UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE LETRAS

Luciana Bastos Figueiredo

ENTRE A ESTANTE DE CASA E A CARTEIRA DA ESCOLA: o artístico e o didático na obra de Lygia Bojunga Nunes

Rio de Janeiro 2006 2

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE LETRAS

Luciana Bastos Figueiredo

ENTRE A ESTANTE DE CASA E A CARTEIRA DA ESCOLA: o artístico e o didático na obra de Lygia Bojunga Nunes

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras — área de concentração em Literatura Brasileira, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.

Linha de pesquisa: Perspectivas filosóficas da teoria da literatura. Orientador: Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause

Rio de Janeiro 2006

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B

F475 Figueiredo, Luciana Bastos. Entre a estante de casa e a carteira da escola: o artístico e o didático na obra de Lygia Bojunga Nunes / Luciana Bastos Figueiredo. – 2006. 104f.

Orientador : Gustavo Bernardo Krause Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras.

1. Literatura infanto-juvenil brasileira – Teses. 2. Nunes, Lygia Bojunga, 1932 - - Crítica e interpretação. 3. Criação (literária, artística, etc) - Teses I. Krause, Gustavo Bernardo, 1955-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.

CDU 869.0(81)-93

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras

Dissertação de Mestrado intitulada “Entre a estante de casa e a carteira da escola: o artístico e o didático na obra de Lygia Bojunga Nunes”, de autoria da mestranda Luciana Bastos Figueiredo, apresentada como requisito parcial à obtenção do título de mestre. A banca é constituída pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause – orientador Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Flávio Carneiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Profª Dra. Cyana Leahy Universidade de Londres

Profª Dra. Silvia Regina Pinto suplente Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Adauri Bastos suplente Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Dedico este trabalho aos meus pais, às minhas irmãs e à minha avó.

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Agradeço àqueles que, com carinho e atenção, me acompanharam e, de alguma forma, me ajudaram no desenvolvimento deste trabalho. Minha família, Ana Elisa Bastos Figueiredo, José Henrique Cunha Figueiredo, Camila Bastos Figueiredo, Julia Bastos Figueiredo e João Ferreira Filho. Meu orientador Gustavo Bernardo. Os professores Maura Sardinha, Peônia Guedes, Flávio Carneiro e Cristina Behring. E amigos Rodrigo Murtinho, Rodrigo Ferrari e Daniela Duarte, Maria Helena Ferrari, Carlinhos, Dra. Maria Íris, Astrea, Louise Viana, Ângela Góes, Nina Ulup, Joana Tavares, Bianca Leyen, Anna Buarque e Pedro Vasquez.

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SINOPSE

Literatura juvenil contemporânea. Aspectos artísticos e didáticos a partir da obra de Lygia Bojunga Nunes. Breve estudo sobre a obra de arte e construção de panorama histórico da literatura infantil e juvenil no Brasil. Sistema educacional do país, mercado editorial e perfil do leitor. Necessidade de classificação da literatura, prática pedagógica vigente e papel do leitor no ato da leitura.

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RESUMO

O objeto desta dissertação é a literatura juvenil contemporânea: analisam-se os aspectos artísticos e didáticos presentes neste tipo de literatura a partir da obra de Lygia Bojunga Nunes. Como ponto de partida, realiza-se um breve estudo sobre a obra de arte, construindo um panorama histórico da literatura considerada infantil e juvenil no Brasil. Neste trabalho, também se observam os fatores que podem influenciar os escritores em suas criações literárias para jovens, tais como o sistema educacional do país, o mercado editorial e o perfil do leitor, discutindo-se questões como a necessidade de classificação desta forma de manifestação artística, a prática pedagógica vigente e o papel do leitor no ato da leitura.

Literatura juvenil contemporânea; arte; didatismo; Lyga Bojunga Nunes; panorama histórico da literatura juvenil do Brasil; sistema educacional brasileiro; mercado editorial; perfil do leitor ; ato da leitura.

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ABSTRACT

The object of this disssertation is the contemporary juvenile literature: it analyses the artistics and the didatics aspects found in this field from the work of Lygia Bojunga Nunes. It opens with a brief study on art work, establishing a historical panorama of what is considered to be children and/or juvenile literature in Brazil. On the other hand, are also analysed the factors that may influence the production of the writers working for young readers, such as: Brazilian educational system, the publishing market and the reader’s profile, discussing points like the need of classification of this kind of art, the actual trends of pedagogy in Brazil and the reader’s participation in the act of reading.

Contemporary juvenile literature; art; didatism; Lyga Bojunga Nunes; historical panorama of children and/or juvenile literature in Brazil; Brazilian educational system; publishing market; reader’s profile ; act of reading.

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SUMÁRIO

Introdução 11

CAPÍTULO I – Considerações sobre a obra de arte 16

CAPÍTULO II – Considerações sobre a literatura infantil e juvenil como arte 41

CAPÍTULO III – Lygia Bojunga Nunes: livro, personagem, leitor 60

CAPÍTULO IV – Lygia e o jogo da língua 80

Conclusão 101

Referências bibliográficas 105

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INTRODUÇÃO

Os livros infantis costumam encantar todos os olhos em uma livraria. São belas ilustrações para textos cheios de lirismo com uma mensagem tradicional no final. “A criança precisa ler”, é o que se ouve, e as editoras escutam esse recado. Lançam aos pontos de venda mais e mais títulos, à procura de adoção nas escolas, de vendas em livrarias e para instituições governamentais, haja visto programas como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), do governo federal, cujo objetivo é adquirir títulos, montar coleções com diversos estilos literários e abastecer as bibliotecas e salas de leituras de todas as cerca de 140 mil escolas públicas do país, de acordo com dados do Ministério da Educação. Com os livros juvenis, o caso é um pouco diferente. As obras estão nas livrarias, mas recebem menos atenção. O adolescente é um público diferenciado, que já começa a ter padrões de consumo bem próprios e independentes das indicações tanto de pais quanto de professores. Entretanto, o consumo de livros por adolescentes é certo quando há títulos adotados nas escolas e utilizados como material paradidático. E hoje, mais do que nunca, produtos para o consumo jovem estão no centro de todas as discussões de fabricantes dos mais variados segmentos, desde companhias telefônicas, passando pela indústria de cosméticos, até chegar às editoras. Num país em que, segundo estudo da Câmara Brasileira do Livro (CBL) realizado em 2000, dos 86 milhões de brasileiros alfabetizados acima dos 14 anos, apenas 30% são leitores ativos, a demanda por livros para a faixa etária que abrange leitores em formação é real. Desta forma, desde a década de 70, acentuando-se atualmente, o mercado editorial tem apostado muitas de suas fichas em livros para crianças e jovens. Em quase 40 anos, pôde-se assistir a uma modificação significativa no perfil dos livros para este público. Ainda estavam atrelados ao ambiente escolar, mas os autores tinham agora compromissos político, sociais e econômicos com a juventude brasileira. As idéias e os ideais eram facilmente encontrados nos livros de , , Lygia Bojunga Nunes, entre outros.

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Em contrapartida, instituições governamentais e grandes empresas preocupadas com responsabilidade social desenvolveram campanhas de incentivo à leitura que culminaram com a criação de bibliotecas pelo país afora e abastecimento de tantas outras. As editoras começaram a voltar-se para este novo comprador, que hoje responde pela maior parte das compras de títulos infantis e juvenis. Todavia, essa produção em massa e para um comprador tão específico — o sistema educacional — contribuiu para colocar este tipo de literatura num lugar abaixo da literatura dita geral ou para adultos. Este fato não impediu o surgimento, nesta década, de debates sobre a qualidade dessa produção. Preocupamo-nos com a possibilidade dessa demanda comercial determinar o conteúdo das obras voltadas para crianças e jovens, atribuindo-lhes uma função de ensinar, uma função didática. Começamos a nos interessar por literatura infantil e juvenil neste momento, quando a discussão sobre educação e formação de cidadãos chegou à qualidade dos livros oferecidos a esse público. O tema propriamente dito desta dissertação surge quando iniciamos um trabalho de divulgação de títulos de uma editora junto a educadores do Rio de Janeiro. Nesta época, nos intrigava a relação que os professores mantinham com a literatura e seu uso em sala de aula e a relação do adolescente com essa leitura, na maioria das vezes, imposta. Ao mesmo tempo, o tratamento editorial e comercial dado aos livros infantis e juvenis também nos chamava a atenção. O pouco que se dizia na mídia, pela crítica especializada, servia de fonte de reflexão e questionamento. Embora existam prêmios internacionais que atestam a qualidade da produção literária para crianças e jovens, no Brasil, essa literatura está ainda à margem da literatura feita para adultos. Quando começamos a refletir sobre a necessidade da classificação e do rótulo para a literatura supostamente direcionada a crianças e jovens, nos voltamos para o leitor e seu papel na literatura e no ato da leitura. Esses elementos constituem a base da discussão que propomos aqui: literatura juvenil pode ser considerada arte, como outras formas de literatura? Qual o nível de liberdade do escritor quando falamos de obras juvenis? Até que ponto o mercado editorial e os consumidores determinam a obra de arte literária? Pretendemos levantar a discussão em torno desse assunto e não tentamos resolvê-la. Buscamos compreender o campo em que trabalhamos e no qual educadores, pais, editores e leitores apostam.

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Para tanto, no panorama da literatura juvenil do país destacamos a escritora Lygia Bojunga Nunes, que, premiada nacional e internacionalmente, sempre recebeu as atenções da mídia e da crítica. Sendo assim, para desenvolver nossa questão optamos por estudar uma seleção de títulos de sua obra à luz de pressupostos teóricos sobre arte, educação e literatura.

Sabemos que a literatura é uma manifestação artística e que seu produto, as narrativas, é considerado obra de arte. O livro, suporte físico do texto, por sua vez, pode ser visto como objeto de arte. Dessa forma, estudar a obra de arte torna-se imprescindível à nossa dissertação. No primeiro capítulo, procuramos chegar o mais próximo possível de uma definição para arte, estabelecendo, assim, um parâmetro inicial para a discussão. Investigamos as transformações que a arte e o discurso sobre a arte sofreram no século XX, e fazemos um breve estudo sobre a língua e sobre o texto. Embora encontremos dificuldades para definir o que é arte, conseguimos vislumbrar em nossa pesquisa caminhos para a compreensão de seu significado abstrato, tanto inserido em um contexto sociocultural como em relação ao espectador/leitor. O artista também ganha nossa atenção. Ele é responsável pela sua criação, por sua obra, e pelos elementos de que ela é constituída. No caso da literatura: o trabalho com a palavra, o jogo proposto para o leitor e os ideais embutidos na narrativa. Pesquisamos ainda a literatura como manifestação de arte e suas particularidades: os aspectos que a diferenciam de outras formas de arte. Estas características específicas nos conduzem, neste primeiro capítulo, ao leitor e seu papel na construção da literatura. O estudo da teoria do efeito estético, baseado em Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, constitui importante referência neste processo. A responsabilidade do leitor diante do texto literário, no ato da leitura, fica para nós bem definido: o leitor cria junto com o escritor, pois preenche as lacunas deixadas pelo artista com seu próprio capital cultural. Quanto mais exposto a esta experiência, ou seja, quanto mais exposto ao contato com livros e com literatura, mais capaz de intervir na obra será este leitor. A partir do papel do leitor, as propostas do escritor para seu texto ganham mais sentido e força. Jogos de significantes e significados, as metáforas e todos os

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mecanismos para estimular a percepção e aproximar o leitor da narrativa convidando-o a participar da obra levam, enfim, à fruição e ao prazer, objetivos da arte. Nesta parte de nosso estudo, percebemos que não devemos discutir, neste trabalho, funções socioeconômicas ou políticas da literatura, pois assim ficaria delimitada por fatores que não o da qualidade artística e do gosto. O estudo sobre a obra de arte e a consciência da responsabilidade do leitor nos fazem avançar em direção à rotulagem da literatura e ao leitor jovem. No segundo capítulo, fazemos um breve histórico da origem da literatura dita para crianças e jovens no Brasil, a fim de investigar essa necessidade de classificação das formas de literatura. As transformações políticas do século passado bem como a implementação do sistema educacional tornam-se nossos focos. A partir das informações apuradas, buscamos compreender a função dos educadores brasileiros e das práticas de ensino vigentes. As mudanças nos conteúdos dos livros infantis e juvenis também merecem nossa atenção neste capítulo. Concentramo-nos, porém, no final da década de 1970 e início da de 1980, quando houve o chamado boom da literatura infantil. Autores hoje consagrados surgiram, naquela época, com idéias inovadoras acerca do tratamento dado ao leitor através de suas obras. Procurando alguma independência da demanda pedagógica, esses artistas exploraram assuntos relativos ao universo da criança e do jovem fora do ambiente escolar, provocando, instigando e valorizando o leitor em formação, deixando espaços livres para sua atuação. Também neste capítulo II, analisamos as práticas do mercado editorial em relação à literatura infantil e juvenil, considerada um nicho importante e lucrativo. Observamos a atuação dos editores, desde Monteiro Lobato aos dias atuais, e verificamos a redução do leitor a números em pesquisas sobre público-alvo e consumidor. Seguindo esta linha de pesquisa, questionamo-nos sobre a necessidade de classificação da literatura. Após desenvolver esse incipiente embasamento teórico, iniciamos a análise das obras de Lygia Bojunga Nunes, que, como já dissemos, foi a autora escolhida para referenciar nossa discussão. No capítulo III, centralizamos o trabalho na trilogia que fala da relação da escritora com o objeto livro, com o ofício de escrever e com o leitor. Estes livros contêm traços autobiográficos importantes e esclarecedores para compreendermos a obra da autora e sua relevância para a literatura juvenil brasileira. Além destes,

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analisamos Retratos de Carolina, romance de 2002 e até então o mais recente, com o qual a escritora revelou a intenção de buscar outro público, os adultos. A partir das impressões da autora sobre sua própria obra, registradas ao final de cada volume, e de sua fortuna crítica, traçamos um paralelo entre os livros selecionados com o propósito de estudar as características da literatura contemporânea produzida para jovens: a freqüente utilização de metalinguagem e as formas de aproximação com o leitor. Neste capítulo, a criação da Casa Lygia Bojunga e a relação da autora com o mercado editorial também são alvo de nossos comentários. Para o quarto capítulo, reservamos o estudo de apenas duas obras: O meu amigo pintor e O abraço. Separadas pela diferença de quase uma década nas datas de publicação, tratam de temas densos, como morte, suicídio, estupro e abuso sexual infantil. Nestas novelas, observamos o emprego da metáfora para a construção e condução da narrativa. Do leitor destes textos é exigido trabalho durante a leitura. Criando imagens fortes de situações complexas e optando por uma estrutura não linear para as narrativas, Lygia Bojunga leva seu leitor a uma reflexão sobre a vida. Neste último capítulo IV, seguimos ainda a fortuna crítica da autora e suas impressões para finalizarmos nossa discussão, desenvolvida ao longo dos três capítulos anteriores. A literatura infantil e juvenil como arte, a responsabilidade do leitor, a influência do mercado editorial na criação do conteúdo e o papel do educador na mediação da leitura nos parecem pontos indispensáveis para o estudo da literatura juvenil e conseqüente compreensão do panorama que se apresenta na contemporaneidade em relação a esse tipo de literatura. Assim, é o que colocamos nesta dissertação que se inicia.

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CAPÍTULO I Considerações sobre a obra de arte

O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias — pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu. Roland Barthes

O jovem está em foco nos dias de hoje. Vemos que há uma preocupação da sociedade com a qualidade daquilo que é produzido e destinado à juventude, de programas de televisão a novos conjuntos musicais. Neste rol também está a literatura, que ora passa a ser nosso objeto de estudo. Neste trabalho procuraremos identificar e estudar as formas do texto juvenil contemporâneo, o caráter didático recorrente nesta literatura e o posicionamento do leitor diante deste texto. Analisaremos as questões da literatura pela arte, da literatura de mercado, da literatura para jovens e de identificação do jovem leitor. Para tanto, observaremos os fatores de interferência na relação do jovem com a literatura: o professor mediador da leitura, a política educacional do país e o mercado editorial. Dessa maneira, refletiremos sobre a literatura juvenil contemporânea como obra didática e como arte. A fim de embasarmos nossa reflexão, neste capítulo inicial trabalharemos com o que consideramos ser o elemento primário de toda nossa discussão: a obra de arte.

É complexo definir o que é arte, embora saibamos citar e nomear uma obra de arte quando a vemos, já que sua definição estará relacionada à cultura e ao momento histórico no qual ela é produzida. No entanto, de acordo com Jorge Coli, mesmo sem um conceito de arte definido, podemos identificar produções culturais tais como pintura, poesia, escultura, música etc, como arte. Nesse caso, a atitude das pessoas diante da arte ou da idéia de arte é a de admiração: de sentir prazer diante de algo que consideram

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incomum e extraordinário, com uma disponibilidade emocional que reflete respeito e até veneração diante do objeto artístico. Pela própria indefinição do conceito de arte, uma vez que envolve uma relação subjetiva entre o sujeito e o objeto, torna-se complexo avaliar o que se vê enquanto arte, ou mesmo tecer uma crítica sobre uma obra de arte. Desse modo, tem-se como critério apenas se a imagem nos emociona, nos toca, nos afeta, ou não. Segundo Coli:

“É possível dizer, então, que arte são certas manifestações de atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo, isto é: nossa cultura possui uma noção que denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia. Portanto, podemos ficar tranqüilos: se não conseguimos saber o que a arte é, pelo menos sabemos quais coisas correspondem a essa idéia.” (1981: 8)

Admiramos um livro e seu autor pela idéia contida na obra. Mas se considerarmos apenas o princípio da admiração, um texto didático que nos afete também poderá ser considerado arte. O didático nos parece ser aquilo que se produz com fins de ensinamento, de aprendizado, de doutrinamento, de modo diferente da produção artística que suscita um questionamento, uma reflexão por parte do sujeito que a contempla. Isto porque o artista, aquele que produz a obra de arte, ao mesmo tempo em que está inserido no sistema de regras e normas sociais, possui um olhar que ultrapassa tais regras e normas, pois está no limite entre a distância necessária ao observador e a intensidade daquele que vivencia os acontecimentos. O artista está em um ponto acima da realidade, de onde observa e vive a experiência humana e, ao mesmo tempo, cria, numa tentativa de elaborar a própria existência. E se faz diferente dos demais porque o discurso sobre sua existência transborda em forma de arte: literatura, tela, escultura, música. Ortega y Gasset diz que “ser artista é não levar a sério o homem tão sério que somos quando não somos artistas”. (2001: 77) Considerando essa colocação, podemos dizer que o artista só o é porque ousa, extravasa, se expõe, duvida, desconfia de si mesmo, joga com o real e o imaginário. E assim pode transformar a si e àqueles que afeta com sua produção artística, sugerindo que seu espectador faça o mesmo, que duvide, desconfie e entre no jogo proposto.

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Embora pareça, o conceito de arte não nos é tão abstrato. Isto porque a sociedade contornou o problema da abstração ao criar, como forma de cultura, instrumentos para determiná-la, localizá-la e avaliá-la, inclusive. Coli nomeia um desses instrumentos que considera essencial como o “discurso sobre o objeto artístico, no qual reconhecemos competência e autoridade”. (1981: 10) Neste discurso estão os critérios e elementos que atestam que um determinado objeto é uma obra de arte. São produtores deste discurso o crítico, o historiador de arte, o perito, o conservador de museu. Essas pessoas, legitimadas por instituições e critérios outros, conferem a um objeto o “estatuto de arte”. Assim como também o fazem os locais onde a arte pode manifestar-se e que são estabelecidos pela cultura, como o museu, por exemplo. Ainda para Coli, o discurso sobre a arte, o local em que ela é produzida e as atitudes de admiração suscitadas nos espectadores são como aparatos culturais que permitem a instalação da arte no campo social. Porém, esses elementos não são apenas determinantes; são também interventores na medida em que interferem na organização dos objetos artísticos e buscam nos ensinar a qualificar as obras de arte.

“Eles intervêm, por assim dizer, na disposição relativa dos objetos artísticos; pretendem ensinar-nos que tal obra tem mais interesse que outra, que tal livro ou filme é melhor que outro, que tal sinfonia é mais admirável que outra: isto é, criam uma hierarquia dos objetos”. (1981: 13)

Algo semelhante acontece com a literatura. Os críticos, as instituições que conferem prêmios, historiadores e os escritores-críticos dominam o discurso sobre a literatura enquanto objeto artístico, pautando-se em juízos estéticos repletos de subjetividade com intenções de objetividade, como nos diz Leyla Perrone-Moisés (1998: 58), no trabalho de qualificação da obra literária. Acerca da obra de arte, Pierre Bourdieu (1987) diz que sua definição está ligada ao fato de ela exigir uma percepção guiada por uma intenção propriamente estética, ou seja, uma percepção de sua forma e não de sua função, de sua funcionalidade social. Esse ponto de vista é contemplado também por Ortega y Gasset em sua obra A desumanização da arte, originalmente publicada em 1925, quando nos alerta a não estudá-la por seus efeitos sociais, pois acredita que estes estão distantes da sua essência. Entretanto, é preciso observar, como nos diz Marcuse, que não podemos ignorar em nossa análise o posicionamento da arte em relação à sociedade, pois uma obra de arte só

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é objeto de contestação e transformação porque seu produtor, o artista, está inserido num corpus social que lhe estimula, que provoca nele questionamento. (in: Lima, 1982: 248) Ainda segundo Bourdieu, é preciso abstrair os fins práticos do objeto artístico. A intenção, por sua vez, é produto das normas e convenções sociais que concorrem para definir a fronteira sempre incerta e historicamente mutável entre os simples objetos técnicos e os objetos de arte. O princípio divisório entre esses dois objetos não pode ser considerado como uma categoria a priori de apreciação e apreensão, a não ser que nos esqueçamos das condições históricas e sociais em que ele é produzido e reproduzido pela educação. A família e a escola são investidas de um poder de impor um arbitrário cultural, isto é, de designar e consagrar certos objetos como dignos de serem admirados e degustados, o que tem por efeito mascarar esse arbitrário e as condições em que se apresenta. No rol dos objetos de arte existem ainda as obras “puras”, que são as produzidas no campo erudito. Assim são consideradas por exigirem do receptor uma disposição adequada aos princípios de sua produção: uma disposição estética, uma competência de apropriação legítima da obra de arte. Dessa forma, essas obras são acessíveis apenas aos detentores de um código refinado, enquanto a recepção dos produtos do sistema da indústria cultural não exige esse refinamento dos receptores. Isto porque este novo sistema pressupõe a reprodução técnica das obras, sem, no entanto, colocar em dúvida sua autenticidade, que “é tudo o que ela contém de originalmente transmissível, desde de sua duração material até seu poder de testemunho histórico”. (Benjamin, in: Lima, 1982: 217 e 213) Daí ser possível dizer que as obras de arte têm uma função de distinção social. Primeiro pela raridade dos instrumentos destinados a seu deciframento através de códigos estabelecidos, segundo pela distribuição desigual das condições da aquisição da disposição estética e do código necessário à decodificação e, por fim, pelas condições para adquirir tal código. Aqueles que não contam com os meios de acesso a uma percepção “pura” da obra de arte passam a lhe aplicar inconscientemente as disposições que sustentam a sua prática cotidiana e assim estão fadados a uma estética funcionalista, que não passa de uma dimensão de sua ética e de seu ethos de classe; de uma dimensão do seu estilo de

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vida no qual se exprimem, sob forma irreconhecível, as características específicas de uma condição. A competência do conhecedor, ou seja, o domínio inconsciente dos instrumentos de apropriação da obra de arte, é o produto de uma lenta familiarização das regras de produção e também do sentimento de familiaridade derivado do esquecimento do trabalho de familiarização. Isto leva a considerar como natural e espontânea uma maneira de perceber que não passa de uma entre outras e que Bourdieu chama de gosto como natural. E nos leva a esquecer que há um acordo entre o artista e o espectador no tocante às regras que definem a figuração do “real”, ou que uma configuração social considera realista. Em outras palavras, a obra de arte, como bem simbólico, só existe enquanto tal para aquele que detém os meios para que dela se aproprie pela decifração, isto é, para o detentor de um código historicamente construído e socialmente reconhecido como a condição de apropriação simbólica das obras numa dada sociedade e num dado momento do tempo. Podemos dizer, seguindo Bourdieu, que o gosto classifica, e classifica aquele que classifica. Os sujeitos sociais se distinguem pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar, o que exprime e traduz sua posição nas classificações objetivas. Em se tratando dos níveis de distribuição social, o gosto obedece a uma espécie de lei. O que é raro ou um luxo para os ocupantes de uma camada inferior da sociedade torna-se banal ou comum, pois não é considerado necessário. Para os ocupantes da camada superior, este mesmo objeto é deslocado para a condição de necessário ao se tornar ordinário pelo aparecimento de novos consumos mais raros, luxuosos e distintos. Quanto mais clara fica e definição do que é necessário, menos atenção se dá à questão econômica. Então, mais o gosto reivindica uma superioridade legítima, o que aumenta sua chance de se afirmar como poder. Ainda falando em sociedade, para Ortega y Gasset (2001) é preciso manter-se nesta esfera se pretendemos definir as diferenças entre os movimentos artísticos que se apresentam. A partir da sociologia da arte, o autor observa um fenômeno sociológico que comprova suas teorias: a impopularidade da arte. A questão estética que define as manifestações como distintas surge e é confirmada por essa impopularidade.

