VIII

Modos, géneros e discursos da Literatura de Viagens de Língua Portuguesa

Introdução

o conjunto das comunicações do Congresso Internacional Do Brasil a Macau — Narrativas de Viagens e Espaços de Diáspora, a secção “Modos, géneros Ne discursos da Literatura de Viagens da Língua Portuguesa” reuniu cerca de uma dezena de contributos sobre os variados escritos acerca da Viagem, segundo, como a proposta indicava, os modos (narrativo, descritivo e expositivo) com os respectivos géneros (conto, carta, relação, diário e outros) e a atenção centrada nos seus diferentes discursos. Foram recebidos doze resu mos. Depois, houve, com muita pena nossa, algumas desistências por motivos justificados, tendo sido realmente expostas em público e debatidas oito comu nica ções. No entanto, para publicação, chegaram-nos sete textos. A secção foi organizada em três sessões, de acordo com o tema geral do Congresso e com a nossa sugestão das correspondentes rubricas sub-temáticas. Uma primeira englobou os contributos que tratavam do registo, análise e comentário de textos de autores portugueses que trataram da “viagem” como tema em geral ou motivo mais particular de narrativas, como descrição ou reflexão diarística ou autobiográfica. Por um lado, assinala-se o trabalho de interpretação da Mensagem de Pessoa (de S. Avianni, só apresentado no último dia) e o do conto “exemplar” de tão rica significação de Sophia de Mello Breyner Andresen (de G. N. Barata). Por outro, registam-se as deslocações de escritores portugueses do passado ou contemporâneos para fora da Europa, sobretudo Oriente e África, com as análises de relatos como o de Fernão Mendes Pinto (M. A. Gomes), mas também as visões mais modernas das obras de Miguel Torga (I. Mateus) e dos diários de Natália Correia (M. Magalhães). Na segunda sessão, os estudiosos centraram o seu interesse na ilustração das “viagens” e seus reflexos nos escritos de entidades colectivas como missio nários 652 A. P. Laborinho / J. D. Pinto Correia

jesuítas nas deslocações para fora dos limites do Império (A. Rodrigues), dos embaixadores japoneses na sua visita à Cúria Romana (I. Vasile), na “Carreira da Índia” através do Diário de D. António José de Noronha (P. Martins) ou nas perso - na gens femininas orientais exemplificadas e referidas nas obras de Wenceslau de Moraes (M. P. Pinto). O último subconjunto de comunicações teve em consideração o Novo Mundo, principalmente o Brasil, com maneiras tão variadas de abordagem como as da “Mala para o Brasil”, através de correspondência eciana na imprensa carioca (I. Trabucho), da importância de Os Sertões de Euclides da Cunha para a compre - ensão da identidade brasileira (R. de A. Souto) e ainda do significado do êxito da telenovela Gabriela, entendida como “esporos” do Novo Mundo no Portugal Contemporâneo (R. Pinto). Também nesta sessão, foi apresentada uma exposição sobre as viagens de Mendonça e Costa, através das suas grandes deslocações a partir dos Estados Unidos até ao Oriente, no princípio do século XX (A. C. de Matos e E. F. Ribeiro). As sessões decorreram sempre com a duração estabelecida, assegurando-se também vivos debates com troca de opiniões muito diversas, esclarecedoras e enriquecedoras quer para a curiosidade do auditório quer para fundamento das conferências. Também devemos reconhecer que a afluência e o dinamismo do público foram bastante gratificantes para a plena aceitação e para o êxito dos subtemas desta secção. Na diversidade de propostas, verificámos sobretudo que este corpus de mensagens respeitantes à “viagem”, umas mais ficcionais e mesmo poéticas, outras mais práticas e referenciais, que nos remetem para estratégias e artifícios discursivos e para vivências e testemunhos muitíssimo diferentes, constitui objec - to inesgotável para a análise e interpretação de natureza histórica, literária, cultural, com novas perspectivas redimensionadas no âmbito de uma visão mais alargada ou, simplesmente, global.

A. P. Laborinho / J. D. Pinto Correia Departamento de Literaturas Românicas Faculdade de Letras da Universidade Lisboa Dos Estados Unidos da América ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX1

ANA CARDOSO DE MATOS, ELÓI DE FIGUEIREDO RIBEIRO CIDEHUS/Universidade de Évora1

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013 1 Esta comunicação insere-se no projecto Viagens, Turismo e Lazer em perspectiva histórica dos finais do século XVII à primeira metade do século XX. partir da segunda metade do século XIX assiste-se a uma maior genera - lização das viagens que em grande parte está associada ao desenvolvi - A mento dos transportes, particularmente do caminho-de-ferro, que ao mesmo tempo que torna acessível a viagem a um maior número de pessoas favorece a deslocação até espaços cada vez mais distantes2. As próprias empre - sas de transportes desenvolvem toda uma estratégia de incentivo ao turismo que passa pela publicação de Guias de viagem e pela introdução de tarifas especiais para determinados destinos e épocas do ano3. As razões associadas às viagens realizadas neste período são múltiplas e os viajantes têm características diversificadas. Os viajantes tanto podem ser cien - tis tas, técnicos, industriais ou intelectuais, que através da deslocação a outros países procuram actualizar os seus conhecimentos profissionais4, contactar espe - cia listas das várias áreas técnico/cientificas e adquirir os equipamentos e máquinas neces sárias para modernizar as suas empresas, como pessoas sem qualquer formação específica, mas que possuem os meios económicos para se usufruírem de tempos de lazer e o interesse em conhecer novas regiões e povos. Este último aspecto está directamente associado ao desenvolvimento que o turismo conheceu sobretudo a partir do final do século XIX. De facto, o acesso à viagem de lazer, que no início do séc. XVIII era exclusivo da aristocracia, vai abranger no século XIX estratos populacionais cada vez mais largos5.

2 Sobre as relações entre os transportes e o turismo vejam-se os vários artigos incluídos em Laurent Tssot (dir), Construction d’une industrie touristique aux 19e et 20e siècles: perspec - tives internationales/Development of a tourist industry in the 19th and 20th centuries: International perspectives, Neuchâtel, Ed. Alphil, 2003; Catherine Bertho Lavenir, La roue et le sytlo: comment nous sommes devenus touristes. Paris: Éditions Odile Jacob, 1999. 3 Sobre os vários tipos de tarifas que eram utilizadas pelas Companhias de Caminho-de-ferro portuguesas veja-se Elói de Figueiredo Ribeiro “A Gazeta dos Caminhos de Ferro e a Promoção do Turismo em Portugal (1888-1940)”, tese de mestrado, Évora, 2006. 4 Ana Cardoso de Matos e Maria Paula Diogo, “Bringing it all back home: Portuguese engineers and their travels of learning (1850-1900)”, HOST — Journal of History of Science and Technology, Vol.1, Summer 2007. 5 Sobre o desenvolvimento do turismo veja-se Marc Boyer, Histoire du tourisme de masse, Paris, PUF, 1999 e Marc Boyer, Histoire de l’invention du tourisme XVIe XIXe siècles: origine et développement du tourisme dans le Sud-Ouest de la France. La Tour d’Aigues: L’Aube, 2000. 656 Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

Os trabalhadores com alguns recursos financeiros que passaram a beneficiar de um tempo de férias podem passar a beneficiar das viagens turísticas, ainda que na maior arte das vezes feitas no país e a preços acessíveis. As viagens de turismo internacionais e mesmo intercontinentais continuam até tarde no século XX reservadas para a elite que possui os recursos financeiros e o tempo livre neces - sá rios para as realizar. Em muitos casos os profissionais que têm que se deslocar em trabalho ou em representação de um país ou de uma empresa para participar nos congressos e outras reuniões internacionais aproveitam muitas vezes a sua viagem de trabalho para fazerem um pouco de turismo. Portugal não ficou alheio ao interesse crescente pelas viagens e pelo turismo e vários foram os portugueses que as procuraram promover, nomeadamente pela edição de revistas em que estes temas estavam presentes, pela publicação de relatos e guias de viagem e pela criação de instituições promotoras da activi - dade turística como foi o caso da Sociedade Propaganda de Portugal, fundada em 19066. Entre os portugueses que tiveram uma acção importante na promoção do turismo em Portugal destaca-se Leonildo de Mendonça e Costa, que foi prova - vel mente o português que na sua época mais viajou no país e no estrangeiro e os relatos das viagens que publicou tinham como objectivo não só descrever o que vira e apreciara, mas também incentivar os seus conterrâneos a realizar viagens semelhantes. De entre as várias viagens realizadas por Mendonça e Costa seleccionamos duas viagens, que realizou no início do século XX e que o levaram a dois pontos não só distantes e opostos em termos espaciais como diferentes em termos de hábitos, costumes e tradições — os Estados Unidos da América e o Oriente. São essas duas viagens que nos propomos analisar neste texto. Consi de rando o tema do Colóquio em que apresentamos a comunicação que deu origem ao texto — Do Brasil a Macau: Narrativas de Viagens e Espaços de Diáspora — e tendo

6 Sobre o assunto a Sociedade Propaganda de Portugal veja-se Ana Cardoso de Matos e M. Luísa Santos, “Os Guias de Turismo e a emergência do turismo contemporâneo em Portu gal (dos finais do século XIX às primeiras décadas do século XX)”. Geo Crítica / Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. , Universidad de Barcelona, 15 de junio de 2004, vol. VIII, núm. 167. http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-167.htm [consultado em 10 de Março de 2009] e Paulo Pina, O Turismo no século XX, Lisboa, Lucidus, 1988, p.13-14. Sobre a publicação de relatos e guias de viagem veja-se também Elói de Figueiredo Ribeiro “A Gazeta dos Caminhos de Ferro e a Promoção do Turismo em Portugal (1888-1940)”, ob. Cit., e Maria Luísa Santos, Ana Cardoso de Matos e Maria Ana Bernardo, “Tourism, Guidebooks and the Emergence of Contemporary Tourism in Portugal” in The Uses of History in Tourism Development (Auvo Kostiainen and Taina Syrjämaa ed.), Filand, Finnish University Network for Tourism Studies (FUNTS), 2008, p. 94-104. Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX 657

em conta que a organização da publicação se situa no âmbito da literatura recorreremos sistematicamente à transcrição de passagens dos relatos das viagens que este viajante publicou na Gazeta dos Caminhos de Ferro. Nestes relatos Mendonça e Costa descreveu os meios de transporte em que viajou nestes dois países e os espaços e gentes com que contactou durante as suas viagens.

Leonildo de Mendonça e Costa: um viajante “compulsivo” Escritor, jornalista, inspector-chefe da Repartição do Tráfego da Companhia Real dos Caminhos de Ferro, Mendonça e Costa foi o fundador e director da Empreza de Annuncios nos Caminhos de Ferro e colaborador da Gaceta de los Camiños de Hierro de Madrid, onde escreveu vários artigos em defesa dos interes - ses e sobre os caminhos-de-ferro portugueses7. Em 1888 fundou a Gazeta dos Caminhos de Ferro e, em parceria com José Duarte do Amaral fundou o Guia Oficial dos Caminhos de Ferro, cuja publi - cação se iniciou em 1882. Foi também autor do Manual do Viajante em Por tugal, elabo - rado nos moldes dos Guides ou do Baedeker, publicação que teve várias edi ções e foi continuada por Carlos de Ornelas. Mendonça e Costa é normalmente apon - tado como precursor do turismo em Portugal pelo incentivo que deu a esta activi dade atra - vés dos relatos das suas viagens pelo mun do, da criação da tarifa P.4 Viagens circula res em Portugal, (tarifa ferroviária que tornava mais económicas as viagens turís ticas)8 do papel que teve na criação da Sociedade Propa ganda de Portugal, tendo sido redactor do seu pro - grama e eleito seu secretário perpétuo, cargo Leonildo de Mendonça e Costa9 que só abandonou após a implantação da República.

7 Colaborou também nos jornais Diário de Notícias, Jornal do Comércio e das Colónias e no Comércio do Porto onde era responsável pelas respectivas secções sobre os caminhos-de-ferro. 8 Sobre o assunto veja-se Elói de Figueiredo Ribeiro “A Gazeta dos Caminhos de Ferro e a Promoção do Turismo em Portugal (1888-1940)”, ob. Cit. 9 Gazeta dos Caminhos de Ferro (GCF) nº 1087 de1/4/1933, p. 216. 658 Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

O seu gosto pelas viagens e o seu interesse em promover o turismo em Portugal fizeram com que fosse o principal promotor da fundação da Sociedade Propaganda de Portugal criada em 1906. Foi ainda sócio de várias sociedades culturais e científicas como a Asso ciação dos Escritores e Artistas de Madrid, de que foi sócio honorário, e a Sociedade de Geografia de Lisboa. Desempenhou ainda o cargo de Vice-cônsul da Argentina em Lisboa. Para Mendonça e Costa viajar era como doença, um vício que ele era compa - ra com o “vício” do filatelista que começa por guardar os selos da corres pon - dência que lhe enviam, depois troca selos com os amigos e depois já quer selos do mundo inteiro. Como dizia em 1903, “Viajar com certa assiduidade por muitos países da Europa, produz o effeito que, á maneira do vicio, ataca todos os colleccionadores das raridades.”10 No caso dos viajantes esse vício iniciava-se com o desejo de viajar até Madrid, depois Paris, depois Londres sem nunca ficar saciado e assemelhando-se uma “doença”, cujo tratamento seria da respon - sabilidade dos “médicos” especialistas como Cook, Lobin e outros agentes de viagem, e os “hospitais” os comboios expresso e os paquetes.

A Viagem ao Oriente A viagem ao oriente inicia-se em Junho de 1903. Era uma viagem mera men - te de turismo motivada pelo interesse em conhecer a região do oriente e as pessoas que a habitavam. Nesta viagem Mendonça e Costa atravessa toda a Europa e Ásia e chega até Tóquio (ver quadro anexo 1). No total faz um percurso de 36.291 quilóme tros ao longo dos quais utiliza como meios de transporte o comboio e o barco. O comboio sempre que existiam linhas férreas e o barco nas ligações entre a China e o Japão e nas travessias do lago Baikal. São diversos os aspectos descritos ao longo das suas viagens: as cidades, os meios de transporte, os hotéis, os habitantes, a paisagem, a história, os costumes, o património edificado e a cultura, entre outros. Como grande parte da viagem é realizada em comboio, a descrição dos mesmos é constante. O comboio que o transporta de Moscovo para Irkoutsk é descrito como “(…) é um bello trem, composto de três carruagens-leitos com lavatorio em cada dois compartimentos, um salão restaurante e cozinha, e um vagon que se divide em compartimento para bagagens, outro para o motor electrico que produz a corrente para todo o comboio.”11

10 GCF nº 373 de1/7/1903, p. 349. 11 GCF, nº 378 de 16/9/1903, p.318. Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX 659

“O outro o que a nossa gravura representa é o «Baikal», um colossal back ou ferri-boat construido para transportar todo o comboio, não havendo assim necessidade de trasbordo, (…)”12. As estações do caminho de ferro e o seu movimento constante são igual - mente objecto da análise de Mendonça e Costa que consideta que “De Karbin para baixo mais se assentua entre a população que vem ás estações assistir á passagem dos trens, o trajo chines e o espirito commercial d’aquella gente; mulheres de variados costumes, especialmente mongolicos, homens e rapazes vendendo todas as bugiarias, gritando sempre pasmando para os passageiros do comboio e fugindo quando nas mãos d’elles veem a machina photographica em que elles suppõem haver feitiço.”13 Ao longo da viagem passa por cidades de vários países que apresentam uma grande diversidade. Assim, enquanto (Japão) “ (…) é meio europeia, meio japoneza. A’ beira do rio, o bairro europeu, antiga concessão estrangeira, não diverge consideravelmente, no seu aspecto geral, de qualquer cidade do continente europeu.”14 Em Tcheliabinsk, na Sibéria, “A cidade é como todas as da Siberia, formada por largas ruas, sem calcetamento, com edificios em geral de madeira, e alguns de pedra e cal. As fachadas, muito enfeitadas de rendilhados de madeira, produ - zem bom effeito.”15. Em Fuzan, na Coreia, a perspectiva é completamente dife - rente, “Onde está a cidade? Perguntavam todos, olhando para aquelles montes escalvados e aridos, na base dos quaesum grupo de cabanas pardacentas se avistavam. A cidade era isso mesmo!”16 Como pretende que o seu relato possa servir como guia de futuros viajantes, Mendonça e Costa faz descrições dos hotéis, dando indicações de grande utilidade para os futuros utilizadores “Hoteis são muito confortaveis, mas o viajante que se cubra bem, de noite, com o mosquiteiro, porque de contrario terá a cara, no dia seguinte, com a configuração d’um cacho d’uvas. Ouvi lá dizer que tem tresentos mil habitantes e trinta milhões de mosquitos. Por experiencia propria calculo que ha de ter muito mais; cem mosquitos por habitante é pouco.”17, aqui e ali uma nota de humor para cativar o leitor.

12 GCF, nº 380 de16/10/1903, p. 349. 13 GCF, nº 383 — 01/12/1903, p.395. 14 GCF, nº 392 de16/4/1904, p. 134. 15 GCF, nº 379 de 1/10/1903, p.334. 16 GCF, nº 401 de 1/9/1904, p.278. 17 GCF, nº 397 de 1/7/1904, p.213. 660 Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

Porque pretende que a sua descrição seja simultaneamente um incentivo à viagem e um guia para essa mesma viagem, Mendonça e Costa indica, por exem - plo, monumentos importantes que mereceriam ser visitados “Nos arredores de Pequim ha, sobretudo, que ver os tumulos dos Mings, notavel santuario a um dia de distancia, a cavallo, que é peregrinação obrigada de todos que, pela primeira vez, vão á capital do celeste imperio.”18

Para reforçar aquilo que afirma, Men don ça e Costa utiliza gravuras ou mes - mo fotografias que ele próprio tira, para enriquecer as suas crónicas e estimular o desejo de viajar aos seus leitores. É o que acontece, por exemplo, com castelo de Nagoya — “Nagoya é um ponto obrigado de paragem, não só para visitar o notavel castello, com a sua torre de oito andares que aqui vae em gravura”19. Relativamente aos habitantes dos territórios por onde vai passando, Mendon - ça e Costa deixa-nos relatos de grande interesse, a que não falta alguma adjecti - va ção bem humorada e de feição lusa “Os homens vestem todos de cassa branca, calção, especie de camiza e manto, tudo muito largo e muito en gommado, agitando-se ao vento. Na cabeça um chapeu afunilado na copa, feito todo de tarlatana preta, fortemente engommada tambem, com largas abas à Mazzantini. Muito curioso o typo d’estes patuscos, mais ainda pela maneira importante porque andam, meneando os hombros com ademanes de principe de drama de feira.”20 Embora manifeste a sua admiração por alguns aspectos culturais que en - contra no Oriente, muitos dos costumes com que se depara provocam-lhe espan - to, repulsa e uma atitude crítica, como é o caso dos exemplos que se seguem:

18 CF, nº 388 de 16/02/1904, p.70. 19 GCF, nº397 de 1/7/1904, p.213. 20 GCF, nº 401 de 1/09/1904, p.278. Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX 661

”Pela vida, sim; porque é do que o chinez menos caso faz. Haja quem a compre que não falta quem a venda barata. Succede até que, se um condemnado á morte entender-se com o carcereiro, este sem difficuldade, encontra quem se preste a soffrer o garrote no logar do prisioneiro, a troco de uns magros 50 taeis ou um kilo e meio de prata, ou uns 50$000 réis.”21, “Nos rios, nas piscinas, os dois sexos promiscuamente despem-se e lavam-se, sem que ninguem repare. (…) E’ que o podor, o sentimento de dever esconder ás vistas a maior parte do corpo não é ali conhecido.”22 É talvez o facto de encontrar uma cultura e um modo de vida tão diverso daquilo a que estava habituado, que o leva a defender que os viajantes antes de iniciarem uma viagem deviam estudar um pouco a história, a cultura e os costu - mes dos sítios que pretendiam visitar, “Não se póde, ou, pelo menos, não se deve passar os humbraes da China sem se ter préviamente feito um estudo (…) do que é aquelle paiz, dos seus usos, da sua etnographia, da maneira de viver dos chinezes. Porque a diferença para os nossos costumes é tão radical, que a nossa ideia não póde refazer-se, com a rapidez precisa, das surpresas que, a todo o momento se lhe deparam ante aquelle povo absolutamente diferente do nosso. E é talvez a difficuldade de nos entendermos a nós proprios naquelle extraordinário paiz que explica porque é que os europeos que para lá vão, não podendo amoldar aos seus costumes uma população de 400 milhões de habitan - tes, de tão differentes caracteres, mesmo entre si se amoldam elles aos chinezes (…) vivendo á chineza e achando delicioso o que os viajantes, de passagem, acham insuportavel.”23 “Para muitos, ver Macau, Cantão, Hong-Kong e Shanghae é ver a China completa, sem se lembrarem de que o imperio filho do sol é tão grande, as suas cidades principaes tão afastadas, que cada uma de per si constitue um paiz diffe - rente.”24, ao referir-se aos japoneses e à introdução de novos meios de transpor - te neste país, como é o caso dos grandes comboios que por lá circulam, não pode deixar de dizer “(…) na continuação do viver do Japão vamos apreciando a preocupação d’este povo em tornar tudo pequeno, leve, dobravel, de maneira a poder ser mettido em caixinhas, que ao vêr as grandes locomotivas que rebocam os grandes comboios que percorrem todo o paiz, bem imaginamos

21 GCF, nº 388 de 16/2/1904, p.70. 22 GCF, nº 391 de 1/04/1904, p.120. 23 GCF, nº 384 de 16/2/1903, pp. 410-411. 24 GCF, nº 389 de 1/3/1904, p.85. 662 Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

quanto pesar o japonez sentirá em não poder dobral-as, empacotal-as de fórma a guardal-as em qualquer pequenino escrinio de tampa axaroada.”25. Nestas palavras, Mendonça e Costa revela-nos a forma como percepcionou algumas características deste povo, embora afirmasse que “Ao deixar o Japão havia no meu espírito uma impressão um pouco parecida com a que me inspirára á entrada: O que é o Japão?”, visto que passara ali um mês e segundo as suas palavras, o seu espírito não ficara esclarecido para responder a essa questão. “Longe de mim ter conhecido o Japão pelos romances de Pierre Loti, especial - mente o ultimo tão conhecido por tanta gente culta.”26, com estas palavras o autor refere-se à importância de conhecer os locais de forma presencial, em detrimento do conhecimento adquirido através da leitura de romances escritos, por vezes, por autores que nunca estiveram nesses mesmos locais, dando origem a falsas ideias sobre diversos aspectos das sociedades retratadas. No fim destas suas Notas de Viagem, mais precisamente trinta e quatro, uma por publicação, o autor, sobre a viagem ao Oriente, refere a sua duração, nú - mero de cidades visitadas e a extensão percorrida em quilómetros (ver anexo I).

A viagem à América A viagem à América foi realizada em 1905 e teve como motivo o Congresso dos Caminhos de Ferro, no qual Mendonça e Costa ia participar como represen - tante da Companhia Real dos Caminhos de Ferro. No entanto, Mendonça e Costa prolongou a sua viagem para visitar outros locais que não estavam previs tos nas visitas de estudo dos congressistas e para conhecer outros pontos do continente americano. Assim, a viagem não se restringe aos EUA, prolon gando-se ao Alasca, ao México e ao Canadá. As memórias sobre esta viagem começam a ser publicadas na Gazeta dos Caminhos de Ferro de Maio de 1905. Tendo que atravessar o oceano Atlântico grande parte da viagem é realizada num navio que parte de Gibraltar e vai directo a Nova Iorque. Porque a viagem de barco é para ele uma novidade, que embora tenha aspectos interessantes se torna extremamente cansativa em percursos muito prolongados. Assim, consi de - ra importante informar os seus leitores sobre a vida a bordo de um transatlântico — “Para muitos leitores que nunca fizeram uma viagem marítima, não será falho de interesse que, (…) lhes digamos um pouco o que é a vida a bordo. Tem encantos, não há dúvida, este viver d’alguns dias, mas, (…) o aborreci - mento é uma doença inevitável” (…)

25 GCF, nº 390 de 16/3/1904, p.102. 26 GCF, nº 391 de 1/4/1904, p. 120. Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX 663

“os dias sucedem-se parecidos, as distracções em breve fadigam, pela sua repetição, pela insistência com que as buscamos. O que se faz a bordo? Lê-se; mas a continua leitura fatiga: o romance deixa de interessar; o jornal a breve trecho está lido desde o título até ao último anúncio. E esse jornal …é do mês anterior. Joga-se, mas os parceiros são sempre os mesmos, (…)27 Como a primeira parte da viagem de Mendonça e Costa se encontrava englobada numa viagem organizada para os participantes do Congresso, as descrições que faz “dos primeiros dias desta viagem, que promete ser enorme e enormemente interessante, abrangendo toda a América do Norte, isto é, os seus três principais países — Estados Unidos, México e Canada — tem forçosa mente que acompanhar a das excursões organizadas por motivo do Congresso dos Caminhos de Ferro (…)”28. Em Nova Iorque os participantes no Congresso dos Caminhos de Ferro foram recebidos por uma comissão de recepção que organizou as excursões de forma que os técnicos que participavam nesta reunião pudessem visitar os locais que mais lhes interessariam. Assim, porque se tratava de um grupo em que os enge - nhei ros eram maioritários “para lhes mostrar coisas interessantes, nada mais próprio que as fábricas de energia eléctrica, as novas estações em construção para os caminhos de ferro e os trabalhos do túnel que ligará a estação de Jersey com a cidade, as obras do alargamento da estação central da rua 42ª, e o primoroso serviço de automóveis eléctricos” “Quanto aos automóveis este é um serviço que se torna notável na América. Em cada cidade uma companhia de automóveis organiza diariamente 4 ou mais passeios, em grandes carros em forma de plateia para 40 pessoas, por um dólar (uns 500 réis nossos) cada uma. No carro vai um guia que, por meio de uma buzina fala aos passageiros explicando e descrevendo todos os pontos por onde o carro passa ou que dele se avistam(…)”29 Depois de Nova Iorque, os congressistas deslocaram-se a Pittsburgo cidade que conhecia um grande desenvolvimento económico e que, por isso mesmo se encontrava grandemente poluída — “Pittsburgo é, como dissemos, a cidade do ferro, do fumo, do negrume, o que lhe imprime um carácter infernal muito suges tivo. Ville du fer lhe chamamos, por gracejo, e mais tarde vimos que alguém, antes de nós, fizera igual calemburgo.

27 GCF, nº418, p.149. 28 GCF, nº419, p.167. 29 GCF, nº419, p.167. 664 Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

Tão grande é a povoação, tão distanciadas as grandes fundições e altos fornos em que se trabalha o ferro e o aço para todas as aplicações, que foi necessário levar ali os congressistas em comboios especiais, dentro dos quais se passou uma boa parte do dia, circulando na cidade e proximidades”30. O fumo das fábricas era de tal forma intenso em Pittsburgo que não foi possí - vel fazerem fotografias, o que segundo Mendonça e Costa foi uma vanta gem, a novidade da possibilidade de se registar as imagens do que se via fez com que os excursionistas estivessem constantemente a tirar fotografias. Assim, a existên cia de fumo, “valeu que — só ali — nos livrássemos duma infernal praga que infesta toda a América — as máquinas fotográficas. Durante o mês que durou o con gres- so, com as suas sessões, estudos, excursões e festas, não foram menos de cem as vezes que os senhores fotógrafos nos fizeram estar em posição, para nos tirarem em grupos; isto é, a 6 minutos cada vez foram 10 horas de viagem consa gradas a estes artistas que logo nos davam o seu bilhete para, se quisésse mos, podermos obter uma prova do seu trabalho, no dia seguinte mediante um ou dois dólares”31 Na cidade de Saint Luiz “o que mais tínhamos que examinar é o monu mento que mais brilha hoje na cidade é a sua Union Station, uma das mais belas do mundo”32. E em “Chicago, o termo norte da linha principal é uma cidade enorme, das maiores e mais activas dos Estados Unidos. Quase todas as grandes invenções, os novos maquinismos, esses milhões de diferentes artigos que o país exporta e nós vemos por toda a parte, são fabrica - dos em Chicago. È inumerável a quantidade das suas fábricas como estonteadora a faina que se nota no trabalho”33. Ao longo desta viagem Mendonça e Costa tem a clara percepção da impor - tân cia que a publicidade tem para promover as viagens. E, talvez porque nesta altura havia um interesse particular em incentivar as viagens ao Alaska, “Nume - rosos guias, folhetos, prospectos, mapas, roteiros, são distribuídos a montes por toda a parte, referindo maravilhas do Alaska. As companhias de vapores fazem não só continuas carreiras par ali, durante todo o ano afrontando os gelos, como estabelecem, no verão sucessivas viagens de recreio, em vapores especiais, em que as passagens, apesar de caras, uns 200$000 réis por pessoa, são disputadas por forma tal que os vapores se acham todos tomados com dois meses de antecedência”34

30 GCF, nº423, p.230. 31 GCF, nº423, p.230. 32 GCF, nº423, p.230. 33 GCF, nº424, p.245. 34 GCF, nº439, p.107. Dos EUA ao Oriente: as viagens de Mendonça e Costa no início do século XX 665

Tal como fizera no Oriente Mendonça e Costa analisa e descreve os costu mes dos povos da América. Assim considera que “Antes de prosseguirmos na descrição das viagens bom é ir dando algumas notas da observação da vida americana que poderão interessar não só o leitor que tenha que vir a este país, como recrear o que não pense sair de Portugal”35. Se considerar que alguns dos costu mes dos americanos são bem diferentes daqueles que são usais no seu país, “Para contra - por a estes costumes especiais que contrariam o visitante outros há excelentes nos Estados unidos, que tornam agradável a viagem neste país. Primeiro que tudo, uma ampla liberdade, uma ausência de exigências, de rigores, de regulamentos imutáveis a torturar o estrangeiro”36. O mesmo verificou na cidade do Quebeque, “uma cidade católica, e cosmo - polita” em que as ruas estavam cheias de “elegantes damas, circulando apres - sadamente, sós, o corpo todo vestido de branco, os dentes todos vestidos de amarelo”37. No final da viagem Mendonça de Costa fez um balanço da mesma cons - tatando que visitara um total de 72 cidades das quais 48 nos EUA, 11 no Alasca, 7 no México e 7 no Canadá (ver anexo II). Sintetizando podia dizer que o “balanço final e moral: alguns quilos de menos no peso do nosso corpo, à chega da, e um sem número de deliciosas impressões de tão larga viagem, e também — o que não se desfaz nem mesmo com o tempo — um agradável sentimento de gratidão a toda a América que tão amavelmente nos recebeu e nos facilitou uma das maiores viagens que aqui tem sido descritas”38

Considerações finais Embora o início do século XX seja marcado pelo interesse crescente pela viagem e pelo conhecimento de novas regiões Mendonça e Costa foi um caso excepcional pelo número e variedade de viagens que realizou. Como referia um seu contemporâneo "...Verdadeiro apaixonado pelo turismo, dedicou uma parte da sua vida a viajar. Percorreu todos os países da Europa (...); o norte da África, a China, o Japão, tendo sido o primeiro portuguez que atravessou a Ásia no Transiberiano e no Mandchuriano; visitou a Terra Santa a Assyria; a América do Norte e o México, (...) Tomou parte em quasi todos os Congressos da imprensa bem como

35 GCF, nº422, p.212. 36 GCF, nº422, p.212. 37 GCF, nº425, p.261. 38 GCF, nº443, p.255. 666 Ana Cardoso de Matos / Elói de Figueiredo Ribeiro

nas reuniões do Congresso Internacional dos Caminhos de Ferro. Esteve na Austrália (…) as suas Notas de Viagem, feitas sempre com escrupulosa exactidão, descrevendo os lugares que visitou e os costumes dos povos por uma forma simples e despretensiosa mas que revela um fino espírito de observação, não lhe faltando um comentário apropriado e um dito espirituoso a sublinhar cada acidente (...)”39 Os relatos de viagem que nos deixou são um elemento precioso para, por um lado, se perceber como no início do século XX se viajava nos diferentes países e, por outro, se conhecer as características dos comboios ou das estações. Os relatos são também uma importante fonte de informação sobre as regiões que Mendonça e Costa visitou e, sobretudo, um “olhar” de um europeu sobre outros continentes e outras culturas, de que neste texto apenas fizemos a primeira abordagem de uma investigação que temos em curso.

Anexo I Anexo II Viagem ao Oriente Viagem à América

GCF, nº 448 de 16/8/1906, p.448

GCF, nº 406 de 16/11/1904, p.357

39 GCF, nº 580 — 16/2/1912, p.59. Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares

GILDA NUNES BARATA

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

Resumo do Conto: Um homem e uma mulher fazem uma viagem de carro. Percorrem uma estrada e ao chegarem a uma encruzilhada escolhem um caminho, no entanto a meio do caminho notam que se enganaram e tentam regressar à encruzilhada mas já não a encontram. Continuam a viagem. Chegam a uma parte da estrada em que têm que optar por uma colina com árvores ou uma planície e optam por subir a colina para poderem avistar todos os caminhos a fim de encontrarem o caminho certo que os conduzirá ao destino. Ao chegarem à colina, avistam um cavador e perguntam-lhe pela encruzilhada. O homem diz para esperarem um pouco. Enquanto esperam bebem água numa fonte. Quando regressam da fonte, o cavador já não está lá. Decidem voltar para o carro e ir na direcção que o cavador lhes tinha indicado, mas o carro já não estava lá. Resolvem voltar à fonte que também desaparece. Seguem a estrada e passado algum tempo encontram uma casa. Batem à porta e ninguém abre. Arrombam a porta e encontram a casa vazia com uma lamparina de azeite acesa, roupa estendida no arame e pão e vinho numa mesa. Decidem voltar à estrada, mas a estrada já não existe. Tentam reencontrar a casa mas não a avistam. A mulher está cansada. O homem insiste no sentido de continuarem. O per - cur so é atravessado por um regato, uma bilha, um tarro, um lenhador, um rio… Tentam de novo encontrar a estrada. Retomam a caminhada, ouvindo vozes que rapidamente se distanciam. Chegam ao fim da floresta, já noite. Apercebem-se que estão perto de um abis mo. Tentam seguir um carreiro rente ao abismo. O homem escorrega. A mulher tenta alcançar o homem, percebe que acabará por cair assim que as raízes que agarrava romperem da terra. E só avistando escuridão pensa que para lá do abismo estará alguém…

* Poderíamos indagar da necessidade de partir. Poderíamos indagar da neces - sidade de viajar. Mas de que se trata quando se fala de viagem? A viagem uterina, interrompida por um parto, por gritos agudos, des medidos, desgarradamente solitários e nus? O momento do parto, o momento que deforma, 670 Gilda Nunes Barata

desfigura a viagem tranquila no útero? Na paz de uma noite antiga, há qualquer coisa que irrompe, uma fenda, uma ferida. Termina uma viagem. Começa uma outra. Como se se tivesse ultra passado toda a companhia da solidão e se se ambicionasse a companhia do mundo sombreada por meteoritos e oceanos. O momento do nascimento, o erguer da voz arrancada aos confins do uni - ver so. Trocar alguém por outro alguém, obrigar alguém a responder, a configurar o silêncio. Percebe-se então que uma viagem termina, que outra segue. A viagem é uma feição muito importante da escrita de Sophia de Mello Breyner. Na sua obra, a viagem é uma provocação que contém uma dimensão de beleza que transporta mais do que a sua própria beleza. É o acentuar de uma necessidade de interpelar um espaço de desiderato ou uma lacuna que denuncia insuficiências e incumprimentos vivenciais. Para a autora, em salutar diálogo com as palavras de Ortega y Gasset: “A vida é, na sua mais primária essência, interrogação, ou, o que é igual, incerteza, impossibilidade de contentar-se com as coisas, com o que está aí agora e obrigatoriedade forçosa de antecipar o que serão”.1 A viagem é um eixo do vórtice transformador do enigma em degraus de vida. Na sua essência, a viagem é a convergência originária dos arcanos meta - físicos que se fazem vida. É uma forma de desvio transcendente à revelação mais alta de visões imanentes. Por vias diferentes, a viagem violenta o que quer definir, agarrar, capturar. O que é que se cumpre numa viagem? Cumpre-se um combate. O assassinato de uma liberdade por um crime livre. O viajante é sempre um ente tenso e menos errante do que se pensa. Ele sabe muito bem que o não viajar o fará mais errante do que a partida. Um abutre ao ficar pode agarrar a podridão, mas nunca o dom de viajar. O ficar alisa as almas a uma ditadura pequena. A ditadura da viagem é sempre maior. O via jan - te enfrenta a entrega plena à vida, ainda que conduzida por quietismo ou por inacção espaciais. A viagem implica risco, a preparação para ser num caminho que para lá de conhecido é olhado com um gesto de solenidade. Todas as viagens são solenes, inaugurais. Simbolicamente, a autora recorre à “encruzilhada” profundamente enrai - zada em tradições de literatura sobre viagens. Diz: “E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem: — É o meio da vida. Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os

1 José Ortega y Gasset, O que é a Filosofia?, Lisboa, Edições Cotovia, 1999, p.203. Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares 671

rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse. Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram”.2 A “encruzilhada” é um ponto neutro, um ponto à semelhança do “ponto cin - zento” de que fala Klee, um ponto que pode ordenar ou desordenar tudo para sempre. Ponto não dimensional, destemido. Norte. Sul. Este. Oeste. As pos si- bilidades a seguir diante de inúmeras alternativas. Qual o caminho? A angústia instala-se. A escolha é imprescindível para a continuação de uma viagem que responda à insuficiência de respostas e faltas de um mundo parturiente, nos recessos criativos deste. A mulher do conto “A viagem”, diz a certo momento: “ — É o meio da vida”. O passado foi descontinuidade. O futuro colherá a descontinuidade. O conto desenrola-se na translação do tempo/espaço que determina um movimento de circularidade, um aprisionamento dos mesmos. A mulher quer tudo agarrar, possuir. Por fim, até o precipício julga controlar (“ — Do outro lado do abismo está com certeza alguém. E começou a chamar”3). É a luta contra a morte das suas ilusões através de mais uma ilusão redentora de todas as outras: o chamar alguém. Exorcizar todos os momentos ilusórios fintando a morte — a sua última ilusão. Como num sonho que reabre a realidade, remetendo-a para a verdade do sonho. A mulher do conto “A viagem” diz-nos que é preciso iludirmo-nos. Ignorar a morte através da ilusão da mesma — qualquer coisa do lado de lá. Alguém que contribua para o fechamento da verdade e a abertura à ilusão. Uma pressa que decorre do desespero que em nós produz o esperar, a estabilidade fátua das coisas, o influxo delas poderem dar-nos apenas o que não está à nossa dispo sição guindando-se no advento do nada, lançando rebentos do agora doméstico, intra- humano, dominador. Um escorço finito a abrir as estrelas que são sempre. Num tom de brevidade e despojamento, a autora não coloca nenhum impe - dimento à viagem do casal que logo depois não convoque mais ilusão no olhar seguinte, a não saciedade que inaugura a falha ontológica da transgressão seguinte em dádiva iluminativa de pó. Depuração, limpidez, precisão são algumas das palavras-chaves para esta escrita desvelada sempre na redenção e para a viagem descrita quase sem des - crição, sem cortejo. Não é preciso explicar o porquê da viagem. Viaja-se porque se viaja. A procura não tem que ser explicada com nenhum tipo de artifício. Ela estala, escreve, pinta utilizando a carência no carvão, pincel, tinta-da-china ou

2 Sophia de Mello Breyner Andresen, “A Viagem”, Contos Exemplares, s/l, Figueirinhas, 1985, p. 105. 3 Ibidem, p.127. 672 Gilda Nunes Barata

no inflectido do corpo fugidio. A inquietação não pressupõe que a viagem seja inquieta, mede somente a suicidária abertura que inter seccionando ânsia com posse multiplica o sonho numa demanda perseverante do esca tológico. Pelo contrário, o casal manifesta uma vontade que o faz prosse guir (“A mulher porém entornou a cabeça para trás e respirou profun damente o cheiro das árvores e da terra. Estendeu a mão no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta. — Ah — disse ela —, mesmo perdida vejo como tudo é perfu mado e belo. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre”4, diz a mulher). Uma balança interior fá-la prosseguir no caminho que a solidão interna das coisas externas adensa. A deser ção de si corresponde ao éter mister último do eco do que em si persegue. É altura do encontro com as dádivas da terra, o estado primordial: “Encon - traram uma sebe carregada de amoras. — São maravilhosas! — Disse a mulher. O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as na palma da mão à mulher. Ela provou e tornou a dizer: — São maravilhosas! Rindo, começaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chão a comer. A luz oblíqua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas”5). Porém, de tudo o que tiveram só um vislumbre balouçante perdura. Não fosse uma viagem o ressoar. Ressoam nos búzios os mares viajados. Ressoam nos mares os ventos em mastros longos e não duráveis. Ressoa, mas não existe. De álcool e oxigénio sente-se algures algo de invulgar importância em queda e cisão. Os obstáculos de uma vida? Os obstáculos de uma viagem? A vida é incriada, mas tudo o que invoca é imaginoso. Há flores carnívoras, de espessuras licorosas e de cinza na vida da incomensurável totalidade das coisas. A viagem, também ela, é criada no incriado da vida: “o rio”, “o cavador”, “a fonte”, “as amoras”, “a bilha”, “o tarro”, “o lenhador”, “as vozes” são exis - ten tes apenas no recorte ilusionista da viagem? Todos os lugares benignos ultrapassados pelo fito da voragem em alcançar o “lugar maravilhoso”, o misterioso lugar que promete a completude da feli cidade (“E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imagi - nou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folha gens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria

4 Ibidem, p. 120. 5 Ibidem, p. 119. Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares 673

tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali”6). Todos os obstáculos, transversais à beleza da viagem, são sublimados através de um promitente “lugar maravilhoso”? Beleza — palavra fundamental neste conto. Beleza ou perdição cansada à espera de esperança? A beleza sem nada a temer enquanto houver esperança. A esperança alimentada pela perdição da beleza, a beleza ligada à aura. Uma perdura recordada (a beleza), a outra (a esperança) recua/avança para o “lugar maravilhoso” a conquistar. Terá a “mulher” conquistado o “lugar maravilhoso”? Terá conquistado a realização da sua vida? A punição da mulher por uma eventual não conquista não é o precipício, como se possa imaginar pelo desenrolar do conto. Em nosso entendimento, a puni ção de uma vida não vivida em plenitude não é a morte. Amedrontam-nos com a morte as culturas ocidentais, mas a morte ignora-nos uma vida inteira e é a única coisa que não retira nada à vida para seu proveito. É a mais das indefesas — mártires calamidades, não sendo calamidade nenhuma, se acharmos mistério igual no que a vida é e no que nela há. A “mulher”, diante do abismo — precipício, consegue agarrar a sua vida toda, o seu trajecto. O “cavador”, o “rio”, a “fonte”, a “encruzilhada”, todos os rastos, estão ali à espera, finalmente à espera. A “mulher” pode reaver o instan te, se não avançar para a criação de uma nova ilusão. A “mulher”, porém, não aceita a desilusão — o fechamento final, e remete para uma ânsia nova — alguém que a socorra (nova ilusão). O abismo para que a autora aponta é, para os muitos estudiosos deste conto, o terror da morte, o terror do vazio. Pergunta-se: Porque aterrorizará mais o confronto com o desconhecido da morte do que a própria vida, se incognos cíveis foram os momentos probatórios da mesma? A “mulher”, no momento da queda, não cai sozinha. Amparada por todas as suas ilusões, ela redime as ilusões do “cavador”, do “rio”, da “fonte”, de tudo o que encontrou. Talvez o cavador precise daquele momento, a fonte transborde, o rio siga. Não é um engano ou erro a possível morte. A possível morte é o momento não ilusório que pode convocar a verdade do ilusório. A “mulher” poderá conhecer a realidade do homem que cavava (seria mesmo um cavador ou cavava, por acaso)? O rio? O rio era um rio ou um mar amedron - tado de vastidão? A fonte? A fonte podia estar seca há muito tempo e jorrar…

6 Ibidem, p. 107. 674 Gilda Nunes Barata

O ilusório não se constitui pelo desaparecimento das coisas ou entes da percepção mais superficial do casal. A nosso ver, o ilusório reside no casal ter dessas coisas a percepção subjectivista das mesmas, ter vivido tão pouco tempo a escuta que elas reclamavam (lugares “onde só estavam escritos os gestos da vida”7). A “mulher” não perguntou ao cavador o essencial da sua vida (pedir ajuda é só uma parte essencial da vida daquele que pede…). A mulher não incutiu no rio muito mais do que a sua manipulação através da água que poderia matar a sua sede e do prazer de nadar. A “fonte”, as “maçãs vermelhas”? É suficiente deixarmos as coisas darem-nos a beleza, sem nos dedicarmos a elas? Pergunta-se… Esse é o comportamento do turista e não do viajante. O viajante permuta essências, fica mais pobre, desgasta-se, não só se enriquece. O turista, de tão enriquecido, vai pobre até ao destino de regresso. Sophia de Mello Breyner dá-nos ainda o terror desta viagem sem exagerar nesse terror (“Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra”8). Dá-nos o medo sem exagerar esse medo (“Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece. — Estamos juntos. — disse o homem”9). O pasmo rente à dúvida. A brevidade a que tudo atribui não retira importância à perda, mas não acentua demasiadamente a falta. Há um equilíbrio, uma inexplicável justa medida para um trajecto de religação, uma religação sem resposta. Na verdade, a “mulher” sente uma falta ontológica que naufraga em perdas que se sucedem. Pode ser um capricho sentir falta muito tempo, por isso, ela sente falta algum tempo e deixa para trás o objecto perdido. O tempo da vai - dade. A vaidade dos homens perante o desapego do curso da vida. Também a vanidade enquanto o vão/efémero acontecimento de tudo. Procurar cons tan - temen te um “lugar maravilhoso”, não será uma vaidade da consciência? Um lugar pesado e denso, de difícil respiração, é a recompensa para quem procura lugares de claridade. É preciso respirar dificilmente para arranhar a verdade. Depois de muito ver e ouvir, há que embalar a escuridão com mais escuridão… O dom do precipício, a sorte de confrontar o abismo, nem que seja uma única vez… A viagem ensina a viagem. A vida ensina a vida. A nossa atenção/dedicação ao mundo é o culto que as coisas pedem. Uma consciência atenta é a que decifra algo mais do que a cifra de uma coisa. Existir é um exercício que reflui sobre

7 Ibidem, p. 112. 8 Ibidem, p. 113. 9 Ibidem. Conto “A Viagem” de Sophia de Mello Breyner: a orfandade do desejo na diáspora dos lugares 675

a vida. O que vive, existe no refluxo do que liberta. Impressões brevíssi mas, o corpo vaza-se em suspensão. Em relação ao casal do conto “A Viagem”, nunca estes assumiram o estado edénico antes da chegada ao éden? Porquê? Porque é que nunca houve a assumpção de que já lá estavam? Porque é que as delícias vindouras são sempre mais gratificantes do que as presentes e mais operantes no momento futuro? Não estavam já todas as coisas suficientemente acesas (“Todas as coisas pareciam acesas”10)? Misteriosamente, a viagem do casal e a viagem da vida descem com as delí - cias que oferecem. Emanam da natureza sinais que pousam na cara, nos ombros do casal sem abraço. A “mulher” estende para o homem as mãos abertas, com as palmas viradas para cima. A “mulher” não repete os mesmos gestos, não repete as mesmas palavras e o que diz inteiramente o vento arranca inteiramente à sua boca. Ao longo de uma vida, ninguém decora as palavras como sendo moduladas por um canto. Acendem-se palavras que ocupam espaços visíveis com a sua forma, densidade e peso. Palavras que são só o nome das coisas. Palavras que não reúnem o disperso ou o brilho do que nomeavam… Será que a “mulher” nomeou devidamente as coisas? Será que nomeou devidamente o nome da sua vida? E o precipício, não será a nomeação do precipí - cio o nome da vida? A “mulher” não teve apenas um sucessivo número de perdas. Ela teve o ensinamento dessas perdas. Porque é que a autora não enfatiza o ganho do desaparecimento? Quantas coisas, nas nossas vidas, não são redimidas pelo desvanecimento dessas mesmas coisas? A “mulher” está condenada a inventar novas soluções para uma estação que é paragem. Ela não parece procurar a sua liberdade nem a do parceiro ou da natu reza. Ela parece procurar o “lugar maravilhoso” que pode não ser o lugar da sua felicidade. A sua facticidade corre atrás dos factos ou os factos não são a facticidade da sua vida? Não percebemos. Não percebemos se este casal é feliz ou não é feliz. Também não se sabe se o que procuram, procuram com força. Fal ta força a esses não rostos. São porosos demais. Cabe lá tudo. Podem ser o que quisermos. São atirados para uma viagem que não sabemos se quiseram mesmo fazer. Por fim, a “mulher” não suporta o fim da ilusão, o momento da transpa - rência e quer envolver um outro (uma alteridade) no processo ilusório, no jogo perigoso de não aceitar o fim do princípio da manifestação. O homem, ao contrário, aceita ou não aceitando, a autora não nos dá conta de nada.

10 Ibidem, p. 105. 676 Gilda Nunes Barata

A exaltação, a exultação, o clamor, a alegria de ver ir e vir o êxtase, o contí - nuo avançar ordenam o tumulto do mundo para o dia da celebração: um lugar esburacado. Talvez o dia da celebração não seja o “lugar maravilhoso”. Talvez um lugar maravilhoso tenha os buracos dos lugares mais frágeis. Afinal, o “lugar maravi - lhoso” não é dado em nenhum momento da narrativa ou será dado ao longo da mesma sucessivamente? E se não é oferecido, será porque a ordem natural do cosmos tem um fundamento para a sua não vinda? A “mulher” não esconde a inquietude na modulação do acaso ou na ima - nência/transcendência das coisas. Todas as situações existenciais conferir- -lhe-ão um sentido novo purificador? Não sabemos. A mulher não muda de rota, não afunda a ilusão do “lugar maravilhoso” na aquisição de uma sabedoria. Não estará frente a frente com o “lugar maravi - lhoso” e inúmeras vezes reiterando a sua procura cega? Preside à sua cegueira levar o parceiro consigo e cegá-lo ainda mais. Vendas. Cegueira perpétua a deste casal, já que no momento da morte não acordam. Não julgamos ter sido tempo perdido o que uns pensam ser tempo perdido. Determinados gestos como colher amoras ou fazer um ramo, que sentido acres - centam a uma vida? Apanhar flores com as raízes para levá-las, deslocá-las, é um momento epifânico? E porque é que essas flores não cederão à deslocação? O deslocar constantemente o encanto da surpresa da natureza pelas nossas voluntariosas demandas de certezas, será o mais valioso? A mulher não sabe se o “lugar maravi - lhoso” terá as delícias que ouviu a outros. Diz a autora/narradora: “Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso”.11 Além. Além. A dimensão ampla das coisas sempre no além. Tudo um meio para um fim mais precioso que o meio? — O além. De forma inexplicável, as coisas dialogantes só podem dialogar num lugar distante? Porquê? Porque é que no momento presente são incomunicáveis? “Ali”? Porque não, aqui, agora? “Ali” — um lugar condenado a ser livre. Um lugar sem desculpas para a não perfeição. Um lugar condenado a ser luminoso, lançado ao abandono da falsi - dade de estados de consciência. Um lugar sem justificações, quase desonesto.

11 Ibidem, p. 106. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do outro

ISABEL MARIA FIDALGO MATEUS University of Birmingham

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

1. Introdução Desde o início da Literatura de Viagens europeia, cujo marco periodológico se situa no século XV e surge ligada à época das Descobertas de quinhentos, que a questão do Outro é extremamente relevante. O encontro e o olhar imediato do povo descobridor em relação ao indígena tende em geral a estabelecer-se de forma comparativamente superior e através duma visão eurocêntrica. Foi esta perspectiva de superioridade do Mesmo em relação ao Outro que imperou na Europa durante a conquista e o estabelecimento do poder colonial até ao século XX inclusive, como o atestam entre outros, por exemplo, Mary Louise Pratt em Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation, Tzvetan Todorov em La Con - quête de l’Amérique: La Question de l’Autre ou Edward Said através da obra Culture & Imperialism. No caso tardio da África portuguesa só cessou com a descolonização, que ocorreu entre 10 de Setembro de 1974 e 11 de Novembro de 1975, após a queda da Ditadura em Portugal com o 25 de Abril de 1974 e o consequente terminus da Guerra Colonial.1 É precisamente na qualidade de opositor ao regime de Salazar e de não apoiante da Guerra Colonial entre Portugal e a África, que se iniciara a 4 de Feve - reiro de 1961 em Angola, sob a iniciativa do MPLA, e se alargara em 1963 à Guiné e em 1964 a Moçambique, que Miguel Torga se desloca a África. O Eu parte com o intuito de se encontrar através da sua viagem actual e de se rever, no sentido colectivo, nas consequências de uma muito anterior — a viagem dos Des cobri - mentos portugueses. É, portanto, simultaneamente uma viagem indi vidual e colectiva como o documenta o poema sugestivamente intitulado “Viagem”, pois é com ele que Torga inicia o Diário XII e anuncia a sua desloca ção física, via aérea, a África. Preconiza igualmente para esta viagem “um adeus eterno” e quase se sente como um dos navegadores de quinhentos. Assim, com esta visita de Torga a África, que decorreu entre 17 de Maio e 12 de Junho de 1973, pretendemos mostrar a viragem da sua percepção do Outro africano e contrapô-la à da presença portuguesa vigente em África, que coincide, afinal, com a de cinco séculos da nossa história com pé nesta terra. É através da

1 Marques, A. H. Oliveira, Histoire du Portugal et de son Empire Colonial. Paris: Éditions Karthala, 1998, p. 576. 680 Isabel Maria Fidalgo Mateus

sua atitude de rebeldia de homem livre, que por vezes se auto-flagela pelo peso da circunstância de ser ele próprio português e, como tal, colonizador, do seu comportamento de um visionário e de um “cronista de excepção”2 que o Mesmo se confronta com a alteridade do Outro.

2. A alteridade africana nas obras A Criação do Mundo — O Sexto Dia e Diário XII de Miguel Torga: no humano (branco e negro); no telú rico (a paisagem e a caça); na arquitectura; na língua e nas crenças.

2.1. Alteridade em relação ao humano A alteridade do Outro em Miguel Torga no que respeita a África refere-se como é evidente ao humano, de um lado o branco e do outro o preto, através da sua arquitectura, da sua língua e das suas crenças, mas passa principalmente pelo telúrico, que compreende a paisagem e a caça. Por essa razão, Torga resume à natureza a única possibilidade de conhecimento da terra africana: Nova Lisboa, 30 de Maio de 1973 — O pé escreve as unidades; o auto mó- vel adita as parcelas; o avião mostra a soma. Das três maneiras me tenho servido para levar desta terra uma imagem condigna. Da terra, repito. A dos homens não requereu tanto esforço. Igual por toda a parte, ao primeiro relance fica entendida. (…) Teimo, pois, na prospecção da natureza, o único mistério que resta em Angola.3 Contudo, como constatamos pela mesma nota do Diário, esta empresa de deci - fração revela-se-lhe ingrata, porque esta imensa terra continua por desbravar, intacta sem a única marca de presença humana.4

2 Moreiro, José Maria, Miguel Torga e África. Lisboa: Universitária Editora, 1996, p. 19. Esta obra de edição bilingue é inteiramente dedicada à viagem de Miguel Torga por África, como o próprio título deixa adivinhar, e neste dedica-lhe uma parte onde designa Torga de “Cronista de Excepção”. 3 Torga, Miguel, Diário XII. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, p. 1253. 4 As várias tentativas de colonização do interior africano com população originária da Metrópole (sobretudo os degredados) revelam-se infrutíferas ao longos dos séculos. E mesmo durante o maior afluxo da história da colonização da África lusófona pelos portugueses, que ocorreu entre 1960 e 1970, os emigrantes, na sua maioria provenientes das camadas rurais empobre - cidas, refugiam-se nas cidades e aí procuram fugir ao trabalho árduo do campo, sua anterior ocupação. A este respeito e para uma detalhada evolução desde o século XVI até ao século XX da colonização africana em geral e, em particular, do povoamento rural de Angola, que se processou de forma idêntica nas outras colónias, veja-se a obra de Gerald J. Bender Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality (, Nairobi, Lusaka, Ibadan: Heinemann, 1978), Part II. White Settlement, pp. 55-129. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 681

Começando pelo aspecto humano é bem notória a desilusão do escritor- viajante perante o que observa no território africano e está patente naquilo que escreve no seu Diário XII quando, por exemplo, visita Cela e que reforça igual - mente em A Criação do Mundo — O Sexto Dia. Também em ambas as obras recorre à analogia entre a colonização do Brasil, que conhece como emigrante, e o que constata em África. Entre muitas outras possíveis, vejamos então a nota de Cela datada de 21 de Maio: Não há dúvida: o português foi incapaz de repetir nestas paragens africa - nas o milagre brasileiro. Lá enraizou-se; aqui, não. Certamente porque lá o senhor e o escravo eram ambos emigrados e colonizadores. Estrangeiros os dois, tinham a mesma necessidade de sobrevivência e de entendimento.5 Do que a citação deixa adivinhar, subentende-se que o Mesmo e o Outro não se encontram em sintonia. De facto, quando em território africano, o Eu reco nhece no Outro diferentes graus de alteridade inerentes às situações de contraste exploradas pelo escritor-viajante munido do seu método prospectivo de apreen - são da realidade africana.6 Estas foram originadas pela forma diver gente de apro - ximação dos descobridores e viajantes portugueses e europeus da época das Descobertas e dos séculos sucessivos perante as terras achadas e colonizadas e os seus nativos: a pretensa superioridade europeia racial e cultural. Consideremos em primeira instância o encontro de Torga com um Outro com o qual não lhe é possível identificar-se. Trata-se do indígena que não foi acultu - rado ou assimilado, pois não fala a língua portuguesa, nem entende o branco nas suas diferentes manifestações culturais: While the number of Africans enrolled in school increased over tenfold during the final quarter century of colonialism, the poor quality and rigidity of the educational system precluded all but 5 per cent of the Africans enrolled from completing the four years of primary school. Thus, the one instrument which Portugal possessed for effectively assimilating

5 Torga, Miguel, Diário XII, pp. 1248-9. Gerald J. Bender no capítulo II “The Dynamics of Miscegenation” do seu livro acima citado compara e contrasta os efeitos da colonização portuguesa no Brasil e em África e entre outras razões apontadas, como a de um maior número de colonos brancos de diferentes nacionalidades, o seu pensamento vai ao encontro dos argumentos apresentados por Miguel Torga. 6 Mateus, Isabel Maria Fidalgo, A Viagem de Miguel Torga. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2007. A Autora refere-se a este método, que o escritor Miguel Torga utiliza sempre que viaja, assim o definindo: “O método de prospecção consiste em o Mesmo (o eu) perscrutar a realidade do Outro para o conhecer e, consequentemente se encontrar a si próprio, formando a sua identi - dade”(p. 28). Note-se que na citação referente ao Diário XII, datado a 30 de Maio de 1973, de Nova Lisboa, Miguel Torga utiliza inclusive o nome “prospecção”, que remete evidentemente para o método em causa. 682 Isabel Maria Fidalgo Mateus

Africans in Angola was accorded such a low priority and was so poorly utilized that only a minute proportion of Africans were ever meaningfully exposed to Portuguese culture, let alone desirous of assimilating it.7 Havendo neste caso alteridade radical ou absoluta, o Eu não consegue ultrapassar a barreira de duas culturas diferentes.8 O Outro também não se dá a conhecer. Na citação que se segue estão expostos estes dois pólos irreconciliáveis: O alívio com que deixava lugares aonde a curiosidade me levava e o instinto de conservação não conseguia distinguir o rancor da cordiali dade! Homens, mulheres e crianças olhavam-me no mesmo silêncio enigmático e pesado, ou sorriam-me ainda mais inquietadoramente.9 Nunca até então o desconhecido da viagem, corporizado na alteridade do Outro, se lhe revelara tão confrangedor e a inibição do Eu perante o indígena não é senão a reacção consciente de alguém que sabe de antemão que do (seu) mínimo gesto mal interpretado pode resultar o acto irreversível da morte: E experimentava pela primeira vez a sensação penosa de ter medo diante de semelhantes a quem nunca fizera mal e gostaria até de apertar a mão fraternalmente. Mas o ar que se respirava de norte a sul estava conta - minado.10 Ao lado deste nativo, que habita preferencialmente as zonas rurais, o Eu des - cortina outro tipo mais citadino: o indígena aculturado, onde se notam de forma declarada duas tensões rácicas — a branca e a negra. Neste caso o Mesmo integrou o Outro. Torga sente empatia por ele e critica o etnocentrismo da colonização branca que vê o Outro como inferior a si, com expressão na forma como o trata: No máximo, uma certa afectividade temperamental concedia ao negro a precária dignidade de criatura inferior, primária, infantil, incapaz de progresso, sempre necessitada de paciência e castigo.11

7 Bender, Gerald J., Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality. London, Nairobi, Lusaka, Ibadan: Heinemann, 1978, p. 220. Bender refere que o processo de assimilação em África se operava em três etapas: “the destruction of traditional societies, followed by the inculcation of Portuguese culture and finally the integration of “detribalized” and “Portuguesized” Africans into Portuguese society” (p. 219). Este Autor opina que, ao contrário do Brasil, em África nem o primeiro estádio se chega a implementar. 8 Krysinsky, Wladimir, “Discours de Voyage et Sens de l’Altérité”, in A Viagem na Literatura. Cursos da Arrábida. Mem Martins: Europa-América, 1997, pp. 235-263. 9 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1994, pp. 172-3. 10 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 173. 11 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 169. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 683

Afinal o que o Governo português queria fazer parecer apenas uma diferença cultural entre europeus e indígenas baseava-se no princípio descriminativo da raça. Segundo o extracto da obra Angola under the Portuguese que se segue, esta inferioridade atinge inclusivamente os assimilados12 a que apenas uma minoria africana consegue ascender: In the cities there was little basis for racial harmony: Portuguese peasants displaced Africans from the lesser skilled positions they traditionally held; there were large disparities in wages paid to whites and blacks (including assimilados); and the material and (presumed) cultural differences between Europeans and Africans were too great for meaningful social intercourse to occur.13 Ainda que Torga não aplauda na sua totalidade a conduta de alguns dos represen - tantes da voz dos indígenas oprimidos — os nacionalistas —, percebe a perspectiva do nativo.14 Homens cultos, educados muitos deles com matriz europeia na Metrópole ou até no estrangeiro, sendo alguns mestiços e assimi lados, insurgem- se através do movimento anti-colonial de 1950 contra o poder dos portugueses em África. Há neste caso uma identificação com o Outro na sua alteridade. Também a opinião de Torga no território nacional diverge da do Governo portu - guês, quanto ao entendimento e valorização dos valores culturais do povo que tão bem elucida no livro Portugal e, sobretudo, não partilha dos ideais políticos de opressão, de falta de liberdade e de censura do Regime do Estado Novo, que expõe em toda a sua obra. Rendido às atrocidades da colo nização portuguesa, o Eu toma o partido do oprimido, embora o modo como os seus mandatários se rebelam não caiba na humanidade de Torga. Este em A Criação do Mundo — O Quinto Dia não acalenta ódio contra o seu inimigo; no Aljube presta cuidados

12 Bender, Gerald J., Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality, p. 103. Bender diz que “Before the legislative reforms of 1961 (durante o indigenato), assimilados were those Africans and mestiços whom the Portuguese (legally) considered to have successfully assimilated Portuguese culture and language. However, both the private and public sectors paid Africans, including assimilados, lower wages than those paid to whites. The justification was that the salaries merely reflected the differential productivity of the two races”. 13 Bender, Gerald J., Angola Under the Portuguese: The Myth and the Reality, p. 103. 14 Macqueen, Norrie, The Decolonization of Portuguese Africa: Metropolitan Revolution and the Dissolution of Empire. London and New York: Longman, 1997. Para um estudo detalhado da acção dos nacionalistas e da sua afirmação contra o poder colonial português nas colónias ou Províncias Ultramarinas veja-se o segundo capítulo desta obra intitulado “Nationalist Consolidation and the Wars of Liberation”, pp. 17-63, e ainda o sucinto mas elucidativo artigo acerca dos diferentes grupos nacionalistas em África e da sua natureza de Patrick Chabal “The end of empire in “Lusophone Africa: Portugal and the anticolonial wars, 1960-1974”, in Portuguese, Brazilian And African Studies (Earle, T. F. and Griffin, Nigel (Edited by), Warminster: Aris & Phillips Ltd, 1995, pp. 219-333). 684 Isabel Maria Fidalgo Mateus

médicos a um partidário do governo que, através do seu cargo, providencia a sua prisão. No entanto, o Eu compreende que esta seja a única forma por eles encon - trada para dar voz ao povo ameaçado: Sem argumentos capazes para lhes contrapor, ouvia alanceado as acusa - ções de alguns nacionais esclarecidos. Intelectuais e artistas que, embora radicais no seu ódio, eram a voz impaciente de milhões de humi lhados. Todos os Gungunhanas do passado e do presente falavam por aquelas bocas que em língua portuguesa condenavam inapelavel mente Portugal.15 Apesar de o Eu ter esta postura de abertura e entendimento, também está ciente que à sua presença em terras africanas pode ser atribuído um sentido equívoco pelo colonizado, por ser simplesmente mais um dos membros opressores da metrópole. Do mesmo modo que o escritor-viajante se assume como um Nós, o portu guês, perante a responsabilidade e a culpa de uma colonização falhada em África, porque injusta, também dele se distancia quando o seu objectivo aponta o seu ponto de vista acerca daquilo que se está a passar na colónia duran te a guerra travada entre a Metrópole e esta Província. Mas na citação seguinte, para além dessa situação, a percepção desse facto na auto-análise do seu comporta - mento face ao Outro é o que mais incomoda e fere o Eu. A culpa bilização deixa de ser colectiva para se individualizar e personificar no seu corpo e na sua alma no decorrer desta sua viagem: E, a caçar nas matas da Gorongosa ou sentado à mesa lauta de alguns anfitriões abastados, sentia não sei que peso na consciência. Tinha a impres são de estar a ser conivente com todos os que, de uma maneira ou outra, concorriam para atiçar o lume de revolta que, visível ou invi sível, grassava de ponta a ponta naquelas terras. Frontal ou traiçoeiro, o perigo espreitava de todos os lados.16 O Eu não se identifica com o colonizador português como facilmente consta tamos pelas temáticas que ele aborda nas páginas do Diário e em A Criação do Mundo, as quais remetem para os vários desníveis que existem entre a etnia civilizadora e a civilizada, como sejam o económico, o político e sobretudo o social. A alteri - dade que se regista entre Torga e o Outro colonizado apenas serve para enfatizar aquilo que o viajante pretende ver mudado em relação à actuação do branco versus o negro. Apesar disso, há sempre por parte de Torga a vontade de conhecer o Outro. É, portanto, um Outro face ao Mesmo, na medida em que a visão do Eu perante o colonizado é diversa daquela do colonizador português. O Eu não concorda com esta atitude opressora do branco perante o negro e sente-se

15 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 172. 16 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 172. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 685

envergonhado pela conduta dos portugueses em África a ponto de com as palavras que lhe dirige pôr a intenção de um pedido de desculpa: A humilhação e o desespero que senti numa noite em que fui levado a uma sala onde autodidactas nativos se reuniam e ensinavam uns aos outros, num esforço desesperado de promoção e dignificação!17 Mas um exemplo gritante é o referente ao da conduta de uma criança branca em relação à sua ama negra adolescente, presente no Diário XII: Às tantas, a pequerrucha, num capricho, pegou numa régua e agrediu a guardiã, que, naturalmente, a desarmou. — Pretas! Pretas! — gritou a fedelha em fúria. — Bem sei que sou preta... — murmurou a mais idosa.” “Bem sei que sou preta” é exactamente o oposto de “bem sei que sou branca”. E há quinhentos anos que as duas etnias se excluem mutua mente nos termos estritos deste dilema bárbaro.18

2.2. Alteridade do telúrico

2.2.1. A paisagem Comparativamente A Criação do Mundo — O Sexto Dia o Diário XII realça melhor, ou seja, nota-se ainda maior preocupação no que respeita à não-identifi - cação do Eu com a paisagem africana; esta afasta-se em muito daquela da pátria. O Eu sente que o sentimento da terra africana também é mútuo em relação a si, esta rejeita-o recusando-se a integrá-lo mesmo depois de morto. Na nota do Diário XII datado de 19 de Maio de 1973, a partir de Luanda, explicita a exclusão telúrica do Mesmo relativamente ao Outro e vice-versa: Escrevo diante da mesma paisagem feia para que abri os olhos de manhã - zinha e que parece abafar como eu. Paisagem seca, pulverulenta, ardida, de vegetação precária e rasteira, que algumas cabras famélicas depenam e algumas presenças arbóreas tentam em vão erguer: embon deiros disfor- mes, edemaciados, monstruosos; mangueiras sombrias, espessas, maciças; mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço. Numa apli - ca ção esforçada, tento compreender este chão em si mesmo, espe cifica - mente, mas os sentidos refilam, inseguros fora dos seus padrões habituais — transmontanos, alentejanos ou beirões. E, por mais que não queira, sinto-me nele intruso, rejeitado, excluído, com a impressão incómoda de que, se morresse aqui, seria mais facilmente comido por dois abutres que me espreitam da ponta de um galho seco do que pela terra da sepultura.19

17 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, pp. 169-170. 18 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1248. 19 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1247. 686 Isabel Maria Fidalgo Mateus

O Eu nunca perante uma paisagem alheia foi tão peremptório no seu juízo de valores, embora previamente se tenha esforçado por interiorizá-la na sua dife - ren ça. Mas o seu relativismo cultural europeu de parâmetros geográficos tão díspares no tamanho e na forma (exemplo do embondeiro) não se conseguiu adaptar à nova realidade, o que não sucedeu no Brasil. Tzvetan Todorov quando aborda o tipo de relações do Mesmo com o Outro indica como exemplar o caso do espanhol Diego Duran que foi para o México ainda criança e, por isso, conse - guiu apreender excepcionalmente no século XVI em pleno as duas cultu ras: a espa nhola e a dos astecas.20 Podemos compará-lo nesta medida a Torga de A Criação do Mundo — O Segundo Dia, em relação à vivência deste durante a sua meninice e juventude no Brasil profundo, telúrico que é também àquele onde ele tem a pretensão de chegar em África, ao contrário dos primeiros desco - bridores e dos colonos que Portugal tentou fixar no interior africano, através das várias tentativas (frustradas) de repovoamento rural europeu ao longo dos séculos até aos finais da Guerra Colonial. Não podemos esquecer, porém, que estes dois continentes tiveram colonizações diferentes como o próprio Torga o diz, assim como o testemunham outros críticos que já aqui referimos. A barreira entre a geografia natal e a indígena é demasiado grande, como no-la anuncia na nota do Diário, datada de 25 de Maio de 1973, a partir do deserto de Moçâmedes, a actual Namibe. Naquilo que regista no dia seguinte ainda do mesmo local afigura-se-lhe intransponível essa diferença, apesar de atenuada pela presença humana. Como sucede em relação à alteridade relativa ao humano, também no referente à paisagem devemos considerar a existência de uma alteridade completa, ou seja, radical. A paisagem africana é realmente um enigma para o Eu e a vegetação um escár nio na figura do embondeiro, mas a sua presença é afinal idêntica à da vegetação pobre das fragas nativas transmontanas, que para além de cilício funcio na também como um sortilégio. Neste âmbito tem cabimento a frase reiterativa “infeliz pássaro que nasce em ruim ninho” na obra do autor relati va - mente à pátria, assim como o poema “Embondeiro” no que respeita a África: Por mais que mude a luz De cada panorama, O teu vulto persiste Em ser a imagem triste Da tristeza africana.21

20 Todorov, Tzvetan, La Conquête de L’Amérique: La Question de l’Autre. Paris: Éditions du Seuil, 1982, pp. 208-224. 21 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1257. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 687

Podemos assentir que a atitude prospectiva do Eu face à paisagem africana o leva a cotejá-la com a nativa e, embora não lhe negue a alteridade, esta propor - ciona-lhe pelo paralelismo estabelecido o conhecimento, embora antagónico, dos dois países telúricos.

