítulo 1, tanto de hidroelétricas como de mineradoras que produziram company towns e de seus assentamentos apêndices ­ as cidades­livres. 229 Como no caso da Eletronorte narrado no capítulo 1. 250

Essas relações de conflitos e dependência econômica e social, demonstram a especificidade desse tipo de urbanização. Estes assentamentos urbanos se encontram na mesma origem, basta ver que a cidade­livre é uma manifestação do poder que uma hidroelétrica possui em promover movimentos migratórios e colonização em territórios despovoados, sobretudo, em meados do século XX. O processo de implantação de um empreendimento dessa envergadura não deveria prescindir de um planejamento que considerasse esses processos migratórios e de povoação, criando, em comunhão com o Poder Público, alternativas econômicas aos negócios das companhias. Considera­se que, do mesmo jeito que os empreendimentos geram postos de trabalho ─ sobremaneira na fase de implantação das hidroelétricas ─, numa fase posterior, esses núcleos podem ser esvaziados, como aconteceu na Vila Xingó. De outro modo, após a experiência da Chesf em Paulo Afonso ─ que foi o seu projeto piloto ─, observou­se uma mudança no seu padrão de produção e gestão de assentamentos para os seus funcionários, apresentando­se230, como exemplo, o caso da Vila Xingó, constituída como um "modelo Aberto", onde a iniciativa privada e o município absorveram, desde o início, a gestão e prestação de serviços à comunidade. Verificou­se, também, que esse padrão já era utilizado, pioneiramente, pela Cesp. A empresa adotava diretrizes no planejamento de seus núcleos urbanos, utilizando cidades existentes como suportes para os seus empreendimetos, ou construindo novas vilas ou cidades com o envolvimento de outros atores sociais. Esse parece ser também um fator importante para a longevidade dos assentamentos implantados ou promovidos, indiretamente, pelas empresas. Em relação ao estudo relacionado à cidade­livre, é notória a sua importância e contribuição, no caso de Paulo Afonso, para a unificação urbana. Entretanto, cabe observar que, embora o movimento promovido pelos emancipalistas, estudantes e eletricitários tenha a sua importância política nesse processo, as condições desfavoráveis da política econômicas e a crise financeira que empresas como a Chesf vinham enfrentando em meados da década de 1980, parece ter sido a condição sine qua non à abertura de seu acampamento. Nesse período, em fevereiro de 1983, Rubens Vaz da Costa assume a presidência da Chesf, sendo o primeiro "economista" nessa cadeira, deixando esse cargo em maio de 1985. Esse presidente assinaria o acordo de abertura do Acampamento da empresa em Paulo

230 No último capítulo. 251

Afonso, promovendo uma fase empresarial de desoneração e retirada de responsabilidades administrativas em relação ao seu núcleo urbano. Já do ponto de vista do município de Paulo Afonso, verificamos que a condição fundamental para a sobrevivência de uma cidade­livre corresponde à sua capacidade em criar alternativas econômicas desvinculadas aos negócios da companhia ─ sobretudo na fase posterior à construção de barragens ─, tornando­se autônoma. No entanto, nesse caso, a conquista dos Royalties foi fundamental para as melhorias requeridas por esse município. Por fim, o modelo de company town fechada representou um período histórico importante para a industrialização brasileira mas, em contrapartida, perpetuou as relações e os mecanismos de controle herdados de paradigmas anteriores231, mesmo que atenuados pelas promessas de desenvolvimento social e redenção do Nordeste. Por outro lado, a cidade­livre expressou a reação ao poder que segregava a cidade de Paulo Afonso, denominada por alguns de "capital da energia".

231 Vide Capítulo 1. 252

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APÊNDICE A

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APÊNDICE A

A construção da Usina de Paulo Afonso: o sistema de barragem e os experimentos tecnológicos

Neste apêndice, como forma complementar, serão apresentados os processos, experimentos e tecnologia utilizada pela equipe técnica da Chesf, sob a coordenação do engenheiro Octavio Marcondes Ferraz, para vencer as etapas de fechamento do braço principal do rio com fins de construção das barragens e composição do reservatório das três primeiras usinas hidroelétricas de Paulo Afonso. Por fim, será transcrito o depoimento do engenheiro Bret Lôlas de Cerqueira Lima, o qual era parte da equipe na época.

1. O fechamento do rio e as escavações nos maciços rochosos

Segundo o primeiro presidente da Chesf, o engenheiro Antônio José Alves de Souza232, os maiores problemas no início das obras em Paulo Afonso, relacionavam­se às escavações subterrâneas em grandes maciços rochosos, com muita opacidade, e à questão do fechamento do braço principal do rio São Francisco, devido à grande força da correnteza, o que gerou soluções criativas e inusitadas à época. Assim, o sistema de barramento se dividiu em duas etapas, descritas a seguir.

Para a construção do sistema de "ensecadeira"233, necessária à criação de uma área seca que, por sua vez, possibilitasse a construção das comportas, era necessário desviar as águas do braço principal do rio, pois as células da ensecadeira eram constituídas por barras de aço, que vergavam com a força da correnteza. Assim, o engenheiro Octavio Marcondes Ferraz projetou uma solução original, encomendando a uma empresa francesa uma espécie de caixão

232 Alves de Souza era engenheiro de minas e civil, formado pela Escola de Minas de Ouro Preto em 1920. Foi membro da Divisão de Águas do Ministério da Agricultura, desenvolvendo estudos relacionados à questão de aproveitamento de recursos hídricos, dentre os quais o da bacia hidrográfica do rio São Francisco. 233 O sistema de ensecadeira é constituído por um conjunto de células cilíndricas, construídas por estacas metálicas, preenchidas por areia, coroadas por anéis de concreto armado e um piso de concreto, por onde trafegavam os trabalhadores e a maquinaria. Esse conjunto formado por células isolava parte do leito do rio, permitindo a secagem dessa área e, por conseguinte, a construção das fundações e pilares das comportas móveis. A primeira ensecadeira se constituiu na primeira metade do rio, por oito células, sendo sete com o diâmetro de 15,28 metros e uma com o diâmetro de 17,47 metros (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 27). 260

flutuável234 ou "navio", como ficou conhecido, o qual possibilitaria a barragem das águas por trecho, enquanto era construída cada célula da ensecadeira (CENTRO, 1993, p. 106).

Figura 194 ─ Esquema do sistema de ensecadeira e gaiola

Fonte: Alves de Souza (1955)

Figuras 195 e 196: Caixão flutuável ou "navio"

Fonte: Memorial CHESF (1950)

234 Este artefato tinha 18 metros de comprimento, 6 metros de largura máxima, 10 metros de altura, pesando 125 toneladas vazio e 350 toneladas cheio de água (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 28). 261

Figura 197 ─ Primeira Ensecadeira e do "navio"

Fonte: Composição do autor a partir de foto cedida pelo Memorial CHESF (1953)

Figura 198 ─ Ensecadeira seca e estrutura das comportas em construção

Fonte: Memorial CHESF (1953) 262

Com o fechamento da primeira metade do braço do rio e já com o andamento da construção das bases das comportas, em outubro de 1953, dando continuidade aos trabalhos, a diretoria técnica verificou que o uso do "navio" para a construção do sistema de ensecadeira foi eficiente até metade da largura do rio235, possibilitando a construção de parte das comportas previstas, mas a outra metade do rio ficou estrangulada e, por conseguinte, aumentou a força da correnteza, o que dificultou ancorar o "navio". Assim, foi necessário criar uma estrutura semiflexível, chamada de "gaiola", embutida de pedras ─ processo conhecido como enrocamento ─, que propiciou a redução da força da correnteza e, consequentemente, foi possível construir as outras células236 da ensecadeira que, por sua vez, permitiu a secagem do resto da área e a construção das outras comportas.