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Walter Benjamin dialoga com Bourdieu e Ortega y Gasset a esse respeito quando nos fala:

A característica de um comportamento progressista [da massa diante da arte] reside no fato de o prazer do espetáculo e a experiência vivida correspondente ligarem-se, de modo direto e íntimo, à atitude do conhecedor. Esta ligação tem uma importância social. À medida em que diminui a significação social de uma arte, assiste-se no público a um divórcio crescente entre o espírito crítico e a fruição da obra. Frui-se, sem criticar, aquilo que é convencional; o que é verdadeiramente novo, é criticado com repugnância. (in: Lima, 1982: 231)

Ortega y Gasset continua seu raciocínio dizendo que “toda arte jovem [nova] é impopular, não por acaso ou acidente, mas em virtude do seu destino essencial”. (2001: 20) Quer dizer, é preciso que essa arte cause um impacto, seja rejeitada e passe por um período de aceitação e adaptação junto ao público. Este seria seu destino, porque questiona e não responde; dá trabalho ao espectador acomodado e acostumado às mesmas formas, aos mesmos sons, às mesmas palavras, aos mesmos estilos; à mesma estética. Essas mesmices são solidárias entre si, num movimento para preservar seu espaço, seu status, sua popularidade, pois são produtos de uma cultura, que procura encerrar-se em si mesma. E quando algo de novo aparece, não resta nada a fazer, senão fechar-se qual uma ostra. E, quem diria, sua defesa produz o que pode estar entre os mais belos objetos de que se tem notícia: a pérola. A nova arte torna-se uma pérola, à proporção que a história se faz no tempo. Convém destacar que a impopularidade da nova arte transcende o campo do gosto, do agradar ou não agradar. Dirige-se ao campo do entender. De acordo com Ortega y Gasset, a obra de arte tem um poder social de separar a multidão em dois grupos distintos e antagônicos: uma minoria seleta que se sensibiliza e compreende o que emana do objeto artístico e uma maioria, a massa, que não tem essa sensibilidade e compreensão.

“Na minha opinião, o característico da nova arte, ‘do ponto de vista sociológico’, é que ela divide o público nestas duas classes de homens: os que a entendem e os que não a entendem”. (2001: 22)

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Isto se diz da arte moderna, que, de acordo com Ortega y Gasset, está mais próxima da realidade, portanto da vida social, de suas divisões sociais, de seus problemas; está “dirigida a uma minoria especialmente dotada”. (idem: 23) O fato de gostar de uma obra por compreendê-la faz o espectador sentir-se superior a ela. O não gostar está justamente no não compreender, pois, para compensar sua inferioridade diante da obra, o espectador sentencia: não gostei. E, ainda conforme o autor, é o burguês que se vê exposto em toda a sua mediocridade. Assim, o povo, a massa, outrora protagonista da sociedade, sente-se ferido em seus “direitos do homem” (op cit: 23) pela arte dos privilegiados, da aristocracia. Seguindo sua lógica, Ortega y Gasset conclui que “se a nova arte não é inteligível para todo mundo, isso quer dizer que os seus recursos não são os genericamente humanos”. (2001: 25) Essa arte, então, se destinaria a um grupo particular de homens, um grupo que talvez seja mais valorizado socialmente que outro, um grupo com estímulos não ordinários, cujo prazer estético não está, por exemplo, em um drama em que o importante são os destinos humanos em jogo. Em análises de um tempo anterior, a boa obra de arte era aquela capaz de “produzir a quantidade de ilusão necessária para que as personagens imaginativas valham como pessoas vivas”. (2001: 25-26) Entretanto, no momento em que o discurso competente lhe atribui uma função, a arte perde sua essência, sua maravilhosa capacidade de gozar de si, de se anular, de questionar, de provocar e de transgredir, tanto a ordem como a si mesma. Desse modo, dialeticamente a arte se nega e se conserva. A literatura, por exemplo, expõe e propaga idéias sobre os mais diversos assuntos, como as navegações, as conquistas, as explorações, o amor, a morte, a vida, o cotidiano; questionando, transgredindo e transformando. (Ortega y Gasset, 2001) Essas são ações inerentes às obras literárias enquanto manifestações artísticas, e não funções atribuídas. Na história da arte e da crítica, surge a necessidade de objetividade, a fim de evitar divergências e discursos contraditórios. Em relação à crítica podemos dizer, porém, que ela é subjetiva, pois fatores como o nível de conhecimento e a experiência de vida do crítico estão diretamente ligados à opinião que ele emite. O discurso sobre a arte vai além da técnica que se tem para falar dela. Muitas vezes, a maioria de discursos favoráveis a um determinado artista ou obra guia a opinião de um crítico.

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Outro fator de transformação do discurso competente é o tempo. O desenvolvimento e a evolução da sociedade produzem novos elementos de referência para os críticos, assim como o faz o aparecimento de novos artistas com suas igualmente novas técnicas e novas linguagens. Dessa forma, segundo Coli (1981: 22), “a autoridade institucional do discurso competente é forte, mas inconstante e contraditória, e não nos permite segurança no interior do universo das artes”. É preciso uma base de sustentação para que o discurso sobre o objeto artístico ultrapasse os critérios subjetivos e as referências técnicas. Dessa forma, apareceram os estilos que distribuem as obras de arte em categorias e as classificam. A recorrência e as constantes em um grupo de objetos artísticos nos permitem não só reconhecer o estilo de uma época como também o de um artista, seja pintor, escultor, escritor. E, ainda assim, um criador pertencente a um determinado estilo pode percorrer várias fases em sua produção artística. Isto se reconhece através da mudança das características constantes e recorrentes, presentes naquela determinada obra de arte. Entretanto, é preciso salientar que as classificações não são determinantes, tampouco, satisfatórias em termos de crítica. Perceberemos isso se nos detivermos em cada objeto artístico em si. A riqueza da obra de arte, seja uma pintura ou um texto literário, transcende as classificações, os rótulos e os estereótipos. As denominações estilísticas têm bases históricas, e não lógicas. Logo, atravessaram os períodos históricos e as gerações de críticos e artistas tomando caminhos e assumindo funções diferentes. Essa mobilidade permitiu a evolução das classificações, acompanhando a transformação das artes. Nesse sentido, de acordo com Coli, vemos que, “o rigor das categorias é forçosamente simples e simplificador. A própria idéia de ‘estilo’, definida como um sistema de constantes formais, parece insuficiente para cobrir a complexidade dos objetos”. (1981: 60) Cada cultura denomina o que é arte para si; dispomos os objetos artísticos “para nós” quando os trazemos de outras culturas. Desse modo, a arte depende de quem a aprecia e a nomeia como arte. É possível, então, que qualquer objeto possa se tornar arte se for entendido como tal pelo crítico, pelo espectador, por aqueles que lhe conferem o “estatuto da arte”. Nesta análise, basta, apenas, que o objeto provoque aquele que o admira e desperte nele sentimento.

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Quando trazemos um objeto de outra cultura ou de outro tempo “para nós” e o assumimos como arte, estamos tirando deste objeto seu papel de origem. Cria-se uma distância entre nós e a obra. A partir do momento em que nos apropriamos de um objeto e o nomeamos “artístico” o transformamos, pois limitamos seu significado e sua abrangência de sentidos, impondo a ele nossas próprias referências, significados e sentidos. Quanto mais conhecimento adquirimos e transmitimos de geração para geração, mais sentidos poderemos voltar a atribuir ao objeto tido como artístico. Entretanto, este objeto ainda estará limitado por nós. O que não está palpável, concreto, não seria arte para nossa geração se não fosse o atestado de gerações passadas que, por exemplo, já assistiram a determinada peça de teatro ou espetáculo de dança; já ouviram certa música. Contudo, a literatura é um caso particular, pois, muito antes dos métodos de gravação de imagens e sons, já se podia registrar, através da impressão, um texto e aferir seu valor artístico. Assim, a literatura não depende das gerações passadas e, sim, as suplanta na medida em que pode ser contemplada em qualquer época, pois é no ato da leitura que ela se realiza. (Perrone- Moisés, 1998: 59) E, vale observar, que o livro, suporte da literatura, resiste ao tempo e às gerações de leitores.

“Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da tradição. Multiplicando-lhes os exemplares, elas substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão ou à audição em qualquer circunstância, elas lhe conferem uma atualidade. Estes dois processos conduzem a um considerável abalo da realidade transmitida: ao abalo da tradição, o que é a contraface da crise que atravessa atualmente a humanidade e de sua atual renovação. (in: Lima, 1982: 213-14)

Seguindo Benjamin em sua reflexão sobre os efeitos da reprodução na obra de arte, observamos que, no caso da literatura, esta atualidade de que fala provém das novas leituras que a reprodução possibilita através da exposição em maior grau da obra a diversas gerações de leitores. O cineasta Jean Renoir, em entrevista ao Cahier du Cinema, (nº 8, nov. 1958) questiona se os métodos de conservação também não transformam a obra de forma definitiva, e usa como exemplo na literatura o “estabelecimento do texto”. Acreditamos que, mesmo que uma ou outra palavra se perca de uma edição para outra, o estilo do

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autor e o sentido da obra não se perdem. A provocação continua na essência do texto artístico através dos personagens, das palavras, das construções frasais; através do leitor. Tal como Bourdieu, em certo aspecto, Coli sinaliza que não devemos nos ater tanto ao papel socioeconômico da arte. Isso seria camuflar o que o autor chama de “sentido mais profundo”, que é o fato de a arte ser um veículo rico de prazer cultural, prazer entendido como o conjunto de emoções e intuições provocadas pelo espaço que a arte produz para o homem desenvolver-se. O ensaísta destaca a presença da razão no objeto artístico, mas também observa que a obra a excede e cria outros canais de comunicação com o espectador, como o da emoção e das associações. Isto significa que a arte é capaz de evoluir num campo diferente do racional. Percebemos que a obra de arte está repleta de elementos não- racionais. São marcas que advêm do seu processo de criação e produção, quando o artista observa a sociedade e a cultura em que vive e sua história na busca de inspiração, questionamentos e respostas. Portanto, a arte está repleta de conhecimento empírico. O autor chama a atenção para o fato de que o devido aproveitamento da arte demanda um esforço do sujeito diante da cultura; ou seja, nossa sensibilidade não é inata. Mas, segundo Marcuse, a inerência da estética à arte possibilita e proporciona o efeito no espectador, facilitando o trabalho do sujeito para desfrutar de uma obra. (in: Lima: 1982: 251) Entretanto, a referência primeira está em cada espectador, em sua própria vida e em sua capacidade de associação de idéias. Este referencial não diz respeito ao prévio conhecimento do artista ou do estilo da obra. Diz respeito à primeira impressão, ao primeiro e insubstituível contato com a obra de arte. Coli defende que “a percepção artística não se dá espontaneamente” (1981: 116) e que aquele que aprecia a arte precisa de uma bagagem cultural e de um mínimo de domínio dos códigos de decifração de cada manifestação artística. Quando dizemos: gostamos de tal filme, ou não gostamos de tal filme, o autor nos faz crer que essas opiniões, na verdade, significam uma reação diante de um conjunto de elementos culturais impregnados em nós e no mundo que nos cerca. Os códigos de decifração e as razões pelas quais um objeto foi tido como obra de arte em sua época de aparição mudam, mas segundo o autor, por exemplo “a qualidade intrínseca de um filme, no entanto, é a mesma”. (idem: 117) Dessa forma, o objeto

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artístico é uma produção da cultura de cada época. É universal enquanto arte, pois será sempre capaz de provocar o espectador, e datada enquanto produção cultural, porque será sempre associada ao momento histórico em que foi criada. Os conceitos de “espontâneo” e “sensibilidade inata”, em se tratando de arte, bloqueiam uma relação mais rica com o objeto artístico, pois, de acordo com Coli, dispensam o já citado esforço diante da cultura. Ainda segundo o autor, é necessário que o contato com a arte seja elaborado e rico para que consigamos dialogar com ela. Podemos ver também como a freqüência no contato com a arte é capaz de desenvolver nossa percepção e melhorar nossa relação com o objeto artístico. Mas é preciso estar interessado em arte para refinar nossas opiniões a respeito, e também estar aberto a todas as possibilidades da experiência individual e única da contemplação de um objeto de arte. Coli lembra, no entanto, que o acesso à arte é um privilégio de poucos num país como o Brasil. Quando falamos em espectadores, falamos naqueles que têm um mínimo de acesso à produção cultural do meio em que vive, aos códigos, à educação. Portanto, falamos de e para reduzido extrato da sociedade brasileira, considerando-se o tamanho de nossa população. O quadro que se apresenta é o da não renovação do discurso sobre a arte. Mesmo que o público não privilegiado tenha acesso esporádico a museus, concertos, espetáculos de dança ou livros, pela falta de intimidade com essa experiência este público acabará assumindo o discurso dos privilegiados, ou seja, fará suas as palavras de outros, contribuindo, assim, para a consumação do discurso dominante que não tem outra função senão a de cristalizar a relação do espectador com a arte. Contudo, um objeto artístico encerra elementos suficientes para aprendermos com ele. São elementos racionais, não-racionais e culturais. As reações emocionais que o objeto é capaz de provocar no espectador fazem parte do processo de transformação que este sofre ao experimentar a leitura de um livro, a contemplação de um quadro, a audição de um concerto ou a visão de um espetáculo de dança. E o que é aprendido ou apreendido de uma obra de arte o é de uma forma não explícita. Ou seja, não percebemos que estamos aprendendo e não é preciso que ninguém nos diga isso ou nos explique o que estamos vendo, lendo ou escutando para nos habilitar a aprender.

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Em última análise, não precisamos de didática diante de um objeto artístico. Mesmo que não conheçamos o pintor, o autor, o compositor; mesmo que nunca tenhamos ouvido falar em determinado quadro, livro ou música, quando estamos diante dessas obras de arte somos capazes de ser afetados e provocados através de processos não racionais, das associações que fazemos a partir do nosso próprio capital cultural e social. Assim, a obra ganha um sentido e um significado singular para cada espectador pela compreensão prazerosa da participação e apropriação daquele objeto. Pois, como nos lembra Hans Robert Jauss:

“Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que de si mesmo: experimenta-se na apropriação de uma experiência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua própria atividade produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível de ser confirmado pela anuência de terceiros. O prazer estético que, desta forma, se realiza na oscilação entre a contemplação desinteressada e a participação experimentadora, é um modo de experiência de si mesmo na capacidade de ser outro, capacidade a nós aberta pelo comportamento estético.” (in: Lima, 1979: 77)

Chega-se às definições de prazer estético.

A definição romântica do prazer estético estava vinculada às obras de arte que se ocupassem da vida cotidiana, das figuras e paixões humanas, que reproduzissem o que era a realidade dos espectadores. Seguindo Ortega y Gasset (2001: 26), denominaremos arte “ao conjunto de meios pelos quais lhes é proporcionado esse contato com coisas humanas interessantes”. Este padrão é o que dita a tolerância de aspectos artísticos, como as irrealidades e a fantasia, pois, dessa forma, não atrapalham a percepção da maioria das pessoas. Se esses elementos estéticos dominarem, interferirão, por exemplo, na captação de uma história, e o público ficará alienado diante da obra de arte. Não poderá realizar a interferência sentimental, humana, na obra, e perderá seu papel no processo. “Mais ainda: essa ocupação com o humano da obra é, em princípio, incompatível com a estrita fruição estética”. (Ortega y Gasset, 2001: 27) Isto porque o humano e o estético em uma obra de arte são aspectos paralelos e antagônicos. Se um predomina, o outro é excluído; e vice-versa.

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Ortega y Gasset nos apresenta um problema quando diz que a desgraça de um personagem só poderá emocionar se for tomada como realidade. Entretanto, no mesmo parágrafo diz que “o objeto artístico só é artístico na medida em que não é real”. (idem) Então o que for real ou representação do real não será arte? Segundo observação de Ortega y Gasset, a maioria das pessoas não é capaz de concentrar-se o suficiente numa obra da nova arte para enxergar e captar a realidade humana que está contida no objeto. Dessa forma, a pessoa não consegue ver nada, pois não percebe as coisas humanas, somente aspectos artísticos, virtualidades. Em contrapartida, a realidade vivida é o que do espectador vai para a obra no momento de sua apreciação; o que de nós é colocado em cada texto que lemos, por exemplo, é que faz desse texto emocionalmente valioso. O autor destaca ainda que os artistas do século XIX transformaram suas obras em apenas ficção da realidade humana, quase se abstendo do uso de elementos estéticos. A conclusão de que a arte considerada normal daquele século foi realista lhe parece óbvia. “Lembre-se de que em todas as épocas em que existiram dois diferentes tipos de arte, um para minorias e outro para a maioria, esta última foi sempre realista”. (2001: 29) Essa era a arte impura para Ortega y Gasset: obras que são parcialmente arte. Arte da massa, da maioria, realista e extrato de vida, tão popular. Paradoxalmente, Ortega y Gasset não acredita na possibilidade de uma arte pura, mas sim em “uma tendência à purificação da arte”. (idem) E essa tendência desencadeia o processo de desumanização da arte, eliminando pouco a pouco os elementos humanos que predominaram, por exemplo, na produção romântica e naturalista. Mas o autor observa que a arte moderna se dirigirá a tal ponto em que quase não se terão ou verão elementos humanos numa obra, e isso leva a uma seleção cada vez mais rigorosa do público, já que, de agora em diante, será necessária uma extrema sensibilidade artística, como nos falou Coli, para se perceber a obra de arte. E com essas características acabam sobrando somente os artistas. A massa é excluída em detrimento de uma casta. “A nova arte é uma arte artística”. (2001: 30) Não que as outras não sejam arte; são, porém, a escassez de elementos não humanos, estéticos, e o excesso de realismo fizeram-nas artes impuras. Entretanto, a responsabilidade disto não é só do artista, é também da época, da sociedade, do público, da massa, da burguesia. É preciso aceitar

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esses imperativos. E é quando o artista aceita o tempo, dócil como se um cão atendesse a seu dono, que aumentam suas chances de acerto em seu trabalho. Em uma última análise sobre a arte moderna, a nova arte que viu nascer, Ortega y Gasset enumera tendências que acompanham esse novo estilo:

“1ª) a desumanização da arte; 2ª) a evitar as formas vivas; 3ª) a fazer com que a obra de arte não seja senão obra de arte; 4ª) a considerar a arte como jogo, e nada mais; 5ª) a uma essencial ironia; 6ª) a eludir toda falsidade, e, portanto, a uma escrupulosa realização. Enfim, 7ª) a arte, segundo os artistas jovens, é uma coisa sem transcendência alguma”. (2001: 31)

Tratando efetivamente da desumanização da arte, Ortega y Gasset (2001: 39) introduz um parâmetro de comparação, lembrando a teoria de Aristóteles de que “as coisas se diferenciam no que se assemelham, ou seja, em certo caráter comum”. Assim, se sabemos que num conjunto de obras todas são de literatura juvenil, então, poderemos começar a identificar suas diferenças e distinguir as melhores das piores. Por aqui começamos a entrar no nosso tema.