2.2.2. Alteridade relativa à caça Intimamente ligada à paisagem surge a caça por duas razões. Primeiro, pelo facto óbvio de o cenário da caçada corresponder a uma vegetação específica da savana africana, obrigando o caçador a permanecer durante horas “enterrado no capim à procura de rastos, através dum nariz e duns olhos nativos, e a alvejar a presa a duzentos metros de distância com carabinas de precisão”22, o que conduz ao segundo motivo — a falta de identificação do Eu com o modo como a activi dade cinegética aqui se pratica. O cotejo entre a própria caça (os animais), a forma de caçar em Portugal e em África, Gorongosa, acentua essa clivagem. Em Portugal há igualdade de circunstâncias entre o caçador e a presa, ou pelo menos não há traição: “Que saudades de uma perdiz bem mandada numa encosta do Douro, abatida de papo!”23 A caça não é a única em desigualdade de circunstâncias, o negro também está em desvantagem perante o branco e a comparação do poder de Torga, a sua superioridade das balas em relação ao leão desarmado tem a mesma conotação do colonizador perante o negro, o indígena: “(…) E, a autenticar a obra, a vetusta assinatura do autor, figurada na juba do leão deitado ao lado da companheira, a olhar com majestática sobranceria o pobre rei da criação que eu era, a exibir um ceptro de cinco balas nas mãos aterradas”.24 É ainda neste cenário de caça que o Eu se confronta com o Outro humano da África profunda. Realidade ainda diversa da brasileira, novamente constata também aqui que indígenas e colonizadores não conseguem comunicar, enca - rando-se como perfeitos desconhecidos dentro da mesma pátria. Citando de novo Todorov e encarando a alteridade no plano da epistemologia, diríamos que o português nunca se mostrou interessado em conhecer o africano e que, por isso, a frase “j’ignore l’identité de l’autre” retrata a postura do colonizador versus o colonizado.25

22 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1256. 23 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1256. 24 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1256. 25 Todorov, Tzvetan, «Typologie des relations à autrui », pp. 191-207. Neste primeiro ponto do capítulo IV, sob o título “Connaître”, o autor explicita o tipo de relações que o Mesmo 688 Isabel Maria Fidalgo Mateus

A caça foi o meio de chegar até eles, isto é, ao povo africano. Contudo, a bar - reira de quinhentos anos interpôs-se entre o Mesmo, o viajante Torga, e o Outro.

2.3. Alteridade arquitectónica A visita que Torga efectua pela cidade de Luanda na manhã seguinte à sua aterragem desperta-lhe em A Criação do Mundo — O Sexto Dia comentários que revelam a amargura de uma má colonização. É através da arquitectura que ele melhor consegue materializar a explicação de tão nefasta atitude portuguesa, sobretudo porque já tinha dado provas em contrário da sua capacidade neste âmbito com Ouro Preto e Salvador, que são quase réplicas de Portugal no Brasil. Aquilo que tinha presenciado em terras brasileiras levara-o de facto a criar falsas esperanças, cujo desencanto exprime pelo recurso à retórica da frase interroga - tiva e ao uso das formas verbais no pretérito mais-que-perfeito do indicativo, que atestam a sua ideia pré-concebida acerca da cidade e dos efeitos da colonização. Ora, vejamos: Que demónio de orgulho e de cobiça nos tentara e ensandecera? Como é que tínhamos desaprendido tanto? Viera na expectativa de encontrar a imagem específica de um modo português de estar em África, expressa na trama de um espaço urbano condizente. E deparava com uma arqui tec - tura arbitrária e sem alicerces no passado, dimensionada à triste altura das irredutibilidades humanas do presente.26 Se continuarmos com a nota do Diário XII datado de19 de Maio de 1973, também a partir de Luanda, constatamos que a arquitectura fomenta o racismo entre branco e negro. Aqui reparamos na cor do Outro porque cada etnia vive num tipo particular de construção. Assim, podemos inferir que também não houve coloni - zação intercultural: nem o branco levou a sua cultura de Portugal, nem o negro se deixou assimilar. Afinal estamos face a duas cidades dentro da mesma: “… uma, arrogante, retórica, de papelão, a negar o preto; outra, calada, tentacular, eczematosa, a negar o branco”.27 Efectivamente, a alteridade na arquitectura provoca outras alteridades como a do corpo e da alma, ou seja, o amor ou o ódio entre o Mesmo e o Outro, considerando-se o primeiro superior ao segundo.28 Esse bipolarismo está magnifi - centemente representado no meio rural pela diferença de construções e da sua localização:

estabelece com o Outro a três níveis: da axiologia, da praxeologia e da epistemologia, a que aqui me referi concretamente. 26 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 167. 27 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, pp. 1247-8. 28 Todorov, Tzvetan, «Typologie des relations à autrui », p. 191. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 689

Visito uma roça modelar. E desanimo. Um abismo intransponível, espacial e temporal, separa a casa grande da sanzala. O indígena não faz parte dos afectos, dos sentimentos, da fraternidade e, até, da sensualidade. Do amor, numa palavra. Isolado na sua aldeia, segregado, é uma máquina útil que no fim do trabalho recolhe à arrecadação.29 O mesmo se passa nas grandes cidades. À semelhança do que sucede em Luanda, os muceques contrapõem-se à urbe; os primeiros são os guetos que mura lham a cidade. Na nota do Diário datada de 30 de Maio, de Nova Lisboa, escreve que “Os muceques de Luanda são os bairros de lata de Lisboa. Em ambos se processa a mesma dissolução humana”.30 De facto no centro das cidades viviam apenas os brancos e alguns mestiços e para os nativos, os cabo verdianos e os portugueses pobres restavam os muceques da periferia. É ainda através do Diário que em Lourenço Marques, pela boca de um nacionalista, nos apresenta essas duas formas de vida palpáveis nas construções e que se agudi zam na antinomia que também engloba a lei, a economia, a técnica e a política: Tudo na óptica dele, estava errado na África portuguesa. Cidades de gente cercadas de guetos de bichos…31 A mesma imagem de segregação racial é reiterada em A Criação do Mundo — O Sexto Dia, onde a adjectivação altamente positiva referente ao núcleo da cidade contrasta com a carga negativa imbuída no significado dos dois adjec tivos atribuídos aos subúrbios: “As cidades cresciam também escaroladas e alinhadas entre muceques desordenados e sombrios”.32

2.4. Alteridade linguística (entendimento intercultural) A alteridade ao nível linguístico surge no intrincado das “Quatro imagens avulsas da nossa boa consciência civilizadora”, de que Miguel Torga fala na nota do Diário consagrada a Lobito, em estreita relação com a arquitectura, quer sob a forma das construções habitacionais ou comerciais, quer na de monu mentos repre sentativos e comemorativos da heroicidade dos portugueses, e com a paisa - gem agreste. A imagem do Outro passa primeiro por aquela que Torga tem do colo - nizador e da exploração, onde ele forçosamente se inclui. Nesta nota pode mos já vislumbrar a alteridade radical que, desta feita, se baseia na língua quando Torga mostra através do contraste entre Camões e os indígenas a supe rioridade literária daquele em relação aos últimos: “…o épico a enfunar o peito heróico

29 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1249. 30 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1253. 31 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1258. 32 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 171. 690 Isabel Maria Fidalgo Mateus

diante do analfabetismo indígena”.33 Na obra A Criação do Mundo — O Sexto Dia essa alteridade espelha-se na grandiosidade aflitiva que a incom preen são linguís - tica da pátria portuguesa por parte do nativo provoca no escritor-viajante: Tentava interrogar os indígenas. Como estátuas de carne, fitavam-me impassíveis na sua nudez inocente. Nem sequer compreendiam a língua em que lhes falava. Ou então, se já aculturados, a sua acomodação servil mais redobrava o pesadelo.34 Ou ainda, na continuidade do raciocínio anterior, quando assiste cabisbaixo à tentativa autodidacta de serem os negros a ensinarem e a aprenderem por eles o Português. No Diário XII não faltam outros registos donde sobressai precisa - men te a inércia do colonizador versus a obrigatoriedade de incrementar o ensino da nossa língua naquelas paragens, para o possível entendimento entre as duas culturas. A 28 de Maio, em Sá da Bandeira, volta a ater-se do suporte da arquitec - tura para exprimir o paradoxo entre a super-cultura literária dos portugueses na figura dos “épicos” nos seus pedestais, apreciados somente “por olhos mornos, analfabetos e humilhados”. Segundo o pensamento torguiano, o contraste entre os brancos e os negros poderia anular-se se também houvesse heróis africanos representados ao lado dos descobridores, dos poetas portugue ses. Assim se explica a última frase deste passo do Diário “Por conta dos muitos Gungunhanas que esperam também pela sua consagração”.35

2.5. Alteridade nas crenças Uma forte motivação da Empresa das Descobertas desde os seus primórdios consistiu na evangelização, no espírito de missão e de conversão ao cristianismo a que Miguel Torga também se refere pela positiva na visita que efectua ao cemitério da missão católica da Huíla no Diário XII. Segundo José da Silva Horta no seu artigo “O africano: produção textual e representações (séculos XV-XVII)”, a religião é no início da colonização imperial o elo fundamental de ligação a estabelecer entre os indígenas e a possibilidade de os portugueses imporem a sua presença nesse território. É, pois, através do ensinamento da fé cristã ao gentio que com mais facilidade este se (pode) deixa(r) assimilar36:

33 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1250. 34 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 168. 35 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1252. 36 Veja-se o exemplo do Congo nos primeiros contactos dos portugueses na África Central. Para uma narrativa acerca da conversão do rei do Congo pelos portugueses e posteriormente de um dos seus filhos, que viria a ser chamado Afonso I e lhe sucedera em 1505, faça-se uma leitura em Bender, pp. 12-18. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 691

Cristianizar é, para além do plano salvífico universal em que se insere, o caminho, o instrumento moral, que pode tornar determinadas socie dades africanas com quem se tem contacto mais próximas do modelo de socieda - de ocidental, e, simultânea e correlatamente, mais permeáveis à presença do poder português, na sua expressão política e económica.37 Foi isso que se fez durante séculos numa perspectiva etnocêntrica e que Miguel Torga documenta com as frases curtas e directas das páginas acusadoras de A Criação do Mundo — O Sexto Dia, onde explicitamente informa acerca da nossa atitude distante em relação a tudo que diga respeito ao Outro africano: Em vez de tentarmos compreender a significação de certas singula ridades da sua vida quotidiana, o seu matriarcado, a sua poligamia, o seu noma - dismo, o seu panteísmo religioso, o seu tribalismo, as suas festas fúnebres e os seus rituais, de nos esforçarmos por decifrar nas suas máscaras os mistérios que neles se ocultam, de procurarmos interpretar o esoterismo das suas feitiçarias e a alucinação dos seus batuques, íamos às senzalas satisfazer apenas a fome dos sentidos.38 Aliás, aqui nem os missionários são poupados à sua crítica, pois estes “no seu optimismo apostólico” desprezaram a crença nativa pela imposição da cristã. E ao papel tão pouco animador como satisfatório das ordens religiosas evan geli - zadoras (Jesuítas, Franciscanos), equipara o Eu posteriormente ainda mais negativamente o dos etnógrafos pela sua inexistência no terreno. Precisamente porque não se faz etnografia pelos portugueses nos países conquistados, são os (etnógrafos) estrangeiros que em campo tentam deslindar os mistérios da alma negra. A nota do Diário de 29 de Maio de 1973, escrita acerca de Sá da Bandei - ra, é inteiramente devotada à sua reflexão acerca da inércia secular dos portu - gue ses para conhecerem em profundidade a alteridade do Outro para em seguida concluir que são outros povos, também eles colonizadores durante séculos, que estudam neste caso a nossa “negritude” africana. Deste encontro do Eu com o sábio missionário estrangeiro ficou-lhe mais uma vez a culpa bi lização de uma colonização portuguesa incompleta, devido à “nossa pobreza cultural”.39 Do desconhecimento total das crenças e daquilo em que o povo africano acredita e respeita, pelo abuso e usurpação aos vários níveis da vida social e económica de que foram vítimas ao longa da presença portuguesa em África e de toda uma conjectura favorável internacional, não é de admirar uma resposta

37 Horta, José da Silva, “O africano: produção textual e representações (séculos XV-XVII)”, in Condicionantes culturais da literatura de viagens. Estudos e bibliografias (coord. Fernando Cristóvão). Lisboa: Edições Cosmos, 1999, p. 278. 38 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, pp. 175-176. 39 Torga, Miguel, Diário XII, pp. 1252-1253. 692 Isabel Maria Fidalgo Mateus

violenta do povo africano — os massacres. Na opinião do escritor-viajante, como não soubemos interpretar o seu significado, pois em vez de mudarmos a nossa conduta de discriminação racial em relação aos africanos que tinham sido despojados das suas terras e da sua identidade cultural em aldeamentos desde longa data, respondemos a essa sua legítima revolta com armamento bélico e represálias pouco dignificantes quer para os nativos, quer para os portugueses como povo colonizador. Miguel Torga também não reconhece na sua totalidade a simbologia das forças que os moveram, mas tenta entendê-los inseridos na sua cultura e não os julga nos seus parâmetros europeus: Numa moral primitiva, o vencedor destrói o vencido. Decapita-o, esquar - teja-o, devora-o. É bárbaro, é intolerável, mas é a sua lógica guerreira. Sabe-se lá que remotas implicações rituais, ou mesmo religiosas, estão por detrás desses excessos! O que em termos de cultura ocidental é uma aber - ração que brada aos céus, para ele pode ser uma afirmação étnica e ética.40 Em A Criação do Mundo — O Sexto Dia reforça essa posição e justifica a sua conduta com uma cultura negra que o branco desconhece, assim como o nativo não conhece a nossa: “O esforço épico de alguns pioneiros não fora secundado pela maioria. Ao cabo de quinhentos anos de uma presença formal, com figura jurídica mas sem textura humana, fora do perímetro de cada povoado a lei do sertão continuava inalterada”.41 Por esse motivo, e referindo-se igualmente aos massacres, acrescenta que “Só homens ainda na primitiva decência, certamente movidos por forças anímicas poderosas, mas alheios à graça da bênção cristã, se comportavam com tal ferocidade”.42 Ao finalizarmos esta primeira parte do corpo do texto podemos concluir que até quase ao fim da sua peregrinação por terras do Ultramar Torga não teve a possibilidade de identificar-se com o Outro africano. A alteridade verificou-se ao nível do humano, do telúrico, da arquitectura, da língua e das crenças. Por essa razão, a percepção do Outro por Torga tem resultados negativos; antes de ele chegar o português nada fez para o conhecer. Afinal, é como se o Torga de agora estivesse a chegar em quinhentos com um olhar esclarecido do século XX. Após a leitura do referente à viagem a África tanto no Diário XII como em A Criação do Mundo —O Sexto Dia, concluímos que o poeta luso é o único que mostra interesse no conhecimento do Outro, segundo a perspectiva do Pós-Modernismo. Ou melhor, vê o Outro como um ser nem inferior nem superior, procurando entendê-lo na sua diferença e na do seu meio físico, social e cultural.

40 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1260. 41 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 168. 42 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 168. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 693

3. Ilha de Moçambique: a anulação da alteridade Se desde que aterrou em Luanda na opinião do Eu do Diário a Empresa dos Descobrimentos em nada mais tinha resultado do que num terrível equívoco da acção da gesta lusíada em terras do Ultramar, na Ilha de Moçambique os portu - gue ses excederam-se. Esta sua perspectiva também se encontra registada em A Criação do Mundo — O Sexto Dia. Tanto numa obra como noutra, o Eu exulta de alegria por aqui se ter realizado o que ele desejaria que tivesse acontecido em toda a África de expressão portuguesa. De tão eficaz, este processo de colonização é comparável ao operado no Brasil, que mais uma vez Torga usa para estabelecer o paralelo da intervenção dos portugueses nos dois países. De acordo com as pa - la vras do Autor de A Criação do Mundo, até não será descabido pensar-se que com a Ilha de Moçambique se atingiu o clímax da positividade da coloniza ção portu guesa: Quando julgava que teria de regressar inteiramente desiludido e morti - ficado, descobria, perplexo, que na sua exiguidade podiam caber as provas de uma certeza sem contestação possível da nossa mun di vidência. Outros documentos conhecia já dessa potencialidade criativa. O Brasil estava cheio deles. Nenhum, contudo, mais expressivo.43 As suas palavras proferidas no Diário são por demais elucidativas quanto às emoções que experimenta perante esta panorâmica: Que orgulho legítimo eu sinto a compartilhar este sincretismo de raças, de culturas, de fé e de sentimentos! Brancos, pretos, pardos e amarelos num convívio fraterno, os vivos a mourejar ombro a ombro, os mortos a repousar lado a lado.44 De facto, não se regista na narrativa referente à Ilha de Moçambique o binarismo do Mesmo e do Outro.45 Isto é, se até então o Eu criticou tudo o que o português fez desde quinhentos neste país, também não se poupa à exortação do povo luso quando surge a oportunidade. Aqui de facto o Mesmo reconhece Portugal, porque finalmente encontra in loco o seu tão ansiado modo português de estar em África, como já visualizara no Brasil, que só agora reflecte em África o ideal do luso- tropicalismo difundido pela pátria.46 Por esse motivo, “Em vez de uma ilha real,

43 Torga, Miguel, A Criacão do Mundo — O Sexto Dia, p. 176. 44 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1257. 45 Cadilhe, Gonçalo, Nos Passos de Magalhães. Oficina do Livro: Cruz Quebrada, 2008. Na sua muito recente visita a este local Cadilhe também fica extasiado com as parecenças de ambos os territórios: “A culpa não é minha que a Ilha de Moçambique recorde tanto Portugal. A “culpa” é de quatro séculos inaugurados com Vasco da Gama” (p. 32). 46 Bender, J. Gerald, Angola Under the Portuguese: Myth and the Reality, p. 3. Para um melhor entendimento do significado deste termo para a colonização em África (e no Brasil) leia-se a Primeira Parte da referida obra, sob o título “Lusotropicalism”. 694 Isabel Maria Fidalgo Mateus

com latitude e longitude”, encontra “um acto de imaginação da pátria”.47 A não-alteridade, devida também agora à obra dos colonizadores portu - gueses desde quinhentos, reflecte os mesmos temas que antes denunciavam a alteridade, donde se exceptuam apenas a paisagem e a caça por não lhe fazer referência como se compreende, tanto pela especificidade do papel desta Ilha nas Descobertas portuguesas, como pela sua geografia física. Gonçalo Cadilhe em 2008 tira-lhe o retrato como sendo por um lado apenas uma “fatia de terra”, mas por outro “a mais importante praça portuguesa na África oriental”.48 Deste modo, na nota do Diário de 7 de Junho de 1973, a partir da Ilha de Moçambique, o Eu considera de novo a arquitectura como a principal respon sá - vel pela afirmação da boa ou má colonização portuguesa. Aqui tudo faz sentido, inclusive os monumentos que marcaram a presença lusíada, porque eles estão contextualizados pela sua absorvência das outras culturas e por partilharem o mesmo espaço com outros edifícios que representam os outros povos, o nativo e os demais que o habitam, como os portugueses. Ao mesmo tempo que contesta a segregação racial apresentada no ponto anterior, a citação que se segue é ainda exemplar quanto à comunhão do Mesmo com o Outro ao nível arquitectónico que, por sua vez, perpassa o humano com a sua língua e as suas crenças: Não me canso de ver e de pasmar. A fortaleza, as igrejas, a mesquita, as moradias, as cubatas indígenas, a pegada de S. Francisco Xavier, os monu - mentos, as lápides, são toda a nossa heroicidade, santidade, frate rnidade, cobiça e sabedoria ancoradas pelo Índico. E tudo certo, tudo ao mesmo tempo insólito e natural, como deve ser a vida: os goeses, os monhés, as negras mascaradas, os indianos marcados, as capulanas e os turbantes. O próprio Camões, tão descabido em Luanda e no Lobito, fica aqui bem, de peito aberto ao ar marítimo do Oriente.49 A Criação do Mundo — O Sexto Dia faz de novo coro ao Diário XII na afirmação da ausência de alteridade ao nível cultural, religioso e arquitectónico: “A Europa, a África e a Ásia entrançadas na arte, na cultura, na vida e na morte”.50 Assim, situando-nos no plano epistemológico, já aqui defendido por Todorov, podemos declarar que o Mesmo conhece a identidade do Outro, que passa pela cultura e pelo seu “modo de viver” e que numa vertente da praxeologia está próximo do Outro, porque adere aos seus valores e consigo se identifica.

47 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1258. 48 Cadilhe, Gonçalo, Nos Passos de Magalhães, p. 32. Para uma descrição mais pormenorizada da Ilha de Moçambique e da sua importância como praça veja-se o artigo de Malyn Newitt “Mozam bique Island: The Rise and Decline of an East African Coastal City, 1500-1700” (Portuguese Studies, Volume 20, 2004, p. 23). 49 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1258. 50 Torga, Miguel, A Criação do Mundo — O Sexto Dia, p. 177. Miguel Torga: a África colonial e a sua percepção do Outro 695

4. Conclusão Ao apontarmos na sua viagem os elementos com os quais o Eu não se identifica ao longo da primeira parte do texto ficamos inteirados que o luso- -tropicalismo, de que os portugueses da metrópole em geral se orgulhavam, não passou de uma falácia para esconder o racismo que, não estando instituído por nenhuma lei, operava em silêncio na diferenciação da cor, na separação da vida quotidiana no que diz respeito ao trabalho, à habitação, ao direito à educação. Em suma, à possibilidade de mobilidade social sem discriminação racial.51 Claramente também concluímos que a constatação do que viu desiludiu o viajante Miguel Torga. A forma como estruturámos esta exposição evidencia-o pelo recurso ao contraste do primeiro tópico com o segundo. Ou melhor, ao passo que a alteridade africana aos níveis atrás referenciados esbarra com a negação da epopeia de quinhentos que se efectuou no Brasil, o caso pontual em África — a Ilha de Moçambique — anula a alteridade do Mesmo em relação ao Outro e preconiza a vontade inicial dos colonizadores e de Torga durante o regime do Estado Novo. Nada melhor do que as explícitas palavras do Autor do Diário, numa cena alusiva à exploração petrolífera, para explicarem o modo correcto de os portugueses influenciarem o colonizado: Em vez de emprestarmos consciência racional à sua riqueza anímica, de lhe abrirmos o entendimento para as virtualidades da natureza que ama mas desaproveita, ensinamos-lhe a técnica de a destruir, de a violentar, de a esventrar e de a poluir finalmente com as fezes da sua própria alma queimada.52 Com isto Torga quer dizer que levámos ao indígena o progresso ao contrário. Afinal, nem sequer nos interessámos por assimilá-los como fizemos no Brasil, porque no interesse de alguns seria mais fácil deste modo explorá-los e preservar assim o domínio da superioridade branca sobre a inferioridade negra.53 A este

51 J. L. Ribeiro Torres analisa no artigo “Race Relations in Moçambique” a ambivalência de os colonizadores portugueses serem ou não racistas em relação aos africanos, comparando a acção dos portugueses com a de outros colonizadores como os franceses e os britânicos e, apesar de observar algumas tensões ou actos menos cordiais, conclui com uma diferenciação positiva para a colonização portuguesa. A sua opinião distancia-se daquela de Bender, a que recorremos com frequência ao longo do artigo, e da de Miguel Torga, sobre a qual recai este trabalho. 52 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1249. 53 Bender, J. Gerald, “The Reality of Race in Angola”, pp. 219-224. Bender no IV e último capítulo da sua obra, depois de já se ter debruçado sobre este tópico no capítulo II em relação ao Brasil e à África, explica de novo aqui as três fases do processo de assimilação concebido pelos por - tugueses face aos africanos (“destruction of traditional societies”; “inculcation of Portuguese 696 Isabel Maria Fidalgo Mateus

propósito, com o poema a Diogo Cão, que também assim o intitula, resume nos últimos dois versos a epopeia portuguesa em África: “Limpo brasão de quem só descobriu / E nada conquistou”.54

culture”; “the integretion of “detribalized” and “Portuguezed” Africans into Portuguese society”), que nunca se chegou a concretizar como no-lo explica de forma sumária a seguinte frase: “Thus, the one instrument (education) which Portugal possessed for effectively assimilating Africans in Angola was accorded such a low priority and was so poorly utilized that only a minute proportion of Africans were ever meaningfully exposed to Portuguese culture, let alone desirous of assimilating it”(p. 220). 54 Torga, Miguel, Diário XII, p. 1250. A “Mala para o Brasil” — correspondência eciana na imprensa carioca (1880-1882)

ISABEL TRABUCHO Universidade Aberta, Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

este ano comemorativo do bicentenário da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, recordamos um veículo privilegiado das relações cultu - Nrais que se estabeleceram entre Portugal e o Brasil na época de Oitocentos — a Imprensa. No último quartel do século XIX, o jornal era visto como um meio funda men - tal para a transformação da sociedade. Através da crónica, ou de outros textos jornalísticos, poder-se-ia criticar abertamente a realidade quotidiana, visto tratar-se de um “espaço de liberdade” em que o cronista podia, de forma aberta e avulsa, tratar das mais diversas temáticas. A imprensa estava presente, a par e passo dos acontecimentos, em pessoas e nos seus feitos, multiplicando-se o número de periódicos, tanto em Portugal como no Brasil. Eça de Queiroz, sendo embora mais conhecido, lido e apreciado pela sua obra ficcional, revelou-se assazmente na sua epistolografia e no texto jornalístico (de onde se destaca a crónica), onde traça o quadro de toda uma realidade coeva numa época conturbada e em contínua evolução. Em face da actualidade de qual - quer acontecimento, a crónica queiroziana revela-nos o espírito subtil do seu autor, constituindo esses textos jornalísticos um testemunho das suas impressões, das imagens e das ideias de um escritor que, como poucos, nos revela a sua vivência e caracteriza o quotidiano e os acontecimentos que dele fazem parte. Deste modo, as crónicas, as cartas e outros escritos foram sendo publicados na imprensa portuguesa. Em 1880, Eça inicia a sua colaboração com a imprensa brasileira, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, dando ensejo à sua necessi - dade de manter a escrita não ficcional nos seus hábitos diários, conforme refere “Eu necessito fazer correspondência por higiene intelectual…”.1 Desde essa data até 1897 (apesar dos interregnos de 1883 a 1886 e de 1889 a 1891), Eça deleita o seu público-leitor brasileiro (mais fiel e devotado que o português) encetando a sua longa colaboração com uma série de crónicas e outros textos de imprensa em que fascina os seus numerosos leitores, de tal modo que pode ainda hodiernamente ser considerado um dos mestres do jornalismo daquele

1 Carta a Ramalho Ortigão de 10-7-1879, in Correspondência — Eça de Queiroz, Volume I, Lisboa, IN-CM, 1983, p.179. 700 Isabel Trabucho

país. Granjeou prestígio e fama junto do público e dos seus pares, sendo eleito como “talvez o jornalista mais ágil, mais espirituoso, mais elegante, mais com - ple to que já apareceu na imprensa brasileira”.2 Deste modo, o cronista vislumbrava informar o leitor de além-mar, não somen te dos acontecimentos triviais e comezinhos de Londres e Paris, como pólos culturais do mundo, mas, acima de tudo, examinar e problematizar expli ci ta - men te um ideário moral, político, literário e artístico de uma Europa oitocen - tista. Assim, de entre esse extenso corpus de textos de imprensa, seleccionámos nesta colaboração eciana para o Brasil, as crónicas correspondentes aos anos de 1880 a 1882, por se reportarem a uma primeira fase da correspondência para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Eça de Queiroz, apesar de nunca ter visitado o Brasil, privava assiduamente com brasileiros desde os tempos da Universidade de Coimbra, onde, segundo Heitor Lyra, contactara com mais de uma dezena de colegas. Na sua infância houvera já sido criado por um casal de negros trazidos do Brasil pelo seu avô, com os quais ganhara apego ao sotaque e às histórias que estes lhe contavam e que perduraram na sua memória. Mais tarde, em 1870, concorreu para cônsul em Salvador da Baía tendo sido preterido provavelmente pelo facto de ter participado nas Conferências do Casino, ou por o escolhido para o cargo ter usado as suas influências no meio diplomático, o que o levou, em 1871, a redigir uma crónica, em As Farpas, critican do o que hoje denominaríamos de lobbies da diplomacia lusa e dos seus agentes. No ano seguinte, foi nomeado cônsul em Cuba. Apesar do incidente provocado pela sua “farpa” contra o brasileiro comum, entre muitos outros visados, podemos considerar que a imagem do Brasil e do brasileiro se alterou intensamente ao longo dos anos, muito devido aos amigos brasi leiros que Eça foi conquistando e com quem contactava amiúde: Eduardo Prado, Domício da Gama, Rio-Branco, Magalhães de Azeredo e Olavo Bilac. Eram frequentadores habituais de sua casa em Neuilly e Eça retribuía o gosto deste con tacto tão próximo com estes escritores e intelectuais brasileiros que o delicia - vam com o sotaque que tão bem definiu como “um português com açúcar”. A partir de 1880, passa a ser correspondente efectivo da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, enviando cartas, crónicas, artigos de fundo, folhetins e capítu - los de romance para o Brasil, país que tão bem acolheu a sua produção literária e jornalística. Aliás, entre os brasileiros, o trabalho de Eça foi sempre largamente lido e apreciado, tal como atesta Paulo Cavalcanti ao afirmar que “nenhum romancista estrangeiro exerceu, até hoje, maior influência no Brasil do que

2 Manuel Bandeira, “Correspondência de Eça de Queiroz para a imprensa brasileira”, in Livro do Centenário de Eça de Queiroz, Lisboa, Edições Dois Mundos, 1945, p. 168. A “Mala para o Brasil” — correspondência eciana na imprensa carioca (1880-1882) 701

Eça de Queiroz. Durante sua vida, no fastígio da carreira literária, a consagração de seu nome, como escritor, atingiu proporções invulgares”. Na sua correspondência familiar, Eça refere, por diversas vezes, a necessi - dade premente e a azáfama que a correspondência de imprensa para o Brasil provocavam na sua vida pessoal, tal como se constata em diversas missivas a sua mulher, nas quais afirma respectivamente ”Minha querida Emília, estou hoje muito atarefado com a Mala para o Brasil e não sei se terei tempo de escrever carta”, ou, noutro exemplo, “Tens estado ao regime de bilhetes postais, o que não é muito substancial nem muito carinhoso: mas a mala do Brasil tem-me absorvido aquele escasso tempo que me deixam os negócios, e a natural indolência que toda esta casa respira”. A Gazeta de Notícias era um recém criado periódico carioca, fundado por Ferreira de Araújo, Manuel Carneiro e Elísio Mendes, e revelava-se notável na defesa de grandes causas como a da abolição da escravatura. De entre a plêiade de colaboradores deste jornal do Rio de Janeiro, contavam-se muitos intelectuais dos dois lados do Atlântico, destacando-se Eduardo Prado, Machado de Assis, Olavo Bilac, Ramalho Ortigão, entre outros. Assim, não admira o forte interesse demonstrado por Ferreira de Araújo em ter como seu colaborador o romancista português. Para mais, havia o facto de a Gazeta de Notícias carecer de um corres - pondente em cada um dos pólos culturais europeus, a fim de informar os seus interessados leitores de tudo o que se passava em Paris e Londres, consi derados na época, como os locais de onde emanavam a cultura e a inovação. Vivendo o escritor em Inglaterra, supriria ainda melhor essa necessidade do periódico carioca. Como correspondente no estrangeiro para os seus leitores brasileiros, Eça transmitiu o seu testemunho da vida pública europeia, nomeadamente de Ingla - terra e de França, nas suas diferentes vertentes: a cultura, a política, a ideologia, a literatura e a vida social. Tomando a Europa como modelo civilizacional, por excelência, Eça vislumbrava apresentar aos leitores do Rio de Janeiro os movi - mentos políticos, culturais e sociais dos grandes centros que eram incontesta - velmente Paris e Londres, ao longo de todo o período de Oitocentos. Segundo o cronista, ao mundo interessa, acima de tudo, o pulsar da vida, da sociedade que se move nessas cidades, pois “a curiosidade pública é impe - lida para lá — dando ao resto do mundo apenas aquele olhar rápido que se tem para os fundos de retratos, onde verdejam vagos de paisagem” ou, como afirma, “o desejo mais natural do homem é saber o que vai no seu bairro e em Paris”. Numa crónica de 1881, intitulada “A perseguição dos judeus” circunscreve a sua temática no povo judaico, seja pela publicação de um novo romance de um autor judeu venerado pelos da sua raça — Lord Beaconsfield, seja pelo movi - mento anti-semita que se começa a notar na Alemanha. Encontrando-se Eça em 702 Isabel Trabucho

Inglaterra, constata, tal como sucede na nação alemã, a relevância dos judeus nas instituições bancárias e na imprensa britânica, pelo que o cronista manifesta o seu receio em que tal sentimento anti-semita se extravase para outras nações europeias. Prevê, tal como mais tarde sucedeu, uma nova e forte perseguição a todos os filhos de Israel, tal como no século XVI, uma “das boas, das antigas, das manuelinas, quando se deitavam à mesma fogueira os livros do Rabino e o próprio Rabino, exterminando assim economicamente com o mesmo feixe de lenha a doutrina e o doutor”. Perante este movimento que se volta a instalar nas sociedades ocidentais, Eça procede a uma análise do cerne do mesmo, anuindo que o mesmo não se baseia em motivos puramente religiosos e, portanto, espirituais, ou em motivos étnicos, mas, acima de tudo, assenta em razões bem concretas e materialistas, pois, como refere, “o motivo do furor anti-semítico é simplesmente a crescente prosperidade da colónia judaica, colónia relativamente pequena, apenas com - posta de quatrocentos mil judeus; mas que pela sua actividade, a sua perti nácia, a sua disciplina está fazendo uma concorrência triunfante à burguesia alemã”, continuando a concretizar a sua marcada influência através das seguintes circuns - tâncias: “A alta finança e o pequeno comércio estão-lhe igualmente nas mãos: é o judeu que empresta aos Estados e aos príncipes, e é a ele que o pequeno proprietário hipoteca as terras. Nas profissões liberais absorve tudo: é ele o advogado com mais causas, e o médico com mais clientela; se na mesma rua há dois tendeiros, um alemão e outro judeu — o filho da Germânia ao fim do ano está falido, e o filho de Israel tem carruagem!” Outro motivo que exaspera ainda mais o âmago dos germânicos é, sem dúvida, a ostentação dos judeus, pois, ao contrário dos seus antepassados, o judeu, na época de Oitocentos, segundo Eça, “traz a cabeça alta, tem a pança ostentosa e enche a rua”, não respeitando a sobriedade do cidadão das grandes cidades europeias, pois, “falam sempre alto, como em país vencido”, ao que o cronista concorda que num “restaurante de Londres ou de Berlim nada há mais intolerável que a gralhada semítica” em indivíduos identificados pelas jóias com que se cobrem, pelo ouro dos arreios das suas carruagens e pelo “luxo grosso” que veneram, o que os torna abjectos aos olhos dos povos europeus que os acolhem. São os senhores da Bolsa e da Imprensa, apoderando-se de bancos e jornais, o que leva à manipulação da opinião e a um sentimento alheio de impo - tência perante a solidez e a prosperidade da comunidade judaica, acirrando consequentemente ódios nos que os rodeiam e observam. Eça desmistifica esta aura pouco abonatória dos judeus, assim como tenta justificar o seu sucesso material, considerando a inata capacidade israelita para triunfar e progredir nos negócios ligados à banca e a sua necessidade de lutar pela sobrevivência e pela segurança de um estatuto económico e social que lhes A “Mala para o Brasil” — correspondência eciana na imprensa carioca (1880-1882) 703

permita uma vida despreocupada em países estranhos com religiões, crenças e tradições distintas. Ora, perante a situação de serem olhados sobran cei ramente pelos outros cidadãos e de se isolarem como comunidade religio samente diver - gente e com tradições próprias, cria-se sempre uma oportunidade para quem tenta aproveitar-se das circunstâncias alheias para justificar os seus actos ou as suas inacções. Daí que, como afirma Eça, Bismarck, apesar de ser gover nan te de um país civilizado, explora habilmente esse anti-semitismo3 para desviar a atenção das massas das dificuldades internas, “à falta de uma guerra” e face a “uma prolongada crise comercial, às más colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadência industrial” distraía a atenção do “alemão esfomeado — apontando-lhe para o judeu enriquecido”. Astrojildo Pereira atribui o temor das classes conservadoras ao socialismo em ascensão como a principal causa do movimento anti-semita, funcionando este como “uma velha manobra diversionária: distrair o descontentamento das massas populares, fazendo-o convergir sôbre algum bode expiatório, adrede preparado, para, à sombra da excitação assim produzida, atacar o verdadeiro objectivo em mira. O socialismo crescia e ameaçava os fundamentos da ordem burguesa”, situa ção que não escapava ao olho clínico e perspicaz do cronista, tendo originado, décadas mais tarde, um tão forte “ódio nazista contra Israel [...] uma reedição — monstruosamente aumentada e aperfeiçoada — do ódio anti-semita já existente nos tempos de Bismarck”. O modo como as diferentes realidades subjacentes a cada nação eram vistas por Eça ainda hoje se reveste de profundo interesse, através do seu dis curso crítico que, embora nos revele um idealista não deixa, acima de tudo, de procu - rar a verdade. Deste modo, os temas que aborda nas inúmeras crónicas e na correspondência jornalística manifestam as suas preocupações como homem de forte sentido moral. Lamenta que a humanidade não caminhe para o pro gresso nem para a perfeição, conduzindo-nos inexoravelmente ao “sofrimento moral” e ao “sofrimento social”. Daí que, como considera Eça com ironia, “Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogá-la num dilúvio”.

3 No fim de século esse absurdo anti-semitismo propagar-se-ia para França, assistindo Eça, enquanto cônsul em Paris, ao famoso processo de Dreyfus, que o chocou devido às dúvidas suscitadas sobre a autenticidade das provas que o acusavam de espionagem. Perante este caso de injusta condenação de um capitão judeu, Eça não se mostrou impassível face a tal sórdido julgamento criticando-o a par de muitos escritores e intelectuais da época, afirmando: “Também eu senti grande tristeza com a indecente condenação de Dreyfus. Sobretudo talvez porque com ela morreram os últimos restos ainda teimosos do meu velho amor latino pela França... Quatro quintos da França desejaram, aplaudiram a sentença. A França nunca foi na realidade uma exaltada da justiça, nem mesmo amiga dos oprimidos.” in Eça de Queirós, Textos de Imprensa IV, p. 512. 704 Isabel Trabucho

A crítica severa ao imperialismo britânico e à sua política externa são uma constante na cronística para o Brasil. Transmitem, inegavelmente, uma atenta aná lise sócio-política da Inglaterra do seu tempo e revelam as fortes preo - cupações do escritor-jornalista perante as injustiças e o desequilíbrio social a que assiste. Num magnífico texto cronístico publicado ao longo de dois meses de 1882, Eça termina esta primeira fase da correspondência para o Brasil, que só irá retomar em 1888 com a crónica “A Europa”. Em “Os Ingleses no Egipto”, um texto jornalístico em que se embrenham a ficção e a realidade, Eça comenta o grande assunto do momento: o Egipto. Assim, através de seis longas crónicas refere a presença britânica neste país — a destruição maciça de Alexandria, proferindo que “hoje, à hora em que escrevo, Alexandria é apenas um imenso montão de ruínas”, o que aconteceu, segundo o mesmo, “pela quarta vez na história”.4 Mais uma vez, Eça faz questão de acentuar a prepotência inglesa face a outras civilizações, não sendo infelizmente o único povo da Europa a menosprezar povos não ocidentais. Deste modo, esquadras de couraçados bombardearam Alexandria, em nome da Inglaterra governada por Gladstone, denunciando um total desrespeito pelo povo egípcio e pela vida humana. Eça, do seu conhecimento dos dois países aqui implicados, tinha consciência desse preconceito europeu relativa mente a outros povos, o que o leva a afirmar que “no Egipto um qualquer empre gado europeu [...] retalhava a pele dum egípcio, tão naturalmente e com tanta indiferença, como se sacode uma mosca importuna”. Mais acrescenta que “o europeu de Alexandria considerava o felá egípcio como um ser de raça ínfima, incivilizável, mero animal de trabalho, pouco diferente do gado”. Desenvolvendo esta questão, disserta sobre a eterna contenda entre muçul - ma nos e cristãos (sempre actual!), referindo que, ao contrário do que o homem europeu supunha, o “árabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas indús trias, as nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo [certo] que, do calmo repouso dos seus haréns, o grande ruído que nós fazemos sobre a Terra lhe parece uma vã agitação”. Prossegue reiterando esta ideia e confessa mesmo que, com conhecimento empírico da sua viagem ao Egipto com o Conde de Rezende5, sabe que “os egípcios olhavam para o europeu como para a última e

4 Idem, p. 177. 5 Luis de Castro Pamplona, Conde de Rezende, que fora colega de Eça no Colégio da Lapa, e que seria, mais tarde, seu cunhado, convidou o escritor para o acompanhar numa viagem ao Egipto e à Terra Santa, por ocasião da inauguração do Canal do Suez. Embarcaram no dia 23 de Outu bro de 1869, com destino a Cádis e, depois, Gibraltar, onde tomaram o paquete Delly que os levaria a Alexandria, com uma pequena paragem em Malta. Chegaram a Alexandria a 5 de Novembro, A “Mala para o Brasil” — correspondência eciana na imprensa carioca (1880-1882) 705

mais terrível praga do Egipto, uma outra invasão de gafanhotos, descendo — não do céu [...] mas dos paquetes do Mediterrâneo, com a sua chapeleira na mão — a alastrar, devorar as riquezas do Vale do Nilo”.6 Tal como sucedeu noutras batalhas e guerras, tudo havia começado com uma singular situação ocorrida numa cidade em ebulição social e religiosa — Alexan - dria. Como frequentemente sucedia, um inglês chicoteou um árabe em plena rua. Este, de modo desusado, replicou, tendo sido, de imediato, baleado pelo inglês. Alastrou-se o confronto, de tal modo, que tudo terminou com a morte de mais de trezentos árabes e menos de um terço de europeus, tendo, no entanto, a imprensa denominado este acontecimento de “massacre dos cristãos”. Eça não resiste, na demanda da verdade e da justiça (valores que traçou como primordiais para o Jornalismo), a intitulá-lo, pelo contrário, de o “massacre dos muçulmanos”. Tratava-se de um povo subjugado e oprimido debaixo da arrogância e da supremacia inglesa, e europeia em geral, que ousara rebelar-se contra essa injusta condição, gerando a raiva e a revolta em relação aos estrangeiros, o que despoletou “a cruzada contra o cristão” a quem chamava de “cão maldito” e “ave de rapina”. Este acontecimento terá servido de móbil para que o regime egípcio, considerado anárquico pelos ingleses, fosse destruído e o seu povo dizima - do. A Inglaterra contava, além do mais, com o apoio da imprensa e, seguramente, do periódico que funcionava como barómetro da opinião pública britânica — o “venerável” Times, que mais tarde terá confessado “com o rubor nas colunas que foi uma insensatez”. Eça de Queiroz reconhece a falta de diálogo inter-religioso entre cristãos e muçulmanos, pois constata que, assim como não sabemos “nós do que se passa dentro do Islão”, do mesmo modo “os letrados da mesquita de El-Azhar [não] sabem o que por cá vai dentro do nosso confuso catolicismo”. Deste modo, tomando Inglaterra como alvo da sua crítica, declara que “o século XIX vai findando, e tudo em torno de nós parece monótono e sombrio — porque o mundo se vai tornando inglês”. Evidencia a repulsa do britânico por tudo o que é estrangeiro, preservando, em qualquer lugar ou situação, os seus costumes, permanecendo “impermeável às civilizações alheias, atravessando religiões, hábitos, artes culinárias diferentes, sem que se modifique num só ponto, numa só prega, numa só linha

seguindo de comboio para o Cairo. A viagem prosseguiu para Porto Said, Suez, Palestina e Beirute. O retorno fez-se a partir de Alexandria, de onde partiram a 26 de Dezembro, tendo aportado a Lisboa a 3 de Janeiro de 1870. Vide José Calvet de Magalhães, Eça de Queiroz A Vida Privada, Lisboa, Editorial Bizâncio, 2000, pp. 66-71. 6 Idem, p. 191. 706 Isabel Trabucho

o seu protótipo britânico [...] é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se «desinglesam».” Podemos afirmar que a correspondência eciana para o Brasil, mormente a de Inglaterra, sempre se pautou por revelar fortes preocupações sócio-políticas em prol da justiça e da defesa dos direitos humanos e de cidadania, pois, segundo refere Manuel Bandeira, “não ia com o seu temperamento a tarefa sema nal de pôr os leitores de além-mar ao corrente dos faits divers de Londres e Paris”. Mas, sempre atento à vida social da Europa, costumava encarar um dos grandes pro - ble mas que agitavam o continente e o mundo, examinava-o, dis cutia-o a fundo e nesse discretear ia pondo de maneira explícita todo o seu cabedal de idéias sôbre política, moral, literatura e arte. Profundamente imbuído do espírito euro peu do século XIX, foi, todavia, bastante lúcido para sentir, em sua ameaça dora tragé - dia, o crepúsculo da civilização capitalista e imperialista”. A Europa, como entidade cultural e civilizacional, “para quem o mundo rodava, submisso e enfeitiçado”, aparece, nas suas crónicas, desprovida do brilho e do deslumbramento que, à partida, seria de supor nos seus textos. Assim, esta transfigura-se na mente do cronista, para se ver na sua corres pon dência jorna - lística “uma Europa menos deliciosa de que fazia imaginar [...] afogada pela falta de imaginação de um poder tão sombrio, sangrento, ruidoso e complexo que é o do dinheiro tornando a Europa na insaciável e feroz senhora de saqueados e sempre oprimidos continentes”. Para Eça, o mundo era, inegavelmente, a velha Europa “em tôrno da qual os continentes produziam como escravos e se deslum - bravam como selvagens”. Tal como fez questão de anunciar na primeira crónica da sua correspondência para o Rio, o melhor espectáculo para o homem será sempre a própria humanidade e o seu devir. Consciente da voragem dos tempos que dissipava os grandes valores que demandava de Verdade e de Justiça, o cronista não se olvida, nos seus textos para a imprensa de exercer uma militante defesa dos direitos dos cidadãos e da dignidade dos homens. Deste modo, as crónicas que envia da nação britânica revelam o seu forte carácter filantrópico na defesa dos mais fracos, mais pobres, com menos recursos e capacidades de se defenderem e de terem voz na elitista sociedade oitocentista. Eça oferece uma interpretação do mundo inglês num tipo de jornalismo judi - cativo que exibe explicitamente marcas de avaliação e julgamento. Baseando- se no seu conhecimento verdadeiro e experiente do espaço que analisa, revela um maior interesse pelas manifestações do imperialismo, pela desi gual dade econó mica e pela apreensão dos traços mais significativos do carácter britânico, em espe cial uma certa excentricidade de carácter, a hipocrisia e a arro gância. No entan to, comprova-se, nos seus escritos, uma verdade que ele próprio fez ques tão de enfatizar — a superioridade cultural e civilizacional britânica, na época vitoriana, face a qualquer outra nação, inclusive a França. A “Mala para o Brasil” — correspondência eciana na imprensa carioca (1880-1882) 707

Verbera com especial empenho a política externa inglesa e a sua feição marcadamente imperialista relativamente às questões do Egipto, do Afeganistão e da Irlanda, não temendo a forte crítica a uma sociedade que se regia pela hipocrisia, pelo orgulho e por uma exacerbada ambição, na qual os grandes valores humanos eram claramente olvidados. Apesar de tudo, como refere, a Inglaterra possuía uma forte cultura literária, valorizava o desporto, era um país organizado e desenvolvido económica e socialmente devido, essencialmente, ao modo como encaravam o trabalho, força motriz para uma pujante e deter minada política imperial. Mesmo relativamente a França, nas duas cartas com que enceta a sua corres - pondência para o Brasil, o interesse eciano prendeu-se fortemente à questão da pouca consistência prática dos valores republicanos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que teoricamente defendiam — a nação francesa surge ainda titubeante temendo a falta de solidez das suas instituições e ideologias, gerando paradoxalmente atitudes de evidente falta de cidadania e de liberdade de opinião e acção que inibem uma sociedade justa e evoluída. Constata, com pesar, perse - guições políticas aos defensores das ideias comunistas e das lutas do proletariado e perseguições religiosas aos jesuítas. Censura asperamente as posições políticas da república francesa que proclama os direitos do Homem mas que, por outro lado, toma parte na partilha colonial do mundo, logo atrás da nação britânica, ao assenhorar-se de Tunes e de Madagáscar. No seu estilo contundente, defende um mundo mais civilizado e humanista, sendo que a ideia que subsiste na imagem do povo britânico que Eça transmite para os seus leitores brasileiros é vincadamente negativa e pejada de fortes críticas aos poucos valores éticos e morais revelados pelos ingleses, como sejam a “falta de fraternidade, o egoísmo, enfim, os defeitos morais que, segundo ele [Eça], marcavam a civilização do século XIX.” (não diferindo, portanto, da actual!) Aquando da morte de Eça, em 1900, o escritor e cronista Machado de Assis não deixa por mãos alheias a elegia ao romancista e jornalista português ao dirigir uma missiva ao director da Gazeta de Notícias, na qual refere o faleci mento de Eça como uma calamidade, considerando-o “o melhor da família, o mais esbelto, o mais válido”, o “profeta” da sua geração. Como afirma Eduardo Lourenço, “só na obra de Eça, graças ao seu extra - ordinário mimetismo cosmopolita, nós temos a sensação de viver com ele e através dele o tempo próprio da segunda metade do século. Século que não foi apenas o da mudança de ritmo na civilização material e de costumes exteriores mas, sobretudo, um tempo que era ele mesmo nova visão do mundo, insta lan do- nos num presente que se sabia e se dizia civilizado e moderno”. Tal como na sua ficção, Eça soube “tratar ou integrar [...] as questões mais graves e can den tes da sua época a propósito dos casos mais superficiais ou mundanos”. 708 Isabel Trabucho

Constituindo-se como um manancial insubstituível de informação, a totali - dade destas crónicas enriquecem, claramente, a história da cultura literária que se concretiza num conjunto de perspectivas de mediação culturais admiradas na época e lidas com prazer e avidez, tendo como melhor morada o inesgotável universo que chamamos de literatura. Deste modo, os seus textos de imprensa correspondem ao prometido aquando das suas primícias no Jornalismo ao evo - carem os supremos valores por que este se deve reger — a Verdade e a Justiça, no combate à ignorância e à penumbra do desconhecido! O descobrimento dos sentidos na Peregrinação

MARIA ALICE ARRUDA FERREIRA GOMES Universidad Complutense de Madrid – Facultad De Filología, Departamento De Filología Románica, F. Eslava Y Lingüística Universidade Federal do Ceará Casa de Cultura Hispânica

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

1. Introdução

O estudo literário dos relatos de viagens costuma apresentar uma série de problemas de índole teórica devido ao contexto histórico e literário em que se apresentam. Enquanto forma literária no discurso dos relatos de viagens partici - pam dois tipos de escritura: a primeira obedece ao critério de ficcionalidade (litera tura) e a segunda ao critério de veracidade objetiva (história). A combina - ção do discurso de ficção e uma série de elementos de natureza não literária origina a criação de um discurso misto.1 O fato de estas obras terem merecido mais a atenção dos historiadores do que dos filólogos, que chegaram a considerá-la “literatura didática”2 e a ausência de um parâmetro formal contribuíram para defini-las negativamente.3 O que levou a crítica a falar em “hibridez”, “mestizaje” ou “gênero fronterizo. é, talvez, a sua diversidade e o seu dialogismo, uma das características mais destacadas.4 Aliás, este é dos maiores problemas da teoria literária moderna, distinguir nos relatos de viagens um discurso literário de outro que não é. Por não se enqua - drar dentro de um gênero pré-estabelecido ou não obedecer a um critério de ficcionalidade estas obras acabaram sendo relegadas a uma situação de margina - lidade como comenta Alzira Seixo:

Estas (...) conseqüências, geradoras de preconceitos e com caráter inibi - tó rio (quase censório) em relação a qualquer perspectiva de traba lho que se atreva a encarar a literatura de viagens de outro modo, e, sobre tudo que se arrisque a apagar-lhe o primacial papel documental, é ainda em certos contextos vigentes nos nossos dias, e leva mesmo os literários a procederem com toda a cautela, como se abeirasse do feudo do outrem

1 POPEANGA, Eugenia, (2005) “Los relatos de viajes medievales: una encrucijada de textos” in Viajeros medievales y sus relatos, Bucuresti, Cartea Universitarã, pp.11-28, p. 24. 2 Idem, pp.11 e 12. 3 CHAMPEAU, Geneviéve, (2004) “El relato de viaje, un género fronterizo” in Champeau, Geneviéve (ed) Relatos de viajes contemporáneos por España y Portugal, Madrid, Verbum, pp. 15-31, p. 22. 4 Idem, ibidem. 712 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

e, para evitarem atitudes punitivas (!), a sacrificarem q.b. ao altar da “história dos factos” antes de procederem ao estatuto literário propria - mente dito, o que faz com que, na maior parte dos casos, e após todos os sacrifícios praticados, o corpo do texto já se tenha visto relati vamente anulado nessa dimensão cujo enfoque continua sistematica mente a faltar- -lhe.5 A partir do século XVI, com o fenômeno das Descobertas, Portugal gerou um novo tipo de viajante. Mercadores, soldados, evangelizadores, gente do povo, praticamente todas as classes da sociedade portuguesa se aventuraram nesta empresa. Como conseqüência desta grande variedade de emissores surgia uma rica e heterogênea diversidade de textos cujo objetivo era contar sobre as nave - ga ções, os descobrimentos e as conquistas dos portugueses. Apesar do objetivo da viagem ser a conquista de novas terras, “(...) las referencias míticas y legen - da rias estarán presentes en los relatos de viajes del seiscientos portugués. Es decir, la nueva perspectiva de viaje-aventura surge porque la mentalidad del XVI ha sufrido un cambio, de ahí que se creen nuevos mitos y que permanezcan algunos de los ya existentes en otras épocas.”6 Geralmente utiliza-se o termo Literatura de viagens ou Literatura dos Desco- brimentos para referir-se a todas as obras “(...) relacionadas com os Descobri - mentos Portugueses e a constituição de um vasto império entre o fim da Idade Média e o fim do Antigo Regime (...).”7 Apesar de concordar com as duas catego - rias nomeadas anteriormente José Manuel Garcia considera que tais classificações não podem “(...) abarcar de forma cabal e com a expressividade necessária a multiplicidade de realidades e interesses pantenteadas em tais escritas.”.8 Referido escritor crê mais conveniente utilizar o termo Literatura Portuguesa da Expansão porque é possível agregar as obras relacionadas com os descobrimentos portugueses realizadas por escritores estrangeiros. Atualmente a escritura de viagem se realiza com fins estéticos, na Idade Média e ainda até o Renascimento, os escritores, quando escreviam sobre as suas viagens, não levavam em consideração este objetivo na hora de transmitir as impres sões sobre um lugar porque “(...) un viaje debía estar justificado por su

5 SEIXO, Alzira (1998), Poética da Viagem na Literatura. Lisboa, Cosmo, p.18. 6 MEJÍA RUIZ Carmen,(1991), “Las peregrinaciones de Fernão Mendez. Un relato de viajes peculiar”, in Los Libros de viajes en el mundo románico, Anejo I, Madrid, Ed.Universidad Complutense, pp. 165-182, p. 167. 7 GARCIA, José Manuel (1994), “Algumas observações sobre a literatura portuguesa da expansão” in Ao Encontro dos Descobrimentos. Temas de História da Expansão, Lisboa, Presença, pp.187- 191, p. 191. 8 Idem, Ibidem. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 713

utilidad para la sociedad, pues lo contrario caía en el temido ámbito de la desmesura e incluso la locura.” 9 Os autores dos relatos de viagens geralmente se deslocavam com fins religiosos, comerciais, políticos, diplomáticos ou cien tíficos, alguns deles nem chegavam a viajar, eram os viajantes de “câmara”, os falsos via jantes, aqueles que escreviam fazendo uso de outros textos, que utilizavam o jogo da intertextualidade. Diante do desejo de relatar as novas descobertas os escritores viajantes não estavam interessados em fazer uma obra literária, valorizando o caráter utilitário e didático dos documentos. Este utilita rismo, na visão de Rui Loureiro, “(...) sobrepõe à estética, por questões quer de opo - rtuni da de, quer de capacidade, quer de intenções, quer especialmente de epocalidade.” 10 A narrativa tinha que informar mais que criar um senso estético. Este tipo de escrita, sem grande pretensão estética e de caráter essencialmente prático e noticioso, saciava a sede de conhecimento dos europeus, já que nele se encon - travam as notícias mais completas sobre o Oriente. Uma espécie de abertura para um novo mundo, um retrato elaborado por meio da linguagem, descre ven - do, conceituando economicamente, digamos assim, as terras novas, aliando o exotismo das paisagens e das gentes ao interesse econômico. Um tipo de janela que se abria aos europeus, através da qual se podia ver um modelo de retratos sensoriais, construídos para atingir os sentidos e propiciar ao leitor a sensação de estar diante do retratado pelo artista. Conseqüentemente, por causa dos objetivos do texto, que se afastava do puramente literário, há a elaboração de um discurso sensorial, com enfoque informativo antropológico, construído diferentemente daquele encontrado na literatura moderna, que o faz por meio da comparação. O objetivo de nossa abordagem é analisar, por meio desta linguagem, como se processa o discurso sensorial na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto.

2. O discurso informativo-antropológico da Peregrinação Tendo em vista a amplitude do texto mendesiano analisamos o discurso infor - mativo antropológico registrado na viagem que Mendes Pinto fez junto com os

9 CARRIZO RUEDA, Sofia (2002), “Analizar un relato de viajes. Una propuesta de abordaje desde las características del género y sus diferencias con la literatura de viajes” in Maravillas, peregrinaciones y utopías: Literatura de Viajes en el Mundo Romá nico, Valencia, Universitat de Valencia, pp. 343-358, p.353. 10 LOUREIRO, Rui Manuel (1984-1985), “Possibilidades e limitações na interpretação da Peregrina - ção de Fernão Mendes Pinto” in Separata Studia Românica et Anglica Zagrabiensia, Vol.XXIX- XXX, pp.229-250, p.230. 714 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

portugueses e a embaixada do Rei Bramaa até os reinos do Calaminhão e do Pegú. A seqüência abarca do capítulo 144 a 171 e é formada pela crônica de diversos reis e povos orientais. Não sabemos se esta viagem foi “real” ou “imaginária”. Se realmente ela aconteceu onde estaria localizado o reino de Calaminhão? Visconde de Lagoa, na sua tentativa de reconstituição geográfica da Peregrinação11, o identificou como o Tibete já, José de Ramos, como o império de Lanchang, conhecido por Laos Oriental e integrado atualmente à Indochina.12 Outros estudiosos da Peregrinação foram mais taxativos e qualificaram-na como uma invenção. Na visão de Maurice Collis, a descrição da viagem empreendida pelo narrador ao Calami nhão “(...) foi um arranjo literário que lhe permitiu introduzir de jacto, numa narrativa seqüen - te, certa quantidade de informações variadas, que obtivera acerca de práticas religiosas da Índia, da Birmânia e do Tibete.” 13 A imaginação era o seu norte para poder descrever, com precisão, o mundo que ele queria tornar conhe cido por sua narrativa, e esta imaginação às vezes escapa a este provável controle, e então o autor cria, inventa, transforma.

2.1. A descrição geográfica do Calaminhão Na Peregrinação Mendes Pinto utiliza, além das “autoridades”, distintos procedimentos para dar verossimilhança ao seu relato: umas vezes ele afirma ter vivido ou visto com seus próprios olhos, outras vezes ele diz que lhe contaram por pessoas dignas de confiança, que soube/ leu em fontes históricas citadas diretamente no relato ou retiradas de outros textos da época, transcritos direta - mente sem citar a fonte. Na viagem ao reino do Calaminhão o primeiro motivo de admiração para o narrador é a paisagem. O contato inicial se dá pelos sentidos, especificamente, a impressão visual que toma conta do escritor, do novo mundo que se abria a seus olhos. A capacidade que tem o autor de ver é uma das características da sua escrita, é o que se convencionou chamar de o “visualismo” de Mendes Pinto. E é atra vés da visão que o escritor viajante se deixa encantar pela diversidade das cidades, da flora, da fauna e do comércio oriental. Porém, ao descrevê-la, não

11 LAGOA, João Antonio de Mascarenhas Júdice,Visconde de (1947), “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Tentativa de reconstituição geográfica” in Anais da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais,vol.II/-1. 12 RAMOS, José de (1951), “Império do Calaminhão” en Mosaico, vol.III, nº. 51, Macau, pp.1-12, p.2. 13 COLLIS, Maurício (1951), A viagem maravilhosa (vida de Fernão Mendes Pinto), Versão do inglês por António Álvaro Dória, Porto, Liv.Civilização, p.205. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 715

prioriza o revestimento vegetal, chamando a atenção para a riqueza do ambiente em um caráter puramente informativo: Daquy continuamos nosso caminho mais treze dias, vendo ao longo do rio assi de hua parte como da outra muytos lugares muyto nobres, que segundo o apparato das mostras de fora, deuião de ser os mais delles cidades ricas, & tudo o mais erão bosques de grandes aruoredos, em que auia muytas hortas, jardins, & pumares, & a fora isto cãpinas de trigo muyto grãdes, em que pacia grãde soma de gado vacum: muytos veados, antas, & badas, & tudo apac.tado por hom.s a cauallo. No rio auia infini - dade de embarcaços de remo, nas quais se vendião todas as cousas quãtas a terra produze, em grande abudancia, das quais nosso Senhor foy seruido de enriquecer a gente destas partes muyto mais que todas as outras que se agora sabe em todo o mundo, elle sabe o porque.14 A exuberância do Calaminhão é importante do ponto de vista comercial, pois a intenção primeira ao registrá-la não é valorizar o caráter estético da paisagem que circunda a fortaleza de Campalagor. É como uma tentativa de adequar o discurso à necessidade de mostrar o caráter econômico que envolve as descri - ções. Como se aquele mundo bonito só tivesse importância na medida em que servisse aos homens, de alguma forma. Esta exposição é puramente informativa, voltada para o uso de comerciantes e mercadores ocidentais, como se pode constatar no fragmento a seguir, que fornece uma localização exata dos tesouros deste império: Daquy partimos hum Domingo pela menham, & ao outro dia à vespera fomos ter a hua fortaleza que se dezia Campalagor, situada sobre hua ponta de rocha metida no rio a modo de ilheo, cercada de boa cantaria, com tres baluartes, & duas torres de sete sobrados, dentro dos quais disserão ao Embaixador que tinha o Calaminhan hum grosso tisouro dos vinte & quatro que estauão repartidos pelo reyno, de que a mayor parte era em prata, o qual teria de peso seys mil candins, que da nossa conta são vinte & quatro mil quintais, o qual todo estaua em poços debaixo do chão.15 Para Alfredo Margarido, Mendes Pinto não se afasta da grelha descritiva do século XVI, visto que “(...) as descrições obedeciam a determinados códigos, que encon - tramos em textos, quer europeus quer chineses. Os códigos a serem respeitados não tinham tanto em linha de conta objetivos estéticos quanto utilitários: servirem de repositório de informações para poderes políticos e econômicos. Daí a abundância de enumerações, o registro de quantidades exatas, a precisão

14 MENDES PINTO, Fernão (2002), p.346. 15 Idem, pp.345-346. 716 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

de informações técnicas, a recolha de terminologia científica (relacionada com a flora e a fauna, por exemplo).” 16 De fato, observamos que quando o autor men - ciona a flora e a fauna do Calaminhão não há notação destacada, são informações puramente utilitárias. A flora é vista pela sua riqueza e a fauna pela sua diversi - dade e o seu lado prático.17 No entanto, notamos, que apesar do propósito do autor quando menciona o espaço urbano deste reino ser puramente utilitário, o sensorial surge como um dado a mais, detalhando aos ocidentais esse outro mundo. A este respeito o narrador se manifesta na descrição dos hábitos odoríficos utilizados por esta sociedade oriental na manutenção da enfermaria de Chipanocão.18 Antonio José Saraiva afirma que não há retrato na Peregrinação. Da mesma forma que quando se volta à paisagem, o retrato do Calaminhão é registrado de modo informativo, restrigindo-se a uma classificação social, etária ou utilitária. Sabemos que, neste reino, a nobreza “tratase muyto limpa & honradamente, com seruiços de baixellas de prata, & alg.as vezes douro, & a gente comum, de porcellana, & de latão. Vestem citins, damascos, & taficiras da Persia, & nos inuernos roupas forradas de martas”19, o tio do rei chama-se Monuagaruu, e é “homem de mais de setenta annos” 20 e, as mulheres são normalmente alvas e belas “mas o que lhes dá mayor lustro he serem muyto b. inclinadas, castas, caridosas, & mauiosas.” 21 A fim de o clarificar, Mendes Pinto aproxima o vestuário exótico dos Pauileus, homens brancos desta região, da sua realidade conhecida, ao afirmar que andam “ vestidos de queimo.s de seda como Iapo.s, & comião cõ paos como Chins.” 22 O discurso informativo-científico da seqüência da embaixada ao Calaminhão gera um discurso de natureza histórica, geográfica, antropológica, nele o autor descreve os acontecimentos do percurso até o reino de Pegú, a flora, a fauna, a população, o nativo, os costumes, as festas, as religiões e os funerais. O narrador trata da sua aventura pessoal nas terras orientais, conta e informa com preten - sões científicas uma experiência real. No mesmo texto, Mendes Pinto continua con tan do uma experiência pessoal, porém, agora, puramente “espiritual”.