Figura 199 ─ Estrutura semiflexível ("gaiola")

Fonte: Memorial CHESF (1954)

235 A seção do rio no braço principal, nas épocas de estiagem, tinha as seguintes características: 120 metros de largura, profundidade média de 7 metros, com trechos onde essa profundidade chegava a 14 metros, tendo um leito rochoso e irregular, com velocidade das águas de 3,5 metros por segundo (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 26). 236 Foram construídas mais 3 células e entrecélulas a montante do enrocamento. 263

Figura 200 ─ Enrocamento ­ preenchimento da "gaiola" com pedras

Fonte: Memorial CHESF (1954)

Este episódio histórico é descrito detalhadamente no relato do engenheiro Bret de Cerqueira Lima (CHESF, 2006), a seguir. As soluções encontradas por Marcondes Ferraz foram inusitadas, tanto o "navio" quanto a "gaiola", e no caso do segundo elemento, a estrutura semiflexível, não foi a priori aceita pela equipe técnica do Banco Mundial237, gerando alguns conflitos e forçando a equipe técnica da CHESF a se reportar ao Banco. Assim, o diretor técnico teve que se deslocar até a sede do banco em Washington, nos Estados Unidos e, através de cálculos, provar a viabilidade de sua solução, antes de sua realização. Verifica­se este fato no depoimento do engenheiro Marcondes Ferraz sobre sua ida a Washington:

[...] Cheguei na quarta­feira santa de 1954. No dia seguinte fomos ao Banco e procuramos o general Wheeler, que disse: "Mandamos chamá­lo porque a questão não está bem esclarecida e gostaríamos de ouvi­lo." Respondi: "Pois não." Ele: "Agora, não, preciso convocar o meu staff. Marcamos para amanhã" [...] No dia seguinte estavam lá os cobras todos ­ uma mesa com vinte metros de comprimento, uma dúzia de sujeitos sentados de um lado, o general presidindo, o dr. Sousa e eu. O general: "Gostaríamos que você nos explicasse..." Eu então tomei a palavra: "General, sou muito grato ao senhor, porque trata­se de um problema sério, todo mundo diz que a solução que dei está errada, que aquilo vai cair, mas nunca ninguém me pediu para explicar

237 O Banco Mundial financiou parte dos custos das obras das usinas de Paulo Afonso, mantendo um acompanhamento do processo de construção através de seu assessor, o engenheiro Adolph Ackerman, o qual emitiu relatórios discordando da estrutura de enrocamento, afirmando que essa estrutura iria romper e, consequentemente, a empresa ficaria desvalorizada e iria à falência (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 33). 264

os detalhes da operação. É isto o que vou fazer agora." Todos arregalaram os olhos: "Como!? Está­se massacrando este homem e ninguém se aprofundou na questão!" Aí comecei a fazer a minha exposição, que durou mas u três horas. Ao final, o general fez umas perguntas e disse: "Estou muito impressionado com o seu depoimento. Você e o Quandt [...] vão fazer a ata e amanhã nos reuniremos de novo para discutir." No dia seguinte, mais perguntas: "Bom, e se falhar?" Eu respondi: "No relatório que fiz para o homem do parecer, citei nove processos para realizar o trabalho, de modo que ainda teremos outros oito." E o general concluiu: "Então você vai fazer o serviço como projetou. Nós pedimos apenas para mandar um observador, que não vai intervir." (apud CENTRO, 1993, p. 108­ 109) Em cerca de cinco dias, após este episódio, chegou em Paulo Afonso o tal observador238 e, nove dias depois, a equipe técnica da companhia conseguiu fechar a outra metade do rio, utilizando a "gaiola" e provando a viabilidade técnica e financeira dessa solução239. Porquanto, sabe­se que foi montado um laboratório na obra, no qual a equipe da Companhia realizou ensaios e simulações no modelo reduzido240, o que garantiu que essa solução fosse testada antes de tudo (CENTRO, 1993, p. 109).

O modo de comportamento das estruturas e da rêde e o comportamento das pedras de mão lançadas, assim como a distância conveniente a êsse lançamento para que as pedras não aderissem às rêdes e fôssem obrigadas a cair no fundo, foram meticulosamente observados em modêlo, no modesto laboratório hidráulico mantido em Paulo Afonso para o estudo conveniente de alguns problemas hidráulicos. (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 32) A diretoria técnica entendia que uma obra de uma grande hidroelétrica não poderia correr o risco de má execução decorre de decisões sem fundamentação científica. Assim, as etapas da obra eram testadas, antecipada e cuidadosamente, através de modelos reduzidos sob supervisão de engenheiros com especialidades diversas, haja vista que ali estavam testando experimentos originais, sem precedentes, como foi o caso da "gaiola".

238 O dito observador era chamado de Neil Bass (DIAS, 1993, p. 109). 239 Segundo o engenheiro Marcondes Ferraz, gastou­se 120 mil dólares com essa solução. Por outro lado, os estadunidenses utilizaram uma solução semelhante no rio Columbia, com largura semelhante, mas levaram seis semanas e gastaram 1,318 milhão de dólares (apud DIAS, 1993, p. 109). 240 O modelo reduzido foi montado, nas duas etapas de fechamento do braço principal do rio, pelo engenheiro francês André Balança (DIAS, 1993, p. 126). Em Paulo Afonso foi instalado um laboratório de concreto, para testes e preparo dos traços de concreto e aplicação, e um laboratório hidráulico, o qual foi fundamental para os testes de modelos e problemas hidráulicos de maior relevância (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 17­18). 265

Figuras 201 e 202 ─ Modelo reduzido

Fonte: Memorial CHESF (1952)

Figura 203 ─ Modelo reduzido da "gaiola"

Fonte: Memorial CHESF (1953)

Figura 204 e 205 ─ Modelo reduzido ­ testes de enrocamento

Fonte: Memorial CHESF (1954) 266

Após a construção da ensecadeira na segunda metade do rio, houve um grande avanço na obra, e em cerca de um ano foram executadas mais seis comportas, completando o total de dez comportas no braço principal do Rio São Francisco. Terminada esta etapa, o sistema de represamento e barragem móvel foi concluído, ficando o conjunto subdividido entre barragem oeste e leste, sendo que na barragem leste se encontram os sistemas de comportas em três trechos distintos: a barragem leste tem um total de 24 comportas, sendo 10 comportas no braço principal do rio, 8 comportas no braço do Quebra e 6 comportas no braço do Taquari (ALVES DE SOUZA, 1955).