Buscando analisar e compreender a nova produção artística que se apresenta e que traz consigo uma nova sensibilidade estética em todos os níveis, tanto de artistas como de espectadores, Ortega y Gasset identifica como ponto comum justamente a desumanização da arte. Nas artes plásticas nota-se que os pintores desviam seus traços do natural ou humano, para algo novo, oposto, mas que ainda assim pode levá-los ao objeto humano. Quando vai de encontro à realidade, o pintor busca sua deformação, extraindo seu aspecto humano, desumanizando-a. Com esse movimento, o artista força o espectador a lidar com objetos com os quais não se pode lidar humanamente. E este se vê condicionado a uma nova forma de percepção em que afloram sentimentos, sim, porém, sentimentos estéticos; frutos de um prazer artístico. Essas emoções provocam no espectador o que Ortega y Gasset chama de “ultra-objetos”, que se caracterizam por se encontrarem inseridos em uma nova sensibilidade. Tais formulações nos fazem pensar que a apreciação de um quadro, ou a leitura de um livro, não é mais experiência humana. É experiência estética. Como a arte

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não é mais humana, se faz preciso o filtro da experiência estética para vivenciar algo de arte em nossas vidas. Em termos da percepção da realidade vivida e da forma artística, Ortega y Gasset assinala a necessidade de acomodações diferentes no aparelho receptor do espectador. E as mudanças de posicionamento e de sensibilidade necessárias para a percepção da nova arte são vistas pelo autor como uma evolução estética. Dela resulta uma nova inspiração que conduz ao caminho da arte através do estilo. E “estilização implica desumanização” (2001: 47), pois estilizar é deformar o real. O realismo, por sua vez, seria um convite ao não estilo. A nova geração de artistas determinou que o humano na arte seria proibido, e o pessoal seria ao máximo evitado. Portanto, experiências como o pranto e o riso seriam exageros, fraudes. As sensações diante de um objeto de arte não devem passar de medianas, como a melancolia e o sorriso. Os fenômenos do inconsciente não devem ocupar um lugar na vida dos sujeitos, pois de acordo com os novos artistas, são fenômenos psíquicos obscuros e contrastam com a “plena claridade” que deve ser inerente à arte. Ainda abordando a distância necessária para a contemplação de um objeto artístico, Ortega y Gasset assinala que cada manifestação de arte tem um mecanismo pelo qual se aliena e se transfigura, preservando-se distante do espectador. Este, ora favorecido pela própria arte, exerce seu papel e efetivamente vê o que está à sua frente. É a desrealização de uma obra por ela mesma. Entretanto, quando este processo não acontece, ou seja, quando o objeto artístico não é capaz de oferecer espaço para o espectador distanciar-se, ele hesita e não distingue mais vivência de contemplação. O prazer estético tem que ser inteligente, porque existem os prazeres cegos, ou seja, infundados, mecânicos ou instantâneos. Deve sempre estar relacionado a uma motivação consciente de nossos sentimentos, e, para tal, é preciso que haja uma certa distância entre a arte e nós mesmos, possibilitando-nos contemplá-la pelo que ela é, sem a intervenção do nosso inconsciente. Por isso, a necessidade de eliminação de tudo que remeta ao humano, para que possamos nos distanciar e deixar o inconsciente fora desse processo. (Ortega y Gasset) Jauss nos traz outras perspectivas em relação ao prazer estético quando resume:

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“A conduta de prazer estético, que é ao mesmo tempo liberação de e liberação para realiza-se por meio de três funções: para a consciência produtora, pela criação do mundo como sua própria obra (poiesis); para a consciência receptora, pela possibilidade de renovar a sua percepção, tanto na realidade externa, quanto da interna (aisthesis); e, por fim, para que a experiência subjetiva se transforme em inter-subjetiva, pela anuência ao juízo exigido pela obra, ou pela identificação com normas de ação predeterminadas e a serem explicitadas.” (in: Lima, 1979: 81)

Eis as categorias fundamentais da fruição estética (idem: 79). Esses pontos, abrangem, conforme o autor, as três frentes possíveis de percepção do prazer estético. Chama atenção para o fato de que não devemos hierarquizá-las, pois são autônomas entre si e se aplicam e alternam de acordo com o papel do sujeito diante da obra. A poiesis pertence ao artista, geralmente, ao criador. Diz respeito à experiência de gozo ante uma obra de sua própria autoria, ante o reconhecimento de seu próprio saber. A aisthesis é a experimentação do espectador. Dá-se quando o receptor reconhece sua compreensão do objeto. Primeiro estranha para depois se familiarizar com esta percepção. Também é do espectador a katharsis. Esta categoria é aquela que traduz a capacidade do prazer de guiar o sujeito na mudança de seus conceitos pré-concebidos. Essas categorias distinguem os receptores na medida em que o efeito resultante dessas diferentes experiências determina seu posicionamento em relação a um objeto artístico. Portanto, determinam também os tipos de espectadores, de leitores. E são indispensáveis à conservação da experiência estética da comunicação literária, por exemplo, pois a literatura como arte pressupõe prazer em sua percepção. Pressupõe sintonia entre compreensão fruidora e fruição na compreensão. (in: Lima, 1979: 46) Ortega y Gasset, discorrendo sobre a presença do humano na arte, seus limites e a nova sensibilidade que conduz espectadores, nos fala de fronteiras através de um paralelo entre o poeta e o homem. Para ele, “o poeta começa onde o homem acaba”. Sendo assim, vida e poesia são coisas distintas, pois ao homem cabe viver e seguir seu percurso; ao poeta cabe traduzir o que não há, inventar, imaginar. É missão do poeta — artista — partir do real para algo maior, aumentar, ampliar a realidade, produzir um novo real ou o irreal. “Autor vem de auctor, aquele que aumenta. Os latinos chamavam assim ao general que ganhava para a pátria um novo território”. (idem: 54-55)

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Com estas afirmações Ortega y Gasset nos faz refletir sobre a criação de um autor: o território da ficção, da nova realidade, da supra-realidade, do irreal. Seu domínio é mais que o real da realidade humana e, ao mesmo tempo, é somente o real da realidade ficcional que cria. Esta, por sua vez, é o irreal da nossa realidade. A noção de fronteira proposta por Ortega y Gasset nos leva a observar que fronteiras são limites entre territórios que podem ser atravessados. Definamos dois territórios exploráveis: o real e a ficção. No real mora o humano; na ficção a nova ordem é dar moradia ao não humano. A função da arte é atravessar essa fronteira, sempre. Enquanto isso, nós, espectadores, seguimos fielmente nosso novo guia nessa viagem de apreciação do objeto artístico e atravessamos conscientes, e sedentos dessa travessia, a fronteira entre o humano e o inumano. Como instrumento de criação de novas realidades, Ortega y Gasset identifica a metáfora. Por ela, criam-se diversos caminhos da travessia do real para o não real, e o que importa é fugir do humano e não chegar ao inumano. A utilização da linguagem metafórica pode mascarar um objeto colocando outro em seu lugar. Ela se desvia, sinuosa, daquilo que o autor/homem quer evitar. A metáfora maquia, esconde e elucida ao mesmo tempo, pois quando da sua decifração, se esta for feita, emerge aquilo que deveria ficar escondido, oculto. Sua origem é o tabu. Então, aparece como um artifício para tratar de assuntos dados como proibidos; aparece como linguagem produto do medo, medo que um dia foi grande inspiração para o homem. O poder da metáfora como instrumento é tanto, que pode ser usado como ornamento e como substância em uma obra. Em um dado momento, foi usada para enobrecer o real. Na nova arte, ela denigre e rebaixa a realidade. Por sua multiplicidade de usos, sua versatilidade e seu poder, Ortega y Gasset (2001: 61), referindo-se especificamente à obra poética, acredita que a metáfora seja “o mais radical instrumento de desumanização”. O autor identifica, ainda, uma inversão em sua utilização e, conseqüentemente, uma inversão no processo estético. Explica-se: a metáfora, que antes era feita a partir da realidade, como um enfeite e um artifício poético, agora é feita como matéria poética. Essa é a inversão, pois a “intenção artística mudou de signo”, e não só com a metáfora, mas também com outros elementos, ordens e meios, o que configura uma tendência.

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Contudo, encontra-se ao lado de outros tantos. E existem tantos instrumentos quantos forem necessários para aplacar a ânsia de desumanização. Um deles é a inversão da hierarquia dentro de uma obra, isto é, agora aparecem os mínimos fatos da vida onde antes estavam grandes questões. Voltamos à fuga do real e à travessia da fronteira que, no entanto, ora encontra lugar novamente na supra-realidade produzida pela metáfora.

“Talvez o essencial que o latifúndio do seu livro [Em busca do tempo perdido de Marcel Proust] tem em comum com a nova sensibilidade, seja a mudança de perspectiva: desdém para com as antigas formas monumentais da alma que descreviam o romance, e inumana atenção à fina estrutura dos sentimentos, das relações sociais, dos caracteres”. (2001: 62)

A partir dessa citação de Ortega y Gasset, percebe-se que, embora estejamos falando de sentimentos, de matéria humana, a forma como nos dirigimos a eles, nos mínimos detalhes e idiossincrasias, é própria do movimento de desumanização do romance, da arte. Quanto ao romance, este busca imprimir sua verdade pela representação da realidade. Mas o jogo da arte não permite esse absolutismo e ficará a cargo do leitor acompanhar o deslocamento da linguagem. A forma do texto, isto é, a linguagem dá abertura ao sujeito — leitor — que, sabemos, também conhece e domina seus códigos. (Sodré, 1978: 63) Para falar dos não limites do real, Ortega y Gasset faz observações acerca da idéia e do pensamento. É a partir das idéias que nos relacionamos com as coisas do mundo, pois as idéias são o resultado do que pensamos a respeito do que está à nossa volta. É através das idéias que captamos a realidade. Entretanto, “o real extravasa sempre do conceito que tenta contê-lo”, ou seja, o real sempre extravasa da nossa percepção sobre ele. Mesmo assim, nossa tendência é acreditar que o que temos de idéia sobre o real é todo o real, o que, em última análise, não passa de uma idealização, característica essa tipicamente natural, humana. Os novos artistas, através da inversão estética em vários níveis, separam idéias de realidade. As idéias são desrealizadas. A realidade é desumanizada. A idealização é rompida. Retirar das idéias a realidade é, de certa forma,

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torná-las irrealidade e mantê-las no que, na verdade, são. Se antes os objetos artísticos eram a materialização das idéias para representar a realidade, agora são irrealidades. Nesse sentido, Ortega y Gasset destaca as questões subjetivas que passaram a dominar o universo dos artistas. Se as idéias não são mais a realidade, são então e somente produtos de um pensamento particular e único a respeito de algo: são produtos de uma subjetividade. Desse modo, é a subjetividade de cada artista que começa a aparecer na arte. Esse é um movimento extremo de cegueira para o mundo exterior privilegiando totalmente seu mundo interior. O subjetivo não é o humano do artista, é apenas sua idéia. Essa inversão de perspectiva é de difícil compreensão para o grande público, que não consegue se localizar numa peça de teatro, por exemplo. Como já vimos, o seu objetivo é procurar o drama humano na ficção para acompanhar. Mas a ficção não é mais representação da realidade, e, sim, uma idéia.

“Ao grande público irrita que o enganem e ele não sabe comprazer-se na deliciosa fraude da arte, tanto mais saborosa quanto melhor manifeste a sua textura fraudulenta”. (Ortega y Gasset, 2001: 66)

Desumanizada, a arte deve atrair pela idéia. Os elementos de identificação do espectador não estarão mais na trama de um romance ou em um personagem; estarão na idéia que não representa a realidade, mas a subjetividade do artista. É na arte e na ciência que aparecem os primeiros sinais de mudança de sensibilidade coletiva, pois são atividades mais livres e menos submetidas às imposições das sociedades de cada época, de acordo com Ortega y Gasset.

“Se o homem modifica a sua atitude radical perante a vida, começará por manifestar o novo temperamento na criação artística e em suas emanações ideológicas”. (idem: 69)

Desumanizar pode também significar repulsa pelas formas vivas, que requer detalhado estudo; a começar pela relação entre o passado e o futuro da arte. O artista sofre um embate dentro de si; entre sua sensibilidade e o que já foi produzido. E o resultado desse movimento pode ser tanto positivo, como negativo. Embora sempre seja possível encontrar traços do passado no estilo do presente, Ortega y Gasset acredita que uma consciente negação das tradições seja um ponto

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negativo. Dessa forma, os estilos tradicionais cada vez mais se interpõem entre o artista e o mundo, contaminando sua percepção. Mas essa antipatia ao tradicional e às formas antigas de interpretação da arte gera um paradoxo. Esse suposto ódio acaba por atacar a própria arte, que é tudo que já foi feito até então, concordem ou não os novos artistas. Denuncia, ainda, um questionamento que vai além da arte, chegando à ciência, ao Estado e à cultura. Neste movimento de desumanização da arte, ou seja, de eliminação de elementos demasiadamente humanos e preservação do material puramente artístico, Ortega y Gasset encontra uma contradição. O que parece, em princípio, um grande entusiasmo pela arte, pode, no fundo, significar cansaço e desdém diante das coisas do mundo. Comparando públicos que classifica como jovens e sérios, o autor assinala as diferentes vertentes que a “farsa” da nova arte assume. Para os jovens, está justamente nesta farsa a missão nobre da arte, questionando e provocando a si mesma e àqueles que a contemplam. Para os sérios, pessoas de sensibilidade mais antiga, a nova arte é uma farsa porque pensam que o novo artista quer competir com a arte do passado. Mas não se trata de competição e, sim, de transformação. A nova arte dialoga com as outras, e também consigo mesma, pois é farsa que triunfa. E o diálogo é como um jogo, que suscita amor e ódio, suscita contradição. Ortega y Gasset (2001: 69) compara esse fenômeno com um “sistema de espelhos refletindo-se indefinidamente uns nos outros”, no qual “nenhuma forma é a última, todas ficam fraudadas e transformadas em pura imagem”. Isto é, pura imagem que cada espectador queira construir para si a partir das infinitas possibilidades de interpretação e subjetividade. Detendo-se agora no homem da nova geração, Ortega y Gasset observa que para este homem a arte não tem transcendência. Isto não significa dizer que seja mais ou menos importante que as obras de outras épocas da arte. Significa que sua importância está condicionada à carência que o artista e o espectador têm dela. A arte não é mais imprescindível porque, neste momento de transformação, ela não é mais objeto de fácil consumo. Agora incomoda e procura andar sempre um passo à frente de seu público, que, por sua vez, pode optar por segui-la ou não. Se o homem quiser ser sacudido em sua seriedade, terá olhos para a nova arte. A arte então depende de que artista e público joguem o jogo que propõe. O artista estará

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sempre pronto, produzindo o objeto. O público precisa interferir produzindo interpretação.

“Pois bem: eu diria que a arte situada antes — com a ciência ou a política — muito próxima do eixo entusiasta, sustentáculo de nossa pessoa, se deslocou para a periferia. Não perdeu nenhum de seus atributos exteriores, porém se tornou distante, secundária e menos abundante”. (2001: 82)

Desumanizar a arte é não ter pretensões. É não querer dizer nada, impor nenhuma regra, nenhum dogma. Desumanizar é precisar do humano de cada espectador; é esperar que ele diga, que ele complete a frase. É começar um jogo com cada um de nós. A mensagem dessa nova arte passa a não ser mensagem. A arte passa a pautar-se apenas no prazer estético, e não mais em representar o humano, o real, onde há mensagem, onde há o que dizer. A incomunicabilidade da arte, então, se dá pela ausência do humano, pela ausência de uma linguagem previamente decodificada pelo espectador. Falando na ideologia presente nas formas do discurso e da linguagem, Roland Barthes nos revela que o escritor é responsável pela forma que dá à linguagem, pelo uso que faz da língua. A literatura é livre de ideologias porque depende de quem a lê, então o escritor pode ser avaliado por sua ideologia, mas não sua obra. Dessa forma, embora o escritor tenha o poder do uso da língua, o leitor também tem sua própria compreensão da linguagem que resulta desse uso e que compõe o ato da leitura. A lição que tomamos é a de que a linguagem é, afinal, mais poderosa que o escritor. Perrone-Moisés, analisando a obra de Barthes Aula (1996-97) — publicada a partir da aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França proferida em 1977 —, observa que julgar uma obra literária em função da ideologia do autor é um dos maiores problemas da crítica literária no século XX. Barthes busca a forma da linguagem em que ela não sirva a uma ideologia ou se torne instrumento de poder; busca um estudo em que a linguagem seja instrumento de transformação, de liberdade para que termos e palavras demonstrem toda a sua riqueza de sentidos e possibilidades. Segundo Perrone-Moisés:

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“A palavra é para ele [Barthes] um objeto sensual, núcleo de onde pode expandir-se todo um movimento textual ou, inversamente, concentração ideal, lugar onde se condensa todo um pensamento”. (in: Barthes, 1996-97: 71)

Esse objeto sensual nos remete a desejos, satisfações, que despertam a libido e buscam o prazer. Assim que a língua é pronunciada, coloca-se a serviço de um poder: afirma e finaliza, mas também repete para confirmar. Entretanto, existe um lugar para o autor em que é possível “trapacear” com a língua e experimentá-la fora do poder, e este lugar é a literatura. Ou seja, a literatura é uma transgressão saudável à língua. No tocante à literatura, Barthes concentra sua observação no texto, que para ele é o “tecido dos significantes que constitui a obra”. Pela prática de escrever que gera o texto, a língua aflora e se expõe em significados, mensagens e normas, e se fragiliza. Possibilita o combate a si mesma, “não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro”. (1996-97: 17) Esse jogo é da responsabilidade do escritor na prática da escrita: na prática de dar forma ao texto e do “trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua” (idem). Não se fala na pessoa civil do escritor nem no seu engajamento político, muito menos no conteúdo doutrinal de sua obra. Barthes acredita que a literatura é realista e é realidade por conter todas as ciências. Entretanto, não no sentido que Ortega y Gasset nos propõe, pois a arte da qual fala não é necessariamente retrato do cotidiano da vida social. O autor francês nos mostra que a literatura movimenta os saberes e lhes confere lugares indiretos, embora precisos. Isto é, torna-os parte de sua trama sem ser o objetivo ou o foco dela. Faz-se realidade na medida em que aproxima ciência e vida, produzindo o saber sobre os homens, que não é definitivo, mas é competente. Esse saber é o da infinita reflexão pelo deslocamento da linguagem que a literatura provoca, passando a ser o saber refletindo sobre o saber, num discurso que, pelo deslocamento, não é mais epistemológico, científico, mas é dramático, ou seja, é vida. O saber na ciência é imóvel porque assim o é o enunciado; fechado em si e sem um sujeito para movê-lo de lugar, deslocá-lo. Já o saber na escrita/literatura é móvel porque é enunciação de um sujeito que se desloca através das palavras e da língua, buscando o real da linguagem. Aí está a primeira força da literatura identificada por Barthes. “A escritura faz do saber uma festa”. (1996-97: 21)

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A segunda é a de representação. E a necessidade é a de que ela represente o real. No entanto, o real não é representável, é demonstrável, pois tem maior dimensão que a linguagem, matéria da literatura. Nesse sentido, Barthes diz que literatura é realidade ao aproximar ciência e vida, como já observamos; e, dessa forma, introduz a função utópica da literatura, pois nela se concebem utopias de linguagem. “Mudar a língua”, expressão de Mallarmé, é mudar os códigos, mudar as leis, mudar as obrigações e os deveres, mudar o discurso. É mudar o ponto de vista, o referencial do indivíduo; é mudar o indivíduo. E mudar o indivíduo é “mudar o mundo”, na expressão marxista. Utopicamente, dois pensamentos políticos distintos podem ser concomitantes na escritura, ou seja, na linguagem. Então, Barthes supõe uma ética da linguagem, que se afirma porque é contestada. O escritor, ao contrário do que diz o senso-comum, deve usar outra língua em sua literatura que não as que já existem dentro do idioma (popular, burguesa, coloquial, culta). Se ele busca outra língua que não a corrente, acaba por colocar seus leitores no mesmo nível, pois não privilegia nenhum. Observamos, em seu pensamento, que as instâncias da linguagem se dão pela existência ou criação de tantas línguas quantos forem os desejos dos cidadãos de uma sociedade. Seria a utopia do gozo do indivíduo pela liberdade de exercer o poder na relação com sua língua. Contudo, afora as utopias, o poder está com a língua e, segundo Barthes, só resta a um escritor o “deslocamento” ou a “teimosia”, utilizados em separado ou ao mesmo tempo. O escritor teima quando não se sujeita aos poderes da língua. Quando a menospreza bem como a seus discursos pré-definidos que cercam e buscam compreender e explicar a literatura, como a filosofia, a ciência e a psicologia. Ele teima quando faz a literatura magnânima em detrimento da língua. “Deslocar-se pode, pois, querer dizer: transportar-se para onde não se é esperado” (1996-97: 27), um lugar sem regras, sem previsões: o lugar da transgressão e da liberdade de ação diante das idéias. Dialogando com Barthes, Marcuse nos fala da busca modernista de uma “linguagem nova, de uma linguagem poética como linguagem revolucionária, de uma linguagem artística como revolucionária” (in: Lima, 1982: 246) que pudesse exceder e romper com o Establishment, com a ordem vigente. Talvez essa possa ser considerada mais uma força da literatura enquanto arte: revolucionar através da língua, influenciar,

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libertar. Seria a catarse da literatura, provocando o prazer que anteriormente descrevemos da teoria de Jauss. O texto é autônomo, porém não independente. Necessita interagir com um interlocutor, ou seja, com a diferença, com algo que esteja além do próprio texto. Sendo assim, não pode ser a mera tradução ou expressão de uma ideologia. Seria, de acordo com Muniz Sodré (1978), a encenação de contradições. Tal conclusão nos leva a ao jogo da cena teatral, ao jogo que o texto imprime ao leitor. Mas o que é um jogo? Jogo envolve jogadores, regras, táticas, estratégias, associações, dissociações. Envolve um ganhar e um perder, mas também envolve um percurso, um caminho de onde se sai de um começo e chega-se a um final. O ato de jogar é percorrer o caminho, onde se brinca, se experimenta, sem uma finalidade específica. Pois o jogo tem um fim, o ato de jogar não. Estamos falando da terceira força de Barthes para a literatura. “Jogar com os signos em vez de destruí-los” (1996-97: 28), brincar com eles dentro da linguagem, mudando-os de lugar, deslocando seus significantes, mudando-os de fala, deslocando seus significados.

“A língua, segundo uma intuição de Benveniste, é o próprio social. Em resumo, quer por excesso de ascese, quer por excesso de fome, escanifrada ou empanzinada, a lingüística se desconstrói. É essa desconstrução da lingüística que chamo, quanto a mim, de semiologia”. (1996-97: 30)

Como a língua é o próprio social e o define, a lingüística acaba por absorver questões vindas da problemática do social, como o indivíduo, a sociedade, a cultura. A lingüística não cuida somente de signos e de língua. Está em processo de desconstrução e transformação. É neste momento que está presente a semiologia que Barthes procura estudar.

“Língua e discurso são indivisos, pois eles deslizam segundo o mesmo eixo de poder. (...) A língua aflui no discurso, o discurso reflui na língua, eles persistem um sob o outro, como na brincadeira de mão”. (idem: 31-32)

Para a construção do discurso a língua expõe todas as suas potencialidades, suas forças, suas regras e suas limitações. Já o discurso existe lidando com as particularidades da língua, adequando-se a ela, restringindo-se.

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O texto, que não é discurso e sim literatura, não se restringe à língua; vai além, desloca-se para longe e leva o leitor consigo, é um lugar atópico e distante do mundo ordinário. Portanto, a literatura impede a semiologia de dogmatizá-la, pois, ao deslocar a língua, desloca os signos, ou seja, gera signos sem padrões, pautados apenas na criatividade do artista, sob um discurso não universal. Barthes diz que a semiologia não pode ser metalinguagem. Isto porque a distância entre estudante e objeto de estudo se perde, se dilui, pois enquanto é alvo, é também instrumento de produção de discurso sobre si mesma, a linguagem é instrumento de trabalho. Talvez resida aí, na distância diluída entre estudante e objeto, o cerne do questionamento sobre o fato de a literatura infantil e/ou juvenil ser menosprezada ou preterida pela crítica diante da chamada literatura para adultos. Estamos, enfim, no nosso tema.

A nosso ver, as designações “infantil” e “juvenil” determinam apenas um suposto público ao qual se destina a obra, a literatura, e não a qualifica. O público se define por si só na medida em que para a leitura e perfeita compreensão e apreensão do que se leu é necessário um determinado nível de conhecimento. Essas designações também não podem ser usadas para definir o conteúdo das obras, pois quando a literatura é de qualidade, fala a todos os públicos, como diz o mercado, mas preferimos dizer que fala a todos os leitores. Como veremos no capítulo a seguir, esses rótulos, surgiram por uma demanda de um sistema de ensino. Somente depois da escola, o mercado editorial se apropriou dessa literatura rotulada. Bem como, na mesma época, começou a se moldar a postura da crítica em relação à literatura para crianças e jovens. Após este breve estudo sobre a obra de arte e a riqueza da experiência estética, nos interessa agora estudar o que de artístico há na literatura que culturalmente aceitamos identificar como juvenil.

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CAPÍTULO II Considerações sobre a literatura infantil e juvenil como arte

Que pedagogos éramos, quando não tínhamos a preocupação da pedagogia! Daniel Pennac

“Um bom livro é aquele que agrada, não importando se foi escrito para crianças ou adultos, homens ou mulheres, brasileiros ou estrangeiros.” Assim, Regina Zilberman abre sua obra Como e por que ler a literatura infantil brasileira (2005: 9). Seguindo essa afirmação, procuramos guiar nossa discussão em torno do valor artístico da literatura produzida no Brasil e destinada aos jovens leitores, supondo que o valor artístico possa nos ajudar a determinar o que de fato agrada e é considerado um bom livro.