16 MARGARIDO, Alfredo apud PINTO CORREIA, João David (1979), Autobiografia e aventura na literatura de viagens: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara Nova, p. 72. 17 MENDES PINTO, Fernão (2002), p.347. 18 Idem, Ibidem. 19 Idem, p.369. 20 Idem, p.361. 21 Idem, p.369. 22 Idem, p.372. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 717

“Tanto estos viajes “espirituales” como los viajes contados “desde un sillón” suelen ser viajes puramente librescos, cuya fuente es constituida por un con - glome rado de textos mezclados en un afán, quizás, de crear una enciclopedia del viaje, obra a medio camino entre las conocidas imágenes del mundo y los correctores de la ilusión espacial, esto es libros que cuentan viajes reales.” 23 Estão presentes na Peregrinação tanto as descrições de lugares novos que o autor conheceu e outros de espaços sonhados e desejados. É por isto que observamos uma notação mais destacada quando o autor se refere aos homens selvagens e estranhos deste reino, esta observação faz parte da sua viagem “espiritual”, da sua aventura livresca, porque o nativo oriental é caracterizado por Mendes Pinto pela pigmentação da pele, pelo aspecto do rosto e pelo vestuário primitivo. A referência ao vestuário é registrada em função da posição social que ele ocupa e surge integrada em um processo de caracterização dos traços biológicos do seu portador: Vimos outra nação de homens muyto ruyuos, & alg.as com alg.as sardas, & muyto barbaçudos, & tinhaõ as orelhas & os narizes furados, & nos buracos h.s reuites douro como colchetes, estes se chamauão Ginafógaos & a prouincia donde erão naturais, Surobasoy, os quais por dentro dos montes dos Laudos confinaõ co lago do Chiammay, & destes huns andão vestidos de pelles em cabello, & outros de pelles escodadas, & andão descalços, & com as cabeças sempre descubertas. Estes, nos dezião alguns mercadores, que erão comummen te muyto ricos, & que não tinhão entre sy mais que somente prata, porem desta muyta em grande quantidade.24 Para o narrador, o importante na descrição informativa da sociedade deste reino é o elemento humano que foi descobrindo e contatando no decorrer do itinerário. Alfredo Margarido esclarece que “(...) Fernão Mendes permanece fiel à imagem do Outro comum à sua época: este não é identificado pelas carac terísticas somá - ti cas, mesmo que se registrem um certo número de informações, respeitando à cor da pele, à forma dos olhos, ao corte do cabelo.” E comple menta que o Outro, para o autor da Peregrinação, “(...) é visto através do seu vocabulário, das práti - cas militares e religiosas, e através das produções agrícolas ou artesanais.” 25 Para descrever um retrato, uma paisagem ou uma cena um escritor não deve se limitar a uma visão geral; é importante haver traços que a tornem singular a

23 POPEANGA, Eugenia (2002), “Viajeros en busca del paraíso terrenal” in Maravillas, peregri - naciones y utopías: Literatura de Viajes en el Mundo Románico, Valencia, Universitat de Valencia, pp.59-76, pp. 59 e 60. 24 MENDES PINTO, Fernão (2002), pp.371-372. 25 MARGARIDO, Alfredo apud PINTO CORREIA, João David (1979), Autobiografia e aventura na literatura de viagens: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara Nova, p. 72. 718 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

ponto de não ser confundida com nenhuma outra. O autor deve ter sensibili dade para transmitir ao leitor todas as sensações físicas percebidas no momento da viagem: as cores, as formas, os gestos, os sons, os odores, as texturas e os sabo - res. O objetivo de qualquer escritor de viagens contemporâneo é justa mente captar a essência e o caráter de um lugar em poucas frases a ponto de despertar o desejo imediato nos leitores de conhecer o país descrito. Como comentamos anteriormente o homem pré-moderno não levava em consideração este aspecto, o importante era que a escritura da viagem servisse de utilidade para a sociedade.

2.2. A descrição etnográfica do Calaminhão e do Pegú Se no caso dos escritores viajantes medievais havia “(...) el pacto con los receptores respecto a que el texto podía y debía ser espejo de una realidad objetiva” 26 do mesmo modo, os autores dos relatos de viagens do século XVI, também tinham em conta este modelo. O que ocorre é que a partir do Renasci - mento os escritores viajavam carregando consigo além da sua bagagem cultural, ou seja, um acúmulo de histórias que conheciam, as expectativas de outras que iriam encontrar. A sua percepção das terras visitadas será diferente não somente pelas experiências que vão vivendo do novo espaço que se enfrentam, mas tam - bém pelos elementos do imaginário coletivo de que procedem. Jaime Corte são observa que as narrativas de viagens vieram substituir no gosto e apreço do público, durante o século XVII e o seguinte os livros de Cavalaria: No fundo, o interesse era o mesmo. Aquelas obras falavam igualmente à imaginação. Seduziam pelo ímpeto. Simplesmente, as novas proezas da nova Cavalaria andante desenrolavam-se em mundos novos reais. E traziam consigo uma torrente de conhecimento inédito sobre a Natureza e o Homem.27 Os relatos de viagens permitiram a valorização do testemunho como fonte direta de veracidade. Fruto da experiência, agora o olhar do “eu” viajante começa a dizer o mundo que vê. Às vezes, este olhar “(...) registra ilhas imaginárias ou reima gi nam outras que existem, ao dar-lhes uma configuração emblemática das riquezas nelas demandadas como uma verdade transposta da imaginação do real

26 CARRIZO RUEDA, Sofia M. (2002), “Analizar un relato de viajes. Una propuesta de abordaje desde las características del género y sus diferencias con la literatura de viajes” in Maravillas, peregrinaciones y utopías: Literatura de Viajes en el Mundo Románico, Valencia, Universitat de Valencia, pp.343-358, p.349. 27 CORTESÃO, Jaime (1965), “Fernão Mendes Pinto e o humanismo crítico”, in O Humanismo Universalista dos Portugueses, Obras Completas de Jaime Cortesão, vol.VI, Lisboa,Portugália Editora,p.119. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 719

para o real imaginado. O que era imaginável era melhor registrar, assim colo - cando tanto o que havia quanto o que não havia no mesmo plano da imagi nação em que a expectativa precede o conhecido, a interpretação se sobrepõe à observação e a analogia neutraliza a diferença.” 28 Neste encontro entre povos e culturas diferentes, Mendes Pinto teve ocasião de captar e registrar uma série de elementos exóticos. Na viagem ao Calaminhão o autor da Peregrinação não se interessa por pequenos atos do cotidiano destes orientais, apesar de os haver registrado no decorrer do itinerário. O importante neste relato é transmitir o grandioso desta civilização. Este exotismo se sobressai e, conseqüentemente, também o seu discurso sensorial, quando o narrador manifesta um interesse especial pelos costumes e tradições do Oriente. A descri - ção destes fatos etnográficos se enquadra no que Antonio José Saraiva chama do exotismo simpático da Peregrinação e se manifesta “(...) na apreensão sensorial e afetiva das formas orientais de civilização.” 29 A descrição da procissão que se celebra no pagode de Tinagoogoo por ocasião da festa de Massunterivó é um exemplo da presença deste elemento exótico na seqüência do Calaminhão. Segundo Mendes Pinto, este cortejo era seguido por um grande número de padres, alguns iam a pé, outros em palan quins. Estes últimos vestiam cetim verde com túnicas roxas e os sacerdotes que levavam os andores dos deuses traziam roupagens amarelas. Na parte mais elevada destes carros, conduzidos por rapazes com maças de prata nos ombros, luzia uma imagem de prata com uma coroa em forma de mitra e um colar de pedras preciosas. Comple tando este desfile sensorial, este ídolo era incensado, ao ritmo de música, com suaves perfumes.30 Antonio Moniz esclarece que as ima gens visuais, olfativas e auditivas, utilizadas pelo autor viajante na compo sição dos carros que levavam aos altos sacerdotes e ao ídolo Tinagoogoo, serviram para dar uma atmosfera religiosa a este relato: O interdito de pisar o chão obriga ao transporte em palanquins dos sacer - dotes de grau hierárquico superior pelos respectivos subordinados, sobres - saindo novamente o simbolismo cromático do roxo, do amarelo e do verde, no vestuário de seda e damasco, de acordo com a categoria de cada qual. Igualmente simbólico é o número dos sobrados do carro dos ídolos, como os andares dos pagodes, entre quatro e cinco, evocando os elementos naturais. O valor material do ouro, da prata, da pedraria e das pérolas, associado à imagem olfactiva dos cheiros suavíssimos, à função ritual dos

28 GIL, Fernando; MACEDO, Helder (1998), Viagens do olhar. Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português. Porto, Campo das Letras, p.204. 29 SARAIVA, Antonio José (1958), “Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca da ideologia senhorial”, in Separata da História da Cultura em Portugal, Lisboa,vol.III,pp.9-161,p.40. 30 MENDES PINTO, Fernão (2002), p.346. 720 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

acólicos menores e à imagem auditiva dos instrumentos e das vozes, cuja oração se descreve em língua exótica com a respectiva tradução portu - guesa, tudo contribuindo para criar a atmosfera do religioso.31 Muitos estudiosos já levantaram a problemática do referente histórico da Peregrinação. De fato, a estranheza e novidade de muitas das descrições de Mendes Pinto desencadearam uma reação de ceticismo quanto ao valor histórico documental da narrativa, principalmente no que se refere à sobrevaloração das informações de caráter geográfico e etnográfico do Oriente. Esta desconfiança fazia crer, aos ocidentais que nada do que ele afirmava era verdade, dando motivo a um anôni - mo do século XVII criar o famoso trocadilho: “Fernão mentes? Minto”. Um exemplo destas informações é a descrição que oferece o narrador do ídolo Tinagoogoo. Nesta descrição, os vestuários, as cores, os perfumes são totalmente despropor - cionais à realidade ocidental do século XVII. Tudo é excessivo e exagerado. Há todo um cenário de cor, aromas e vozes na composição desta narrativa: O ídolo deste Tinagoogoo estaua quãdo aquy chegamos no meyo do corpo da casa, em h.a rica tribuna como altar cercado de muytos candieyros & castiçaes de prata, & de mininos vestidos de roxo, que com tribulos o estauão encençando ao som de muytos & varios estro mentos musicos, quasi ao nosso modo que muytos Sacerdotes tangião não desconcerta - damente, ao qual som dançauão tambem diante delle molheres muito fermosas & ricam.te vestidas, ás quais o pouo daua as esmollas que se offerecião, & da mão dellas as recebião os Sacerdotes, & as offerecião diante da tribuna do idolo co grandes cerimonias de cortesias, deitandose de quando em quando de bruços no chão.32 Merece uma referência especial a notação do autor da Peregrinação na descrição das formas deste ídolo. Para incutir maior realismo ao texto, Mendes Pinto uti li - za o que Pinto Correia nomeia de “pormenores excitadores da emoção”33 ao comunicar a sensação de medo que lhe provoca esta assustadora figura oriental.34 Terminado este cortejo, Mendes Pinto segue com os portugueses e a embai - xada dos Bramaas até o encontro com o Calaminhão. No caminho informa sobre a paisagem oriental. Porém, as árvores e as flores são notadas no conjunto

31 MONIZ, António (1999), Para uma leitura de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Ed. Presença, p.134. 32 MENDES PINTO, Fernão (2002), p.353. 33 PINTO CORREIA, João David (1979), “Autobiografia e aventura na Literatura de Viagens: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, in Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Lisboa, Comunicação, pp.13-111, pp.65-66. 34 MENDES PINTO, Fernão (2002), p.353. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 721

exuberante da flora, e os frutos são vistos tendo em conta o seu aproveitamento. O narrador afirma que o cheiro das árvores é estranho, que a natureza deste reino é abundante durante todo o ano e que as mulheres, além de serem belas, dançam, tocam e cantam com perfeição. O autor também admite a inca pa - cidade para esclarecer o observado diante da sensação que lhe era transmitida neste impé rio.35 Agora, no encontro com o rei oriental, o autor já se esmera em pormenorizar cada detalhe, descrevendo, além da suntuosidade do ambiente, a dos ves tuários e a dos adornos regionais do cerimonial que acompanha ao Calaminhão.36 Mendes Pinto é um exímio observador e fixa qualquer informação que lhe é transmitida. A novidade é captada imediatamente pelo autor da Peregrinação, fazendo do discurso descritivo deste reino um importante documento etnográ - fico sobre o Oriente. Em Pegú, o narrador soube da notícia da morte do Aixqu.doo Roolim de Mounay, alto sacerdote deste império.37 Depois da demonstração de luto e tristeza mani festada pelo rei e pela sociedade do Pegú, segue a cerimônia de incine ração do corpo deste religioso. Os restos mortais desta divindade são colocados, segundo Mendes Pinto, em um cadafalso ornamentado com veludo branco e envolvido em essências.38 A descrição pormenorizada do ritual funerário visa impactar e surpreender pela riqueza e profusão ornamental: Chegada a menham, o cadafalso foy desguarnecido das peças mais ricas que estauão nelle, & lhe ficarão porem os dorseis com todo o veludo, & guio.s, & bandeyras, & utras alfayas de muyta valia, & com muytas ceri - monias & grandes gritas, & prantos, & com horribel estrondo de muytos instrumentos que se tocauão, puseraõ fogo ao cadafalso com tudo o que ficara nelle, & ceuandoo muytas vezes com licores cheyrosos compostos de confeiço.s muyto custosas, o corpo em pequeno espaço foy todo feito em cinza, & quanto ardia, el Rey com todos os grandes que aly se acharaõ, lhe offerecerão de esmola muytas peças douro, & aneis ricos de rubis, & çafiras, & alg.s fios de perolas de muyto preço, o qual rico mouel, tão mal empregado, todo o fogo aly consumio cos ossos & corpo do triste defunto.39 Depositadas as cinzas desta divindade no templo de Quiay Docoo Deos dos afligidos da terra, segue uma magnífica procissão. Os ricos adereços, o pormenor na enumeração do material, da cor utilizada na confecção e na ornamentação

35 Idem, pp.362-363. 36 Idem, p.363. 37 Idem, p.347. 38 Idem, Ibidem. 39 Idem, pp.375-376. 722 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

do tecido no vestuário dos religiosos que acompanham este cortejo reflete o grau hierárquico que cada um ocupa dentro desta ordem sacerdotal.40 Este registro do pormenor lembra, para Rodrigues Lapa, certos processos do realismo moderno. Segundo o autor supracitado esta “(...) acumulação tem um caráter intensivo, fere a imaginação e desperta o colorido, (...) que tornam o quadro forte mente visual, (...).” E complementa que Fernão Mendes “Tem a preocu pação de nos dar a cor local, a verdadeira imagem daquela gente exótica.” 41 Segue a eleição e o recebimento do sucessor do Aixqu.doo Roolim de Mounay. Mendes Pinto informa que o novo Roolim embarcou junto com o rei do Pegú. Na barca real, este alto sacerdote estava sentado em um trono de ouro cravejado de pedras preciosas, e, aos seus pés, ajoelhado, estava o rei. Esta embarcação era conduzida por nobres com remos dourados, ao som de muitos instrumentos tocados por meninos vestidos de cetim amarelo, devidamente ornamentados, e de músicas cantadas por dois coros de rapazes, que navegavam para Mounay, entoando hinos sagrados.42 Depois de entronado o novo Roolim, que é segundo o autor, como o papa para os cristãos, desde uma janela saúda os seus fiéis lançando “nas cabeças graõs de arroz, como entre nòs se lãça agoa b.ta, que a g.te recebia delle cos joelhos no chaõ & as mãos levantadas.” 43 Encerrada esta cerimônia a corte volta para Pegú e Mendes Pinto segue o seu destino em busca de novas terras onde possa informar a riqueza e a grandeza do mundo asiático.

3. Conclusão A análise da estrutura do discurso informativo-antropológico na seqüência da embaixada ao Calaminhão nos revela dois tipos de textos. O primeiro é o texto que informa sobre a geografia deste império, ou seja, paisagem rural, urba na ou humanizada, nele Mendes Pinto permanece um autor caracteristi camente medieval. A flora, a fauna e a sociedade não existem como uma con tem plação despreocupada. A falta de retrato também salienta este aspecto. O seu relato é uma espécie de descrição da geografia econômica do Calaminhão com uma preocupação em pormenorizar e precisar numericamente todas as suas rique zas. A importância era sempre comunicar o interesse que poderia haver por esta terra.

40 Idem, p.377. 42 LAPA, Manuel Rodrigues (1979), Prefácio, in Fernão Mendes Pinto, Peregrinação. 6ª ed, Lisboa, Sá da Costa, pp. 1-15, pp.14 e 15. 42 MENDES PINTO, Fernão (2002), p.379. 43 Idem, p.383. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 723

A criatividade do autor em descrever o mundo que vê é como que posta a serviço de outros interesses. Ele tem como que um olhar de comerciante ao se debruçar sobre a geografia econômica da região. Filipe Barreto observa que “a questão sensorial parece não preocupar, regra geral, os historiadores, acreditando-se pacificamente numa atemporalidade dos olhos, dos ouvidos ou dos outros sentidos. Falsa atemporalidade, pois que cada clima civilizacional ordena à sua maneira os equilíbrios sensoriais, ordenação feita em harmonia com a sua visão do mundo, tecnologia, demografia, etc.” 44 É justamente porque cada época ordena como se deve expressar a leitura das coisas, como se deve ver ouvir, cheirar, tocar e gostar que ao descrever os reinos do Calaminhão e do Pegú, o narrador transmite, através do elemento etnográfico, referências sensoriais. Notamos que os sentidos não estão igualados, se traçamos uma hierarquia sensorial a visão é o sentido por excelência seguido da audição e do olfato, não há nenhuma menção com respeito ao paladar e ao tato. O segundo texto é, portanto, aquele que Mendes Pinto expressa a sua “visão do mundo”. As imagens sensoriais utilizadas na descrição do carro que leva os sacerdotes orientais, com seus vestuários plenos de cor e de perfumes, e o temível ídolo Tinagoogoo por ocasião da festa de Massunterivó, da suntuosidade do ambiente e do cerimonial que acompanha ao rei do Calaminhão, do luto da sociedade e do rei do Pegú por ocasião das exéquias do Aixqu.doo Roolim de Mounay e da alegre e movimentada barca que conduz o sucessor deste religioso são exemplos da percepção sensorial de Mendes Pinto. Na tentativa de fixar o que via, o narrador dá-nos quadros festivos em cores, aromas e sons que nos fazem quase que sentir a terra descrita. As cores das roupas, os cheiros dos ambientes, os instrumentos, as vozes tudo misturado num quadro que Mendes Pinto como que dependura na parede de nossa imaginação. Ao colocar o elemento humano em meio à paisagem vista, o narrador tenta transmitir o grandioso de uma civilização, e é então que o exotismo encontra a sua força, desaguando no seu discurso sensorial. Ao se aproximar do homem que descreve, ele se aproxima do homem que o lê. Apesar de envolvido por um projeto utilitário, o sensorial o diferenciará, fazendo explodir o colorido nos nossos sentidos, colorido que ele consegue ver nos rituais, cerimônias e festivi - dades orientais, e que incorpora ao seu relato. Assim, possibilita uma liberdade maior à sua imaginação, e não apenas descre ve como também cria. Ele então não somente vê, analisa e descreve o Oriente, mas o homem inserido neste mundo. E talvez imperceptivelmente deixa

44 BARRETO, Luis Filipe (1983), Descobrimento e Renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI. Lisboa: INCM, p. 279. 724 Maria Alice Arruda Ferreira Gomes

cair, em sua mente, as barreiras impostas pela sua função mercantilista ou expan - sionista. Ao ver o Outro através de seu vocabulário, práticas religiosas e mili ta - res, e de suas formas de produção, há um filtro ao caracterizá-lo e descre vê-lo. Filtro este que às vezes enfraquece, e paradoxalmente, enriquece o relato e o aproxima mais do fazer literário propriamente dito.

4. Bibliografia BARRETO, Luis Filipe (1983), Descobrimento e Renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI. Lisboa: INCM. CHAMPEAU, Geneviéve (2004), “El relato de viaje, un género fronterizo” in Champeau, Geneviéve (ed) Relatos de viajes contemporáneos por España y Portugal, Madrid, Verbum, pp. 15-31. CARRIZO RUEDA, Sofia (2002), “Analizar un relato de viajes. Una propuesta de abordaje desde las características del género y sus diferencias con la literatura de viajes” in Maravillas, peregrinaciones y utopías: Literatura de Viajes en el Mundo Románico, Valencia, Universitat de Valencia, pp.343-358. COLLIS, Maurício (1951), A viagem maravilhosa (vida de Fernão Mendes Pinto), Versão do inglês por António Álvaro Dória, Porto, Liv. Civilização. CORTESÃO, Jaime (1965), “Fernão Mendes Pinto e o humanismo crítico”, in O Huma nismo Universalista dos Portugueses, Obras Completas de Jaime Cortesão, vol. VI, Lisboa, Portugália Editora. GARCIA, José Manuel (1994), “Algumas observações sobre a literatura portuguesa da expansão” in Ao Encontro dos Descobrimentos. Temas de História da Expansão, Lisboa, Presença, pp.187-191. GIL, Fernando; MACEDO, Helder (1998), Viagens do olhar. Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português. Porto, Campo das Letras. LAGOA, João Antonio de Mascarenhas Júdice,Visconde de (1947), “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Tentativa de reconstituição geográfica” Anais da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, vol.II/-1. LAPA, Manuel Rodrigues (1979), “Prefácio”, in Fernão Mendes Pinto, Peregrinação. 6ª ed, Lisboa, Sá da Costa, pp.1-15. LOUREIRO, Rui Manuel (1984-1985), “Possibilidades e limitações na interpretação da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, in Separata Studia Românica et Anglica Zagrabiensia,Vol.XXIX-XXX, pp.229-250. MEJÍA RUIZ, Carmen (1991), “Las peregrinaciones de Fernão Mendez. Un relato de viajes peculiar”, in Los Libros de viajes en el mundo románico, Anejo I, Madrid, Ed. Universidad Complutense, pp.165-182. MENDES PINTO, Fernão (2002), “Peregrinação”, in Obras Integrais de Autores Portugueses do Século XVI, Projeto Vercial, Versão 1.0, Publicado in CD Room. O descobrimento dos sentidos na Peregrinação 725

MONIZ, António (1999), Para uma leitura de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Ed. Presença. PINTO CORREIA, João David (1979), Autobiografia e aventura na literatura de viagens: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara Nova. POPEANGA, Eugenia (2005), “Los relatos de viajes medievales: una encrucijada de textos” in Viajeros medievales y sus relatos, Bucuresti, Cartea Universitarã, pp.11-28. ———. (2002), “Viajeros en busca del paraíso terrenal” in Maravillas, peregrinaciones y utopías: Literatura de Viajes en el Mundo Románico, Valencia, Universitat de Valencia, pp.59-76. RAMOS, José de (1951), “Império do Calaminhão” in Mosaico, vol.III, nº. 51, Macau, pp.1-12. SARAIVA, Antonio José (1958), “Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca da ideologia senhorial”, in separata da História da Cultura em Portugal, Lisboa, vol.III, pp.9-161. SEIXO, Alzira (1998), Poética da Viagem na Literatura. Lisboa, Cosmo

Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes

MARTA PACHECO PINTO Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

arrativas de diáspora ou de difusão cultural: eis uma classificação que, embora abrangente e, por isso, flexível, ressoará na mente do leitor ao Nlongo desta reflexão. Mas, na realidade, não serão todas as narrativas de diáspora, quer esta consista numa viagem física, real (a tradicional literatura de viagens1), quer esta se situe no âmbito da alegoria, quer represente ou simbolize uma viagem espiritual? Estamos, pois, a partir do princípio de que toda a narra - tiva de diáspora pressupõe um encontro meta e/ou intraficcional, trans e/ou intra cultural, inter e/ou intrasubjectivo. Todo o texto literário, todo o acto de leitura se apresentaria, neste sentido, como evasão ou escapatória e, por conse - guinte, como diáspora ficcional para o leitor, constituindo-se ao mesmo tempo como diáspora reconstitutiva, criativa ou literária para o próprio escritor; daí gerando-se uma homologia de experiências.2 Subjacente a esta narrativa de procura voluntária ou não de um alter mundus, encontra-se um cruzamento de diferentes horizontes culturais que gera inevitavelmente um processo dinâmico de migra ções geoculturais que designaremos como tradução cultural. É esta ideia de diáspora, de tradução cultural, capaz de gerar, introduzir ou transmitir novidade cultural, que pretendemos desenvolver em articulação com a obra Paisagens da China e do Japão de Wenceslau de Moraes. Oficial da marinha, Superintendente de Importação e Exportação do Ópio em Macau, professor no Liceu de Macau, cônsul de Portugal em Kobe, Wenceslau de Moraes foi tudo isto e muito mais: foi sobretudo o “intérprete cultural”3 do

1 “Por Literatura de Viagens entendemos o subgénero literário que se mantém vivo do século XV ao final do século XIX, cujos textos, de carácter compósito, entrecruzam Literatura com História e Antropologia, indo buscar à viagem real ou imaginária (por mar, terra e ar) temas, motivos e formas” (Cristóvão 1999: 35). 2 Evoquemos as palavras da viajante Isabella Bird (1831-1904) que, no prefácio à sua narrativa de viagem por terras nipónicas, Unbeatan Tracks in (1880), apresenta esta obra como um espaço de partilha de experiências: “it places the reader in the position of the traveller, and makes him share the vicissitudes of travel, discomfort, difficulty, and tedium, as well as novelty and enjoyment” (1984: 2). 3 Ver Armando Martins Janeira. 1966. Um Intérprete português do Japão — Wenceslau de Moraes. Macau: Imprensa Nacional/Instituto Luís de Camões. 730 Marta Pacheco Pinto

Japão, país que visitou pela primeira vez em 1889 e que o arrebatou de tal forma que, volvidos cerca de dez anos, decide trocar Macau, onde era residente há já uma década, por aquele “delicioso arquipélago, […] de cantinho de paraíso” (Moraes 1972: 89), um verdadeiro Olimpo no Extremo Oriente. Espaço eleito para o auto-exílio de Moraes4, o Japão não é um mero espaço de reflexão crítica, tema ou objecto de análise; adquire mesmo a dimensão de personagem prin cipal, mas uma personagem com existência extratextual que Moraes experi mentou in loco. Tendo conhecido apenas uma única edição em 1906, Paisagens da China e do Japão, obra dedicada a Camilo Pessanha e João Vasco, fiéis amigos e compa nhei - ros dos tempos do Liceu de Macau, é uma colectânea ou amostra repre sentativa de contos e lendas populares que se entretecem com pequenos apontamentos sobre a vida extremo-oriental, redigidos entre 1899 e 1902 (ou seja, em solo japonês) e publicados em jornais nacionais como O Comércio do Porto. A cada capítulo deste volume corresponde quase sempre um conto chinês ou japonês, facilmente contextualizável através das referências espaciais ou histórico- -culturais e da antroponímia e toponímia que o acompanha. Esta deambulação pela literatura popular de tradição oral, ou seja, a daquelas massas com que Moraes simpatizava por estarem mais próximas das origens telúricas orientais, permite dar a conhecer ao leitor português — o principal destinatário das suas reflexões5 — o contexto cultural, social e moral em que se encontra inserido e que procura assimilar numa tentativa de aculturação total. Na esteira das reflexões desenvolvidas em Traços do Extremo Oriente (1895) e Dai-Nippon (o grande Japão) (1897), e para efeitos da presente reflexão, consi - de ramos que Paisagens da China e do Japão se desdobra numa tipologia tripar - tida de paisagens, a saber: paisagens literárias (compostas por aquela literatura oral), paisagens naturais (ligadas, no sentido literal, ao mundo geofísico) e paisa - gens humanas, das quais se destaca a figura feminina em geral e a musumé em particular. Combinadas, estas geram a paisagem moraeseana do Extremo Oriente sino-nipónico. No que se refere às paisagens literárias, convém referir que a inclusão do conto popular é, por um lado, uma forma de dar a conhecer as raízes populares daquelas culturas Outras, ao encerrar em si os valores da sociedade em que se

4 “[…] o aventureiro que escolheu para exilio um canto exotico, longe, muito longe do torrão onde nasceu, e no qual a civilisação disparatada, a feição propria das gentes com quem lida, hão-de fatalmente apresentar-se, dominantes” (Moraes 1906: 99-100). 5 Do ponto de vista da recepção, todos os escritos orientalistas de Moraes visam um leitor portu - guês com quem tenta dialogar constantemente, antecipando reacções e esclarecendo comportamentos susceptíveis de polémica junto do público português. Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes 731

inscreve, sendo símbolo de uma identidade nacional colectiva (Moraes 1999: 127); por outro, ecoa a tentativa de resgatar um Japão tradicional e ancestral, anterior à adesão geral ao progresso industrial, tecnológico e comercial prove nien te da Europa e contra o qual Moraes se insurge (Chaves 2004: 11). Trata-se igual mente de colocar essas culturas extremo-orientais numa espécie de dis curso directo — ainda que seja um discurso traduzido e grandemente mediado pela subjecti vi- dade de Moraes, o que lhe valeu o estatuto de tradutor visível.6 Realizado a partir de testemunhos orais e, dado o desconhecimento quase total da língua japonesa, de traduções existentes para línguas europeias7, este exercí cio de tradução literária apresenta-se como uma estratégia programática de divulgação cultural que, cumprindo um objectivo didáctico, podemos equiparar ao que Even-Zohar ou Gideon Toury designaram como planeamento cultural.8 É interessante verificar que esta ideia de traduzir e compilar contos, que Traços do Extremo Oriente antecipa, poderá ter sido inspirada em Lafcadio Hearn que, até à data, já havia publicado várias antologias de contos traduzidos direc tamente do japonês para a língua inglesa que vieram a popularizá-lo junto da sociedade nipónica. Através dos contos seleccionados e dos comentários esboçados, Wenceslau de Moraes manifesta pontos de vista diferentes consoante o objecto em análise

6 Wenceslau de Moraes adquire este estatuto ao interromper frequentemente a narrativa de mediação cultural para introduzir, por meio de referências parentéticas (“e tanto ella teimou, — sabem todos o que são teimas de mulheres! — que sempre foi levando a sua ávante”; “O que o velho via claramente, era a imagem da filha, que alli tinha junto de si em carne e osso, — e que carne! e que osso! — palpitante de vida e gentileza” (Moraes 1906: 56 e 163)) ou apostos, comentários, observações pessoais e, por vezes, esclarecimentos no sentido de colmatar diferenças culturais. 7 “Nos meus vários livros a respeito de coisas japonesas, especialmente nas Paisagens da China e do Japão, o leitor poderá encontrar, em tradução, algumas lendas japonesas; mas melhor fará, consultando a brilhante colecção ilustrada The Japanese Fairy-Tale Series, publicada por Hasegawa, em Tóquio” (Moraes 1999: 142). O conhecimento bastante rudimentar da língua nipó nica fez com que Moraes se visse na necessidade de recorrer a textos intermédios, nomea - damente a The Japanese Fairy-Tale Series de Hearn, obra que terá funcionado como texto de partida dos contos coligidos em Paisagens da China e do Japão. 8 Ver: Gideon Toury. 1999. “Culture Planning and Translation.” In Anovar/anosar: Estudios de traducción a interpretación I. Edição de Alberto Àlvarez Lugrís e Anxo Fernández Ocampo. Vigo: Servicio de Publicacións da Universidade de Vigo, 13-25; Itamar Even-Zohar. 1994. Culture Planning and the Market, http://www.tau.ac.il/~itamarez/papers/plan_clt.html; Itamar Even- Zohar. 1997. Culture Planning and Cultural Resistance, http://www.tau.ac.il/~itamarez/ papers/plan_res.htm; Itamar Even-Zohar. 2008. “Culture Planning, Cohesion, and The Making and Maintenance of Entities.” In Beyond Descriptive Translation Studies: Investigations in Homage to Gideon Toury. Edição de A. Pym, M. Shlesinger e Daniel Simeoni. Amsterdam & : John Benjamins, 277—292. 732 Marta Pacheco Pinto

seja o “povo amarello” (1906: 20) da China — simbolicamente representada por Macau — ou o Japão. Se Macau é um “exiguo penedo asiatico, onde Portugal implan tou a sua bandeira” e onde as “ruas lamacentas, [estão] coalhadas de povo sujo, com as cabaias negras ensopadas dos chuvascos” (Moraes 1906: 21 e 22), o Japão ocupa, pelo contrário, um lugar de destaque enquanto palco de “deliciosos exotismos ultra-terrestres, como se a gente se achasse de repente piando o solo de Marte ou de Saturno” (Moraes 1906: 125). Paisagens da China e do Japão oferece, pois, uma leitura comparativa da China e do Japão centrada sobretudo nas diferenças que opõem estes sistemas culturais: para cumulo de infortunio e de descredito, um visinho, um povo irmão, o povo japonez, invade, vence e desbarata a China, morde e come pedaços do seu torrão sagrado, envergonha-a, offerece-a ao escarneo do mundo na miserrima condição da sua plebe e na opulenta infamia dos seus nobres, desprestigiada emfim, indefeza à cubiça das gentes, aos homens loiros da Europa, que não tardarão em vir espezinhal-a. (Moraes 1906: 25) Para além destas paisagens literárias, Moraes também nos presenteia com uma paisagem natural que “é sempre organizada pela apreensão de um olhar (pontual mente) fixo, pressupondo a perspectiva, que se exerce sobre um todo homogéneo preferencialmente captado por uma direcção (oblíqua) e um sentido descendente do olhar” (Buescu 1990: 66; ênfase do original). O próprio título, Paisagens da China e do Japão, evoca um manual de viagens ou roteiro, uma digres são pela China e pelo Japão cujas lendas populares se coadunam com esse movimento digressivo que possibilita a reconstituição, pela escrita, das paisagens naturais percorridas pelo olhar. É nesse passeio cultural que, à seme lhança do culi japonês, Wenceslau de Moraes — “um companheiro, um amigo quase, risonho, honesto, prestimoso, sabido em histórias e em lendas, que vai impingindo ao mais leve pretexto da paisagem” (Moraes 1972: 244) — surge como um condutor, não de carros nem de pessoas individuais, mas de diálogos interculturais. Interpe lando directa e activamente o leitor português, sobretudo num tom intimista e confessional, Moraes emerge como guia, como relanceador de culturas Outras, pelo que, quando chega ao fim das suas diásporas e diva - gações, se apresenta “arquejante, a escorrer de suor” e “nos brada num sorriso — ‘sayonara!’…” (1972: 244). As paisagens chinesas e japonesas que descreve denotam claros veios exó - ticos, próprios da literatura de viagens então produzida um pouco por toda a Europa. Sinónimo de diferença, de estranho, de alteridade e alternativa cultural, o exotismo institui-se como “mediation of an ‘abroad’ to an audience assumed to be located at ‘home’” (Lodge 1992: 159). É nesta mediação entre o estranho e o familiar, entre binómios aparentemente inconciliáveis, que se pro cessa uma identificação entre sujeito observador e objecto observado, em que a leitura Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes 733

que o sujeito observador faz da alteridade é sempre uma leitura subjectiva na qual está necessariamente implicado. Na definição avançada por Rogério Puga (2005), [A] visão do alter mundus leva o Eu a consciencializar-se de que é também Outro no seio de um processo de “leitura” interactiva. O exo tismo, metáfora representativa do encontro de diversas esferas civiliza cionais, apresenta-se como uma questão de identidade, de pertença socio-cultu - ral; uma questão ontológica e também gnoseológica, um jogo de espelhos transversal a todas as manifesta ções artísticas, filtrado quer pela sensibili - dade de quem o elabora quer pelo contexto histórico-cultural da sua produção e posterior recepção. É neste processo de identificação e apresentação de alternativas culturais que o Eu compreende ser e se sente como um Outro, ao mesmo tempo que, trans ver- salmente, sente esse Outro como diferente.9 Neste sentido, fazemos nossas as palavras de Helena Buescu quando afirma que “a introdução da descrição da paisagem parece-nos provir de uma notação que exige a consciência da diferen - ciação: como se fosse necessário o efeito de estranheza, inerente ao exotismo, para a natureza se construir como objecto de olhar, passível de descrição” (1990: 48; ênfase do original). Essa natureza Outra é sempre concebida em função das categorias que o sujeito observador tem à sua disposição no seu aparelho linguís - tico e sistema cultural, categorias estas que lhe são familiares por designa rem as realidades que fazem parte do seu universo cultural, podendo, por analogia, ser transpostas para o universo da alteridade. A tradução cultural que se opera — cujo objecto em trasladação reflecte uma escolha conceptual pessoal e a imagética subjectiva do autor desse processo — acaba por espelhar esse Eu, a sua compreensão de alteridade e as expectativas de leitura que cria para o leitor português.10 Ao tentar (re)produzir-se um efeito de estranheza mas através de

9 “Le monde extérieur est ce qui se différencie aussitôt de nous. […] Or le sentiment de la nature n’exista qu’au moment où l’homme sut la concevoir différente de soi” (Segalen 1978: 44). Sobre o exotismo, consultar também: Francis Affergan. 1987. Exotisme et alterité. Paris: Presses Universitaires de France; Jean-Marc Moura. 1992. Lire l’exotisme. Paris: Fayard; mais recente - mente, Vladimir Kapor. 2007. Pour une poétique de l’écriture exotique — Les stratégies de l’écriture poétique dans les lettres françaises aux alentours de 1850. Paris: L’Harmattan. 10 “The translation is addressed to a very specific audience, which is waiting to read about another mode of life and to manipulate the text it reads according to established rules, not to learn to live a new mode of life” (Asad 1984: 159). Para Talal Asad, a tradução cultural tem sempre um público-alvo específico que partilha um conjunto de expectativas específicas e que constrói, em função do grau de concretização dessas expectativas, a sua própria concepção de alteridade. 734 Marta Pacheco Pinto

uma familiaridade lexical, esta forma de tradução afinal familiari zante, este exotismo — em que “le sujet épouse et se confond pour un temps avec l’une des parties de l’objet, et le Divers éclate entre lui et l’autre partie” (Segalen 1978: 79) — constitui-se como uma possibilidade de definição do sujeito observador, ou seja, o próprio Wenceslau de Moraes. Enquanto artifício literário ao serviço de uma estética do diverso, enquanto ornamento discursivo, o exotismo ajuda ainda a construir a cor local não só de Paisagens da China e do Japão, mas da obra de Moraes em geral. Segundo Aguiar e Silva, “ a cor local, ou seja, a reprodução fiel e pitoresca dos aspectos característicos de um país, uma região, uma época, etc., constitui um dos recursos mais vulgarizados na arte romântica” (2002: 549), bem como o refúgio oitocentista em cenários exóticos de que a obra em análise é exemplo: Collinas, penedias, verdes planices, lagos, cascatas, torrentes espu man - tes, ribeiras dormentes, valles profundos, mares interiores salpi ca dos de ilhas e rochedos, tudo reduzido a miniaturas graciosissimas, reunido em grupos incongruentes e projectado em fundos de ceu estupenda mente coloridos, eis o que os olhos abrangem n’um relance. (PCJ 1906: 124) Definida por Carlos Ceia como uma técnica narrativa ou pintura do pitoresco que pode levar a uma identificação entre o escritor e a paisagem pintada11 ou, pelo contrário, a uma rejeição da mesma, de que os sentimentos de Moraes pela China e por Macau são exemplo, a cor local de que nos ocupamos é também composta por paisagens humanas que reflectem uma predilecção pelo Japão. É o caso da figura feminina nipónica, elemento integrante da cor e da paisagem locais, fazendo parte da própria natureza e sendo a ela equiparada. É, assim, a partir desta figura conciliadora de culturas extremas que Moraes concebe o seu Oriente nipónico. Pensemos, à guisa de exemplo, nas pinturas francesas orientalistas que procuravam o Oriente através da figura mítica de Salomé, bastante em voga no final do século XIX, ou na literatura de viagens produzida durante Setecentos e Oitocentos que, ao privilegiar uma evasão num espaço definido como Oriente, elegia a figura feminina como protagonista e símbolo desse espaço Outro, tantas vezes palco de devaneios eróticos — é o caso de Voyage en Orient (1851) de Nerval, Le Roman de la momie (1858) de Gautier, Salammbô (1862) de Flaubert, entre outros.

11 “Descrição pormenorizada de traços característicos de uma dada região ou do pitoresco de uma paisagem, ou descrição de particularidades dos costumes ou dialectos de certas comu - nida des. Os momentos de descrição conhecidos por cor local são em regra de importância secundária para o desenvolvimento da narração do principal tema de uma história. Contudo, a forma como certos escritores se envolvem na cor local descrita nas suas obras levou a processos curiosos de identificação desses escritores com as regiões que pintaram” (Ceia 2005). Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes 735

Alheio às preocupações românticas ou a outras considerações estético- literárias12 — aliás, a obra de Moraes não está ao serviço de qualquer tipo de movimento literário, mas sim de uma filosofia pessoal de divulgação de um Oriente muito particular —, encontramos em Wenceslau de Moraes uma con - cepção de corpo feminino enquanto parte integrante da paisagem nipónica em que o próprio escritor procura fundir-se. Esta mesma concepção traduz um paradigma inaugurado pelo Romantismo que Hans Gumbrecht descreveu nos seguintes termos: Romanticism tended to celebrate as an enrichment what 19th century epistemology would later identify as a challenge — if not as a scandal. The aspect in particular that the human body would become, once again, a dimension of resonance for — and thereby part of — man’s physical environment seems to have fostered, in the beginning, a new feeling of “romantic” familiarity and closeness vis-à-vis the world. (Gumbrecht 2004: 59) Meio privilegiado de socialização, aculturação e contacto com o Extremo Oriente, a figura nipónica que polariza o interesse de Moraes é descrita em termos e imagens familiares ao leitor português, numa espécie de familiaridade romântica de que Gumbrecht nos fala, mas que, conjugados, criam uma rede de signi fi- cações cujo exotismo desempenha uma função que transcende o mero plano textual ao suscitar a curiosidade do leitor, mantendo-o simultaneamente preso à leitura cultural que se lhe proporciona. A admiração que nutre pela mulher japonesa nunca esmorece, ainda que a sua fé no Japão seja abalada sobretudo na fase final da sua vida e carreira literária.13 É esta mulher, e “não ha mulheres mais mimosas do que estas musumés” (Moraes 1906: 210), que mais fascínio parece exercer, sendo apresentada como um misto de novidade, por ser diferente da mulher europeia (“uma grande dissemelhança afasta a mulher japo neza, da mulher occidental” (Moraes 1906: 207)), sensualidade e encantamento:

12 O exotismo inaugurado sobretudo pelas primeiras obras orientalistas de Wenceslau de Moraes foi cultivado não só pelos poetas românticos (“o Oriente, com o seu mistério, o fascínio das suas tradições, das suas cores e dos seus perfumes, transformou-se no mito central do exotismo dos românticos” (Aguiar e Silva 2002: 549)), mas também, mais tarde, por parnasianos e sim - bolistas — veja-se o caso do Cancioneiro chinês (1890) de António Feijó — “é verdadeira mente sintomática do lirismo finissecular a aproximação de António Feijó ao orientalismo exótico em voga na época, mas também de uma depuração parnasiana e ainda de um vago simbolismo” (Martins 2004: 18) — e a obra de Camilo Pessanha. 13 Leia-se O-Yoné e Ko-Haru (introdução e notas de Tereza Sena. Imprensa Nacional-Casa da Moeda: Lisboa, 2006). 736 Marta Pacheco Pinto

essa figurinha em miniatura que tão irresistivelmente captiva as attenções do estrangeiro, toda ella matizes, perfumes, frescura, gentileza, a figurinha da musumé, da rapariga, podemos ainda definil-a como uma caricatura, a caricatura mais travessa, a chimera humana mais deliciosa, em que jamais olhos de viajante se poisaram!… (Moraes 1906: 122) O maravilhamento de Moraes pela musumé está patente nas metáforas, nas ima - gens e nas estruturas linguísticas que usa para descrever essa realidade hu ma na que, primando pela sua ultrafeminilidade, faz com que “o pobre europeu das paizagens serenas, soffr[a] os choques d’esta natureza, por demais subversiva para o seu espirito triste, meditativo e atribulado” (Moraes 1906: 31-32). E é talvez por ser subversiva que, desde as suas primeiras obras, se denota uma construção idiossincrática do corpo feminino oriental. Esta idiossincrasia, distri - buindo-se por diferentes partes desse corpo, mostra como esta musumé rompe com o protótipo de beleza exaltado por uma Laura de Noves petrarquista ou mesmo pela tradição greco-latina, contribuindo para a sua excepcionalidade num mar tão diversificado de entidades femininas. São, deste modo, objecto de um culto quase obsessivo o rosto (nomeadamente o “olhar negro” e “a boquinha, em forma de cereja, acarminada, [que] sorri em curvas, em prégas, em covinhas impa gaveis… ” (Moraes 1906: 46 e 111)), as mãos — “convem saber que não ha mãos mais bonitas do que as mãos das japonezas” (Moraes 1906: 156) — e os pés, “pés… e que pés!...” (Moraes 1906: 136). É a reunião de todos estes ele men tos corporais que define esta paisagem feminina, cuja sobrevalorização concorre para um quadro de erotismo e sedução flagrante: […] sereias de agua doce, simplesmente meigas, simplesmente gentis [… ] e dando de graça um sorriso, tão doce, que tirava ao chá o travor proprio, mesmo para o paladar mais exigente. (PCJ 1906: 45) […] era entreabrir o kimono de seda na parte junto ao peito, patentear lhe o par de maminhas brancas e roliças, com os bicos côr de rosa mace - rados pelos dentinhos do garoto que lhe brinca no collo, nu em pêlo… (PCJ 1906: 209) Meiga, gentil, sorridente, mimosa, “emblema dos carinhos do sexo delicado” (Moraes 1906: 77): são estes os principais epítetos desta mulher que, actuando como uma femme fatale sem disso ter consciência, deleita o olhar masculino europeu pelos gestos graciosos com que realiza actividades aparentemente tão prosaicas como: cuidar dos seus cabellos, pintar a boca de escarlate, dedilhar no shamicen, compôr ramos de flôres, servir o chá nipponico, lêr historias de raposas fabulosas e de macacos legendarios… (Moraes 1906: 208) Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes 737

Ao mesmo tempo que estas actividades reflectem o papel social que a sociedade nipónica programa para a mulher, espelham também a passividade e serenidade que caracterizam este ser. No retrato sempre superlativado que traça desta figura feminina, Wenceslau de Moraes evoca, por vezes, uma imagética floral e animal (regra geral, seres inofensivos de pequena dimensão) que meta - fórica e inevitavelmente, através de um movimento metonímico e enquanto prolongamento da própria natureza, associa a este ser frágil e vulnerá vel tornado objecto de uma apreciação estética desmedida. Reciprocamente, também na natureza se encontram paisagens femininas, verificando-se uma codificação daquele corpo na paisagem e vice-versa: Alinhadas nos jardins, sob tendas de abrigo, as chrysanthemas lembram mulheres, lembram-me cortezãs de Ioshiwara, quando ellas vestem os ricos mantos polychromos, quando elas enfeitam os cabellos com diademas de espavento, e vêem postar-se em filas, princezas pompejan tes do vicio, encantadoras e perversas… (Moraes 1906: 188) Refira-se ainda a importância simbólica da cor nas descrições com que Moraes nos presenteia desta figura. Se a alvura da pele, símbolo de pureza e inocência, eleva estas figuras à condição de seres imaculados de adoração semideificada e de beleza exótica, o negro intenso dos olhos e a cor púrpura dos lábios tornam- se, quando combinados, cores da tentação carnal que excitam o desejo masculino e que estão congenitamente presentes nas pinturas que o pincel japonês traça da paisagem natural: São estas florescencias paradoxaes, tão caracteristicas do solo nipponico, que encaminham a cada momento o pincel indigena para requintes de matizes que a esthetica occidental não comprehende; ellas inspiram aos artistas esses tão frequentes fundos de paizagem salpicados de brancos e vermelhos, a reminiscência do instante em que as flores se desfolharam e cairam do alto, n’um chuveiro de petalas. (Moraes 1906: 34-35) O uso e abuso de diminutivos são uma outra prática recorrente que reforça a delicadeza destas figuras pueris, daí resultando a infantilização desta mulher14, sempre filtrada por um olhar enamorado e complacente que nunca a coloca em discurso directo e tende a confiná-la à esfera do lar doméstico: “dois meritos ainda: o delicado instincto da ordem, da limpeza, e um fundo de carinho mater - nal, tam amoroso, que talvez não tenha egual no mundo inteiro” (Moraes 1906: 206). Por outro lado, estes diminutivos sugerem implicitamente que estes corpos

14 Yamamoto, em Masking Selves, Masking Subjects — Japanese American Women, Identity, and the Body (1999), enuncia uma espécie de relação de causa e efeito entre um discurso de infantilização e a exoticização da figura feminina, sendo um correlato do outro (1999: 16). 738 Marta Pacheco Pinto

humanos necessitam de uma figura tutelar, autoritária, de preferência mas cu li - na, que os proteja. Este tipo de exotismo linguístico, aliado ao recurso a imagens sinestésicas, estende-se aos objectos que rodeiam a mulher nipónica que, uma vez mais por acção da metonímia, adquirem a sua fragilidade. Ainda, ao nível da pontuação, ressalvemos a presença abundante de reticências e pontos de exclamação, que exprimem emotividade, sugestão e incompletude e que, quando ocorrem em simultâneo, parecem expressar uma espécie de entusiasmo contido, um segredo não revelado que cabe ao leitor descobrir por si mesmo. Esta “chimera humana” (Moraes 1906: 209) surge, portanto, como um mo - de lo de relacionação entre o homem e a natureza ou paisagem oriental, sendo mais do que um “mero ornamento que participa da paisagem e serve para [o] iniciar [Moraes] no fascínio da terra japonesa” (Laborinho 2004: 59). É, na nossa perspectiva, uma constante, um elemento fixo dessa paisagem estranha, desse imago mundi moraeseano, acusando inclusive um discurso de feminização do Japão. Segundo Nishihara, este discurso processar-se-ia por meio de não uma, mas duas figuras — a geisha e a musumé:

Another example is the geisha girl in English and mousmé in French as the epitome of the cliché of imposed sensuality on Japan. The Orient, including Japan, was associated with the gratification of sexual pleasures by Western men. The geisha repeatedly appeared in Western literature and art. Madame Chrysanthème (1887) by Pierre Loti (1850-1923) and Madame [sic] Butterfly (1904) composed by Giacomo Puccini (1858-1924), depended heavily on geisha images. However, a hasty conclusion that the sexual image of the geisha was unilaterally imposed by Western Orientalism is inappropriate. The Japanese also utilized the discourse on geisha. In the Japanese context, the sexual image was toned down and the geisha became a symbol of Japanese beauty made more acceptable for the Japanese. (2005: 246; itálicos do original)

Embora dedicando várias páginas à “guesha, a mulher-flor” (Moraes 1972: 230), é, sem dúvida, a musumé que ocupa um lugar de relevo na escrita de Moraes e que, na perspectiva de Nishihara, remeteria a sua produção literária para a tradição francófona, apesar de notória a dívida de Wenceslau de Moraes para com a herança anglófona (através sobretudo de Lafcadio Hearn, Chamberlain e Percival Lowell). Mais significativo é o facto de a sua obra divergir das que os seus pares ocidentais escreveram sobre o Japão, em que há uma inevitável (e dogma ticamente aceite) predisposição da mulher oriental para o homem ocidental: “the Japanese woman is configured as ontologically mysterious, sexually available, and hungry for contact with the West — via the white western male” (Yamamoto 1999: 21-22). O lusitano loiro de olhos claros de que nos temos vindo a ocupar rompe com este cliché ao assegurar o leitor português de que era Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes 739

alvo de rejeição por parte da mulher nipónica (cf. O-Yoné e Ko-Haru). Esta rejeição não é, porém, motivo de negação e repúdio dessa figura feminina, mas, pelo contrário, fomenta e intensifica ainda mais o culto que Moraes dedica a este fruto proibido. A paisagização feminina patente em Paisagens da China e do Japão tem uma maior visibilidade dentro do contexto geral da produção moraeseana. Este sujeito feminino, objecto de descrição exótica e apoteótica, surge ao serviço da “desco - berta da alma do país” (Laborinho 2004: 56) do Sol Nascente e, por que não, da própria rejeição do solo mater, isto se tivermos em conta o contexto finissecular de desprestígio de Portugal no panorama europeu (pensemos no Ultimato inglês e nas lutas liberais), bem como toda a instabilidade política que se vinha prolon - gando desde as Invasões Francesas. Por que não mesmo pensar essa figura em oposição a uma Maria da Fonte revolucionária que veio antecipar o advento de uma nova identidade feminina cujos ideais tanto desagradavam às mentalida des masculinas da época, de que Wenceslau de Moraes seria afinal um exemplo? […] até as mulheres são feias, feias como nunca foram — (ou é a fábula da raposa e as uvas que me inspira?) — tornadas ainda por cima quezi len - tas, graças aos progressos feministas, em fermento (Moraes 2006: 134) Evoquemos de novo a figura de Salomé, na medida em que o reavivar deste mito, ainda que ligado a outros cenários orientais, pode ser inscrito numa tenta tiva de recuperação de uma feminilidade e de uma moralidade feminina conde nadas à extinção perante a emergência dos movimentos feministas: “Le thème de Salomé s’est épuisé au XXe siècle avec pour cause essentielle la modification radicale du statut de la femme” (Allemand e Camboulives 1988-1989: 27). Não será a imagem conservadora que Moraes projecta do ser feminino extremo-oriental sintomática dessa nostalgia? Paisagens da China e do Japão apresenta-se, então, como uma espécie de diário literário de uma viagem pelo Extremo Oriente que coloca em mise-en- -scène um processo dinâmico de trocas interculturais, vulgarmente designado por tradução cultural. Enquanto agente ou actor cultural, Wenceslau de Moraes enceta uma operação de transferência, transposição e implementação de novi - dade cultural no universo literário e cultural português ao seleccionar produ tos culturais, como os contos populares, a paisagem natural e a musumé, que denotam um gosto (romântico) pelo folclore oriental. Levando simultaneamente o leitor de chegada à cultura Outra e trazendo essa cultura Outra ao público português, Moraes arrasta os seus leitores numa viagem embriagante por paisa - gens extra-europeias que, uma vez transpostas para a escrita, se tornam palco de encenação de diferença cultural (Bhabha 1994: 227). É nesse movi men to pendular que se encontra o próprio Moraes, um “náufrago entre duas culturas” (Janeiro [s.d.]: 229), situado geográfica e socialmente na cultura da alteridade e escrevendo para a que moldou parte da sua identidade pessoal. Quer isto dizer 740 Marta Pacheco Pinto

que a tradução cultural ou comunicação intercultural que exercita contém em si uma dimensão de auto-reflexividade e de introspecção. A musumé é uma presença constante nessa introspecção, sobressaindo como o elemento de diferença privilegiado por Moraes, como o elemento definidor de um carácter nacional, espelhando, até certa medida, os atributos das paisagens orientais numa relação bidireccional entre corpo e paisagem, tornando-se esse corpo uma paisagem a ser contemplada. A incapacidade de a linguagem tudo exprimir e de a compreensão humana tudo compreender colocam a questão da (in)traduzibilidade cultural e dos limites da linguagem, bem como a capacidade de representar e se fazer representar, acen tuando ainda mais o carácter exótico e excepcional dessa figurinha nipó - nica. O Japão finissecular de Moraes é, pois, um espaço de diversidade exótica, de “Oh, a paisagem japoneza! Como ella é encantadora e fresca, estranha, paradisíaca!...” (Moraes 1906: 131), tal como os seres femininos que a habitam.

Obras citadas Allemand, Evelyne-Dorothée, Catherine Camboulives. 1988-1989. XIXe-XXes. In Salomé dans les collections françaises. Paris: Saint-Denis, Tourcoing, Albi, Auxerre, 25-27. Aguiar e Silva, Vítor. 2002. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina. Asad, Talal. 1986. The Concept of Cultural Translation. In Writing Culture. Edição de James Clifford and George E. Marcus. Berkeley: University of California Press, 141-164. Bhabha, Homi. 1994. How Newness Enters the World. Postmodern Space, Postcolonial Times and the Trials of Cultural Translation. In The Location of Culture. London & New York: Routledge, 212-35. Bird, Isabella. 1984. Unbeaten Tracks in Japan. Introdução de Pat Barr. Boston: Beacon Press. Buescu, Helena Carvalhão. 1990. Incidências do olhar: Percepção e representação. Porto: Caminho. Ceia, Carlos. 2005. Cor local. In E-Dicionário de Termos Literários. Coordenação de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/P/posmodernismo. htm (consultado em 6 de Setembro de 2008). Chaves, Anabela. 2004. Japanese Legends and Wenceslau de Moraes. Bulletin of Portuguese/Japanese Studies 9: 9-41. Cristóvão, Fernando. 1999. Introdução — Para uma teoria da Literatura de Viagens. In Con - dicionantes culturais da Literatura de Viagens — Estudos e bibliografias. Lisboa: Edições Cosmos & Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa. Gumbrecht, Hans. 2004. Flaubert’s Landscapes. In Corpo e paisagem românticos. Organiza - ção de Helena Buescu, João Ferreira Duarte e Fátima Fernandes da Silva. Lisboa: Colibri, 55-94. Paisagens femininas nos orientes de Wenceslau de Moraes 741

Janeira, Armando Martins. [s.d.]. O Jardim do encanto perdido — Aventura maravilhosa de Wenceslau de Moraes no Japão. Porto: Manuel Barreira Editor. Laborinho, Ana Paula. 2004. O Essencial sobre Wenceslau de Moraes. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lodge, David. 1992. The Exotic. In The Art of Fiction. Londres & Nova Iorque: Penguin Books, 158-161. Martins, J. Cândido. 2004. António Feijó: exemplaridade de uma poética caleidoscópica. In Poesias completas. Porto: Edições Caixotim, 7-25. Moraes, Wenceslau de. 1972. Dai-Nippon (o grande Japão). Lisboa: Parceria A. M. Pereira. Moraes, Wenceslau de. 1906. Paisagens da China e do Japão. Lisboa: Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso. Moraes, Wenceslau de. 1999. Relance da alma japonesa. Edição de Daniel Pires. Lisboa: Veja. Nishihara, Daisuke. 2005. Said, Orientalism, Japan. Alif 25: 241-253. Puga, Rogério. 2005. Exotismo. In E-Dicionário de Termos Literários. Coordenação de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/P/posmoder nismo.htm (consultado em 6 de Setembro de 2008). Segalen, Victor. 1978. Essai sur l’exotisme. Paris: Fata Morgana. Yamamoto, Traise. 1999. Chapter I — “As Natural as the Partnership of Sun and Moon”. In Masking Selves, Masking Subjects — Japanese American Women, Identity, and the Body. Berkeley, & London: University of California Press, 9-61.

Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo

ROQUE PINTO Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Brasil

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

«Le Brésil est une monarchie mulâtre.» Conde Alexis de Giogard Saint Priest, 1834.

«O Brasil é uma paisagem.» Nélson Rodrigues.

1. Introdução Ao tratar-se de fenômenos relacionados à globalização e especialmente à circulação midiática é relativamente comum atribuir aos Estados Unidos e à Europa (e em menor escala ao Japão) o protagonismo de grandes centros pro du - tores e irradiadores da indústria cultural mundial, cabendo às demais parte do mundo o papel de consumidor não só dos produtos em si mesmos — desenhos animados, soap operas, séries televisivas, filmes para o cinema — como, de algum modo, de todo o conteúdo ideológico neles embutido. Uma mirada mais superficial sobre esse fenômeno tende a reificar seus traços mais visíveis na idéia simplista de um fluxo contínuo no sentido centro- periferia, como um mero prolongamento moderno do sistema produtivo colonial, atribuindo-se aos “subalternos” ou ao “terceiro mundo” o lugar de agentes passivos nesse processo. No entanto, conforme demonstra uma extensa bibliografia sobre a temática da globalização, não só tais agentes se estabelecem como atores ativos nesse processo, ao absorver criticamente os conteúdos refratados pelos media, como também atuam — e cada vez com um maior grau de interseção — como produ - tores culturais de alcance global. Nesse sentido, não faltam exemplos, quer sejam numa escala discreta (obras ou “conceitos estéticos” consumidos em âmbito global oriundos da China, México, Brasil, Irã ou Argentina), ou enquanto sistema produtivo, como se pode verificar no complexo cinematográfico indiano que se convencionou chamar de 746 Roque Pinto

Bollywood.1 Com efeito, pretende-se aqui refletir sobre um fenômeno de propor - ções notáveis que se deu em sentido inverso à caricatura anglocêntrica que indica um sentido único (centro-periferia) dos fluxos midiáticos e imagéticos globais. Trata-se do grande êxito da telenovela brasileira Gabriela em Portugal, não só porque tal fenômeno se deu no ano 1977, portanto, no âmbito de uma circula - ção imagética e tecnológica muito mais limitada comparativamente ao momento atual, mas também porque a obra transborda os limites da televisão e embebe todo um novo estilo de vida que estaria em gestação naquele país, abrindo caminho para uma profusão de produtos televisivos e musicais de origem brasi - leira a abarcar uma significativa fatia de mercado no contexto português. Assim, o que interessa aqui é muito mais os efeitos sociológicos da tele - novela do que sua apreciação técnica ou estética, o mesmo se aplicando à sua matriz literária, o romance homônimo de Jorge Amado que a inspirou, salvo quando esses caracteres aportarem algo às reflexões centrais deste trabalho. É dentro desse contexto, no intuito de problematizar o fluxo de significados que envolve a idéia de Brasil, especialmente na triangulação entre as porções de América, Europa e África que compartem o português como idioma corrente, que se inscrevem as reflexões seguintes, pensadas como uma contribuição aos estudos sobre os fluxos contemporâneos que interagem particularmente no eixo atlântico lusófono.2 Esse texto é fruto das investigações levadas a cabo no âmbito da tese doutoral em andamento provisoriamente intitulada “Padrones Actitudinales de Gestores en el Turismo en Ilhéus, Brasil”, sob tutoria do Professor Doutor Agustín Santana Talavera, acolhida no Departamento de Prehistoria, Antropologia e Historia Antigua da Universidad de La Laguna, Tenerife, Espanha, inscrita na linha de investigação “Territorio, Pesca, Turismo y Gestión de Recursos”.

1 Segundo Lorenzen e Täube (2008), a India é atualmente o maior produtor de filmes do mundo. No ano de 2005 aquele país estreou 1041 filmes e vendeu 3,6 bilhões de ingressos, enquanto que os Estados Unidos, nesse mesmo ano, estreou 535 filmes, rentabilizando uma venda de 2,6 bilhões de ingressos. 2 O termo “lusófono” quando utilizado aqui se refere estritamente à expressão falantes de língua portuguesa, uma vez que se concebe que a idéia de “lusofonia”, usada nos termos de uma “comunidade fraterna dos países de língua portuguesa” não só carece de um sentido empírico (como se pode ver na hegemonia das variantes locais do criollo nas ex-colônias portuguesas em África e mesmo no percentual de falantes do português nestas), como também reflete, velada mente ou não, uma espécie de continuidade extemporânea do colo nialismo português por outros meios. Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 747

2. O Brasil na cartografia global de lugares imaginados Desde seu nascedouro como colônia portuguesa que o Brasil inspira um imaginário edênico, como se pode verificar na própria carta-testemunho funda - cional de Pero Vaz de Caminha, especialmente no célebre trecho em que este descreve as partes púbicas de uma índia, comparando-a às portuguesas: [...] E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (Cortesão, 1994). As descrições dos cronistas seiscentisas, à guisa de Gandavo e Frei Vicente do Salvador e, no século seguinte, Rocha Pita, com sua História da América Portu - guesa, representam um continuum da imagem do Brasil como a visão do Paraíso — para usar uma conhecida expressão de Sérgio Buarque de Hollanda (Buarque de Hollanda, 1994 e 1995a; Carvalho, 2000).3 Essa mesma imagem será reapropriada no século XIX pela intelectualidade brasileira, como a evocação de um Brasil “autêntico e profundo”, a partir de uma forte inspiração romântica, e vai ter importantes repercussões em institui - ções de prestígio à época, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Galdino, 2008). Assim, a idéia de Brasil como natureza, isto é, como um mundo simul ta - neamente selvático, telúrico e incivilizado, perpassa o imaginário medievo e vai impingir na própria formação histórica da consciência nacional, alimentando um ferrenho debate sobre a própria viabilidade do Brasil enquanto país (Skidmore, 1994). Modernamente, a figuração do Brasil-paisagem não só repercute, por exem - plo, na formação da sua imagem turística internacional como, num nível mais profundo, influirá na própria noção do país como “terra de ninguém” (Chauí, 2000), reforçando a “necessidade de conquista das suas fronteiras” (Buarque de Hollanda, 1995b; Wegner, 2000), inclusive no tardio século XX, especialmente nas regiões da Amazônia e do Brasil Central. E no próprio sul da Bahia — am biên - cia donde se forja Gabriela —, com o elogio do “domínio do homem sobre a natureza” no contexto da expansão da lavoura cacaueira sobre a Mata Atlântica

3 É interessante verificar que, ao mesmo tempo que se desenhava o caráter edênico, telúrico e quase transcendental desse novo mundo, habilmente já se perscrutava os usos pragmáticos e as possiblidades de capitalização dos seus recursos, como se pode ver em Borralho e Fortes, 2002. 748 Roque Pinto

nativa, reiterado pelo próprio Jorge Amado em obras como Cacau e Terras do Sem-Fim. Com efeito, embora os desdobramentos da idéia de Brasil como paisagem tenham múltiplos revérberos, o que mais nos interessa aqui é o de uma espécie de representação da vida social brasileira vinculada à sensualidade exacerbada, que seria uma consequência pretensamente “histórica e antropológica”, portanto naturalizada, de uma relação biunívoca entre o selvático e a sexualidade4. De fato, se por um lado, na visão medieval, o Mundus Novus representaria uma espécie de éden extemporâneo, onde não haveria o mal porque os seres que o habitavam sequer o conheciam, por outro, também significaria, especial mente para a igreja, um mundo de lascívia e perdição:

A infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos edênicos elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno se alter - navam no horizonte do colonizador [...]. Durante todo o pro ces so de colonização desen volveu-se, pois, uma justificação ideológica ancorada na Fé e na sua negação, utilizando e reelaborando as imagens do Céu, do Inferno e do Purgatório. (Souza, 1990, 85).