Figuras 206 e 207 ─ Conclusão da obra e abertura das comportas

Fonte: Memorial CHESF (1955)

Figuras 208 e 209 ─ Comportas do braço do Quebra e do Taquari (à direita)

Fonte: Memorial CHESF (1954)

267

Figura 210 ─ Barragens e reservatório formado

Fonte: Composição do autor a partir de foto cedida pelo Memorial CHESF (1956)

Além do sistema de barramento e formação do reservatório, foi realizado o sistema de adução e descarga da usina ─ etapa de escavações subterrâneas realizadas em maciços rochosos, paralelamente ao represamento do rio ─, constituído pelos túneis de adução e descarga, poços de acesso, galerias de sucção, chaminés de equilíbrio, casas de máquinas, além da instalação da maquinaria pesada, responsáveis pela geração (ALVES DE SOUZA, 1955, p. 21).

Por sua vez, após serem realizadas as sondagens e estudos geológicos241, iniciaram­se as escavações subterrâneas242 sob comando do engenheiro Domingos Marchetti, sendo extraídos 70 metros cúbicos de rocha. Essas escavações subterrâneas, segundo Alves de Souza (1955, p. 22):

[...] apresentavam aspectos variados em forma e em dimensões: 3 poços verticais de adução com partes curvas em plano vertical com diâmetro de 4,80 metros depois revestidos; dois poços verticais de 6,50 metros de diâmetro, um com 76 metros de profundidade, destinado à movimentação de carga pesada, e outro com 81 metros de profundidade, a ser alargado mais tarde para 14 metros de diâmetro até certa altura, a fim de constituir a Chaminé de Equilíbrio; a caverna para a Casa de Máquinas; as galerias de sucção, com curvas em plano horizontal; o Túnel de Descarga de 180 metros de comprimento e 10 metros de diâmetro após revestimento e um outro paço

241 Esses estudos foram realizados pelos geólogos Plínio Lima e Jean Goguel. 242 O engenheiro Domingos Marchetti, utilizou­se da "técnica sueca" de perfuração, a qual emprega martelos pneumáticos leves, injetando água e acionando brocas de aço especial com pontas de tungstênio. 268

vertical de seção retangular de 850 x 2 metros, destinado ao elevador de passageiros definitivo e à passagem dos condutores. Verifica­se, assim, a complexidade na arquitetura de túneis, evidenciando também a dificuldade de sua realização com a mobilização de mão­de­obra e de máquinas em túneis profundos, utilizando­se de elevadores e estruturas improvisadas, experimentações diversas da engenharia moderna. Tal sistema de túneis era responsável pela adução das águas conduzidas às turbinas, tendo uma importância essencial para a geração de energia elétrica, de tal modo que se tornou recorrente a exibição do projeto desse sistema em diversos eventos de inauguração ou em visitas de políticos à obra, fazia parte da agenda de visitas também uma sessão de exposição desse projeto pelo diretor técnico Octavio Marcondes Ferraz.

Figura 211 ─ Corte esquemático do sistema de adução e descarga da usina

Fonte: Alves de Souza (1955)

269

Figura 212 ─ Octavio Marcondes Ferraz explicando o sistema

Fonte: Memorial CHESF (1954)

Figura 213: Túnel aberto e estruturado

Fonte: Memorial CHESF (1953) 270

Em síntese, o processo de construção pioneiro para aproveitamento da força hidráulica da cachoeira de Paulo Afonso, resultou na concepção do seguinte conjunto: uma barragem243 de 4 707m de extensão com a forma do sinal matemático de raiz (√), de uma margem à outra do rio, cruzando os pequenos braços do Capuxu, Taquari e Quebra e o leito principal; túneis adutores, entre a tomada d'água e a casa de máquinas subterrânea abobadada com quinze metros de vão, localizada a cerca de 81 metros abaixo do nível do reservatório; tubos de sucção; chaminés de equilíbrio e túneis de vazão, que se abrem no canhão do rio, a jusante da cachoeira. As casas de comando e as subestações elevadoras estão situadas na ilha baiana, ao sul da tomada d'água, sobre as rochas que recobrem as casas de força. No fim desse processo, três usinas foram projetadas, mas não foram construídas de uma só vez, sendo realizadas gradualmente, seguindo o projeto original do engenheiro Octavio Marcondes Ferraz (CENTRO, 1993, p. 100­101).

2. Transcrição do documentário Memória CHESF por Bret Cerqueira Lima de 2006

"Meu nome é Bret Cerqueira Lima, eu sou engenheiro civil. Quando eu fui convidado pra vir pra Paulo Afonso, eu senti uma alegria muito grande porque eu sabia que iria trabalhar numa obra, era a grande obra nacional daquele tempo, era a única, a única obra era Paulo Afonso... eu fiquei muito satisfeito, feliz mesmo porque ia tentar trabalhar com o Dr. Marcondes Ferraz, Dr. Souza e outros profissionais liberais de reconhecida capacidade. Minha primeira missão foi fazer um serviço de topografia, mas logo depois me pediram, me entregaram o serviço de aprovisionador da obra e como aprovisionador da obra eu tinha que correr todos os pontos da obra, todos os locais pra ver o que estava faltando, se tava faltando alguma coisa, se não tava, se tava faltando tinha que providenciar e tudo. Então, eu fiz inúmeras coisas antes de me firmar."

PAULO AFONSO - Bahia A transformação da caatinga Acampamento CHESF Estrutura inicial "Quando eu cheguei aqui em 1949 não tinha, não tinha, eh, eh... não tinha nada ainda, era caatinga, mato, caatinga, caatinga, caatinga... Ah, não tinha ainda residência, não tinha nada e, então, e, então, uh, uh, nós morávamos na casa de hóspedes, na casa grande, chamada, aonde tinha o quarto do Dr. Marcondes, tinha uma estação de rádio pra contato com o Rio de Janeiro, Salvador e Recife e tinham os outros quartos, onde os engenheiros, já presentes aqui, dormiam. Eram seis em cada quarto, era uma confusão

243 Esta barragem é subdividida entre a barragem leste, no lado alagoano, e a barragem oeste, no lado baiano, as quais confluem para a tomada d'água. 271

danada, e de manhã cedo a gente tinha que acordar cedo, pra tomar banho primeiro, pra pegar lugar no transporte, porque só tinha dois jipes pra levar pra obra. Então, então, uh, uh, a gente acordava cedo pra se preparar, tomar café e sentar no jipe, senão ia a pé. Agora as noite em Paulo Afonso eram muito bonitas, porque acostumado em Salvador, com a cidade iluminada e, quando cheguei aqui, o local aqui, Paulo Afonso no escuro, não tinha iluminação, cá por baixo, iluminação de rua nessa coisa toda. Então, o céu era uma beleza e a gente saia de noite pra passear, mas olhando as estrelas, mas de vez em quando tinha que olhar pro chão pra não pisar numa cascavel, numa, numa, numa outra cobra venenosa qualquer, porque era o que mais tinha aqui, era cobra. A companhia numa, numa, numa região inóspita e distante como era Paulo Afonso... caatinga, pedra, cobra e, e longe de Salvador 400 quilômetros e outros tantos quilômetros de Recife, de Aracajú, de Maceió. Então, a coisa aqui era difícil... Então, a companhia teve que fazer uma acampamento, acampamento dando residências, confortáveis, e, e armazém de subsistência, uma igreja, uh, uh, os clubes sociais, o clube lá do pessoal universitário, o clube dos operários e assim foi... escola primária foi dado também, posto de puericultura. Tudo isto foi construído para poder segurar a população aqui, porque tinha que ser assim não é? pra poder compensar essa inospitalidade e essa distância."