Com as transformações políticas, sociais e econômicas do final do século XIX no país, o mercado editorial precisou se adaptar e os livros para crianças e jovens começaram a ser produzidos em larga escala. Neste ponto da história, identificamos o que podemos considerar como o início da didatização da literatura infantil. O crescimento desse público fez aumentar a demanda, então, além de adaptar obras originalmente adultas e histórias da cultura popular e traduzir textos estrangeiros, o mercado começou a reciclar o material didático que era usado nas salas de aula. Esse método era seguro e confiável, pois seguia o modelo europeu de ensino, tanto no tocante ao material traduzido como no que servia de exemplo para a produção nacional. Quanto a isso, Zilberman nos diz que:

“Na mesma época em que se inauguravam linhas editoriais brasileiras de textos para crianças, encaminhadas pelos trabalhos de pioneiros como Carl Jansen e Figueiredo Pimentel, editavam-se também os primeiros livros didáticos. Chamavam-se, muitos deles, Seletas, Antologias ou Livros de Leitura, e eram adotados pelos professores, que os recomendavam aos alunos ou reproduziam, em voz alta, trechos deles para todo o grupo. Nem todas essas obras restringiam-se à sala de aula, e algumas tornaram-se a leitura favorita de nossos tataravós.” (2005: 18)

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A contribuição de Monteiro Lobato, exercendo os papéis de escritor e editor à frente da Companhia Editora Nacional, foi imprescindível para o fortalecimento desse processo. Como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1988: 29):

“(...) Tampouco os editores ficaram insensíveis ao novo filão que se abria para seus negócios, inevitavelmente magros num país de tantos analfabetos. Começaram a investir no setor infantil e escolar (...)”.

O fim da escravidão e a proclamação da República foram dois acontecimentos marcantes para a aceleração da urbanização do país. Esse processo incentivou a imigração dos trabalhadores rurais para os centros urbanos, e, juntamente com os negros livres, começaram a formar novas classes sociais intermediárias. Essa população, habituada à educação familiar, precisaria fazer a transição para a educação formal, em sociedade. Somente assim teria início o processo de adaptação ao que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “vida prática”. (1995: 143) A preocupação em torno da alfabetização em massa dos brasileiros chega à esfera política. Embora as classes mais abastadas da sociedade soubessem que, se a educação estivesse disponível para todos, as distâncias sociais entre eles e os camponeses, ex-escravos e menos privilegiados diminuiriam, a necessidade do aumento do número de eleitores sobrepôs-se a essa questão. A equação era simples: só alfabetizados tinham direito ao voto, então quanto mais letrados na população, mais votos teriam os políticos. Exercendo importante papel na configuração da sociedade brasileira da época, a Igreja Católica esteve sempre envolvida no processo de organização de nosso sistema de ensino. Tinha total interesse em atuar como “formadora de mentalidades e condutas” (Bomeny, 2001: 47) e, para tanto, construiu uma rede escolar por todo o país, até hoje sinônimo de excelência educacional. Falamos de colégios como o Anchieta, o Santo Inácio, o Santo Agostinho, o Sacré Coeur de Marie, o São Bento, entre outros. Mesmo com a prática brasileira do culto familiar, ou seja, em parte afastado dos rituais do templo, pais zelosos optavam pelo rigor do ensino religioso. Para os jovens, a disciplina imposta pelas escolas católicas era indispensável. No decorrer do período lobatiano — 1920/1970 — (Coelho, 1995), a produção literária nacional para crianças desenvolveu-se enfocando temas relacionados ao cenário

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socioeconômico e político. Não só neste período, como podemos ver até hoje, esta orientação temática vinha diretamente da escola e de seu projeto pedagógico. O apoio da literatura ao material didático era muito importante para a tarefa das professoras de fazer seus alunos e alunas compreenderem o país em que viviam e assimilarem os conceitos éticos da época, bem como os de conduta social. Era preciso que meninos e meninas conhecessem e valorizassem o Brasil e, principalmente, aprendessem a apoiar o que nele acontecia. Nos idos de 1930, na chamada Era Vargas, foi criado o Ministério da Educação e da Saúde, símbolo do objetivo do governo de sistematizar e dar unidade aos procedimentos pedagógicos em todo o país. Ainda em um contexto de alto índice de analfabetismo, a conseqüente reformulação pedagógica implementada, através do novo ministério, por Francisco Campos e depois por Gustavo Capanema — sustentada em um sistema orgânico de educação nacional com a obrigatoriedade do ensino primário —, gerou a nova demanda de livros na sala de aula. Dessa forma, as dificuldades que o mercado editorial enfrentava devido à escassez de leitores foram vencidas com o redirecionamento das atividades para as crianças e a escola. Também no período lobatiano, a sociedade brasileira viveu o pós-guerra, que trouxe mais pressão sobre a educação dos brasileiros. O contexto era de democratização e os benefícios da educação deveriam atingir todas as camadas da população, sem exceções. E pontuamos que, na década de 40, a publicação do livro Três meses no século 81, de Jerônimo Monteiro (1947), no gênero ficção científica, iniciou a produção de obras voltadas especialmente para jovens. Já no período pós-lobatiano, a produção nacional é intensa e criativa. Supera as traduções. O cuidado editorial com as obras merece destaque, bem como o trabalho dos ilustradores. Conforme Laura Sandroni:

“Era realmente um momento de efervescência na área, com a revista Recreio publicando semanalmente contos de nomes ainda pouco conhecidos, a FNLIJ [Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil] realizando no Rio de Janeiro o 14º Congresso da Organização Internacional para o Livro Infantil e Juvenil (IBBY), com a presença de alguns dos maiores especialistas estrangeiros e um público de interessados de todo o Brasil, além de representantes de vários países da América Latina, num total de mais de quinhentas pessoas. A criação de concursos para a revelação de novos

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autores também data dessa década, entre eles o do Instituto Nacional do Livro, então chamado Prêmio Viriato Corrêa, e o João de Barro, da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte”. (2003: 7)

O Brasil emerge no cenário internacional de literatura infanto-juvenil com a concessão do Prêmio Hans Christian Andersen à obra de Lygia Bojunga Nunes, em 1982. Entretanto, antes disso, a literatura para crianças e jovens produzida por aqui desenvolveu-se à margem da literatura destinada aos adultos e foi sempre considerada como algo menor. A própria diferenciação feita pela demanda de um produto que atendesse a um público específico gerou essa distância. E, para desagradar ainda mais àqueles que já torciam seus narizes para esta produção, os escritores que se aventuraram nesse processo precisaram escrever sobre temas predeterminados pelas escolas e, portanto, pela própria sociedade. Os conteúdos variavam do civismo e patriotismo à exaltação de nossas riquezas naturais. Havia, da mesma maneira, uma grande preocupação com a linguagem. O Português usado era sempre o mais límpido, correto, perfeito e formal. Esse também foi um dos paradigmas quebrados por Monteiro Lobato, que deu às vozes de seus personagens regionalismo e coloquialismo. Neste momento da literatura infantil brasileira, não estava em foco a questão da beleza estética dos textos. Os livros destinados ao público infantil e juvenil e à escola eram vistos apenas como reforço do material didático e tinham uma função bem clara: contribuir para a formação de cidadãos através do doutrinamento maquiado de fantasia. Segundo Lajolo e Zilberman (1988), o fato de a literatura para crianças e jovens não estar no rol das grandes obras não parecia incomodar a escritores, escola e sociedade. A literatura era, sim, elemento transformador, mas não por aspectos artísticos ou estéticos que pudessem influenciar o pensamento dos estudantes. Os textos produzidos eram como testemunhos de um Brasil que se queria que as crianças conhecessem, acreditassem e amassem. Nelly Novaes Coelho esclarece este ponto quando comenta que:

“Analisadas em conjunto, essas obras pioneiras (sejam adaptações, traduções ou originais) revelam facilmente a natureza cristã-burguesa- liberal da formação ou educação recebida pelos brasileiros desde de meados do século XIX. Uma educação orientada para a consolidação e perpetuação do sistema social consagrado pelo Romantismo e

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resultante de uma contraditória fusão de cristianismo, idealismo, liberalismo, pragmatismo, resquícios do feudalismo, do aristocratismo, da mentalidade escravagista, influências do materialismo positivista nascente etc.” (1995: 24)

Essa intenção ficou muito clara com a proliferação de escritores e a repetição dos temas. Entretanto, a falta de pesquisa inovadora na profissionalização e na produção destes novos escritores foi um fator que contribuiu para o afastamento dos intelectuais e da crítica da época. Estes, sim, responsáveis pelo menor reconhecimento artístico da literatura infantil e sua conseqüente marginalização. Depois das manobras políticas e definições de padrões e modelos para a educação dos brasileiros, os homens de opinião parecem ter deixado que o sistema continuasse funcionando por si. Afastaram-se como se a questão escola-crianças- material didático não precisasse mais de sua supervisão e assistência. Então, literatura infantil e juvenil só receberia outros olhos da crítica quando entrasse em nova fase, o que aconteceu na virada dos anos 70. Antes disso, esteve longe do centro das atenções, apenas existindo como um promissor nicho de mercado. Embora escritores da estirpe de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, com seu importante e, por muitas gerações, obrigatório, Através do Brasil, tivessem dedicado seu tempo e suas idéias aos pequenos leitores brasileiros, somente algumas décadas mais tarde outros grandes escritores e intelectuais voltaram-se para a causa dos livros infantis. Esta obra, de 1931, é a descrição da viagem de dois irmãos, um criança e outro adolescente, em busca do pai doente. No percurso, os autores fazem seus protagonistas “descobrirem” o país em que vivem, conhecendo regiões, cenários, costumes e pessoas nunca dantes imaginadas. E eles prosseguem mesmo depois que o pai dos meninos é dado como morto, agora à procura de parentes com quem possam passar a viver. A estrutura da história permitiu a Bilac e Bonfim inserir de forma atenuada assuntos como história, higiene, agricultura e geografia, disfarçando assim o didatismo do texto. Estava construída ali a imagem do Brasil que era interessante passar aos jovens estudantes brasileiros. E esta fórmula foi, e ainda é, repetida inúmeras vezes. Entre 1940 e 1960, literatura infantil e juvenil já era um nicho do mercado editorial em expansão, fazia brilhar os olhos de editores experientes como o próprio Monteiro Lobato e incentivava o surgimento de novas editoras especializadas no lucrativo filão. Escritores, consagrados ou não, voltaram-se exclusivamente para a

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produção de novelas e contos infantis e juvenis. Este mercado parecia mesmo tão auspicioso que chegou a atrair grandes nomes da literatura nacional, dita para adultos, como Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e, mais tarde, , que escreveu para crianças inspirada nos próprios filhos. Tratar de literatura infantil e juvenil significa tratar de indústria e mercado editoriais obrigatoriamente. Essa literatura desenvolveu-se a partir de uma demanda, o que nos remete às leis da oferta e da procura que configuram uma relação comercial. O negócio do livro infantil e juvenil parecia rentável para todas as partes, tanto para quem escrevia, como para quem produzia e comercializava as obras. Essa rentabilidade fez com que surgissem cada vez mais autores, o que segundo Zilberman (2005: 35), “conferiu consistência e durabilidade à literatura destinada às crianças do Brasil”. Falando agora sobre Monteiro Lobato, Zilberman destaca seu método de criação, que fez com que seus personagens se tornassem independentes dele mesmo e dos livros em que podem ser encontrados. A fórmula do sucesso e da eficácia, segundo a autora, consistiu na criação de um único “mundo” para todas as histórias, constituindo uma espécie de sistema literário. (2005: 33) Quaisquer que fossem os enredos e argumentos, as aventuras com que os pequenos leitores lobatianos se deliciavam sempre se passavam no Sítio do Pica-pau Amarelo, ou em torno dele, e tinham os mesmos personagens, os humanos adultos e crianças, para a perfeita identificação dos leitores, e os não-humanos, oferecendo um leque de possibilidades de fantasia e encantamento. Dentro desse sistema literário, Lobato falou sobre os mais diversos temas pertinentes à época, além de tratar de situações próprias da infância. Introduziu seus leitores nas histórias da Antigüidade, nos assuntos de ecologia, política e cidadania e na história do Brasil. Cada um de seus personagens adultos — como Tia Anastácia, a criada do sítio, e Dona Benta, a avó das crianças —, e não humanos — como a boneca Emília e o boneco feito de espiga de milho Visconde de Sabugosa —, foi responsável por transmitir aos protagonistas Pedrinho e Narizinho, e, conseqüentemente, aos leitores, não só conhecimento mas também os preceitos da sociedade brasileira da primeira metade do século XX. Assim como os fez brincar com a imaginação, viajar com as histórias, enfim, os fez ser criança. Zilberman destaca da mesma época de Lobato outro escritor que deixou sua marca escrevendo literatura para jovens leitores: Viriato Corrêa. Sua obra mais

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festejada, , publicada em 1938, é o que a autora considera um romance de formação (2005: 37), com elementos que mostram um protagonista adulto relembrando seu processo interno de crescimento e amadurecimento. Essa técnica, além de possibilitar a identificação entre leitor e texto e o jogo entre leitor e autor, favorece a atemporalidade da obra, pois, sem pretensões didáticas, o livro trata de temas que são pertinentes à vida dos jovens de qualquer época. A literatura infantil e juvenil é como uma página em branco para os escritores: livre, pois seu leitor também o é. O imaginário infantil é quase virgem de censuras e pré-conceitos, dessa forma é um campo fértil para associações. É um campo para as metáforas, em que, de certa forma, se pode dizer tudo e de qualquer maneira. Quanto a isso, Zilberman enumera os elementos que possibilitam a criação de um escritor. Conforme a autora, um escritor cria a partir de seu capital cultural, ou seja, de suas leituras, e de sua experiência de vida. E acrescenta que encontra limites no leitor, pois este também traz para a leitura elementos próprios. Se o escritor em sua criação se afastar muito das expectativas geradas no leitor, este pode rejeitar a obra. Ao tratar do “mundo interior da criança” (2005: 79) e da sua intimidade, com protagonistas animais ou humanos, os autores abrem diversos canais de comunicação com o leitor, pois jogam com a diferença, com o diferente que existe em cada um e que, ao mesmo tempo, nos assemelha. Assim, o texto chega de forma única a cada criança, porque só ela pode preencher o texto, respondendo à provocação e ao jogo do autor com elementos igualmente únicos. E neste processo a interferência de algum pedagogismo ou psicologismo é minimizada. As décadas de 50 e 60 constituíram um período de repetição de modelos já usados na literatura infantil e juvenil nas décadas anteriores, embora tenha-se produzido muito e muitos best-sellers. Além disso, foi uma época de adequação, ou de inadequação, do estudo de literatura ao currículo escolar. Atrelada à disciplina denominada Língua Portuguesa, a literatura ficou reduzida ao que aparecia nos livros didáticos adotados para serem usados em sala de aula pelos professores. Para que a literatura destinada a crianças e jovens fosse tratada como produto de um trabalho artístico, foi preciso haver uma ruptura no que podemos chamar de linha de produção da indústria editorial. Foi preciso que os autores enxergassem esse público como cidadãos brasileiros que também deviam ser transformados pela Arte.

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Afinal, desde seu surgimento e até poucas décadas atrás, este tipo de literatura esteve quase que indissociável do projeto pedagógico das instituições de ensino brasileiras. Estávamos, então, na frutífera década de 70, início do período pós-lobatiano. Apesar da repressão do Regime Militar, grande parte dos artistas falava a língua da resistência. Não só eles, como uma série de intelectuais, educadores, pesquisadores, formadores de opinião estavam interessados em resistir pela palavra, pelas idéias e ideais, pela força do conhecimento. Neste momento, a literatura para crianças e jovens deixou de ser marginal e passou a ser vista com outros olhos. Talvez porque diante das dificuldades dos anos de chumbo as crianças e os jovens do país também tivessem deixado de ser marginais. Não eram mais números de analfabetos a serem derrubados, ou educados ou formados. Naqueles anos, tornaram-se cidadãos. Este período foi marcante para a literatura infantil e juvenil brasileira, pois preparou mercado e público para o surgimento, no final daquela década e começo da de 80, de nomes como Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado e Pedro Bandeira. Conforme Zilberman:

“(...) trataram de contrariar o panorama vigente em, pelo menos, três aspectos: por proporem uma literatura de contestação, mesmo quando, durante os anos 70, o país passava pelo pesado processo de repressão política; por preferirem dialogar diretamente com o leitor criança, seu destinatário por excelência; por proporcionarem a ele formas novas de narrar e de lidar com a tradição, dentro da qual os adultos ainda tinham feito sua formação.” (2005: 52)

Acompanhando o aparecimento desta nova safra de escritores e estilos, a autora destaca a peculiaridade dos textos de Ruth Rocha. Parte de suas histórias mais populares foram protagonizadas por reis, figuras que simbolizam o doutrinamento, como na trilogia composta por O Reizinho Mandão (1978), O rei que não sabia de nada (1979) e Sapo vira rei vira sapo ou A volta do Reizinho Mandão (1982). Entretanto, pela forma de organizar a narrativa, Rocha não deixa essas características educativas aflorarem, pois seus textos, na verdade, requerem interpretação, requerem portanto um trabalho do leitor. O humor e as idéias contidas nas histórias convidam esse leitor à reflexão. Além disso, utilizar a figura do rei foi um

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artifício encontrado pela escritora para falar de política e da situação do país nos tempos difíceis da ditadura militar. Cremos que a literatura infantil e juvenil, assim como o que podemos chamar de literatura geral, possa ser considerada também a expressão de uma época, de uma sociedade, de uma cultura. E possa, como as artes plásticas, por exemplo, o fazem, assumir uma postura vanguardista na forma como se coloca diante das questões nacionais. A década de 70 também trouxe ao universo da literatura infantil e juvenil a temática urbana, até então pouco explorada, em que a sociedade brasileira e os conflitos da criança enquanto parte dessa sociedade passaram a ser o foco. (Zilberman, 2005: 94- 5) É nesse contexto que aparecem obras protagonizadas por meninos de rua, por exemplo, tanto quanto protagonizadas simplesmente por crianças e seus conflitos pessoais, próprios do processo de crescimento e amadurecimento. Estamos falando de livros como O menino e o pinto do menino, de Wander Piroli (1975), Pivete, de Henry Corrêa de Araújo (1977) e Os meninos da rua da praia, de Sérgio Capparelli (1979).

“Desde 1975, a narrativa para crianças vem ensaiando a ruptura com os limites da representação verista, desafio permanente porque envolve não apenas as expectativas do público e das instituições literárias, mas igualmente as possibilidades de adequação do tema às disposições do leitor ainda criança ou adolescente. A experiência, bem-sucedida mesmo quando expondo os limites da representação, deu margem ao aparecimento de novos gêneros literários, colocou heróis mirins na posição de protagonistas e direcionou a literatura para horizontes mais amplos, como o da narrativa policial e de investigação.” (2005: 109)

Em se tratando de narrativas policiais, nos perguntamos onde estão os aspectos artísticos. Nesse caso, as obras podem ser avaliadas como literatura de formação, pois, embora o gênero seja considerado menor, o apelo dos enredos faz com que o jovem leitor se aproxime dos livros e da literatura. Acompanhando Zilberman, percebemos que as novelas policiais juvenis têm uma receita e uma fôrma próprias; no entanto, aquilo que poderia ser um sucesso, pode também ser um fracasso, pois receitas e fôrmas de nada adiantam se não se souber contar a história, se não se tiver o domínio sobre a palavra. Na discussão sobre o valor artístico da literatura dita juvenil, que toma lugar nesta dissertação, nos lembramos de Ortega y Gasset quando nos alerta a não estudar a arte por seus efeitos sociais por acreditar que estes estão distantes da essência estética.

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Para o autor, o efeito social é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência da arte, é inerente a ela. Isto porque a arte emana da experiência do artista em sociedade e, enquanto produto dessa experiência, retorna para a sociedade como pergunta à espera de resposta (2001: 19). Seguir este raciocínio nos ajuda a provar que o tratamento dado pela sociedade e pelos críticos à literatura para crianças e para jovens é o que faz com que esses mesmos críticos não consigam vê-la como alta literatura ou, sequer, como arte. Em um determinado período da história dessa forma de literatura, sua existência tinha a única função de apoiar o sistema de ensino vigente, ajudando as crianças, pela ficção, a compreender a realidade em que viviam. Na medida em que a sociedade, através do didatismo aplicado a essa manifestação artística, conferiu-lhe uma função utilitária e socioeconômica, dominou-a, domesticou-a, controlou-a. Então, sua essência diluiu-se na execução da função e o artista — ou escritor — ficou preso a esse modelo, ficou amarrado. O processo de aprendizagem através da arte se dá pela freqüente exposição ao objeto artístico, qualquer que seja ele. De acordo com Coli (1981: 111), a arte:

“nos ensina muito sobre nosso próprio universo, de um modo específico, que não passa pelo discurso pedagógico, mas por um contato contínuo, por uma freqüentação que refina nosso espírito.”

Ou ainda, como coloca Ana Maria Machado (2004):

“Só a exposição freqüente e continuada a obras de arte vai apurando o gosto das pessoas, ensinando a apreciar essas obras e reconhecer o que elas são, refinando o senso estético do usuário, acostumando-o a padrões mais exigentes”.

Nesse sentido, entendemos que a busca pela arte deva ser inspirada na busca por aquilo que nos dá prazer, que nos diverte. Essa deve ser nossa principal motivação, pois o relacionamento com a arte é capaz de nos transformar, transformar nossa relação com o mundo e nos ensinar sobre a vida e as relações humanas. Consideramos um equívoco ter a literatura como o que foi proposto pelo novo sistema de ensino implementado no Brasil, pois a ficção não é cópia da realidade, como diz Gustavo Bernardo (in: Oliveira, 2005: 14), e sim a “reapresenta, refaz, reinventa”. A

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ficção se assume, desde o início, como invenção. Ela produz uma nova realidade a partir de suas dúvidas acerca da realidade e da perspectivização que faz da mesma. Ou também podemos dizer que a ficção se assume como farsa, como propõe Ortega y Gasset, visto em nosso capítulo I, farsa essa no sentido de transformar, questionando e provocando a si mesma e a seus espectadores. Já para Barthes, a literatura demonstra o real também porque, de uma maneira ou de outra, utiliza-se de língua e linguagem para existir. Contudo, o deslocamento da língua que advém da sua produção provoca a transgressão da linguagem e o que se tem passa a não ser somente um demonstrativo e sim uma representação, a representação de cada um, leitor, devido à interpretação que é obrigado a fazer para localizar os sentidos e os significados no deslocamento da língua. Sem contradição, porém, Barthes afirma também que a literatura é irrealista, pois o imaginário que mora no fictício e que, por sua vez, é o não real, torna-se realidade enquanto literatura. Em sua obra Como um romance, Daniel Pennac descreve o momento da descoberta da palavra por uma criança, ou seja, o período da alfabetização, o início de tudo, a época em que se começam a formar os futuros leitores. Para o autor este é um momento tão crucial que pode ser comparado, segundo suas próprias palavras, à “descoberta da pedra filosofal”. (1993: 42) É nesta fase da vida que o indivíduo inicia o contato com um conjunto de ações pertinentes à leitura. Com a descoberta das letras e das palavras, é possível tornar a língua palpável, ou seja, ela deixa de ser somente abstração para ser objeto. Está impressa em códigos já passíveis de decifração. Escrever e depois ler o que está escrito é uma ação que se repetirá muitas e muitas vezes, para toda a vida. E nesses primeiros anos repetindo esse ato, a criança ainda é capaz de gozar os gestos que o envolvem. Gestos como o de riscar um papel e de repente ter uma palavra, gestos como o de virar páginas abrindo grandes portas para mundos desconhecidos, ora assustadores ora maravilhosos. A criança que está aprendendo a ler está encantada com todas as possibilidades que estes gestos proporcionam, está enamorada desse ato. Nesse momento, ela sente prazer; o prazer simples de olhos sempre prontos para as surpresas e descobertas que o crescimento oferece. E a tendência, infelizmente, é que esse olhar se contamine e que perca o encantamento à medida que a criança cresce.