Com efeito, Frei Vicente do Salvador, autor da primeira história do Brasil, escrita em 1627, assim se refere à mudança do nome das novas terras conquista das, de “Terra de Santa Cruz” para “Brasil” (Carvalho, 2006):

Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome [Terra de Santa Cruz] e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e verme lha com que tingem panos, do qual há muito,

4 Nesse sentido é emblemática a canção “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, escrita em 1973 pelo compositor brasileiro Chico Buarque e pelo cineasta moçambicano Ruy Guerra para a peça teatral “Calabar — O Elogio da Traição”, que retrata o episódio histórico da invasão holandesa no Brasil (1630-1654) e revisa a deserção de Domingos Fernandes Calabar das fileiras portuguesas em favor dos neerlandeses. A referida canção rapidamente foi alçada ao status de grande êxito da música popular brasileira:

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor [...] Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá Vê se me usa, me abusa, lambuza Que a tua cafuza não pode esperar [...] Vê se me esgota, me bota na mesa Que a tua holandesa não pode esperar.” Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 749

nesta terra, como que importava mais o nome de um pau com que tingem panos do que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramen tos da Igreja [...]. (Salvador, 1982, 57). De qualquer modo, tanto desde a perspectiva da “terra sem males” quanto a da “terra dos pecados”, a sexualidade se mantinha como um elemento central, quer como uma “atitude natural” — tal qual retratrada, por exemplo, na pintura paisa - gística holandesa no Brasil setecentista (Pesavento, 2004) — ou como uma tenta - ção demoníaca, como ilustra praticamente toda a literatura religiosa do Brasil Colônia. Posteriormente, Gilberto Freyre iria recentralizar e atualizar esse tema no contexto da Casa Grande & Senzala (Freyre, 1998 [1933]) e, mais recente men - te, pode-se ver tal temática até mesmo no pastiche de história na literatura brasileira contemporânea, à guisa do romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (Ribeiro, 1984). Dentro da cartografia turística de lugares imaginados, o Brasil ocuparia a posição do “paraíso perdido” com todas as conotações que dela deriva. E este é o pano de fundo do imaginário (especialmente português) em que se dese nhará a imagem de Gabriela. Desse modo, Gabriela — o filme, a telenovela, o livro, a personagem e seus desdobramentos imagéticos e sociológicos — seria um prolongamento dessa idéia mais ou menos difusa de entrega desenfreada dos desejos carnais como reflexo de um mundo incivilizado no sentido elisiano (ou pelos menos dotado de uma “civilidade incompleta”), é dizer, um mundo onde a "evolução dos costumes" não logrou atingir um alto nível de autocontrole dos gestos, afetos e, sobretudo, da fisiologia humana (Elias, 1993 e 1994). Assim, Gabriela representaria uma espécie de sinédoque do Brasil e do seu suposto modelo de convivialidade, significando um tipo de sujeito moral à Mauss, marcado por alguns traços peculiares, dentre eles, a idealização de um modus vivendi plasmado pela sensualidade/sexualidade.

3. Do híbrido à pureza: Gabriela como projeto civilizacional Em Gabriela, Cravo e Canela Amado expõe a hipocrisia de uma socie dade de aparências, que se move sobre a economia política do prestígio e do dinheiro do cacau. É notável a segmentação racial e familial no mundo sul-baiano retra - tado na obra: “Jamais, ah!, jamais poderia querer assim, tanto dese jar, tanto neces sitar sem falta, urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada.” (Amado, 2000, 168). 750 Roque Pinto

Aqui se tem um ponto de convergência dos feixes relacionais e das categorias representacionais que são descritas por muitos autores como uma particularidade sociológica brasileira: a convivialidade “à Gabriela”. Com efeito, para além de um mero personagem, ela simboliza um modelo relacional, é o emblema das relações multifoliadas que continuamente mudam de orientação: ora se vê uma relação laboral, ora familial, ora de amizade, ora de galanteio e paixão: Nunca fizera um negócio tão vantajoso como ao contratar Gabriela no mercado de escravos. Quem diria ser ela tão competente cozinheira, quem diria esconder-se sob trapos sujos tanta graça e formosura, corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?... (Op. Cit, 164). Tempo bom, meses de vida alegre, de carne satisfeita, boa mesa, sucu - lenta; de alma contente, cama de felizardo. [...] Como arranjava tempo e forças para lavar a roupa, arrumar a casa — tão limpa nunca estivera! —, cozinhar os tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. (Ibid, 165-6). A personagem representa uma exploração múltipla e invisível, embora tal pers - pec tiva não seja adotada na obra, ao contrário, o autor a situa, veladamente, como o próprio elogio da brasilidade — daí a “aproblematicidade” desse tipo de relação (Moura, 2001): seu patrão é seu amante e provedor e a mantém em seu negócio porque lhe é rentável. Na obra, os “homens bons” de Ilhéus vão ao bar de Nacib para ver, conversar, tocar e fazer propostas sexuais para Gabriela. Nacib tem ciúmes, mas a mantém lá porque com sua presença aumentam os lucros do negócio. Como ia se importar se a presença dela era mais uma atração para a freguesia? Nacib logo se deu conta: demoravam-se mais, pedindo outro trago, os ocasionais passavam a permanentes, vindo todos os dias. Para vê-la, dizer-lhe coisas, sorrir-lhe, tocar-lhe a mão. Afinal que lhe importava, era apenas sua cozinheira com quem dormia sem nenhum compromisso. (Ibid, 166). Quando Gabriela começara a vir ao bar, ele — idiota! — alegrara-se inte - res sado apenas nos vinténs a mais das rodadas repetidas, sem pensar no perigo dessa tentação diariamente renovada. Impedi-la de vir não devia fazê-lo, deixaria de ganhar dinheiro. Mas era preciso trazê-la de olho, dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de novo aumento. (Ibid, 167). Por outro lado, para além de um “tipo relacional”, Gabriela pode ser identificada como a corporificação da suposta síntese das três “raças míticas fundadoras do Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 751

Brasil” e, de algum modo, ícone da “democracia racial”, simultaneamente emblema de uma pretensa harmonia social brasileira, baseada em arranjos de “cordialidade” entre desiguais — que seria o reflexo de uma ideologia do masca - ramento das tensões (raciais, de classe e de gênero) — e de sua superação pela via da sensualidade (Vale de Almeida, 2000). Essa espécie de Brazilian way of life, que ao nível empírico seria verificado nas relações sociais aproblemáticas e distensionadas (Moura, 2001) que se estabeleceriam no âmbito de uma balança de poder altamente desequilibrada, já foi exaltada como a grande contribuição brasileira para um virtual projeto civilizador pós-colonial, especialmente a partir da agenda teórica do “luso-tropi - calismo” de Gilberto Freyre (Silva, 1995), embora logo denunciada como uma ideologia de encobrimento da realidade social, particularmente pelos especia - listas das questões raciais (Moura, 1988). Como se sabe, a questão racial é um elemento-chave para a interpretação da complexidade social brasileira, tanto em termos das elaborações teóricas que historicamente pretendiam explicar o Brasil, quanto ao nível das relações con cretas e cotidianas — problemática esta que se faz presente nas reflexões sobre a própria viabilidade do Brasil enquanto “nação” e “país” desde pelo menos 200 anos. Não é possível aqui glosar a complexa genealogia das idéias racistas/racia - listas no país que, inclusive, foram fundamentais para a construção de uma identi dade nacional (Skidmore, 1994): num continuum do pensamento social bra - sileiro, considerando nomes como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Viana Moog e Darcy Ribeiro, entre outros, tem-se um espectro donde se verifica desde o darwinismo social e o racismo científico adaptados5 até um culturalismo radical e um anti-racismo que culminará com o protagonismo da idéia de “demo cracia racial”, relacionada tanto ao elogio da brasilidade (à direita do espectro político) quanto ao mascaramento de uma realidade racista (à esquerda deste). Vale mais aqui ressaltar que no Brasil no só “elementos negros” relacio na - dos à culinária, à música e às religiões de matriz africana, por exemplo, foram profundamente assimilados numa suposta “cultura brasileira” (Fry, 2005), como desde o início do século XX e sobretudo depois de Gilberto Freyre e os desdo bra -

5 O “racismo científico” foi mantido no Brasil como “verdade científica” por um largo período, inclusive a despeito do rechaço veemente das comunidades acadêmicas do resto do mundo. Inclusive, hoje em dia, estranha e desafortunadamente, não é raro encontrar em classes universitárias brasileiras — especialmente em cursos de prestígio como direito e medicina — referências apologéticas às teorias lombrosianas. 752 Roque Pinto

mentos da teoria da “democracia racial” (expressão jamais utilizada por ele), que o pensamento hegemônico sobre o Brasil6 o define como “o grande modelo de convivência harmônica entre raças” e mais além, que a mistura das três raças “míticas” (o branco, o negro e o índio) seria o estribo da “civilização brasileira” e seu modelo relacional um “exemplo para o mundo”. Não é casual que Gabriela seja inscrita como uma “mulata”, uma mestiça: é importante ter em conta que do naturalismo/realismo ao modernismo regiona - lista (onde os críticos situam a obra de Amado), que a literatura brasileira elabora a psicologia dos seus personagens de acordo com o complexo espectro racial brasileiro. Assim, o fato de Gabriela ser uma mulata não se aparta da sua perso na lidade hedonista e da sua conduta infantilizada, ao contrário, pode-se afirmar inclu sive que, nesse contexto, a personagem apresenta tais caracteres psico lógicos preci- sa mente por que é uma mulata, numa relação biunívoca entre “raça” e “perso - na lidade”, bem ao gosto da literatura brasileira da primeira metade do século XX. E o próprio Amado sinaliza para a idéia de que Gabriela seria, para além de personagem, uma espécie de matriz representacional ao intitular o quarto ca pí - tulo do livro de: “O Luar de Gabriela: talvez uma criança, ou um povo, quem sabe?” (Amado, 2000, 239). Desse modo, a inocência, a “pureza”, a sen sua li da - de/sexualidade e o hedonismo seria mesmo a marca de um povo sintetizado na personagem. E nesse sentido Gabriela representa, a seu modo, um “projeto civilizacio - nal” baseado num híbrido pós-colonial (Almeida, 2000) representativo da espe - ci ficida de brasileira (sendo ela própria um híbrido racial)7, na medida em que em blematiza não o herói colonizador e extraordinário que rompe com um mun - do anterior para construir outro à sua vontade e glória — ao modo dos monarcas ibéricos ou dos coronéis sul-baianos, por exemplo — mas sim a anti-heroína humilde e mundana, que vai “civilizando” à medida em que tece e dá sentido a tramas relacionais aparentemente inconciliáveis.

6 É dizer, revérberos desse pensamento podem ser verificados dentro de um gradiente que contempla desde intelectuais “estabelecidos” até o senso comum. Com isso, o discurso do movimiento negro, por exemplo, soaria como uma proposição alienígena, aduzida a partir de uma realidade que “não tem nada a ver com a nossa [brasileira]”. Uma ilustração nítida dessa tensão subsumida na “brasilidade” é o resgate hodierno da “democracia racial” por parte da imprensa nacional como reação à criação, no governo Lula da Silva, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção Racial e da discussão de estabelecimento de cotas para o ingresso de grupos historicamente excluídos nas universidades, como negros e indígenas. 7 Logicamente que não se está a falar de “raça” aqui desde o ponto de vista biológico, mas sim social, nos termos brasileiros de uma hierarquia classificatória politômica e altamente matizada. Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 753

3. “O Brasil é uma vénus fértil”: Gabriela em Portugal No dia 8 de novembro de 2004, depois de 27 anos8, Gabriela voltava, pela primeira vez em cores, a ocupar a grade de programação da televisão portugue - sa. No episódio de re-estréia, transmitida pela emisora SIC, a telenovela liderou a audiência no horário (à tarde), obtendo uma média de 44% do share, contra 34% da segunda colocada, a TVI, que então exibia o programa de con curso “Quem Quer Ganha” e um episódio repetido de “Queridas Feras” (Havas Media/Media Planning Group, 2004). O sucesso da reprise da telenovela bem ilustra o que significou sua aparição no contexto português. Primeiramente, por ser um gênero midiático até então inexistente no país e, em segundo lugar, porque pela primeira vez se via na televisão um universo social simultaneamente exótico e familiar: O Portugal que via televisão parou para ver esta coisa nova que dava todos os dias à hora do jantar: o novo hábito ou ritual de ver a tele novela estabeleceu-se mais depressa do que qualquer outro nas últimas décadas. Quem não tinha televisão em casa juntava-se nos cafés ou tascas; e até as pessoas importantes, como os deputados — a Assembleia da República! —, interrompiam o trabalho pela nação para se juntarem à multidão separada que assistia aos episódios, aliás capítulos, e conhe cia e aprendia, também pela primeira vez, esse orgulho quente que é o português falado no Brasil. [...] O navio torna-viagem trazia agora outro néctar de além- -Atlântico. A Gabriela era o novo ouro, os novos diamantes, o novo pau- -brasil, o novo samba: o Brasil é uma vénus fértil, chegava agora a vez de nos presentear com o melhor da sua televisão. (Torres 2008 [2001]). Com efeito, a empatia instantânea de Portugal com a telenovela se dá, não só pela descoberta de uma complexa indústria cultural em língua portuguesa, como também, e sobretudo, pelo reconhecimento por parte do público português de si próprio na televisão, através das lentes de um outro próximo (Brasil), dotado de similitudes e coincidências míticas, históricas, imagéticas e identitárias, plasmadas pelo mesmo idioma (Cunha, 2003): A comemorar neste ano de 1977 os seus 20 anos, a RTP traz aos seus telespec tadores uma surpresa que iria mudar completamente a empresa e os hábitos do país: a telenovela. E a primeira foi mesmo esta, ‘Gabriela (Cravo e Canela — crónica de uma cidade do interior)’, com autoria de Jorge Amado. [...] Lenda ou facto, a verdade é que ainda hoje deambula o boato de que certo Conselho de Ministros terá mesmo sido interrom pido pelo tempo que durou o último episódio de ‘Gabriela’, pois ninguém no

8 Gabriela estreou em Portugal no dia 16 de maio e 1977, transmitida pela emissora RTP1, sendo exibida até novembro daquele mesmo ano. 754 Roque Pinto

país queria perder o desfecho desta produção da TV Globo. Não houve dúvidas quando ‘Gabriela’ chegou ao seu términus de que a televisão tinha mudado, e continuaria a mudar. (RTP, 2008). Se, por um lado, Gabriela representou um êxito de audiência ímpar por conta dos seu próprios méritos técnicos e de conteúdo, por outro, a telenovela foi beneficiada pelo contexto histórico em que Portugal se encontrava quando da sua exibição, de modo que a ambiência da modernização e da redemo cra ti zação, inscritas no momento histórico imediatamente após a Revolução dos Cravos, acabaram por influenciar o modo como a obra foi apreendida: No momento da exibição da Gabriela, a expansão da indústria cultural e de conteúdos brasileira é percebida como um factor de reforço da identidade, ao recuperar tanto elementos da história colonial (coloni za - ção e emigração portuguesa para o Brasil) como elementos da história recente de Portugal. [...] A exibição da telenovela Gabriela, Cravo e Canela alfabetizou [Portugal] num novo género e numa nova estética, após quarenta anos de ditadura propagan dística e dois anos de revo lu ção manipuladora televisiva [...], beneficiária de uma língua comum mas, também, dum imaginário comum, de mitos, heróis, aconte ci mentos, paisa gens, recordações e saudades, facilmente, identificados por todos os portugueses. (Cunha, 2003, 69). A “gabrielomania”, que transformaria Portugal num “país televisivo” (Cunha, 2004), veio a contribuir para a formatação de um novo estilo de vida feminino português, marcadamente consumista e urbano — embora Gabriela fosse consi - derada uma novela rural no contexto brasileiro —, e com especial incidência sobre a sexualidade principalmente feminina, cujos “indícios” de alteração dos cotidianos provocada pela interpenetração abrupta entre a ficção e a experimen - tação da realidade são elencados por Cunha (2003, 70) nos seguintes termos: Um primeiro [indício] é a adopção de novos ritmos domésticos pautados pelos horários de exibição; um outro indício é a interrelação entre novas propostas de consumo — como os refrigerantes Pepsi e Coca-Cola, os êxitos da trilha sonora ou tipo de penteados femininos — e a telenovela; um terceiro indício de alteração manifesta-se nos cons trangimentos, nas surpresas ou nas expectativas perante a visua li za ção de novas formas de sensualidade e sexualidade. Nesta perspectiva, Gabriela teve um papel importante ao dar a ver as relações de poder exis tentes não só entre as classes sociais como, no interior destas classes, entre homem/mulher, nomeadamente no casamento e na sexualidade. É notável que essa espécie de tele-realidade em que Portugal emergia — coincidente com o momento de transição democrática que culminaria com sua inserção na União Européia em 1985 — deu-se através de uma alteridade bastante peculiar: o portal de entrada do Brave New World midiático lusitano foi cons - Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 755

truído por uma obra produzida numa ex-colônia (embora de algum modo o Brasil goze de um status diferenciado no imaginário português em relação às suas ex-possessões em África). É dizer, não foi nenhuma série televisiva estadunidense ou nenhum pro gra - ma desenvolvido em França ou Inglaterra que se inaugurou, por assim dizer, esta nova etapa da vida social portuguesa — previsível não só em função da cliva gem “civilizacional” norte-sul em Europa, como também do refluxo moral deri vado do “orgulhosamente sós” e das conseqüentes guerras de indepen dência em África: pois aí se teria o “ópio do povo” trabalhando silmultanea mente para “apa gar” o passado recente e apontar para modelos mais centralmente “euro peus”, que de algum modo teria um valor semântico equivalente a democrático e pós-colonial. Pode-se aventar duas hipóteses não excludentes a esse respeito. Seguindo o pensamento de Miguel Vale de Almeida, o Brasil seria, desde o ponto de vista português, “o lugar de todas as projecções identitárias; genéricas umas (a alteri - dade exótica, a tropicalidade, a alteridade sensual — todas mercantilizáveis), especificamente portuguesas, outras (a comprovação da grandiosidade dos desco - brimentos, do luso-tropicalismo, o ‘filho’ que cumprirá o que o ‘pai’ não foi).” (Almeida, 2001). Desse modo, tem-se que o Brasil, ou melhor, uma certa representação de Brasil, funcionaria como um espelho, um duplo português, no sentido de uma projeção simultaneamente deslocada para um remoto passado de conquistas gloriosas e para um futuro de promessas igualmente grandiosas, tal qual um filho, como ressalta o autor, que embora singre seu próprio destino, seguiria contendo em si os genes e os moldes do pai — e portanto não deixaria de ser de algum modo uma extensão simbólica deste. Uma outra linha de raciocínio, menos abstrata e mais próxima de uma lógica geo-econômica global, desenhada por Boaventura de Sousa Santos, apontaria para o fato de que Portugal, ao se inscrever na heteróclita semi-periferia da economia-mundo, representando o “Sul do Norte” e o “Norte do Sul” (Santos, 1999, 22), estaria numa posição menos contrastante em relação ao Brasil — do que, por exemplo, estaria a França em relação às suas ex-colônias. Logicamente que aqui não se pretende acercar-se da idéia de um “bom colonizador”, mais “plástico e integrado” com o colonizado, re-editando velhas teorias já sepultadas a seu tempo. Ao contrário, pretende-se pensar de que modo os ícones midiáticos circulam na economia política dos sistemas-mundo (Ianni, 1998; Arrighi, 2003) e, especificamente, qual a dinâmica (imagética) que orienta a triangulação luso-atlântica entre um “mundo sem fronteiras” (Scherer, 1997, 115), um continuum das “expansões marítimas do século XV” (Batista Jr., 1997, 297) e uma globalização como mito (Hirst e Thompson, 1998). 756 Roque Pinto

Ora, como salientam Lash e Urry (1994, 12), “As sociedades deste final de século se caracterizam por fluxos de capital, trabalho, mercadorias, informações e imagens” e, nesse contexto, a imagem de Ilhéus e de sua Gabriela circula no âm bito de uma economia cultural global, especialmente no contexto das comu - ni dades de língua portuguesa, como um ícone da brasilidade se tornar um dispo - sitivo reflexivo no Portugal contemporâneo, repercurtindo inclusive em África, como indica Pedro Rosa Mendes em Baía dos Tigres, obra literária sobre a história angolana recente: O Lubango recebeu também uma contribuição basca com refugiados da ETA, e ainda elementos do Tupac Amaru, incluindo uma uruguaia quase sexagenária, cujo quarto no Hotel Continental — onde as carpetes vermelhas se tinham tornado cinza-bolor por causa das inundações — era chamado o Bataclã, nome tirado da novela brasileira ‘Gabriela’. (Mendes, 2001, 227-228). Assim, verifica-se no mundo plasmado pela experiência colonial portuguesa um itinerário imagético mediado por alteridades que cabotam dentro de paisa gens ideológicas e midiáticas, num jogo fluido de aproximação e distancia mento. Tais deslocamentos, possibilitados pelas tecnologias de informação-comunica ção, parece encontrar em Gabriela uma ambiência propícia para o debate e a reflexão, fenômeno que se torna ainda mais flamante por ser datado nos finais da década de 1970.

5. Conclusões. Ou o paradoxo Ilhéus: uma universalidade derivada da localidade extrema. Se Gabriela pode ser pensada como o reflexo de uma espécie de projeto civilizatório universalizante, especialmente dentro dum “espelho” do imaginário português, a ambiência donde se desenrola o enredo na obra original e nos seus desdobramentos midiáticos, a cidade de Ilhéus, apresenta características pecu - lia res, não só para o mundo lusitano e para os seus tentáculos fora da Península, como mesmo para o próprio Brasil. Como Ilhéus se fez representada: o universo social do cacau e o fausto dele derivado, as disputas instestinas dos seus baronetes e suas clivagens sociais, a circularidade relacional de uma “cidade pequena”, tudo isso parece um tanto deslocado no contexto de um país que se industrializa e se urbaniza rapida men - te e onde os laços vicinais, familiais e comunais se esgarçam a passos largos. Nesse sentido, é paradoxal que a universalidade (enquanto projeto e ideologia) de Gabriela advenha da localidade extrema que a fundeia (Ilhéus) e da própria hibridização (brasileira) que a constitui. Contudo, a interpenetração entre a ficção e a vida social, e aqui consi de - ran do todo o invólucro literário que Jorge Amado e principalmente suas reper - Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 757

cus sões midiáticas ajudaram a construir sobre Ilhéus, possibilita a cabo tagem desse fluxos de significados, mais uma vez reiterando a importância da literatura como criadora de narrativas de identidade e agente ativo nos fluxos con tem po- râneos (Rushdie, 1991; Sommer, 1993; Appadurai, 1995), embora, como ressalte Hannerz (1997, 15), “o que a metáfora do fluxo nos propõe é a tarefa de proble - ma tizar a cultura em termos processuais, não a permissão para desproblematizá- la, abstraindo suas complicações.” No entanto, a circularidade que apresenta o caso específico de Gabriela pode ser pensada, para além de um mero fractal da moderna lógica econômica (e midiática), como mais uma florescência dentro da paramnésica história luso- brasileira, marcada pelo que Bastide (1972) chamou, noutro contexto, de uma continuidade descontínua.

Referências ALMEIDA, M. V. de. (2000). Gabriela®, o ícone denso e tenso: raça, género e classe em Ilhéus, Bahia. I Simpósio Internacional O Desafio da Diferença. Programa Políticas da Cor — PPCOR, Obervatório Latino-Americano de Políticas Educacionais — OLPED. Disponível em: www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0198.pdf. Versão im - pressa em: ALMEIDA, M. V. de (2004). Gabriela®, o ícone denso e tenso na política da “raça”, género e classe em Ilhéus, Bahia. In: ALMEIDA, M. V. de (2004). Outros Destinos. Ensaios de Antropologia e Cidadania. Porto: Campo das Letras. 109-136. AMADO, J. (2000). Gabriela, Cravo e Canela. 83ª. ed. Rio de Janeiro, São Paulo. APPADURAI, A. (1995). The Production of Locality. In: FARDON, R. (ed.). (1995). Counter- works: Managing the Diversity of Knowledge. London: Routledge. 204-225. ARRIGHI, G. (2003). Globalização e Macrossociologia Histórica. Revista de Sociologia e Política, n. 20. P.13-23. BASTIDE, R. (1972). Sobre o romancista Jorge Amado. In: AMADO, J. (1972). Jorge Amado, povo e terra. São Paulo: Martins. 39-69. BATISTA Jr., P. N. (1997). A cortina de fumaça da “globalização”. Economia Aplicada, São Paulo, vol. 1, n. 2. 297 — 307. BORRALHO, L. e FORTES, M. (2002). Do Jardim do Éden às Terras de Vera Cruz. Episteme. N. 15. 71-93. BUARQUE de HOLLANDA, S. (1994 [1959]). Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e na colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense. BUARQUE de HOLLANDA, S. (1995a [1936]). Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras. BUARQUE de HOLLANDA, S. (1995b [1957]). Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Cia. das Letras. CARVALHO, J. M. de. (2000). The Edenic Motif in the Brazilian Social Imaginary. Revista Brasileira de Ciências Sociais. N. Especial 1. 111-128. 758 Roque Pinto

CARVALHO, J. M. de. (2006). Brasil, Brazil: sonhos e frustrações. Seminario de Historia Intelectual de America Latina — siglos XIX e XX. Colegio de México, D. C. CHAUÍ, M. (2000). Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. CORTESÃO, J. (1994). A Carta de Pero Vaz de Caminha. 3. ed., Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda. CUNHA, I. F. (2003). A Revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal. Cadernos Pagu, n. 21. P.39-73. CUNHA, I. F. (2004). Telenovela e Revolução: o ano de 1977 em Portugal. Lusotopie. 223-239. ELIAS, N. (1993). O processo civilizador — vol. 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ELIAS, N. (1994). O processo civilizador — vol. 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. FREYRE, G. (1998 [1933]). Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record. FRY, P (2005). A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. GALDINO, D. (2008). O Real Visto e a Matéria Imaginada: O Motivo edênico no Brasil quinhentista e oitocentista. Congresso Internacional “Do Brasil a Macau: Narrativas de Viagem e Espaços de Diáspora”. Universidade de Lisboa, 10 a 14 de setembro de 2008, Lisboa. HANNERZ, U. (1997). Fluxos, Fronteiras, Híbridos: palavras-chave da antropologia trans - nacional. Mana, 3(1), 7-39. HAVAS MEDIA/MEDIA PLANNING GROUP. (2004). Gabriela Cravo e Canela, 27 anos depois… (Análise da re-estréia de “Gabriela” em Portugal. 09/11/2004). Disponível em: www.havasmedia.pt/Documents/Public/Document/Gabriela.pdf HIRST, P., THOMPSON, G. (1998). Globalização em Questão: A Economia Interna cional e as Possiblidades de Governabilidade. Petrópolis: Vozes. IANNI, O. (1998). As Ciências Sociais na Época da Globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais,, vol.13, n. 37. 33-41. LASH, S., URRY, J. (1994). Economies of Signs and Space. London: Sage. LORENZEN, M., TÄUBE, F. A. (2008). Breakout from Bollywood? The roles of social networks and regulation in the evolution of Indian film industry. Journal of Inter national Management, n. 14. 286—299. MENDES, P. R. (2001). Baía dos Tigres. Lisboa: Sá Editora. MOURA, C. (1988). Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática. MOURA, M. (2001). Carnaval e Baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do carnaval de Salvador. Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Gabriela: esporos do Novo Mundo no Portugal contemporâneo 759

Pós-Gradu a ção em Comunicação e Culturas Contemporâneas da Faculdade de Comu - ni cação da Universidade Federal da Bahia, sob orientação do Prof. Dr. Antônio F. Guerreiro de Freitas. PESAVENTO, S. J. (2004). A Invenção Do Brasil: O Nascimento da Paisagem Brasileira sob o Olhar do Outro. Fênix, Revista de História e Estudos Culturais, Vol. 1, Ano 1, n. 12. PINTO, R. (2007). Informe de Campo n. 2. Proyecto Padrones actitudinales de gestores en el turismo en Ilhéus, Brasil. La Laguna, Tenerife: Universidad de La Laguna. RIBEIRO, J. U. (1984). Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. RUSHDIE, S. (1991). Imaginary Homelands. London: Granta. RTP. 20 anos RTP. Acesso em: http://www.rtp.pt/web/historiartp/1970/gabriela.htm SALVADOR, Frei Vicente do. (1982 [1627]). História do Brasil, 1500-1627. Belo Horizonte e São Paulo: Itatiaia/Edusp. SANTOS, B. de S. (1999). Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade. 5ª. ed. São Paulo: Cortez. SCHERER, A. (1997). Globalização. In: CATTANI, Antônio D. (org.). Trabalho e tecnolo gia: dicionário crítico. São Paulo: Vozes. 114-119. SILVA, M. J. (1995). Racismo à Brasileira: Raízes Históricas. São Paulo: Anita. SOMMER, D. (1993). Foundational Fictions: The national romances of Latin America. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press. SOUZA, L. de M. (1990). O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feiticaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Cia. das Letras. SKIDMORE, T (1994). O Brasil Visto de Fora. Rio de Janeiro: Paz e Terra. TORRES, E. C. (2001). Telenovela! Cravo! Canela!. Público. Acesso em: http://dossiers. publico.clix.pt/noticia.aspx?idCanal=345&id=70791 WEGNER, R. (2000). A Conquista do Oeste: A Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG.

IX

Travelling as requirement and instrument of labour — Forms of transhumance, conveyance and mobility around space-time in the making of science and of art

Introduction

re journeys affected by the perceptions and by the feelings of those who undertake them? Where is the obsessive eye of scientists located, when Athe measurement which they could finally obtain propels them in loco into the pursuit, the suspension or the hastening of other measurements which will not transform the place but which will become change with them? What guarantee does a leaf or a petal offer that in its mutability, foreseen or predictable, lays the confirmation that the species to which they belong may also grow in the antipodes of that exact place? Where do they have their origin? How many original locations have vanished from sight, while expecting yonder to return? As reflection, experience and discourse, scientific journeys have always allowed for considerable latitude, within which we can confirm that it is in the enhancement of the most common gestures that perdition and salvation merge and entwine to transform the fragility of the utmost progression of knowledge in space-time. Those who travel for scientific research, either able or unable to appeal to art in its very different modes and registers, re-invent with their investigative activity the place where they toil and are challenged by it to become fresh for themselves.

Anabela Mendes Departamento de Estudos Germanísticos Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Mobility in knowledge through translation in Medieval and Renaissance Europe

ANA MARIA BERNARDO Universidade Nova de Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

(0) Mobility in translation One often tends to conceive medieval and Renaissance translation activity by imagining a copyist patiently writing down a translated text in the quiet atmos phere of a convent’s scriptorium. However, this cliché blurs the circum - stances under which translation was mostly practised in medieval and Renaissance times, one of the main traces being precisely the opposite — an extreme mobility, not only in the spatial dimension, but at several relevant levels. In fact, if one looks for a common aspect to characterize translation in those periods, the concept of mobility fits the situation most appropriately, as it underlines all the motions involved in the translation, beginning with the quest for the source — text to be translated and ending with the intratextual combined structure of authorial writing, compilation, commentary, adaptation and translation in one. Taking all displacements involved in the translational activity into account, the interplay of spatial, interlingual and intercultural factors sounds familiar when compared with the present situation. Still, mobility in medieval and Renaissance translations implies further dimensions which convert its inter pre - tation into a more fascinating, and also more intriguing, subject. Indeed, a closer examination reveals that (1) the translator’s range of activities is much wider than the modern one, implying a diversified set of competences to be activated at different stages of the translation process; (2) knowledge itself goes through a geographical displacement, progressively moving from East to West; (3) source texts move, from copy to copy (where errors inevitably insinuate themselves), from hand to hand (as wedding presents or as plunder objects) and from language to language (often from a culture language to a vernacular, less developed one); (4) translators move from their homelands to other countries (in quest of important scientific works or in order to work at translation schools) and so do scholars to attend certain universities; (5) even intratextually, translations move (from the oral to the written mode and also accommodating commentaries and explanations for which no counterpart can be found in the source-text (if there is one still available); (6) translation as a discipline also moves, being claimed as a branch either of grammar, rhetoric or hermeneutics. The purpose of this paper is to partially unveil these different kinds of movement displayed by medieval translation activity, in order to reach a more complete picture of the intricacy of the translational phenomenon and the practical and civilizational consequences it had upon scientific knowledge and its subsequent evolution. 768 Ana Maria Bernardo

(1) The translator’s range of activities In medieval and Renaissance times, the translator’s competence had to be manifold and it would comprise scientific knowledge of the subject involved in the translation, source language competence and also target language competen - ce as a writer.But besides these three basic competences, the translator in those times had to accomplish other tasks and overcome other obstacles before he could devote himself to translation proper. Some difficulties in the circulation of translations would render the translator’s diversified tasks even more strenuous.1 Let us assume that the selection of the text to be translated had already been done by the sponsor or by the translator himself. Apart from searching for a specific text, sometimes in a distant land, the translator also had to check its authenticity and to assess the quality of the manuscript. Some translators would go in search of a better manuscript whenever they considered the present one as either useless or faulty, going so far as not to translate it. On other occasions, translators would criticise the shortcomings of the manuscripts, such as disor - dered chapters, abundance of foreign or technical terms, blaming the original author for this state of affairs and thus trying to discard their own responsibility as translators and textual co-writers. Then the translational task itself would demand further steps which involved the help of other people. Difficult passages had to be first deciphered and subse - quently commented upon. Sometimes a dragoman was called for, or an expert was asked to explain some terminological difficulty, or a collaborator with higher linguistic or technical domain of the source language or the scientific subject was invited to cooperate with the translator or the translators’ team. So even if a certain translation is attributed to a single translator, it can be assumed that in most cases it is the result of a team work that functioned in a comple men tary way, acting the translator as a kind of responsible supervisor of the whole process. Previous commentaries and earlier translations would be frequently consulted too. Also the revision of a translation could be undertaken by readers and not by the translators themselves.

(2) Translatio Studii Among the most intricate issues researchers are confronted with when trying to unveil the history of human thought is the problem of knowledge transmission. The restoration of the chain of cultural interchanges being hardly possible to retrace (a myth?), one is left with elements that help reconstruct the contexts in which knowledge exchanges took place and the circumstances that may have

1 A further reason for the delay in the dissemination of translations may be ascribed to some translators themselves, as they would retain their translations over many years before they would decide to bring them out. Mobility in knowledge through translation in Medieval and Renaissance Europe 769

favoured or hindered those exchanges when different cultures came in contact with one another and were willing to accommodate new knowledge, putting antagonism aside and initiating an assimilation process.This is particularly true of the western scientific tradition which has drawn on Eastern knowledge to significantly enlarge its corpus. In this agglutination process translational activities, together with similar enterprises such as compilation and authorial writing, play a crucial role. However, we are faced with a major drawback in the reconstruction of significant stages in this interchange course: Greece, one of the central interfaces of intellectual endeavour between East and West, has mostly practised implicit translation, i.e., the assimilation process has followed directly from the foreign sources into Greek by means of a mental translation and straight appropriative rewording in Greek, with no written fixation of the translation as such. As a consequence of this Hellenization process, the assimilated knowledge seemed to be a native one. Paradoxically, many Greek authors are known to us nowadays not directly through their own texts but only indirectly through Arabic translations where the access to the auctoritates was guaranteed and their heritage preserved and carried on. In general, translation practice was guided according to two major criteria: utilitas (pragmatic usefulness of the translated works, grounded on their scientific value or in their educational importance in the political and moral upbringing of the ruling classes) and auctoritas (validation of the new means of expression — vernacular languages instead of Latin as the only scientific language accepted, and also sanction of the new knowledge transmitted by relying on the authority of the source authors). The topic of Translatio Studii bears a ponderous significance in our discussion as the two meanings of transladare are present in the phenomenon it tries to capture: both the spatial displacement of knowledge from East to West — from India to Babylon, from Babylon to Egypt, from Egypt to Greece and from Greece to Rome and the Roman Empire — often supplemented by a linguistic change involving code-switching (translation).2

2 Apparently, the origin of the expression goes back to Hugues de Saint-Victor, who taught in Paris. Among his students, Otto von Freising, uncle of Frederick Barbarossa, in his Historia de Duabus Civitatibus (middle of 12th century), draws the analogy between the imperial and the cultural movements more extensively: “potentiae seu sapientiae ab Oriente ad Occidentem translatio”. Similarly to what happened in the translatio imperii, according to which the empire would survive despite all historical mutations, staying basically the same in spite of inevitable renewals, so the migration of knowledge would have been gradually accomplished from the East towards the West, being ultimately moulded by the local culture. 770 Ana Maria Bernardo

Chrétien de Troyes is ascertained the major role both in the vulgarizition of the topos of translation studii, and in the extension of knowledge from Rome to Paris.3 What had seemed to have been a steady, straightforward movement of erudition towards the West up to the Roman Empire, evolved in the medieval and Renaissance periods into a more complex map of dislocations. In it cen tripetal and centrifugal movements around knowledge centres can be traced, such as universities — (1119), Paris (1150), Oxford (1163) — on one hand, and translation schools (Baghdad, Toledo, Sicily), on the other. These centres function as irradiation points, apparently consolidating both political and intellectual structures simultaneously.

(3) Ptolemy’s Almagest, Damião de Góis, Pedro Nunes and Ferreira de Almeida In this section, different kinds of reasons are brought forward to explain the diversity of movements source texts, later submitted to translation, were exposed to. To illustrate them, there follows a close examination of (a) Ptolemy’s Almagest, (b) Damião de Góis’s translation of Ecclesiastes, (c) Pedro Nunes’s self- translation of the Tratado da Esfera and (d) João Ferreira de Almeida’s Bible Translation into Portuguese. Dating from the middle of the second century AD, Ptolemy’s Almagest was the most famous medieval astronomical opus, eagerly searched after. It embodies a brilliant synthesis of the previous astronomical knowledge Ptolemy could compile, together with his own proposals.4 However, this sort of compilation raises a hermeneutic problem, as it is almost impossible to set apart what kind of astronomical knowledge was already available before Ptolemy and where exactly lies his own contribution to the field. In the reception of the Almagest, as far as translations are implied, three

3 See the prologue of Chrétien’s oeuvre Cligès, c. 1162 (or 1170). Apud Jongkees, A. G. 1967. Charlemagne, who had moved the centre of knowledge from Rome to Paris, had managed to attract many scholars to France (as it was the case with Alcuin, coming from England to renew the monasteric literacy. The insistence on the topic of Translatio Studii aimed at justifying the pre-eminence of the University of Paris in the intellectual western scene, thus trying to ground the excellence of the new acquired knowledge and the stylistic develop ments in the vernacular languages on the authority of the Greek and Latin sources.(Lusignan 312-315). 4 Indeed, it was so brilliant that the original title Hē mathēmatikē syntaxis (The Mathematical Collection) was replaced by scholars as the most excellent one (Al- magest, a blending form of Arabic and Hebrew), a designation that imposed itself up to our time. Mobility in knowledge through translation in Medieval and Renaissance Europe 771

important landmarks can be pointed out which reveal different approaches to the translation of scientific texts in quite different contexts: a Syriac version (6th cen tury), several Arabic ones (9th century) and a Latin one by Gerard of Cremona in the 12th century. The strategies revealed in these translations correlate with diver gent roles attributed either to the readers or to the source-text. The former would imply a more loose translation, in order to satisfy the communicative needs of the readers more easily, whereas the latter would consider the authority of the source-text paramount and therefore adopt a more literal procedure. The Syriac version illustrates the former tendency, whereas in Baghdad the latter was preferred.5 It is worth considering the assimilation process that took place in the East between the fifth and the ninth centuries, as it unveils a peculiar and sympto - matic balance and interchange that drifts into a reverse situation, both from a linguistic and from a cultural point of view, revealing how the Hellenization was carried out. Linguistically speaking, Syriac soon surpassed its status as a mere Aramaic dialect and broadened its influence as an effective means of daily com - munication. Partly due to the imitation of Greek patterns, Syriac had developed both lexically and syntactically into a culture language, whereas Greek still continued to be the language of public administration and knowledge. Then a further step in the evolution of Syriac was accomplished by the apprehension of the contents of Greek scientific texts by means of their commentaries and trans - lation, at first denoting a freer, creative strategy (having the receptor in mind), later on adopting a strict literal one (more concerned with the original texts). In the 6th century, the bilingual situation of Greek and Syriac as literary languages gave way to an inverse situation: Greek began declining under Islamic pressure, while Syriac went on flourishing, reaching a point where it could exert an influ - ence back upon Greek. Under such circumstances the Almagest was rewritten (i.e., translated) into Syriac for pragmatic reasons, in order to be more easily understandable and taught (Montgomery 62-68). A second important moment in the Almagest’s tradition occurs in the ninth century, at the House of Wisdom in Baghdad. At the instance of caliph al-Rashid (766-809), two translations into Arabic were undertaken, the first, not so successful one by Vezir Jahja being superseded by a second more satisfactory one by Abu Hazan and Salmus. Still in the 9th century, and likewise within the

5 As Rome and Byzantium were more concerned with the transcription of the Greek texts for the sake of their preservation rather than in the transmission of Greek knowledge as a whole, it was due to the expansion of Christianity towards the East, in the sequence of religious persecutions, that Greek knowledge was carried along with it towards Syria and Iraq, where it was first kept in Greek and later translated into Syriac. (Montgomery 60-65) 772 Ana Maria Bernardo

activity of the Translation School of Baghdad, two further translations of the Almagest were brought to the fore: one done by Hunayn Ibn Ishaq (809-873), also known as Johannitius, and the best paid translator of his time6 and the other one by al-Batani (c. 880-928), who ventured a new translation that became famous and that served as a foil for Gerard of Cremona’s Latin translation, accomplished at the Translation School of Toledo in 1175. Thus a third and definite landmark in the tradition of the translations of Almagest was achieved, setting the ground for the scientific prevalence of the geocentric conception of the universe over fourteen centuries in Western culture. Gerard of Cremona’s errand also illustrates how disoriented a translator’s search for a text could be. Having left and setting out for Toledo in order to look for his most beloved text, Ptolemy’s Almagest, he unknowingly moved away from a Greek manuscript of that opus, which had been brought by the ambassa dors of the Norman King William I in 1158. Two years later, a Latin trans - lation of this Greek version appeared in Sicily, when Gerard of Cremona already was in Toledo. Many other translations and copies of the Almagest may have circulated in Europe, permeated by mistakes due to the copyists’ lack of attention and under - standing of the Arabic names of constellations, stars and other astronomic terms. Only by the end of the 15th century was the first print of the Almagest published in Venice, which does not necessarily preclude the removal of all inconsistencies that had infiltrated the text either. In the case of two Portuguese authors, Damião de Góis (1502 -1574) and Pedro Nunes (1502-1578), there are quite different causes for the mobility of their translations.7 In the first case, Damião de Góis, supporter of the Reformation and a friend of Erasmus’s, by whom he lived for a while, wished to avoid any overt conflict with the Inquisition, and therefore took some precautions as to his translation of the Ecclesiastes. It was printed in Venice, by a friend of him (Stevão Sábio) and it was attached to another text, which was bound first, and without any mention ing of the translator’s name. This strategic self-defensive move helps to

6 As translations were paid literally at gold’s weight, Hunayn would write using thicker sheets of paper and majoring his calligraphy, which not only brought him a much better pay, but also had the advantage of preserving the manuscripts up to the present (Baker 320). 7 The texts at stake here are Damião de Góis’s translation of Ecclesiastes, published in Venice in 1538 and only quite recently discovered, and Pedro Nunes’s writing activities, which included a self-translation of his Libro de Algebra into Spanish (1564) and also a translation of the first book of Ptolemy’s Geography, inserted in Pedro Nunes’s Treaty of the Sphere (1537), together with an original text in Portuguese. Mobility in knowledge through translation in Medieval and Renaissance Europe 773

explain why this translation and its authorship were not discovered until recently in Oxford by T. F. Earl (2002). Pedro Nunes’s motivations are quite different in nature. Sixteen years before the annexation of Portugal by , in 1564, Pedro Nunes undertook himself the translation of one of his scientific works previously written in Portuguese in order to allow the access to his opus to Spaniards interested in algebra. By assuming that scientific wording is not particularly attached to any language in particular, thus dismissing the taken for granted supremacy of Latin as the one and only scientific language and taking the vernacular as an equally appropriate vehicle of communication, Pedro Nunes claims that a translation into Spanish would guarantee a greater diffusion of his work in Spain.

(4)Translation Schools 8 The first example of a translation school practised in a systematic way and at a large scale is to be found in 9th century Baghdad. This Golden Age of trans - lation was stimulated by the caliphs.9 A body of over sixty Islamic scholars, often belonging to the same family, would gather all major scientific texts (astronomy, medicine, mathematics, philosophy, logic, chemistry, politics), written in Sanskrit, Persian, Aramaic, Greek, or Syriac and would translate them into Arabic. The written fixation of the translated text was the last step in a chain of activi ties that had to be performed by the translators. Previously to this phase, texts were analysed closely, existing comments on them read and obscure passages discussed thoroughly and in group. Sometimes the caliph himself participated in the debate. Whenever any scientific doubts arose that could not be removed after this process, the opinion of an expert on the subject was called upon. Translators would wait for the answer before they could write the translation down, often incorporating the expert’s explanation, as well as other commentary considered relevant, into the translation itself. From a civilizational point of view, this achievement is cardinal for the evolution of science in the Western world. The most advanced scientific knowledge was compiled10 and kept alive through translation and it could be further developed.

8 First of all, the meaning of school in medieval times asks for a clarification, as it is not to be confounded with the modern concept derived from it. It used to designate a place where people who shared the same occupation came together in order to accomplish their activity, regardless of their upbringing, cultural background, national origin or religious belief. 9 Mainly by al-Mansur (c. 710-775) and al-Mamun (813-883). 10 One must not forget that many Greek texts are known to us today only through these Arabic versions, as the originals are lost. 774 Ana Maria Bernardo

The Islamic influence that was exerted upon the Iberian Peninsula led to the creation of a caliphate of Córdova (929-1031), where the heritage of knowl edge and wisdom was preserved till the disintegration of the caliphate due to intestine struggles and the displacement of the rich library from Córdova to Toledo. A further incitement came from the abbey of Cluny, through the recommendation of Peter the Venerable (c. 1092-1156).11 Out of this impulse and the political and cultural background, the Translation School of Toledo was launched. Under the aegis of Raymond and his followers, a civilizational enrichment and renewal was settled that would set the ground for the modern scientific development. Thus, in the 11th and 12th century, the Translation School of Toledo accom - plished the important task of translating the Arabic scientific legacy both into Latin and into Spanish. There too, more or less the same characteristics are found. Translators that worked in Toledo, this time coming from different countries in Europe,12 mostly scholars and mastering more than one language, would work together, with the help of Hebrew interpreters, who would sight-translate the Arabic text orally, and clergyman who knew Latin who would put into Latin words (and later into Spanish too) what they had just heard.13 In Sicily, around a plurilingual court in Palermo (Arabic, Greek and Latin), it is no wonder that another translation school flourishes. Due to its geographic situation, Sicily was at the crossroad of many civilizations (Hellenistic, Christian, Arabic). In the 10th century, Palermo was a vital Islamic cultural centre in the

11 In fact, Peter the Venerable set a curious chain of relevant transmission into movement. By claiming the use of knowledge to fight against Islam in its own grounds, he defended the translation of the Koran into Latin should be undertaken. When visiting several Spanish monasteries that were under the supervision of Cluny in order to raise some funds and to renew their organization, Peter the Venerable had a providential encounter with Raymond de Sauvetat, Archbishop of Toledo. 12 The names through which the translators of this School became known reveal their origin: Michael Scott, Adelard of Bath, Daniel of Morley, Robert of Chester, Hermann of Dalmatia, Plato of Tivoli and also some scholars from Toledo like Marc of Toledo or Domingo Gundisalvo, or from other Spanish towns like John of Seville, and the most prolific Gerard of Cremona. Both Michael Scott and Gerard of Cremona later emigrated to the translation school of Sicily. 13 Particularly interesting is the fact that in the 11yh century the major effort in Toledo was set upon assimilation of Greek and Arabic knowledge into Latin and romance, whereas in the following century the emphasis lay in the dissemination of acquired knowledge and the ratification of the textual status (translations considered as originals). Consequently, the efforts of King Alfonso the Wise (1221-1284) in ordering new translations of texts in romance into Latin or French, new translations into romance to replace previous unsatisfactory ones or even revised and amended translations that appear as originals. (Foz 29 and Delisle/ Woodsworth 135-136.] Mobility in knowledge through translation in Medieval and Renaissance Europe 775

West that remained active even after the Norman Conquest. The importance of the translational activity of the School of Sicily can be pinpointed at three different levels: at the cultural level, assimilating both Greek philosophy and Arabic science, at the literary level, introducing new poetic forms, and at the linguistic level, launching the development of the Italian dialects.14 Unfortunately, only a few details are known to us as far as the criteria of attribution of a particular task to a certain translator are concerned, as well as about the criteria of selection of texts to be translated and the translators com - missioned to translate them in translation schools. Still, some revealing aspects can be traced. Most translators were plurilingual, some of them were scholars. These prerequisites meant they had some previous training in hermeneutic skills and/or in scientific knowledge. Also oral translation, interpretation and discussion occupied an extended phase of the translational activity before establishing the final written version. The tasks of translating and writing down the translation were performed by at least two different persons.15 Sometimes the translation was done into several target languages, as in Toledo, both into Latin and into the vernacular, or in Sicily into Latin, French and the local Italian dialect.

(5)Interdisciplinarity of medieval translation The medieval and Renaissance translation practice can be considered to move itself upon two axes which are best illustrated by the language pairs that functioned as source and target languages, respectively: horizontally, with dislocation in space and time, from Arabic or Greek into Latin — a movement among highly developed languages, although Latin had to refine itself on the

14 In the second half of the 12th century, in the first generation of the School under William I (1154-1166), two major names arise: Aristipo of Catania, who translated Plato and Aristoteles, and also brought Ptolemy’s Almagest from Constantinople with him, and Eugene of Sicily, a trilingual scholar and mathematician who translated Ptolemy’s Optics, among other works into and from Arabic, Latin and Greek. Under Friederich II von Hohenstauffen (1197-1250), many scientific texts are translated. The most famous translators working there are John of Palermo, Michael Scot, who divulged Aristotle and Avicenna in the West, and Theodor of Anthiochy, who corresponded with Fibonacci. Finally, in the second half of the 13th and first half of the 14th centuries, under the dynasty of Anjou, a programme of scientific translations by Jewish scholars, who are considered to be more interested in Latin texts and also more skilful in the domain of Latin, is undertaken. 15 The Portuguese King D. Duarte, in the last precept of his short method of translation (Da maneira para bem tornar alguma leitura em nossa linguagem), chapter 99 in Leal Conselheiro (1437) advises that it is more suitable that both tasks be performed by the same person. See Pinilla / Sánchez 163-164. 776 Ana Maria Bernardo

terminological and stylistic grounds — and vertically, between a culturally mature language (Arabic and Greek) and an incipiently developed vernacular (French, Spanish, German, Italian, Portuguese), thus challenging the almost exclusive supremacy of Latin as scientific language. Being practised both as a grammatical and a rhetorical exercise, translation was kept as a non- autonomous branch under the two disciplines, a situation which was going to last for many more centuries.

(6) Concluding remarks Translational activity in the Middle Ages and the Renaissance stands under the sign of mobility: knowledge moves westwards, texts move from hand to hand, are copied, reconstructed, sometimes falsified, translators travel around in search of specific source texts, translation schools gather scholars from different origins and cultural backgrounds.Even intratextually, different kinds of movement can be detected: between oral and written production, on one side, and between different textual practices (paraphrase, commentary, translation proper, adapta - tion), on the other. Authorship as an individual output was secondary, if not irrelevant. In fact, many translations are anonymous, either deliberately concealed for ideological reasons (as in the case of Damião de Góis) or just out of neglect, and many others are the result of team work (as in the translation schools). But if the trans lator’s name is not important, in comparison his power over the text to be translated is enormous. Being very often an expert on the subject dealt in the text, the translator’s hermeneutic and linguistic abilities were backed up by declarative knowledge, which made his work easier. The weight of rhetorical, hermeneutic and grammatical issues in the scholars’ general upbringing induced a compound mixture of textual practices that reached from compilation from different sources up to imbedded com mentaries and translation proper. This generalized practice defies the commonly accepted cliché literal vs. free translation which often coalesced in the same translated text. A highly loose treatment of the textual material at hand seems to prevail, according to the scientific, religious or literary needs of both transla tion sponsors and the envisaged public as well. Authorial and textual freedom ensued creativity in translational activity but simultaneously they blurred the traces between specific textual activities as we know them today. The translator’s autonomy, either practised consciously or simply following the prevailing norms, was very similar to that of an author and was practised under the same conventions. Publication abroad, omission of the translator’s name and joint edition with another work were applied as defensive strategies against censorship.Very often, Mobility in knowledge through translation in Medieval and Renaissance Europe 777

the intermingled activities of writer, translator and compiler were united in one and the same person, which endowed the same degree of freedom as to the treatment both of textual content and of its formal aspects, making it impossible to set apart what was translated or created anew (as in the cases of Ptolemy or Chaucer).Also the fact that most vernacular languages were striving for a certain autonomy from Latin and were developing a semantic and syntactic structure of their own would urge authors to elaborate new linguistic devices unrestrictedly, according to the communicative and stylistic needs involved, either by means of imitation (literal translation) of the source texts that served as models, or by free creation of yet unexplored possibilities. As a result of these favourable circumstances in which translation plays a determinant role, scientific knowledge could be compiled, disseminated, enriched and widespread not only among scholars but also made available to growing enlarged audiences, thus launching an unprecedented scientific evolution that has shaped our modern age till today.

Bibliography Baker, M. (ed.), Routledge Encyclopedia of Translation Studies. London, Routledge, 1998. Bresc, H. / Bresc-Bautier, G. (eds.), Palerme 1070-1492. Mosaïque de peuples, nation rebelle; la naissance violente de l’identité sicilienne. Paris, Editions Autrement, 1993. Contamine, G. (ed.) Traduction et Traducteurs au Moyen Âge. Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, 1989. Copeland, R., Rhetoric, Hermeneutics and Translation in the Middle Ages. Academic Traditions and Vernacular Texts. Cambridge, Cambridge University Press, 1995. Delisle, J./ Woodsworth, J. (eds.), Translators through History. Amsterdam, John Benjamins, 1995. Foz, C., Le Traducteur, l’Eglise et le Roi (Espagne, XIIe et XIIIe siècle). Ottawa, Artois Presses Université/ Les Presses de l’Université d’Ottawa, 1998. Jongkees, A. G., Translatio Studii: les avatars d’un thème medieval. In: Miscellanea Mediaevalis, Groningue, 1967:41-51. Kelly, L. G., The True Interpreter. A History of Translation Theory and Practice in the West. New York, St. Martin’s Press, 1979. Le Goff, J., Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa, Estúdios Cor, Lisboa, [1973]. Lusignan, S., Le topique de la Translatio Studii et les traductions françaises de texts savants au XIVe siècle. In: Contamine 1989:303-315. Montgomery, S. L., Science in Translation. Movements of Knowledge through Cultures and Time. Chicago and London, The University of Chicago Press, 2000. 778 Ana Maria Bernardo

Pinilla, J. A. S./ Sánchez, M.M.F., O Discurso sobre a Tradução em Portugal. O Proveito, o Ensino e a Crítica. Antologia (c.1429-1818). Lisboa, Colibri, 1998. Rashed, R., Les Traducteurs. In: Bresc, H. / Bresc-Bautier, G. (eds.), 1993:110-117. Rotschild, J.-P., Motivations et methods des traductions en hébreu du milieu du XIIe à la fin du Xve siècle. In: Contamine 1989:279-302. Sirat, C., Les traducteurs juifs à la cour des rois de Sicile et de Naples. In: Contamine, 1989:169-192. Yebra, V. G., Traducción: Historia y Teoria. Madrid, Gredos, 1994. Neptuno contra Vulcano? Representação estética e geognósica em Johann Wolfgang von Goethe e Alexander von Humboldt

ANABELA MENDES Universidade de Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

“(...) o limite terá de se transformar em limiar do desconhecido para que das profundezas o homem receba o novo alento.” Filomena Molder, O absoluto que pertence à Terra, p. 138.

1. A nossa viagem compraz-se daquelas muitas viagens projectadas, e depois levadas a cabo, primeiro por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e, a seu tempo, por Alexander von Humboldt (1759-1869). Nem um nem o outro natura - lista criou desvio particular nas rotas escolhidas em anterior circunstância, para se fazer a lugares nascentes e perecentes de matéria vulcânica ininterrupta ou em adormecimento. A evidência antecipadamente conhecida da presença dessas manifestações estruturais da natureza, dos seus particulares comportamentos, embora e sempre surpreendentes, não se coadunava com a hipótese de uma casual passagem por espaço de vizinhança dessas edificações, e era também improvável que alguma vez esse aproximar-se de vulcões activos, adormecidos ou extintos pudesse converter-se numa experiência não antes desejada. Entre a Europa e a América do Sul, e do século XVIII para o século XIX, estes dois naturalistas vivenciaram de muito perto, por vezes com indomado fervor, o que o Planeta transporta nas suas entranhas. No espaço da coincidência geológica (por exemplo, o siciliano vulcão Etna, o napolitano Vesúvio) ou na respectiva diversificação territorial e continental (a rota dos vulcões andinos para Alexander von Humboldt; o vulcão Kammerberg, na região noroeste da Boémia, para Goethe), ambos recorreram ao exercício e prova de observação individualizada, em muitos casos com regressos e novos ques tionamentos, para que a operatividade e resultados da experiência pudes - sem ser tão bem comprovados quanto possível perante a comunidade científica do seu tempo, posta ao rubro por discussões e teorizações em torno de uma interrogação basilar: qual a origem dos vulcões? A disputa em torno da origem dos vulcões, a partir da segunda metade do século XVIII e durante as primeiras décadas do séc. XIX, centrou-se especifica - 782 Anabela Mendes

mente no antagonismo entre neptunistas e vulcanistas, estes últimos também chama dos de plutonistas. O neptunismo defendia o ponto de vista de que todas as formações rochosas, sem excepção, resultavam de precipitações químicas e mecânicas a partir de um oceano primordial. O mais acérrimo defensor desta posição na Alemanha, que nunca chegou a ver um vulcão em actividade, foi Abraham Gottlob Werner (1749-1817), decano de mineralogia na Academia de Minas de Freiberg. Os seus ensinamentos influenciaram os estudos geognósicos de Goethe e Humboldt. Entre os vulcanistas mais fervorosos, encontrava-se Johann Karl Wilhelm Voigt (1752-1821), amigo de Goethe e de Humboldt, e que foi discípulo de Werner em Freiberg. A partir das muitas observações geológicas realizadas no terreno, Voigt altera a posição teórica que o ligava ao seu mestre. Inspirado pelos estu - dos do geólogo e vulcanista escocês James Hutton (1726-1797), cuja con vic ção era a de que todas as formações rochosas se constituiriam a partir da acção de fonte calórica e que esta provinha do centro da Terra, Voigt adere ao vul canismo para explicar a génese e recorrência de fenómenos que carac te rizam a actividade vulcânica. O debate entre estas duas correntes prolongou-se entre 1790 e 1830 no seio da comunidade científica europeia. (Engelhardt 164-168; Horn 79-80)

2. Como quem começa do zero, e sempre lutando contra aquela impossibi li - dade de difícil ultrapassagem, que se interpõe entre o pensamento e o discurso conceptuais dos que se ocupam destas questões, mais em laboratório e menos em viagem no terreno, Goethe e Humboldt inscrevem-se no plano daqueles que fazem ciência, conscientes de que o lugar onde pretendem chegar é ele próprio uma indeterminação. E é não só enquanto factor condicionante mas também como movimento propulsor que essa indeterminação marca o campo de acção do viajante e simul - taneamente o projecto científico do investigador. Fazer ciência em viagem foi apanágio dos nossos dois naturalistas. Para além disso, a especificidade con creta do sentido da indeterminação torna evidente que o encontro entre homem e natureza — os vulcões são um bom exemplo de autenticidade, respeito e desa - fio — se faz de diferentes velocidades e entendimentos, tal como acontece com a Terra e os seus movimentos próprios. Estará um vulcão à espera de quem viaja? Preferirá ele a presença do cientista à do camponês? Como poderá uma monta - nha ardente negar-se à chegada de um simples turista com “vista do vulcão X” inscrita no seu pacote de viagens? A rugosidade do caminhar sobre um vulcão, sob nuvens de finíssima poeira escura que se soltam à passagem do viajante e que dele logo fazem receptáculo do negro pó, o aproximar-se de uma entrada-cratera que foi ou é, ainda e também, a saída de incandescente matéria da Terra que ferve sem fim à vista, Neptuno contra Vulcano? Representação estética e geognósica em Goethe e Humboldt 783

© A.M., Vulcão Etna, Junho de 2008.

© A.M., Etna, Junho de 2008. 784 Anabela Mendes

podem ser experiências que desencadeiam extasiáticas sensações, naquele que com tal paisagem inóspita se sente comungante. A vontade de ir tão longe quan - to possível ou de ali ficar esquecido de tudo e de todos, sustentam a para doxal emoção de que um prazer pode conter em si um desamparo, não se confundin - do um com o outro nem nenhum deles podendo ser evitado, porque no exacto momento em que tudo começa, também tomamos consciência de que todo e qualquer movimento observado se sobrepõe àquele que existe há muito tempo e do qual nem suspeitamos quando e como chegará a um termo.

© A.M., Etna, Junho de 2008.

Num percurso de ciência em campo, que poderá começar assim ou de uma outra forma qualquer, e em que aquilo que se pretende construir depende de um processo que enfrenta e confronta de muito longe o observador, e lhe oculta muito, ou quase tudo, daquilo que ele entende que gostaria de saber, existem sempre formas ritualizadas, próprias e singulares, que transformam sofrimento em êxtase, que transmitem resistência ao corpo e ao espírito, mesmo que seja a dor o seu alimento, e que jamais poderemos conhecer, de facto, a não ser que nos tornemos experimentadores, que nos entreguemos ao convívio vulcânico. Neptuno contra Vulcano? Representação estética e geognósica em Goethe e Humboldt 785

© A.M., Etna, Junho de 2008.

3. As nossas inspirações provêm da escrita e da imagem visual que Johann Wolfgang von Goethe e Alexander von Humboldt nos legaram. Através delas (diá - rios e cartas, ensaios, narrativa literária, desenhos e esboços) acompa nha re mos como cada um foi cientista-viajante, ficando sozinho com um segredo ínti mo, aquele que acolhia as dúvidas entre os princípios teóricos e a expe riência de campo. Ambos experimentaram diferentes modos de ficar a meio-caminho entre o infinitamente fundo e invisível e aquela quase inalcançável mas visível alti tude das magníficas formações rochosas que escalaram, ou sobre as quais caminharam. Parece hoje mais evidente, do que era no séc. XIX, que os avanços da geog - no sia (aquele estudo a que Abraham Gottlob Werner se dedicou, e que se ocupava das estratificações do planeta e ensaiava leitura a partir de fósseis e rochas em camadas) e, em particular, da vulcanologia, pressupunham que onde quer que se colocassem os viajantes-investigadores, e independentemente do exacto lugar onde tivessem início a observação dos objectos e outros procedi mentos, esse diálogo com o mundo das profundezas da Terra era em si uma impossibilidade de traçar um limite preciso à realização da actividade enquanto fim. Nesta perspec - tiva, Goethe e Humboldt viveram a natureza com inquietação e alegria, e porque assim o fizeram, o estudo de vulcões transformou-se numa prática desafiadora enquanto acção realizada em plenitude. 786 Anabela Mendes

O facto de as respectivas concepções geognósicas dominantes, em parti cu - lar, no que diz respeito à origem dos vulcões, ora convergirem ora se mostrarem diversas na óptica dos dois naturalistas, não nos surpreende, se pensarmos que Goethe, alheio mas não alheado do debate que inflamava os geólogos e mine - ralogistas do seu tempo, exprimiu muitas vezes a necessidade de vir a conciliar neptunismo e vulcanismo, porque de ambas as teorias recolhia proveito. A experiência in loco proporcionada pela sua viagem a Itália, entre Se tembro de 1786 e Junho de 1788, durante a qual vivenciara a actividade dos grandes vulcões Vesúvio, Stromboli e Etna, contribuiu para que o poeta-cientista chegasse a considerar criar ele próprio uma teoria de apaziguamento, baseada na obser - vação de que em Itália a lava proveniente das erupções vulcânicas se encontrava sempre perto do mar. Desta forma, pretendia Goethe justificar a possível compa - ti bilidade entre os horizontes de Neptuno e os de Vulcano, consi derando até que as formações basálticas eram, do seu ponto de vista, semelhantes à lava e não passavam de sedimentos oriundos de um quente e proceloso oceano primordial. Num brevíssimo apontamento do seu espólio (Goethe, 1947: 37-38), inserido hoje na edição Leopoldina, sem data, e intitulado Vergleichs Vorschläge die Vulkanier und Neptunier über die Entstehung des Basalts zu vereinigen (Pro- postas comparativas para aproximação de vulcanistas e neptunianos sobre a formação do basalto), Goethe explica que no fundo dos oceanos, a existir matéria em ininterrupta sedimentação, esse fenómeno não seria impeditivo de que na sua vizinhança pudessem também ter origem erupções vulcânicas. Lava e basalto, semelhantes na sua aparência, irmanar-se-iam, segundo o autor, na ardência das profundezas da Terra ou, expresso o seu pensamento de uma maneira empírico-diplomática, criava-se a possibilidade de estabelecer nexo entre a experiência vulcanológica italiana e o estudo de formações basálticas na Alemanha central a que Goethe dedicou obra (Goethe 91982 252-253; 258-270). De um modo muito peculiar, Goethe recuperava a ideia, de que no processo de formação da Terra, a violência eruptiva de magmas e escórias provenientes do seu âmago, jamais poderia impedir a prossecução em contínuo dos movi mento do planeta e deste no Universo. A procura de relações harmónicas no seio da Natureza, como desígnio úl ti - mo e metáfora orgânica da própria existência humana, preservada a assumpção do diverso e do complementar, continha em si a mais proteica correspon dência entre distância e proximidade, explicitada no diálogo com as coisas, com os fenó - me nos, com os seres. Neste sentido, Goethe parecia fazer valer mais o coração do que a razão, naquilo que a experiência intensificante partilhava com a inde - ter minação. Aguarelar e desenhar foram para o nosso cientista-poeta actividades tão ins - piradoras quanto frustrantes. Sempre rodeado de bons mestres (Johann Heinrich Neptuno contra Vulcano? Representação estética e geognósica em Goethe e Humboldt 787

Johann Wolfgang Goethe, Etna, 1787.