A primeira Arrancada Obras da Usina PA 1 "A primeira parte foi um levantamento do local, onde seria feita a obra, e o Dr. Marcondes então projetou a obra. Tinha que ser construída uma usina subterrânea, tinha que fazer a usina lá embaixo a 83 metros de profundidade, dentro da rocha; Pra fazer a usina tinha que se domar o rio... paralelo a isso, tava se cavando os túneis adutores por onde a água desceria para movimentar a turbina, escavando o poço da, da, de descida de elevador pra levar o passageiro lá embaixo. ah, cavando o poço da subida dos cabos com a energia gerada pelo gerador que vinha cá pra cima... tudo isso! e escavando também pra fazer a barragem, tudo em rocha, tudo em rocha. Na, na, na barragem, por exemplo, era rocha e teve, teve uma, uma, uma parte, um local onde teve que se cavar pra encontrar a rocha sã, teve que se cavar 20 metros, a fundação da barragem tava a 20 metros abaixo e a barragem cá em cima. Enquanto isso, na obra, as obras todas, a escavação, a, a, a ensecadeira, a, a, as estradas de serviço, tudo isso, a concretagem da barragem, tudo isso era feito paralelamente. E como aprovisionador da obra, eu tinha que correr todos os pontos da obra, todos os locais pra ver o que tava faltando, se tava faltando alguma coisa, se não tava, se tava faltando eu tinha que providenciar e tudo. Fui designado pra, como supervisor do transporte, acionar o transporte pra transportar a areia pra fazer o concreto, uma vez que a brita era feita da pedra detonada que levava pra os britadores, o cimento pra fazer o concreto, o cimento vinha da Europa, da Alemanha, e vinha pra Recife, de Recife vinha de trem até Arco Verde, e de Arco Verde vinha de caminhões, que eu mandava os caminhões lá pra Arco Verde pra trazer o cimento." Dominando o Rio Construção das Ensecadeiras 272

"O problema da, da ensecadeira foi o seguinte: pra se construir, tinha ser construídas as comportas ali no braço principal, e pra se construir essas comportas ali no rio, dentro do rio, não era possível, tinha que se desviar. Nesses casos, a engenharia ou desvia o rio, ou faz um túnel ou, então, faz a ensecadeira; desviar o rio seria abrir um canal de 300 mil metros cúbicos de pedra detonada e ia se gastar muita dinamite em muito tempo, 300 mil metros cúbicos pra levar o rio que tinha 120 metros de largura, mais um pouco, e 10 até 14 metros de profundidade. Então, esse rio auxiliar, que a gente ia fazer, era grande, era um trabalho muito grande, e tinha que se fazer também uma barragem, orientando o rio pra entrar naquele canal. Entendeu? Então, então, o Dr. Marcondes achou que era uma solução bastante cara e não dava pra fazer. Então, optou fazer, fazer túnel não tinha porque era muito raso, era tudo plano, não tinha túnel pra passar. Então, Dr. Marcondes optou pela solução da ensecadeira, a ensecadeira são, são células, são cilindros de aço que se põe lateralmente, um junto do outro, um junto do outro. Então, dentro dessa ensecadeira ficava a água, o rio preso, então botava­se, botou­se uma bateria de bombas pra secar esse interior da ensecadeira e, com o interior seco, o rio era muito irregular, tinha um fundo muito irregular, isso foi quebrado à força de dinamite, foi aplanado, e aí foram lançados os pilares pra fazer as comportas. Entendeu? — isso, a primeira etapa da ensecadeira. Agora pra montar essa ensecadeira, é que nós tivemos um, um trabalho muito grande, porque pra fazer as células tinham uns gabaritos, e por fora dos gabaritos se botava as estacas prancha, que eram estacas de aço, de 15 e 17 metros de comprimento e de largura, mais ou menos, 30 a 40 centímetros. Então, quando, quando esse, essa estaca descia, que passava pelo gabarito, a correnteza pegava e fazia assim nela, girava. Entendeu? Ela descia e aí virava, aí ficava impossível dela penetrar lá no fundo do rio, tirava aquela estaca, tá perdida, bota outra...botava. A velocidade do rio era 3,5 metros por segundo, isso corresponde a, aproximadamente, a 12 quilômetros por hora, a água correndo. Então, não deu pra fazer! Então, Dr. Marcondes teve a ideia do "caixão flutuável", que aqui na gíria técnica pegou o nome de "navio", ele mandou, ele encomendou, mandou todos os dados necessários para se projetar o navio para aquele lugar do rio e o navio foi feito lá em, em, na França e trazido pra cá desmontado, e foi montado lá na obra, na beira do rio, tive uma carreira que o navio foi montado, aí escorregou e entrou no navio. Esse navio, então, era colocado no local onde, onde a correnteza era muito forte, ele era amarrado nas margens, em duas bases de concreto, e ele ficava ali. A correnteza, a correnteza vinha, quando chegava no navio, ela abria, passava por fora e deixava um remanso aqui, atrás do navio ficava um remanso, nesse remanso, então, foi possível se botar essas estacas sem a correnteza virá­las, na primeira etapa ─ construi­se a comporta, ah, os pilares, montou­se as comportas e... passamos para segunda etapa. Na segunda etapa, o rio tava estrangulado na primeira etapa, então, na segunda etapa, o rio estava furioso, tava, toda correnteza muito mais forte do que do outro lado. Então, quando Dr. Marcondes fez uns cálculos pra botar o navio ali, viu que seria impossível, porque em vez de 4 cabos ou 5, 6 cabos que prendiam, uh, uh, o navio, que seguravam o navio, segundo eu ouvi dizer, eu não trabalhei lá, mas ouvi comentários que seriam necessários 76 cabos de aço pra segurar o navio ali, por causa da correnteza aumentada, porque o rio tava estrangulado na metade, jogando pra cá, e aí ele teve outra ideia que foi fazer a estrutura semiflexível, que na gíria técnica tomou o nome de "gaiola", porque parecia uma gaiola mesmo, uma trave de gol de futebol, era a, a, a boca aberta na frente e aqui os, os cabos de aço fechando uma rede, atrás, e jogava­se pedra 273

a montante disso, dentro da correnteza, a pedra vinha, trazida pela correnteza, e entrava na gaiola.