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Pennac diz que “a leitura é um ato de criação permanente” (1993: 26). E faz eco a Wolfgang Iser quando este, em sua obra O ato da leitura (1999: 10), originalmente publicada em 1976, nos aponta que:

“(...) é preciso descrever o processo da leitura como interação dinâmica entre texto e leitor. Pois os signos lingüísticos do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua capacidade de estimular atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do leitor. Isso equivale a dizer que os atos estimulados pelo texto se furtam ao controle total por parte do texto. No entanto, é antes de tudo esse hiato que origina a criatividade da recepção.”

Sendo assim, o leitor tem um papel fundamental na literatura. Ele interage com o escritor no momento em que transfere para o texto, no ato da leitura, seu capital cultural. Mas, para que essa transferência ocorra, é preciso que o escritor tenha deixado espaço para seu leitor criar. É preciso que tenha deixado lacunas a serem preenchidas, das mais variadas formas possíveis e imagináveis. A literatura como arte se comunica com o leitor, pois, seguindo os preceitos de Iser (1999), provoca um embate de perspectivas sem, no entanto, resolvê-lo, criando um vazio entre texto e leitor que deverá ser preenchido no processo da leitura. É esse vazio que gera a comunicação entre obra e leitor, que gera a transferência de informações. Compreendemos que para existir literatura juvenil é preciso que exista um leitor juvenil, ou o jovem ou o adolescente. Se assim não fosse, essa literatura não precisaria desta nomeação, o que faz seu leitor tão importante quanto a literatura dedicada a ele. O adolescente é um componente da sociedade que está entre a criança e o adulto, é a criança amadurecida e o adulto em formação. É, portanto, um ser ambíguo e de difícil definição. É um ser em transição, que mais acumula perguntas que respostas, dúvidas que certezas. Seguindo esta linha de pensamento, poderíamos considerar que o adolescente não precisa e não quer uma literatura questionadora, provocante, instigante, o que no âmbito de sua formação poderia ser visto como uma lacuna. Logo, esse leitor precisaria de uma literatura que explicasse, que respondesse, que lhe desse o caminho confortável da compreensão do mundo. Entretanto, não é isso que a arte se propõe a fazer. A arte é questionadora e a literatura como arte também o será. A leitura é uma experiência íntima e individual. Isto gera um paradoxo com a necessidade natural, quase instintiva, de o jovem relacionar-se em sociedade, fazer parte

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de um grupo. A experiência da leitura, no caso do adolescente, deve possibilitar o compartilhamento. Deve ser um prazer, uma forma de diversão que o aproxime dos pares e os faça aproximarem-se dele, não um fator de exclusão ou distanciamento. É no momento da adolescência que o encontro com a literatura pode se tornar prazeroso ou insuportável. Prazeroso, por encontrar um lugar onde extravasar seus recalques. Insuportável, por encontrar esse lugar onde moram os recalques os quais gostaria de esquecer, não enfrentar. Um fator importante neste processo é o espaço que autor e texto deixam para que o leitor crie associações, a partir de uma contextualização própria, e constitua suas imagens, trazendo o texto lido para si e seu meio, produzindo, dessa forma, seu próprio texto. Malu Zoega de Souza, a propósito de sua pesquisa sobre a obra da escritora Stella Carr — que despontou na literatura juvenil no final da década de 1970 com novelas de suspense —, diz:

“Estudar Stella Carr significaria estudar esse movimento de aproximação com o leitor jovem e buscar verificar as razões que levaram tanto a instituição escolar quanto estudiosos da área não só a definir suas obras como especialmente voltadas a um público jovem, mas, por isso, a recomendá-las, utilizá-las e vendê-las. Precisaria, então, averiguar aquilo que, nos livros de Stella (como em tantos outros escritores juvenis), constituía um apelo a pré-adolescentes e adolescentes, bem como a seus professores, configurando internamente às suas obras esse projeto, esses leitores e seu contexto (ou seja: a relação escola-indústria editorial)”. (2001: 17)

Então, não seria propriamente um didatismo o que aparece nas obras ditas juvenis. Talvez seja uma adequação a moldes estabelecidos, ou supostamente estabelecidos, por professores e escolas, de acordo com um panorama desfavorável de alunos não leitores, sem o hábito de ler. Essa adequação utilitarista também pode contribuir para tornar a literatura insuportável aos olhos adolescentes. Pennac defende a gratuidade como moeda única da arte, nos possibilitando discutir sobre o preço do que a arte oferece e proporciona: seu valor imaterial. (1993: 34) A arte não cobra o preço da passagem para o embarque na viagem de sua apreciação. Pelo contrário, a oferece, se oferece a quem quiser, pois só existe pela experiência do outro e através do olhar do outro. Na verdade, falamos, neste momento, não de preço, mas de valor. O valor afetivo que conferimos àquilo que nos toca, nos afeta, que desperta nosso gosto. Esse

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valor não pode ser quantificado em moeda. Ele é particular a cada espectador/leitor porque a experiência estética é única. E nas salas de aula a arte, a literatura, não é oferecida, é imposta pelo currículo escolar. O professor escolhe o título pelos alunos e os obriga a ler. Esses leitores muitas vezes nem sequer tiveram seu interesse despertado para aquela tarefa. Afinal, é apenas mais uma tarefa a ser cumprida para que renda boa nota no final do ano letivo. Pennac nos recorda Bourdieu quando trata do esforço de compreender um texto para que este deixe de ser um enigma e para que possamos apreender algo do que foi lido (1993: 129). No momento em que o texto é vencido, a leitura então pode se tornar um prazer. Tal qual seu conterrâneo, Pennac quer nos dizer que o gostar de alguma obra está diretamente relacionado ao compreender esta obra. Sendo assim, nos instiga a participação do professor na condução desse processo em sala de aula. Acreditamos que a forma como um texto literário é apresentado ao leitor adolescente definirá a qualidade do ato da leitura. Sabemos que este ato envolve o leitor de maneira que este interfira no texto. Logo, torna-se necessário que o jovem tenha consciência desse papel através do trabalho daquele que indica, sugere e provoca a leitura de uma obra. É preciso que seja feita a mediação dessa leitura, ou seja, é preciso que o professor ofereça o livro aos alunos, e o oferecimento do livro não deve pressupor uma conclusão, uma tarefa ou uma lição. Esse oferecimento do qual falamos deve ser um convite a uma nova experiência. A nosso ver, a postura pedagógica do professor, impondo uma lição através da leitura, priva seu aluno do gozo, do prazer, da experiência estética, pois o jovem não está ali porque quer e sim porque foi obrigado, o que inibe sua espontaneidade diante da leitura de um texto. O que deveria significar o início de uma deliciosa aventura, transforma-se no início de uma pavorosa tortura. A lição não deve ser a finalidade da leitura, e, sim, a obra. De acordo com Pennac:

“Resta ‘compreender’ que os livros não foram escritos para que meu filho, minha filha, os jovens os comentem, mas para que, se o coração lhes mandar, eles os leiam.” (1993: 131)

E o professor descrito pelo autor é exigente. (1993: 23) Em um exercício de interpretação e leitura, pede que se defina se a obra referida de determinado autor é um

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romance, um ensaio, uma dissertação, uma antologia de contos, por exemplo. Para este professor, a palavra “livro” designa mais que estes tipos de textos e diz menos que o necessário. Livro é um objeto. O conteúdo é a abstração. De acordo com Cyana Leahy (in: Lyons e Leahy, 1999: 112), um texto literário de qualidade deve acumular elementos que o aproximem daqueles que caracterizam uma obra de arte, tais como linguagem ético-estética e as apelações aos sentidos e às emoções do leitor/espectador. Deve possibilitar o pensamento crítico dos sujeitos sociais, sem fins de ensinamento direto. Os jovens leitores não podem ser assustados pelo texto, e, sim, estimulados a lê-lo. Já em relação às práticas pedagógicas do ensino de literatura nas escolas, a autora identifica “a negação do ethos artístico da leitura e do prazer de ler” como seus paradigmas. Uma maneira muito eficiente de provocar a leitura, segundo a autora, é “dessacralizar” (idem: 134) a visão que impera sobre o livro: a de que é um objeto inatingível. Como já vimos em Coli, é preciso trazer a obra de arte para perto, ou seja, é preciso fazer do livro um amigo, companheiro. É preciso que se entenda que sem a participação preciosa e imprescindível dos leitores, a literatura simplesmente não existe. Então, como é possível ainda crermos, e pregarmos essa crença, que o livro é um objeto inatingível? No tocante à qualidade de uma obra, seja infantil, juvenil ou senil, como bem sugere Celso Sisto (in: Oliveira, 2005: 126), Bartolomeu Campos de Queirós (idem: 174) diz que “é tarefa do leitor identificar ou não a qualidade”. Entendemos que para um leitor qualificar um texto é preciso que ele tenha para si um parâmetro, ou seja, é necessário que tenha uma bagagem de leituras para que possa associá-las e compará-las quando se deparar com uma nova obra. Nesse sentido, nos remetemos à Pennac quando proclama o que chama de “direitos imprescindíveis do leitor”, mais especificamente “o direito de ler qualquer coisa” (1993: 154). Segundo suas palavras, o jovem deve ler de tudo, tudo o que quiser, seja bom ou ruim. Não deve ficar limitado ao que é considerado como alta literatura. O discernimento entre uma boa literatura e uma má está diretamente ligado ao gosto, ao prazer que a experiência da leitura provoca. Está ligado às transformações que sofremos quando findamos uma leitura. Seguindo esta linha de raciocínio, não é possível definir o que é qualidade em literatura. Só nos é possível definir um conjunto

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de aspectos que devem ser considerados no ato da análise da qualidade literária de uma obra. Esses aspectos são construídos e reunidos por cada indivíduo ao longo de sua vida como leitor, fazem parte de seu capital cultural. Portanto, ao jovem também deve ser dado o direito de escolha, ou seja, compete a ele também o julgamento de um texto. Então, o trabalho de um professor deve ser mais o de informante, o de guia. Deve ser o trabalho de quem oferece um banquete de informações e opções para que meninos e meninas candidatos a leitores sirvam-se, à vontade. Se, quando jovens, exercerem esse direito, quando adultos, saberão definir o que é qualidade em literatura. Para Leahy, “o prazer pode ser um fator importante de mediação entre texto e leitor, levando gradualmente à reflexão crítica” (1999: 89). O que nos faz concordar, mais uma vez, com o fato de que o leitor adolescente deve ser exposto a todo tipo de literatura. Em artigo sobre as práticas pedagógicas de leitura no século XIX, Leahy remete- se à obra de quando fala que a leitura na escola deve dar atenção não só às palavras, mas também às entrelinhas do texto, numa permanente tentativa de ler o mundo através da literatura com o intuito de formar leitores reflexivos. Destaca da obra do educador o papel de “sujeito” que deve ser exercido pelas crianças na escola. Sendo sujeitos, e não objetos, é dado a eles o status de participantes ativos do seu próprio processo de letramento. Dessa maneira, o estudante se insere no processo deixando-se em evidência, ou seja, deixando que sua experiência existencial apareça. Entretanto, a experiência descrita é, ainda, um ideal a ser alcançado. A leitura e o estudo de literatura, segundo Leahy, foram e são usados como prática de “treinamento de sujeitos acríticos, educados para silenciar” (1999: 91), enquanto o ambiente escolar seria o melhor para o exercício e o desenvolvimento de “competências, a fim de que cada indivíduo seja capaz de perceber sua existência histórica e exercer a necessária ação política que o faz insubstituível na comunidade.” (idem). Para a autora, a escolha dos textos pelos educadores é de fundamental importância, pois evidencia desde o princípio a prática pedagógica que será adotada. Se a de condução da ultrapassagem dos limites pré-estabelecidos ou se a de adestramento do pensamento. A escolha das obras a serem estudadas e as práticas adotadas dizem respeito ao comprometimento social do professor.

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Seguindo essa linha, a autora chama atenção para a interdisciplinaridade do estudo da literatura e de sua importância em várias instâncias da formação de “sujeitos sociais”. “Literatura é uma forma de arte que usa a palavra, esse constructo social de representação da subjetividade, profundamente alicerçado em relações de poder.” (1999: 92) Além da palavra, a literatura é composta de elementos artísticos ou culturais, que a transformam em “realização escrita da criação ético-estética” (idem), criação esta que depende do outro, ou seja, do leitor, para comunicar, pois exige na leitura não só a decifração do código mas também que o leitor interaja com o texto. Leahy defende que a literatura se move sobre o “triângulo arte-palavra- sociedade” (1999: 93). À vista disso, da mesma maneira que pode ser um instrumento de conscientização e fonte de prazer e liberdade para o diálogo, pode servir para o aprisionamento e o controle social dentro do ambiente escolar. Um tipo de estudo de literatura didatizado e com fins de doutrinamento faz desaparecer o leitor, tirando a importância do valor artístico da obra. A ensaísta identifica dois modelos de educação literária utilizados nas sociedades modernas. Um liberal-humanista, em que os textos são escolhidos e estudados partindo de pontos pré-estabelecidos por ideais políticos. E outro dominante, o positivista, em que o elemento arte-cultura é ignorado, fragmentando a literatura em “pedaços de informação histórica sobre sua produção.” (1999: 94). No século XIX, o estudo da literatura associado ao prazer, à brincadeira e à fruição estava associado à transgressão e ao descontrole. A escola deveria ser o lugar da educação para o controle dos indivíduos e não para o seu crescimento pessoal e, conseqüentemente, da sociedade. Leahy acredita que este modelo é o utilizado até os dias de hoje em grande parte de nosso país, “oficialmente adotado em 1890 pela primeira república militar”. (1999: 95) Este modelo produz um conflito no estudo de literatura: a busca pela objetividade técnica e neutralidade científica vai de encontro à literatura como arte social que se realiza através da palavra escrita. Isto fica evidente na indução da prática da leitura com fins de exercício que culminam no preenchimento das chamadas fichas de leitura encartadas nos livros pelas próprias editoras, que indiretamente acabam por sustentar esse modelo. Vê-se que o estudo da literatura fica reduzido à busca por respostas para perguntas pré-fabricadas pelo sistema estabelecido e aceito pela

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sociedade, quando, a nosso ver, deveria questionar, estimular o pensamento, produzir cultura e conhecimento.

“O caráter utilitário das perguntas pós-texto elimina a atmosfera criada pela narrativa, trazendo os leitores/alunos bruscamente de volta à realidade. Mesmo que houvesse uma chance de catarse, prazer, identificação, fantasia ou pathos, as questões mostram que o texto não passou de pretexto didático, ou melhor, de parte da preparação para exames. A realidade está presa no círculo do dever reprodutivista e repetitivo, sem outro compromisso senão com o universo adulto de regras, normas e caminhos estreitos.” (1999: 109)

Citando Cecília Meireles quanto à rotulação de uma literatura para crianças, Leahy lembra que a grande escritora considera que essa deva ser uma classificação utilizada a posteriori e jamais a priori. “Seria mais adequado considerar literatura para crianças tudo aquilo que elas lessem com prazer e interesse.” (1999: 97) Esta citação nos leva além, pois consideramos que a boa literatura não precisa de rótulos ou nomenclaturas. Precisa, sim, de leitores. E, se sabemos que o leitor faz a literatura, concluímos que as designações instituídas pelo mercado editorial se mostram problemáticas. De acordo com os economistas Fabio Sá Earp e George Kornis, em estudo sobre a economia da cadeira produtiva do livro no Brasil, financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social, artifícios de classificação, como este, são instrumentos que o mercado editorial utiliza para destacar seu produto no intuito de apresentá-lo melhor ao consumidor ideal, pois, diferentemente de outros negócios, para escoar a enorme produção anual — no ano 2000, foram publicados no mercado mundial 167 títulos por milhão de habitantes (2005: 13) —, o do livro busca grupos segmentados de clientes que se concentram em torno de um nicho, ou assunto, específico. Isto porque, à luz do mercado, os leitores estão divididos em “aqueles que querem acumular livros — os bibliotecários — e os que querem ler” (idem: 15). Estes, por sua vez, estão subdivididos naqueles que lêem por necessidades profissionais e naqueles que o fazem em suas horas de lazer. Grande parte dos leitores está congregada na segunda categoria, e, como a oferta de opções de lazer é grande, a conseqüência é a distinção dos leitores em grupos, já citados. Este fato explica a existência de pontos de distribuição, venda e difusão do livro especializados, como as divisões de uma livraria e até a existência de algumas

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temáticas. Exemplos são as livrarias Folha Seca, no Rio de Janeiro, que dedica seu acervo ao futebol, à música e à história da cidade, a Pontes, em Campinas, a mais importante livraria sobre futebol do país e, finalmente, a Malasartes, também no Rio, que, desde o início de suas atividades, dedica-se à divulgação e venda de livros para crianças e jovens. Nesse momento, o mercado não fala ao leitor. Vemos então que as relações livro/produto e leitor/consumidor se alternam na prática editorial: ora a literatura, fonte de inspiração idealista, e seu leitor são as estrelas, ora o produto e seu consumidor são os que ditam as regras. Afinal, uma editora de livros é um negócio como qualquer outro, que precisa girar capital e gerar lucro. Este quadro nos faz refletir a respeito do caráter econômico dessa atividade cultural, a respeito do poder do negócio sobre a arte. Sabemos que existem editoras que trabalham com livros comumente classificados como de não-ficção. Sob esta nomenclatura estão livros didáticos, teóricos e técnicos. Neste caso, os livros serão sempre um produto e os compradores apenas consumidores, numa relação claramente estabelecida. Em se tratando de literatura, que o mercado abrevia para o termo “ficção”, o que está à venda é o conjunto formado pelo conteúdo artístico e pelo suporte adequado, ou seja, o livro de literatura. Neste contexto, uma obra passa a ser precificada pelo seu valor estético e pelo seu valor comercial. Como em uma equação matemática, quando o valor comercial de uma obra é inferior ao valor estético, os editores de hoje dificilmente se arriscam a publicar tal material. Entretanto, se estamos falando de uma editora de grande porte, os best-sellers que povoam seu extenso catálogo costumam sustentar as edições arriscadas, como, por exemplo, a publicação de autores novos e desconhecidos, de textos sem apelo às massas e dos tabel books, como são chamados os livros de arte, cujas edições coloridas geralmente têm custo muito elevado e geram alto preço de capa. Esta é uma regra do mercado já conhecida desde o século XVIII e citada por Denis Diderot em sua Carta sobre o comércio do livro, cujo manuscrito data de 1764:

“No mercado livreiro, um catálogo é a posse de um número mais ou menos importante de livros relativos a diferentes segmentos da sociedade, e escolhido de modo que a venda certa mas lenta de uns, compensada com vantagem pela venda também certa só que mais rápida de outros, favoreça o

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aumento dos bens iniciais. Um catálogo, quando não corresponde a todas estas condições, é ruinoso.” (2002: 35-36)

O caso da literatura rotulada como juvenil ou infantil ou ainda, para usar uma terminologia corrente, infanto-juvenil, não nos parece diferente. Como vimos, necessidades pedagógicas inspiraram o início da produção de textos para crianças e adolescentes em idade escolar, o mercado editorial absorveu essa demanda, especializando-se neste produto, desenvolvendo-o e, portanto, definindo-o como um nicho; e o mercado consumidor, literalmente, comprou essa idéia. Questionamo-nos, então, se publicar o que se assume como um livro de interesse do jovem não seria uma forma de limitar o processo de contato e de descoberta da literatura, ao invés de abrir-lhe os caminhos apenas guiando-o. Se não seria uma forma de condicioná-lo, de aprisioná-lo, ao invés de libertá-lo. Além disso, se não seria uma forma de contribuir para que esse tipo de livro seja considerado literatura menor. Ideal seria se o estudo da literatura fosse direcionado para formar leitores e não consumidores de livros. Leitores críticos, exigentes, transformadores, socialmente responsáveis e, acima de tudo, apaixonados pela arte. Arte da palavra, de fruição e prazer. Entretanto, se a designação não existisse, o objeto também não existiria. E esta é a questão crucial que conduz esse estudo. Então, concluímos que vale observar a literatura que o mercado quer direcionar ao jovem como literatura de formação, que discute as mais diversas questões pertinentes à vida do jovem leitor, porém de uma forma com que este possa interagir, na qual possa participar, em que possa influir. Percebemos que a chave da discussão sobre literatura rotulada — infantil, juvenil ou senil — não seja tanto a literatura em si, mas seu leitor, qualquer leitor, e as formas de chegar até ele, fazendo uso dos mais diversos canais de comunicação e artifícios literários na narrativa. Isto é o que tentaremos ver a seguir, quando estudaremos aspectos específicos da obra da escritora Lygia Bojunga Nunes.

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CAPÍTULO III Lygia Bojunga Nunes: livro, personagem, leitor

A admiração por um livro é o ponto de chegada, não de partida; os livros não são sagrados, nem a literatura deve ser fonte de temor. Roberto Cotroneo

Neste capítulo pretendemos analisar quatro novelas da escritora Lygia Bojunga Nunes a partir dos pressupostos teóricos descritos e das questões levantadas nos capítulos anteriores. São obras escritas após 1982, ou seja, depois do recebimento do Prêmio Hans Christian Andersen. Em LIVRO — um encontro (1988), Fazendo Ana Paz (1991), Paisagem (1992) e Retratos de Carolina (2002), encontramos uma Lygia introspectiva, preocupada com assuntos da existência e do ato de escrever, com a relação entre autor e personagem. Encontramos uma artista preocupada com o processo criativo. Interessa a nós estudar, analisar e relacionar estes textos.

Lygia Bojunga não é o tipo de escritora que hoje estamos acostumados a ver. Não visita escolas, não dá muitas entrevistas, vive reclusa entre Rio de Janeiro e Londres, não cria intimidade com seu leitor além das palavras que escreve. Lygia não promove sua obra, prefere defendê-la. Há cerca de quatro anos, em 2002, fundou sua própria editora, a Casa Lygia Bojunga, e deu “teto” aos seus queridos “filhos”. Sim, ela os trata como filhos. Um a um ela os viu voltar para debaixo de suas asas, fechando os contratos aqui e ali. Esse é um assunto do qual ela tem gostado de falar ultimamente. Quanto à promoção, a crítica especializada ficou encarregada desta tarefa. Praticamente todos os seus livros foram laureados com algum prêmio ou indicação a prêmio. Duas vezes já os recebeu pelo conjunto da obra: um consistente grupo de vinte e dois títulos (os dois últimos lançados neste ano), entre novelas, romances e peças de teatro, para pouco mais de trinta anos de estrada literária. Entretanto, o que a torna

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quase um personagem de si mesma é sua alma inquieta, como ela mesma diz, acompanhada, paradoxalmente, por uma personalidade que não gosta dos holofotes. Esse perfil pode enganar algum desavisado. Não vai a escolas? Não gosta de entrevistas? Deve ser algum escritor angustiado com a própria existência que quer a todo custo transferir para os leitores a sua dor. Sim, é possível. A diferença está no fato de Lygia declaradamente escrever para crianças e jovens, para os novos, para aqueles cujas angústias ainda têm o nome de descobertas. Seu coloquialismo na linguagem é capaz de falar todas as línguas, de chegar a todas as espécies de leitores. Comparando Lygia e Monteiro Lobato na obra De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas, Laura Sandroni nos diz:

“Em Lygia Bojunga Nunes está presente este registro informal, o coloquial usado não somente nos discursos direto e indireto livre mas também no discurso do narrador. Essas características, por outro lado, não se encontram de forma a empobrecer o texto. Muito ao contrário, a Autora usa de recursos vários, descobrindo múltiplos usos da língua e instaurando o espaço de liberdade e subversão que é o texto literário.” (1987: 90)

A escritora rompeu com um padrão culto da língua para a literatura infantil e juvenil. Acreditamos que essa fluência lingüística seja um importante fator de aproximação entre o jovem e sua literatura. A riqueza de seus títulos, no entanto, não está somente no coloquialismo de sua linguagem. Lygia criou, ao longo dos anos, um espaço de encontro com seu leitor. Essa é uma preocupação que perpassa toda sua obra. Ela mesma leitora voraz, Bojunga se dá ao diálogo em cada linha. Seus textos são como longas conversas com um interlocutor invisível. Esse pode ser considerado um padrão seu. A resposta do leitor é fundamental para ela, tanto que, na volta para “casa”, seus livros ganharam um capítulo extra, uma espécie de epílogo, intitulado “Pra você que me lê”. Nesse espaço, Lygia conta mais uma história, dessa vez a história da vida do texto que acabou de ser lido. As razões de sua existência, os caminhos que percorreu pelas editoras brasileiras e estrangeiras e as motivações que a levaram a escrevê-lo estão ali. Esta segunda história é mais uma manifestação da constante presença de metalinguagem em sua obra.