Wilhelm Tischbein, Christoph Heinrich Kniep, Angelika Kaufmann) Goethe não se viria a notabilizar como artista plástico. Já a sua Farbenlehre (Teoria das Cores), publicada em 1810, atravessou gerações e entusiasmou mui tís simo pintores como Caspar David Friedrich, Wassily Kandinsky ou Paul Klee. Talvez que a importância de fixar imagem plástica tivesse para Goethe um objectivo mais prático e imediato, enquadrado em outras actividades como a investigação científica ou a representação técnica. Durante a sua viagem italiana, como em outras ocasiões, Goethe exercitou esboço, rascunho, aguarela para rememoração própria, para com a imagem escre ver obra literária, para efabular junto da corte de Weimar e dos amigos, sem preconceito nem sentimento menor. A representação dos seus vulcões é espon tânea, essencial. 788 Anabela Mendes

Johann Wolfgang von Goethe, Stromboli, 1787.

4. Ao tornar-se cientista e viajante, Alexander von Humboldt mostrou a convic - ção de alguém que se entregava a uma travessia que não ia conhecer fim. Afecto por formação e actividade profissional, como engenheiro de minas, aos prin cípios vulcanistas, ele manteve sempre em latência muitos dos ensinamen tos neptu - nistas que o faziam interrogar-se quando a experiência no terreno assim o exigia. Tal aconteceu, por exemplo, quando Humboldt decidiu fazer medições de campo aos quatro vulcões Popocatépetl, Iztaccihuatl, Pico d’Orizaba e Cofre de Perote situados no México. A sua viagem pelo continente centro e sul ame ricano (1799- 1804), sempre acompanhado pelo botânico e médico francês Aimé Bonpland (1773-1858), aproximava-se da derradeira parte antes do regresso à Europa. Para trás ficavam inúmeras escaladas aos vários vulcões da cordilheira andina, como a subida ao Chimborazo (6.267 m) ou ao Cotopaxi (5.897 m). A estadia no México decorreu entre Março de 1803 e Março de 1804. Du ran - te este período, Humboldt ocupou uma boa parte do seu tempo a obser var, de diferentes pontos de vista, a fisionomia e a imponência daquelas montanhas cobertas de neve quase eterna, com o objectivo de poder servir a Geografia e a Ciência da Navegação. No seu diário de viagem, designado por Von Méxicostadt nach Veracruz (Da cidade do México a Vera Cruz), o investigador regista a propósito do vulcão Cofre de Perote as seguintes cogitações: Autour de Perotte et plus à l’ est jusqu’au-delà de Río frío (Bar[omètre] 256li p. 28) toute la plaine et partie du bois de sapins est couverte d’ une Couche énorme de Pierre ponce Bimstein en morceaux de ¼ — 3 pouces. On voit que les eaux ont déposé cette p[ierre] ponce telle qu’a Andernach, elle forme des bancs horizontaux divisés par l’ argille. On voit ces couches de P[ierre] ponce depuis la surface de la Vallée de Perote jusqu’ au déclive Neptuno contra Vulcano? Representação estética e geognósica em Goethe e Humboldt 789

sept[entrionale] et occid[entale] de Cofre à Bar[omètre] 250,5. Ces cou - ches ont donc en ad au moins 70 t d’ épaisseur visible et qui sait combien elles pénètrent dans l’ intéreur de la terre. Au Coffre au dessus du point A (à 250,5) on n’ en trouve plus un atome desorte qu’il n’ y a pas de doute que cette p[ierre] ponce n’ a rien de commun avec le Cofre mais qu’elle a été transporté par les eaux qui couvraient la Vallée de Perotte cb jusqu’ a cette hauteur. Aussi le Cofre est une montagne de Porphyre sans Mandelstein, sans formations poreuses, sans p[ierre] ponce qui indique rien rien de Volcanique! (Humboldt 117)

Alexander von Humboldt, Cofre de Perote, 1804.

Cada passo perante a indeterminação clarifica-se em processo, etapa a etapa, mesmo sabendo-se que progredir se mede nas parcelas de cada equação. A Terra, o nosso planeta, mantém até hoje, e talvez num porvir próximo (será que o há?), uma dívida aberta para com Johann Wolfgang von Goethe e Alexander von Humboldt, dois vulcões de excesso com transbordo planetário. 790 Anabela Mendes

Bibliografia Engelhardt, Wolf von, Goethe im Gespräch mit der Erde — Landschaft, Gesteine, Mineralien und Erdgeschichte in seinem Leben und Werk. Weimar: Verlag Hermann Böhlaus Nachfolger, 2003. Goethe, Johann Wolfgang von, Die Schriften zur Naturwissenschaft. Weimar: Leopoldina- Ausgabe, I, 11, 1947. Goethe, Johann Wolfgang von, Naturwissenschaftliche Schriften. ed. Erich Trunz, Hamburger Ausgabe, vol. 13, I, München: Verlag C. H. Beck, 91982. Horn, Susanne, Kreher-Hartmann, Birgit, Heide, K., “Melting experiments and field work on Komorní Hùrka volcano, Bohemia, by Johann Wolfgang von Goethe”, in Journal of Geodynamics, vol. 32, Issues 1-2, August-September, Amsterdam: Elsevier Science, 2001, pp. 77-97. Humboldt, Alexander von, Von Mexico-Stadt nach Veracruz — Tagebuch, ed. Ulrike Leitner, : Akademie Verlag, 2005. Molder, Maria Filomena, O absoluto que pertence à Terra, Lisboa: Vendaval, 2005.

Fontes de imagens Bergmann, Günther, Goethe — der Zeichner und Maler: ein Porträt, München: Callwey, 1999, pp. 126 e 127. Humboldt, Alexander von, Ansichten der Kordilleren und Monumente der eingeborenen Völker Amerikas, ed. Oliver Lubrich u. Ottmar Ette, Frankfurt am Main: 2004, prancha XXXIV. Mendes, Anabela, arquivo pessoal. Diasporic spaces: an exile’s view of Brazil — Richard Katz’s Brazilian Travel Books

JENNIFER E. MICHAELS Grinnell College, Iowa, U.S.A.

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

he renowned German-language travel writer and journalist Richard Katz (1888-1968) was part of the Diaspora of desperate refugees fleeing from THitler’s brutal regime. Katz arrived in Brazil via Lisbon in 1941 and remained there for over twelve years until homesickness led to his decision to return to Europe. He published four travel books about Brazil: Begegnungen in Rio (1945, Meetings in Rio); Auf dem Amazonas (1946, On the Amazon); Seltsame Fahrten in Brasilien (1947, Strange Journeys in Brazil); and Mein Inselbuch: Erste Erlebnisse in Brasilien (1950, My Island Book: First Experiences in Brazil); and translated Arthur Ramos’s book As Culturas negras no Novo Mundo (1946) into German as Die Negerkulturen in der neuen Welt (1948). Katz was interested in many aspects of Brazilian culture: its people, its history, its artists, its progressive and humane treatment of lepers (he visited two leper colonies, one near Belém and the other near Belo Horizonte in the state of Minas Gerais), its eradication of yellow fever in Rio, to mention but a few of his interests, but I will focus here on three topics that recur throughout his Brazilian texts. Having escaped from Nazi imposition of racial “purity” Katz admired Brazil as a melting pot where different races blended together, though he was not blind to discrimination against blacks and indigenous peoples. He was fascinated by the impact of African culture on Brazil and by how African religions evolved in Brazil and he attended several religious ceremonies in Rio and Salvador. As both an animal lover and an avid gardener, he delighted in Brazil’s flora and fauna (though not in all its insects), which he described vividly, while at the same time discussing environmental problems such as deforestation and the threat to different species. Although he is not well known today Katz, who like other famous German- language writers such as Franz Kafka and Franz Werfel came from Prague, was one of the most successful travel writers writing in German in the first half of the 20th century. Unlike in North America and several European countries, where in the last decades critical interest in travel narratives has grown, particularly in the context of post-colonial studies which has viewed travel writing as “an exemplary record of cross-cultural encounters between European and non-European peoples” (Clark 2), in German-speaking countries this interest has developed only more recently. In the interwar years, however, a time in which the end of hostilities led to a desire to travel to escape from the memories of the war, there 794 Jennifer E. Michaels

was a lively public interest in travel narratives (Fussell 9-15). Because severe economic problems prevented most Germans and Austrians from traveling, travel books served as a way of traveling vicariously (Plonien 5), a situation that contributed to the popularity of Katz’s over thirty travel narratives. With the rise of Hitler, Katz, who was Jewish, fled to , but feeling unsafe there, decided to move to Brazil, a country he had visited previously. After two unsuccessful attempts Katz managed to escape to Lisbon and from there to Brazil. In contrast to Franco’s Spain, through which he traveled, entering Portugal was for him like entering paradise. He calls Portugal a small country with a large heart and says that for as long as he lives he will be grateful for the kindness and hospitality he experienced there in the five weeks he had to wait for his ship to Brazil (Inselbuch 34-35). Katz struggled to learn Portuguese and became fluent in the language, immersed himself in Brazilian culture, traveled widely in Brazil, and became a Brazilian citizen. He loved Brazil and its people and had many Brazilian friends. He observes that nowhere else in the world has he found so many open doors and hearts as in Brazil (Amazonas 214). Throughout his books, Katz demonstrates that he is a keen social observer, aware of the nuances of social distinctions, and is relatively free of cultural biases. In his depictions of Brazil, Katz avoids to a large extent the Euro- imperialism that marred much of travel writing in Europe and the , especially in the nineteenth and early twentieth centuries. His is not an imperial gaze when he looks at Brazil. Mary Louise Pratt points out that cross-cultural encounters or “contact zones”, which she defines as “social spaces where dis - parate cultures meet, clash, and grapple with each other”, are often character - ized by “highly asymmetrical relations of domination and subordination” (Pratt 4) that stem from colonial ideology with its “accounts of conquest and domination” (Pratt 7). Because of his love of Brazil and its culture Katz avoided such asym - metrical relations. He did not reify Brazilians by “constructing the alien as an object to be studied” (Shankar 53), but rather sought to see people as individuals and he made many friends in Brazil. In fact, on several occasions in his texts, he is critical of European behavior in Brazil as well as the European gaze at Brazil. He deplores the Eurocentric attitudes of writers about Brazil, such as those who blame the inhabitants of the Amazon for causing their own suffering through their laziness, a view common to much of travel literature about the Amazon (Whitehead 131-32). Katz notes scathingly that these Europeans should have to work just one day in this hot unhealthy climate and they may change their minds (Amazonas 265). Katz contrasts Brazilians who are working hard in the burning sun with the European sitting in the shade eating fruit ice while watching them work (Amazonas 265-67). Katz also deplores European dismissal of black religions in Brazil as primitive and superstitious. He observes that many religions Diasporic spaces: an exile’s view of Brazil: Richard Katz’s Brazilian Travel Books 795

incorporate dance and music into their ceremonies, and that the mixing of magic and religion and the need for miracles are common to many religions. The point of view, he emphasizes, is decisive here. For example, believers consider healings in Lourdes to be miracles, yet dismiss similar healings in famous Candomblé temples as magic (Seltsame Fahrten 240-41). Katz tries hard to present as accurate a depiction of Brazil as possible, assessing both its positive and negative developments and writes with clarity, wit and with a for German-speaking writers untypical humor to help his German- speaking readers, most of whom knew little about Brazil, understand its history, culture, people, animals, and plants. He is sensitive to the difficulties of depicting such a vast and varied country. Many travel books, he believes, rely on first impressions that are often superficial or wrong (Inselbuch 45) and have the disadvantage of seeing the country through the eyes of a stranger: even though the travel writer has left home, he has not left his skin (Begegnungen 79). To try to avoid such pitfalls Katz chooses what he calls an inductive method, a modest method through which he tries to capture details accurately in one small piece of Brazil, in this case the island Paquetá in Guanabara Bay, his first home in Brazil, that can shed light on the whole (Inselbuch 226). He stresses that he will only attempt to depict what he actually sees: his work will thus be impressionistic with no pretensions to being complete (Inselbuch 201). But even this method has its pitfalls. As he watches the sun rise over Guanabara Bay he reflects that each sunrise is different, and even his description of this one sunrise with all its vivid colors is inadequate since it only conjures up the visual and fails to reach the other senses, such as hearing the waves lap gently on the beach or smelling the salt water (Inselbuch 26-27). Because of his long years living in Brazil, he understood the country well, but he frequently draws on Brazilian sources to check his own impressions. In his texts he also translates passages from Brazilian sources as a way of coming close to viewing Brazil through Brazilian eyes and incorporating the point of view of the “Other”. Even this method is not perfect, he notes, since some subjectivity creeps into the translator’s version and there is also the difficulty of learning the language fluently enough to be able to translate its nuances exactly (Begegnungen 79-81). Having fled from Nazi racial ideology, Katz praised Brazil’s melting pot of different peoples (Inselbuch 49). He is impressed that despite many different skin colors Brazilians treat their fellow citizens as friends (Inselbuch 14). Their friend liness extends to animals and to all those, such as refugees, who are vulnerable (Inselbuch 57). He observes approvingly that the imperative form in Brazil is rarely used, but is replaced by the more polite subjunctive (Amazonas 22), a reflection, in his opinion, of Brazilians’ innate politeness and respect for others. In Rio peoples from all over the world meet, overlap one another, and 796 Jennifer E. Michaels

blend with each other. People live and love together. Katz sees this mixing pot as nature’s experiment: here nature mixes together out of all its bottles, he observes (Inselbuch 222). Katz is not, however, blind to discrimination. He believes that prejudice against blacks, like many other prejudices, rests on mistakenly equating being different with being worse (Begegnungen 22). Citing Arthur Ramos, he points out that in Africa many sophisticated cultures once existed (Begegnungen 21). He stresses that one needs to guard oneself from racial pride as from the plague (Inselbuch 83). In several works he addresses the history of slavery in Brazil. Millions of blacks from nearly every African tribe were transported under harsh conditions to Brazil, mostly to Salvador, Brazil’s largest slave market. In Brazil, slavery was abolished in 1888 by Dom Pedro II, later than in other countries. Despite discrimination, Katz believes that blacks in Brazil, who when he was there held, for example, university positions and served as army officers, have more opportunities than in the United States (Begegnungen 103). With their blood and their tears, Katz stresses, black people made the flourishing of Brazil possible (Seltsame Fahrten 111). Katz’s interest in black contributions to Brazilian culture led him to an interest in black religions in Brazil. In this he was inspired and informed by his friend Arthur Ramos, at that time the greatest living authority on black cultures in Brazil. He was drawn to Ramos’s book, As Culturas negras no Novo Mundo (1946), which researches black cultures in Africa and the following Diaspora caused by slavery, by its author’s insistence on tolerance and equality and his refusal to view races hierarchically. Katz notes that few works have enriched him as much as this one (Ramos 13). Ramos refutes the notion that blacks are inferior by pointing out that black cultures in Africa were equal to some European cultures and surpassed others (Ramos 14), and his goal is to promote under - standing and respect for every people on earth. In an interview, Ramos declared that in the field of anthropology Brazil is a living lesson that counters pseudo- scientific Nordic racial theories. In a country made up of a mixture of Portuguese, blacks, and indigenous peoples, to talk about racial inferiority, he states, is not only an attack on science, but also a crime against our own national existence (Ramos 15). From Ramos Katz learned about African customs and religions. Rio, Katz observes, is not only Europe or America but also Africa, and he notices a strong African influence on music and dance: some of the Sambas, for example, resemble the magical Macumba dances (Begegnungen 15-16, 20). He visits a temple of the Macumba religion and talks about how in Rio in particular this religion from Africa mixes together belief and superstition, medicine and magic, Catholicism and fetishism, animism and spiritualism. This is not a value judg ment, he emphasizes, Diasporic spaces: an exile’s view of Brazil: Richard Katz’s Brazilian Travel Books 797

merely an observation (Begegnungen 21). He notes that Macumba may seem strange, but it is also strange that Christian pilgrims climb the many steps to a pilgrimage church on their knees (Begegnungen 29). On Ramos’s advice, Katz flew to Salvador to investigate Candomblé. Before setting off, he read not only Ramos’s work but also a classical work on Brazilian blacks by Nina Rodrigues. Katz gives an overview of Candomblé’s theology and practices and its many gods. Since the religion has room for other gods, Catholic saints and indigenous gods are often incorporated. The cosmos of Brazilian blacks, Katz remarks, teems with gods as the Brazilian jungle teems with insects (Seltsame Fahrten 197-200). On his first visit to a temple in Salvador, he does not try to give an organized narrative of the ceremony, but rather reproduces the fragmentary notes he made while he was there. This stylistic device gives immediacy to his experience and helps the reader experience the ceremony. Katz realizes intuitively that presenting the ceremony analytically would force the strangeness of a different world into the thought structures of the West and thus destroy the ceremony’s magical components. Katz thus avoids fitting the “Other” into western criteria and structures (Dewulf 36-37). Katz conveys the overwhelming power of the drums, the dancing, and the cries of those falling into a trance, an integral part of the ceremony since is represents a condition of grace in which a god takes possession of the person (Seltsame Fahrten 223). The variety of different religious traditions in Candomblé are reflected on the altar, where among other artifacts there are figures of Catholic saints, crucifixes, small cans of cooked rice, plates of palm oil, and bracelets of cowry shells. Although he devotes less space to them, Katz also talks about Brazil’s indigenous peoples, quoting often from Brazilian sources. In Begegnungen he notes that indigenous peoples form only a small part of the population and that their greatest impact on Brazilian culture has to do with language, in particular names of places, plants, and animals. The various sources Katz quotes present a rather negative picture of the native peoples: in the earliest accounts they are viewed as cannibals and savages; in later ones as lazy, living in a fossilized culture (Begegnungen 110-119). Some authors went to the other extreme and roman - ticized them as “noble savages” living close to nature, much as the German author Karl May romanticized the . Katz, however, presents a more realistic and sympathetic view. We Europeans, he says, destroyed them with slavery, with alcohol, and above all with diseases such as smallpox and tuberculosis against which they had no resistance. When the Spanish conquis tadors first came they were amazed at the large numbers of indigenous peoples living on the Amazon riverbanks. Katz quotes from a report by Father António Vieira that when the Portuguese conquered a region south of the Amazon delta in 1615 it was thickly populated. When he returned in 1652 the area was empty of people due to 798 Jennifer E. Michaels

disease or being killed (Amazonas 133-34). Those who survived withdrew into the farthest reaches of forest. Katz briefly describes indigenous religions, noting the belief in the god Tupan as creator of the world and his oldest son, the sun. The indigenous peoples also believed in a virgin mother named Ceucy, the daughter of Tupan and the sky, and her son Jurupary, the wise and strict lawgiver of all indigenous peoples. Such views of god and creation reflect in Katz’s opinion the most highly developed religion among South American indigenous peoples (Amazonas 135-37). As an avid animal lover and gardener, Katz leaves vivid depictions of the riot of colors of Brazilian flowers such as hibiscus, bougainvillea, orchids, and gardenias in the various gardens. He describes some of its fauna especially parrots. Katz owned three parrots of which he was very fond despite the travails they caused him. He vividly describes trees such as coconut palms, mango trees, Pau-Brasil (Brazilwood trees), and breadfruit trees and is especially impressed by the royal palms in Rio’s Botanical Garden, in his view the most beautiful botanical garden in the world (Inselbuch 101). Katz also wrote about the Amazon, a topic that appeared frequently in previous travel writing. In many such travel accounts, it was treated as a mythical place of “exoticist fantasies”, as “a happy hunting ground — for the ‘tropical traveler’: the adventurer-hero, or, perhaps better, the would-be hero of the gung ho type”. Such accounts were filled with clichés and stereotypes, and the writer’s experience is often transformed into “the stuff of high melodrama” (Holland and Huggan 76-81). Early travel narratives between 1500 and 1700, particularly those by Spanish and Portuguese travelers, “set a framework for the European imagina - tion that most subsequent writers employed”. They described the vast Amazonian landscapes, “the elusive presence of native peoples”, and “the lure of marvellous discovery”, and by so doing “inspired an aesthetic of extremes” (Whitehead 127). In the 17th and 18th centuries, scientists, often employed by the colonial govern - ment or by others with economic interests in the region, cata logued plants and animals and people and their cultural practices (Whitehead 128). To counter such scientific accounts, a new myth of a “mythically pristine Amazonia” was created that was blind to the fact that this supposedly undisturbed nature was “the consequence of the violent and catastrophic actions of colonial culture on the ecology of the Amazon itself and on the native peoples who once lived there” (Whitehead 131). By using his modest inductive method and concentrating on what he sees himself Katz avoids many of the above pitfalls and devotes most of the text to his own observations on his return journey from the Rio Negro to the mouth of the Amazon. He includes passages from earlier travelers that he translates and he consults Brazilian sources to check his impressions because the Brazilians know Diasporic spaces: an exile’s view of Brazil: Richard Katz’s Brazilian Travel Books 799

their river better than a foreigner, he notes (Amazonas 288). He is aware of the difficulty of describing the Amazon region because it is so large and grows from reality into the fantastic, from observation into amazement. As he observes, the Amazon gives rise to a literature of hyperbole that uses large words as grandiloquent, florid, and ornate as the vegetation, books of pompous pathos that seem to be written with a liana rather than a pen (Amazonas 48). Katz describes the abundance of life: the plants, the parrots, the herons, and the flamingoes and he is amazed that gulls follow the ship as if they were on the open sea rather than one thousand miles inland. He describes the lush vegetation, the gigantic trees with their gigantic crowns, and reflects that the Amazon greenhouse climate makes trees out of plants that would be shrubs in Rio. Brazil, he points out, has thousands of native tree species, whereas at most has thirty-six varieties (Amazonas 73). Most of the colors he sees come from the leaves, since the orchids and flowering crowns are too high to see (Amazonas 74). At first the forest seems monotonous, but if one looks closely trees alternate with mangrove swamps and there are differences in colors and sizes. Although he heard many birds and animals he only saw a few because of the dense vegetation. This was not the situation with insects: as he wryly notes one doesn’t have to leave one’s bed to describe the insects (Amazonas 215). He discusses the many varieties of ants, the leaf-cutter ant, being the worst since it strips plants of all its leaves (Amazonas 203). He also talks about views of the piranha in travel accounts as a bloodthirsty fish to be feared, yet those living in the Amazon are not afraid of it, a reflection in his view of the tendency in Amazonia to amalga - mate truth and fantasy (Amazonas 105). He devotes a section to turtles once plentiful but now threatened by extinction because of over-harvesting, like the millions of seals that used to inhabit Brazil’s seacoast (Amazonas 77). His journey to the Amazon also makes him reflect on its economy and its impact on people. At the time he was there, the area was thinly populated with indigenous tribes and with lumbermen and rubber tappers. He describes the harsh conditions facing a typical tapper, many of whom were fleeing drought in the North East. It is a lonely life. In this hot unhealthy climate people become ill from malaria or from liver or other diseases. On a typical day, the tapper leaves his hut at three in the morning to make cuts in the widely dispersed trees. This first round takes about six hours. The tapper then returns later to collect the sap and at night smokes it into a football size ball. This happens day after day after day. Many are homesick for the North East, but the tapper is always in debt to his boss and cannot leave. Despite Brazil’s progressive labor laws, such kinds of serfdom still exist since laws are hard to enforce in such a vast region. Because of the climate and the hard work, these men look like old men when they are only forty. In contrast to the life of the tapper, however, many others became 800 Jennifer E. Michaels

rich during rubber booms, as demonstrated by the elaborate theater in Manaus, whose marble and paintings had to be imported up the river. Katz summarizes the many contrasts when he writes: certainly there are blue butterflies, but also malarial mosquitoes; certainly plants thrive, but so do grasshoppers and leaf- cutter ants, certainly some people get rich, but others perish (Amazonas 199). Earlier than most writers, Katz discusses environmental problems. He points out the near extinction of the turtle and the seal and deforestation in the Amazon and in the Atlantic rainforest, a concern that is particularly pressing today. On his first visit to Rio trees still covered the hillsides, but now more and more have been cut down. When he travels by train to São Paulo he notices that, once past the coastal range, the country looks like an African steppe with hardly a tree. Previously, this was rain forest, trees with enormous trunks between which humming-birds flew, and tapirs, monkeys, and parrots abounded. Then the railway opened up the land and trees were cut down. Despite attempts to prevent such desecration, the devastation of the forest continues and leads to a loss of animals because their habitat is gone (Seltsame Fahrten 21-22). An unexpected positive outcome of what was otherwise for many refugees from Hitler a painful and sad exile was that some exiles such as Katz wrote about their host countries and thus helped people in Europe understand and appreciate cultures of which they were largely ignorant. In Katz’s case, his long stay in Brazil gave his readers insights into a wide variety of Brazilian culture, not only into expected topics such as the exuberance of carnival, but also into slavery, black religions, peoples, history and many other topics, presented by someone who knew and loved the country. Katz’s legacy in the case of Brazil is that he functioned as an effective mediator between Brazilian culture and German- speaking cultures.

Works Cited Carr, Helen. “Modernism and Travel (1880-1940)”. The Cambridge Companion to Travel Writing. Ed. Peter Hulme and Tim Youngs. Cambridge: Cambridge UP, 2002. 70-86. Clark, Steve. Introduction. Travel Writing and Empire: Postcolonial Theory in Transit. Ed. Steve Clark. London and New York: Zed Books, 1999. 1-28. Dewulf, Jeroen. “Hubert Fichte vorweggenommen: Die afrobrasilianischen Religionen bei den Exilautoren Richard Katz und Ulrich Becher”. Monatshefte 99.1 (Spring 2007). 31-51. Fussell, Paul. ABROAD: British Literary Traveling Between the Wars. New York and Oxford: Oxford UP, 1980. Holland, Patrick, Graham Huggan. Tourists with Typewriters: Critical Reflections on Contemporary Travel Writing. Ann Arbor: U of Michigan P, 1998. Diasporic spaces: an exile’s view of Brazil: Richard Katz’s Brazilian Travel Books 801

Katz, Richard. Auf dem Amazonas. Erlenbach-Zurich: Rentsch, 1946. ———. Begegnungen in Rio. Erlenbach-Zurich: Rentsch, 1945. ———. Mein Inselbuch: Erste Erlebnisse in Brasilien. Erlenbach-Zurich: Rentsch, 1950. ———. Seltsame Fahrten in Brasilien. Erlenbach-Zurich: Rentsch, 1947. Plonien, Klaus. “Re-Mapping the World: Travel Literature of Weimar Germany”. Dissertation, U of Minnesota, 1995. Pratt, Mary Louise. Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation. London and New York: Routledge, 1992. Ramos, Arthur. Die Negerkulturen in der neuen Welt. Trans. and Intro. Richard Katz. Erlenbach-Zurich: Rentsch, 1948. Shankar, S. Textual Traffic: Colonialism, Modernity, and the Economy of the Text. Albany: State U of New York P, 2001. Whitehead, Neil L. “South America/Amazonia: the forest of marvels”. The Cambridge Companion to Travel Writing. Ed. Peter Hulme and Tim Youngs. Cambridge: Cambridge UP, 2002. 122-138.

O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais: o testemunho de Jordan Catala de Sévérac

TERESA NOBRE DE CARVALHO Centro de História das Ciências Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013 * À época do congresso doutoranda em História e Filosofia das Ciências e Bolseira FCT do Programa SFRH. Nota introdutória Ao longo da Idade Média, o europeu dirigiu-se para as Índias em missões diplomáticas, apostólicas ou comerciais. Destes périplos orientais chegaram até aos nossos dias vários registos. Muitos ilustram o fascínio que as plantas e animais da Ásia exerceram sobre estes viajantes. Alguns destes relatos, por razões diversas, tiveram uma circulação limitada. Outros tiveram uma circulação im portante, como o atesta a existência na actualidade de numerosos manus - critos. Do documento agora em análise, Mirabilia Descripta, 1330, apenas se conhece um exemplar. A presente abordagem, centrando-se no testemunho de Jordan Catala de Sévérac, realça o carácter inovador das descrições do mundo natural do Oriente apresentadas por este dominicano.

Notas biográficas sobre Jordan Catala de Sévérac (c.1275/1280 — c. 1336) Atendendo aos poucos dados que podemos coligir sobre este autor, temos que seguir as pistas que nos são fornecidas nos poucos textos que ele nos deixou. Os biógrafos de Jordan Catala não têm dificuldade em aceitar que este nasceu em Sévérac-le-Château, no actual Departamento do Aveyron (França). Na ver - dade, após a consulta de arquivos da região, estes estudiosos puderam constatar que, na época em questão, viveram em Sévérac-le-Château alguns homens de apelido Catala, uns notários outros dominicanos. Nada se sabe sobre o mosteiro onde tomou votos. É provável que já não fosse jovem quando ingressou na Ordem. Admite-se, no entanto, que a sua partida para Oriente se tenha verificado numa data próxima à do seu ingresso na Ordem, eventualmente após a realização de estudos universitários. Sévérac partiu para Oriente em 1320. Nesta época, considerava-se que os missionários estavam prontos para partir quando já tinham alguma experiência de pregação, possuíam prática de línguas estrangeiras, eram voluntários, amplos conhecedores dos fundamentos da reli gião cristã, apresen - tavam robustez física e solidez na fé. Este conjunto de requi sitos era mais vulgar encontrar-se em homens com idades próximas dos 40 anos. Exceptuando o caso de Pian de Carpine, que viajou para Oriente com cerca de 60 anos, grande parte 806 Teresa Nobre de Carvalho

dos religiosos, ao partir em missão, tinha idades compre endidas entre os 35-45 anos. Tomem-se os exemplos de Rubruck (35-40 anos), Monte Croce (45 anos), Monte Corvino (42 anos), Tomás de Tolentino (42 anos). Desconhecendo a data do seu nascimento mas sabendo que o frade partiu para Oriente em 1320, podemos aceitar, graças à analogia com vidas de outros missionários do seu tempo, e considerando as recomendações das Actas do Capítulo Geral dos Frades Pregadores — que aconselhavam que os homens a enviar em missão não fossem demasiado jovens nem demasiado velhos — como ano provável para o seu nascimento algures entre 1275-1280.

Partida em missão Pouco se sabe sobre o itinerário seguido pelo dominicano. Normalmente, os missionários que partiam de Avignon rumo ao Oriente, dirigiam-se para Nápoles, onde aguardavam o barco genovês que os conduzia para Leste. Qualquer que fosse o percurso seguido em terras orientais, Tabriz, nesta época, era ponto de passagem quase obrigatório. Nela, viajantes oriundos da Europa faziam escalas mais ou menos prolongadas. Esta cidade constituía então um importante centro de trocas entre o Mar Negro e o Golfo Pérsico. A Tabriz acorriam caravanas de mercadores, peregrinos e viajantes, que tornavam esta cidade num importante centro de recolha de informações a todos quantos se dirigiam para as Índias, especialmente através do porto de Ormuz. Em 1318 fundou-se em Tabriz um convento dominicano onde se admite que Sévérac tenha permanecido algum tempo. Na verdade, ao longo do seu texto, o missio nário revela conhecer com alguma segurança as terras da Arménia (assim como as da Pérsia) o que leva a supor que permaneceu nelas o tempo suficiente para se familiarizar com os usos, costumes, idiomas e tradições das suas gentes. Em 1320 Jordan de Sévérac deixou Tabriz com destino ao Cataio. Na sua caravana seguiam também quatro religiosos da Ordem dos Menores: Frei Tomás de Tolentino e Frei Jácomo de Pádua — sacerdotes — e Frei Pedro de Siena e Frei Demétrio — irmãos leigos. A caravana seguiu então lentamente para Ormuz. A travessia dos desertos persas enchia de temor os viajantes, que aterrorizados pelas lendas dos caravaneiros, crédulos da presença de demónios e de animais ferozes, fugiam ou definhavam de medo. A chegada a Ormuz constituía assim um alívio para todos os viajantes. Neste porto, verdadeiro elo de ligação ao Oriente, os nossos missionários partiram a bordo de uma embarcação árabe ou persa que, talvez por encontrar ventos contrários, foi obrigada, ao fim de menos de um mês, a acostar em Taná. Aportar em Taná foi assim um incidente no percurso dos missionários. Estava- -se em 1320. Sévérac deixou de imediato o porto procurando inteirar-se da presença de outras comunidades cristãs na região. Os seus companheiros de viagem permaneceram na ilha. O martírio dos quatro franciscanos ocorreu pouco O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais 807

Fig 1 — Odoric de Pordenone, Descriptio orientalium partium, (c.1330) Translations des martyrs de Thâna (fonte: Mandragore, base des manuscrits enluminés de la BnF).

tempo após a chegada a Taná. Inquiridos pelo Cadi local sobre uma banal discus - são familiar, os franciscanos excederam-se nas suas respostas. Consi derando-se insultado, o Cadi condenou-os à fogueira, da qual, por milagre, esca param ilesos. Um segundo suplício pelo fogo e uma lapidação não causaram qualquer ferida nos missionários, que então se tornaram em verdadeiros perigos para a solidez do credo muçulmano. Só o recurso às lâminas das espadas, que fizeram rolar as suas cabeças, conseguiu eliminar tal ameaça. No momento deste incidente, Sévérac encontrava-se ausente. No entanto, ao regressar a Taná, inteirou-se dos detalhes da execução e redigiu uma carta, datada de Outubro de 1321, onde apresentou o primeiro relato deste acontecimento. Outros textos, cuidado - samente incluídos nas crónicas de franciscanos, surgiram na sequência do de Sévérac. Aquele que teve maior divulgação pública foi o redigido pelo beato Odorico de Pordenone que, ao passar por Taná, recolheu os restos mortais dos mártires e os levou para Zayton. O trabalho missionário de Sévérac estendeu-se ao longo da costa ocidental da península indiana. Apresentando nas suas cartas um balanço das conversões assim como o resultado de um verdadeiro trabalho de pesquisa para a imple men - tação de uma missão cristã nas Índias, Sévérac visitou algumas cidades do Golfo de Cambaia e do Malabar. 808 Teresa Nobre de Carvalho

Regresso à Europa Nos finais de 1327, ou princípios de 1328, Jordan de Sévérac regressou ao Ocidente para informar Avignon da oportunidade de criar um Bispado em Coulão. Este porto do Sul da Índia para além de não se encontrar submetido ao poder muçulmano, era frequentado por numerosos mercadores ocidentais, espe cial - mente genoveses. Convém recordar que o seu contemporâneo Marco Polo tinha realçado a riqueza e pujança do porto de Coulão. Em diversos mo mentos da obra de Sévérac encontramos o som do texto de Marco Polo, sendo evidente que o leu, ou, pelo menos ouviu ler. Na verdade a primeira versão latina da obra de Marco Polo foi realizada, cerca de 1320, por um dominicano — frei Francisco Pipino. O texto — então posto a circular entre os mis sionários — serviria como ro tei ro de viagem aos irmãos, Menores ou Pregadores, partidos para Oriente. Não nos parece por isso estranho que o dominicano se tenha dirigido para o Sul, onde encontrou o animado porto e a comunidade mercantil prometidos por Polo. Desde da Bula Papal, datada de 1329, que promove a criação do ‘Bispado’ de Coulão, até 1330, data do Mandato de João XXII que envia Sévérac em missão, encontram-se nos arquivos numerosos documentos que ilustram a diversi dade de contactos que Sévérac estabeleceu aquando da sua estadia no Oriente. A permanência em território indiano, para além do trabalho apostólico, manifestou-se numa intensa actividade diplomática. Este facto é confirmado pelas diversas cartas de recomendação dirigidas pelo Papa João XXII aos sobera - nos do Oriente e que reflectem um aturado trabalho de prospecção no terreno e de recensão das mais eficientes vias de penetração nas comunidades locais levado a cabo pelo Dominicano. Em Avignon, admite-se que Sévérac tenha permanecido no então remodela - do mosteiro dominicano onde, provavelmente teve a possibilidade de compilar as suas notas e de elucidar os curiosos irmãos sobre as maravilhas do Oriente. Desconhece-se se o frade regressou às Índias. Tem-se como certo que em 1330 ainda permanecia na Europa já que esta é a data de um documento assinado por Sévérac ainda em território europeu. Pouco se sabe sobre os últimos dias de Sévérac. Alguns afirmam que regressou a Taná, onde foi lapidado em 1336. Os partidários deste martírio fazem eco dos escritos do Frei João dos Santos, a Etiópia Oriental...(Evora, 1609). Na segunda parte desta obra que o frade intitulou ‘Vária história de cousas notáveis do Oriente, e da cristandade que os religiosos da ordem dos Pregadores nela fizeram’ no seu Capítulo XVII Do martírio do Padre Frei Jordão, da Ordem dos Pregadores, e da imagem que os gentios lhe fizeram na ilha de Taná, e como foi achada, pode ler-se que António de Sousa e sua mulher, Maria Pereira encon tra - ram entre os escombros de um velho pagode, uma pequena estátua de madeira representando um dominicano. Apesar de estar soterrada há muito tempo aparen tava ter sido acabada de enterrar. Inquirindo os mais velhos da região sobre a curiosa estatueta, sinal da presença cristã na ilha muitos anos antes da O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais 809

chegada dos portugueses, o casal foi informado de que se tratava de uma repre - sentação do mártir de Sévérac, por quem todos tinham grande devoção pelos muitos milagres que, no seu tempo fizera, e pela morte santa que sofrera. Convém recordar aqui que frei João dos Santos era, tal como Sévérac, da Ordem dos Pregadores, sendo o testemunho dos portugueses sublinhado pela presença no relato do então Prior do Convento Dominicano de Chaúl, D. Aleixo de Setúbal, que emocionado com a história do mártir da sua Ordem, conseguiu de D. Maria Pereira a cedência da estátua para devoção no Convento que então dirigia. Frei João dos Santos insiste, desde a primeira linha, que o objectivo da desloca ção ao Oriente dos missionários franciscanos e do próprio Sévérac, era procurar o martírio. Não nos parece que esta leitura corresponda à verdade já que as diversas diligências diplomáticas, pesquisas no terreno e conversões que o dominicano levou a cabo nos diversos anos que permaneceu na Índia revelam que este estava preocupado na implementação de uma presença cristã efectiva no Oriente.

Fig 1 — Odoric de Pordenone, Descriptio orientalium partium, (c.1330) Translations des martyrs de Thâna (fonte: Mandragore, base des manuscrits enluminés de la BnF). 810 Teresa Nobre de Carvalho

Mirabilia Descripta Jordan de Sévérac designou o seu texto Mirabilia Descripta. Este relato, datado de 1329 ou 1330, testemunha o olhar do missionário sobre o mundo natural oriental. O objectivo do nativo de Aveyron é assim partilhar com o seu leitor a sua experiência de um real inimaginável. Sévérac leu, ou ouviu ler, os autores que, naquele despertar do século XIV constituiam a Autoridade. Das suas palavras percebemos que conhecia Plínio e Solino, que respeitava Isidoro de Sevilha e Marco Polo, que admirava Preste João das Índias e Vincent de Beauvais. O dominicano parece ainda estar familia rizado com o relato de Rubruck e Pian de Carpino. Leitor de textos maravi lhosos, nada do que Sévérac testemunha procura contrariar os seus autores. Pouco se sabe sobre a divulgação deste texto. O único exemplar até hoje encontrado (Londres, British Library, Additional 19513, fol 3-12) parece revelar que a sua circulação foi restrita. No entanto convém recordar que supomos que o texto foi escrito em Avignon, num Convento protegido pelo papa João XXII, num momento em que o envio de missionários para o Extremo Oriente ainda se fazia a um ritmo importante (foi abrandando a partir de 1369 quando os Ming derruba - ram a dinastia Yuan). Deste modo, os missionários, viajantes, curiosos ou aventu - reiros que transitassem pelo actual Departamento de Vaucluse, poderiam ter informações, escritas ou orais, totalmente novas, testemunhando uma verdade recém experimentada. Estes pontos de acolhimento de viajantes constituíam importantes centros de troca de ideias e actualização de saberes. Se bem que o texto deste dominicano não se encontre entre os relatos medie vais mais estudados, Mirabilia Descripta foi já editado. Para além das edições a anotações do texto levadas a cabo por diferentes estudiosos, foram igual mente efectuadas algumas versões em vernáculo, nomeadamente em francês, castelhano e inglês, como abaixo se pode comprovar. • Jordan (le P.) de Sévérac, Description des merveilles d’une partie d’Asie, par le P. Jordan ou Jourdain Catalani, natif de Sévérac, de l’ordre des Frères prêcheurs ou dominicains, évêque de Columbum, dans la presqu’île de l’Inde en deçà du Gange, edição de Charles Coquebert de Montbert, Paris, Arthus-Bertrand, 1839 (‘Recueil de voyages et de mémoires publiés par la Société de géographie’,4) pp.:1-68; • Jordan de Sévérac, O.P., évêque de Quilon, Mirabilia Descripta. The wonders of the East, by Friar Jordanus (circa 1330), tradução e comen - tários de Henry Yule, Londres, 1863, Hakluyt Society; • Jourdain Catalani de Sévérac (le P.) O.P., évêque de Columbum, Mirabilia Descripta, les merveilles d’Asie, texto latino e tradução francesa Henri Cordier, Paris, Paul Geuthner, 1925; O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais 811

• Jourdan de Sévérac, Mirabilia Descripta: the wonders of East, edição e intro dução de Peter B. Lobo, texto latino feito a partir da edição de Henri Cordier, revista por Emille Penella, tradução de Noel Molly, comentário de Simon Roche, Nagpur (India), Dominican Publications, Seminary Hill, 1993; • Jordan de Sévérac, Mirabilia Descripta, versão castelhana de Juan Gil, Sevilha, Allianza Editorial, 1995; • Jordan Catala de Sévérac, Une image de l’Orient au XIV ème siècle; les Mirabilia Descripta de Jordan Catala de Sévérac. Edição, tradução e comentários de Christine Gadrat, Paris, Ecole de Chartes, 2005.

O maravilhoso no Mirabilia Descripta1 Com Jordan de Sévérac somos conduzidos a um outro mundo. Os novos mun - dos que os viajantes medievais descrevem, mais do que um limite geográ fico revelam, como recorda Jean-Paul Roux, uma barreira psicológica. Ao chegar àquela que designa ‘Índia Menor’,2 Sévérac afirma: Nesta primeira Índia começa quase um outro mundo.3 No entanto, o frade só cede ao maravilhoso quando considera que entrou na Índia Maior: Todas as maravilhas estão nesta Índia. Com efeito é mesmo um outro mundo.4 O mundo que Sévérac atravessa, parece não existir. Mas o missionário faz questão de afirmar que viu, ouviu, provou. Quando tal não lhe foi possível, afir - ma que alguém digno de fé lho confiou. As maravilhas que Sévérac nos apresen - ta são verosímeis. O dominicano designa-as recorrendo ao idioma local. Deste modo, o missionário parece revelar que não há termo ocidental para designar a novidade que descreve, declarando de forma clara o exotismo (e tam bém a estranheza) do real que apresenta. Os vocábulos árabes, persas, hindus, não deixam Sévérac mentir. Ele esteve realmente onde afirma ter estado. Viu aquilo que descreve. Experimentou um mundo diferente.

1 O presente trabalho baseia-se no estudo da mais recente versão de Mirabilia Descripta: Jordan Catala de Sévérac, Une image de l’Orient au XIV ème siècle; les Mirabilia Descripta de Jordan Catala de Sévérac. Edição, tradução e comentários de Christine Gadrat, Paris, École de Chartes, 2005. Os trechos aqui apresentados em português resultam assim de uma tradução efectuada a partir desta versão francesa. 2 Jordan de Sévérac considera a Índia dividida em 3 territórios: • Índia Menor (Primeira Índia): região situada a Oeste do rio Indo (Índia do Norte e actual Paquistão) • Índia Maior (Segunda Índia):região que corresponde à península indiana, a Sul dos rios Indo e Ganges; Ceilão, actual Indonésia • Terceira Índia: região próxima da Etiópia. 3 Mirabilia Descripta, parágrafo 23. 4 Mirabilia Descripta, parágrafo 99. 812 Teresa Nobre de Carvalho

Fenómenos naturais Sévérac deu particular destaque aos fenómenos naturais. Para tal, o domini - cano teve que parar o seu caminho e admirar os fenómenos: ventos indomáveis, mares com águas salobras, desertos temerosos, oceanos de areia. A estreita diferença na duração dos dias e das noites impressiona o viajante. Na Índia Menor, Os dias e as noites não são diferentes. Variam, o máximo duas horas.5 Enquanto que na Índia Maior, lá onde eu estive, [Coulão?] as noites e os dias são quase sempre iguais, e em momento nenhum é maior do que o outro mais do que uma hora completa.6 E a estranheza acresce porque as noites são quatro vezes mais claras que nas nossas regiões. [...] Entre a noite e a madrugada, se não me engano, podemos sempre ver todos os planetas...sendo muito agradável de olhar à noite. O olhar do dominicano detém-se fascinado sob os céus da Índia e as suas novas estrelas: desde esta Índia vê-se a Tramontana muito baixa, ao ponto que estive num local onde ela não apareceu acima da terra mais do que dois dedos [...] vemos constan temente uma estrela muito grande e brilhante […] que das nossas regiões nunca se pode avistar. E termina dizendo: Há inúmeras maravilhas no ciclo das estrelas, apaixonantes para um bom astrónomo.7

Flora Jordan de Sévérac lança um olhar demorado sobre a botânica asiática. Os esboços do mundo vegetal que desenha revelam a sua atenção particular à Natureza. Numa terra onde há sempre frutos e flores, árvores diferentes e frutos de tipos diversos8, Sévérac analisa a flora que descreve. Refere-se às jaqueiras, (Artocarpus heterophyllus L.) como árvores que produzem frutos enormes chamados chaqui. São frutos tão grandes que apenas um seria suficiente para cinco pessoas juntas; às árvores de fruta-pão, (Artocarpus incisa L.) como sendo as que fazem frutos semelhantes ao anterior e que se chama bloqui, da mesma dimensão e doçura, mas de espécie diferente. Estes frutos nunca nascem entre a folhagem, que não poderia suportar o seu peso, mas sobre os ramos e mesmo troncos, até às raízes; à mangueira, (Mangifera indica L.) como uma árvore que produz frutos como grandes pêssegos,

5 Mirabilia Descripta, parágrafo 25. 6 Mirabilia Descripta, parágrafo 85. 7 Mirabilia Descripta, parágrafos 89-91. 8 Mirabilia Descripta, parágrafo 25. O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais 813

que se chamam amba. São frutos tão doces e agradáveis que temos dificuldade em expressar pela palavra. E continua, há também numerosas outras árvores fruteiras e de diversas espécies que seria demasiado longo a descrever. Resumindo, digo que esta Índia, quanto aos frutos é diferente da Cristandade, excepto que em certas regiões os limões são tão doces como açúcar. Mas Sévérac não prescinde em falar de plantas úteis e exóticas. Refere-se assim ao coqueiro, (Cocus nucifera L.) árvore que se chama nargil que produz um ramo frutífero todos os meses. Este ramo faz frutos muito grandes do tama- nho de uma cabeça de homem e, entre as arvores maravilhosas, destaca o baniane, (Ficus benghalensis L.) que produz as raízes a partir da parte superior que descem pouco a pouco até à terra nela penetrando e fazem um tronco principal como se fosse uma espécie de arco. Uma árvore tem um conjunto de 20-30 troncos contíguos e contínuos. Esta árvore não tem frutos úteis mas vene- no sos e mortais. E uma árvore tão dura que as flechas mais fortes apenas a podem ferir.

O dominicano reconhece o valor das riquezas naturais das Índias. O reli gio- so não é indiferente à abundância da Pérsia em seda, lápis-lazúli ou ouro. De igual modo, chamam a sua atenção as pedras preciosas e os diamantes da Índia Menor9 assim como os rubis do Ceilão e as pérolas que os locais apanham no fundo da costa da pescaria10. Ao olhar de Sévérac não escapam as canas e espe ciarias da Índia Maior,11 os aromas como a canela ou a cubeba, o cravinho ou a noz- moscada12 da Java, nem o gengibre fresco que abunda na Índia Menor13 ou a pimenta que nasce nos jardins em torno de Coulão. Mas a descrição que apresenta destas plantas não é inovadora. Sévérac, aparentemente, não preten - deu dar mais atenção a um mundo natural valioso do que ao maravilhoso. O missionário detém-se também em Bakou, perante aqueles poços de onde sai um óleo muito quente, medicinal e que queima muito bem, a que chamam nafta.14

9 Mirabilia Descripta, parágrafos 43-44. 10 Mirabilia Descripta, parágrafo 61. 11 Mirabilia Descripta, parágrafo 66. 12 Mirabilia Descripta, parágrafos 78-80. 13 Mirabilia Descripta, parágrafo 50. 14 Mirabilia Descripta, parágrafo 146. 814 Teresa Nobre de Carvalho

Fauna De igual forma, a referência detalhada aos animais silvestres,15 rinocerontes, serpentes,16 crocodilos, pássaros multicolores,17 morcegos, galinhas, gatos com asas,18 ratos brancos, vespas e outros insectos,19 elefantes,20 entre tantas outras maravilhas, confirmam o olhar sensível do dominicano sobre a zoologia do Oriente. As descrições sobre a caça, domesticação e criação de elefantes ocupam alguns parágrafos do texto. No entanto, pouco acrescentam ao já anteriormente referido por Marco Polo. Há um comentário curioso que Sévérac adiciona: Há duas coisas no mundo às quais não se pode resistir com as armas: a tempestade do céu e a bala de catapulta. Este animal é a terceira, dado que não há nada que lhe possa fazer frente. Coisa admirável, ele ajoelha-se, deita-se, senta-se, vai e vem obedecendo às ordens do seu mestre. Simplesmente não podemos escrever as propriedades deste animal. As alusões aos animais mitológicos surgem, com especial incidência, no capítulo que dedica à Terceira Índia. Este território não foi visitado pelo missio - nário que, para o descrever retoma muitas das informações postas a circular por Plínio, Isidoro de Sevilha, Marco Polo e Preste João. O relato toma assim o tom de um testemunho fabuloso. Este território, que desde Ptolomeu encerra a Sul o Mar Indico e a Oeste liga com a Etiópia, pertence, desde há muito ao imagi ná - rio do europeu. Muitos localizam nele o Paraíso Terrestre. Outros, o mítico Reino do Preste João das Índias. Talvez por isso Sévérac conte as histórias dos dragões e dos escarbúnculos que anualmente são levados ao imperador dos Etíopes; assinale a presença daqueles poderosos pássaros capazes de elevar elefantes nos ares; apresente os ferozes unicórnios apenas domados pelos encan tos das virgens; refira as serpentes com várias cabeças; enumere tão grande quantidade de arquipélagos, como o das ilhas macho e fêmea. O olhar do dominicano não se detém sobre as cidades. O espanto mantém-se sobre o mundo criado pelo sobrenatural.

15 Mirabilia Descripta, parágrafo 36-42. 16 Mirabilia Descripta, parágrafo 73. 17 Mirabilia Descripta, parágrafo 72. 18 Mirabilia Descripta, parágrafo 74. 19 Mirabilia Descripta, parágrafos 94-96. 20 Mirabilia Descripta, parágrafos 101-103. O mundo natural das Índias nos relatos dos viajantes medievais 815

Mensagem de Sévérac: Uma educação do olhar? O olhar de Sévérac fixa-se sobre um mundo maravilhoso. Mas esta mesma realidade já fora observada por outros. A grande novidade do discurso do dominicano reside no seu testemunho de espanto perante o real. O missionário detém-se face ao novo mundo que encontra, experimenta-o e descreve-o. A sua leitura do real, mais do que uma repetição de textos anteriores, corresponde a uma vivência objectiva do concreto. Talvez o frade pretendesse que os seus irmãos mudassem de atitude face ao Oriente. É possível que o dominicano preten desse que se fossem abandonando as tradicionais leituras fantásticas e se renovasse o olhar sobre o quotidiano das Índias. Qualquer que fosse a intenção de Séverac, a procura da verdade do mundo dos outros resultou num texto particular, vivo e inovador para o seu tempo.

Bibliografia consultada Lach, Donald, Asia in the Making of Europe, The Century of Discovery (vol I) Chicago: Univ. Chicago Press, 1965. Gadrat, Christine, Une image de l’Orient au XVIe siècle. Les Mirabilia descripta de Jordan Catala de Sévérac. Paris: École de Chartes, 2005. Roux, Jean-Paul, Les explorateurs au Moyen Age, Paris: Fayard, 1985. Santos, Frei João dos, Etiópia oriental e vária história de cousas notáveis do Oriente; introdução de Manuel Lobato. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999. Verdon, Jean. Voyager au Moyen-âge. Paris: Editions Perrin, 2007. Yule, Henri; Cordier, Henry. Cathay and the Way Thither — Being a Collection of Medieval Notices of China. Londres: Hakluyt Society, 1913-1916.

X

Real, fictional and fantastic geography in the ancient and the modern world

Introduction

he papers assembled in this section, entitled "Real, Fictional and Fantastic Geography in the Ancient and Modern World", bear witness to a T longstanding tradition of travel literature which is still very much alive today. Each of these papers is focused on one of the three trends of this tradition of travel literature and geographical knowledge: the fictional, the utopian, and the scientific trends. This commentary follows a chronological order. The first paper represents an incursion into the old Mesopotamian epic tradition. In «A viagem e o sentido da demanda na Epopeia de Gilgamesh», Francisco Caramelo analyses the inner travel of Gilgamesh, the central character of this literary plot, in the quest for glory and immortality, and for the meaning of life. Gilgamesh is known by his exploits, wonderful strength and fearlessness. As Caramelo stresses, the epic consists of a philosophical reflection on the human condition and mortality, the human sense of fate and the unavoidableness of death. Gilgamesh represents the universal tension and paradox between mankind and the divine, and this fact explains the timelessness of this Mesopotamian text. Travel accounts have also constituted one of the main sources of inspiration for utopian and paradoxographic tales. The fantastic journey was a recurring theme in the utopian literature of the Hellenistic and Imperial times. The 166th codex of the Biblioteke of Photios, the ninth-century patriarch of Alexandria, comprises a summary of a literary work running to 24 books, credited to one Antonius Diogenes, The Wonders Beyond Thule. In "Curiositas e mirabilia n’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes", Vítor Ruas aims, on the one hand, at explaining the catalyst role for action played by curiositas in this fantastic narrative, in what concerns both the unfolding of events and the process of self- fashioning on the part of the narrator; on the other hand, it also seeks to outline the basic elements shaping the paradigm of fantastic travel. 820 Marília P. Futre Pinheiro

A general assumption, already voiced in late antiquity, is that Apuleius' The Golden Ass was meant to be taken symbolically. Due to his excessive curiosity, the hero is transformed into an ass that, victim of Fortune, goes through several adventures until he recovers his human shape. The reader is informed that the sufferings of the ass were a form of divine punishment. These vicissi - tudes will drive him to a superior level, his initiation into Isis and Osiris’ cults. In "A viagem iniciática de Lúcio n’ O Burro de Ouro", Maria Leonor Santa Bárbara presents us with an overview of the main aspects that characterize this Latin novel. Another relevant trait of Apuleius' The Golden Ass is the fact that all kind of adventures and many stories filled with comparisons with Greek legendary figures that the literary tradition has celebrated are incorporated in the plot. Finally, Eroulla Demetriou's and José Ruiz Mas' paper, "Colin Thubron's Journey into Cyprus: or a journey into the tunnel of Greek-Cypriot and Turkish- Cypriot tension”, mirrors the modern society of Cyprus, represented within its dramatic national history under changing socio-historical circumstances. In their essay, Demetriou and Mas assess that in his travel account, Journey into Cyprus (1975), the British traveller and writer Colin Thubron insists on the negation of a pro-European feeling for Cyprus. The basic assumption on which this claim is founded is that not once in the whole book is the country’s European identity affirmed. Demetriou and Mas also state that in 1972, the year when Thubron travelled throughout Cyprus, the impending troubles of 1974 are persistently presaged, and they conclude that Thubron seems to be denying any eventual reconciliation or peaceful coexistence of both peoples and faiths in Cyprus, i.e., the Turkish and the Greek Cypriots.

Marília P. Futre Pinheiro Departamento de Estudos Clássicos Faculdade de Letras da Universidade Lisboa Colin Thubron’s Journey into Cyprus; or a journey into the tunnel of greek-cypriot and turkish-cypriot tension

EROULLA DEMETRIOU / JOSÉ RUIZ MAS Universidad de Jaén, Spain

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

Throughout his travel account Journey into Cyprus (1975), the well-known British traveller and writer Colin Thubron presents the island as a battlefield between the two religious and ethnic communities of Cyprus, the Turkish-Cypriots and the Greek-Cypriots, a fact that subtly reminds the reader of the alliance of the two communities to their respective “motherlands” and faiths. The troubles of 1963-64 were still rampant in 1972, the year when Thubron travelled throughout Cyprus, and the nearby troubles of 1974 are persistently presaged. Thubron gives ample evidence of the tense atmosphere between the Turkish and the Greek Cypriots. He is pessimistic about an eventual reconciliation or peaceful coexistence of both peoples and faiths in Cyprus.

* * *

To be able to fully understand the nature of the tension existing nowadays between the Greek and the Turkish community in Cyprus, we should very briefly summarise the recent history of the island.1 Cyprus, a British colony from 1878 to 1960, did not greet independence with a completely happy heart. During the 1950s the Greek Cypriot population of the island had aspired to enosis or union with Greece, but both the Turkish Cypriots and the British occupiers opposed this move. Greek Cypriots, unsatisfied with British rule, took to terrorist tactics through their newly found liberation group EOKA, led by “Dighenis”, or General Grivas. Instead of enosis the British granted Cyprus independence but had also encouraged the idea of partition of the island among the Turkish Cypriots. After fourteen years of intermittent civil strife between both communities, in the summer of 1974 Turkey invaded the northern part of the island for the Turkish community to live independently from the Greeks, a situation that constitutes an effective partition. This state of affairs has remained virtually unchanged up to now.2 Colin Thubron visited Cyprus two years before the invasion. In his travel

1 The brewing of the tension is also perceivable in English travel accounts on Cyprus written and published during the British occupation of the island. For more details, see Demetriou & Ruiz Mas (2004). 2 This summary of Cyprus’s recent history has been inspired by Panteli (1990), Hadjidemetriou (2002) and Mallison (2005). 824 Eroulla Demetriou / José Ruiz Mas

account Journey into Cyprus, published in 1975,3 he generously includes numer - ous anecdotes and transcripts of conversations that depict the tense relationship existing between both ethnic and religious Cypriot peoples in the years prior to the Turkish invasion. In this respect he is a privileged witness of the precedents of the fully-fledged civil war that ensured between both communities. In four months Thubron crossed the countryside and visited myriads of both Greek and Turkish villages and the main towns throughout the island, describing the existing relationship between both communities as “nervous cohabitation” (1986:ix). Indeed, in the Preface of the 1986 Penguin edition (written in 1985) Thubron feels pessimistic about the possible solution to the troubles that had reached their zenith in 1974, only a year and a half after his journey in Cyprus. He believes that from 1974 onwards both ethnic and religious communities “will live apart”, and adds that his book is more valuable as it depicts the bygone state of a country “seemingly gone forever”, “which will not return” and that “is now no longer recognizable” (ix). Furthermore, he concludes, “wandering at will among the two communities is now impossible” (ix). Indeed, just before Thubron sets out on his Cypriot journey in 1972, he tells us that an old Greek warns him of the danger of walking through the countryside by himself because of the Turks. The man that the traveller encounters in Khirokitia recommends him to visit Salamis and the castles around Kyrenia, but when he hears of Thubron’s intention to walk all the way there he cannot help shouting: “Do you know anything about this country? You won’t last a minute! The Turks will think you a spy. Any sentry could skewer you on the spot!” (2) The author responds that Grivas’ trained guerrillas in the Troodos Mountains are more to fear. The old man counterattacks: “[Grivas] eats Englishmen for dinner. He kebabs them. They just vanish” (2). The old man voices the tension existing between both Cypriot communities from a Greek point of view: “Seriously, the Greeks are all right. We are a hospitable, civilized people. But the Turks —may the Devil wipe his nose on them!— never trust a Moslem” (2). The traveller describes the town of Kouklia as “an optimistic community, in which Greek and Turk still live together” (11). According to Thubron, “the Turkish quarter, as always, was poorer than the Greek, but its poverty was of a clean, rural kind” (11). Giorgos, his cicerone in the village, describes “the misery of the Greek and Turkish friction”, although, he assures, they have always lived in peace side by side. Unfortunately, he goes on to say, “now we live together, in fear…” (12). Thubron notices that one can tell the communal identity of the

3 Although originally published in 1975 we quote from the 1986 Penguin paperback edition. Colin Thubron’s Journey into Cyprus 825

numerous village children by their heads: Turkish boys’ heads are shaven and Greek boys have longer hair (13). Thubron went into Paphos’ Turkish quarter, the theatre of bloody animosity in 1964 between Turks and Greeks, a decayed No-Man’s Land that looked like a 20th century Pompeii, only to find it guarded by bored United Nations soldiers (36). This visit gives way to a political conversation with Antis, a hotel owner (36-37). Thubron laments that the English are sometimes blamed by the Greeks for the rivalry between both ethnic communities on the grounds that it was the British who used the Turks against their War of Liberation and that they used the Turks as auxiliary police, two facts that stopped the two communities from being on friendly terms any more, an opinion offered by the hotel owner. Before the traveller can protest another Greek customer, Christos, a schoolteacher, confronts Antis by saying that the Turks did not want enosis with Greece and therefore they would have behaved the same, with or without Britain’s involvement. The traveller counterattacks mentioning EOKA and Antis leaves Christos to answer the Englishman’s attempt at a defence, as he himself had been a member of the resistance known as “Dracos”, head of the Gymnasium bomb group who had been imprisoned and tortured by the British, a fact that he casually admits “without a trace either of resentment or of guilt” (37). Sensing the Englishman’s distrust, Christos offers him the possibility of accompanying him to the prison camp where he was held and tortured. Both of them walk around the remains of the camp while Christos explains his ordeal. Christos implies having had to confess the information he was demanded about EOKA through torture: The Turkish auxiliaries did the torturing. The British officers cross- examined. I was tied down to a table. Then they blocked my nostrils and dripped water onto a scarf over my mouth. That way you have to take in water as well as air when you breath (sic). When my stomach was full, they started to punch it. They did it again and again, and day after day. The pain was like nothing I can explain. So that in the end I was glad when more of my friends were captured. When they were torturing them there was less time to torture me. (38) The mining town of Polis is the writer’s next stop, which he describes as a poor place full of unsmiling people, deserted shops and broken roofs and soldiers keeping an eye on foreigners like him. A local inhabitant tells him there is nothing in the town, except for a few orange groves and a UN post. Thubron describes the place as a ghost town: It was the only town I saw in which the owls dared to come in at evening and cry from the rooftops. In 1964 it was strafed by Turkish jets, and now half its walls were smeared with anti-Turkish slogans: ‘Up ENOSIS’, ‘Bring back Dighenis’. Resentment was in the air. (51) 826 Eroulla Demetriou / José Ruiz Mas

According to Thubron, the Greeks blamed the British for the sowing of the tension by having “granted the Turkish minority too large a share in the affairs of the island” (53). He then anticipates events when he affirms that after having lost many villages to the Greeks in 1963 and 1964, the Turks would have their revenge a year after Thubron’s visit to the area, that is, in 1974, “when all the north-east island —over a third of the country— was seized by their [the Turks’] invasion force” (53). Chapter 5 (“Into the Mountains”) starts with the author’s befriending of Hussein, the son of the muchtar of Ghaziveran, a Turkish village on the Morphou plain, who led a simple life in spite of being the richest in town. He was originally from Anatolia. The village had only recently been the battlefield against the Greeks, who had accused the Turks of having weapons hidden in their houses. Hussein explains the development of the battle (72-73). The radio news about the kidnapping of two Englishmen by Turkish anarchists leaves Hussein worried about the opinion that this will raise among the English: “‘Now the English will think us barbarians’, said Hussein tightly. ‘It will take years to forget’” (74). During their meal together (brandy and kebab) the Turk is still worried about the Anglo-Turkish relations: “Would the English forget them in time? He picked up the last bottle; the dregs gurgled into my glass. What did the English think of Turkey? If you said ‘Turk’, what did they feel? I pretended to have my mouth full” (75). Hussein is aware of the importance of having the writer and Britain in general on the side of the Turkish cause and insists on knowing the English opinion and at least on making sure that Thubron writes in their favour. The writer’s visit to the secret casino (Moslem law forbids gambling and drinking brandy) in the company of Hussein allows him the possibility to see and describe claustrophobic Turkish life within a Greek majority: “Men with open faces and slight moustaches, their days were consumed by the citrus orchards, guiding water down mud channels. (…) The Turk, like the Arab, is a natural existentialist” (76). After having got lost, not knowing whether he was in a Greek or Turkish area or even crossing some military boundaries, Thubron found an unnamed Turkish village (a very poor one, with no road, no electricity, living on goats). He finally welcomes the hospitality of a Turkish carpenter called Hamid (83). Hamid took the writer to his house and placed him among his family as if he was one more member, even though they hardly understood each other: Hamid only spoke a little English and Thubron very little Turkish (83). He kept a dog, one of the very few remaining specimens on the island. Due to a contagious disease spread by dogs, the Government passed a law to shoot them: “That’s the only thing we ever agreed with the Greeks: to shoot dogs”, the Turk remarks (83-84). A Greek Cypriot farmer called Loizos and the Englishman’s conversation drifts Colin Thubron’s Journey into Cyprus 827

towards Pano Koutraphas and the Greek-Turkish relations. The farmer explains that the people of Pano Kaoutraphas, both Greeks and Turks, left the village when the trouble started: “They’re ready to kill one another now. Yet they’ve lived together for centuries in one place. You would see them sitting —Greek and Turk together. (…) It’s very strange” (135). Then the traveller declares to having liked the Turks, but to his amazement, the farmer does not recriminate him (as others would have done, the writer says) and even admits that they are decent people, but does not know how to explain the reason for their enmity (135). In chapter 9 (“Nicosia”) Thubron admits to approaching Nicosia with dread, due to its sudden wealth and prosperity. According to him, Nicosia is a labyrinth of concrete, hotels, offices and Cubist suburbs where thousands of enriched ex- farmers have taken refuge (155). In contrast, as he approaches the barriers that isolate the Turkish sector, he finds that sluggishness and decay are dominant there and describes its position thus: “Now in Nicosia the Turkish sector is besieged by the resurgent Greeks” (161). During Thubron’s visit to St Hilarion castle, he finds out that it is part of a military area occupied by the Turkish Cypriots since the unrest of 1964. It is now “the stronghold of a Turkish enclave which straddled the Nicosia-Kyrenia road and refused passage to Greek traffic” (168). By mistake he leaps into the Turkish area and is stopped by a policeman (179). Before lifting the barrier for him, the policeman tells him about the position of the Turks in the communal troubles: ‘[The policeman’s father] pointed over the range. And that was how I saw my motherland. One day —a very clear day— as my father was herding the sheep into the water, he suddenly said “Look. Turkey.” I looked up and there was my country —like a ship on the horizon. It appeared wonderful, but too far away. And to this day, I’ve never been.’ ‘But you feel a Turk.’ ‘I am a Turk.’ [You aren’t a Greek?] ‘I a Greek?’ the policeman echoed. ‘No.’ He paused and repeated ‘No, and there’ll be no integration in Cyprus now.’ I mumbled that time could do anything. But his face had deadened. ‘Our young people don’t speak Greek any more. And the young Greeks don’t learn Turkish.’ He hit the iron gate softly with his fist. ‘The barrier has gone up.’ (180) As he walks through the so called “Red villages” (hamlets in an area of red soil), Thubron notices that the Turkish community has taken refuge in the old town and policemen and soldiers are vetting passports. Ruins, barren ground and rubble dominate the town within the ramparts, “like a corpse withered in its armour” (204). Several refugee families had settled in some of the churches of multiple medieval sects (204). When Thubron hears the beat of a drum in the 828 Eroulla Demetriou / José Ruiz Mas

distance he is told —in English— that the Turks are celebrating Ataturk’s proclamation of the Republic, an event that “keeps a people together”, in the words of the author’s informant, a Turk by the name of Kemal, who was holding a copy of Arnold Toynbee’s War and Civilization. Kemal justifies his possession of the book by saying: “we are giving ourselves confidence” (207). Kemal’s belligerent patriotism does not allow him to accept the faults of the Turks. The conversation with Kemal develops into an argument. The Turk denies any good qualities in the Greeks and in their causes and Thubron takes the role of opposing his opinions: ‘Mine are a good people,’ said Kemal as we followed the crowd into the streets, ‘and Cyprus is ours by right. We are conquerors, warriors. The Greeks are only merchants. ‘This is an age of merchants.’ ‘You in the West,’ he growled, ‘you think too much of the Greeks. You exaggerate. Don’t forget, civilization came from the East.’ (…) ‘In any case, these Cypriots —are they Greeks? No!’ He stamped in time to the music. No! No! No! They’re a mongrel lot. Arabs, Arameans, Phoenicians. Slave peoples! All this about ENOSIS —why should they want to be united to Greece? It’s a charade, a trick. There’s no drop of Greek in them…’ ‘But more Mycenaean remains have been found in Cyprus than …’ ‘Pottery!’ he boomed. ‘What does pottery prove? One day archaeologists will find the remains of German cars here. Will that mean there were German colonies?’ ‘The earliest histories tell of Greeks in Cyprus.’ ‘Propaganda.’ ‘Then why do the people speak Greek?’ ‘They’ve lost their own identity’, he half-shouted. He was growing angry. ‘Whoever they were, they’ve even lost their language!’ (212) A visionary such as Kemal —a Slavophobe himself— dreamt of all the Turkish people in the world united into a great brotherhood. He believes himself to be the typical Turk, a fact that the Englishman refuses to accept, for he says he has known lots of different Turkish people and they were not like him. He insists that the Turks are by nature a fine people, “the best on earth”, and their wrongs are due to the fact that they had previously been provoked (212-13): “If Greeks had suffered in their [the Turks’] hands, it was because of double-dealing” (212). Kemal then explains the main differences between the Greeks and the Turks: Greeks are fun-loving, crafty materialists and lovers of luxury whereas the Turks are terrible when it comes to having fun, they are simple, austere and moral, solemn and dignified. “So, you see, the first Greek characteristic is Slave! The first Turkish one is Ruler!”, he concludes (214-15). In order to try to ease the tension of the argument, Kemal remarks that he did not mean to be aggressive Colin Thubron’s Journey into Cyprus 829

but that “he badly wanted the world to understand his country. Not only his country, but his whole people” (213). Throughout his travel account Journey into Cyprus (1975), Colin Thubron presents the island as a battlefield —yet worse was to come in the very near future— between the two religious and ethnic communities of Cyprus, the Turks (hardly ever called Turkish Cypriots) and the Greeks (hardly ever called Greek Cypriots either), a fact that subtly reminds the reader of the alliance of the two communities to their respective “motherlands”. The troubles of 1963-64 were still rampant in 1972, the year when Thubron travelled throughout Cyprus, and the nearby troubles of 1974 and the tense atmosphere between both the Turkish and the Greek Cypriots are persistently presaged. The author gives plenty of evidence of this: the subtle presence of the UN soldiers, the factual occupation of some areas by soldiers belonging to one community or the other, the abandoned villages and their ruined roofless houses and the multiple examples of mutual incomprehension of the members of both communities. He does his best to avoid showing any preference or special sympathies for any of them; however, two or three times in the book he declares he likes the Turks, whereas he never does the same for the Greeks. He also gives ample evidence of examples where insults are uttered from a Greek about a Turk and in only one case from a Turk about Greeks in general. In spite of this, the author usually takes a defensive attitude in favour of the community criticised. This attitude proves two things: his reasonable amount of neutrality (though not always put into practice) on the issue of Greek Cypriot-Turkish Cypriot relations and his overt pessimism about achieving a positive solution for the reconciliation or the peaceful coexistence of both peoples and faiths in Cyprus.