Energia e Realização Inauguração da 1ª Usina Finalmente, depois de tanto trabalho, lá na ensecadeira, fazendo as barragens e, e, e que deu também um bocado de trabalho, finalmente chegou o dia da inauguração da usina, foi uma festa, o presidente Café Filho compareceu e muita gente aqui do Nordeste, das outras cidades aqui, circunvizinhas, compareceram, foi uma festa! E, e, e eu naturalmente que tendo tomado parte disso me sentiria, estava me sentido orgulhoso! embora não seja orgulhoso, nem vaidoso, mas eu me sentia assim satisfeito em ver, em ver inaugurar a usina em que eu tomei parte, foi um dia de, de glória, foi um dia de, como disse o hino de Dona Marieta: "Fomos, fomos pois, como chefes, festejar o merecido prêmio da glória"

Nascimento do Bairro General Dutra

A minha mulher foi a primeira, foi a primeira mulher casada que chegou em Paulo Afonso, tinham duas outras, mas uma era mulher do piloto que morava numa casa de madeira lá na Vila Alves de Souza, e a outra era uma russa, casada com um russo, que morava em Delmiro Gouveia e o marido dela vinha toda segunda­feira, passava uma semana trabalhando e voltava no sábado pra passar o fim de semana lá... E aí, nós fomos progredindo, foi aumentando o número, até que eu recebi uma casa no Bairro General Dutra, que o nome inicial era, é "peito da moça", porque esse nome devido aos moradores de ante..., anteriores a CHESF, que faziam, moravam aqui e tinham muitos umbuzeiros, e um dia uma, uma moça subindo no umbuzeiro pra tirar umbu, ela caiu, escorregou, caiu e ficou com o seio espetado num, num graveto, então ficou assim: ali onde a moça espetou o seio, ali onde a moça espetou o peito, não sei o que, essa maneira de dizer, então ficou sendo o "peito da moça" aquela região ali, mas o chefe da obra, que era um mineiro muito puritano, ele disse que aquele nome não poderia continuar, tinha que se fazer uma enquete pra escolher o nome do bairro e, fez­se a enquete e ganhou o nome do presidente Dutra, foi assim a origem do nome do presidente Dutra. Depois, então, foram construindo outras coisas, inclusive o clube Paulo Afonso, que, que, que, que, aonde tinha o salão de dança, tinha o parque infantil do lado e tudo o mais, a caixa d'água que distribuía a água lá pro bairro era em cima, era lá no clube Paulo Afonso, no clube Paulo Afonso, e aí foi crescendo, crescendo, outras coisas foram feitas, e aí cresceu o bairro.

Carga Pesada Transporte das Turbinas e Transformadores De Salvador, nós teríamos que trazer 3 transformadores, 3 turbinas e 3 geradores, e 3 eixos de ligação da turbina com o gerador. Isso era muito peso! Os transformadores pesavam 80 toneladas, cada um; a...as turbinas 274

pesavam 60 toneladas e os geradores eles vieram partidos em duas partes, cada uma pesando 50 toneladas, se não me engano. Então, nós tínhamos 3, 3 pranchas rebaixadas pra pegar essas cargas e, então, saímos com os transformadores primeiro, saímos com os transformadores, os 3, os 3, as 3 pranchas. Nós tínhamos as 3 pranchas, tínhamos um carro chamado "pau de arara", que era onde vinham os, os, os operários, tínhamos o carro do material, trazendo cepos de madeira, vigas de madeira, é, é, macaco, alavanca, cabo de aço, o que tinha de, pra fazer aquele trabalho, nós trazíamos naquele carro, e tinha o outro carro, que era o carro restaurante, onde vinha a comida e a louça que a gente almoçava, e nesse carro tinham 2 beliches, era um meu e outro do auxiliar que hoje, infelizmente, já morreu, não vai apreciar esse, esse, esse trabalho pra recordar como nós sofremos ness'estrada. Nós saímos de Salvador as 4 horas da madrugada e chegávamos em , 144 quilômetros naquela época, chegávamos as 11 horas da noite, dormíamos, as 4 horas da manhã nós saíamos e chegávamos em Tucano as 8, 9 horas; tinha dias que a gente dava pra subir a serra pra ir pra Pombal, mas tinha dias que não dava pra subir, porque tinha muito tráfego e era uma istrada estreita, uma estrada estreita e, e com 30 quilômetros de distância, e pra gente trafegar de noite nessa estrada ia dar muito trabalho. Então, a gente dormia em Tucano e saia 4 horas da manhã, alcançava Pombal e depois Cícero Dantas, no terceiro dia a gente alcançava, nós alcançávamos a... Jeremoabo e no quarto dia, as 5 horas da tarde, nós chegávamos em Paulo Afonso. Agora, isso aí tinha, teve vários, vários problemas pra nós resolvermos, um deles foi: uma vez saindo de Salvador, a, a, o pino da cela de um dos carros quebrou, nós trazíamos o, o, uma parte do gerador, o pino quebrou e a carga virou, rolou assim e foi parar lá embaixo, dentro do mato. Então, eu botei um vigia, não podia perder tempo, botei o vigia lá tomando conta, e viemos aqui a Paulo Afonso, trazendo o resto da carga, descarregamos no dia seguinte de manhã, lavamos os carros e voltamos, levando o pino da cela pra adaptar lá, consertamos aqui e levamos o carro vazio pra lá, então... e levei um trator também pra fazer um cabinho pra sair da estrada pra ir lá embaixo buscar a peça, fizemos essa variante lá, descemos a rampa e descemos com a prancha e lá, lutando com os macacos e, e, e outras peças, que nós pusemos a peça quebrada em cima da prancha e trouxemos o carro cá pra cima, pra estrada, deixamos lá com o vigia, viemos a Salvador, fomos a Salvador e, e, pra pegar o resto da carga, as outras, carregamos os caminhões, as pranchas e voltamos e, quando passamos lá, pegamos aquela recuperada da, de dentro da, da, da mata e prosseguimos a viagem pra Paulo Afonso. Nós tivemos, tivemos muitas coisas interessantes no caminho... quando, pra atravessar as pontes em Camaçari, eram cinco pontes que foram di, foram ditas incom... é, é, como se diz? frágeis pra suportar aquela carga. Então, foi, foi idealizado, foi imaginado um processo que quando os carros chegavam na cabeceira da ponte, nós botávamos um macaco, levantávamos a prancha, o cavalo passava pr'outro lado e aí, botávamos no lugar do cavalo, botávamos uma peça chamada (Pogey), mas que o operário não chamava, não sabia pronunciar (Pogey), ele chamava "pugia", então, a gente botava aquele carrinho embaixo, arriava a prancha em cima e do cavalo, puxava­se um cabo de aço, que no, no cavalo tinha um guincho que puxava aquilo, e aí puxava aquele negócio a, a, a 10 quilômetros por hora por cima da ponte ─ isso eram três caminhões em cinco pontes, eram quinze operações dessa que nós fazíamos em Camaçari (risos). Nisso, perdíamos uma manhã toda! Entendeu? Mas, aí saíamos, almoçávamos em Aliança e depois chegava em Feira de Santana, 11 horas da noite também, e daí a gente ia em frente, a mesma coisa repetia. 275