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Observamos isso na trilogia que Lygia desenvolveu para melhor compreender e melhor celebrar, ao mesmo tempo, a relação entre o escritor, sua escrita, seus personagens e seu leitor. Esta relação a intriga e fascina, e, a partir dela, notamos que conta histórias não somente pela necessidade inerente a todo escritor de escrever, mas também pela necessidade que todo artista tem de libertar suas idéias e criações em forma de obra de arte. Nesta trilogia, ela repete, de diferentes formas, o discurso de que seus personagens precisam se libertar dela e ganhar vida em livro. LIVRO — um encontro (1988) é um agradecimento de Lygia à literatura e a seu objeto, o livro. Em Fazendo Ana Paz (1991), a autora expõe seu processo de criação: o encontrar seus personagens e o ser encontrada por eles. Paisagem (1992), finalmente, mostra a relevância que o leitor tem para ela. Sandroni (2003: 226, 228-9), comenta essa trilogia em sua coletânea de resenhas publicadas no jornal carioca O Globo. Considera o título de 1992 como “uma ótima surpresa, pois nele Lygia retoma aspectos de sua criação quase abandonados em seus últimos livros.” Nesta trilogia, mas também em toda sua obra, percebemos a relação visceral que Lygia mantém com seus personagens. De um jeito ou de outro, discute esse compromisso ao longo das tramas, exercitando a metalinguagem e abusando deste artifício. De acordo com Coelho, apresenta-se aqui uma das características estilístico- estruturais da literatura contemporânea para crianças e jovens:

“Em função da crescente valorização que a nossa época dá à linguagem como fator essencial na formação da criança e dos jovens, a literatura contemporânea tem supervalorizado o ato de narrar — compreendido como o ato de criar através da palavra... Daí a utilização cada vez maior da metalinguagem, com histórias que falam de si mesmas e do seu fazer-se.” (2000: 153)

Tudo começa com a devoção da autora às possibilidades do livro. Em LIVRO — um encontro, acompanhamos momentos representativos da relação de Lygia com este objeto. Na primeira parte, estão o que ela chama de “casos de amor”. São seis situações vividas enquanto leitora, desde a infância até a vida adulta. Na segunda parte, as histórias sobre o ato de escrever, sobre o início deste percurso, antes de se decidir pela carreira de escritora.

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Os “casos de amor”, apresentados na primeira parte chamada “Livro — eu te lendo”, são as obras ou autores que Bojunga considera mais importantes em sua vida, os mais significativos. Ela diz:

“Eu tive seis casos. Casos de amor, eu quero dizer. E, para mim, um caso de amor é coisa de envolvimento muito intenso. Eu namorei bastante; flertei à beca; experimentei casamento; mas casos mesmo foram seis. (E o bom é que eu não estou livre de outros...)” (2004 (a): 15)

Ao longo do texto, fala sobre cada obra, seu autor, suas impressões sobre a leitura e o significado daquela experiência para ela. Um crítico literário italiano, Roberto Cotroneo, sob o pretexto de escrever uma carta para seu filho sobre o amor aos livros, também se aventura pela tarefa de discorrer sobre as obras que têm mais importância em sua vida, nesse caso quatro. Já no título da obra, Se uma criança, numa manhã de verão... (1994, edição original), uma clara homenagem a um escritor predileto, Ítalo Calvino. Os casos de amor de Lygia também nos fazem lembrar de Rubens Borba de Moraes, inveterado bibliófilo e apaixonado por livros, e de seu O bibliófilo aprendiz (2005, 4ª edição), que o autor definiu como uma “prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia aos que desejam formar uma coleção de obras raras, antigas ou modernas.” Falar do amor aos livros não é coisa tão original assim, nem é novidade. Lygia é mais uma a tratar do assunto. À sua maneira, deixa sua mensagem de amor em defesa do livro e da leitura como tantos outros. A diferença aqui, talvez seja que, como é considerada autora de livros infantis e juvenis, espera-se que seus leitores sejam pré- adolescentes, adolescentes, jovens, isto é, leitores que, em sua maioria, estão distantes desses objetos e da literatura. Sendo assim, sua proposta desperta atenção, pois nela se encerra o desafio de conquistar esse segmento arredio do público leitor. LIVRO — um encontro não é ficção, é um relato; que acreditamos ser, de certa forma, autobiográfico, tal qual os outros livros que compõem a trilogia. Este, porém, sem nenhum toque de ficção. O texto original, uma encomenda para o Dia Internacional do Livro, foi ampliado para um monólogo e encenado pelo Brasil afora. E acabou

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virando livro. Não é o roteiro da peça. É o texto de alguém que convida para contar histórias da própria vida, como a “prosa” de Rubens Borba. São casos interessantes, pois alguém que seja leitor certamente se identifica com a necessidade de ler a todo o momento um pedacinho que seja de um livro querido: “Assim, toda apaixonada, eu não queria largar o Raskolnikov: de dia, de noite, em casa, na escola, no ônibus, eu tinha sempre que estar abrindo o Crime e Castigo pra me encontrar com ele.” (2004 (a): 23) Alguém que ainda não seja, pode surpreender-se, ficar curioso e intrigado com situações como esta; ou pode achar tudo uma grande bobagem. Isto vai depender de cada leitor, ainda bem. Entretanto, o mais curioso dos casos nos faz lembrar Pennac e seu quinto “direito imprescindível do leitor”, o “direito de ler qualquer coisa.” Infelizmente sem revelar nem o nome nem a nacionalidade do escritor, Bojunga revela um episódio que chama de “vergonhoso” e “bem negativo”. (2004 (a): 27) Ela descobrira um autor da moda, que, de acordo com uma amiga, também boa leitora, escrevia “livros por receitas” e seu romantismo era “viscoso e pegajoso”. Mas Lygia não pareceu se importar muito e leu, um atrás do outro, todos os livros que encontrou do escritor, mesmo sabendo que “a tal receita não tinha nada de original” (idem: 29)

“A primeira vez que eu provei caiu mal. Me deu assim uma espécie de azia intelectual. Uma coisa tipo querer ler um bicarbonato correndo, feito o Drummond, feito a Clarice. Pra limpar. Mas tempos depois, engraçado, me deu vontade de provar de novo. E eu li o segundo livro de fulano. E o terceiro. E o quarto.” (2004 (a): 29-30)

Até que o “fulano” escreveu um livro que rompeu com o contrato estabelecido com o leitor: desviou-se do seu estilo original, do caminho percorrido por seus personagens na trama, com o qual o leitor já estava familiarizado. Vimos isso em nosso capítulo I, quando falamos de Bourdieu e do gosto como natural. Ela se sentiu enganada, traída, por este escritor, como comenta Ortega y Gasset em citação que reproduzimos no mesmo capítulo (p. 29). Lygia odiou o novo livro e conta que chegou a rasgá-lo. Nesse ponto de sua narrativa, ela dialoga com Iser e Jauss, quando reivindica daquele escritor “as entrelinhas”, ou espaços, para ela mesma preencher, e dá sua definição de leitor:

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“Mas, aos sete anos, um livro chamado Reinações de Narizinho tinha acordado a minha imaginação e eu tinha me tornado uma leitora, quer dizer, um ser de imaginação ativa, criativa. Eu, leitora, crio com a minha imaginação todo o universo que vem cifrado nesses sinaizinhos chamados letras. Eu percorro cada página no meu ritmo de leitora. Allegro. Andante. Allegro vivace. Sou eu que determino o ritmo que eu quero. Fora disso, a minha transa, a minha trama com quem escreve livro é tão forte, que sou eu também que vou preenchendo todos os espaços em branco — as chamadas entrelinhas. (...) E foi preciso esse caso (na realidade muito mais de desamor que de amor) pra eu me dar conta do que, desde então, se tornou tão claro pra mim: eu sou leitora, logo, eu participo intimamente desse jogo maravilhoso que é o livro; eu sou leitora, logo, eu crio.” (2004 (a): 33-35)

Bojunga valorizou o episódio com um livro ruim. Isto é importante para mostrar que o espaço de criação do leitor não deve ter limites e deve sempre ser preservado. O leitor deve se apropriar integralmente de uma obra, seja qual for. O desenvolvimento de seus critérios para eleger um título de qualidade dependem da sua bagagem literária, ou seja, do conjunto de relacionamentos, bem-sucedidos ou frustrados, com os livros que leu. Intitulada “Livro — eu te escrevendo”, a segunda parte de LIVRO — um encontro mostra o começo da relação da autora com a palavra escrita por ela. Se antes vimos como Lygia lidou com a palavra escrita de outros escritores, agora ela nos conta os momentos de descoberta da sua própria capacidade de escrever, de imaginar, criar e registrar para que outros leiam suas idéias. Este segmento do livro vai dizer muito de características mais específicas do texto da autora, sendo assim, vamos abordá-lo mais detalhadamente no próximo capítulo. Dando continuidade à análise da trilogia, chegamos a Fazendo Ana Paz, originalmente publicado em 1991. Este é, essencialmente, um livro sobre o processo criativo, sobre o intenso convívio entre escritor e personagem, até o ponto final.

“A necessidade de falar mais dramaticamente do ato de escrever me fez continuar nesse caminho e levantar uma personagem chamada Ana Paz. O percurso que eu fiz com a Ana Paz foi difícil, eu não enxergava bem o caminho, tropecei e parei muitas vezes, mas ele me levou a um livro que eu chamei Fazendo Ana Paz. E me levou também a querer continuar ainda na mesma estrada.” (2004 (b): 8)

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Esta obra é também um relato, como LIVRO — um encontro. Entretanto, o que a diferencia de sua antecessora na trilogia é o fato de ser um relato sobre a tentativa de criar uma ficção. Bojunga diz que foi arrebatada pelo aparecimento de Ana Paz, então com oito anos. A cena apareceu pronta. No entanto, nada mais surgiu por um bom tempo. E foi assim durante toda a convivência com esta personagem e sua história. Outras cenas iam e vinham. Ana Paz aos dezoito, se apaixonando à primeira vista. Aos oitenta, retornando à casa de sua infância no Rio Grande do Sul e brigando com o filho por causa disso. Ana Paz tentando falar da pai, cuja morte assistira ainda criança e por quem nutriu grande afeto. Para Lygia, este foi um dos personagens mais difíceis de criar. Na narrativa, ela conta que ele escapou-lhe várias vezes e que, por isso, chegou a abandonar a história de Ana Paz para dedicar-se a outro projeto; acreditava que a personagem não poderia ser retratada sem o Pai. Até que, em um tipo de conversa entre criatura e criadora, Ana Paz convence sua autora de que seu destino talvez seja ficar “inacabada”, como Lygia a considerou. A personagem reivindica o direito de “viver num livro! livre!” (2004 (b): 87). A escritora finalmente liberta Ana Paz, exatamente do jeito que ela foi concebida. Essa conversa com sua própria personagem, fazendo dela uma pessoa de carne e osso diante de si, evidencia a maneira como Lygia encara a presença desses seres: o respeito que tem por eles, o carinho e, às vezes, a submissão. Contudo, após a leitura de Fazendo Ana Paz, como vimos, a preocupação da autora não era propriamente a ficção. Bojunga estava preocupada com o processo e com tudo em torno dele: as dificuldades, os prazeres, as descobertas, o trabalho contínuo. Observamos que este é um livro que Lygia parece escrever para si, não para o leitor. A história de Ana chega a prender nossa atenção, entretanto, os cortes da autora, quebrando a trama, parecem convites para que esqueçamos dessa personagem e nos concentremos na escritora, que passa por adversidades para concluir sua história. A escritora é a protagonista, Lygia Bojunga é o centro da trama. Aqui, vemos que a imaginação que Lygia preza e a liberdade que busca e da qual tanto fala só servem para levá-la de volta a si mesma, como num divã de analista. Paisagem, de 1992, deveria ser a novela dedicada ao leitor. No entanto, essa figura aparece na trama apenas para corroborar com a necessidade da autora de encontrar um caminho seguro e satisfatório para sua história.

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Lourenço se considera um Leitor de Lygia Bojunga. Sim, com letra maiúscula:

“acho que ser Leitor é uma ocupação maior, e acho também que se um Leitor se liga numa escrita do jeito que eu me liguei nos teus livros é porque existe uma coisa chamada afinidade, é ou não é?” (2004 (c): 6)

A autora cria para si uma espécie de fã. Mas não aquele que apenas idolatra o ídolo e alimenta sua vaidade. Lourenço é crítico. Gosta de melhorar os finais das histórias da escritora preferida. Talvez aí encontremos certa dose de humildade, já que Lygia admite, pela voz de um personagem, que seus livros poderiam ser melhores do que são. Lourenço é um fã que tem “afinidades”. Será que esse é o leitor ideal de Bojunga, o que tem afinidades com ela? O que está sempre a seu favor, mesmo quando tece críticas e comentários? Um leitor faz sua própria leitura de uma obra sem necessariamente conhecer o autor. Sua matéria é o texto. E se o texto expõe quem o escreveu, como acreditamos ser o caso de Lygia Bojunga e de seus livros, ainda assim o que resta ao leitor é um “novo livro”, resultado do texto do autor adicionado ao texto produzido por ele. Esse produto tem a ver com a subjetividade do leitor que atua durante a leitura e que não deve ser confundida com afinidade com o autor. A relação afetiva pode até vir a existir, mas estará sempre pautada neste produto da soma de autor mais leitor. O leitor é também responsável por essa relação, inclusive naquela que configura idolatria. O rapaz conta a Lygia, em intensa correspondência, que sonhou com uma paisagem que, para ele, parecia ter saído de um texto dela. A coincidência da história, e a situação que os aproxima, é que a paisagem é idêntica a uma que Lygia usa no conto em que está trabalhando no momento. Lá na frente de mais este relato, sabemos que Lourenço lia as histórias de Bojunga para uma criança, aparentemente implicante, mas que gostava dessa prática: a irmã de sua namorada Renata, que ele apelidou de Monstrinho. E ela fora a autora do desenho da paisagem que Lourenço levou para um sonho particular e que entregou à Lygia nas cartas. A explicação do rapaz para a menina ter captado tão bem a escritora está justamente no fato de que ela também já a conhece por ser sua ouvinte. Na página 85,

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Lourenço diz: “eu sou um Leitor tão competente que o Monstrinho virou tua ouvinte, e agora ela tá feito o João, se ouve um pedaço de história escrito por você ela logo sabe que é você (...).” Esse leitor tem um alto nível de influência no conto de Lygia. Ela transporta para sua história o pai do rapaz e o Monstrinho. E o próprio Lourenço, que, claro, leu o conto e não se satisfez com o final. Como leitora, antes de mais nada, Bojunga defende a tese de que a relação com uma obra deve ser de troca. Por essa troca compreendemos que o leitor leva algo da leitura que fez e deixa algo para o escritor. Mas como deixar algo para o escritor se a relação se estabelece através no texto, de acordo com o que já pontuamos? Acreditamos que Lygia quis materializar essa relação através de seu personagem. Numa conversa com a namorada, explicando por que ela não era uma Leitora e ele, sim, um “Leitor pra escritor nenhum botar defeito” (2004 (c): 53), Lourenço define o que é literatura:

“(...) essa coisa de escritor criar um personagem e fazer a gente acreditar nele feito coisa que toda a vida a gente conheceu o cara, ou a cara, Literatura é fazer esse personagem inventado virar um espelho pra gente, é fazer a gente ficar puto da vida se o personagem faz um troço que a gente acha besteira, mas em compensação é fazer a gente entrar numa boa se ele faz um troço que a gente também quer fazer, literatura é o jeito que um escritor descobre pra passar isso pra gente dum jeito que é só dele, e quando um dia a gente afina com um jeito dum escritor inventar, com jeito que é o jeito dele escrever, nesse dia a gente vira Leitor dele e quer ler tudinho que o cara ou a cara escreveu, mas quando eu digo a gente eu tô falando Leitor, feito eu, Leitor de letra maiúscula, e aí então, sabe Renata, a gente fica tão ligado nesse escritor que é capaz até de intuir o que ele vai escrever...” (2004 (c): 53-54)

Nesta fala de Lourenço, ficamos sem saber se o que a autora descreve é o seu leitor ideal ou se revela como ela é como leitora. Recordamo-nos da definição de leitor que está em LIVRO — um encontro e que já reproduzimos neste capítulo. Nela está um leitor todo imaginação, todo exigente de seu espaço; um leitor ativo. Em Paisagem, este leitor é passivo e espera que o escritor lhe dê todos os elementos, é um leitor que procura um espelho, ou seja, um instrumento que não lhe exige trabalho, esforço diante da obra. Será que este é realmente o Leitor com letra maiúscula? Podemos supor, pelas definições que Lygia nos dá em suas obras, que talvez o leitor ativo seja aquele com mais bagagem literária, mais amadurecido intelectualmente,

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e que o leitor passivo seja o jovem, que busca segurança e estabilidade naquilo que lê, que procura o texto familiar que não lhe demanda trabalho de interpretação. No nosso entender, tal distinção não procede porque, passivo ou ativo, algo do espectador da obra de arte, algo do leitor, precisa ser transferido para a leitura, até e principalmente, para que ele se veja diante de um espelho, por exemplo. A subjetividade é inerente ao ato da leitura, da contemplação do objeto artístico. Certo nos parece que, embora Bojunga tenha escrito três livros sob o pretexto de falar sobre assuntos específicos, ela mesma esteve no centro de cada história/relato. Sua imaginação foi usada a serviço da sua libertação de seus próprios conflitos enquanto artista. Um leitor que se depare com estes textos terá que decidir se acompanhará a história da autora e não a de personagens. Em Retratos de Carolina (2002), seu livro mais recente, a autora não poderia ter sido mais explícita ao traduzir a ligação com sua personagem e sua relação com o ofício de escrever. Dessa vez, porém, diferentemente da trilogia e de forma mais interessante e rica. Cada capítulo é uma descrição de um momento da vida de Carolina, a partir dos seis anos e chegando aos vinte e cinco. Esses “retratos” mostram as situações que levaram ao amadurecimento da personagem, mostram seu caráter, sua ingenuidade, sua pureza de espírito, bem como, neles, o leitor pode acompanhar suas frustrações e suas conquistas, seus medos e seus prazeres. Depois de um episódio doloroso para sua personagem, Lygia finaliza o livro deixando Carolina numa cena que sugere recomeço, a retomada do seu caminho, e ponto final. Entretanto, já no “Pra você que me lê”, ora também chamado de “Segunda parte”, a escritora avisa que vai conversar “em feitio de história-que-continua” (2002: 163). Aqui, ela contará ao leitor como Carolina a fez escrever um novo e último retrato dela. Motivada pela criação de sua própria casa editorial, a autora passa a encarar esse desafio como uma tentativa de integrar os personagens com seus espaços e de fazê-la e a eles passarem, “‘fisicamente’, a morar juntos.” (idem: 164) Bojunga começa dizendo que reencontrou Carolina num viagem que fizera para sua casa de praia, o Cata-vento, no litoral norte do estado do Rio de Janeiro. A cena dá a entender que isto sempre acontece com a autora, como se ela pressentisse a chegada de algum personagem:

“um dia desses, no Cata-vento, ouvi a porta se abrindo e fechando lá embaixo. Pensei, qual deles está chegando? Mas quando escutei a cadência

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dos passos subindo a escada eu logo senti que era Carolina. Ela parou na porta e passou um olhar atento pela minha mesa de trabalho: — Você estava escrevendo? — Na cabeça; quer dizer: ‘tava pensando. — Em mim? Hesitei. Ela veio chegando pra perto: — Será que dá pra gente conversar um pouco? — Claro, ué. Ela puxou uma cadeira pra junto da mesa e sentou: — Desde que você botou aquele ponto final em mim eu estou querendo esse papo contigo. Mas eu sei que, quando eu resolvi reconstruir a minha vida com essa minha mão aqui — espalmou a mão sobre a mesa — você logo se envolveu com o Discípulo, e eu não quis, de saída perturbar o affair de vocês dois. — Meio que riu.” (2002: 164-165)

A segunda parte toda serve para Carolina esgotar seus argumentos e convencer sua autora a retratá-la mais uma vez. Sua queixa é que todos os seus retratos anteriores envolveram alguma frustração ou decepção, o que, segundo ela, é muito negativo. Tudo que quer agora é um retrato positivo. Bojunga pensa diferente, no entanto, dá ouvidos à insistente e teimosa personagem. Como Lygia não passa longas temporadas nessa residência, Carolina é obrigada a esperar cada volta para continuar seu trabalho. Enquanto isso, vai contando ao leitor um pouco de como é Lygia Bojunga Nunes. Neste momento, a autora volta aos assuntos da trilogia e coloca na voz da protagonista suas idéias sobre escrita, livro, personagem e processo criativo. Deixa transparecer também um pouco da angústia de colocar um ponto final em cada história. Curioso e, ao mesmo tempo, prova da intenção da autora, é que Carolina parece conhecer toda a vida de Lygia antes mesmo de ser criada, como vemos em uma fala sobre um sítio antigo, a Boa Liga, e sobre a construção do Cata-vento:

“Ela foi s’embora e me deixou aqui. Melhor que tivesse me deixado na Boa Liga: lá a gente olha de cada janela e só tem verde-que-te-quero-verde: montanha, vale, floresta; é um lugar retirado, estradinha de terra, ainda não tem poluição visual.” (2002: 170)

“Há muitos anos atrás, quando ela conheceu São Pedro d’Aldeia, ela se encantou com essa lagoa aí: tão imensa, tão gostosa pra nadar, tão aberta pro mar e pros pescadores, águas (naquela época) tão limpas. Planejou uma morada na colina mais alta de São Pedro, planejou um barquinho pra explorar a lagoa, e quando visitou uns amigos que tem lá (o dia era claro e sem névoa), apontou a outra margem da lagoa, lá longe, e quis saber o que que tinha lá.” (2002: 170-171)

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Nessa conversa entre autora e personagem, entre Lygia e Carolina, mantida ao longo de meses de idas e vindas ao Cata-vento, nos perguntamos qual o limite entre ficção e realidade. Parece-nos que Bojunga estabelece um jogo com sua personagem, no qual convida o leitor a participar e se envolver no enigma do processo criativo — real e inerente a qualquer criação — dessa ficção. Sendo assim, no fim dessas contas, a escritora não conversa com ninguém a não ser com ela mesma. Usa Carolina para guardar suas próprias dúvidas de criadora. Isso fica claro na seguinte passagem, na voz da criatura: “Foi sempre assim: ela custa demais pra se separar da gente de vez.” (2002: 191). Foi o que aconteceu também nos os livros da trilogia. Porém, agora, já existe um romance criado. O debate consigo vem depois, como uma avaliação do resultado. O recurso ficcional do diálogo com a personagem favorece ainda uma certa distância entre criador e criatura, distância esta necessária para uma visão mais ampla da obra. Uma fala de Lygia (2002: 180), em uma das longas discussões, reflete essa questão: “— Mas eu sei que você vai. Eu te conheço muito bem, Carolina, eu sei que quando você empaca, empaca; e agora você empacou nessa história de que eu tenho que te retratar outra vez.” Seguindo esse raciocínio, sabemos que era a própria escritora que não estava satisfeita com o final da história de sua personagem. Mesmo que, durante a extensa conversa que tiveram, Carolina tenha parecido ao leitor uma pessoa real, com personalidade própria, forte, decidida e independente da criação de Lygia, ela se contradiz e admite a dependência. Podemos observar isto no trecho a seguir:

“Ela pensa que eu vou desistir mas eu não vou: quando ela voltar começo a martelar a mesma tecla: ela tem que fazer mais retratos de mim. Mas até ela voltar o que que eu fico fazendo aqui nessa casa? Não adianta querer planejar a minha vida, o meu trabalho, nada! Eu ainda dependo dela pra tudo.” (2002: 173)

O ápice da demonstração de seu processo criativo, a nosso ver, está no momento em que Carolina “rouba” para sua própria história o personagem em que Lygia está trabalhando para um peça de teatro, o Discípulo. A moça percebe, logo no reencontro, reproduzido anteriormente, que Lygia já tem um novo personagem, alguém com quem se envolver além dela. Uma de suas reivindicações era um amor bem-sucedido,

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diferente do que foi retratado, então começa a se interessar por este novo homem. Lygia hesita em revelar as características do Discípulo, pois, por superstição, crê que quando fala dos personagens que ainda está criando eles podem escapar dela, eles podem se perder. Mas, sedutora, Carolina insiste e consegue o máximo da informação que até então a autora tinha sobre ele. Nas ausências da escritora, Carolina se vê sozinha na casa e aproveita o tempo para falar de Lygia, para reafirmar os argumentos a seu favor e para fantasiar a respeito do novo retrato, um retrato que ela queria que fosse de amor. O objeto dessa fantasia passa a ser o Discípulo e Carolina escreve um diário onde deixa impressas todas as cenas que imaginou para ela e o novo personagem. Quando Lygia volta à casa de praia, depara-se com o diário e o lê, sem resistir àquela traquinagem da moça. Então, compreende:

“Foi só abrir o portão que Carolina veio correndo ao meu encontro. Me abraçou, me beijou e logo quis saber: — Dessa vez você trouxe ele, não trouxe? — Quem? — Ora. — O Discípulo? — Quem mais? Fiquei um tempo olhando pra Carolina, pensando devo? ou não devo? contar logo pra ela o que aconteceu dentro de mim depois que eu li o diário. Resolvi que devia, sim, devia dizer: — Trazer o Discípulo por quê, se você já se apossou dele? (...) — Ah!, Carolina, esse teu lado me escapa; sempre me escapou. — ? — Esse teu lado fantasioso, eu quero dizer. Não satisfeita de ter fantasiado um amor impossível... — Impossível não sei porquê. — ... você fantasia que essa fantasia vai me fazer te retratar do jeito que você quer. O riso foi indo s’embora; deixou no olho dela uma decepção: — E não vai não? — Mas, Carolina, te retratar pra quê, se você já se retratou? Agora só falta o título: Auto-retrato aos 26 anos. (...) — Ah, ‘pera lá! A única coisa que eu fiz foi rabiscar um diário que... — ... que agora é parte da tua história... — ... que fala de uma vontade, que tece uma fantasia... — ... e que dá um feitio diferente ao Discípulo que eu inventei. — Não foi por mal. (...)