Works cited Demetriou, Eroulla, and José Ruiz Mas. English Travel Literature on Cyprus (1878-1960). Granada: Centro de Estudios Bizantinos, Neohelénicos y Chipriotas and A. G. Leventis Foundation, 2004. Hadjidemetriou, Katia. A History of Cyprus. Translated by Costas Hadjigeorgiou. Nicosia: Hermes Media Press Ltd., 2002. Mallison, William. Cyprus, a Modern History. London, New York: IB Tauris, 2005. Panteli, Dr Stavros. The Making of Cyprus. From Obscurity to Statehood. Introduced by Professor Robert Browning. New Barnet, England: Interworld Publications, 1990. Thubron, Colin. A Journey into Cyprus. London: William Heinemann, 1975. Thubron, Colin. A Journey into Cyprus. Harmondsworth: Penguin, 1986.

O sentido da demanda e da viagem na Epopeia de Gilgameš

FRANCISCO CARAMELO Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

Epopeia de Gilgameš é o produto de uma longa história no que concerne à sua transmissão textual (D’Agostino 59-78). Originalmente, e ainda antes Ade emergir como composição literária com uma unidade próxima da que hoje conhecemos, registava-se a coexistência de um ciclo de Gilgameš, composto por vários episódios alusivos às aventuras do mítico rei-herói que deram lugar a uma série de textos independentes, escritos em sumério, por volta do séc. XXI a.C. (Sanmartín 50-51). São conhecidos presentemente cinco desses textos, o que não exclui a existência de outros, os quais terão feito parte de um processo de justificação e de legitimação ideológica e política da dinastia e do poder. No séc. XVIII a.C., surgiram as primeiras narrativas escritas em acádico, ainda longe de constituírem uma unidade literária. Sanmartín (51) não exclui a possibilidade de algumas dessas narrativas se agruparem em séries, o que justifica que hoje as designemos por versão babilónica antiga. Entre os sécs. XV e XII a.C., o interesse literário em torno das histórias de Gilgameš foi ganhando raízes na Mesopotâmia e mesmo fora dela (Sanmartín 51), dando origem, inclusive, a traduções noutras línguas e noutras áreas culturais. É o caso da tradução hitita, que ilustra bem a difusão literária da história de Gilgameš. Por volta dos sécs. XIII-XII a.C., o escriba Sîn-lēqi-unninni compôs aquela que ficou conhecida como a versão babilónica standard da Epopeia de Gilgameš (Sanmartín 51-52), utilizando os materiais disponíveis e dando origem a uma composição literária constituída por onze tabuinhas. Por fim, pelos sécs. VIII-VII a.C., já no período neo-assírio, é produzida a chamada recensão ninivita, tendo sido introduzida uma décima segunda tabuinha (Sanmartín 52). A longa história de transmissão textual da Epopeia de Gilgameš, com origem, provavelmente, numa tradição oral e num ciclo de lendas, ainda no III milénio a.C., desemboca assim nesta versão mais completa, que reflecte a recepção do texto no contexto cultural deste período. O propósito da nossa abordagem consiste em proceder a uma análise do texto em duas vertentes, que acreditamos terão sido concomitantes — uma dimen são ideológica e política, por um lado, e uma dimensão sapiencial e filosó fica, por outro. O poema épico começa por exaltar a figura de Gilgameš, aludindo à con - dição sobre-humana do herói, filho da deusa Ninsun. Estamos convencidos de que 834 Francisco Caramelo

esta ambiguidade relativamente à sua natureza — dois terços divino e um terço humano — terá contribuído para criar uma lógica de tensão e de paradoxo ao longo da narrativa. O herói almeja a imortalidade mas esta insiste em escapar- -se-lhe por entre os dedos, levando, ainda assim, o leitor ou ouvinte, o desti na - tário da história, de outrora como de hoje, a experimentar momen ta neamente essa tensão e dúvida acerca da (im)possibilidade de fugir ao destino ditado pelos próprios deuses quando criaram o homem. A tensão da narrativa reduz-se precisa - mente a essa dúvida que nos acompanha ao longo da história — saber se está ou não ao alcance do homem vencer o seu destino inexo rável. E, parado xalmente, não está, nem para Gilgameš, ainda que semi-divino. Na primeira tabuinha, o herói é-nos apresentado e traçadas as suas carac - terísticas físicas e psicológicas. Gilgameš é senhor de uma beleza e de uma complei ção física incomparáveis e dotado de uma sabedoria e de uma coragem que o distinguem da humanidade, aproximando-o dos deuses. Mau grado esses inigualáveis atributos, regista-se, nesta fase inicial da história, uma certa censura moral do herói, que é rei de Uruk. Este mostra-se arrogante (Caramelo, The epic of Gilgamesh 233). Oprime o seu povo e os lamentos chegam aos ouvidos dos deuses. O móbil da acção é, na verdade, a arrogância do rei-herói que despreza o seu povo, não cumprindo assim os desígnios divinos. A confiança divina, mate - rializada na escolha do rei e assim na legitimação do seu poder, destinado a exercer uma missão ordenadora, via-se, desta forma, defraudada. O paradigma da realeza encontrava sentido na imagem do pastor, analogia que, na mentali - dade e na literatura mesopotâmicas, traduzia de forma eficaz a missão ordena - dora do rei. Ora, Gilgameš, com os seus excessos e com a sua altivez, estava nos antípodas desse paradigma e, ao invés de governar com justiça, era, ele próprio, origem de desordem. Os deuses eram não só a origem do poder como também reguladores da ordem. O poder real não era, por conseguinte, do ponto de vista ideológico e religioso, ilimitado ou absoluto. Era concedido e confiado pelos deuses mas de forma condicional. É esse o raciocínio e a lógica que estão subjacentes a esta passa gem da primeira tabuinha. Se Gilgameš não estava a corresponder às expec - tativas divinas, os deuses encontram uma forma de o condicionar, que consiste na criação de Enkidu, um herói com um poder comparável a Gilgameš e que se destinaria a contrabalançar a sua acção desequilibrada. Enkidu começa por significar e representar uma série de características que constituem a antítese de Gilgameš. As duas personagens reflectem a antítese entre o homem civilizado, representado por Gilgameš, e uma espécie de proto- homem, expressão ambígua de primitivismo e de inocência ou ingenuidade, por um lado, e de natureza selvagem e de barbárie, por outro. A natureza apa ren - temente indómita de Enkidu é, no entanto, domada pelo amor e pelo sexo da O sentido da demanda e da viagem na Epopeia de Gilgameš 835

prostituta Šamhat. A entrega ao amor e ao prazer carnal levam-no a perder o seu carácter original e a humanizar-se. A intimidade e a convivência com os animais deixam de ser possíveis, uma vez que estes fogem agora quando aquele se aproxi - ma. A humanização de Enkidu completa-se quando este come pão e bebe cerveja pela primeira vez. Efectivamente, estes simbolizavam o triunfo do homem e da civilização sobre a natureza. O paradigma do homem sedentário, agricultor, que domestica a natureza em seu proveito, era bem representado pelo pão e pela cerveja, ambos produtos da transformação e da acção humana. Diferente, desadaptado agora ao que fora até então o seu meio, Enkidu penetra no mundo dos homens. Escutando, também ele, os ecos dos excessos de Gilgameš, resolve intervir, tornando o duelo com o herói de Uruk inevitável. A pele ja revela-se dura e demorada mas Enkidu acaba por reconhecer a superiori - dade de Gilgameš, nascendo entretanto uma amizade entre os dois contendores. O herói de Uruk propõe então ao seu amigo a primeira aventura — rumar à longínqua floresta dos cedros e matar o seu guardião sagrado, Humbaba. Enkidu, voz da sensatez e da prudência, acompanhado mais tarde pelos anciãos da cidade de Uruk, procura dissuadi-lo do temerário intento, mas em vão. Gilgameš insiste no seu propósito, sequioso de glória, ansioso por trilhar caminhos que nunca percorreu, ávido de descobrir o desconhecido e de realizar façanhas inolvidáveis. À entrada na floresta de cedros, os aventureiros avistam, pela primeira vez, o terrível Humbaba. Este fala-lhes, questionando-os sobre as suas intenções e pondo em causa o seu discernimento, por se atreverem a pisar estes terrenos proibidos, enfrentando-o. O guardião ameaça Gilgameš e o terror começa a apode rar-se do herói de Uruk. Pela primeira vez, este sente medo, duvidando da sensatez da sua decisão. Atemoriza-se perante o terrível esgar de Humbaba mas Enkidu incute-lhe novo alento, levando-o a recuperar a coragem. Com a ajuda de Šamaš, que envia os poderosos ventos contra o guardião, este fica mais vulnerá vel e exposto aos golpes desferidos por Gilgameš. O herói ainda vacila, hesitando em pôr fim à vida de Humbaba, mas Enkidu, mais uma vez, mostra-se resoluto e impele o amigo a matar o seu adversário. O medo que invade Gilgameš é a primeira fronteira da sua finitude, o primeiro instante da consciência dos seus limites, o primeiro vislumbre da sua humanidade. A notícia da morte de Humbaba chega aos ouvidos de Ištar, que se deixa encantar pela formosura do herói. A deusa promete-lhe o poder e a fortuna, preten dendo desposá-lo. Surpreendentemente, Gilgameš repudia a oferta, argu - mentando com a volubilidade dos amores de Ištar e com a efemeridade das suas relações. Acusa-a de ser caprichosa e recusa assim o seu convite sedutor. A relação de Ištar com Gilgameš pressupunha e reflectia, provavelmente, o mito do casa - mento sagrado, que era um dos aspectos fundamentais do complexo ritual do Ano Novo. Efectivamente, este rito celebrava a renovação da natureza e da sua 836 Francisco Caramelo

fertilidade, mas também era a ocasião em que se reafirmava a escolha divina e o poder do rei. O ritual hierogâmico simbolizava essa eleição, através da união do monarca com Ištar, representada por uma sacerdotisa. Era assim um tempo de reafirmação e de renovação da ordem nas suas várias dimensões (Caramelo, O ritual de Ākitu 157-160). Subsiste, todavia, a dúvida sobre a motivação da recusa de Gilgameš. O que terá levado o herói, rei de Uruk, a refutar a tentadora oferta de Ištar? Na lógica interna da narrativa, no domínio das relações afectivas entre as duas persona - gens, será suficiente a argumentação usada por Gilgameš, no entanto, no plano ideológico e religioso, o mito era verdadeiramente estruturante da ideia de realeza, pelo que a recusa do rei-herói se revelava ilógica. Não deixará, não obstan te, de ter o seu significado. Será que Gilgameš não se encontrava ainda preparado para a assunção do seu papel e da sua missão? Não será esse, afinal, o sentido da demanda? Alcançar a maturidade, tomar consciência dos seus limites e de que só os deuses são imortais, atingir a sabedoria e estar assim preparado para governar. A rejeição significaria não apenas o repúdio da deusa, mas sobre - tudo a recusa em aceitar o seu lugar na ordem terrena, isto é, em ser verdadei - ramente rei. Gilgameš não tinha ainda alcançado a maturidade e não estava preparado para regressar a Uruk, assumindo a sua missão. Ištar, contrariada com a rejeição de Gilgameš, queixa-se a seu pai, Anu, exigindo vingança. Pede-lhe que liberte o Touro do Céu, criatura terrível, que inspirava o medo. Anu, relutante, acaba por ceder à insistência da filha. Quando o touro resfolegava, abriam-se abismos na terra e sucumbiam multidões, o que constitui, certamente, uma alusão aos sismos e ao temor que estes inspiravam, bem como às suas terríveis consequências. O combate entre os dois heróis e o Touro do Céu é terrível e a sua descrição lembra a tauromaquia. Vencem-no e matam-no, o que deixa Ištar ainda mais transtornada e inconformada. Os próprios deuses estão insatisfeitos com a situa - ção, decidindo que após a morte de Humbaba e do Touro do Céu alguém teria de pagar por semelhante arrojo. Na verdade, as acções de Gilgameš, tanto no caso do desafio a Humbaba como no do repúdio de Ištar, são avaliadas pela assembleia dos deuses de forma desfavorável ao herói. Esta provocação é implicitamente entendida como sinal da imaturidade de Gilgameš. Este desafiara a ordem e o poder dos deuses e eles não podiam tolerar tal afronta. O herói ofendera os deuses, ao eliminar as suas criaturas, e por isso devia ser castigado. Decidem, no entanto, poupar a vida a Gilgameš e condenar, em seu lugar, o seu dilecto amigo e companheiro de aventuras, Enkidu. A enfermidade era, na men talidade mesopo tâmica, entendida como um castigo que, tendo uma origem divina, culminava alguma falta ou transgressão humana. Neste caso, Enkidu caía enfermo como resultado do orgulho de ambos, que haviam desafiado a ordem divina. O sentido da demanda e da viagem na Epopeia de Gilgameš 837

A doença fatal atinge-o e ele, amargurado, amaldiçoa a prostituta que lhe deu a conhecer a civilização. Enkidu lamenta o seu destino e a tentação que o conduziu a este fim. Šamaš, no entanto, escuta-o e responde-lhe, dizendo-lhe que deveria, pelo contrário, abençoá-la, uma vez que Šamhat lhe dera o pão a comer e cerveja digna de um rei a beber. Fora ela também quem o vestira com magníficos vestidos e lhe proporcionara o encontro com Gilgameš. A morte de Enkidu produz uma dor profunda e incomensurável em Gilgameš. O relato deste pesar estende-se ao longo de uma elegia que ocupa a oitava tabuinha. Na seguinte, o herói, ainda amargurado, digerindo a morte do seu amigo, toma consciência, pela primeira vez, da possibilidade do seu próprio fim. Essa consciência abala-o, perturba-o profundamente, porque se revela mais uma fronteira da sua finitude. À mágoa causada pelo desaparecimento de Enkidu junta-se o temor da própria morte. Angustiado e atormentado por essa ideia, evolui de um estado psicológico de passividade para uma reacção à desdita. Resolve partir novamente, em busca de Uta-napišti e de sua mulher, os úni - cos a quem os deuses haviam concedido a imortalidade. Eles eram a excep ção que confirmava a regra. O destino dos homens era inexoravelmente a morte. Gilgameš não estava, no entanto, preparado para aceitar essa verdade e, moti vado pelo exem plo de Uta-napišti, decide procurá-lo e ir ao seu encontro nos confins do mundo. O caminho é longo e tortuoso, assinalando desde logo a enorme difi cul - dade em cumprir esse desígnio de chegar até Uta-napišti, o longín quo. O primeiro grande obstáculo é o monte Māšu, por onde quotidia namente entrava e saía Šamaš. Todos os dias, o sol mergulhava nas profundezas e todos os dias renascia, rompendo o monte Māšu. Essa porta era guardada por homens-escorpião, que, ao avistarem Gilgameš, reconheceram a sua natureza quase divina. Perplexos com a presença do herói, chegado de tão longe, dispõem-se a ouvir a sua história e este, atemorizado pela visão destas criaturas fantásticas, explica-lhes a razão da sua demanda. Apesar de jamais alguém ter atravessado esta porta, os homens- -escorpião compadecem-se com a história de Gilgameš e permitem-lhe a passa - gem, mergulhando nas profundezas e na obscuridade do interior do monte Māšu. Vencidas as doze léguas duplas, o herói encontra finalmente a luz e descobre um magnífico jardim de cujas árvores pendiam pedras preciosas. À beira do mar, vivia a taberneira Šiduri que, num primeiro momento, o receia. No entanto, Gilgameš explica-lhe a razão da sua presença ali, bem como o motivo por que o seu semblante se mostra tão carregado e sofrido. O herói expõe o seu medo mais profundo: se o seu amigo Enkidu retornou ao barro, não lhe estará a ele também reservado semelhante destino? O homem, que havia sido moldado e criado pelos deuses a partir do barro, estava fatalmente destinado a regressar ao barro. Gilgameš temia esse destino e tudo fazia para o evitar, convicto de que poderia imitar o longínquo Uta-napišti. 838 Francisco Caramelo

O herói de Uruk pretendia que Šiduri lhe mostrasse o caminho para chegar até Uta-napišti mas esta explica-lhe que jamais alguém atravessara aquele mar. Não obstante, e tal como na cena do diálogo com os homens-escorpião, a taber - neira acaba por lhe dizer como fazê-lo. Ur-šanabi, o barqueiro de Uta-napišti, poderia conduzi-lo à outra margem. A travessia era difícil e pelo meio ficavam as águas da morte, as quais se fossem tocadas tornar-se-iam letais. Esta imagem do barqueiro e do mar como uma derradeira fronteira, sugere, mutatis mutandis, a analogia com a religião grega. O rio Estige separava o mundo dos vivos do dos mortos. Caronte, o barqueiro encarregava-se de atravessar os defuntos e de os transportar até à outra margem, onde ficava o domínio de Hades que reinava sobre os mortos. Os paralelismos são notórios e devem reflectir a provável difusão destas ideias e de uma mitologia funerária por todo o mundo antigo, ainda que adaptando-se à idiossincrasia de cada cultura. Gilgameš é conduzido até à margem, onde se encontrava já Uta-napišti, que estranha a inusitada aparição. O imortal interpela o herói acerca da sua apa - rência cansada e desgastada e este relata-lhe, angustiado, as suas desven turas. Explica-lhe o seu inconformismo perante a inevitabilidade da morte, recusando o silêncio e a inacção. Por isso, decidiu fazer esta longa viagem e procurá-lo nos confins do mundo. Uta-napišti retorque-lhe, dizendo que a morte é inevitável e imprevisível. Explica que Mammitum, a fazedora do destino, em conjunto com os Anunnaki, os grandes deuses, fixaram a vida e a morte mas que não revelaram o momento em que esta teria lugar. Da intervenção de Uta-napišti resultam, pois, duas verdades insofismáveis, ontem como hoje: a morte é certa mas sem hora conhecida e nada permanece. A introdução do relato do dilúvio, onde Uta-napišti explica a Gilgameš como alcançou a imortalidade, terá, pro vavel mente, como finalidade demonstrar que o seu caso e a sua condição são abso lutamente excep - cionais e que se ficaram a dever a circunstâncias extra ordinárias. Apesar de lhe afiançar a natureza irrevogável da morte, Uta-napišti decide ajudá-lo. Esta decisão parece contraditória. Porquê ajudá-lo se tinha a convicção de que a imortalidade não estava ao alcance do herói? Parece-nos uma situação semelhante às que observámos com os homens-escorpião e com Šiduri. Por um lado, os interlocutores de Gilgameš mostram a sua compaixão. Apesar de lhe decla rarem a impossibilidade da sua missão, abrem-lhe caminho e dão-lhe os meios para procurar, ele próprio, realizar os seus intentos. Por outro lado, do ponto de vista da narrativa, parece valorizar-se, assim, a ideia de que é necessário experimentar o erro, o fracasso, para concluir efectivamente aquilo que já havia sido enunciado em teoria. Apesar de dito, urgia comprovar o enunciado através da experiência e da prática. O ingénuo e esperançado Gilgameš repre senta aí a própria humanidade, que deve compreender e aceitar a sua finitude. O sentido da demanda e da viagem na Epopeia de Gilgameš 839

Uta-napišti desafia o herói a aguentar seis dias e sete noites sem dormir. Deduz-se que se ele vencesse esse desafio talvez pudesse alcançar o que dese - java. Mas Gilgameš não resiste ao sono, que rapidamente se apodera dele. Não deixa de ser interessante esta associação implícita da morte ao sono. Não terá sido um simples desafio, uma espécie de obstáculo a ultrapassar para obter algo. Parece-nos que o repto de Uta-napišti comporta uma dimensão pedagó gica. Se o homem não resistia ao sono, que dele se apoderava, mesmo contra a sua vontade, como poderia resistir à morte? O herói de Uruk aceita agora, conformado, o seu destino. Nada podia fazer para alterar a ordem natural da vida. Isso tinha-se tornado evidente, não por ter sido dito mas por haver sido experimentado. Uta-napišti e a mulher resolvem consolá-lo, explicando-lhe que existe uma planta secreta no fundo do mar que lhe permite rejuvenescer. Gilgameš apodera-se da planta, pretendendo levá-la consigo para Uruk, mas, pelo caminho, uma serpente1 surripia-lha, retirando-lhe também esse doce consolo. O herói está assim reduzido à sua humanidade. Conformado com a inevitabilidade da morte e da velhice. A viagem de Gilgameš apresenta-se inicialmente como uma aventura pelo mundo desconhecido, por regiões inóspitas, como a montanha, o mar profundo, regiões obscuras, por espaços jamais pisados pelo homem. Esse espaço fantástico opõe-se ao espaço civilizado, conhecido e domesticado, de que Uruk era o expoen - te máximo. O herói depara-se com adversidades e obstáculos aparen temente intransponíveis mas que ele vai conseguindo ultrapassar, mergu lhando no desco - nhecido. A sua primeira motivação consiste em vencer o ócio e em alcançar a glória. Todavia, a partir da morte de Enkidu, tudo muda. A demanda de Gilgameš justifica-se doravante pela urgente necessidade de descobrir a imortalidade. No final da sua viagem, o herói compreende que não pode libertar-se da lei da morte e regressa a Uruk transformado. Para concluirmos isto devemos voltar à primeira tabuinha e ao intróito. Ainda antes de iniciar a descrição da aventura do herói, o narrador apresenta Gilgameš, descrevendo-o como alguém que viu mais longe e mais fundo, que se destacou pela sua sabedoria e pela compre ensão de todas as coisas, que descobriu o que estava oculto e era desconhecido e que revelou aos outros um conhecimento ante-diluviano.2 É esse Gilgameš que regressa a Uruk, não o inconformado e arrogante herói que partiu em busca de glória. No intróito, o narrador diz-nos que ele regressou

1 O episódio serve também para explicar o fenómeno da mudança da pele na serpente e o seu aparente rejuvenescimento. 2 Provavelmente uma referência ao que Gilgameš aprendeu com a experiência de ter conhecido Uta-napišti. 840 Francisco Caramelo

de uma longa viagem e que, embora conformado, se encontrava em paz. Alcan - çara essa paz interior através da consciência das fronteiras da sua humanidade e da sua finitude. Experimentara o medo, a dor e o sofrimento pela perda do amigo, a frustração de não realizar o que almejava, a consciência do seu envelhe - cimento e da sua morte inevitável e esses limites haviam-no tornado mais humano. A Epopeia de Gilgameš é, por conseguinte, um texto com um carácter polis - sémico. Por um lado, sugere uma leitura sapiencial e filosófica que explora esta dimensão interior, pessoal, psicológica, talvez até mística e iniciática. Por outro lado, o texto épico apresenta paralelamente uma leitura política e ideológica. Nesse sentido, o texto constitui uma reflexão sobre a condição de rei, sobre a sua missão, sobre as suas expectativas e sobre os limites do seu poder. Come - çando por nos mostrar como não deve agir um rei, leva-nos a compreender que o poder, confiado pelos deuses, deve ser merecido pelo seu eleito, evidenciando assim a existência de um paradigma de realeza.

Bibliografia Caramelo, Francisco. “The epic of Gilgamesh: travelling the world and spiritual search.” Travel (of) Writing. Ed. Adina Ciugureanu and Eduard Vlad. Constanta: Ovidius University Press, 2007. 233-37. Caramelo, Francisco. “O ritual de Ākitu — o significado político e ideológico do Ano Novo na Mesopotâmia.” Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 2005: 157-60. D’Agostino, Franco. Gilgameš o la conquista de la inmortalidad. Trans. Francisco del Río Sánchez. Madrid: Trotta, 2007. Sanmartín, Joaquín. Epopeya de Gilgameš, rey de Uruk. Madrid: Trotta, 2005. A viagem iniciática de Lúcio n’ O burro de ouro

LEONOR SANTA BÁRBARA Centro de História da Cultura, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

s Metamorfoses, ou O Burro de Ouro, de Apuleio é um romance que apre - senta alguma originalidade relativamente ao que é usual nos roman ces da AAntiguidade. Narrado na primeira pessoa pelo seu (anti-)herói, dá-nos a conhe cer não só as suas aventuras, mas ainda uma série de histórias que vai ouvin do ao longo da viagem que faz. Estas histórias são, na maioria das vezes, con tadas por outras pessoas para além de Lúcio, o que dá ao romance uma estru - tu ra relativamente complexa. Viagem e histórias encontram-se par a par e com um objectivo idêntico: acompanhar e ilustrar a peregrinação de Lúcio, as suas tribula ções, até recuperar a forma humana, atingindo, simultaneamente, um nível superior.

Lúcio parte da sua terra em direcção a Hípata, na Tessália, onde iria resolver assuntos de família. Esta viagem atrai-o particularmente, dada a sua grande curiosidade em questões de magia. O romance inicia-se na etapa final da viagem, com a chegada a Hípata, fase esta que é acompanhada por uma história — a de Sócrates — contada por um companheiro de jornada, Aristómenes.1 É uma história que alerta para os perigos das feiticeiras, quer do modo como atraiem os outros, quer do modo como punem os que tentam fugir ao seu domínio. Lúcio, contudo, não lhe dá a devida importância, permitindo que a sua curio sidade se sobreponha à realidade e às consequências de uma aproximação às feiticeiras. Já em Hípata, o jovem volta a ser advertido por uma amiga de sua mãe contra os perigos da magia e, mais precisamente, com o cuidado que deve ter com Pânfila, a mulher do seu anfitrião, que era uma terrível feiticeira. Esta

1 Cf. Apuleio, O Burro de Ouro, 1. 5. 1-19. 12. Aqui temos as desventuras de Sócrates, que, tendo ido à Macedónia em negócios, foi assaltado quando regressava à pátria. Dirigiu-se a uma estalagem e contou à estalajadeira, Méroe, a sua desventura. Ela acolheu-o, deu-lhe abrigo e alimento, mas também o seduziu, o que provocou uma “dependência duradoira e doentia” de Sócrates, levando-o a abandonar completamente a família. Aristómenes pretende libertá-lo e levá-lo de novo para casa — embora o receio de Sócrates relativamente ao poder da feiticeira seja grande —, mas durante a noite duas mulheres entram no quarto onde dormiam, cortam a cabeça de Sócrates e colocam uma esponja no lugar do pescoço, dizendo: “Esponja, tu que nasceste no mar, livra-te de passar o rio”. Depois disto, vão-se embora. Contra as expectativas de Aristómenes, Sócrates não está morto e os amigos partem. Mas ao chegarem à beira de um rio, onde decidem parar para comer, Sócrates bebe um pouco de água e a esponja cai, deixando-o inanimado. 844 Leonor Santa Bárbara

advertência é acompanhada de nova história, desta feita contada por Télifron, que a viveu e sofreu as suas consequências.2 Estas duas histórias têm um traço em comum: a degradação do indivíduo, que involuntariamente entra em con tac - to com feiticeiras, e o seu consequente afastamento da pátria e da família. Mas, mais uma vez, o episódio só serve para aumentar a curiosidade de Lúcio. Ao saber que Pânfila é feiticeira, Lúcio decide seduzir Fótis, para ter acesso aos conhecimentos de magia. E confirma que é bem sucedido no dia em que Fótis o vai chamar, porque Pânfila, para se encontrar secretamente com um ena mo- rado, decidira transformar-se em pássaro. Às escondidas, Lúcio vê o modo como se processa a transformação de Pânfila em coruja; não contente, decide que quer sofrer a mesma experiência e não desiste enquanto não con ven ce a serva. Mas esta, nervosa, troca o unguento e como resultado ele vê-se transfor mado em burro. Fótis leva-o para a cavalariça, comprometendo-se a ir, na manhã seguin te, buscar rosas para ele comer — o remédio que o fará recu perar a forma humana. No entanto, nessa noite a casa de Milão é assaltada e Lúcio-burro é levado, juntamente com o seu cavalo branco, para carregar o fruto do roubo. Inicia-se aqui uma segunda fase nas viagens de Lúcio, uma viagem involun - tária, em que é levado contra-vontade, passando por inúmeras peripécias e por vários donos. Lúcio, lembrando-se do que lhe dissera Fótis, ainda tenta comer as famosas rosas, mas as tentativas saem-lhe frustradas: as primeiras que vê, na estrada, afinal são outras flores; mais tarde, encontra outras que são venenosas; entretanto, considera (apesar da forma de burro, não perdeu as qualidades humanas) que será melhor esperar por um momento mais oportuno, pois se recuperasse a forma humana àm frente dos ladrões, com certeza seria morto por eles, para que os não denunciasse.

2 Cf. Apuleio, O Burro de Ouro, 2. 21. 3-30. 9. Durante uma viagem, chega Télifron a Larissa (a mesma cidade em que se desenrolara a história de Sócrates), quando se lhe depara uma cena curiosa: um ancião que proclamava que pagaria bem a quem aceitasse velar um defunto. O motivo era o facto de ser hábito na região as feiticeiras retirarem aos cadáveres partes do seu corpo. Télifron aceita a incumbência. O defunto é examinado perante a viúva e sete teste - mu nhas, para que todos saibam bem em que estado se encontra o corpo, e os dois (Télifron e o cadáver) são encerrados num compartimento, para passarem a noite. Surge, de repente, uma doninha, que olha afoitamente para Télifron. Este manda-a embora, mas quando ela sai, adormece profundamente. No dia seguinte, o cadáver encontra-se incólume e Télifron recebe o seu pagamento. No entanto, no momento do funeral, um tio do defunto acusa a viúva de ser a assassina do marido e, para o comprovar, chama um sacerdote egípcio que, momentanea - mente, traz o morto de volta à vida. Este confirma que foi assassinado pela mulher, mas anuncia também que, se tem o corpo intacto, é apenas por ter o mesmo nome do seu vigilante. De facto, durante a noite, feiticeiras chamaram pelo morto, mas sendo o nome o mesmo, quem respondera fora o vigilante, que assim, sem o saber, perdera as orelhas e o nariz. A viagem iniciática de Lúcio n’ O burro de Ouro 845

Temos, de novo, uma viagem acompanhada por várias histórias: Eros e Psique (Apuleio, O Burro de Ouro, 4. 28. 1-6. 24. 4); a história de Cárite, Tlepó lemo e Trasilo (Apuleio, O Burro de Ouro, 8. 1. 1-14. 5); a história do escravo que se apai xona por uma mulher livre e é morto (bem como os filhos) pela mulher (Apuleio, O Burro de Ouro, 8. 22. 2-4); a história da mulher adúltera, que trai o marido e, quando este chega, esconde o amante num tonel (Apuleio, O Burro de Ouro, 9. 5. 1-7. 6); a história do moleiro (a quem Lúcio foi vendido) e da sua mulher (Apuleio, O Burro de Ouro, 9. 14. 2-29. 4) — aqui intercalam-se duas histó rias: a de Filesítero (Apuleio, O Burro de Ouro, 9. 16. 1-21. 7) e a que o moleiro conta sobre o adultério da mulher do amigo (Apuleio, O Burro de Ouro, 9. 24. 1-25. 6); a história dos três irmãos; a história da madrasta que se apaixona pelo enteado (Apuleio, O Burro de Ouro, 10. 2. 1-12. 5); a história da homicida (Apuleio, O Burro de Ouro, 10. 23. 3-28. 5). Estas histórias vão surgindo acompanhando a viagem e os donos que Lúcio vai tendo. Nalguns casos, constatamos uma clara oposição entre a realidade de Lúcio e o teor das histórias: são mais leves (ou, pelo menos, ficam sem punição no final), quando a situação do burro é mais dura; mas quando a situação dele melhora (como as duas últimas), o teor das histórias piora. Outras remetem-nos para figuras mitológicas largamente tratadas na literatura greco-latina: a história do escravo que se apaixona por uma mulher livre e que é morto por ela, tal como os seus filhos, recorda imediatamente a figura de Medeia, também ela respon - sável por vários assassínios, entre os quais o dos próprios filhos; do mesmo modo, a história da madrasta que se apaixona pelo enteado remete-nos para a figura de Fedra, conhecida pela paixão que nutriu por Hipólito. Há, no entanto, uma história que deve ser referida com mais pormenor devido ao seu paralelismo com a do próprio Lúcio — a de Eros e Psique. Trata-se de uma história que vem na sequência de outra, a do rapto de Cárite pelo grupo de ladrões em cuja posse Lúcio se encontrava, rapto esse que ocorrera precisa - mente no dia do casamento da jovem. Esta estava tão angustiada que a velha — a quem os ladrões deixaram a incumbência de olhar por ela — decidiu contar-lhe uma história para a distrair. O curioso burro ouve-a atentamente pela janela. Os reis de uma cidade tinham três lindas filhas. Enquanto as mais velhas casa ram com reis de cidades vizinhas, a mais nova, Psique, jovem de notável beleza, era admirada por todos, mas sem encontrar pretendente. Consultado pelo rei, o oráculo de Apolo aconselhou-o a preparar o cortejo de casamento, que deveria acompanhar a jovem ao cimo de um monte, onde deveria ser abandona - da. Aí a iria buscar o marido, um monstro cruel, feroz e viperino, temido até por Júpiter. Perante a desolação dos pais é a jovem que decide que se deve cum prir o oráculo divino. Depois de abandonada no cimo do monte, o suave Zéfiro leva-a e depõe-na numa clareira, onde adormece. Ao acordar, vê uma casa maravilhosa, 846 Leonor Santa Bárbara

que mais parece uma obra divina. Dirige-se para lá e é recebida por vozes que a recebem com afabilidade informando-a que se trata da sua casa, preparando-lhe um banho e uma refeição. Já de noite, sente a chegada de alguém: é o marido, que a avisa de que não tem nada a temer, embora nunca deva tentar saber quem ele é; a sua relação deverá permanecer secreta, se ela quiser preservar a sua felici dade; ele virá todos os dias à noite e sairá antes do amanhecer. Esta relação mantém-se durante algum tempo e Psique sente-se feliz. Mas a ameaça paira no ar: o marido adverte-a de que as irmãs a procuram, tentando conhecer o seu para deiro. É o apelo da família. A jovem Psique não pode deixar de sentir sau da - des dela e suplica ao marido que permita que a visita das irmãs, aceitando a condição, por ele imposta, de que não deve falar dele. As suas riquezas, a sump - tuosidade da casa, a sua felicidade despertam nas irmãs o despeito e a inveja. Numa segunda visita, fazendo-lhe perguntas, percebem que Psique desco nhece o marido, de quem entretanto engravidara. Invocando o amor fraterno, recor - dam-lhe o oráculo e dão-lhe alguns conselhos: ela deverá descobrir e matar o monstro que dorme com ela, antes de dar à luz um outro monstro. Crédula, Psique prepara tudo de acordo com as advertências fraternas mas, para seu grande espanto, ao pegar na lamparina percebe que quem se deita ao seu lado é o deus do amor, em cujas flechas se fere. Trémula, deixa que um pingo de azeite caia sobre o ombro do deus adormecido. Ao ver-se descoberto, este abandona-a, censurando-a duramente e pondo fim à sua felicidade. Percebendo que fora vítima da maldade das irmãs, Psique parte: primeiro para se vingar; depois em busca do marido perdido. Suplica às deusas — Juno e Ceres; mas estas, querendo evitar problemas com Vénus, recusam-lhe a sua ajuda, aconselhando- a a procurar a deusa do amor e da beleza. Esta, entretanto, já tomara conheci - mento do sucedido, quando o filho ferido fora procurar o seu auxílio. Nesse momento, percebeu que ele lhe desobedecera, visto que ela lhe ordenara que inspirasse a Psique o amor pelo mais vil dos mortais! Irada, envia uma serva em busca da jovem, no intuito de a punir. É desta forma que Psique chega à presença de Vénus. Esta impõe-lhe, sucessivamente, quatro tarefas: separar sementes várias, que se encontravam todas misturadas; ir buscar um floco de lã de ouro, do rebanho do Sol; ir buscar água da fonte do Estige; e, finalmente, ir aos Infer - nos pedir a Prosérpina que coloque numa caixa, que a deusa entregara à jovem, um pouco do seu pó embelezador. Apesar da angústia e do desespero, Psique consegue realizar as tarefas impostas. Na última correria seriamente o risco de perder a vida, não se desse o caso de ser auxiliada por Eros, que entretanto se apercebera da sua presença em casa da mãe. O deus não só a leva de volta, como vai pedir a Júpiter que conceda a imortalidade a Psique e que os case. É o final feliz de uma história que termina com a ascensão da jovem à condição de imortal. A viagem iniciática de Lúcio n’ O burro de Ouro 847

Estamos perante o conto mais longo que este romance nos apresenta e tam - bém o mais relevante, dado o paralelismo da situação: tal como Lúcio, também Psique passa por várias provações que a conduzem a um nível superior, quando obtém a imortalidade e casa com Eros. Além disso, tal como Lúcio, também Psique é vítima da sua curioisdade, primeiro devido à acção das irmãs, mais tarde, por iniciativa própria, quando decide abrir a caixa que Porsérpina lhe dera. Se, no primeiro caso, as consequências são duras, levando-a numa viagem que culminará na sua ascensão ao mundo divina, no segundo, ela é salva por Eros, o amor. Este paralelismo da situação deveria dar a entender a Lúcio que também para ele se anuncia um final feliz: a sua curiosidade — apesar dos avisos das histó - rias de Aristómenes e de Télifron, que ele descurou — conduziu-o à decadência sob a forma do burro. Durante algum tempo, ele passa por diversas peripécias humilhantes, sempre vítima da sua curiosidade, que irão culminar no momento em que deve ter relações sexuais em público com uma assassina. A sua cons - ciência não lhe permite tal humilhação e foge até chegar a Cêncreas, colónia de Corinto, junto ao golfo Sarónico. Aí dirige-se para a praia, tentando evitar as multi dões, deita-se e adormece. Acorda durante a noite (“Andaria à volta da primeira vigília”3), vê a lua brilhante e, crente no poder desta divindade bem como confiante no destino (“Por outro lado, parecia que o Fado se saciara já com estas minhas provações tamanhas e acenava com a esperança de salvação, embora tardia”4) decide dirigir uma prece à deusa, não sem antes mergulhar a cabeça sete vezes (“número que mais convém aos rituais sagrados, conforme dispôs o divino Pitágoras”5), para se purificar: Rainha do céu — sejas tu Ceres nutriz, mãe e criadora dos cereais, que, transbordante de alegria por teres encontrado a tua filha, puseste fim ao antigo e selvagem costume de comer bolotas, mostrando-nos como desfru - tar de um tenro alimento, e agora cultivas os campos de Elêusis; sejas tu a Vénus celestial, que nos primeiros tempos do mundo uniste os sexos opos - tos, ao conceber o Amor, e garantiste a propagação do género humano atra - vés de uma eterna renovação da sua descendência, sendo agora objec to de culto em Pafos, num templo circundado por ondas; sejas tu a irmã de Febo, que alivias com calmantes as dores de parto, ajudando assim a criar multidões de povos, e és agora alvo de veneração nos ilustres santuários de Éfeso; sejas tu Prosérpina, que inspiras terror com lamentos nocturnos

3 Apuleio, O Burro de Ouro, 11. 1. 1. Uso, aqui e em todas as outras referências, a seguinte edição: Apuleio, O Burro de Ouro (tradução do Latim e introdução de Delfim Leão), Lisboa, Livros Cotovia, 2007. 4 Apuleio, O Burro de Ouro, 11. 1. 3. 5 Apuleio, O Burro de Ouro, 11. 1. 4. 848 Leonor Santa Bárbara

e cuja face triforme detém o avanço dos espectros, ao manter encerrada a passagem para os superiores domínios terrestres, tu que andas errante por bosques diversos e és propiciada através de cultos vários.6 É nestes termos que se dirige à deusa, pedindo-lhe auxílio. Esta anuncia-lhe o que se irá passar no dia seguinte: a festa em sua honra, a procissão, o sacerdote que levará na mão as rosas que ele deverá comer. Tudo sucede como a deusa anunciara. Mas há uma contrapartida: Lúcio deverá consagrar a sua vida a esta divindade, a única, a verdadeira — Ísis. De facto, os atri butos das divindades referidas por Lúcio na sua prece (alimen tação, propa - ga ção da espécie através do amor, auxílio nos partos, fecundação das semen tes) estão também ligados a Ísis e aos seus contributos para com os homens, já que ela terá ensinado as mulheres a moer, os homens a combater doen ças e a viver em família. Ao mesmo tempo é rainha dos mortos e re pre senta, no mito de Osíris, a terra fértil, que as cheias do Nilo fecundam anual mente. Aliás, Lúcio não só consagrará a sua vida a Ísis, mas também ao seu marido, Osíris, passando por várias iniciações. Ela é uma deusa benéfica, que o apoia, que perdoa a sua fraqueza, contras - tando com as divindades que encontramos no conto de Eros e Psique: estas são algumas das mais importantes no panteão romano: Vénus, Cupido, Ceres, Juno, Júpiter. Nenhuma delas, contudo, tem coragem de defender abertamente Psique, de a auxiliar no meio do seu sofrimento, permitindo que Vénus a puna duramente.

Podemos, assim, concluir salientando dois aspectos fundamentais desta viagem. O primeiro é o facto de, movido por uma curiosidade indevida, impró pria, Lúcio realizar um percurso que o irá transformar num ser melhor, dedi cando-se ao culto de divindades superiores: dois rituais de iniciação ao culto de Ísis, um ao de Osíris. A sua viagem é simultaneamente física e psicoló gica: desloca-se no espaço, embora com poucas referências geográficas, pois o mais importante são as vicissitudes por que passa, as histórias que ouve ou presencia, dado que são elas que vão contribuir para o modificar. Um dos aspectos dessa evolução está estreitamente associado à Providência e ao Destino, que o levam às cegas, por um mundo onde nem sempre os criminosos são punidos — como está patente nalgumas histórias — e onde nem sempre a justiça prevalece. O outro aspecto está relacionado com a oposição entre os deuses do panteão romano e os egípcios. O modo como os primeiros são caracterizados é um indício da sua decadência, ao mesmo tempo que serve para reforçar o carácter superior de Ísis. Todo este conjunto contribui para que as viagens fantásticas de Lúcio sejam uma forma de transformação, de evolução para um nível superior.

6 Apuleio, O Burro de Ouro, 11. 2. 1-2. Curiositas e mirabilia n’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes

VÍTOR RUAS Universidade dos Açores, Portugal

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

códice 166 da Biblioteca de Fócio1 apresenta-nos um resumo de uma obra que compreenderia vinte e quatro livros atribuída a um certo António ODiógenes.2 Esta comunicação tem por objectivo, por um lado, justificar o papel catalizador desempenhado pela curiositas, quer no desen volvimento da acção desta narrativa fantástica, quer na caracterização do próprio narrador; e, por outro lado, delimitar as características básicas que dão forma ao paradigma da viagem fantástica. Datável do século I d.C. ou da primeira metade do século II d.C., a narrativa de António Diógenes, As Maravilhas de Além Tule, pode ser definida como um romance de memórias de índole fantástica.3 Trata-se de uma obra a vários títulos original, que não se enquadra facilmente nos parâmetros literários preconizados até à época do seu aparecimento. Apesar de ser herdeira dos rela - tos de viagens histórico-etnográficos, apresenta outra ordem de características

1 Photius. Bibliothèque, 8 vols. Trad. R. Henry. Paris: Société d’Éditions ‘Les Belles Lettres’, 1959-77. Sobre o teor dos comentários de Fócio, vide Treadgold, W. T. The Nature of the Bibliotheca of Photius. Washington: Dumbarton Oaks, 1980 e Schamp, J. Photios, historien des lettres: La Bibliothèque et ses notices biographiques. Paris: Les Belles Lettres, 1987.

2 A edição utilizada é a seguinte: Diogene, Antonio. Le incredibili avventure al di là di Tule. Introd., trad. e notas de Massimo Fusillo. Palermo: Sellerio Editore, 1990. Optámos por utilizar esta edição, não só por estar actualizada, mas também porque nela se segue a divisão em parágrafos estabelecida por W. A. Hirschig (Erotici Scriptores, Paris: Didot, 1856. 507-512).

3 Segundo Todorov, o género fantástico é o campo de eleição para representar a ‘experiência dos limites’. Cf. Todorov, T. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, 1971. 240. Sobre a construção do fantástico, vide, a título de exemplo, Caillois, R. Au Coeur du Fantasti- que. Paris: Gallimard, 1965; Bessière, I. Le récit fantastique. Paris: Librairie Larousse, 1972; Furtado, F. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980; Steinmetz, J.-L. La littérature fantastique. Paris: Presses Universitaires de France, 1990; Derrida, J. “The Law of Genre”. Acts of Literature. Ed. Derek Attridge. New York: Routledge, 1992. 211- 252; Grivel, Ch. Fantastique-Fiction. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. 11-106; Malrieu, J. Le fantastique. Paris: Hachette Livre, 1992; Vázquez Rodríguez, A., ed. O relato fantástico. De Poe a Lovecraft. Vigo: Indo Ediciones, 1995; Pires, C. O Modo Fantástico e a Jangada de Pedra de José Saramago. Porto: Edições Ecopy, 2006. 35-115. 852 Vítor Ruas

que não permitem incluí-la nessa tradição literária.4 O recurso ao páthos amoroso aproxima-a do romance grego idealizado.5 Mas o tema da viagem fantástica por lugares não identificáveis na geografia real afasta esta obra do cânone literário novelís tico muito em voga na época do seu aparecimento. O nosso conhecimento de As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes reduz-se ao já mencionado resumo feito por Fócio — resumo que terá segura - mente tido uma maior divulgação através de uma versão latina datada do século XVI6 — e a dois fragmentos de papiro datáveis dos séculos II-III d.C. O patriarca bizantino do século IX, através de uma leitura crítica desta obra, deu-nos a conhe cer a estrutura, o estilo e algumas características etnográficas dos povos visitados pelos protagonistas.7 Por sua vez, os dois únicos fragmentos que possuímos desta narrativa, apesar de dimensão muito reduzida, permitem-nos con fir mar, não só o rigor aticista do estilo de António Diógenes a que alude Fócio, mas também a proximidade que esta obra apresenta em relação ao ro man ce grego.8 Na verdade, o páthos amoroso e a fuga dos protagonistas imposta por circunstâncias adversas constituem os temas dos fragmentos encontrados. O testemunho de Fócio centra-se mais na estrutura narrativa da obra do que na descrição de pormenores de ordem etnográfica.9 Fócio refere que Dínias, o protagonista da obra de António Diógenes, relata a Cimbas a longa viagem que empreendeu na companhia do seu filho, Demócares, motivado pela simples von - tade de conhecer (curiositas) outros lugares e outras gentes. No relato de Dínias a Cimbas, fica bem patente a importância dada ao registo oral.10 Na Odisseia,11

4 Sobre a questão, cf. Diogene, Antonio. Le incredibili avventure al di là di Tule. Introd., trad. e notas de Massimo Fusillo. Palermo: Sellerio Editore, 1990. 15.

5 De entre a vasta produção romanesca grega, apenas nos foram transmitidos cinco exemplares em forma completa. São eles: Cáriton. Quéreas e Calírroe. Trad. Maria de Fátima Sousa e Silva. Lisboa: Edições Cosmos, 1996; Xenofonte de Éfeso. As Efesíacas. Ântia e Habrócomes. Trad. Vítor Ruas. Lisboa: Edições Cosmos, 2000; Aquiles Tácio. Os Amores de Leucipe e Clitofonte. Trad. Abel Pena. Lisboa: Edições Cosmos, 2005; Longo. Dáfnis e Cloe. Ed. e Trad. J. Vieillefond. Paris: Les Belles Lettres, 1987; e Heliodoro, As Etiópicas. Teágenes e Caricleia. R. Rattenbury, Ed., T. W. Lumb, Ed. Rev. & J. Maillon, Trad. Paris: Les Belles Lettres, 19602. A respeito de fragmen tos de romances perdidos, cf. Stephens, S. A. & Winkler, J. J., Eds. Ancient Greek Novels: The Fragments. Princeton: Princeton University Press, 1995.

6 Cf. Diogene, Antonio. Le incredibili avventure al di là di Tule. Introd., trad. e notas de Massimo Fusillo. Palermo: Sellerio Editore, 1990. 97-107.

7 Cf. Ibidem 52-69.

8 Cf. Ibidem 69-71.

9 Esta é também a opinião de Borgogno, A. “Sulla struttura degli ‘Apista’ di Antonio Diogene”. Prometheus 1. 1975: 49-64. Curiositas e mirabilia n’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes 853

Ulisses faz o relato dos seus errores na ilha dos Feaces, descrevendo aos pre - sentes as terras e os seres fantásticos que conheceu (IX-XII). Mas entre Ulisses e Dínias há uma diferença significativa. Os errores de Ulisses surgem como a condição necessária para o seu regresso à pátria, que o herói vivamente anseia, ao passo que as aventuras de Dínias surgem em consequência de uma vontade individual de partir da sua pátria com um intuito meramente periegético. Além deste facto, importa igualmente referir que, no decurso dos seus errores, Ulisses supera inúmeros obstáculos; mas, para Dínias, viajar parece ser seguro e tranqui - lo, pois, segundo o resumo que nos fornece Fócio, Dínias aparentemente não se terá deparado com nenhuma adversidade ao longo da sua errância. Além dessa clara faceta de oralidade presente na obra de António Diógenes — que no período helenístico teve um grande recrudescimento devido à divul - gação de narrativas que relatam as façanhas de Alexandre, O Grande12 —, evidencia-se também uma nítida influência da historiografia grega no tópos do início de uma viagem motivada por curiosidade intelectual. Por exemplo, esse mes mo objectivo atribui Heródoto à viagem de Sólon ao Egipto e a Sardes (I, 29- 30).13 E não deixa igualmente de ser curiosa a utilização desse mesmo lugar- comum nas Metamorfoses de Apuleio (II, 1):14 também a viagem de Lúcio é deter - minada pelo mesmo princípio da curiosidade humana em querer conhecer o que parece velado; e, neste romance, assistimos ainda a uma insistência neste paradigma no conto de Eros e Psique, encaixado no interior da narrativa principal (IV, 28-VI, 24).15 Quer sob o impulso da fatalidade, como sucedeu com Iambulo,16 quer sob o impulso voluntário da aventura, a vontade de partir da pátria (apoikía) desper -

10 Na Literatura Grega, existem muitos exemplos da passagem à escrita de contos orais. Sobre a questão da literatura transmitida por via popular, cf. Hansen, William. Anthology of Ancient Greek Popular Literature. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1998. xvii- xxiii. 11 Homero, Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

12 Cf. Sirinelli, J. Les Enfants d’Alexandre. La littérature et la pensée grecques (334 av. J.-C. — 519 ap. J.-C.). Paris: Fayard, 1993. 282. 13 Heródoto, Histórias. Livro 1.º Introd. de Maria Helena da Rocha Pereira e Trad. de José Ribeiro Ferreira e Maria de Fátima Sousa e Silva. Lisboa: Edições 70, 1994. 73-4. 14 Apuleio, O burro de ouro. Trad. Delfim Leão. Lisboa: Livros Cotovia, 2007. 48.

15 Cf. Ibidem 107-147.

16 Iambulo viajava pela Arábia com objectivos comerciais; foi capturado por bandidos e levado para a Etiópia, onde como vítima de um sacrifício foi lançado ao oceano. Cf. Diodoro Sículo. Biblioteca Histórica 55, 2-4. 854 Vítor Ruas

tou, desde longa data, no homem grego um interesse bastante acentuado.17 Este estado de espírito revela-se claramente durante o período das colonizações gregas.18 Mas é na época helenística que vemos surgir com maior intensidade a «explosão da curiosidade» (a expressão é de François Chamoux).19 E para respon - der aos anseios de uma nova sociedade, o tema da viagem passou a figurar como tópos recorrente na literatura romanesca deste período da cultura grega.20 O imaginário de uma elite culta desenvolveu, então, um gosto pelas longas distâncias, por itinerários longínquos, que se estendem pelos mais variados espaços do mundo antigo conhecido. As conquistas de Alexandre propiciaram a descoberta de novos territórios; e, na época helenística, o cidadão grego que dispusesse de condições para viajar podia percorrer um espaço bem mais alargado do que o cidadão da pólis clássica. Neste ambiente sócio-cultural, começa a despontar uma literatura de viagem por lugares imaginários, em consequência de um desejo de ir cada vez mais longe. Deste modo, a vontade de iniciar uma aventura e a atracção por aquilo que é estranho, mas que se adivinha bem melhor do que a realidade, são os princípios impulsionadores da construção da utopia.21 Em relação à viagem de Dínias, Fócio refere que o narrador-protagonista se dirige, primeiramente, para Oriente; depois para Sul; e, por último, toma o rumo do Norte e chega à ilha de Tule, o lugar mais setentrional a que chegou Píteas de Massília na sua exploração pelo Árctico, sendo esta ilha hoje identificada com as Shetlands, a Noruega ou a Islândia.22 O percurso efectuado por Dínias corrobora a antiga crença de que o mundo habitado era circundado por um vasto oceano. Até esta etapa da sua periegese, a narrativa de Dínias segue os parâmetros convencionais dos relatos histórico-etnográficos resultantes de viagens de

17 Cf. André, J.-M. & Baslez, M.-F. Voyager dans l'Antiquité. Paris: Fayard, 1993.

18 Cf. Ibidem 12-18.

19 Cf. Ibidem 62.

20 Vide, a este propósito, García Gual, C. Los Orígenes de la Novela. Madrid: Istmo, 1988. 67; e Ruas, V. A viagem nos Antigos Romances Gregos. O Antigo e o Novo, o Real e o Fantástico. Ponta Delgada, 1995. 21 Sobre estes assuntos, vide Futre Pinheiro, M. “Do mito à utopia. Viagem ao mundo do imaginá - rio grego”. Actas do V Cogresso da APEC (Antiguidade Clássica e Nós: Herança e Identidade Cultural) , Braga, 2006, pp. 125-137; e Futre Pinheiro, M. “Utopia and Utopias: A Study on a Literary Genre in Antiquity”. Authors, Authority, and Interpreters in the Ancient Novel. Essays in Honor of Gareth Schmeling. Eds. Shannon Byrne, Edmund Cueva & Jean Alvares. Groningen: Barkhuis Publishing & Groningen University Library, 2006. 147-171. 22 Acerca de Tule, cf. Macdonald, G. “Thule”. Paulys Realencyclopädie der Altertumwissenschaft 6 A1. München: Metzler, 1936. 627-629. Curiositas e mirabilia n’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes 855

explora ção de regiões longínquas onde os exploradores encontraram formas de vida bastante diferentes das suas conhecidas. O narrador apoia-se na tradição literária para criar um horizonte de expectativa. Esta primeira parte do relato de Dínias evidencia-se como um espaço de narração que corresponde, por um lado, à percepção do espaço geográfico e, por outro, à integração, no continuum narrativo, de descrições de mirabilia. Segundo o resumo de Fócio, nestas parcas descrições, Dínias apresenta tudo aquilo que é estranho ao mundo natural e esta - belece comparações com as realidades conhecidas do mundo natural. O narrador- protagonista apresenta-se, desta forma, na qualidade de turista do seu tempo com um interesse especial por natureza e realidades civilizacionais. No decurso da sua viagem, evidenciam-se oposições muito demarcadas, que se articulam em combinações paralelas, entre as quais sobressaem sobretudo as oposições Oriente/Ocidente e terra/mar. O objectivo da viagem de Dínias é a descoberta de novas experiências por curiosidade intelectual. A curiositas constitui assim o agente catalizador do desen volvimento da acção narrativa.23 E não serve apenas de incipit do desen - rolar da acção; ao longo da teia narrativa, mantém-se como elemento impulsio - nador da acção, nutrindo-a e diversificando-a. Já em Tule, nos confins do mundo então conhecido, Dínias mantém uma relação amorosa com uma jovem chamada Dercílis, que, por sua vez, lhe faz o relato das suas errâncias: passou por Rodes, Creta, península ibérica e Itália; desceu ao Hades, tal como Ulisses e Eneias; regressou ao Norte da Hispânia; retrocedeu até à Sicília; e daqui dirigiu-se a Tule, para fugir aos malefícios do sacerdote egípcio Paápis. Os encontros entre Dínias e Dercílis ocorrem apenas durante a noite, devido ao facto de à jovem ter sido infligido um feitiço que a mantinha como morta durante o dia e a fazia ressuscitar durante a noite. Por inter cessão de Azúlis, que relata a Dínias os segredos tenebrosos de Paápis, a jovem liberta-se daquele feitiço e regressa a Tiro, na companhia do seu irmão, que a acompanhara nas suas errâncias, com o intuito de fazer ressuscitar os seus pais, também eles vítimas do feitiço do sacerdote egípcio. Como podemos facilmente verificar, na longínqua Tule surge a intervenção de um deus ex-machina, Azúlis, que vem pôr termo à infelicidade de Dercílis; e há ainda lugar para o páthos amoroso, à boa maneira do romance antigo. No entanto, importa sublinhar que o par amoroso não é constituído por dois jovens de uma beleza excepcional. Trata-se, na verdade, de uma relação amorosa entre um homem já maduro, que se faz acompanhar pelo seu filho, e uma jovem que encontra na maturidade do seu companheiro a compreensão e sagacidade para a resolução dos seus infortúnios. O descomprometimento entre ambos chega ao ponto de Dínias não acompanhar Dercílis no seu regresso a Tiro, para poder

23 Em relação à curiositas, vide o interessante estudo de Labhardt, A. “Curiositas. Notes sur l’histoire d’un mot et d’une notion”. Museum Helveticum 17. 1960: 206-224. 856 Vítor Ruas

prosseguir a sua viagem para além de Tule. A curiositas de Dínias manifesta-se também ao nível da experiência amorosa. Depois da paragem em Tule, Dínias continua a sua viagem, subindo ainda mais para Norte, até chegar à Lua;24 daí regressa à Terra, a Tiro, enquanto dormia, cumprindose assim o único desejo que um deus da Lua lhe concedeu. E passa o resto da sua vida em Tiro na companhia de Dercílis. Apesar de Dínias não regressar propriamente à sua pátria, a Arcádia, o seu regresso a Tiro, para viver junto de Dercílis, acaba por funcionar como o regresso ao ponto de partida, como sucedia nos antigos périplos. Além de impulsionar a dinâmica narrativa, a curiositas de Dínias serve também a função de elemento caracterizador do narrador-protagonista. A curio - sida de intelectual de Dínias obriga-o a um exílio voluntário em busca de uma alteridade. A confrontação entre um «eu» e um «outro» permite-lhe, por conse - guin te, uma mais apurada consciencialização da sua identidade social e cultural. A observação de diferentes realidades geográficas e culturais provoca em Dínias, primeiramente, um sentimento de estranheza. Mas este sentimento é de ime - diato substituído por uma inevitável sobreposição dialógica de referên cias ao mundo natural e extra-natural. Institui-se, assim, na mente de Dínias, um diálogo entre mundo natural e mundo extra-natural, do qual resulta a verifi ca ção da superioridade cultural e ética do «outro». O lugar recémconhecido passa a ser um lugar do saber que cabe ao herói desta história fantástica explorar e conhecer. O interesse principal do narrador-protagonista é a apresentação de um tempo e de um espaço, um cronótopo, no sentido bakhtiniano do termo,25 que se pode definir como fantástico, uma vez que se trata da referência a uma socie - dade e a fenómenos surpreendentes, fantasiosos, fora do comum. Na cons trução deste tempo-lugar, instaurase um sentimento de estranheza relativamente ao mundo extra-natural.26 Esse sentimento é partilhado por narrador, personagens e leitor. O relato feito na primeira pessoa, com o intuito de realçar o carácter testemunhal das experiências vividas ao longo de uma viagem fantasiosa por um mundo maravilhoso, reforça a credibilidade dos factos narrados. O resumo que Fócio faz d’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes não nos permite formar uma opinião segura acerca da filosofia de vida dos povos fantasiosos com que Dínias contactou no decurso da sua viagem. Mais preocupado com a estrutura narrativa a que obedecia o romance e com a histó ria trágica de

24 Muito antes de a Apollo 11, da Nasa, tripulada pelos astronautas Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins terem concretizado a chegada do homem à lua a 20 de Julho de 1969, a alunagem constituiu uma aspiração humana registada em vários relatos fantasiosos. Cf. Nicolson, M. Voyages to the Moon. New York: MacMillan, 1960.

25 Cf. Bakhtine, M. Esthétique et Théorie du Roman. Paris: Gallimard, 1978. 237-8.

26 Acerca da permanência da ambiguidade entre mundo natural e mundo extra-natural, cf. Furtado, F. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. 95-106. Curiositas e mirabilia n’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes 857

Dercílis, o patriarca pouco alude às particularidades civili zacionais daquelas regiões situadas para além de Tule. Por regra, refere que Dínias viu coisas espantosas e conviveu com homens de que jamais se ouviu falar.27 Mas a respeito da cosmologia do Extremo Norte, Fócio dá-nos algumas informações: afirma que é possível para alguns homens viver no Extremo Norte; e que a noite dura um mês, umas vezes mais, outras menos; pode prolongar-se até seis meses; e, no máximo, pode inclusive durar um ano; o dia também tem uma duração seme - lhante.28 Como se pode depreender, o mundo extraordinário que Dínias conhece é um universo de novidades, mais do que um universo do impossível. A construção do fantástico na obra de António Diógenes apresenta ainda uma particularidade inusitada na literatura grega. Com o objectivo de conferir a máxima credibilidade à narração, e de molde a distanciar-se da respon sa bi lidade dos eventos narrados, o autor serve-se do tópos do manuscrito encontrado num túmulo. Faz-se, assim, crer que As Maravilhas de Além Tule foram encon tradas fortuitamente num manuscrito em Tiro, aquando da destruição desta cidade pelas tropas de Alexandre, o Grande. E o autor acrescenta ainda outros meca - nis mos que visam a mesma finalidade: uma carta pseudo-histórica, relatos auto - biográficos dos protagonistas e o recurso a fontes eruditas. A estrutura narrativa encontra-se burilada de forma a criar uma ambiência pretensamente histórica — a narração de acontecimentos ocorridos no século V a.C., após a morte de Pitágoras. Este tópos do manuscrito encontrado ao acaso aparece, assim, pela primeira vez na literatura ocidental; e, na literatura moderna, é utilizado, por exemplo, por Manzoni, Edgar Allan Poe e Umberto Eco.29 Por sua vez, a viagem que Dínias empreende por lugares distantes e assom - brosos segue um percurso homólogo à própria cadeia discursiva. O movimento da viagem acompanha o percurso narrativo. O espaço percorrido é preenchido pelo espaço ficcional.30 E inclusive as histórias encaixadas na diegese principal, de que são exemplos os relatos de Dercílis e de Azúlis, pressupõem um duplo e triplo patamar narrativo.31 O esquema é o seguinte: A conta as histórias que B contou

27 Diogene, Antonio. Le incredibili avventure al di là di Tule. Introd., trad. e notas de Massimo Fusillo. Palermo: Sellerio Editore, 1990. 63.

28 Ibidem.

29 Relativamente à literatura grega antiga, J. R. Morgan enumera outros exemplos literários de manus critos encontrados em túmulos. Cf. Morgan, J. R. “Lucian’s True Histories and the Wonders Beyond Thule of Antonius Diogenes”. Classical Quarterly 35 (ii). 1985: 481.

30 A respeito da matriz tipológica da viagem escrita, vide Seixo, M. A. Poéticas da Viagem na Literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. 11-40.