Quando inaugurou a usina, a Subestação de Bongi, lá em Recife, tinha que tá ligada pra receber e distribuir energia. Então, no dia da inauguração do transformador, o transformador chegou de navio e... é no Cais de Santa Luzia né? e o Parísio, Paulo Parísio que era o administrador da, da CHESF em Recife, ele anunciou em jornal e pela televisão também e pelo rádio, anunciou, pedindo ao povo que comparecesse a, ao transporte do transformador do Cais de Santa Luzia até o Bongi, esse transporte ia ser começado a, as sete horas da noite, e eu tava na frente de tudo, do comando da coisa. Então, as sete horas da noite, a, o caminhão partiu do porto e, atrás daquela procissão de automóveis, porque o povo atendeu ao apelo de Parísio e foi muita gente. Mas, quando nós atravessamos a ponte é, ponte de São Luiz parece... quando chegamos na avenida, defronte ao Colégio das Sacramentinas, aí estourou o pneu, um pneu da prancha que levava o transformador, e esse pneu era o de lado de dentro, pra tirar esse pneu pra remendar foi preciso levantar a prancha com aquele peso, de 100 toneladas parece, era um trabalho demoradíssimo e isso era umas 8 horas da noite, mas tinham muito carros, era uma procissão... Então, eu sai de carro em carro, dizendo que a CHESF agradecia o comparecimento deles, mas que eles fossem pra casa, porque aquele serviço pra mudar aquele pneu ia demorar umas 4 horas... e muita gente desistiu e foi pra casa, mas teve pernambucano, recifense, que ficou lá até chegar o Bongi, e, e nós tínhamos uma, uma, uma equipe da, da CELPE, na frente do comboio e outra atrás, quando tinha uma fiação baixa, por exemplo, aquela turma da frente chegava lá, cortava, apagava aquela zona ali, o caminhão passava, a turma detrás aí vinha e emendava de novo pra recuperar a luz e tal e coisa, até quando chegamos na entrada da, da rua do Bongi, o Instituto, o, o Hospital do INS..., INPS naquele tempo, todo iluminado, aí a turma que foi na frente, que quando chegou aí cortou a energia, apagou o hospital todo, e nós passamos com o comboio e aí a turma foi, a turma detrás foi e ligou tudo de novo e o hospital voltou ao normal e tal e coisa, e aí chegamos lá no Bongi... Pra botar esse transformador na base, deu um pouco de trabalho e foi no dia seguinte, porque ele ia, ele ia deitado na prancha e, e, e então, quando chegou lá, tivemos que botar ele em pé, em cima da prancha e pra fazer isso, nós tirávamos ele da prancha, arriávamos no chão, botávamos ele em pé, levantávamos pra prancha entrar embaixo, e aí levava ele em pé pra chegar no lugar da base, arriar ele em cima da base... era um trabalho infernal! Pronto! (risos)

Carga Pesada Problemas na Estrada Teve um dia que quebrou o pino de uma cela, na saída de uma ponte... lá perto de Camaçari... perto de São Sebastião do Passé, se não me engano, e, e, aí atravancou, porque, porque tinha carros que vinham entrando em Salvador e carros saindo de Salvador... e tudo tapado, a, a, a, com a fratura da, do pino da cela, a, o caminhão não pôde sair de cima da ponte e aí ficou interrompido ─ Juntaram 200 carros de um lado e 200 do outro. E aí chegaram, chegou um ônibus com as mocinhas e três freiras, era mais ou menos 9 horas da manhã quando elas chegaram, aí, e outros carros chegaram também e, e, aí taparam o retorno, quem quisesse sair não saia mais, porque tava tudo cheio de carro. (Explicando o diálogo com as pessoas no dia da ocorrência:) ­ Bom, vocês vão ter que ficar aqui até a gente consertar aí! ­ Ah, mas qual é o prazo? 276

­ Olha eu mandei a peça lá pra Paulo Afonso, deve chegar amanhã pra montar aqui, depois de amanhã a gente livra a estrada. ­ Ah, mas é demais! Aquela confusão, aquele negócio, eu digo: ­ Olha, depois de amanhã e pronto! Aí fiquei com pena das freiras e das meninas, chegaram por volta de 10 horas, eu digo como é que essa freira... aí fui lá e perguntei a freira e ela disse: ­ Não, nós não temos nada! E eu digo: ­ Olhe irmã, nós temos comida aqui, não é, a senhora tá vendo só operário aí, mas não é comida de operário não, é comida boa, a senhora quer ir lá vê? Aí levei ela, pra ela ver a nossa cozinha, ela viu, ficou satisfeita e disse: ­ Olhe irmã, eu vou mandar fazer o almoço agora e a senhora vai provar, se a senhora aprovar, eu dou a comida pra senhora e pras meninas e, se não aprovar, eu não tenho comida outra pra dar. (risos) Aí, dei, dei, ela aprovou a comida e nós demos o almoço, quando chegou no jantar, demos o jantar novamente, e eu tinha esquecido do banho das freiras e das meninas... como o rio passava embaixo da ponte, eu chamei o encarregado: ­ Jucino faz, faz um banheiro ali na beira do rio, um banheiro de tábua, mas bem feito, bem tapado! E aí, eu disse: ­ Irmã, olhe, eu mandei fazer um banheiro ali pra as senhoras usarem e as meninas também, aí agora a ordem lá é com a senhora, mas não vai ficar ninguém aqui! Aí, dei um grito, dei a ordem (risos): ­ Todo mundo 100 metros daqui! (risadas) Aí, todo mundo saiu, se afastou 100 metros. ­ E só volta aqui quando eu mandar! Aí, as freiras foram tomar banho, as meninas foram também, eram, eram umas 9 ou 12 meninas, elas aí foram tomar banho e tal, e eu botei um vigia pra vigiar se tinha alguém querendo voltar. Entendeu? E eu vigiava o vigia! (risadas) Mas, aí tudo correu bem, elas tomaram banho e tudo, pronto, aí pronto. Com dois dias que elas ficaram lá, almoçando e jantando e tomando banho, a peça chegou daqui de Paulo Afonso e aí, nós viemos embora. Ali, ali, livramos a ponte... e eu deixei, eu deixei um guarda da polícia rodoviária, eu deixei um guarda da polícia rodoviária pra dirigir o trânsito, pra soltar os carros. Eu digo: ­ Olhe, eu vou pra Aliança almoçar, e você quando terminar aí, você... Eu mandava na rodoviária (risos) naquele tempo. ­ Você fica aí pra distribuir esse negócio, manter ordem, e lá em Aliança eu tô lhe esperando com o almoço. Daqui há pouco, quando nós estamos lá em Aliança, chega ele. Eu digo: ­ Oh, oh, cadê? e cadê o serviço lá? ­ Doutor, foi uma confusão tão grande, todo mundo querendo ser o primeiro a passar, que eu larguei tudo lá e vim embora. Daí, eu não sei como é que isso... (risadas)

Dominando o Rio Construção das ensecadeiras 277

demonstração através de maquete [...] aí o, o escultor pernambucano, inspirou­se e fez aquele monumento "o touro e a sucuri". O touro é, é, representando a força do rio, e a sucuri, a serpente, representando a astúcia da engenharia pra vencer o rio. E assim, terminou a luta do braço principal

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APÊNDICE B - MAPAS

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ANEXOS

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ANEXO A - O aproveitamento hidrelétrico da Cachoeira de Paulo Afonso dá ao Brasil energia e turismo

Por Faria de Azevedo Revista MANCHETE nº 146, revista semanal, 05 de fevereiro de 1955. 288

Trezentos e quarenta e sete municípios situados em oito Estados deverão ser beneficiados pela Usina de Paulo Afonso ─ ou, melhor, pela Companhia Hidrelétrica de São Francisco. Tais municípios abrangem uma área de 516.650 quilômetros quadrados (superior à da Espanha, a da Suécia, a do Paraguai e a do Peru e quase igual a da França) cuja população recenseada em 1950 era de 10.966.052 habitantes, correspondente a 21% do total brasileiro. Trata­se de uma região predominantemente agrícola, mas deve ser lembrado que, não muito distante, nas imediações de Salvador, já estão sendo explorados o petróleo e o gás.