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— Eu não preciso sumir com ninguém porque eu não tenho mais Discípulo: você trouxe ele pra tua história. E se eu não tenho mais Discípulo eu não tenho mais peça. Foi isso que aconteceu, Carolina, só isso: a minha peça já era. Carolina ficou me olhando perplexa. Depois de um tempo perguntou: já era? A tua peça já era? Feito coisa que não dava pra entender o que eu tinha dito. — O Discípulo não é onipresente, não é? Ou bem ele está lá na minha peça, ou bem ele está aqui na tua história. — Fui sentar no degrau da porta. Carolina sentou também, sem tirar o olho de mim. — Não era à toa que eu relutava tanto pra te falar dele; não era à toa que eu deixava ele sempre no Rio quando vinha...” (2002: 202-204)

Lygia nos faz entender que perdeu uma idéia para uma peça de teatro porque deixou que a história de Carolina ainda existisse dentro dela e interferisse no processo de criação de um novo trabalho. Ou, para nos reservar o direito à dúvida, esse “roubo” e todo o diálogo podem não ter passado de uma farsa, uma encenação. Podem ser um movimento da escritora dentro do jogo proposto com o leitor, como forma de levá-lo a refletir, junto com ela, sobre o ato de escrever. Essa incerteza abre espaço para o leitor, também um interlocutor da autora, acompanhar ou não esta parte da ficção. Vamos além: na medida em que Lygia coloca no plano da ficção uma discussão com a protagonista sobre o futuro de sua criação, ela passa a ser igualmente personagem. O novo retrato está dentro da história de sua feitura, que, por sua vez, está dentro do relato de todo esse processo. Bojunga retorna à trilogia da qual falamos no início dessa análise, onde há uma escritora protagonista: a que declara amor aos livros, a que busca e ao mesmo tempo é encontrada por sua personagem e aquela que estabelece uma relação de cumplicidade com um leitor que lhe manda cartas. Seguindo o que verificamos com Ortega y Gasset, aqui Lygia provoca e questiona não só sua arte mas também os leitores, numa tentativa de transformação. Em Fazendo Ana Paz, algo nesse sentido havia sido feito, entretanto, agora estamos no plano da ficção. É o que nos parece, já que Lygia não nos diz que escreve Retratos de Carolina por querer falar “mais dramaticamente” do ofício de escrever. Há também na trilogia uma escritora cujo espelho são seus livros. Voltando a LIVRO — um encontro, identificamos trechos em que podemos confirmar as características autobiográficas de suas obras. Logo na página 12, quando explica como surgiu a idéia e o texto da obra, Lygia procura uma definição para este novo trabalho e conclui: “sem saber me definir com precisão eu acabei saindo pela tangente: ‘Livro’ é um encontro comigo.”

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Fica claro que, a partir deste livro, e da trilogia, se lançarmos um novo olhar sobre suas obras poderemos encontrar mais da escritora do que imaginamos. Nas vozes de seus personagens estão seus ideais políticos e sociais, está a angústia com o próprio ofício, estão traços de sua personalidade, sempre em busca de renovação e de respostas para a existência. Em trechos como os que reproduzimos a seguir, pode-se verificar essa hipótese.

“Era uma atmosfera tão fantasticamente opressiva, que o ar, às vezes, me sufocava. Isso era o Poe. Agora eu. Eu mergulhei de cabeça. Por alguma razão que até hoje eu não cavei muito bem (nem pretendo), eu precisava respirar aquele ar.” (LIVRO – um encontro, p. 25)

“O que eu sei é que foi Cartas a um Poeta que me mostrou que o escritor é o livro que ele escreve.” (idem: 36)

“Mas eu queria criar uma personagem diferente de mim, achei melhor ela ser homem: eu tinha planejado escrever a história na primeira pessoa, e ela sendo mulher eu corria muito o risco de acabar meio confundida, achando até que ela era eu.” (ibidem: 74)

“O luxo de corrigir e reescrever, somado à sensação de liberdade me rondando, me roçando, me envolvendo, fez uma impressão tão forte dentro de mim, que eu saí desse primeiro encontro pressentindo que fazer literatura ia ser para mim uma imensa aventura interior. E desde esse dia eu confundo as palavras livro e livre: me acontece muito querer dizer uma e sair a outra.” (op cit: 90)

“Por isso que, quando há pouco, eu me lembrei daquele dito mulçumano, eu me lembrei logo dela: cada uma dessas moradas a que ela dá forma, depois vai formando ela. Ela e a gente. É meio esquisito, mas é assim.” (fala da personagem Carolina sobre Lygia em Retratos de Carolina, p. 178)

Lygia Bojunga não se cansa de falar de seu fascínio pelo mundo dos livros. Sempre conta que, antes de aprender a ler, fazia destes objetos tijolos para casas que construía e aonde gostava de brincar de morar. Depois, como leitora, passou a morar dentro de cada obra lida. Esta história está no texto “Livro: a troca”, a já citada encomenda para o Dia Internacional do Livro que originou a trilogia. Um debate sobre Literatura Brasileira, que aconteceu em 2005 no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, foi mais uma oportunidade para a escritora

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dizer que “mantém uma relação passional e física com o livro, não intelectual.” Disse que tinha começado a escrever para fazer parte desse mundo de que tanto gostava, para se transportar. Ainda neste debate, pudemos ouvi-la dizer que a escolha da literatura para sua vida foi uma escolha pela liberdade. E essa busca passou a ser o estímulo para sua escrita. No ambiente da ficção, Lygia Bojunga então poderia ser quem quisesse, poderia ter quantas vozes desejasse, poderia defender através das palavras suas idéias e ideais e poderia compreender sua escrita e o mundo dos livros. Sobre essa disposição, Coelho comenta:

“Tornando-se uma das vozes mais ricas da literatura questionadora de mundo que caracteriza o novo na criação literária, Lygia, em cada livro, enfoca um problema específico da existência humana, através das relações fundamentais que estabelecem entre o eu e o outro. Em todos eles, a imaginação criadora (lúdico-crítica) é o motor-geratriz da efabulação. A consciência da palavra como construtora do real é a pedra angular que sustenta o seu mundo de ficção.” (1995: 655)

Neste mesmo debate, Lygia demonstrou um certo desconforto com a classificação do público de sua obra. Segundo suas palavras, sua escrita é espontânea, não intencional; é uma escrita pela convivência com os personagens. Acredita que sua obra desperta o interesse do jovem leitor porque deixa clara sua busca pela liberdade em direção à imaginação, lugar onde não há regras para a existência. Sandroni confirma esta percepção:

“A partir do tema principal, a própria infância, Lygia Bojunga Nunes constrói narrativa impregnada de riquíssima fantasia que tem por base elementos tomados do real e como objetivo discutir os comportamentos sociais frutos da ideologia dominante sem, no entanto, deixar de lado sua função lúdica.” (1987: 73)

Lygia surge para a literatura no início da década de 1970, tempo em que alguns artistas preferiram se calar. Ela não. Lajolo e Zilberman, por exemplo, falando sobre a linha social da narrativa infantil brasileira, consideram as obras de Lygia Os colegas (1972), Angélica (1975), A bolsa amarela (1976), Corda bamba (1979) e O sofá estampado (1980) como de cunho social e libertário. (1988: 127) Contudo, as obras que nos interessam nesse momento não pertencem a este período. Nos textos que ora

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estudamos, as questões sociais ainda continuam presentes, mas não em foco. Temas que dizem respeito ao ofício de escrever são mais freqüentes agora. Dito assim, isoladamente, o leitor deste trabalho pode achar que estamos falando de alguém que escreve preferencialmente para adultos. Um engano. Desde o início de sua carreira, Lygia está associada ao público infantil e juvenil. É o que atestam os críticos literários e as instituições que conferem prêmios. Recordando Coli em nosso primeiro capítulo, Bojunga é considerada uma artista da palavra para crianças e jovens por aqueles que detêm o discurso sobre a arte. Podemos observar isso em Coelho quando nos diz:

“A pujança e versatilidade de seu espírito ou élan criador vai-se revelar definitivamente na área da literatura destinada principalmente aos pré- adolescentes e adolescentes. Estréia em 1972, sendo acolhida de imediato com grande entusiasmo, tanto pelo público leitor, quanto pela crítica. Desde então, vem produzindo com regularidade uma obra em permanente evolução e que já se consagrou como das mais significativas no panorama da literatura brasileira.” (1985: 655)

A escritora costuma comentar em suas poucas declarações públicas que não sabe quem lhe deu esse “rótulo”. Lygia gostaria de ser apenas uma escritora, entretanto, as primeiras obras a marcaram de forma definitiva. À época do lançamento de Retratos de Carolina, comentou que este não era um livro para crianças. Todavia, seu conteúdo não o impede de ser apreciado por leitores adolescentes. Os retratos, como já colocamos, mostram a personagem Carolina em diferentes fases de seu amadurecimento e enfrentando toda a sorte de conflitos comuns ao universo dos jovens. Voltamos aqui ao nosso capítulo II, quando falamos do leitor e de sua bagagem cultural e literária. Podemos considerar que a crítica esteja sendo impertinente ao classificar Lygia como escritora para adolescentes, mas também acreditamos ser igualmente impertinente a postura da autora de tentar livrar-se deste estigma. Rotular um escritor e etiquetar suas obras é uma maneira de dar-lhes utilidade, ou seja, de limitar seus domínios. Se a crítica especializada, que sempre foi tão favorável a Lygia, diz que ela é uma autora para crianças e jovens, está, decerto, privando Lygia de uma gama de leitores outros, que não só os em formação. Os livros de Lygia são para todas as idades porque não são previsíveis, surpreendem os leitores. A própria escritora, quando questionada sobre o que é qualidade em literatura infantil e

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juvenil, nos diz que qualidade literária é “o toque que emociona, surpreende, faz rir, chorar, pensar e repensar, em suma: o toque que nos faz crescer.” (2005: 180) A trilogia interrompeu, sim, o trabalho ficcional de Bojunga, afastando-a de seu público cativo, que é diferente de ser público-alvo. Na abertura do “Pra você que me lê” de Paisagem, ela escreve:

“Dos meus livros menos lidos estão os três que esmiúçam a relação leitura/escrita (...), mas eu, que venho passando a minha vida às voltas com livros, tenho uma afeição especial por eles.” (2004 (c): 109)

A propósito do lançamento de Seis vezes Lucas, de 1995, Sandroni comenta esse afastamento e a reaproximação de Lygia com os leitores juvenis:

“O recém-lançado Seis vezes Lucas marca o reencontro de Lygia Bojunga Nunes com o público jovem, mais interessado em ver na ficção a confusão dos sentimentos da adolescência do que as questões do processo de criação, tema das últimas obras da autora. Lygia parecia voltar-se na direção do leitor adulto (...).” (2003: 271)

Por que dizer que um escritor se volta para leitor “A”, “B” ou “C”? Pensamos na hipótese de essa direção representar uma função social atribuída àquela obra de arte. Se é necessário que existam obras e artistas dedicados ao público infantil e juvenil por uma demanda da sociedade e do mercado editorial que precisam encontrar formas de se comunicar com este segmento, então os críticos, os detentores do discurso sobre a arte, reconhecem, identificam e etiquetam os produtos. Afinal, são os produtos que têm função, não as obras de arte. Como colocamos em nosso primeiro capítulo, Bourdieu e Ortega y Gasset nos dizem que a obra de arte exige uma percepção guiada por uma intenção estética, uma percepção de sua forma e não de sua função. Na citação acima, Sandroni parece celebrar a volta de Lygia ao seu público original e, ao mesmo tempo, parece desprezar o que classifica em poucas palavras como uma tentativa de falar ao público adulto. Coelho, em comentário também transcrito neste capítulo, na página anterior, é mais branda quando usa o advérbio “principalmente” para falar do público infantil e juvenil da autora. Mas, ainda assim, pontua. Em contrapartida, como vimos, Bojunga diz não saber quem lhe atribuiu o rótulo de escritora de público infantil e juvenil e procura negá-lo. Contudo, em Paisagem,

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percebemos um sutil desdém a “ela-não-sabe-quem”. É numa fala de Lourenço, sobre o fato de ter transformado o Monstrinho em ouvinte de Lygia e como isso era um grande feito:

“e tem outra coisa, foi só aí que eu saquei que não é resenha, não é publicidade, não é nada disso que espalha o que um escritor escreve, é a gente, Leitor, a gente espalha até sem querer, olha aí o meu caso com a irmã da Renata (...)” (2004 (c): 85)

Acreditamos que nestes discursos sobre o que é literatura e sobre o que é um leitor, distribuídos pela trilogia, estejam “recados”, ou mesmo desabafos, de Lygia para a crítica especializada, que, segundo ela, teima em colocá-la — e deixá-la lá — no rol dos autores infantis e juvenis. Esta campanha, e não a fundação da própria editora, talvez seja a verdadeira intenção na defesa de sua obra. Infelizmente, o leve “ataque” à crítica especializada só depõe contra a própria Lygia, porque demonstra que ela age conforme aqueles a quem se opõe: usa igual moeda de negociação. Portanto, ambas as partes reconhecem e trabalham com o rótulo. Ainda no debate do qual falávamos anteriormente, Bojunga revelou que optara por escrever para crianças apenas por acreditar que seria mais fácil, pois não se achava capaz de fazer alta literatura. Paradoxalmente ao seu raciocínio, foi justamente essa primeira parte de sua obra que lhe rendeu o que talvez seja o maior prêmio que um escritor dedicado à literatura para crianças e jovens possa receber: o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel para este tipo de literatura e conferido pelo Internacional Board on Books for Young People (IBBY). Naquela declaração notamos algum preconceito com o leitor em formação. Na ocasião, Lygia igualmente contou que, depois daquele início, passou a escrever sem atentar para o público ao qual se destinariam seus textos, embora continuasse sendo relacionada apenas às crianças e aos jovens. Essa manifestação só vem a enfraquecer sua tentativa de desvencilhar-se do rótulo de autora de livros infantis e juvenis e também contribui seriamente para que a literatura infantil e juvenil seja considerada menor, seja desprezada e desvalorizada. Em compensação, em um livro que questiona o que é qualidade em literatura infantil e juvenil, onde há artigos de vários escritores fiéis a este público, o cerne da questão gira em torno do conteúdo dos textos e não da idade de quem os lê. Pedro

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Bandeira, conhecido e reconhecido pela série policial “Os Karas”, entre outras obras, escreve, jocoso:

“Bom, Literatura é outra coisa. É farra, é diversão, é sonho, é pausa para alimentar a alma, para fortalecer as emoções, para pensar com o coração, para raciocinar com o fígado, para entender com pâncreas” (2005; 183)

Reafirmamos aqui nossa posição marcada no capítulo II deste trabalho: ideal seria se o único rótulo atribuído à literatura fosse o de qualidade e se existisse somente uma categoria de leitor, a dos bons. Como essa não é a realidade que enxergamos, preferimos continuar nosso estudo na tentativa de melhor compreender e lidar com a literatura nas diversas formas em que se apresenta hoje. Apesar da nossa crítica em relação a esta trilogia e à necessidade de a escritora Lygia Bojunga falar de si mesma, reconhecemos que sua obra alcança o valor mais alto entre o que aceitamos chamar de Literatura Infantil e Juvenil. Sendo assim, findamos este capítulo para iniciarmos aquele em que falaremos de aspectos mais específicos de seus livros, quando voltaremos à discussão sobre a presença de didatismo neste tipo de literatura, na contemporaneidade.

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CAPÍTULO IV Lygia e o jogo da língua

A modo e tempo que cuide bem: o leitor é nosso cúmplice, o nosso olhar de viés, o mocinho e o bandido de toda essa história. Stela Maris Rezende

Depois de estudar o perfil de Lygia como escritora e os reflexos em sua obra, voltamos nossas atenções a dois livros específicos: O meu amigo pintor (1987) e O abraço (1995). Mesmo distantes quase uma década um do outro, são textos que têm interseções e vão nos ajudar a entender por que Lygia Bojunga Nunes é considerada uma das melhores autoras de livros juvenis da atualidade.

Como comentamos no capítulo anterior, na segunda parte de LIVRO — um encontro, intitulada “Os encontros”, Lygia Bojunga descreve o início de sua relação com o ato de escrever: a descoberta da palavra que surge do punho infantil, os cadernos que eram alimentados de acontecimentos como num diário, os árduos exercícios de redação, o uso do dicionário, os primeiros personagens e a decisão de fazer da escrita ofício para a vida toda. Esse é um momento de sua obra que mostra Lygia nos primeiros passos de sua trajetória, que ajudaram a delinear seu estilo. Ao falar sobre o primeiro contato com a palavra escrita, Bojunga nos faz lembrar de Pennac, que citamos no capítulo II, e da forma como descreve o fascínio da criança em alfabetização quando consegue escrever sozinha uma palavra e ler o resultado da própria produção. Bojunga também privou dessa sensação no tempo em que era “artesã da escrita” (2004 (a): 59):

“E ficar desenhando e apagando letra, escrevendo e reescrevendo palavra, era bom. (...)

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Então foi assim, caligrafando, que recolhi o prazer da borracha esfregando o papel, do lápis roçando a mão, do olho seguindo os sinais que eu imprimia no caderno, brincando aqui de pingar um i, ali de engordar um o.” (2004 (a): 58)

Mas não só a forma encantava a autora. O conteúdo representava ainda mistério maior. Nos cadernos da adolescência que serviram de diário, Bojunga colocou tudo que lhe acontecia: “emoção, dúvida, tristeza, expectativa” (2004 (a): 60), o que já denunciava a tendência de fazer de seus textos divãs. A necessidade de escrever apareceu igualmente nesta época, assim como o ritual do isolamento para trabalhar. (idem: 61) Contudo, o capítulo que nos chama mais atenção nessa segunda parte do relato é “A redação e o dicionário”. Nele, estão traços da Lygia que transgride a Língua Portuguesa para, ao mesmo tempo, inovar na linguagem. A autora descreve a época em que uma professora corrigia à exaustão suas redações escolares, inclusive deixando lembretes sugerindo o hábito de usar o dicionário. Entretanto, a aluna rebelde só começou a usar tal livro de referências quando surgiu a necessidade no trabalho como redatora. Desde então, Bojunga conta que costuma abrir o dicionário todos os dias, nem que seja para ler um verbete aleatório e aprender uma palavra nova. Seguindo a linha da rebeldia consciente, no “Pra você que me lê” do livro O meu amigo pintor, Lygia se refere a uma ocasião em que teve um original corrigido por revisores e brigou com o editor para que fossem mantidas suas palavras e construções. Saiu vitoriosa: a autora procurou marcar um estilo e preservá-lo. Contrariando o conservadorismo da Literatura Infantil que ia para as salas de aula, Bojunga introduz em seus textos o coloquialismo visto décadas antes em Monteiro Lobato, fazendo com que seus supostos erros sejam considerados inovação ou licença poética. Quanto a isso, Sandroni comenta:

“Assim, ainda se encontra nas obras publicadas para crianças e jovens uma grande maioria escrita no padrão culto da língua. Se em muitas delas o registro coloquial está presente na fala dos personagens, desaparece quando o narrador/autor conduz a narrativa. Em Lygia Bojunga Nunes está presente este registro informal, o coloquial usado não somente nos discursos direto e indireto livre mas também no discurso do narrador. Essas características, por outro lado, não se encontram de forma a empobrecer o texto. Muito ao contrário, a Autora usa de recursos vários, descobrindo múltiplos usos da língua e instaurando o espaço de liberdade e subversão que é o texto literário.” (1987: 89-90)

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Tão importantes na definição de um estilo, consideramos as transgressões e inovações de Lygia também um diferencial na aproximação entre o leitor jovem e sua literatura. Afinal, a linguagem é o meio de transporte para o mundo da imaginação, é o instrumento da arte literária. Retomamos aqui Barthes, citado em nosso capítulo I, quando nos diz que o escritor tem responsabilidade e poder sobre a forma que dá à linguagem e sobre o uso que faz da língua, e que o leitor, no entanto, produz uma leitura particular dessa linguagem assim como possui uma compreensão que independe do escritor. O resultado da equação é saber que a linguagem acaba por ser mais poderosa que o escritor. Portanto, tomamos este aspecto da obra de Bojunga como determinante para a comunicação com seu leitor. Analisando a freqüente utilização da metalinguagem nos textos contemporâneos dedicados a crianças e jovens, Coelho completa seu raciocínio dizendo:

“Esse novo aspecto da literatura infantil/juvenil visa levar os leitores a descobrirem que a invenção literária é um processo de construção verbal, inteiramente dependente da decisão do escritor.” (2000: 153)

Contudo, a ação do escritor de evidenciar sua presença através de metalinguagem não isenta o leitor da sua própria responsabilidade em atuar naquele texto. Pelo contrário, afirma um contrato entre as partes, pois o escritor se apresenta na clara intenção de chamar o leitor para a ação. Há, afinal, concordância com Barthes nesse sentido. Isto é o que Coelho chama de “desejo de comunicação” (2000: 153), quando afirma que também “a voz narradora mostra-se cada vez mais familiar e consciente da presença do leitor”, ou seja, o narrador, em 1ª ou em 3ª pessoa, procura se voltar a uma 2ª pessoa que não necessariamente responde, mas cuja presença é apontada. Segundo Coelho, neste momento, o escritor demonstra que está ciente de que seu texto, ou mensagem, depende diretamente desse destinatário: o leitor/receptor. Já nas primeiras páginas de O meu amigo pintor, Lygia deixa claro seu desejo de comunicação com o leitor. Este livro é narrado em 1ª pessoa, em tom confessional, por um menino de mais ou menos dez anos, e na passagem a seguir grifamos o exemplo de um recurso que a autora explora bastante, na intenção de manter o leitor sempre por perto, o aposto:

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“Mas cada um é de um jeito, não é? e eu gostava demais de ouvir o relógio batendo. De noite ainda mais.” (2004 (d): 10)

Lygia abre O abraço com a seguinte frase: “Eu preciso te contar.” (2005: 7) É o suficiente para iniciar uma “conversa” com o leitor, embora, logo na página seguinte, esse mesmo leitor descubra que na verdade o interlocutor de Cristina é um escritor amigo seu. Com esta simples construção a autora não só conduz a ação do leitor em relação ao texto como também dá a o tom da narrativa, confessional e íntima, e da linguagem, coloquial. Tal como o garoto que tem um amigo pintor. Começamos a identificar as afinidades entre esses dois livros. Cláudio e Cristina são duas pessoas que têm uma angústia com a qual devem lidar. As lembranças não deixam o menino elaborar a perda do amigo como traz de volta o passado que a jovem havia deixado esquecido em algum lugar da mente.