31 Esta estratégia narrativa — a Chinese box of fiction — surge, de forma muito elaborada, em As Etiópicas de Heliodoro. Acerca deste assunto, cf. Futre Pinheiro, M. Estruturas Técnico- -Narrativas nas Etiópicas de Heliodoro. Lisboa. 1987. 353-453. 858 Vítor Ruas

a C. A viagem de Dínias evidencia, assim, um carácter metaficcional, cons tituindo a matriz tipológica da viagem contada e escrita. Na verdade, a curiositas de Dínias corresponde não só a um desejo de ver, saber e aprender novas realidades, mas também a uma vontade de as relatar. A viagem fantástica compreende a representação de trajectos da experiência humana, criados pela imaginação, com o objectivo de confrontar o leitor com a possibilidade de transgredir o mundo convencionalmente estabelecido. Por norma, a viagem fantástica dirige-se a lugares utópicos, onde o homem poderá eventual - men te descobrir o seu «paraíso perdido». Mas, o seu regresso ao mundo conhecido é inevitável. E, do percurso das viagens mais fabulosas, cabe ao leitor distinguir o que é falso daquilo que é pura fantasia, pois que um dos pressupostos mais relevantes do fantástico é a zona intermédia em que se situa a narrativa — entre a verdade e a invenção.

Bibliografia André, J.-M. & Baslez, M.-F. Voyager dans l'Antiquité. Paris: Fayard, 1993. Bakhtine, M. Esthétique et Théorie du Roman. Paris: Gallimard, 1978. Bessière, I. Le récit fantastique. Paris: Librairie Larousse, 1972. Borgogno, A. “Sulla struttura degli ‘Apista’ di Antonio Diogene”. Prometheus 1. 1975: 49-64. Caillois, R. Au Coeur du Fantastique. Paris: Gallimard, 1965. Derrida, J. “The Law of Genre”. Acts of Literature. Ed. Derek Attridge. New York: Routledge, 1992. 211-252. Diogene, Antonio. Le incredibili avventure al di là di Tule. Introd., trad. e notas de Massimo Fusillo. Palermo: Sellerio Editore, 1990. Furtado, F. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. Futre Pinheiro, M. “Do mito à utopia. Viagem ao mundo do imaginário grego”. Actas do V Cogresso da APEC (Antiguidade Clássica e Nós: Herança e Identidade Cultural), Braga, 2006, pp. 125-137. Futre Pinheiro, M. “Utopia and Utopias: A Study on a Literary Genre in Antiquity”. Authors, Authority, and Interpreters in the Ancient Novel. Essays in Honor of Gareth Schmeling. Eds. Shannon Byrne, Edmund Cueva & Jean Alvares. Groningen: Barkhuis Publishing & Groningen University Library, 2006. Futre Pinheiro, M. Estruturas Técnico-Narrativas nas Etiópicas de Heliodoro. Lisboa. 1987. García Gual, C. Los Orígenes de la Novela. Madrid: Istmo, 1988. Grivel, Ch. Fantastique-Fiction. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. Hansen, William. Anthology of Ancient Greek Popular Literature. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1998. Curiositas e mirabilia n’ As Maravilhas de Além Tule de António Diógenes 859

Labhardt, A. “Curiositas. Notes sur l’histoire d’un mot et d’une notion”. Museum Helveticum 17. 1960: 206-224. Macdonald, G. “Thule”. Paulys Realencyclopädie der Altertumwissenschaft 6 A1. München: Metzler, 1936. 627-629. Malrieu, J. Le fantastique. Paris: Hachette Livre, 1992. Morgan, J. R. “Lucian’s True Histories and the Wonders Beyond Thule of Antonius Diogenes”. Classical Quarterly 35 (ii). 1985: 475-490. Nicolson, M. Voyages to the Moon. New York: MacMillan, 1960. Photius. Bibliothèque, 8 vols. Trad. R. Henry. Paris: Société d’Éditions ‘Les Belles Lettres’, 1959-77. Pires, C. O Modo Fantástico e a Jangada de Pedra de José Saramago. Porto: Edições Ecopy, 2006. Ruas, V. A viagem nos Antigos Romances Gregos. O Antigo e o Novo, o Real e o Fantástico. Ponta Delgada, 1995. Schamp, J. Photios, historien des lettres: La Bibliothèque et ses notices biographiques. Paris: Les Belles Lettres, 1987. Seixo, M. A. Poéticas da Viagem na Literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. Sirinelli, J. Les Enfants d’Alexandre. La littérature et la pensée grecques (334 av. J.-C. — 519 ap. J.-C.). Paris: Fayard, 1993. Steinmetz, J.-L. La littérature fantastique. Paris: Presses Universitaires de France, 1990. Todorov, T. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, 1971. Treadgold, W. T. The Nature of the Bibliotheca of Photius. Washington: Dumbarton Oaks, 1980. Vázquez Rodríguez, A., ed. O relato fantástico. De Poe a Lovecraft. Vigo: Indo Ediciones, 1995.

XI

Línguas Navegantes

Introdução

descoberta do mundo iniciada pelas potências ibéricas no século XV deu origem a uma rica literatura de viagens. Ao mesmo tempo, o português e Ao castelhano foram exportados para os novos mundos como «lenguas compañeras del Imperio» (fórmula do gramático renascentista Juan del Encina). Estas línguas, a sua navegação e as modalidades da sua implantação em novos territórios constituem, por isso, um apropriado tema de exame.

Quatro comunicações foram apresentadas em correspondência a esta temá - tica, todas elas provenientes da excelente escola do Departamento de Filologia Românica da Universidade Complutense de Madrid, que se distingue pelos estudos dedicados à literatura de viagens e às intercomunicação de textos, de línguas e de percursos da expansão ibérica pelo resto do mundo. São publicadas as duas comunicações cujos textos as autoras dispo ni bili - zaram. María Victoria Navas Sánchez-Élez (Espacios exóticos: El Libro del Infante dom Pedro motivos y circulación) concentrou-se na circulação de temas e motivos reflectida nesta narrativa ficcional, que gozou de enorme difusão impressa no séc. XVI e seguintes, por vezes com estatuto de relato verídico. Rocío Peñalta Catalán (Un bárbaro en Asia, el viaje a Oriente de Henri Michaux) analisa um relato da viagem que Michaux efectuou a Índia, China e Japão no início dos anos 30, caracterizado por uma linguagem transgressora e por um deliberado olhar «ocidental» sobre mundos exóticos.

Ivo Castro Departamento de Linguística Geral e Românica Faculdade de Letras da Universidade Lisboa

Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación

CARMEN MEJÍA RUIZ Y MARÍA VICTORIA NAVAS SÁNCHEZ-ÉLEZ Universidad Complutense de Madrid, Departamento de Filología Románica

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

l texto1 que aquí presentamos tiene por base la publicación, en 2007, del libro El oriente maravilloso y exótico. Dos relatos de viajes (Mejía & Navas E2007), que se encuadra dentro del Proyecto que dirige la Prof. Popeanga en la Universidad Complutense de Madrid. Se trata de un volumen que refiere los viajes imaginarios del Infante don Pedro de Portugal a Oriente. En realidad es un folleto, de autor, que creemos con nombre ficticio, Gómez de Santisteban.2 Folleto éste que tuvo una enorme circulación en castellano y en portugués por la Península Ibérica (se conocen más de cien ediciones y reimpresiones) tanto en su época como con posterioridad y que aproxima al lector a las maravillosas aventuras de viajes emprendidas por españoles y portugueses entre los siglos XV y XVI. El libro del Infante don Pedro3 de Portugal continúa la serie de los llamados “libros de las maravillas”, en los que el autor, anónimo a menudo, acumula elementos dispares, así como episodios y sucesos pertenecientes, inicialmente, a los libros de viajes de amplia circulación en la Edad Media. En él se aglutinan, en pocas páginas, un itinerario extravagante y caótico, plagado de descripciones de seres fabulosos y espacios lejanos, donde aparecen todos los ingredientes básicos de los viajes fantásticos medievales. Además de las dudas sobre la nacionalidad y el nombre del autor en el folleto estudiado se cuestionan también otros aspectos. Nos referimos, en primer lugar, a la datación del texto, cuya primera edición castellana conocida, realizada en Sevilla por Jacobo Cromberger4, a partir de la información de que disponemos,

1 Esta comunicación se realiza dentro de las tareas desarrolladas por el grupo de investigación, La aventura de viajar y sus escrituras (GILAVE), de la Titulación de Filología Románica de la Universidad Complutense, en el marco del Proyecto I+D: BFF2003-00610, titulado Los libros de viaje: una modalidad de circulación de la información histórica, geográfica y literaria en la Europa de los siglos XV-XVI. 2 Para más información sobre los nombres que ha recibido el autor, su nacionalidad y personalidad véase (Mejía & Navas 2007: 44 y ss.). 3 Son varios los títulos con los que se puede presentar el folleto tanto en portugués como en castellano (Mejía & Navas 2007:19, n. 1). 4 Se conserva, que sepamos, un único ejemplar en la biblioteca pública de Cleveland (Ohio) en los Estados Unidos y un microfilme en la Universidad de Harvard. La segunda edición, impresor Juan de Junta en Salamanca, 1547; la tercera también de la oficina de Juan de Junta, en Burgos, es de 1554, y la cuarta fue publicada por Felipe de Junta, en Burgos en 1563. Para más información véase (Mejía & Navas 2007: 39 y ss.) 868 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

no sobrepasa el año de 1515. Por otro lado la primera traducción portuguesa conocida, de un ejemplar hoy desaparecido, tuvo lugar en Lisboa en 1602 a cargo del impresor António Álvares. Asimismo la crítica ha estudiado la primera lengua en que pudo haberse escrito el manuscrito, español, portugués e incluso catalán.5 También se ha tenido en cuenta la transformación de un personaje real, el Infante don Pedro de Portugal, en personaje ficticio, el apare ntemente protagonista del relato. No ha sido ajena a la investigación el estudio de la tipología del relato, desde biografía, libro de caballerías, a libro de viajes6 (quizá el último libro de su género); los elementos maravillosos y los componen tes intertextuales; así como su difusión en la Península Ibérica como literatura popular, como literatura de cordel. Consideramos que se debe entender este folleto dentro de un sub - género7, denominado, según Richard (apud, Rubio Tovar, 1986, pág. 35), “novelas geográficas medievales, de 'falso viajero', o de 'viajero inmóvil'” (García de Cortázar 1996: 29); es decir, escritos creados sin moverse de una mesa. Estos relatos comenzaron a desarrollarse al menos a partir del siglo XIV; así el Libro del conoscimiento de todos los reynos y tierras y señoríos, donde un franciscano simula haber recorrido tierras de Asia, Europa y norte de África; o el Libro de las maravillas atribuido a Juan de Mandevilla, donde un caballero inglés peregrina a Tierra Santa. Si se tienen en cuenta las “maravillas” allí contenidas el Libro del infante D. Pedro podría contemplarse también, desde la perspectiva actual, como un libro de aventuras. Desde el punto de vista lingüístico8, las primeras ediciones españolas y portuguesas reflejan una lengua de transición entre un código medieval y un código renacentista donde conviven formas arcaizantes con formas innovadoras. Al mismo tiempo no ha dejado de interesar a los críticos las posibles interfe ren - cias presentes en las ediciones portuguesas del original castellano y el reanálisis de la realidad cambiante a lo largo de los siglos (pues el texto fue todavía reeditado en el siglo XX).

5 Fernández Duro (1903), Leite de Faria (1964), Rogers (1959 y 1961) y Sharrer (1976-77) son los críticos que con más detenimiento se han dedicado al folleto. Recopiladores de los diferentes ejemplares existentes son Rogers (1959), Leite de Faria (1964) y Mejía & Navas (2007). 6 Véanse a este respecto información, por ejemplo, en Gayangos (1857), Fernández Duro (1903) o Menéndez y Pelayo (1943). Sobre la teoría de la tipología de los libros de viajes se pueden consultar, principalmente, Pérez Priego (1984), Rubio Tovar (1986), Carrizo Rueda (1997), López-Burgos (1998), Beltrán (2002) o (Popeanga, 2005). Trabajos sobre literatura de viajes se encuentran en, por ejemplo, Carmona & Martínez (eds.) (1994) o Cristóvão (coord.) (1999). 7 Para más información cfr. Rubio Tovar (1986, págs. 30-40). 8 Véase bibliografía específica en Mejía & Navas (2007). Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 869

Se supone, según Rucquoi (2004:44), que el Libro del Infante fue un encargo que hizo el Condestable don Pedro, entonces exilado en Castilla, para rehabilitar la memoria de su padre, el infante don Pedro, que había muerto en 1499, en la batalla de Alfarrobeira, luchando contra el rey Alfonso V de Portugal, su sobrino. Cuando se publica el Libro del infante, en 1515, se tenía noticia, además de todos los textos que corrían por Europa sobre el Preste Juan y sobre el oriente cristiano, los impresos que circulaban por España y Portugal —difun di dos por bestiarios, lapidarios y cosmografías- sobre las peregrinaciones a Palestina, las maravillas de Mandevilla, las historias de Santo Tomás, la Biblia, y la leyenda de Alejandro Magno, entre otros. En ese momento, además, pervivía la memoria viva del propio Infante: viajero, político e intelectual (Rogers 1962: X). Con todas estas informaciones el autor, tal vez Gómez de Santisteban, elaboró una fábula en la que se mezclaban todos estos elementos e incluso, en el capítulo XX, la Carta del Preste Juan.9 Se localizan en el texto elementos maravillosos para describir las cosas asombrosas de oriente que aparecían en los libros de viaje medievales, libros que se remontan en cuanto a su contenido a Plinio, Solino y San Isidro. Además en la Península Ibérica ya existía interés por las cosas de oriente, como lo demuestran las obras de Ruy González de Clavijo, Embajada a Tamorlán (viaje realizado entre 1403 y 1406) y la Pero Tafur, Andanças e viajes (entre 1435 y 1439). Así la inclusión de estos elementos extraordi na rios en el Libro obligan a situarlo todavía en la relación de los libros medievales, pues en los posteriores, como la Verdadeira informação das Terras do Preste João das Indias de Francisco Álvares, del siglo XVI, no aparecen ya elementos mara - villosos.10 En lo que se refiere al caldo de cultivo que propició la creación del Libro, hemos de decir que aquélla era una época fértil en expediciones, sobre todo porque las condiciones desfavorables de la patria impulsaban la idea de emi - gración, pues como es sabido el final del siglo XIV y principios del XV fue un período típico de aventuras políticas, un tanto anárquicas en la organización y en los fines. Las descripciones, reales e imaginarias, de islas y tierras descu bier - tas en las expediciones, ejercían una enorme influencia en los viajes que se emprendían en Portugal durante los siglos XIV y XV. Eran un incentivo para todo tipo de gente, ya fuera culta o ignorante, aristócrata o villana, pues se contaban

9 Cfr. al respecto Popeanga (2005). 10 Otros temas medievales recurrentes surgen también en el folleto, como la búsqueda del cuerpo de Santo Tomás, el personaje del Preste Juan de las Indias, el interés por los ritos del oriente cristiano y una incesante preocupación por los grandes enemigos de la cristiandad, que eran los musulmanes (Rogers 1961: 212). 870 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

terribles historias de tales islas, tierras y mares. Por otro lado, los viajes reales del infante don Pedro11 realizados a diversos países de las cortes de Europa (1425- 1428); la peregrinación de su hermanastro, el conde de Barcelos, D. Afonso, a Tierra Santa hacia 1410; y las embajadas enviadas a los concilios de Pisa (1409), Constanza (1414-1417), Basilea (1433-1437) o Florencia (1438-1439), estimu la - ron el imaginario colectivo europeo, sobre todo el ibérico, que ya poseía un conoci miento apropiado de la visión de otros mundos cristianos de oriente, que se encontraban más allá del mundo islámico: Etiopía, la India y Catay (Rogers 1962: I). La publicación del Libro del infante don Pedro vino a exaltar esa vertiente viajera del Regente, que así se convirtió, ya fallecido, en peregrino. Francis M. Rogers (1961: 269 y ss.) describe en su edición del Libro del Infante, las características del folleto: tamaño cuarto, de entre 13 y 18 centí metros, y sólo una treintena de páginas: es decir es un objeto de bajo precio. Pertenece, por el tipo de edición, a la denominada con el nombre genérico de “pliegos sueltos”o “literatura de cordel”. Estaba dirigido, pues, a un público con poco poder adquisitivo que leía este tipo de publicación, como dice B. Taylor (1993: 68), porque “gusta de leer hechos inútiles e inverificables”. A pesar de que toda - vía no está hecha la historia de los pliegos de cordel de la península Ibérica12, no hay duda de que el Libro del infante figura entre los más populares (Rogers 1961: 273), como se demuestra, entre otros, en el ejemplo recogido en P. M. Cátedra (2002: 151), de un documento divulgado en 1560, por los impre sores de Sevilla: “Ay algunos libros de romances buenos con que leen niños, Sid Rui Díaz y Infante don Pedro y Abad don juan y otros semejantes, los quales nunca tuvieron nombre de auctor y por esto no osamos imprimirlos”. De hecho, el folleto en estudio, siempre se editó en este formato. Es sabido de todos que había imprentas especializadas en este tipo de objetos, como la de Gayangos (Cátedra & Infantes: 1983: 17), que a veces, para abaratar costes, los cosían a otros semejantes. De manera que el Libro del infante puede estar en un conjunto donde figuren entre -

11 Para los historiadores, el infante don Pedro aparece como un individuo con gran visión geopolítica, culto, inteligente y erudito (por ejemplo, fundó la Universidad de Coimbra), pero de escasa estatura moral, “meio príncipe, meio vilão”, no en vano no tuvo en cuenta las leyes de la caballería y se enfrentó a su propio rey, Afonso V (Rogers 1961: 265, n. 22). Sin embargo desde el punto de vista de la tradición popular, la leyenda del Infante que recorrió “las siete partes del mundo” ha permanecido en el imaginario peninsular mientras que el personaje real ha quedado oscurecido e, incluso, olvidado. Para un mayor conoci mien to del personaje se puede consultar, por ejemplo, Marques (1986: 10 y ss.) o (Saraiva y Lopes 1996: 115-116). Algunos autores confunde el personaje real con el imaginario, por ejemplo Oliveira Martins (1891). Más información en Mejía & Navas (2007: 36 y ss.). 12 Véase a este respecto, por ejemplo, Díaz G. Viana (2000). Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 871

meses u otros libros de viajes o de aventuras; así sucede en algunas ediciones en castellano y en ejemplares portugueses que hemos locali zado en la Biblioteca Nacional de Madrid o en colecciones de bibliófilos.13 Desde el punto de vista literario, el Libro del Infante no posee gran valor. Además tampoco tuvo buena acogida entre los críticos portugueses y españoles del siglo XIX y XX14 (Rogers 1961: 357, n. 1) para algunos de los cuales el relato es apenas una variante del libro de Mandevilla. Sin embargo el gusto del público ha ido en sentido contrario, como lo demuestra el número de más de un cente - nar de ediciones que tanto en castellano como en portugués han circulado (aproximadamente la mitad en cada una de las lenguas). Ello viene refrendado por testimonios que indican que el relato se seguía escuchando, en las plazas de los pueblos de España, todavía a mediados del siglo XX como literatura de cordel (Menéndez y Pelayo (1943: 180). En la península Ibérica este éxito, tal vez, sea debido a la acumulación de elementos maravillosos, lo que lo convertía en extravagante y por ello, probablemente, estimulase el interés por los viajes. Además la reputación del Duque de Coimbra, motivada por sus contactos en los viajes por las cortes europeas, reputación adquirida en Ceuta, sus relaciones durante los años de regencia y su ignominiosa muerte en Alfarrobeira, son para Francis M. Rogers (1961: 89) el motivo de que el Infante y sus viajes fuesen también conocidos en Europa. La primera vez que se menciona el Libro del infante don Pedro, ya sea en español, portugués o en cualquier otra lengua, es en el volumen de Francisco Álvares, Lisboa, 1540, cuando habla sobre el reino de las amazonas (Rogers 1961: 290 y n.: 291). Pero más adelante el Libro del Infante no deja de estar reco gido en obras e inventarios. Lo cierto es que desde muy temprano los biblió filos hicieron referencia a este Libro, lo que corrobora su pronta y continua difusión. A pesar de que la primera edición15 de la obra data del siglo XVI, Harvey L. Sharrer (1976-77), adelanta la fecha de la aparición de este texto, no como libro impreso sino como manuscrito, al último tercio del siglo XV, proba blemente 1491. Para ello basa el autor su teoría, por un lado, en la estructura del libro que le parece que pertenece al siglo XV y, además, en la referencia que hace Lope García de Salazar en su libro Las bienandanzas e fortunas a la carta que el Preste Juan escribe a Juan II de Castilla y que, según el folleto que estudiamos, entrega al infante don Pedro de Portugal para que se la dé al rey castellano. Pero nos

13 Véanse más detalles en Cátedra & Infantes (1983). 14 Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Menéndez y Pelayo o Benítez Claros. 15 Las fechas sobre las primeras ediciones, castellana y portuguesa, no han tenido siempre consenso. 872 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

parece que, probablemente, lo que sucedió fue que García de Salazar insertó en su obra los elementos citados del libro de Mandevilla, que Sharrer atribuye al Libro del infante don Pedro. Pues no es extraño que, dado el éxito de Las bienandanzas e fortunas de Mandevilla, el autor de nuestro folleto conociese el libro de Mandevilla y lo utilizase en su obra. No se debe olvidar, además, que la carta del Preste Juan circuló por toda la Península (Popeanga 2005: 159 y ss.; y 2007: 132); que la figura del infante Don Pedro se convirtió en legendaria y que la leyenda de su peregrinación por lejanas tierras orientales ya existía en vida del Infante. Nos inclinamos a pensar que fue, probablemente, la imaginación popular la que creó la leyenda del Infante unida a la leyenda de la carta del Preste Juan, que ya estaba circulando. Así pues, pensamos que García de Salazar la inserta en Las bienandanzas e fortunas porque, en aquel entonces, dicha leyenda circularía de forma oral. Otro dato importante, que no se debe olvidar, es que además no contamos con noticias fidedignas sobre la llegada de la carta del Preste Juan a manos de Juan II de Castilla. Y, por otro lado, no es nada nuevo que una leyenda popular, basada en un personaje, mezcle las noticias reales transmitidas de forma oral con las imaginadas o deseadas y dé lugar a algo verosímil e, incluso, llegue a considerarse un dato histórico. Esto es lo que pensamos que sucedió con la inclusión de la carta del Preste Juan en la obra de García de Salazar, y que, posteriormente, se recoge en el Libro del infante don Pedro. El Libro del Infante es un relato de características medievales, que narra, aparentemente, como hemos visto antes, el viaje a oriente de un noble portu - gués, el referido infante don Pedro, Duque de Coimbra y Regente de Portugal. El Infante, con doce de los suyos, sale de Barcelos con el objetivo, según dice el Prohemio, de visitar los santos lugares, el cuerpo de santa Catalina, las tierras del Preste Juan de las Indias y el cuerpo de santo Tomé. Parte el Infante con su séquito, en un itinerario extraordinario, Valladolid, Venecia, Chipre, Turquía, Grecia, Noruega, Babilonia, Damasco, Bagdad, Tierra Santa, Armenia, Egipto, Samarcanda, el Monte Sinaí, la Meca, la tierra de las Amazonas, la de los Judíos, y por fin las Indias, donde se encuentra con el Preste Juan. Visita el sepulcro de Santo Tomás, y regresa a la tierra del Preste Juan, que le da la bendición papal, y vuelve, vía Fez a Castilla, donde finaliza el viaje, no en Portugal. A todas luces este itinerario no es creíble para un lector actual, pues es caprichoso e imposible (Rubio Tovar, 1986, pág. 98). Antes se ha dicho que el libro “aparentemente” narra hechos ocurridos, eso quiere decir que el escritor incurre en contradiccio - nes, ya mencionadas, porque el recorrido no se corresponde con los viajes reales que realizó don Pedro y porque el itinerario geográfico es “incoherente, capri - choso y, a veces, desconcertante”. Así lo aceptaron desde antiguo la genera lidad de los críticos Faria y Sousa (1649), Michaëlis de Vasconcelos (1899: 26) o Menéndez y Pelayo (1943: vol. II, cap. VII: 180- 182). Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 873

Los estudiosos del Libro del Infante han formulado varias hipótesis al plan - tear se el origen del mensaje de la narración, en nuestra opinión, no excluyen - tes, que se pueden resumir de una forma rápida. El libro pretende, de cara al receptor, según las varias teorías expresadas por la crítica16, ejercer tres funciones: entretener, presentar la situación política internacional -vista a través de los ojos cristianos—, y aportar una enérgica visión de los defectos del occi - dente cristiano. Esta triple tarea hace comentar admirativamente a Francis M. Rogers (1961: 215) la osadía crítica del autor y como consecuencia el compren - sible deseo de anonimato que encubrió su verdadera identidad. Desde nuestra óptica este folleto de cordel es un “divertimento” que ofrece la posi bilidad de evasión y de ensueño al público, de precario nivel, que fomentaba su imagina - ción con elemen tos procedentes de diferentes fuentes. Por ello, el autor recoge las distintas leyendas tanto de la tradición oral como de la tradición escrita, y ofrece al público la historia que demandaba, elaborada como una encrucijada de textos: el relato de las amazonas, la carta del Preste Juan, el paraí so perdido, los seres deformes; es decir, lo maravilloso medieval vero similizado con la figura de un per sonaje real muy conocido en aquellos tiempos. Desde nuestra perspec - tiva el éxito del Libro de Gómez de Santisteban radica en la mezcla del tema de D. Pedro como viajero con la leyenda del Preste Juan. El mito de oriente está vinculado a tres figuras, como se vio anteriormente, que se convirtieron en mito: Alejandro Magno (Frugoni, 1978), Santo Tomás y el Preste Juan (Popeanga, 2005 y 2007). Don Pedro viaja con el deseo de ver al Preste Juan: (...) somos pobres compañeros vassallos del rey leon de españa y es nuestra voluntad de yr a ver el preste juan delas indias (Sevilla. 1515: 10). El Preste Juan se da a conocer por una carta17 dirigida al emperador bizantino Manuel Comneno en 1164. Esta carta tiene algunas variantes posteriores dirigidas al emperador Federico Barbarroja y al Papa y fue traducida al vulgar a lo largo de toda la Edad Media18. Nos hallamos ante la mezcla del mito y de la leyenda con la realidad. La tan buscada figura del Preste Juan en la Edad Media se relacionaba con las maravillas de la tierra que éste gobernaba. Se trata de la descripción de un imperio maravilloso, gobernado por un misterioso emperador- sacerdote llamado Preste Juan; la carta contiene una serie de detalles sobre la organización del imperio en cuestión, sobre sus riquezas, su fauna y su flora, que

16 Véase bibliografía en Mejía & Navas (2007: 50 y ss.). 17 Se sigue la edición de 1998 de la Carta do Preste João das Índias. 18 Véase el artículo de E. Popeanga sobre las versiones castellana y catalana de esta Carta (2005, págs. 159 y ss.). Interesante para ver la evolución europea del Preste es el artículo de Ramos (1999). 874 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

incluye las flores y árboles más maravillosos, los seres humanos más hermo sos de la tierra, así como una región (la Tercera India) donde habitan animales y seres monstruosos. Nadie puede precisar dónde se está exactamente este espa cio de ensueño que, muy parecido al Paraíso Terrenal, se convierte en una virtual con - quista del hombre medieval. Sobre la historicidad de este personaje actual mente existen las siguientes teorías: identifican al personaje oriental con un príncipe nestoriano de Asia Central; lo consideran el arquetipo de una serie de príncipes etíopes; o, finalmente, lo entienden como una creación medieval, auténtica leyenda al servicio de emperadores y papas deseosos de promover viajes y cruzadas a oriente (Nowel, 1953). En los relatos de viajes del siglo XIII el Preste Juan es tratado como personaje real. Situado en la India pero nunca visto. Pero el mundo occidental al no poder identificarlo con un personaje real de las Indias lo sitúa en tierras ignotas de África. Se observa que Gómez de Santisteban, o el autor del folleto, desea que el mito buscado durante tanto tiempo sea hallado, mímesis, probablemente, del deseo de la sociedad del momento. En el itinerario del Libro, claramente imaginario, existen una serie de incohe ren cias geográficas, como ya se ha dicho; por ejemplo, el salto que hace de un continente a otro. Pero el hecho de que se trate de un relato de un itinera - rio imaginario no quiere decir que no pudiera ser coherente, de hecho la mayoría de los libros tradicionales respetan un itinerario lineal con una crono logía tempo - ral y una coherencia espacial.19 Bien es verdad que en el Libro del conosçimiento hay también saltos de espacio y tiempo. Pero en este sentido el Libro del infante don Pedro de Portugal resulta caprichoso y, a veces, descon certante, como el salto Grecia-Noruega-Babilonia, cubierto con rapidez gracias a unos fantásticos dromedarios que corren a una velocidad tal que obliga a quienes los cabalgan a taparse los oídos: E tienen fechas pellas de sirgo para (meter en) los oydos delos hombres que van enlos dromedarios al derredor delas orejas porque si otramente fuesse perderian el sentido del gran ruydo que lleva el dromedario (Sevilla. 1514: 9). He aquí algunos ejemplos de motivos exóticos, fantásticos y maravillosos, elegidos de la primera edición castellana conocida, Sevilla, Cromberger de 1515, y de una de las primeras portuguesas, hecha en Lisboa por Domingos Carneiro en 1644. Antes de seguir hay que referir que estas últimas, las portu gues as,

19 Para la revisión de los conceptos de lo mágico-maravilloso y fantástico en el mundo medieval y en el moderno, remitimos al reciente Seminario Interdepartamental Espacios y tiempos de lo fantástico, celebrado en Madrid, en mayo de 2007, en la Facultad de Filología de la Univer - sidad Complutense de Madrid. Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 875

se mantie nen muy fieles a la primera edición, mientras que las castellanas van acom pañando el paso de los siglos en lo que se refiere a su contenido, adaptán - dolo. En la sierra de Armenia descubrimos las siguientes maravillas: E fuemos para la sierra de Armenia donde esta el arca de Noe y aquesta es la tierra [de] que mana [infinita] leche & miel: & la leche es delas animalias muy grandes y medianas: assi como marfiles / & camafeos / & bufanos: & vnicornios: & bestias fieras: y elefantes (Sevilla. 1515: 18). En Armenia hay también extraños animales: [&] biuoras que buelan / que es llamada bivuora bolante por vn salto que da[n] muy grande que se alça[n] dela tierra por alcançar a morder a donde le[s] da la voluntad que es tan luenga como tres braças / & tan gruessa como vn hombre suficiente. & por aquel salto que da es llamada biuora bolante (Sevilla. 1515: 18). Y el vnicornio tiene vn cuerno en medio dela frente: & desde el casco dela cabeça fasta la meytad es cubierto: & hasta donde allega el huesso todo es hueco & lo otro es maciço (Sevilla. 1515: 19). o Unicornio (…) & o Unicornio entra pela agua, & mete o corno dentro della, & logo os animaes bebem; porque fica a agua limpa de pezonha (Lisboa. 1644: 10). como marfins, camafeos, bufanos, unicornios, elefantes, camelos, dorme - da rios, tygres, onças (…) os filhos nam podem mamar quanto leyte as mãs tem; & andando pelo deserto, lhe anda cahindo das tetas. E sam tam grandes as abelhas, que criam o mel pelas arvores penedos, & pelas aberturas da terra, e assim se derrama o mel pelo chaõ (Lisboa. 1644: 10). Asimismo se mencionan los alimentos que hallan a lo largo de su recorrido. Comen, por ejemplo, carne de dromedario (Lisboa. 1644: 4) de Elefante, de Bufaro, Galinhas, Capões, Carneyros, Pavões, carne de Unicornio, de Mastim, Falcoens, (…) Cobra, Lagartos, Lobo, & Rapoza: porque tudo se come nestas partes [Samarcanda] (Lisboa. 1644: 15). Aquí vimos a mais fermosa fruta do mundo: mas se a partem acham dentro carvam moido: & se a chegais à boca, he mais amargosa que fel” (Lisboa: 1644: 16). De Capadocia pasan los peregrinos a las tierras del gran Tamurbeque con quien tienen el placer de ver sus riquezas: Y encima del carro yua vna muy rica silla de oro maciço toda engastonada en piedras preciosas. E alos pies dela silla salian quatro vergas de oro muy altas: & sobre las vergas yua vn paño de brocado (& bordado) de piedras preciosas. & el yua debaxo del paño assentado enla silla y los hombres tirando delos cordeles (Sevilla. 1515: 26). 876 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

A este capítulo pertenece, sin duda, la descripción más fastuosa y requintada del Libro: Diante delle hiam oito mil cavalleyros; & logo quatro mil senhores de esporas douradas, calçadas, & ao pé de cada hum destes Senhores hia hum Mouro com casacas compridas, estes como pagens; & apoz estes hia o Rabim mayor da Mesquita, com perto de trezentos Alfaquiz, can tando com musicas a seu costume; & de traz destes hiam doze Mouras muyto arrayadas, com ricos atavios, duas tangiaõ dous cravos, & outras duas alaudes, & outras arpas, & todas descantavam sauve mente. As outras seis dançavão diante do Tamoreleque; & hiam atè trezentos homens purando [sic] por cordeis de fina seda, que estavão atados em hum carro triunfal, & em cima do carro hia huma muy rica cadeyra de ouro mociço, toda encastoada em pedras preciosas, & dos pés da cadeyra hiam quatro vergas de ouro; sobre ellas humas cortinas de borcado, bordadas de perolas, & elle hia dentro assentado na cadeyra: & o homens tirandos por cordeis com muyto tento: & detraz do Tamoreleque hiam mais de seis mil cavalleyros (Lisboa. 1644: 14). No sólo observan su grandeza sino también las “maravillas” de aquella tierra que contrastan con la decadencia del occidente románico: & metionos entre quatro quadras en vn arriate como vergel: & auia vn [gran] arbol que se llamaua balsamo: que [a penas] seys hombres no le abraçarian el tronco. y del salen cinco ramas. & de cada rama salen cinco pertigas. & al pie del arbol nacen tres vides: & podan las cada [vn año]: & lo que lloran aquello es balsamo. y enesta nuestra tierra saca vna gallina diez o quinze pollos, y en aquella saca vn hombre de vna echadura quinientos o seyscientos pollos. (Sevilla. 1515: 27-28). E fomos ver o sitio destas Cidades [Sodoma y Gomorra], as quaes esta vam feytas lagoas de agoa negra, cheas de carvões (…). E se lançardes no lago hum pao, ou huma palha, logo vay ao fundo, & se for pedra, ou ferro, anda sobre a gua, contra a natureza (Lisboa. 1644: 16). & morreo ElRey Saul: & desde entam nunca choveo, nem cahio orvalhos do Ceo (Lisboa. 1644: 17). E sam estes montes tam areosos, que assim como se muda o tempo, assim se levanta a area (Lisboa: 1644: 17). Llegaron, también, al lugar donde estaba la mujer de Lot, a media legua de Sodoma y Gomorra: y esta fecha de piedra de sal / & como es creciente la luna cresce ella: & quando es menguante mengua ella: & vienen muchos animales a lamer della. & los pobres a coger sal. E no dexan ay vna almoçada: y enla mañana la fallan entera (Sevilla. 1515: 28-29). Se dirigen a Arabia y allí los viajeros descubren humanos con formas extrañas: Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 877

fallamos la primera generación contrahecha que tienen los cuerpos de hombre & las caras de perros (Sevilla. 151: 30). temos gente (…) que nam tem senam hum olho, outra gente que tem dous olhos diante; & dous atraz (..). E em outras Provincias ha gente, que tem hum só pè redondo (…). E perto destes, ha outros, que saõ homens de centura para cima, & de centura para bayxo, sam cavallos, comem carne crua, vivem de caçar: & e moraõ nos desertos como animaes (Lisboa. 1644: 28-29). Antes de localizar al Preste Juan en la India destacamos un fragmento donde se aglutinan la exageración, lo extraordinario y lo sobrenatural: vna gente contra natura que son llamados ponces y estos son los mas catholicos christianos que ay enel mundo: & no tienen sino vna pierna & vn pie: y en medio del cuerpo delos hombres el miembro de la generación [y] tienen la pierna siguiente fasta abaxo: y el pie como de cauallo & de dos palmos en ancho & (de) dos palmos en luengo. & assi las hembras como los varones tienen los miembros de la gene- // [cr] // ración: & fallamos enesta tierra carneros muy pequeños que tienen cada vno ocho pies & seys cuernos. (Sevilla. 1515: 46). Y también al pasar por la ciudad de Luca, antes de entrar en las Indias, se topan con unos gigantes: son de nueue codos en alto: & bien son tan altos como lanças de armas. Y en aquesta ciudad nunca muere ninguno hasta que son muy viejos: & tanto biuen que cobdician ellos morir por el grandissimo trabajo que sienten enla vida delos dolores y enfermedades (Sevilla. 1515: 43). [Los Alarves] que nam tem povo, nem casa, nem lugar certo; & de tempo em tempo se mudam pelas montanhas. Comem carne crua, & hervas; & andam nús (…) gente sem razam (Lisboa. 1644: 6). achariamos geraçam, que saõ sepultura os filhos dos pays, & os pays dos filhos; porque comem huns aos outros (…) porque saõ muy crueis (Lisboa. 1644: 26).

onde habita huma gente, que naõ tem mais que h†a perna, & h† pè redondo, & vimos carneyros de oito pés, & seis cornos (Lisboa. 1644: 27).

E dalli fomos a h†a provincia dos Pintos, que sam huns homens muyto pequenos, como meninos de cinco annos; & tem continua guerra com grandes bandos de Passaros, que vem a comer suas novidades (Lisboa. 1644: 27). Tambem senhoriamos hũa Provincia de gigantes, que nos pagam tributo: & sam homens tam altos como huma lança (…). Isto lhe veyo, porque queriam fazer a torre de Babylonia, dizendo que por ella suberiam ao Ceo (Lisboa. 1644: 29-30). 878 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

Visitan la conocida tierra de las Amazonas, relato que entra a través del Pseudo- calistenes de Alejandro Magno y que es uno de los motivos que se reitera en la mayoría de los libros de viajes: & estos tiempos entran hombres delas indias a multiplicar enellas. & salen las regidoras por las prouincias. y preguntan les porque causa vienen a su prouincia. & si vienen por multiplicar el mundo dan les licencia que entren por (las) villas & ciudades: & andan mirando ocho dias la muger que mejor les pareciere que aquella tomen (Sevilla. 1515: 38-39). Estas mulheres nam sam como as de cà; porque não tem ajuntamento de homens, senam em tres mezes no anno, a saber Março, Abril & Mayo. Nestes tempos entraõ por suas terras homens das provincias, que estam mais perto a multiplicar (…), os quaes andaõ olhando a mulher, que melhor lhe parece (Lisboa: 1644: 21). Depois, se a mulher pare filho, fazemlhe sinco cruzes de fogo como hum ferro (…) lembrança das sinco chagas de Christo, & criaõ-nos tres annos; & depois o mandaõ dalli com a gente, que vem a multiplicar (Lisboa. 1644. 21). E se he femea (…) queymaõlhe a teta esquerda; porque sam todas frecheyras de arco, para que nam lhe estrove a teta o tirar; & com a teta direyta criaõ seus filhos (Lisboa. 1644: 21). Las referencias a las piedras preciosas transcurren a lo largo de todo el relato, así en Armenia: passa hum rio muy corrente, onde se acham pedras preciosas finas (Lisboa. 1644: 10). como en la tierra del gran Roboam había huma cadeyra em que o grande Gudilfe se assentava, muy fermosa á maravilha, & huma mesa de ouro, em que comia pelas festas, que bem cobr cento, & cincoenta homens. As paredes da sala eram emcastoadas em esmeraldas, & robins, & o cham era todo soalhado de unicronio, & de marfim (Lisboa. 1644: 20). También, como era de esperar, en el palacio del Preste João el lujo es espléndido: Esta sala (…) era muy rica; porque as paredes eraõ de ouro, & azul: o telhado de cachos de ouro, o cham era de pedras resplandecentes: & a taboa da meza era de diamantes (Lisboa. 1644: 24). os leytos em que dormimos, sam encastoados em saphiras (Lisboa. 1644: 30). La relación de todas las maravillas que hay en el reino del Preste Juan se resume en la carta que envía éste a Juan II de Castilla con el infante D. Pedro: E las puertas son de libano & las finiestras de cristal. (…) [Y] Enel palacio donde nos dormimos arde vna lampara de balsamo. & otras dos do nos Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 879

hazemos nuestras cortes por razon que dan buen olor: & los lechos donde (nos) dormimos son de zafires esto fazemos por castidad: & por razon de auer fruto dormimos con nuestra muger cuatro meses enel año & siruen nos doze arçobispos. & .xxiiij. obispos & [tambien] quatro patriarcas de santo Thomas (Sevilla. 1515: 53-54). En el palacio del Preste João además suceden hechos maravillosos: Cada dia lhe punham na meza quatro vazos de ouro. No primeyro estva huma cabeça de homem morto, porque visse que assim havia de ser elle. O segundo estava cheyo de terra, porque assim havia de ser elle. O terceyro cheyo de brazas, porque se lembrasse das penas do Inferno. O quarto cheyo de humas peras, que nascem entre os rios Tigres, & Eufrates, porque vejam o milagre, que està dentro destas peras, partidas pelo meyo, aparece dentro figurado a imagem do santo Crucifixo (Lisboa. 1644: 24). De las mismas tierras del Preste João el narrador cuenta un milagro relacionado con la vigilia de santo Tomé: tomaõ huma vide seca, & poemlha na maõ; & desde horas de vesperas até noyte, a vide deyta de si tres ramos; & cada ramo dá tres cachos de agraço; & desde a noyte, atè Matinas, saõ estes agraços bem limpos: & desde Matinas, até a Missa, vem a madurecer; & tiraõ delles mosto; com que celebra o Preste Joam este dia (Lisboa. 1644: 25). fomos ver as arvores das peras (…); & cada huma dá cada anno quarenta peras, (…) isto significa a Quaresma. Estas peras (…) quando se partem (…) em cada parte apparece o santo crucifixo, & nossa Senhora, com seu Filho nos braços (Lisboa. 1644: 27). Pero en la Meca también suceden acontecimientos que van en contra las leyes de la física: Vimos o sepulchro do falso profeta Mahoma, que estava em huma capela pendurado no ar, entre seis pedras imans de cevar, todas h†a igualdade: & o moimento de azeyro, & as pedras de cevar sustentam o moimento no ar; porque tem a pedra iman esta virtude que sustenta o año no ar. E assim estava o sepulchro de Mafoma no ar (Lisboa. 1644: 20). Sin olvidar el elemento tal vez más extraordinario que está en el Libro y es el de que los peregrinos llegan a las mismas puertas del paraíso terrenal pero, desgraciadamente, los guías que les han acompañado no les permiten pasar las puertas y se quedan contemplando los ríos que de dicho Paraíso salen: Partimos dali h†a segunda feyra, & atravessamos desde a Cidade de Edicia, atè o paraiso terreal, por desertos, em que fizemos dezasete jornadas (…): & chegamos à vista da terra do paraiso terreal: mas as guias que nos deo o Preste Joam, nam nos deyxàram passar diante (Lisboa. 1644: 26). 880 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

Hemos señalado aquí algunos de los aspectos más sobresalientes de los denomi - nados “maravillosos” que hay en casi todas las ediciones del Livro do Infante Dom Pedro de Portugal. Otras varias aproximaciones se pueden hacer a partir del Livro, aparte de las ya mencionadas. Tal vez la propuesta más rica en resulta - dos tenga que ver con las diferentes maneras en las que ha ido circulando la Carta del Preste João dentro del propio folleto; así como con la comparación del mismo texto con la Carta original; y tal vez con otros libros que tengan la referi - da Carta incluida como, por ejemplo, la que se encuentra en el viaje de Odorico de Pordedone de hacia finales del siglo XV o principios del XVI (Popeanga 2007). Se trataría, en definitiva, de ver la inclusión, modificación, ampliación y mutila - ción del texto de partida del Preste João de los elementos exóticos y maravillosos referidos a hombres, animales, plantas y piedras preciosas, que a lo largo de las varias ediciones se han ido produciendo en el folleto ahora analizado y en otros contemporáneos.

Referencias bibliográficas

1. Ediciones citadas del Libro del infante don Pedro de Portugal 1.1. Ediciones castellanas: Sevilla, Jacobo Cromberger, 1515. Public Library of Cleveland (Ohio): Libro del infante don Pedro de Portugal: el qual anduuo las quatro partidas del mundo, in F. M. Rogers (ed.) (1962), Gómez de Santisteban. Libro del Infante don Pedro de Portugal publicado segundo as mais antigas edições. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

1.2. Ediciones portuguesas: Lisboa, Domingos Carneyro, 1644. Monasterio de San Xoan de Poio (Pontevedra): Livro do Infante D. Pedro de Portugal, o qual andou as sete partidas do mundo. Lisboa: Domingos Carneyro.

2. Relación de fuentes Carta do Preste João das Índias, Versões medievais latinas (Prefácio e notas de Manuel João Ramos; trad. de Leonor Buescu). Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. FRANCISCO ÁLVARES: Verdadeira informação das Terras do Preste João das Indias. (Pref. de A. Reis Machado). Lisboa: Agência Geral das Colónias. Ática, 1943. JUAN DE MANDEVILLA: Libro de las maravillas del mundo (Edic. de G. Santonja). Madrid: Visor, 1984. Libro del conoscimiento (Estudio, edición y notas de M. Jiménez de la Espada (l877). Presentación de F. López Estrada. Barcelona: El Albir, 1980. LOPE GARCÍA DE SALAZAR: Las bienandanzas e fortunas (Edición de A. Rodríguez Herrero). Bilbao, 1967. Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 881

MANUEL DE FARIA Y SOUSA: Europa Portuguesa. Lisboa, 1678-1679, 2ª ed., 3 vols. PERO TAFUR: Andanças e viajes de un hidalgo español (Presentación, edición, ilustración y notas por M. Jiménez de la Espada (1874). Presentación bibliográfica de F. López Estrada). Barcelona: El Albir, 1982. RUY GONZÁLEZ DE CLAVIJO: Embajada a Tamorlán (Edición de F. López Estrada). Madrid: Castalia, 1999.

3. Otras referencias ACOSTA, V. (1993): "'Los últimos relatos medievales de viajes y maravillas", in Viajeros y maravillas. Caracas: Monte Ávila Editores, vol. III, pp. 255-268. BECHARA, E. (1991): "As fases da língua portuguesa escrita", Actes du XVlllè. Congrès International de Linguistique et de Philologie Romanes. 1986. Tübingen: Max Niemeyer, vol. III, pp. 68-76. BELTRÁN, R. (ed.) (2002): Maravillas, peregrinaciones y utopías. Literatura de viajes. Valencia: Publicaciones de la Universidad de Valencia. BENÍTEZ CLAROS, R. (1963): Visión de la literatura española. Madrid: Rialp. BORGES, F. Neuma Fachine (1996): “Literatura de cordel. De los orígenes europeos hacia la nacionalización brasileña”. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos 6: 107-114. CANO AGUILAR, R. (2004): “Cambios en la fonología del español durante los siglos XVI y XVII”, in R. Cano Aguilar (2004) (coord.), pp. 825-857. (2004) (coord.): Historia de la lengua española. Barcelona: Ariel. CARMONA, F. y A. MARTÍNEZ PÉREZ (1994) (eds.): Los libros de viajes: actas de las Jornadas sobre los Libros de Viaje en el Mundo Románico. Murcia: Universidad de Murcia. CARO BAROJA, J. (1968): Ensayo sobre la literatura de cordel. Madrid: Revista de Occidente. CARRIZO RUEDA, S. (1997): Poética del relato de viajes. Kassel: Reichenberger. CARVALHO, J.-C. F. A. De (2003): Ciência e alteridade na literatura de viagens. Lisboa: Colibri. CASTRO, A. Pinto de (2001): "'D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos e a ''Geração de 70''. Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas 18: 9-22. CASTRO, I. et alii (1991): Curso de história da língua portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta. (1996): ''Para uma história do português clássico", Actas Congresso Internacional sobre o Português. 11 a 15 de Abril de 1994, Duarte, I. y Leiria, I. (orgs.). Lisboa: Colibri, vol. II, pp. 135-150. CÁTEDRA, P. M. (2002): Invención, difusión y recepción de la literatura popular impresa (siglo XVI). Mérida: Editora Regional de Extremadura. CÁTEDRA, P. M. y V. INFANTES (eds.) (1983): Los pliegos sueltos de Thomas Croft (siglo XVI), 2 vols. Valencia: Albatros. 882 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

CORREIA, M. Sérvulo (2000): As viagens do infante D. Pedro. Lisboa: Gradiva. CRISTÓVÃO, F. (2003): O olhar do viajante. Dos navegadores aos exploradores. Coimbra: Almedina. (coord.) (1999): Condicionantes culturais da literatura de viagens. Estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina CUNHA, C. y L.F. Lindley CINTRA, (1984): Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Edições João Sá da Costa. DIAZ G. VIANA, L. (coord.) (2000): Palabras para el pueblo. Vol. I. Aproximación general a la literatura de cordel. Madrid: CSIC. ECHENIQUE ELIZONDO, M.-T. y M.-J. MARTÍNEZ ALCALDE (2005): Diacronía y gramática histórica de la lengua española. Valencia: Tirant lo Blanch. FARIA, Francisco Leite de (1964): "A visita do Infante D. Pedro a Pádua e algumas edições do folheto que descreve as suas imaginárias viagens". Stvdia 13-14: 377-485. FERNÁNDEZ DURO, C. (1903): Viajes del Infante D. Pedro de Portugal en el siglo XV. Madrid: Imprenta del Cuerpo de Artillería. FERREIRA, F. Durão (2000): Gomes de Santo Estêvão. Palmela: Contraponto. FRUGONI, C. (1978): La fortuna di Alessandro Magno dall'antichità al Medioevo. Florencia. GALVES, Ch. (2001): ''Do português c1ássico ao português europeo moderno. Uma aná1ise minimalista", in Ensaios sobre as Gramáticas do Portugués. Campinas SP: Editora da Unicamp, pp. 213-236. GARCÍA DE CORTÁZAR, J. A. (1976): La época medieval. Madrid: Alianza. (1996): Los viajeros medievales. Madrid: Santillana. GAYANGOS, Pascual de (1874): Catálogo razonado de los libros de caballerías. Madrid: Rivadeneyra (Reed. Valencia 1997). INFANTES, V. (1989): “La prosa de ficción renacentista: entre los géneros literarios y el género editorial”. Journal of Hispanic Philology XIII, 2: 115-124. LADERO QUESADA, M.-Á. (2004): “Evolución lingüística en la Baja Edad Media”, in R. Cano Aguilar (coord.) (2004), pp. 507-641. LAPESA, R. (1986): Historia de la lengua española. Madrid: Gredos. (2000): Estudios de morfosintaxis histórica del español. Madrid: Gredos. LEAL, M.L. et alii (2006): Invitación al viaje. Mérida: Junta de Extremadura. LEIRIA, I. (1998): “Falemos antes de ‘verdadeiros amigos’”, in P. Pinto y J. Norimar (coords.), Para acabar de vez com Tordesilhas. Lisboa: Colibri /APL, pp. 11-29. Livro do Infante dom Pedro de Portugal in Bibliografía de textos antigos galegos e portugueses. Dirección en internet PhiloBiblon/BITAGAP/3459.html. LLOYD, P. M. (2003): Del latín al español. Fonología y morfología históricas de la lengua española. Madrid: Gredos. Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 883

LÓPEZ-BURGOS, M. A. (1998): Aportaciones metodológicas al estudio de la literatura de viajes. Granada: Universidad de Granada. LÓPEZ ESTRADA, F. (2003): Libros de viajeros hispánicos medievales. Madrid: Ediciones del Laberinto, S. L. MARQUES, A. Pinheiro (1994): A maldição da memoria do infante dom Pedro e as origens dos descobrimentos portugueses. Figueira da Foz: Centro de Estudos do Mar. (1996): Vida e obra do infante D. Pedro. Mira: Gradiva. MARQUES, A. H. de Oliveira (1985, 1972): História de Portugal, 3 vols. Lisboa: Palas Editores. . MARQUILHAS, R. (2000): A Faculdade das Letras. Leitura e escrita em Portugal no século XVII. Lisboa: IN-CM. MARTINS, A. M. (2003): "Mudança sintáctica e história da língua portuguesa", A.A.V.V., História da Língua e História da Gramática. Actas do Encontro. Braga: Universidad de Miño, pp. 251-297. MARTINS, J. P. OLIVEIRA (1891, 1922): Os filhos de D. João I. Lisboa: Livraria Editora. (1958): Obras completas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. MATTOS E SILVA, R. V. (1994): O português arcaico. Morfoloxia e sintaxe. São Paulo: Contexto. MEJÍA RUIZ, C. (1995): ''El Libro del Infante Don Pedro de Portugal'', Medioevo y Literatura. Actas del V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval. Granada, vol. III, pp. 311-319. (1998): "El libro del Infante don Pedro de Portugal: estudio crítico y problemas de transmisión". Revista de Filología Románica 15: 215-232. MEJÍA RUIZ, C. & M.V. NAVAS SÁNCHEZ-ÉLEZ (2007): El oriente maravilloso y exótico. Dos relatos de viajes. Bucarest: Cartea Universitară. MENÉNDEZ PIDAL, R. (2005): Historia de la lengua española. Madrid: Fundación Ramón Menéndez Pidal / Real Academia Española, 2 vols. MENÉNDEZ Y PELAYO, M. (1943): Orígenes de la novela. Madrid: CSIC, vol II, cap. VII. MORENO BAQUERO, H., s. d. (1976): Tensões Sociais em Portugal na Idade Média. Oporto: Athena. (1979-1980): A batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histórico, 2 vols. Coimbra: Universidad de Coimbra. NAVAS SÁNCHEZ-ÉLEZ, M. V. (1996): "Español y portugués en la frontera luso-española (Formas intransitivas acompañadas del pronombre reflexivo en barranqueño)", Actas Congresso Internacional sobre o Português. 11 a 15 de Abril de 1994. Lisboa: Colibri, vol. II: 453-479. (2005): "‘Falsos amigos’ y ‘verdaderos amigos’ en el Livro do Infante D. Pedro de Portugal (1644)". Revista de Filología Románica 22: 59-95. 884 Carmen Mejía Ruiz y María Victoria Navas Sánchez-Élez

NEBRIJA, E. A. de, (1492) (1989): Gramática de la lengua castellana. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces. NEMESIO, V. (1959): Vida e obra do Infante D. Enrique. Lisboa: Neogravura. NORTON, F. J. (1973): "Lost Spanish books in Fernando Colon' s library catalogues", in Jones, R. O. (ed.), Studies in Spanish Literature ofthe Golden Age. Londres: Thamesis Books, pp. 161-171. (1978): A descriptive catalogue of printing in Spain and Portugal (1501-1520).Cambridge: Cambridge University Press. NOWEL, Ch. (1953): "The historical Preste John". Speculum XXVIII, 3: 435-445. PÉREZ PRIEGO, M. Á. (1984): "Estudio literario de los libros de viajes medievales". Epos l: 219- 234. (1995): "Maravillas en los libros de viajes medievales". Literatura de viajes 7: 65-79. POPEANGA CHELARU, E. (coord.) (1991): Los libros de viajes en el mundo románico, Anejo 1, Revista de Filología Románica. Madrid: UCM. (2005): Viajeros medievales y sus relatos. Bucarest: Cartea Universitară. (2005): “La carta del Preste Juan: las versiones castellana y catalana”, in Popeanga (2005), pp. 157-176. (2007): Los viajes a Oriente de Odorico de Pordenone. Bucarest: Cartea Universitară. RAMOS, J. M. (1997): Ensaios de mitologia cristã. Lisboa: Assírio e Alvim. (1999): “O destino etíope do Preste João. A Etiópia nas representações cosmográficas europeias”, in CRISTÓVÃO, F. (coord.) (1999), pp. 235-259. (2002): “O destino etíope do Preste João. A Etíopia nas representações europeias”, in F. Cristóvão (coord.), Condicionantes culturais da literatura de viagens. Estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, pp. 235-260. RICHARD, J. (1981): Les récits de voyages et de pèlerinages. Turnhout, Bélgica: Brepols. ROGERS, F. M. (1957): “The four dromedarios of the infante Dom Pedro. One of Guillaume Apollinaire’s sources”. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira XIV: 1-34. (1959): List of editions of the Libro del Infante don Pedro de Portugal. Lisboa: Companhia de Diamantes de Angola. (1960): "Union between latin and eastern Christian and the overseas expansion of the Portuguese", Actas III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Lisboa, 1957. Lisboa, vol. II, pp. 148-163. (1961): The travels of the Infante Dom Pedro of Portugal. Massachusetts: Harvard University Press. RUBIO TOVAR, J. (1986): Libros españoles de viajes medievales. Madrid: Taurus. RUCQUOI, A. (2003): "Rois et princes portugais chez les auteurs castillans du XVème siècle". Península. Revista de Estudos Ibéricos 0: 39-51. Espacios exóticos: el Libro del Infante Don Pedro — motivos y circulación 885

SALVÁ Y MALLEN, P. (1872): Catálogo de la Biblioteca de Salvá, vol. II. Valencia: Imprenta de Ferrer de Orga. SANLÉS MARTÍNEZ, P. R (1990): Catálogo. Impresos de los siglos XVI y XVII, Vol. II. Poyo: Revista Estudios. SARAIVA, J.-A. y Ó. LOPES (1996): História da Literatura Portuguesa. Oporto: Porto Editora. SHARRER, Harvey L (1976-1977): "Evidence of a fifteenth-century Libro del Infante don Pedro de Portugal and its relationship of the Alexander circle". Jornal of Hispanic Philology 1: 95-98. TAYLOR, B. (1993): "Los Libros de Viajes de la Edad Media Hispánica: Bibliografia y recepción", Actas IV Congresso da Associação Hispánica de Literatura Medieval. Lisboa, 1-5 Otubro 1991. Lisboa: Cosmos, vol 1, pp. 57-70. VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de (1899): "Uma obra inédita do Condestável D. Pedro de Portugal", in Homenaje a Menéndez y Pelayo, Madrid: Librería General de Victoriano Suárez, pp. 637-688. VAU, V. (1964): "O infante D. Pedro e a regência do reino em 1439". Revista da Faculdade de Letras de Lisboa III série, 8: 149-150. VERDELHO, E. (1996): "Sobre a língua portuguesa do século XVII. Estudos realizados e traba - lhos em curso", Actas XII Encontro da Associação Portuguesa de Linguística. Braga- Guimarães. Lisboa: APL, vol. II, pp. 325-339. VERÍSSIMO SERRÃO, L. (1980): História de Portugal. Lisboa: Verbo. WILLIAMS, E. (1938) (1961): Do latim ao português. (Fonologia e morfologia históricas da língua portuguesa) (Trad. portuguesa de Antonio Houaiss). Río de Janeiro: Tempo Brasileiro.