A história da construção da Usina de Paulo Afonso remonta a princípios do século, quando um pioneiro, Delmiro Gouveia, construiu a primeira usina ─ de 1.500 HP ─ destinada a acionar a fábrica de linhas que montou na cidade alagoana de Pedra, próximo a Paulo Afonso. Embora um empreendimento de alto valor, levando em conta a época em que foi realizada e as dificuldades oferecidas pela região, era apenas um empreendimento de caráter local.

Deu o Govêrno Federal o primeiro passo, em 3 de outubro de 1945 (Vargas), ao criar a Companhia Hidrelétrica de São Francisco. Contudo, sòmente se constituiu definitivamente a emprêsa dai 15 de março de 1948, quando foram realizados os estudos necessários ao projeto da obra a ser realizada.

A Usina de Paulo Afonso, pròpriamente, está situada no arquipélago fluvial ali existente, a cêrca de 250 quilômetros da foz do rio São Francisco, no Oceano Atlântico. Ao aproximar­se daquela cachoeira, divide­se o rio em vários braços, que recortam numerosas ilhas, havendo sido estas transpostas por duas barragens ─ a de leste e a de oeste ─ cujas comportas, em numero de vinte e seis, interrompem quatro daqueles braços, deslocando suas correntes para a tomada dágua.

A dificuldade do fechamento do rio, no braço principal, foi decomposta para ser vencida, resolvendo­se que a construção da barragem seria feita em três etapas.

A usina ora concluída começará a funcionar com a sua primeira casa de máquinas, onde se instalaram dois geradores de 60.000 KW cada um ao total de 120.000 KW; o terceiro, de igual capacidade, deverá estar instalado em meados de 1955, perfazendo 180.000 KW. Ainda êste ano será iniciada a construção da segunda casa de máquinas subterrânea, prosseguindo, pois, metòdicamente, a marcha dos trabalhos para o aproveitamento total do sistema programado pela companhia, condicionado ao desenvolvimento das solicitações de carga para o consumo da vasta região. Depois deverá ser atingida a potência de 540.000 KW, que, com a regularização do curso do rio, se elevara a cêrca de 1.000.000 KW.

Todavia, será Paulo Afonso apenas o elo de uma cadeia de usinas interligadas, pois, à medida que o consumo o exigir, deverão ser construídas mais duas, nas proximidades ─ somando as três uma potência superior a 2.000.000 KW.

Os cinco Estados mais diretamente interessados no empreendimento são: Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Paraíba. A todos êles dirigiu­se a emprêsa, solicitando 289

estudos sôbre a futura maneira de ser aproveitada a energia fornecida pela usina. Além disso, calcula­se que a própria usina, em si mesma, constituir­se­á numa atração turística, de que certamente lucrará a região ─ especialmente os Estados de Pernambuco e Bahia.

A Companhia Hidrelétrica de São Francisco foi organizada pelo representante do Ministério da Agricultura, engenheiro Antônio josé Alves de Souza, então diretor do Departamento Nacional de Produção Mineral. Ainda hoje, o engenheiro Alves de Souza continua à frente da emprêsa, de que é presidente. (p. 28)

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VITÓRIA DA ENGENHARIA BRASILEIRA

Paulo Afonso deixou de ser apenas uma fabulosa beleza natural, dessas que o "ufanismo" sempre invoca, para constituir, hoje, o mais notável fator de progresso de tôda uma vasta região brasileira, o Nordeste. As águas encachoeiradas do São Francisco, rio da unidade nacional, foram domadas pela técnica ousada e poderosa dos engenheiros brasileiros ─ e Paulo Afonso, com as usinas inauguradas da Comp. Hidrelétrica do S. Francisco, é hoje o ponto de partida para uma nova era na vida nacional, que vai elevar o nível de vida de 13 milhões de brasileiros. (p. 29) 291

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OS NOVOS ASPECTOS DA PAISAGEM EM PAULO AFONSO

NÃO É APENAS UM CARTÃO POSTAL

A paisagem de Paulo AFonso é das mais impressionantes e belas do mundo. Mas, até agora, Paulo Afonso era apenas um cartão postal, com direito a figurar nos compêndios de Geografia. A mão do homem aproveitou agora a imensa riqueza que está na fôrça das águas ─ e a beleza da paisagem ganhou novos aspectos, com a obra da Hidrelétria. (p. 31)

OBRA DE CONTINUIDADE ADMINISTRATIVA

A gigantesca obra do aproveitamento econômico da fôrça matriz de Paulo Afonso foi realizada durante o período de govêrno entre 1946 e 1954, sendo presidentes da República o marechal Eurico Dutra e o falecido sr. Getúlio Vargas. O presidente Café Filho inaugurou a primeira etapa da obra e ressaltou a continuidade administrativa que a permitiu. (p. 31) 293

ANEXO B - A cidade da miséria é vizinha da fortuna

Reportagem de Jânio de Freitas Fotografias de Jackson Cisino

Revista MANCHETE nº 233, revista semanal, outubro de 1956.

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(página 56) Vila Poti não existe no mapa. Fica na margem do rio São Francisco, debruçada, quase, sôbre a Cachoeira de Paulo Afonso. Nela vivem perto de 10 mil pessoas, com 80% de mulheres e crianças a quem os homens deixaram para buscar, mundo afora, um qualquer trabalho. Os que ficaram não plantam, não fabricam, não negociam. Vila Poti é a cidade da miséria. Mas, vizinha da fortuna: a cidade da Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco, para a qual os desgraçados ocorreram em busca de um emprêgo nas obras da reprêsa. Lá chegando, deram com uma cêrca de arame farpado a barrar­lhes a entrada àquele paraíso que brotara no chão torrado do sertão baiano. Vila Poti nasceu, então, e cresce sempre, como um campo de concentração invertido, de olhos voltados para o outro lado da cêrca. Não convém que Vila Poti exista no mapa.

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A cidade da miséria (página 57) Quando, há oito anos, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco iniciou as obras de represamento do rio São Francisco, na altura da cachoeira de Paulo Afonso, abriu no Nordeste um mercado de trabalho para a gente a quem a sêca roubava tôdas as maneiras de viver. De início, necessitada de braços para o erguimento das imensas barragens, a própria CHESF procurava operários. A notícia de emprêgo, porém, rápido espalhou­se e por conta própria os homens deixavam suas terras e tomavam os caminhos no rumo de Paulo Afonso. Até completar seus quadros, a CHESF os aceitou e abrigou. Depois, não. Os homens, rebocando as imensas famílias, chegavam a Paulo Afonso para ver esboroar­se o que lhes parecia sua última oportunidade: emprêgo já não havia. Mas, ficavam. Não por esperança, que esperança aquela gente nunca pôde ter. Ficavam porque seria inútil seguir ─ que caminho tomar, se a fome os acompanharia como bagagem fatal? se a terra seria sêca em tôda parte onde seus pés pisassem? Ficavam, apenas. Vila Poti foi nascendo assim. As famílias chegavam, não tinham onde abrigar­se, punham­se à cata de material para erguer um barraco. A região, porém, é despida e árida, de vegetação apenas rasteira, de modo que nem madeira era possível encontrar, além de gravetos. Um homem, no entanto, encontrou a solução, logo por todos adotada: os sacos vazios de cimento, presos uns aos outros, seriam a melhor cobertura para a armação do barraco. A CHESF jogava fora êsses sacos, e os barracos foram nascendo dêles. Ao bater­se com os olhos naquela favela piorada, dava­se com milhares de inscrições "Poti", que tal era o nome do cimento, gravado nos sacos. Logo depois a favela recebia o nome de Vila Poti. Aos poucos os sacos foram substituídos pelo sapê, fôlhas de latão, palmas, porém o nome ficou. A área ocupada por Vila Poti não é grande. Regula com a maioria das vilas do interior brasileiro. Destas, porém, difere muito: enquanto elas procuram assumir o ar de cidade, Vila Poti resigna­se com ser a mais autêntica representação da desgraça humana. Mesmo a arquitetura de Vila Poti é uma arquitetura desgraçada. Humildes e acanhados, os barracos parecem recusar o alinhamento com intransigência tenaz e sagrada, erguendo­se como se tivessem brotado de sementes que o vento espalhou. Amontoam­se numa terrível angústia de espaço (onde tanto espaço há) e logo adiante abrem­se, afastam­se uns dos outros, recusando ocupar uma área vazia, como se ali o chão fôsse proibido. As ruas fazem­se ao acaso, conforme o capricho dos barracos. Algumas há que começam qual avenidas verdadeiras e de repente fecham­se, morrem diante de outros barracos ou desembocam estreitas, apertadas como um corredor de pensão, nos tais espaços vazios. Mas a fachada de Vila Poti, a parte que 296

dá para a vila operária da Companhia Hidrelétrica, aquela é diferente: as paredes da frente são de tijolos, em côres vivas, com as mais diversas inscrições. Aqui estão as pouquíssimas casas de comércio, cuja especialidade não vai muito além dos bilhares e das bebidas. Uma ou outra vende sapatos ou tecidos, alguns gêneros alimentícios ou pequenas bugigangas. O jôgo e a bebida, porém, são o comércio forte, apesar de pequeno. Luz não há em Vila Poti, com exceção de algumas casas ainda do tempo em que a Companhia Hidrelétrica estendeu seus cabos elétricos. Três sanitários existem na Vila, todos construídos pela Companhia. A água para tôda a população é distribuída por três bicas instaladas uma diante de cada sanitário. Um pequeno pôsto de saúde, também construído pela CHESF, está de portas fechadas, porque o govêrno da Bahia, a quem coube manter o pôsto, até hoje não designou sequer um servente para servi­lo. Vila Poti tem poucos homens, proporcionalmente. Mulheres e crianças perfazem oitenta por cento da população. Esta desigualdade, estranha a princípio, tem fácil explicação. Depois de alguns meses em Vila Poti, a família atinge o ponto de saturação da miséria. Aí, nada resta ao homem senão abandonar mulher e filhos para seguir noutra direção sempre à procura de um trabalho qualquer. (página 58) Quando o encontra não aceita por muito tempo: reúne algum dinheiro e logo toca­se de volta a Vila Poti, à espera, quase sempre, do emprêgo nas obras da Companhia Hidrelétrica. E o ciclo da miséira recomeça até que, por ventura, haja uma vaga na CHESF ou, o que é mais provável, o homem tenha novamente que deixar a família. Algumas mulheres trabalham em pequenas fiandeiras que consigo levaram, fazendo rêdes, geralmente. Mas, a quase inexistência de comércio não lhes possibilita a venda de seu produto, que pouco ou nada lhes rende.

Velhos e moços inválidos constituem mais da metade dos 20% de população masculina. Êsses, então, nada fazem e nada esperam fazer. Quando podem, arranjam uma sanfona, reúnem os filhos para marcar o ritmo e pôem­se a tocar para receber esmolas dos miseráveis ainda não calejados pela própria miséria. Os homens chegados mais recentemente ─ e êles estão sempre chegando a Vila Poti ─ logo entregam­se ao jôgo ou à bebida, já por hábito ou pela completa ausência de iniciativa útil. Até que a CHESF constituísse uma pequena polícia e erguesse a cadeia ─ um prédio sem janelas, em forma de fortaleza, plantado à frente de tôdas as casas como um comandante de regimento ─ os crimes de morte eram freqüentes em Vila Poti. Por uma tacada de sorte no bilhar ou uma palavra mais perigosa entre duas pingas, havia um corpo estirado no chão. A cadeia e a polícia abrandaram essa violência. Hoje há apenas pequenos distúrbios, quase nenhum crime. No último dia que passei em Vila Poti, porém, houve um crime inédito para aquela gente: habituado a ver os homens abandonar as mulheres, um jovem apaixonado chocou­se de tal forma com a fuga de sua amada, com a exceção que êle passava a 297

representar, que encharcou a roupa de querosene e incendiou o corpo (o querosene parece ser o estigma dos suicídios pobres). O que tem sido feito em favor de Vila Poti é devido exclusivamente à Companhia Hidrelétrica. A ela coube, voluntàriamente, instalar torneiras e sanitários, fornecer um pouco de luz, contribuir com algum material para a construção dos barracos. Os meninos de Vila Poti podem estudar nas escolas da Vila Operária, os doentes mais graves são, quase sempre, tratados no hospital da Companhia. Até mesmo a igreja foi construída, quase tôda, pela CHESF. Do govêrno, mesmo, Vila Poti nada havia recebido até que, no final de agôsto passado, foi visitada pela Unidade Sanitária Aérea, que lhe foi enviada pelo ministro da Saúde, prof. Maurício de Medeiros, e pelo dr. Noel Nuttels. Dezesseis dias passou a Unidade Sanitária em Vila Poti. O tisiologista Antônio Miranda examinou 7.800 pessoas, enquanto o dentista Celino Gomes da Silva fêz perto de 2.500 extrações. Foram aplicadas mais de 14 mil vacinas antiamarílicas e antivariólicas, recebendo vacinação de BCG mais de 6.500 crianças. O índice de tuberculose localizada atingiu a 0,9%, e assim mesmo porque os tuberbulosos identificados são, em maioria, enviados pela CHESF a cidades onde possam encontrar tratamento. As crianças, essas resistem menos à miséria: em duas, uma falece antes dos 12 anos. E parecem conscientes disso, porque a um menino a quem fiz perguntas sôbre sua vida, respondeu com a vozinha firme, mas carregada de melancolia: ─ Eu posso contar tudo, mas isso é difícil de responder. Como é que eu vou dizer o que é que eu quero ser? Com certeza eu vou morrer antes de ser grande... E os pais parecem tomados de uma filosofia tão miserável quanto suas próprias vidas. Quando o dentistas Celino Gomes insistiu com um pai na viagem de seu filho para Salvador, porque em Vila Poti nada lhe restaria senão a morte, o homem recusou indignado: seu filho ninguém levaria. Celino explicou­lhe a doença da criança, a proximidade de sua morte. O homem ficou firme. E, quando Celino já se irritava, o homem resolveu explicar: ─ Se êle morrer não faz mal, não. A gente faz outro...