Un bárbaro en Asia, el viaje a Oriente de Henri Michaux

ROCÍO PEÑALTA CATALÁN Universidad Complutense de Madrid, Departamento de Filología Románica

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

l interés de Un bárbaro en Asia radica en su difícil catalogación como libro de viajes. Esta obra pertenece, más bien, al género híbrido de la literatura Ede viajes, por las figuras y recursos estilísticos que emplea, por el recurso a la ironía, por su tono poético y porque su autor, Henri Michaux, es un poeta y narrador reconocido, además de artista plástico. El escritor y pintor de origen belga emprendió su viaje a Oriente en 1930, a los 31 años de edad. Esta experiencia quedó plasmada en un diario de viaje heterogéneo y fragmentario, más cercano al ensayo que al reportaje o a la cró - nica de viajes (Popeanga 2006:356-357), que se publicó por primera vez en 1933 con el título de Un bárbaro en Asia. En la obra apenas se describen los paisajes o las ciudades visitadas, sino que el autor muestra más interés por los tipos humanos, por la religión y la cultura, la literatura y la música de los pueblos asiáticos. Durante los dos años que dura su viaje, Michaux visita La India, China, Japón y Malasia. Es el periodo de entreguerras, que el escritor define como “la época entontecida y tensa a la vez de este continente” (refirién dose a Europa; pero también podría aplicarse esta expresión a Asia, como veremos más adelante). La fecha de realización del viaje es fundamental para comprender la actitud de Henri Michaux ante el nuevo espacio visitado, sus prejuicios y sus intereses; también explica la situación social, política y cultural que el viajero encuentra en esos países y que ya no encontrarán quienes visiten el continente asiático posteriormente. En el prólogo a la edición francesa revisada y corregida de Un bárbaro en Asia publicada en 1967, Michaux insiste en este detalle: Este libro tiene una fecha determinada. […] Data […] de mi igno - rancia, de mi ilusión desmitificadora. Eran los años de aquel Japón excitado, sobreexcitado, que sólo hablaba de guerra […]. Eran los años de aquella China acorralada, mermada, amenazada de desmem bra ción, que no llegaba a rehacerse, y que se mostraba desconfiada y cerrada [… ]. Eran los años de aquella India que, con medios inespera dos, que tenían todas las trazas de la debilidad, trataba angustiosamente de librarse del sólido pueblo dominador que la tenía bajo su yugo. (Michaux 1967:15-161) La India, China o las islas del Pacífico han sido durante mucho tiempo el deco - rado exótico confeccionado por los viajeros occidentales en sus narra ciones,

1 De ahora en adelante, en las citas referidas a esta edición de Un bárbaro en Asia, sólo indicaré el número de página. 890 Rocío Peñalta Catalán

compuestas la mayoría de las veces a partir de estereotipos y retales librescos, lo que resta espontaneidad y realismo al relato de viajes auténtico. Michaux critica esta visión cargada de prejuicios pero, al mismo tiempo, vuelve a caer en muchos de los tópicos al describir las costumbres, la cultura o la lengua de los pueblos asiáticos. Al enfrentarse a la realidad de Asia, Michaux se replantea sus conocimientos, sus lecturas, todas las ideas preconcebidas, y así lo explica al reflexionar sobre su obra de juventud: “Desembarcado allí, en el 31, apenas informado, con la memoria saturada de relaciones de pedantes, descubro el hombre de la calle. Me impresiona, me interesa profundamente […]” (16). Desde su juventud, Michaux manifestó afición por conocer mundo: a los 21 años dejó la universidad y abandonó la carrera de medicina para embarcarse como marinero en una goleta de cinco mástiles y, poco después, en 1920, se enroló en Le Victorieux, un buque de diez mil toneladas que navegaba de Bremen, a Buenos Aires haciendo escalas en Savannah (en el estado de Georgia), Norfolk, Newport-News y Río de Janeiro. Son muchas las obras literarias de Henri Michaux que tratan el tema del viaje, tanto real como fantástico. Una de las primeras es Ecuador, un diario del viaje que realizó el autor durante todo el año 1928 y que le llevó desde Ámsterdam hasta Quito, atravesando el canal de Panamá. El interés de este libro radica en las reacciones y opiniones del viajero y no tanto en el relato de acontecimientos o en la descripción de paisajes. De hecho, emprendió el viaje para vivir una aventura más que para conocer nuevos países (Bréchon 1959:141-142). También son numerosos sus relatos sobre espacios imaginarios, como Voyage en Grande Garabagne, Au pays de la magie o La Vie dans les plis, entre otros. Pero el más importante de sus libros de viajes es el que narra su experien cia en Oriente. Un bárbaro en Asia recoge una experiencia vital e iniciática. Michaux trata de encontrarse a sí mismo viajando a una tierra exótica y lejana. El periplo se trans forma en la búsqueda de una filosofía, una religión y un modo de vida con los que sentirse identificado. A pesar de que la cultura oriental supone un descu - bri miento fascinante para Michaux, en su libro predomina el tono irónico. El autor de Un bárbaro en Asia aparece como un viajero atónito ante las costum bres extranjeras y no trata de comprenderlas, sino que se muestra sorprendido y críti - co. Recurre con mucha frecuencia a las comparaciones entre europeos y asiáticos y, en general, ninguno de los dos sale bien parado. Al referirse a los hindúes explica: No hay miseria ni situación por desvalida que sea capaz de asombrarlo. Hay que ver sus hoteles. Diógenes pensaba que era una hazaña alojarse en un tonel. Bueno, jamás se le ocurrió alquilarlo a una familia, o a viajeros de Esmirna, o compartirlo con sus amigos. Pues bien, en un Un bárbaro en Asia, el viaje a Oriente de Henri Michaux 891

hotel hindú, a uno le proponen un cuarto donde hay exactamente lugar para un par de zapatillas. Un perro se asfixiaría. El hindú no se asfixia. Se arregla con el volumen de aire que le dan. (70-71) Michaux se escuda en el humor y el cinismo para establecer cierta distancia frente al entorno y a las personas con las que se encuentra durante su viaje. En toda su obra, Michaux manifiesta un sentimiento de malestar ante el otro, refleja la dificultad de establecer relaciones afortunadas con la gente. Robert Bréchon, autor de una biografía de Michaux, señala que este malestar es, en cierto modo, ambiguo. Es, a la vez, dolor ante la diferencia, ante la discontinuidad entre él mismo y los demás, y temor ante la continuidad, ante una posible confusión con el otro, ante una posible absorción por parte del otro; es a la vez miedo de perder su autonomía y angustia frente a la soledad (Bréchon 1959:49). Al encontrarse en un espacio que le es ajeno, la actitud de Michaux consiste en tomar distancias, en encerrarse en sí mismo; de manera que “el otro” aparece como alguien lejano, perteneciente a otro mundo, con el que es imposible el entendimiento. En este territorio extraño él es el extranjero. Pero este sentimiento tiene raíces profundas en Michaux. El escritor siente que no pertenece a ninguna comunidad, a ninguna clase, a ninguna ideología, a ningún país. Michaux es un apátrida. Aunque es belga de nacimiento, a lo largo de su vida reside en diferentes países: Suiza, Francia, Alemania, Argentina, Bolivia. Finalmente, en 1955 adopta la nacionalidad francesa. Este sentimiento de alienación, de pérdida de la identidad propia, se refleja en los títulos de algunas de sus obras, como por ejemplo L’Étranger parle, Qui je fus o, sin ir más lejos, Un bárbaro en Asia. Así, desde el título de esta obra, Michaux manifiesta su desconocimiento ante la cultura asiática. Él es el bárbaro que llega a las civilizaciones orientales con su cultura primitiva y no entiende el idioma, la tradición, las costumbres con las que se encuentra. Este punto de vista se mantiene en el texto, por lo que el autor se limita a dar una visión pintoresca de los indios o los malayos, pero no introduce reflexiones ni análisis profundos de las tradiciones orientales. El hombre blanco es un bárbaro que no pretende entender a los indios. Sus descripciones son “[…] pinceladas, fragmentos casi impersonales, desprovistos de todo detalle anecdótico, nos informan a veces; pero a esa información, correcta, le sigue el comentario extravagante, cómico, mordaz. […] La visión, más bien pictórica de la India, apenas se detiene ante los detalles ‘pintorescos’ o exóticos” (Popeanga 2006:358). El propio Michaux, al comentar su obra treinta y cinco años más tarde, señala: Este libro, que me tiene insatisfecho, que me saca de quicio y me choca, […] tiene un tono. A causa de este tono, todo lo que con carácter 892 Rocío Peñalta Catalán

más grave, más reflexivo, más hondo, más sagaz, más avisado, quisiera incorporar, a modo de contrapeso, lo rechaza, lo vomita… como si le sentara mal. Aquí, si bárbaro se ha dicho, en bárbaro hay que quedar. (18) En la obra de Michaux apenas encontramos descripciones de las ciudades, no hay topónimos ni referencias a lugares concretos que permitan establecer un itinerario espacial y temporal. El periplo —al igual que su relato y la estructura del propio libro— se muestra fragmentado e incompleto. Un bárbaro en Asia se divide en ocho partes (además del prólogo): “Un bárbaro en la India”, “Himalayan railway”, “La India meridional”, “Un bárbaro en Ceilán”, “Historia natural”, “Un bárbaro en China”, “Un bárbaro en Japón” y “Un bárbaro entre los malayos”. Cada uno de estos capítulos tiene una exten - sión muy diferente. Mientras que a la India le dedica tres apartados, uno de los cuales supone prácticamente la mitad del libro, a su experiencia en Malasia apenas le concede una docena de páginas. El contenido de cada uno de estos capítulos se presenta en pequeños párra - fos aislados, fragmentos separados por líneas de puntos que hacen aún más patente la ruptura. Esta característica es típica de la literatura de Michaux. Sus refle xiones no constituyen un discurso continuo, sino que el texto queda a menudo suspendido, incompleto. Son muy frecuentes la elipsis y el asíndeton. “Lo que dice remite a lo que no dice”, señala Bréchon (1959:129). El relato de Michaux es sugerente, el lector debe completar las lagunas del discurso, los espa - cios en blanco. El tono es algunas veces cercano a la explicación oral, y en otras ocasiones adopta un matiz lírico. Su faceta de pintor también queda plasmada de manera evidente en el libro, no sólo por la atención que presta a la producción artística de estos países, por su capacidad para retratar a sus gentes o describir sus paisajes, sino también por el empleo del color y de otros términos propios de las bellas artes. Michaux define la India por medio de su color dominante: “El país del rosa, de las casas rosadas, de los saris de bordes rosados, de las valijas pintadas de rosa, de la manteca líquida, de los manjares dulzones e insulsos, fríos y asque - rosos […]” (40). A lo largo del libro podemos encontrar muchos fragmentos dedicados a la des cripción de tipos. Michaux presta especial atención a los rostros de los hombres y las mujeres con los que se cruza por la calle. En la India, los hombres tienen […] ojos de sapo que no lo dejan a uno y de los que no hay nada que sacar. No meditabundos, sino pegajosos o más bien pegados. Un brillo en la mirada como el que dan los productos de belleza y que no es agradable mirar […]. Algunas caras finas, de almas bien nacidas (rarísi mas). Algunas Un bárbaro en Asia, el viaje a Oriente de Henri Michaux 893

caras de ancianos, verdaderos padres de la humanidad, antepasados de la música y de la sabiduría, armonio samente desarrollados. (45) Los chinos tienen “Cara de gelatina […]. Con algo de borracho y de blando; con una especie de corteza entre el mundo y él. La china no es amarilla, sino cloró - tica, pálida, lunar” (146). En Japón, “Los hombres son feos, sin brillo, dolo rosos, destruidos y secos, con aire de nenes, pequeños empleados sin porvenir, cabos, todos subalternos, servidores del barón X y del señor Z, o de la papa-patria. Las mu je res parecen sirvientas (siempre servir); las jóvenes, mucamas bonitas” (194). El rostro es el medio a través del cual se establece la comunicación. Las descripciones de Michaux son otra manifestación de su relación ambivalente con el otro. El escritor presta especial atención a las miradas de los hombres que son, a la vez, “promesa de comunicación y amenaza de dominación” (Bréchon 1959:49). El hombre está atrapado en su propio rostro pero, al mismo tiempo, lo lleva como un traje, es “una concepción de sí que se lleva en sí”. Como señala Michaux, “Un pueblo […] tiene sus [propios] gestos, su acento, su fisonomía…, sus reflejos que lo traicionan. Y cada hombre tiene su cara que lo juzga, y su cara, al mismo tiempo, juzga su raza, su familia y su religión, su época” (209-210). Además de por los personajes, Michaux se interesa por las manifestaciones artísticas —especialmente por la música y el teatro—, también por la indumen - taria típica de estos pueblos, por el idioma y por la religión. El autor de Un bárbaro en Asia tiene la capacidad de describir cada una de estas razas en función de unos pocos rasgos que definen su carácter; así, todos los indios son brahmanes, dedicados a la contemplación y a la oración, los chinos son artesanos hábiles, Japón es una nación de estetas, etcétera. Pero vamos a recorrer detenidamente cada uno de los espacios que visita Michaux en su viaje al continente asiático. Si seguimos sus pasos a través de los capítulos del libro, hemos de suponer que el periplo comienza en el norte de la India, concretamente en Calcuta, capital del estado de Bengala Occidental. Michaux la define como “la ciudad más repleta del universo. […] una ciudad compuesta exclusivamente de canónigos. Setecientos mil canónigos” (21). El bengalí nace canónigo, explica Michaux, y los canónigos siempre van a pie. Por eso, Calcuta es una ciudad repleta de peatones. Además de canónigos, hay vacas por todas partes: “Cruzan las calles, se atra vie - san en una vereda y la hacen intransitable; defecan ante el automóvil del Virrey, examinan las tiendas, amenazan el ascensor, se instalan en el descaso de la esca - le ra, y si el hindú fuera comible ya se lo habrían comido” (24). Así pues, los tres pueblos que habitan esta “capital del mundo” son el hindú, el inglés y la vaca. Michaux enseguida se siente atraído por las religiones de la India. Los indios 894 Rocío Peñalta Catalán

son un pueblo radicalmente religioso, el “pueblo del Absoluto”. Michaux esta - blece comparaciones entre la religión cristiana y las filosofías orientales: “Las filosofías occidentales hacen perder el pelo, y acortan la vida. La filosofía oriental hace crecer el pelo y prolonga la vida” (28). La religión hinduista tiene un carácter mágico: “Todo pensamiento indio es mágico. […] Buena parte de lo que hemos tomado por bellos pensamientos filosófico-religiosos, no son otra cosa que mantras o plegarias mágicas, poseedoras de una virtud como ‘Sésamo ábrete’” (28). A quienes se sienten débiles e indignos el cristianismo los hunde, los rebaja aún más. Sin embargo, los hindúes proponen una religión que “no extrae la debilidad del hombre, sino su fuerza” (33). A la inútil plegaria cristiana, el hinduis mo opone técnicas de meditación que permiten obtener la beatitud en esta vida (Bréchon 1959:86). Michaux se muestra muy duro al referirse a las costumbres cristianas: He aquí la palabra que proclama un sentimiento cristiano fundamen - tal: la humildad. […] La catedral gótica está construida de tal modo que el que entra se siente aterrado de inanidad. Se reza arrodillado, no en el suelo, sino sobre el borde agudo de una silla, en una dispersión de los centros naturales de magia. Posición desgraciada e inarmónica donde no se puede más que suspirar, y tratar de arrancarse de la miseria: Kyrie Eleison, Kyrie Eleison, ¡Señor, piedad! (32-33) Las religiones hindúes, en lugar de mutilar al hombre, le permiten expandirse, crecer. Sin embargo, no todo son elogios para el pueblo hindú. El hindú tiene mil ídolos, adora al sol, adora al Ganges, a sus aperos de labranza, a su esposa. “El que puede no adora sino a Brahma, pero si no hay remedio adora también a Kali o a Vishnu; si no hay remedio, lo que sobran son dioses” (62-63). Pero lo que más exaspera a Michaux de la India es la fealdad que encuentra por todas partes; nada es bello, ni los hombres, ni los edificios o las ciudades, ni el idioma, ni el arte: “En la India uno puede acostumbrarse a no comer sino arroz, a no fumar, a no beber alcohol ni vino, a comer poco. Pero a rodearse de fealdad, es la última privación. Es muy dura. […] En este viejo pueblo de tres mil años, el rico tiene aún gustos de advenedizo” (73). En Siliguri, Michaux toma el Darjeeling Himalayan Railway, también conocido como “Toy train” (“el tren de juguete”), que hace el recorrido desde esta ciudad hasta Darjeeling, en el estado de Bengala Occidental, bordeando la cordillera del Himalaya y dejando al sur la frontera con Bangladesh. “Al llegar a Sileguri, se percibe sobre un par de rieles colocados a una distancia tan estrecha, tan estrecha, una locomotora tan graciosa, tan graciosa ¿cómo diré? una locomotora poney, enganchada a un trencito” (105). Un bárbaro en Asia, el viaje a Oriente de Henri Michaux 895

En el tren, que funciona todavía con una máquina de vapor alimentada con carbón, Michaux coincide con mujercitas del Nepal, mendigos hindúes, sacerdo - tes tibetanos. Después de un recorrido lleno de virajes, en el que el tren “Avanza, retrocede, hace redondeles de calesita, y vuelve sobre sus huellas” y durante el cual el viajero puede disfrutar de las maravillosas vistas del Himalaya con sus picos nevados, la locomotora se detiene en la estación de Darjeeling. El siguiente capítulo nos sitúa, sin transición alguna, en la India meridional. El hindú del sur —explica Michaux—, de raza dravídica, pequeño, vivaracho, colérico, no corresponde en lo más mínimo a la concepción que el europeo tiene del hindú. Desde que se llega al Sur, la piel se oscurece, las gentes son casi negras […]. Ya no son rumiantes. Si disponen de dos minutos, no se ponen en cuclillas. Algunos quedan de pie; otros hasta se echan a andar. (115) Tampoco el idioma es igual en el norte y en el sur de la India. “La lengua tamil está compuesta de palabras con un promedio de seis sílabas. Muchas tienen catorce. Menos de cuatro sílabas, no es palabra, sino un residuo. La lengua inglesa les parece en ruinas” (119). En esta región de la India, Michaux se siente observado por los nativos como si fuese un ejemplar exótico en un jardín zoológico: “Lo miran a uno como en el zoo se mira un recién llegado, un bisonte, un avestruz, una serpiente. […] Si un europeo es interrogado a su vuelta de la India, no titubea, contesta: ‘He visto Madras, he visto esto, he visto aquello’. Pero no, ha sido visto, mucho más de lo que él ha visto” (118). Después de una breve visita a Ceilán y alguna mención a Malasia y Vietnam, Michaux desembarca en China. Los chinos son el pueblo que despierta mayores simpatías en el escritor belga. Los chinos son hábiles por naturaleza, tienen “dedos de violinista”. “El pueblo chino es artesano nato” (143). Todas las herramientas útiles las han inventado los chi nos, indica Michaux: La carretilla, la imprenta, el grabado, la pólvora de cañón, la mecha, la bengala, el barrilete, el taxímetro, el molino de agua, la antropo - me tría, la acupuntura, etcétera. “Sin ser hábil no se puede ser chino: imposible. Hasta para comer, como él lo hace con dos palillos, hay que tener una cierta habilidad. Esta habilidad, la ha buscado. El chino podía inventar el tenedor, que cien pueblos han encontrado, y utilizarlo. Pero ese instrumento, cuyo uso no requiere destreza alguna, le repugna” (143). A lo largo de todo el libro, Michaux aventura algunas predicciones acerca del futuro político y social de los países asiáticos, pero estas conjeturas se refieren especialmente a China. La mayoría de las predicciones resulta incorrecta y en la edición revisada y corregida de 1967, Michaux introduce algunas notas al pie en las que corrige sus primeras apreciaciones. 896 Rocío Peñalta Catalán

Así, en China, la revolución, al barrer costumbres, maneras de ser, de obrar y de sentir establecidas por los siglos, ha hecho inútiles muchas observaciones, y ha dado al traste con no pocas de las mías. Mea culpa. No tanto por haber pecado de corto de vista, sino más bien por no haber presentido lo que allí se gestaba y que iba a dislocar lo que parecía permanente. (16-17) En Japón todo es miserable, enclenque, débil: los árboles, el bambú, el paisaje, los hombres, la lengua. “Lo que no es raquítico no encuentra partidarios”. Todo lo japonés tiene una función decorativa: el traje de las mujeres, el teatro, las ciu da des, la manera de hablar y gesticular. Los japoneses son una nación de estetas. Michaux se siente fascinado por los malayos: “No hay nada que no me guste en ellos. Ni una forma, ni un color. […] Tienen el mismo gusto que yo por las formas oblicuas” (214). En su excursión a Oriente, Michaux busca la novedad, la sorpresa. Eso es lo que le anima a escribir su libro y así lo explica el autor: “Algunos se asombran de que habiendo vivido más de 30 años en un país de Europa, no se me haya ocurrido hablar de él. Llego a la India, abro los ojos, y escribo un libro. Los que se asombran me asombran. ¿Cómo no escribir sobre un país que se presenta con la abundancia de lo nuevo y en la alegría de revivir?” (97). También en otras obras de Michaux encontramos reflexiones semejantes. Por ejemplo, en L’Infini turbulent asegura: “Je n’ai d’èmotion que dans la surprise […] je suis l’homme de la première fois” (Michaux apud Bréchon 1959:83). Huyendo del aburrimiento y la rutina, Michaux emprende un viaje que le per mite descubrir formas de pensar y de ser más ricas y eficaces que las occi - denta les y, sobre todo, radicalmente diferentes. El escritor se pregunta si sus descripciones son acertadas y explica: “El conocimiento no progresa con el tiempo. […] Uno se acomoda, se entiende. Ya no se observa. Esta ley fatal hace que los antiguos residentes en Asia, y las personas más mezcladas con los asiáticos, no sean las más aptas para tener una visión precisa y que un transeúnte de ojos ingenuos pueda, a veces, poner el dedo en la llaga”. Si algo hace Michaux es poner el dedo en la llaga pues, aunque retrata con simpatía los tipos y las costumbres asiáticas, no renuncia en ningún momento a su espíritu crítico.

Bibliografía

BORGES, Jorge Luis (2005): “Henri Michaux: Un bárbaro en Asia”, en Biblioteca personal. Obras completas, vol. II. Barcelona: RBA. BRÉCHON, Robert (1959): Michaux. París: Gallimard. Un bárbaro en Asia, el viaje a Oriente de Henri Michaux 897

FERNÁNDEZ CARDO, José María; y GONZÁLEZ, Francisco (2006): Literatura francesa del siglo XX. Madrid: Síntesis. MICHAUX, Henri (1967): Un barbare en Asie. Edición española: Un bárbaro en Asia. Barcelona: Tusquets, 1984. Traducción de Jorge Luis Borges. POPEANGA, Eugenia (2006): “La India de Mircea Eliade: un viaje iniciático”. Revista de Filología Románica, anejo IV: pp. 341-362.

XII

Dialogues across borders: discovering the other, rethinking space

Introduction

his section and session — “Dialogues Across Borders: Discovering the Other, Rethinking Space” — was the responsibility of Research Project 4 of ULICES T— University of Lisbon Centre for English Studies, a project which I had the honour and pleasure of chairing, after Professor Maria Helena Paiva Correia (who originally conceived and created it) generously entrusted it to my care. This project devotes itself to the study of “English-speaking Literatures and Cultures: The United Kingdom and the New English-speaking Countries — Inter- art and Intercultural Dialogues”. We pay special attention to all sorts of dialogic encounters at different levels and in different contexts and areas, from the microscopic level of the act of literary reading to the macrocosmic level of intercultural relationships and communication or the inter-arts correspondences and the attendant inter-semiotic translations, not to mention the specific field of reception studies. Briefly, we move in the interstitial spaces of contact and relationship, looking at the specific relational dynamics that characterize them. The theoretical framework for such a broad project, so broadly defined, is to be found in the premises and principles that have recently emerged from the “ethical turn” in literary theory and criticism, a tendency that came forward in clear reaction to the ontological uncertainties of Postmodernism and that tried to accommodate the processes of globalisation and multiculturalism. By calling attention to the importance of the face to face encounter of self and other and the need on the subject’s part for accommodating and creatively responding to alterity, ethical criticism has redefined and re-envisioned the self’s responsibility towards the other — be it a text, a person, a country, an ideology, etc — in terms of an ability or pre-disposition to respond, that is a response-ability which involves both passive acceptance or hospitality (to use a Derridean term) and creative awareness of the self and the other. 902 Isabel Fernandes

Therefore it is easy to understand our emphasis on dialogue to express and make manifest the sensitive and vital negotiation involving self and other and determining the re-evaluation and redefinition of their respective places. It is against this backdrop that the papers brought together in this session should be considered. Taking advantage of the idea of travel involving a literal or metaphorical displacement and thus enabling contact and confrontation with the unknown other, “Dialogues Across Borders: Discovering the Other, Rethinking Space” accommodates papers addressing such diverse issues as: the discovery of Guiana or the re-evaluation of British food by Australians; the redefinition of Ireland from the standpoint of an Irish emigrant in South America; and, last but not least: the importance of specific metaphors both in travel writing and in literature about travel as well as in discursive constructions of woman’s identity and woman’s body and the role they played in the process of European colonisa - tion of Africa. By thus cryptically alluding to each of the papers in this session I hope, nevertheless, to have made clear what they have in common: how they enact multiple forms of the crucial encounter between self and other and the ensuing need in each case to re-evaluate and reinvent both.

Isabel Fernandes Centro de Estudos Anglísticos Universidade de Lisboa Four shipwrecks: travelling as an image of life in “The Wanderer”, “The Seafarer” and Hopkins’s “The Wreck of the Deutschland” and “The Loss of the Eurydice”

FERNANDO BARRAGÃO Centro de Estudos Anglísticos da Universidade Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

efining the precise boundaries of “travel writing” and “travel literature” has been rather difficult. Nonetheless, some have opted to define such Dconcepts in the broadest terms available. Odile Gannier, for instance, has included all kinds of travels, both real and fictional. On peut aussi définir comme relevant de la littérature de voyage tout texte de forme et de contexte culturel variable, ayant pour base, theme, cadre, un voyage supposé réel ou au moins affirmé comme tel, assumé par un narrateur qui s’exprime le plus souvent à la première personne. Le récit de voyage allie des domains et des genres différents, et s’accommode de l’hétérogénéité: à la limite, sa spécificité échappe à la taxinomie généri que. (Gannier, 9) Fernando Cristóvão arrives at a rather different conclusion, precisely by taking the other way round. For him, “travel literature” is a very precise subgenre, which can be defined as follows: Por Literatura de Viagens entendemos o subgénero literário que se mantém vivo do século XV ao final do século XIX, cujos textos, de carác ter com - pósito, entrecruzam Literatura com História e Antro pologia, indo buscar à viagem real ou imaginária (por mar, terra e ar) temas, motivos e formas. E não só à viagem enquanto deslocação, percurso mais ou menos longo, também ao que, por ocasião da viagem, pareceu digno de regis to: a des - crição da terra, fauna, flora, minerais, usos, costumes, crenças e formas de organização dos povos, comércio, organização militar, ciências e artes, bem como os seus enquadramentos antropológicos, históricos e sociais, segundo uma mentalidade predominantemente renascentista, moderna e cristã. (Cristóvão (org.), 35) He arrives at this definition after tidily setting apart “travel literature” from “travel in literature”: Literatura de Viagens não se distingue de viagem na literatura só pela diferença de estatuto genológico, mas também pelo seu relacionamento com o referente. Por exemplo, há textos em que nenhuma viagem é relatada, e nem por isso deixam de pertencer à Literatura de Viagens. Outros, porém, relatam viagens, mas podem não incluir-se nela por serem tributários da isotopia dominante de outros subgéneros que os modelam, de marcas bem diferen - tes das que tipificam a Literatura de Viagens. (Cristóvão (org.) 15) 906 Fernando Barragão

Which is to say, either one emphasizes the “travel” factor (Gannier) or one expands the concept of “literature” (Cristóvão). In fact, the very existence of the double concept “travel writing”/”travel literature” seems to point to a distinction between literary and non-literary features in such texts. That would separate Bruce Chatwin’s books from Swift’s Gulliver’s Travels, and Sir Walter Raleigh’s observations on Guyana from More’s Utopia or Conrad’s Heart of Darkness. It is fundamentally down to fiction, or the absence thereof. Should a description of a fictional travel be counted in? Should a real, down-to-earth travelogue be considered a sort of literature? The authors I mentioned above tend to believe so. After all, Cristóvão himself has included “imaginary travels” among the categories of his travel literature typology. Since he is ready to accept a literary subgenre with many historical and anthropological elements in it, maybe we should include texts with little or no History or Anthropology in them, but which include travel descriptions and are indisputably literary. Therefore, travel literature should be broad enough to deal with travels in literature, whenever they appear. What travelling may stand for, how travels are described, the particular techniques used by an author to ensure that things do not end the same way as they began. What we propose now is to look at four representations of travels which tend to blur the clear distinction between fact and metaphor, and which can be seen as making up two pairs of poems. More than merely physical journeys, these travels stand for a perspective on life and death that is strikingly similar throughout the four texts, even though centuries have passed between the composition of both pairs. We shall begin by taking a look at two poems bequeathed to us by the Anglo- Saxons. Because we must be brief in this presentation of ours and Old English is a dead phase of a living language, we will be using Graham Holderness’ translated versions, not only due to their being in Modern English, but also because they try to respect the original subjects, rhythms and alliterations of Old English. “The Wanderer” and “The Seafarer” are usually regarded as elegies due to their main theme and tone, but Charles Kennedy has considered only the former to be an elegy and regarded the latter as “sea poetry”. Since the personae on display in these texts are scarred by years of facing perils related to sea voyaging, we believe that extending the label to “The Wanderer” would not be altogether false or confusing. In spite of all the similarities, however, they seem to have different reasons for their woe. The “Wanderer” persona is a perpetual castaway, whose exile is all the more grievous due to his forlornness and lack of ties to the outside world. That his former lord is no more and no companions are with him only adds to the evident pain of being alive. If anything, it is bereavement of human affection that pains this persona the most. Four Shipwrecks: travelling as an image of life 907

(…) Near and far Through the world I searched, sick for a home, Hungry for a hall: wanting only one To befriend me, friendless, one wistful to wind me In welcoming arms. You have to have known How bitter it is — when care’s your companion, Forlornness your friend — to open your eyes On no green field, or forge-bright gold; But on foreign faces, and hostile hearts. (ll. 28-36) The “Seafarer” persona, on the other hand, stresses the marked difference between those who dare take that perilous journey and those who know nothing of the former’s hardships. A life of luxury’s made for that man Who sojourns in cities, caressed with comforts And warmed with wine. He feels not a fraction Of the seafarer’s sorrow, the hateful hardships An exile endures. He’ll never know, This creature of comfort, how some of us suffer On this vast voyage. (…) (ll. 28-34) Both, though, contribute in equal measure to our perception of life as exile and exile as life. Both, indeed, depict a rather pessimistic view of human existence, a travel one must pursue without relenting, a continuous sorrow, a perpetual decaying and abandonment. The following excerpts are from “The Wanderer” and “The Seafarer”, respectively. (…) Wisdom knows well What a dreadful place this world will be When all of its wealth stands waste; As we see every day, every where, Such ruinous remnants of spent splendour As the windswept wall of a broken Building, tattered by tempests And fringed with frost. And though, by that wall, Daring defenders, vaunting in valour, Protected their prince, in their pride they perished And fell at its foot. Deprived of delight, Now they lie with their liege-lord, while the mead-hall Quietly moulders in the rubble of its ruin. (Wand., ll. 86-98) 908 Fernando Barragão

Gone is all glory, all splendour spent, All empire interred. Antique nobility Droops and decays. Time’s always moving On this middle-earth. A man ages: Gaunt and grey-haired, he dreams of departed Days when his loved lord graced him with gifts; He remembers the royalty of that peerless patron, Given to ground now, enveloped in earth. The spirit’s sanctuary is fragile flesh That melts in mortality, crumbles to clay. (Seaf., ll.102-11) The only hope of salvation (or release, to be more precise) rests with God — that is, with a new life, because it is a peaceful and non-earthly one. One may envisage a final travel, that which takes these two personae beyond the hardships we are to expect in this earth. Again, the first excerpt is from “The Wanderer”, the second one from “The Seafarer”. Blessed the man Who keeps his faith firm, and never reveals Tormenting thoughts, till a certain remedy’s Ready to hand. Blessed the man Who hungers for grace; who longs For the love, and craves for the comfort Of the Father in heaven. All succour, All safety, all certainty, all love Lie only with Him, our only Assurance. He is our haven; He Is our home. (Wand., ll. 154-64)

(…) Great is the glory, The grandeur of God. Though he fixed the foundations, Established the earth, the seas and the sky, Yet will the world fall down before Him In fear of His wrath. If a man doesn’t know When his death will arrive, unannounced, unexpected, Like a thief in the night, he’s a fool not to feel A dread of the Lord. Blessed the man Who’s humble in heart, for the Lord’s mild mercy Will melt in his soul. Blessed the man Who holds his faith firm: his fate is forgiveness; His gift will be Grace. (Seaf., ll. 124-35) Four Shipwrecks: travelling as an image of life 909

Hopkins, who also had some things to say on the “grandeur of God”, outlined an original perspective on this final journey in “The Wreck of the Deutschland”. This poem was written in memory of five Franciscan nuns drowned after being cast off their native Germany due to an anticlerical legislation. This description of a sea travel is all the more remarkable because the voice in the poem does not take part in the trip. Away in the loveable west, On a pastoral forehead of Wales, I was under a roof here, I was at rest, And they the prey of the gales; (…) (II, 24, 185-8) In just a few lines, this persona admits to viewing the whole situation from the outside, thus reminding us of the distinction established by Gannier between “les voyageurs et les sédentaires” (Gannier, p. 4), also seen in “The Seafarer”. But this distance becomes hardly noticeable given the distinctive approach to the wreck. Several considerations on God’s power (“Surf, snow, river and earth/ Gnashed: but thou art above, thou Orion of light;/Thy unchancelling poising palms were weighing the worth,/Thou mártyr-máster: in thý sight/Storm flákes were scróll-leaved flowers, lily shówers — sweet héaven was astréw in them.” — II, 21, 164-8), Christ’s mercy (“The Christ of the Father compassionate, fetched in the storm of his strides.” — II, 33, 264), and the faith of one of the nuns (“The cross to her she calls Christ to her, christens her wild-worst Best.” — II, 24, 192) lead the reader towards the assumption that there are, similarly to the Old English poems already mentioned, two travels, a flawed one (which is life as we know it) and a hoped-for, successful one (towards salvation for eternal souls). The fact that the tragedy which the poem is centered on happens far from the journey’s intended destination only adds to this perception. — On Saturday sailed from Bremen, American-outward-bound, (…) (II, 12, ll.89-90)

She drove in the dark to leeward, She struck — not a reef or a rock But the combs of a smother of sand: night drew her Dead to the Kentish Knock; (…) (II, 14, ll.105-8) 910 Fernando Barragão

Rhíne refúsed them, Thámes would rúin them; (…) (II, 21, l.163) Even though the earthly trip is meant to fail, the last one toward redemption is emphatically announced: Now burn, new born to the world, Double-naturèd name, The heaven-flúng, heart-fléshed, maiden-fúrled Míracle-in-Máry-of-fláme, Mid-numberèd he in three of the thunder-throne! Not a dóomsday dázzle in his cóming nor dárk as he cáme; Kínd, but róyally recláiming his ówn; A released shówer, let flásh to the shíre, not a líghtning of fíre hard húrled. Dáme, at óur dóor Drówned, and amóng our shóals, Remémber us in the róads, the heaven-háven of the rewárd: Our Kíng back, Oh, upon Énglish sóuls! Let him éaster in us, be a dáyspring to the dímness of us, be a crímson- cresseted éast, More bríghtening her, ráre-dear Brítain, as his réign rólls, Príde, rose, prínce, hero of us, hígh-príest, Oür héart’s charity’s héarth’s fíre, oür thóughts’ chivalry’s thróng’s Lórd. (II, 34 and 35) Our fourth and last shipwreck is probably the most devastating of all, and it is depicted in “The Loss of the Eurydice”, also by Father Hopkins. The very name of the ship herself — “Eurydice” — signals hopelessness, reminding us of her name sake, Orpheus’ wife, lost forever among the shadows of the Underworld. But the way the ship was lost implies a clearer sense of guilt than that usually attributed to the mythical woman: Too proud, too proud, what a press she bore! Royal, and all her royals wore. Sharp with her shorten sail! Too late; lost; gone with the gale. (...)

Then a lúrch fórward, frígate and mén; “All hands for themselves” the cry ran then; But she who had housed them thither Was around them, bound them or wound them with her. (ll. 33-6 and 41-4) Four Shipwrecks: travelling as an image of life 911

One of the few survivors seems unaware of what exactly happened to him: Now her afterdraught gullies him too down; Now he wrings for breath with the deathgush brown; Till a lifebelt and God’s will Lend him a lift from the sea-swill. (...)

Him, after an hour of wintry waves, A schooner sights, with another, and saves, And he boards her in Oh! such joy He has lost count what came next, poor boy. — (ll. 61-4 and 69-72) By contrast, one of the floating corpses provides us with an interesting reflection by the speaking persona (an outsider, once more) on decline and loss: Look, foot to forelock, how all things suit! he Is strung by duty, is strained to beauty, And brown-as-dawning-skinned With brine and shine and whirling wind. (...)

He was but one like thousands more. Day and night I deplore My people and born own nation, Fast foundering own generation. (...)

Only the breathing temple and fleet Life, this wildworth blown so sweet, These daredeaths, ay this crew, in Unchrist, all rolled in ruin — (...) (ll. 77-80, 85-8, and 93-6) Still, amid all signs of inescapable damnation both on earth and out of it, a path towards salvation is shown: But to Christ lord of thunder Crouch; lay knee by earth low under: “Holiest, loveliest, bravest, Save my hero, O hero savest. And the prayer thou hearst me making Have, at the awful overtaking, Heard; have heard and granted Grace that day grace was wanted.” 912 Fernando Barragão

Not that hell knows redeeming, But for souls sunk in seeming Fresh, till doomfire burn all, Prayer shall fetch pity eternal. (ll. 109-20) The poems we have presented deal, in fact, with the theme of ocean-voyaging. But they do not stop at the physical realities of such travels. Rather, they display the travails that dislocations imply, both at a material and a spiritual level. We could even say that the poems themselves are journeys, technically speaking. Old English alliterative verse and Hopkinsian sprung rhythm are, each in its kind, a road with precise landmarks which the reader/traveller can rely on. If anything, these texts are short parables on life itself: the feeling of exclusion in the Old English sea poems (or, more to the point, sea elegies), the rescue from persecution in “the Wreck of the Deutschland” and the lack of solidarity in “The Loss of the Eurydice”. Uniting these elements is the idea of the inevitability of human suffering, whether at the hands of others or at our own. In addition, there is a common cause for earthly (and sometimes eternal) damnation: pride. We see it in the Anglo-Saxon elegies, where all valour is useless against the inevitability of decay. We see it in the Hopkinsian reflections on the excesses of pride, displayed by both the “Eurydice” and her crew. The nuns in the “Deutschland”, however, seem to escape this fate unpunished. That would be because the self-effacement their lifestyle required, and the abuse the world outdoors had dealt them, enabled them to be saved by a supernatural tour de force, after having suffered, curiously enough, due to the pride of those who would have them vanquished. If these journeys are so important, that is because human life is the major journey the poems report to. Only in this context can we understand the need for our “Seafarer” to continue travelling: And so my heart heaves to wander the waves, The unplumbed oceans, and taste of the tang Of the salt-sea’s spray; to seek the deep streams And their restless rolling. There I might seek Friendship in foreign lands, there I might find Homeless, a home on an alien shore. Again and again an impulse invites me, A peregrine urge to fare far forth; A mood of migration irks me to travel The pilgrim’s passage, the wanderer’s way. (Seaf., ll. 38-47) Four Shipwrecks: travelling as an image of life 913

The spiritual implications of this urge are revealed in a flight, the only one occurring in any of these poems, and one that enriches the persona in a way only matched by Hopkins’ “Windhover”. Only the longing of seafaring lasts: The hunger of a heart that desires the deep. So, stirring, my spirit raps at my ribs, Flutters her feathers, then quits her cage To soar on the wing, to fathom the flood-ways, The earth’s expanses, the haunts of the whale. Wheeling and hovering, my heart’s hawk yells, Eagerly inciting the unappeased spirit To seek the sea’s stretches, where the dead lie deep. Then circling, homing, my falcon stoops, Repossesses her perch, full of fierce feelings Of desperate desire: longing for Love she is, Greedy for Grace. See, then, why God’s gifts Mean more to me than the petty pleasures Of this little life! I can see clearly That no human happiness endures for ever. (Seaf., ll.65-80) Hence the appeals for a last trip towards redemption (and God). The final lines of the texts appear to be brief prayers, safe-conducts ensuring a safe passage out of this world. Comparing God and Heaven to a haven (especially in Hopkins’ “Deutschland” and in the final lines of “The Wanderer”) adds to the sea imagery these poems are so rich in. But there is also an unspoken entity in play in such pleas: literature. By asking the merciful Maker for help, a plea is made for the stories to be told anew, since souls are immortal and new generations must travel along the same paths, in both lives. In addition, the meeting point of all travels is next to the same Maker, which reminds us that the poet himself is a maker, or a scop in Anglo-Saxon terms. Since poetry usually ends up discussing itself, this is only another travel that has come full circle.

Bibliography Primary HOLDERNESS, Graham. Anglo-Saxon Verse, Northcote House, 2000. KENNEDY, Charles W. An Anthology of Old English Poetry, New York: Oxford University Press, 1960. MACKENZIE, Norman H. (ed.). The Poetical Works of Gerard Manley Hopkins, Oxford: Clarendon Press, 1990. 914 Fernando Barragão

Secondary

CRISTÓVÃO, Fernando (org.). Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens: Estudos e Bibliografias, Coimbra: Almedina, 2002. GANNIER, Odile. La littérature de voyage, Paris: Ellipses, 2001. White lies and black peril: traveling women in Southern Africa

MARGARET HANZIMANOLIS De Anza College, California, U.S.A.

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

ão Vicente, the patron saint of Lisbon, is usually shown in paintings and sculptures with his hands full. An early image on display at the Sé Catedral Sde Lisboa shows the saint with a plumed pen in one hand and a Bible in the other, but by the sixteenth century he is more often depicted holding a pen and a ship, a testimony to the displacement of textual truth by spatial knowledge. Traveling, in both geographic and metaphysical terms, has long been associated with writing and the production of knowledge. The geographic boundary, like a text that is interpreted and reinterpreted, is a highly mobile thing: a border that is ever-dissolving under the scrutiny of the traveler’s mobile gaze. To know, in its simplest form, is to travel. To have known, is to have ‘gone’ somewhere. In this sense, knowledge is posed as a linearity: it moves from a here to a there (in prospect) or from a there to a here (in retrospect). This essay examines writing produced in two eras of early travel to southern Africa—sixteenth century Portuguese shipwreck accounts and a later wave of British travel narratives, both of which make claims about the female body in southern African contact and colonial spaces. Because expansion era and colonial travel writing is often attempting to outrun, in a way, the vexing problem of how to account for the presence—and presumed sexual vulnerability—of European women, it is productive to look at these forms of writing together, with the acknowl edgement, of course, that a shipwrecked being is only a traveler in the most extreme sense. My argument is that the understanding and representation of women’s physical safety and intact honor, as women began to move away from their hearths into a radically expanded world, were manipulated for political objectives both in South Africa and in Great Britain. Fears about violence and intimacy produced generalized (global) anxieties about the ways in which women moved within colonial spaces, of course, and these fears were particularly evident in the well-circulated female shipwreck and captivity narratives of the early contact and colonial eras.1 The forms that exploration, occupation,

1 For an analysis of North American capitivity narratives, see Katherine Derounian-Stodola’s Women's Indian Captivity Narratives (New York: Penguin, 1998); for a discussion of the shipwreck of a white European woman in Australia in 1836, see Kay Shaffer’s In the Wake of First Contact (Cambridge: Cambridge University Press, 1995). 918 Margaret Hanzimanolis

independence, and postcolonial civil societies took in many ways reflect differ - ences in expectations about European women’s safety and security. Sixteenth- century Portuguese shipwreck accounts, female-authored travel writing from the nineteenth century, and “black peril” novels from the late nineteenth century can be used to track the rapid cycling of these expectations. The Portuguese noblewoman Leonor de Sá Sepúlveda, was shipwrecked in 1552 just southwest of Durban, South Africa (Burger 28; 33-36). She is the most famous, and the first on record, of some twenty or more Portuguese women shipwrecked along the coast of southern Africa during the era of Portuguese maritime dominance, roughly the sixteenth century. Returning to Portugal from Cochin, India, the disabled galleon the São João disgorged over 500 survivors, who immediately began the trek northeastward, toward Lourenco Marquez. This shipwreck, and the account of the onshore survivors’ trek through a land - scape of dire scarcity, is famous not only because it is the first record of sustained contact between Europeans and southern Africans and not only because it had the worst ultimate survival rate of all southern African shipwrecks of this era, but also because a prominent Portuguese noblewoman was among those castaway. The story has been retold many times, most famously in Canto V of Luíz Vaz de Camões’ 1573 epic, Os Lusíadas (v46-48), but also in hundreds of dramas, poems, and visual images.2 Leonor’s death scene occurs toward the end of the tale, just after her famished group of survivors had been betrayed into surrendering their arms and suffered the consequent robbing of their possessions: Dona Leonor would not allow herself to be stripped, but defended herself with blows and struggles, as she preferred that the Kaffirs should kill her rather than to find herself naked before the people. One of the sorrows which she felt the most was to see two little children, her sons, crying before her and asking for food, without being able to succour them. Dona Leonor, seeing herself stripped, cast herself upon the ground and covered herself with her hair, which was very long, while she made a pit in the sand in which she buried herself to the waist, and never rose from that spot…. The men who were still in her company, when they saw Manuel de Sousa and his wife thus stripped, withdrew a little, ashamed to see their captain and Dona Leonor in such a state (RSEA v1 146).3

2 Kioko Kioso has compiled a list of over a hundred derivative works, including an improbable comedy, Carlos Nunes’ Adamastor ou O nafrágio de Sepúlveda comédia em tres atos e um prólogo (1972) (143). 3 A new English translation by John Eliot, and a transcription of the original Portuguese, can be found in O Naufrágio de Sepúlveda. Lisboa: University of Lisbon Centre for English Studies, 2008. White lies and black peril: traveling women in Southern Africa 919

Leonor thus casts herself as an independent figure, a being who refuses to accept the borders of her class and gender: she fights with blows and struggles to defend herself. She scoops out a grave in the sand and buries herself to the waist, thereby effectively abandoning her still-living children. Her nudity is shocking: the men who were with her withdraw, in shame, from the sight of her unclothed body. In addition to these elements, keep in mind that elsewhere in the story, she is described as "walking through the bush as a man" (RSEA v1 142) and she reportedly carried her children at times. Finally, Leonor was reported as participating vociferously in discussions about how the band of starving castaways must proceed, including whether the survivors should give up their arms in order to receive food and lodging from a local leader, a debate that occurred days before her death (RSEA v1 147). In short, she is cast in a heroic light, as a resourceful and physically hardy member of the band, capable of forcefully challenging her husband’s leadership. Leonor repudiates the maternal by abandoning her children (modesty over - powered maternal duties), refuses the dictates of class—she performed physically hard work. Finally, she often led the band of survivors, an instance of her violating her social position. On the other hand, her husband, Manuel de Sousa Sepúlveda, is described as an ineffective leader, even “selfish, arrogant and pathetic” (Duffy 45-46)—although his head pain, hallucinations and confusion may indicate a head- injury or cerebral malaria rather than incompe tence. In any event, by the end of the story, he is physically incapacitated as well. Most images of Manuel and Leonor tell a radically different story. The most significant variation is that the relative positions of the two are reversed. Leonor is displayed as an expired, vulnerable and enfeebled castaway and Manuel is either relatively unimpaired or reinvigorated as heroic savior. In Jean Louis Hubert Simon Deperthes’ Histoire des naufrages,ou recueil des relations les plus interes- santes des naufrages (1795) (Figure 1)4, Leonor reclines into a depression in the sand, leaning back against a servant or other female companion, and wholly exposed to the two men who hover around her. Her husband is leaning against a palm tree, with his face buried in his hands in a gesture of profound grief. On the brow of a hill in the background, dark figures cart off the spoils of their ambush. Just to the left of Leonor a lion bites into a collapsed or expired person, contribut - ing to the sense of imminent peril. In this engraving the unclothed noblewoman is the center of the illustration, hyper-vulnerable to the menace surrounding her, while her husband Manuel is disengaged from the scene—a figure incapable of

4 This image, and the image in Figure 2, were reproduced in Josiah Blackmore’s Manifest Perdition, 2002. 920 Margaret Hanzimanolis

Figure 1

rescue or protection. His face has fallen into his hands, indicating a being sunk in self-pity or inconsolable grief. While the histori cal record describes him as a ruined man, injured in the leg, mentally deranged, foraging about for scraps of food, and stripped naked by the indigenous Africans, in this illustration he is still standing, seemingly well fed, and fully, though rudely, clothed. And while (in the written account) the Portuguese crew members of the São João withdraw, ashamed, when they see what has happened, in this illustration they hover solicitously around her. Thus, the husband has not only traded places with his wife in terms of relative strength, he has traded places with the crew in his experiencing of shame. While the crew and servants are “viewing” her, as a theatrically-posed offering to early Iberian trade ambitions, Manuel is unable to face his wife’s exposed body. Manuel de Faria e Sousa’s offers a diagram of conjugal relations that reinforces, in broad terms, the evident anxiety towards a noblewoman’s nudity in southern Africa. He indicates in Asia Portuguesa (1666-1674) that it was the “sole province” of a husband to see a woman’s unclothed body (RSEA v1 18). The visual message suggested in the illustration presented in Deperthes’ history disrupts this cultural certainty, and suggests that it is the husband himself, this White lies and black peril: traveling women in Southern Africa 921

exemplar of imperial masculinity, who cannot bear the sight of the unclothed noblewoman. His inability to face his wife and her predicament might be under - stood as symptom of a larger dilemma: namely that the overall success of the project of Portuguese trade dominance and later colonization was counter - balanced by a loss of control over the reproductive bodies of Portuguese women, possibly naked and splayed out in front of servants, seamen, and indigenous people. Indeed, for the global trade and colonizing projects to proceed, Portugal had to quite determinedly “turn away from” this spectacle. Yet, as the illustration suggests, even if empire, in the most general sense, was bent on not facing this female hyper-vulnerability, the European public or consumers of these images must have been drawn to such sacrificial images—images that trade on the anxieties of gender, wherein the masculine protective capacity has been emptied out or cancelled and the chastity or modesty of the female is impossible. A man cannot be a man, the image suggests; and a woman cannot be a woman. The second image (Figure 2) is from an early nineteenth-century history, the Memoráveis da história de Portugal (1826). In this version, Leonor is in the foreground, exposed and rendered insensible, while Manuel is grieving over her, unclothed this time, but still physically vital and seemingly well nourished (as is she). As in the Deperthes image, Manuel has been returned to a position of relative strength and even heroic virility and Leonor has been recast in the form of a limp figure of passive hyper-vulnerability. Manuel’s strength is even greater in a later image, from an 1896 edition of Bernardo de Brito’s História trágico- -marítima (Figure 3). In this image Manuel is not only still standing, but he is carrying his weak and insensible wife. This half-sized grave is a vertical grave, not a scooped out depression in the sand, and a slave is evidently trying it out for size or has dug it herself. The lamentations are generalized, the children are nowhere in sight. Manuel's graceful posture, with his weight on one leg, further invites us to see him as relatively unimpaired after five months of starvation and exposure. Only his overgrown hair and beard (and perhaps his wild eyes) suggest that he himself has been stranded on southern African shores for an extended period of time. This image produces the most marked enfeeblement of Leonor, whose limp and unresisting body is presented as a sexualized offering to Iberian trade ambi - tions. It is tempting to understand this re-diagramming of the gender positions as an attempt to explain, via a kind of heavy-handed iconography, the failure of Portugal to maintain its trade dominance and maritime supremacy. That is, by invoking what is in many ways a false female vulnerability, heroically framed by an equally false version of early modern masculinity, the engraving seems to offer this excuse: you can see that the loss of our women (despite our utmost care), in such pitiful disasters as the shipwreck of the São João, is an intolerable loss: Let the viewer now understand one reason for the end our golden age. That is, 922 Margaret Hanzimanolis

Figure 2 White lies and black peril: traveling women in Southern Africa 923

Figure 3 924 Margaret Hanzimanolis

in iconographic terms at least, the loss of the female Portuguese body was presented as factor in the decline of the maritime dominance enjoyed for Portugal for close to a hundred years, instead of the more historically verifiable explanations of overloaded galleons, poorly outfitted Naos, poor voyage timing, or poorly trained crew (Boxer 25-26; Ames 95-97). European women were not “seen” on southern African shores until about a hundred years after the shipwreck era. The first female-authored text from the eighteenth century was Mrs. Kindersley’s Letters (1777). Her misapprehesions are legion: she reports in a letter dated 1772 that in the Cape Colony “as soon as a child is born, they rub it all over with oil and lay it in the sun; . . . and [they] always break the infant’s nose, so that it lays close to its face” (88). The leap from the pitiful vulnerabilty of a Portuguese noblewoman to the confident opinions of a deeply misinformed British woman traveler could not be more stark. Observations of a religious, mildly ethnographic or shrewdly social sort occupied the few female visitors who recorded their impressions of the Cape Colony and the hinterlands, visitors such as Harriet Ward, Ann Hamilton and Lady Anne Barnard, in the last decade of the eighteenth and first half of the ninetenth century. A veritable explosion of these female “travelers” accounts took placein the later half of the century. Whereas the rate of female-authored travel publica - tions had meandered along at about one per twenty years in the first half of the nineteenth century, the last three decades saw an avalanche, averaging about two a year, of books about “South Africa”. From this wave of British women travelers, we can see one aspect of the high stakes contest between the British and the Dutch take shape. Consider, first of all, the titles: Alone Among the Zulus (1865) by Charlotte Barter, A Year's Housekeeping in South Africa (1877) by Mary Ann Barker Broome, Recollections of a Happy Life (1892) by Marianne North, Adventures in Mashonaland, by Two Hospital Nurses (1893). With the exception of the best known European woman writing of southern Africa, Harriet Ward, the authors downplay entirely any physical dangers, and instead rely on rhetorical tricks meant to render southern African spaces unthreatening. They minaturize the landscape and people, are fond of theatrical tropes which impose a safe and sanitary “viewing distance,” chat gayily about their close encounters with ‘savages’ and at times present the living southern African culture in decidedly memorial terms. That is, Marianne North and Anne Barnard, for two examples, depict indigenous Africans as museum pieces—already relics of a long past age (North 12;16; Barnard 149). This determination to assure readers of the absolute freedom, physical safety, and intact honor of European women in farthest Africa represents one of the most important affidavits that prospective settlers considering emigration would wish to hear. These travel texts helped to establish that women residents White lies and black peril: traveling women in Southern Africa 925

or settlers could reasonably expect to encounter a zone of safety or sphere of inviolability in the Cape Colony and Natal during the early colonial period. An expectation of complete safety for traveling or immigrating women would have been helpful to the intensification of British settlement and thus the strength of Britain’s claims to political hegemony and rightful dominion in South Africa. Was southern Africa in the nineteenth century safer than in the shipwreck era? The 1838 Ncome/Blood River battle, in which nearly 500 European men, women, and children were killed occurred just seventeen years before the journey described in Alone Among the Zulus, a trip that took Barter deep into the Natal hinterland in 1855. The battle of Isandhlwana, also in Natal, occurred just a decade after Barter’s book was published. Although it was a decisive victory for the Zulus, and by that measurement should signal danger for traveling women, the event is typically seen as a military campaign and not an example of the dangers to colonials out trading beads and blankets. Along with these well- known battles in Natal, local skirmishes were frequent along the western frontier of the Cape Colony throughout the long nineteenth century. These attacks kept a number of border settlements in a state of fear. On the other hand, with the exception of the survivors of the São João, Portuguese women shipwrecked in southern Africa during the sixteenth and seventeenth centuries were generally well treated by the local population—fed, housed, and guided through the bush—and if they had something to fear, it was their own countrymen, who often abandoned them along remote southern African trails without food, water, or weapons5. The deaths of shipwreck survivors were far more likely to have been caused by a refusal to adjust to their cirumstances and the unwise policies of misguided leaders than from full-on attacks from indigenous Africans. We thus can see that there was a tendency to reenact scenes in which Portuguese women show themselves to be hardy and resourceful in distinctly hyper-vulnerable terms, and a parallel tendency for female British travelers and early settlers to present their itineraries as secure, despite the frontier unrest at the time. Their suggestion that South Africa was an idyllic playground for sightseeing, botanizing, evangelical efforts, and amateur ethnographing pointedly ignored, downplayed, or disguised the real dangers of early colonial life in southern Africa.6 This set of reversals constitutes a strategic and purposeful

5 See the account of the São João Baptista, wrecked in 1622, for details about the abandonment of a young orphan girl (RSEA v8 80); Dona Barbara and the nun Joanna do Espirito were also deserted three days into their overland trek by survivors of the Nossa Senhora ae Atalaya, in 1647 (RSEA v8 309-310). 6 See G.M. Theal’s South Africa (xx). 926 Margaret Hanzimanolis

re-configuration of the female body as a handy and culturally-potent tool for imperial propaganda. The circulation of a third genre, black peril novels, coincided with the explosion of female-authored travel literature in the last years of the nineteenth century. Charles Eden's An Inherited Task (1874) was one of the earlier peril novels, and this drumbeat continued into the twentieth century in Sarah Gertrude Millen’s many novels, and others that similarly hinged on fears of African rapists or miscegnation. Like Barter’s travelogue of a trading/rescue expedition in 1855, Eden’s fiction takes place in Natal. But, while Barter spends several weeks out in the bush in a relatively idyllic wagon journey to rescue her ill brother—she has two kittens to play with on the wagon and she is accompanied by a Zulu driver, with whom she prays companionably in the evening (9;76)— Eden’s novel explores the limits of cultural terror. The crescendo of menace is reached when King Shaka gives a terrified captured missionary, Amy Hamilton, the choice of marrying him and producing a race of warrior elites or—by her refusal—causing the death by “the protracted agony of impalement” of her escort, an Oxford schoolmate of her husband who had come out to Africa to assist with a mission project (Eden 119). What is striking is that these parallel characterizations could coexist so easily: the unsupervised and unmolested European woman (in nonfiction travelogues of the nineteenth century) alongside novels in which these same women face the most drastic sexual peril. Eden’s novel, by suggesting two perilous penetrations— of Amy by King Chaka, and of her companion by a stake set in the ground, has relocated the site of the cultural threat. Instead of the land being the battle - ground for rightful dominion, Eden has shifted the symbol of dominion to the interior of the European body: the bowels and the womb of the interlopers. Despite the ghastliness of this retributive fantasy, it is important to note that Eden’s novel was published by the Society for the Promotion of Christian Knowledge (SPCK), the third oldest publishing house in Britain and the most prolific in the last half of the nineteenth century (publishing nearly 44 million books). Of course, more than half of these were Bibles and religious tracts, but SPCK published an enormous number of travel, mission, and inspirational books (Allen 198; 330). As such, it exercised enormous cultural influence. Despite the status of this publishing house, there are curious claims in Eden’s preface. He indicates that the missionaries were “entirely fictional”, but that all that had to

7 See Dan Wylie’s Savage Delight: White Myths of Shaka (Pietermaritzburg, South Africa: UP of Natal, 2000) for an examination of this particular rumor and its reiteration in South African histories. White lies and black peril: traveling women in Southern Africa 927

do with Chaka was “historical”. This is problematic. No historical evidence suggests that Shaka directed the capture of a missionary or any other British woman in order to offer her a distasteful forced choice between equally disturbing alternatives, although allegations of homo-sadistic impalement are repeated often in colonial texts.7 And while the novel’s primary events had no historical equivalent, a well-known missionary, Ann Hamilton, did exist, and had published excerpts from her South African journal in 1818. Thus, the details about Shaka are by no means reliable “history”, anymore than a the existence of a white female missionary named A. Hamilton is entirely “fictional.” It is worth noting that most evangelical societies of the mid-nineteenth century were committed to the abolition of slavery and, once slavery had ended, sought to highlight injustices to Africans both in their home countries and in their places of emancipation. In this context, the exaggeration and sensationalizing of sexual peril would seem to run counter to the strong calls for full human rights for Africans. Why then, would the Society for Promoting Christian Knowledge, publish Eden’s novelistic stoking of the black peril fires just eight years after Charlotte Barter’s description of her “thoroughly enjoyed” treks in Natal (18)? We cannot be sure. What is clear is that the Society, as well as other forms of discursive authority operating in Great Britain, Portugal and France in the eighteenth and nineteenth centuries, were keen to overwrite the traveling female body with their sometimes contradictory imperial messages.

Works Cited

Allen,W.O.B, E. McClure. Two Hundred Years: The History of the Society for Promoting Christian Knowledge (1698-1898). London: 1898. Ames, G.J. Nascent Empire? Pedro II and the Quest for Stability in Portuguese Monsoon Asia (1640-1682). Amsterdam UP, 1999. Barnard, Lady Ann. The Letters of Lady Anne Barnard Written to Henry Dundas from the Cape Of Good Hope, 1793-1803. Cape Town: A.A. Balkema, 1973. Barter, Charlotte. Alone Among the Zulus, by a Plain Woman. Pietermaritzberg: Natal UP, [1866] 1996. Blackmore, Josiah. Manifest Perdition. : Minnesota UP, 2002. Boxer, C.R. ed. The Tragic History of the Sea. Cambridge: Cambridge UP, 1958. Burger, E. Reinvestigating the Wreck of the Sixteenth Century Portuguese Galleon São Jãao:A Historical Archaeological Perspective, Thesis. University of Pretoria, 2004. Camões, Luíz de. The Lusiads. Trans. Leonard Bacon. New York: The Hispanic Society of America, 1950. Deperthes, Jean Louis Hubert Simon. Histoire des naufrages, ou recueil des relations les 928 Margaret Hanzimanolis

plus interessantes des naufrages. Paris: 1794-1795. Duffy, James. Shipwreck & Empire: Portuguese Maritime Disasters in a Century of Decline. Cambridge, Massachusetts: Harvard UP, 1955. Eden, Charles H. An Inherited Task: Or Early Mission Life in Southern Africa. London: Society for Promoting Christian Knowledge, 1874. Factos memoraveis da historia de Portugal. L.A. de A.M., Portugal, 1826. Gomes de Brito, Bernardo, ed. Historia trágico-marítima de Portugal. Lisboa. [1735-1738] 1896. Kioso, Kioko. Mar, Medo, o Morte: aspectos psicológicos dos náufragos na História Trágico- -Marítima. Ph.D. Dissertation. Biblioteca Nacional Lisboa, 2003. North, Marianne. “Chapter XIV — South Africa,“ Recollections of a Happy Life, Vol II. Theal, G.M. ed., Records of South-Eastern Africa (RSEA). London: Government of the Cape Colony: Vol I-IX. (1898-1903). Facsimile reprint, 1964. Sir Walter Raleigh and Guiana: a mysterious search, a metaphorical discovery

MARIA DE JESUS CRESPO CANDEIAS VELEZ RELVAS Universidade Aberta, Lisboa

ISBN 978-972-8886-24-0 • FROM BRAZIL TO MACAO • CEAUL / ULICES 2013

ontrary to what happens with the majority of the nations of the so-called New World, the historical records do not indicate a name for the discoverer C— or discoverers — of Guiana; the documents rather use the vague expression ‘arrival of the Europeans’ to that prosperous land amidst a thriving, luxuriant rain forest, which may lead us to the assumption that the region started to be visited late in the 15th century, soon after Christopher Columbus first voyage. The Spaniards would remain in the region for a rather long period of time but, Raleigh’s text tells us, not fully dominating it; the Dutch East India Company was not to start its commercial exploration before the 17th century; and the British would have to wait until 1815 to take possession of Guiana, making it the only British colony in South America. What then was Sir Walter Raleigh searching for when, in 1595, he left England, the court and his queen and crossed the Atlantic? Why did he entitle his written report on that voyage The Discovery of Guiana when the land of his destiny had already been discovered? And, above all, what did he ultimately mean by ‘discovery’ a century later? As a matter of fact, in 1595, the accomplished courtier, soldier, statesman and poet was not the queen’s gallant favourite any longer. The wheel of fortune had eventually turned and he was desperately seeking to regain Elizabeth’s good will. The voyage and the written report on it were, so I believe, essential instru - ments in pursuit of a special search, as I intend to show, although in a brief way. The text begins with two introductory passages that establish an antithetical relation. The first is the long title that contains the concise version by which the work is known; the second is the dedication that follows it. Both are emblem - atically meaningful and significantly powerful. Prior to the beginning of the report, the complete title introduces and implies a sense of abundance: “The discovery of the large, rich, and beautiful Empire of Guiana; with a Relation of the great and golden City of Manoa, which the Spaniards call El Dorado, and the Provinces of Emeria, Aromaia, Amapaia, and other Countries, with their rivers, adjoining” (Raleigh 1). This sense of abundance is transmitted by the adjectives “large”, “rich”, “beautiful”, “great” and “golden”; by the nouns “Empire” and “El Dorado”, with their subtle connotations; by the sequence of toponyms; and by the noun “rivers” 932 Maria de Jesus Crespo Candeias Velez Relvas

that metonimically introduces the poignant element of water and, inherent to it, a sense of duality: the sea, which connected Old Europe to New America (and vice versa), always threatning and dangerous; the rain, vital for the thriving of that huge, green New World, an adverse element for the outsiders exploring the rainforest; the rivers, lakes and waterfalls, containers of gold, connectors of territories, dangerous obstacles and natural barriers. The dedication itself — “To the Right Honourable my singular good Lord and kinsman Charles Howard, Knight of the Garter, Baron, and Councillor, and of the Admirals of England the most renowned; and to the Right Honourable Sir Robert Cecil, Knight, Councillor in her Highness’ Privy Councils” (Raleigh 1) — is afterwards expanded into an elaborate, long excerpt that anticipates the report and simultaneously functions as an exordium, a propositio and an apology. A clear antithesis arises from both introductory passages: the title is focused on the New World, specifically on one of its microcosms; the dedication is totally centred in the Old World, specifically in the court and the trends of power; the title tells of positiveness and abundance; the dedication refers to negativeness and deprivation, materialized into a myriad of correlative terms which are metaphors for Raleigh’s precarious situation at court — “malice”, “revenge”, “darkest shadow of adversity”, “miseries”, “errors”, “grievous effects”, “the winter of my life”, “these travails”, “misfortunes”, “sorrows”. Raleigh the sailor was moved by practical purposes and aimed specific advantages, having offered Raleigh the writer the raw material to create a rich and intense literary report. The narrative exhibits his fascination for strange, wonderful and exotic realities, as well as the vitality and potentialities of the vernacular literature. The profile of the learned, versatile Renaissance courtier, within the scope of the new humanist paradigm, is here fully revealed. After arriving in South America and during his attempts to reach Guiana, he becomes the historian, the ethnographer, the philologist, the geographer and the poet, whose miseries, misfortunes and travails are now of a completely different sort because they correspond to the natural difficulties of a bold explorer, looking for glory in the midst of an unknown, mysterious rainforest. Raleigh the historian relates events, policies, occurrences, frequently commenting and relying on contemporary historiographic texts on the New World that he sometimes quotes in the original and immediately translates: … Lopez in his General History of the Indies, wherin he describeth the court and magnificence of Guayna Capac, ancestor to the emperor of Guiana, whose very words are these: ‘ (…) Tenia en su recamara estatuas huecas de oro, que parecian gigantes (…) That is, ‘ (…) He had in his wardrobe hollow statues of gold which seemed giants …’ (Raleigh 9) Raleigh the ethnographer portrays the many native tribes he met and saw, Sir Walter Raleigh and Guiana, a mysterious search, a metaphorical discovery 933

accurately referring to their customs, their physiognomy, their diet and housing: These Tivitivas are a very goodly people and very valiant … in the winter they dwell upon the trees (…) those that dwell upon the branches of Orenoque, called Capuri, and Macureo, are for the most part carpenters of canoas (…) The religion of the Epuremei is the same which the Ingas, emperors of Peru, used … they believe in the immortality of the soul, worship the sun, and bury with them alive their best beloved wives and treasure … (Raleigh 37) Raleigh the philologist tries to register all the names of the tribes (Orenoqueponi, Iwarawaqueri, Cassipagotos, Arwacas), places (Putyma, Amariocapana, Curaa, Oiana, Toparimaca), rivers (Orenoque, Amana, Arraroopana), plants and animals: On the banks of these rivers were divers sorts of fruits good to eat, flowers and trees of such variety as were sufficient to make ten volumes of Herbals … (Raleigh 21) Among the animals, the armadillo was surely one of the most admired, as the rhynocerous had been when the Europeans arrived in Africa: ... a beast …, which they call cassacam, which seemeth to be all barred over with small plates … with a white horn growing in his hinder parts as big as a great hunting-horn … (Raleigh 27) Raleigh the geographer meticulously describes the characteristics of the places he visits: … the river [Orenoque] lieth for the most part east and west, even from the sea unto Quito, in Peru … [it] is navigable with barks little less than 1000 miles … (Raleigh 25) … a great town called Macureguarai at the said mountain foot, at the beginning of the great plains … (Raleigh 27) In this branch called Cararoopana were also many goodly islands, some of six miles long, some of ten, some ot twenty … (Raleigh 34) Raleigh the poet develops a dynamic literary narrative with (and I dare to quote Sir Philip Sidney) “the vigour of his own invention” (100): … birds of all colours, some carnation, some crimson, orange-tawny, purple, watchet […] I never saw a more beautiful country, nor more lively prospects; hills so raised here and there over the valley; (…) the birds towards the evening singing on every tree with a thousand several tunes; cranes and herons … perching the river’s side; the air fresh with a gentle easterly wind … (Raleigh 21, 29) Excluding the cannibals, Raleigh admires the other Indian communities, many of them still prosperous and powerful, despite the Spanish presence almost every - where, and puts into evidence their hospitality and wisdom: 934 Maria de Jesus Crespo Candeias Velez Relvas

In his [the Indian pilot’s] house we had good store of bread, fish, hens, and Indian drink, and so rested that night … (Raleigh 22) Those medicines which … serve for the ordinary poison, are made of the juice of a root called tupara; the same also quencheth marvellously the heat of burning fevers, and healeth inward wounds and broken veins that bleed within the body. (Raleigh 26) In a beautiful but hostile territory, Raleigh and his crew could not have survived without the Indians; they are their guides, their hosts and a precious source of information for his written work. The fascination for the Other, the one who is different, was mutual: … having not at any time seen any Christian nor any man of that colour, they carried [him] into the land to be wondered at, and so from town to town … (Raleigh 10) Sometimes Raleigh does not even dismiss phantastic tales of a legendary origin: [The Ewaipanoma] are reported to have their eyes in their shoulders, and their mouths in the middle of their breasts, and that a long train of hair groweth backward between their shoulders. (Raleigh 29) Sir Walter Raleigh and Guiana, a mysterious search, a metaphorical discovery 935

Raleigh’s relationship (and his companions’, I presume) with the tribes is peculiar, if we take into account the parameters of the age and the Spaniards’ behaviour in the nations they were already dominating. It does not result in subjugation — at least at the time of the report, or on Raleigh’s part — but in a double meaning alliance against a common enemy: They also wondered at us, after they heard that we had slain the Spaniards at Trinidad, … and they wondered more when I had made them know of the great overthrow that her Majesty’s army and fleet had given them … (Raleigh 23) Concomitantly, the Indians reports on the atrocities that many of them were enduring reinforce Raleigh’s negative impressions on the Spanish colonizing actions in the region, stated right at the beginning of his work. The conflict between England and Spain is thus transferred to the New World, assuming new angles, when the narrator constantly emphasizes the Spaniards’ extreme cruelty and rapacity. … [their] lamentable complaints of his [Berreo’s] cruelty: … he had divided the island and given every soldier a part; … he made the ancient caciques, which were lords of the country, to be their slaves; … he kept them in chains, and dropped their naked bodies with burning bacon, and such other torments … (Raleigh 7) We always see him on good terms with the Indian leaders — the caciques — of the various tribes: he acknowledges their status and power, praises the wonders of their lands and subjects, and stands before them as the diplomat who is repre - senting his sovereign. Raleigh makes her apology, praises her virtue, magnanimity and royalty, and shows them at least one of her impressive portraits. The cult of the queen is thus also transferred to the New World: … I made them understand that I was the servant of a queen who was the great cacique of the north, and a virgin, and had more caciqui under her than there were trees in that island; that she was an enemy to the Castellani in respect of their tyranny and oppression … I showed them her Majesty’s picture, which they so admired and honoured … (Raleigh 8) Raleigh is a privileged witness and attentive observer who tells what he sees and endures. Curiously, however, he never hides, or masquerades, the purpose of his voyage: he was, after all, looking for gold, the ancestral source of both magnifi - cence and decay. The Western hunger for it has been the end of other societies, as we so well know, and it was specifically the end of the societies mentioned in the text, whose people were guided by completely different world visions. Nevertheless, according to Raleigh’s report, the finding and exploration of gold would be carried out on a basis of cooperation and alliance, opposite to the Spaniards’ attitude. 936 Maria de Jesus Crespo Candeias Velez Relvas

As I have tried to show, the text is long, munificent in accurate information and extremely detailed; it constitutes a verbal map and a verbal portfolio of colourful, lively pictures, with permanent references to the author’s destination, metaphorically called El Dorado in the title, as we have seen. For pages and pages, he mentions what he knows about it and reports what he hears about it. Strangely enough, however, after so long a voyage and after having endured so many difficulties amidst the rainforest, he never really enters the Empire he so much praises and searches; furthermore, he never tells the reason why he never reached it. This constitutes, in my opinion, a rather mysterious and odd textual element, especially because of the title. What then did Raleigh mean by ‘discovery’ in 1595? A possible answer is that by ‘discovery’ he meant his becoming aware of the incalculable resources of the land, the prospect of commercial exploration and of an English settlement in a virgin territory (as he had tried before, in Virginia), which would have implied an alliance with the Indians against the Spaniards. I strongly believe that his mission paradoxically resulted both in deep failure and auspicious success. In spite of all his efforts and commitment, Walter Raleigh the explorer failed his self-imposed mission, i.e. to bring his nation and his queen the riches that meant more power, status and authority; to give England access to the coveted “El Madre del Oro” (the Mother of Gold), as well as to valuable diamond sources, which up to the present day remain largely unexplored. Walter Raleigh the writer did, however, fully and eventually succeed in speech because the mission gave origin to a dynamic, inventive literary report of many exotic and mysterious wonders, the greatest of all his poetic idea of the territory. The Guiana in the text has no definite location and ends up by being a metaphor and a mirage; moreover, its metaphoric El Dorado seems to signify an ancestral aspiration, a sort of utopia and dream. For the author, in particular, it meant a personal quest that would rescue him from the shadow of his queen’s disfavour and could restore his former position at court. Hence the exordium, the propositio and the apology of the dedicatory lines, built upon the sense of hope, commitment and persuasion and ultimately addressed to the sovereign herself. Almost at the end of the text, ‘with the vigour of his own invention’, that poetic and utopic idea appears wittily and subtly encapsulated in a powerful apologetic passage that simultaneously — and above all — constitutes an ingenious metonymy of Elizabeth Tudor the Virgin Queen: … Guiana is a country that hath yet her maidenhead, never sacked, turned, nor wrought; (…) The graves have not been opened for gold, the mines not broken (…) It hath never been entered by any army of strength, and never conquered or possessed by any Christian prince. (…) the whole empire is guarded … (Raleigh 38, 39) Sir Walter Raleigh and Guiana, a mysterious search, a metaphorical discovery 937

Works Cited Raleigh, Sir Walter. Modern History Sourcebook. Sir Walter Raleigh (1554-1618): The Discovery of Guiana, 1595 [New York: P. F. Collier and Son, 1910] 2009 Jan.09 < http://www.fordham.edu/halsall/mod/1595raleigh-guiana.html>. Sidney, Sir Philip. An Apology for Poetry. Ed. Geoffrey Shepherd. : Manchester UP, 1984.