O meu amigo pintor é um livro que, aparentemente, tem como temas principais morte e perda. No entanto, quando Lygia faz seu personagem descrever os difíceis dias após a morte de um amigo, acreditamos que ela esteja falando de vida. Cláudio é um menino tímido e introspectivo que se tornou amigo de um adulto, um pintor que morava no mesmo prédio que ele. Os dois construíram uma amizade serena. O menino aprendia coisas da vida com as poucas palavras do amigo e este tinha alguém com quem dividir as poucas alegrias: um jogo de gamão à tarde, aulas de pintura e de percepção de uma obra de arte. Até que o pintor comete suicídio e Cláudio é forçado pelas circunstâncias a tentar compreender o que acontecera. Surgem perguntas e explicações diversas, mas nenhuma resposta concreta. Contudo, ao final, depois de tanto divagar sobre os fatos e juntar pedaços de lembranças e saudades, o menino consegue se confortar e seguir adiante, guardando com força as melhores partes daquela amizade. Sobre este aspecto da novela, Coelho comenta:

“Embora engajada numa linha problemática humanista de natureza universal, Lygia Bojunga Nunes impregna o seu universo de ficção de uma vibração bem brasileira: o olhar gaiato lançado sobre o mundo; a disponibilidade lúdica para encarar as durezas da vida; e principalmente o

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prazer de viver (que é uma mescla de inconsciência infantil, entusiasmo e esperança, apesar dos pesares).” (1995: 668)

O texto é pautado na arte, na pintura, nas formas e nas cores usadas pelo pintor nas telas que o menino gostava de contemplar. Essa pauta justifica-se por este livro ter sido uma encomenda — a única que Lygia aceitou fazer — solicitada por uma editora. O combinado era que a autora escreveria uma obra infanto-juvenil a partir de telas da artista plástica . Os elementos dessa arte se tornam, então, instrumentos para as metáforas que constroem a narrativa. Neste momento, nos lembramos de Ortega y Gasset, citado em nosso primeiro capítulo, quando diz que a metáfora é ferramenta de criação de novas realidades, que maquia, esconde e elucida, ao mesmo tempo, o objeto que deveria ficar oculto. E este objeto é revelado à medida que a metáfora, que está relacionada à linguagem escolhida pelo escritor, é decifrada no ato da leitura. Se vimos que a linguagem é poderosa, concluímos que a metáfora também o é. Além disso, configura-se como elemento enriquecedor da narrativa. Cláudio começa a contar sua história da seguinte forma:

“Eu não sei se eu já nasci desse jeito ou se fui ficando assim por causa do meu amigo pintor, mas quanto eu olho pra uma coisa eu me ligo logo é na cor.” (2004 (d): 8)

Com o pressuposto dado pelo protagonista de que tudo para ele começa na cor das coisas, Lygia orienta toda a narrativa. Assim, o leitor pode ver as coisas através das cores, como Cláudio, e acompanhá-lo na empreitada de superar a perda do amigo e compreender a mistura de sentimentos que experimentou nesta trajetória. O menino compara seus sentimentos às cores: o amarelo está associado à alegria e o vermelho dá o tom daquilo que não é facilmente compreensível. A partir dessas comparações, aparecem as metáforas.

“E aí, tinha o aniversário da minha prima. Mas eu não fui. Tinha um bate-bola na escola. Mas eu não fui. Tinha um livro que eu estava gostando. Mas eu nem quis mais ler. Só pra ficar aqui. Escutando o relógio bater. E ele bateu. No princípio, amarelo forte. Mas depois o amarelo foi ficando mais fraco; cada vez mais fraco. O relógio estava perdendo corda e era por

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isso que a batida se arrastava com aquele amarelo cada vez mais desanimado, cada vez mais esbranquiçado. Hoje ficou tudo branco: o relógio não bateu mais. Que vontade! que vontade de ir lá dar corda nele. (...) De noite, quando fui dormir, fiquei esperando, esperando. Nada. Só aquele branco todo. Eu nunca pensei que silêncio fosse assim tão branco. E aí, sim, eu vi mesmo que o meu amigo tinha morrido e que branco doía mais que preto; amarelo, nem se fala!, doía mais que qualquer cor.” (2004 (d): 12-13)

O trecho acima descreve o momento em que o menino toma consciência da realidade daquela morte. O amigo de Cláudio era silencioso em suas ações, não emitia muitos sons quando pintava ou quando fumava, e costumava falar pouco também. O único som que vinha de seu apartamento era o das batidas de um relógio: de meia em meia hora. Para o menino, ouvir as batidas era como ter certeza de que o pintor estava vivo. Com a sua morte, o relógio ficou abandonado e foi parando de bater gradativamente. Podemos considerar que o relógio parado significa a morte, e o silêncio significa a ausência, a falta e a dor. Se o silêncio é branco, a ausência e o sentimento de perda também o são. Em outro ponto da narrativa, Cláudio diz não entender a cor vermelha. (2004 (d): 16) Este é o gancho para Lygia associar esta cor à sua idéia de paixão. O menino conta que quando tinha nove anos sua família recebeu a visita de uma prima acompanhada de uma colega. Essa colega usava um vestido todo vermelho e ele se sentiu apaixonado. Na hora do jantar, confessou seus sentimentos pela moça de quinze anos e todos caçoaram dele:

“Achei melhor não dizer mais nada. Mas continuei apaixonado. Quer dizer, eu acho que era paixão; eu não tinha bem certeza, mas cada vez que eu pensava na Janaína (e eu pensava nela o tempo todo) eu sentia dentro de mim uma coisa diferente que eu não entendia o que que era, mas que era vermelha, porque é claro que eu só pensava na Janaína vestida naquele vermelhão.” (2004 (d): 16)

Janaína fez outra visita tempos depois, porém, dessa vez, estava vestida com roupas nas cores azul e branca. Cláudio narra que mal pôde acreditar no que vira e que, assim, se desapaixonou. O amigo pintor apenas comentou que o vermelho era uma cor complicada. (2004 (d): 18)

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O menino pode ter se apaixonado pelo vermelho mais do que pela moça. Foi uma situação nova, intensa e inexplicável. Mas, quando não havia mais a cor na imagem, o sentimento foi embora com a mesma facilidade com que veio. Lemos aqui que a paixão é fugaz e que o vermelho não é uma cor que explica, ele colore as experiências que apenas são, sem muitos porquês. Com este jogo composto de cores, acreditamos que Lygia esteja dizendo que colorir um sentimento ou uma sensação seja uma forma de compreendê-los e de conviver com eles. Seguindo esta passagem, Cláudio explica que o amigo não tinha muitas preocupações com a compreensão dos fatos. Costumava mostrar quadros e livros sobre arte e somente perguntava se ele havia gostado. O gostar era o mais importante, não o entendimento imediato ou mesmo posterior da obra. O que o pintor faz é expor o garoto à experiência estética, mediando este momento. O artista demonstra que as classificações são dispensáveis à percepção da arte. Neste trecho, Lygia parece apresentar o que consideramos ser a função do professor quando trabalha literatura com uma turma de jovens leitores: a mediação, como colocamos em nosso capítulo II. O professor não deve executar o trabalho pelo aluno, não deve interpretar por ele nem determinar suas conclusões depois de feita a leitura. Este professor deve oferecer a obra, conduzir a leitura provocando o leitor, instigando-o e convidando-o a este trabalho em busca de prazer, diversão e fruição. Em busca do gostar pelo gostar, sem função ou razão aparentes. No entanto, Cláudio é teimoso e intenta a compreensão, o porquê, a razão. E completa:

“Nessas horas eu olhava pro meu amigo e não era só a pintura que ele estava mostrando que eu não entendia: eu não entendia era ele também. Acho que é por isso que eu olho tanto pro vermelho que ele pintou aqui no álbum. Pra ver se eu entendo. Pra ver se eu entendo. Pra ver se eu entendo por que que tem gente que se mata.” (2004 (d): 19)

Ainda neste capítulo do livro, encontramos mais ocorrências que comprovam nossa percepção do jogo proposto pela autora com as cores, e das metáforas de sentimentos. O vermelho como a cor do confuso, do incompreensível:

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“Mas, hoje, sem estar esperando nem nada, aconteceu uma coisa que mudou o jeito vermelho que eu estava sentindo dentro de mim [grifo nosso]” (2004 (d): 21)

A própria conclusão de Cláudio:

“Pra mim, morte também é coisa vermelha, coisa difícil de entender. Mas se ela vem feito ela vem pra tanta gente todo dia, aí fica mais fácil um pouco de sacar” (idem: 23)

E, então, alegria e consolo aparecem coloridos com um novo tom:

“E aí aconteceu uma coisa que eu achei bem legal: foi nascendo um amarelo lá dentro do meu vermelho [grifo nosso]” (ibidem)

Ao longo do texto, outras situações com cores aparecem convidando o leitor a um novo tipo de leitura. Embora Bojunga indique um caminho com suas metáforas, o leitor continua sendo o protagonista do ato da leitura. Com este rico jogo de palavras e de significados, a autora não só indica mas também abre caminhos vários para seus leitores. Nesta narrativa, verificamos ainda a maneira como uma criança pode lidar com a morte. Entretanto, um ponto importante que Lygia desenvolve é a forma como os adultos lidam com o fato de uma criança ter que elaborar a perda de alguém querido. Uma das questões que contribuem para a dificuldade de Cláudio em compreender o que acontecera ao seu amigo pintor é justamente a falta de informação. Os adultos, sua única fonte, evitaram ao máximo contar-lhe que seu amigo cometera suicídio, se matara. Dona Clarice, a mulher com quem o pintor viveu uma história de amor e que serviu de inspiração para boa parte de seus quadros, disse a Cláudio que o amigo morrera “que nem todo mundo um dia morre”. (2004 (d): 22) Ela mesma tentava negar os fatos. O pai chega a admitir o suicídio embora justifique o ato sugerindo que o vizinho desenvolvera algum tipo de doença mental pelo seu turbulento passado como militante político.

“Quer dizer então que a Dona Clarice tinha mentido pra mim (mas por quê?!). Então tinha sido mesmo uma morte de propósito. Mas por quê?? E por que que quando é assim todo mundo faz mistério? E fala baixo? E fica até parecendo que suicídio é palavra feito palavrão; por quê?!

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Se uma cara vai preso porque matou, porque roubou, gente assim da minha idade fica sempre por dentro; por que então, se dizem ‘ele é um preso político’, gente da minha idade nunca entende direito o que que isso quer dizer, por quê?” (2004 (d): 33)

No trecho transcrito, percebemos como a falta de informação e a dificuldade dos próprios adultos em lidar com o tema suicídio não facilitam em nada a compreensão do menino. O resultado é que Cláudio acaba subestimado e se questiona a respeito. Fazendo uma leitura mais ampla, destacamos a maneira que Lygia encontra para dizer que a inteligência e a capacidade de percepção de uma criança, ou de um adolescente, não deve ser subestimada. Mais cedo ou mais tarde, eles desvendam o “mistério” proposto e descobrem a verdade. Além disso, também são capazes de identificar um texto explicativo demais, que pretende ensinar. Consideramos que esta questão seja um norte em O meu amigo pintor pois, em uma passagem mais à frente da história, Cláudio interroga Dona Clarice sobre a razão dela ter mentido para ele:

“— Foi porque você acha que eu sou criança? — eu falei (depois que eu achei que ela não ia mais responder). — Lá em casa eles acham que esse assunto não é coisa de criança. — Ela me olhou. — Você também é assim? Foi por isso que você mentiu pra mim?” (2004 (d): 75)

Ainda na semana em que se passa a história, a primeira após a morte do pintor, Cláudio começa a sonhar com uma situação que já denuncia seus avanços no processo de elaboração dessa perda. No sonho estavam duas figuras azuis e uma branca, esta o menino identificou como sendo o pintor “fazendo papel de fantasma”. (2004 (d): 38) Percebemos, aí, a cor branca mais uma vez, aquela que indica ausência, que por sua vez está confirmada com o papel de fantasma. Popularmente é aceito que uma pessoa morta se torne um fantasma, sendo assim, quando o menino diz que o pintor fazia o papel de fantasma para nós significa que ele começou a aceitar a morte do amigo. O cenário era um palco e as pessoas no sonho estavam envolvidas numa peça de teatro. Cláudio questiona o amigo sobre aquela situação: se ele havia ensaiado, qual era o seu texto, qual era a função das figuras azuis. Ao mesmo tempo, o pintor pede ajuda ao menino. Observamos que, simbolicamente, Cláudio estava tentado compreender seu próprio papel tanto na vida como na morte do amigo.

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“— E agora, Cláudio? — Agora o quê? — Eu não sei representar fantasma, o que que eu faço? Eu não sei o que eu digo. O meu coração pulou. Cochichei superbaixo: — Mas você não ensaiou a peça? Ele fez que não. — Não decorou o papel? — Não deu tempo. Eles me botaram nessa roupa, me empurraram aqui pro palco, disseram agora você é um fantasma, e pronto. — Xi!” (2004 (d): 40)

Depois disso, Cláudio descobre que as figuras azuis deveriam atuar como coro, comentando a história do pintor. Para ajudar seu amigo, o menino sugere que ele fuja. Mas este responde que está preso nas figuras azuis. Elas estão unidas à figura branca do pintor pela pintura e a conclusão dos amigos é que a separação seria impossível. Indo mais além, aqui podemos verificar que a pintura é um agente determinante da situação, assim como foi na vida e, conseqüentemente, na morte do pintor. Tensionando o momento, há uma platéia inquieta e que reclama da demora no início do espetáculo. Sem saber como agir, Cláudio chora, num instante de fraqueza, enquanto o pintor clama por ajuda. O menino então se mune de coragem, começa a cantar o hino nacional para acalmar a platéia e decide ele mesmo contar a história do pintor. Cláudio encontra algumas respostas com essa atitude:

“— Distinto público, atenção: eu vou contar pra vocês a história deste fantasma. É uma história curta porque ele é um fantasma recém-morrido. Ele virou fantasma pelo seguinte: ele se enganou de tempo de morrer. Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer. Mas aconteceu. Era pra ele morrer só quando ele fosse velhíssimo, mas ele era um artista, um pintor (olha só o pincel na mão dele), tinha mania de viver pensando em cor. (...) Pra ele, a coisa que mais tinha cor-de-morte era nevoeiro. (...) E então, um dia desses, fez um nevoeiro forte toda a vida. O Pintor espiava pela janela do apartamento dele, só via aquele nevoeiro tapando tudo que é cor e falava feito costumava falar: hoje tá fazendo um pouco de vontade de morrer. Nevoeiro assim forte quase sempre passa logo. Mas dessa vez não passou: era um nevoeiro comprido, que durou a tarde toda e a noite inteirinha também. A toda hora o Pintor espiava na janela. E nada da vontade de morrer acabar. Foi por isso que ele se enganou: achou que a vontade nunca mais ia passar e então resolveu matar a vontade. Tipo do engano sem jeito: no dia seguinte amanheceu um céu azul bonito mesmo. Mas aí o Pintor já tinha virado fantasma.” (2004 (d): 42-43)

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As figuras azuis, no entanto, desconheciam os fatos da forma como Cláudio acabara de narrar, tinham decorado outras falas. Esta é uma comprovação que a autora dá ao leitor de que a narrativa do menino é sua própria resposta para as perguntas quanto à morte do amigo, o que não necessariamente corresponde à realidade. O sonho se repete, mas, dessa vez, as três figuras representavam os campos mais importantes da vida do pintor: Dona Clarice, seu grande amor, a Pintura, ou o trabalho, e a Política, sua paixão. Eram figuras femininas que conversavam sobre aquele homem e seus papéis na vida dele. Cláudio tenta em seu sonho resolver um problema que o pintor levou consigo a vida toda e que talvez por isso tenha morrido: a dificuldade em atuar nesses três campos harmoniosamente, sem deixar que um prevaleça sobre outro e o anule. Em última análise, o pintor tinha dificuldade em conviver com sua essência, com aquilo de que era feito. Lygia fala aqui de vida e não de morte, como supúnhamos. Cláudio procura a todo custo compreender o conjunto de sentimentos que o surpreendeu e o levou à reboque, de certa forma, desorganizando sua vida. É obrigado a encarar e superar essa complexa reunião para continuar vivendo. O respeito aos seus sentimentos e suas opiniões parece a chave a ser utilizada. Lygia consegue resumir essa disposição do menino em um simples episódio. Cláudio mostra a um colega o desenho que havia feito de um coração. Os dois entram numa discussão por causa da maneira como o coração estava representado:

“— Que é isso? — ele perguntou. — Ora, taí. — Taí o quê? — Mas não dá pra ver o que que é? — Não. — Então adivinha, ué. — Sei lá. — O meu coração. Ele olhou e olhou. — Ainda não ta vendo não? — eu quis saber. — Eu, não! Pra começar, coração é vermelho. — Bom, mas esse é o meu coração. — E daí? Porque é teu não é vermelho? — Não é isso. É que eu ando chateado e então o meu coração tá assim desse jeito, parecendo que levou um soco e se achatou todo pro lado. — Soco? — E coração vermelho é coração de todo dia. O meu não está que nem todo dia, ele tá todo diferente; então tem que ser de outra cor. Tem ou não tem? O meu colega olhou pro papel. Olhou pra mim:

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— Não pode. Tem que ser vermelho. E tem que ser pontudo embaixo. Me dá aqui o papel pra eu te mostrar como é que é. — ‘Pera aí!, você não tá me entendendo. Acontece que... — Me dá o papel, deixa eu desenhar isso direito. (...) — Coração tem que ter seta! Tacou uma seta no meio. Foi corrigindo de um lado, corrigindo do outro, não deixou mais o meu coração ficar nem um tiquinho esborrachado, e eu, de burro, ainda quis explicar! (...) Aí eu não agüentei e disse, pra que que eu quero essa porcaria? aí ele falou, porcaria é aquele negócio que você desenhou; e aí ele viu a Denise (uma garota que ele acha o máximo); arrancou o coração da minha mão e onde tinha escrito “eu estou chateado” ele botou dois pontos e rabiscou bem grande: VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM!! Saiu correndo, deu o meu coração pra Denise e foi jogar bola. Ah. Melhor. O que que eu ia fazer mesmo com um coração que já não tinha nada que ver com o meu?” (2004 (d):48-51)

Nesta passagem, Bojunga fala de individualidade e de como é preciso que se respeite essa característica de cada um em todas as fases da vida. Aqui, concordamos com Coelho quando coloca O meu amigo pintor como exemplo de obra de “realismo humanitário”, ou seja, atenta ao “convívio humano” e enfatizando as “relações afetivas, sentimentais ou humanitárias” (2000: 157). Segundo ela, esta é uma das tendências da literatura infantil e juvenil contemporânea.

O abraço também faz uso de uma estética realista para falar de respeito. Porém, dessa vez, respeito ao corpo. Neste livro, Bojunga trata de abuso sexual infantil e estupro. Entretanto, a morte, e tudo aquilo que a cerca, tal qual em O meu amigo pintor, ditam as regras da condução da narrativa. A diferença entre as duas histórias é a forma sombria como a morte aparece em O abraço, segundo as palavras da própria autora registradas no “Pra você que me lê” deste livro. (2005: 83) A novela é concebida como uma colcha de retalhos, de narrativa não linear e complexa. É a combinação de fragmentos da memória de Cristina: primeiro, uma jovem de 19 anos como qualquer outra, cheia de sonhos, inicialmente anônima; depois, uma menina de oito anos, violentada nas férias ingênuas em uma fazenda do interior.

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A história começa com uma conversa entre a protagonista e um escritor amigo. Ela está angustiada e precisa desabafar com alguém. Esse amigo torna-se o interlocutor ideal para o relato e, ao mesmo tempo, fio condutor no caminho da sua memória. Isto pode ser observado na passagem em que Cristina fala da amiga Clarice e o escritor interroga-a, procurando esclarecer o leitor, sobre a origem da imagem que surge para ela: se a que tinha preservado da infância ou se a que seu agressor deixara (2005: 35). No final do texto, há uma mudança de narrador: de 1ª para a 3ª pessoa. Quem conta o fim da história de Cristina é o escritor. Nesse momento, percebemos a volta do tema metalinguagem. Cristina deixa de ser dona de sua própria história para se tornar protagonista de uma outra inventada por um escritor. Mais uma vez, Bojunga joga com seu leitor. No clímax, nem personagem nem escritor são mais soberanos: o criador, ou Lygia, se impõe. No início da trama, Cristina está em conflito com lembranças do seu passado que ainda não consegue classificar. Sua mente é despertada numa festa temática em que os convidados devem vestir-se de personagens da literatura e interpretar a história a que pertencem. Seu grupo é formado por ela e mais cinco amigos. Entretanto, o conto escolhido, “O Abraço”, tem sete personagens. Após a apresentação, o grupo é questionado sobre a ausência deste sétimo: a Morte. A inquiridora logo se prontifica a interpretá-lo, pois, segundo ela, tratava-se do personagem principal do conto. A Mulher estava usando um figurino veneziano, incluindo a máscara, que Lygia chamou de disfarce.

“Eu vi logo que o Jorge não tinha gostado da idéia. — Fazer a Morte assim? — ele perguntou —, com essa roupa veneziana? Mas a Mulher nem se alterou: — O guarda-roupa da Morte é vastíssimo; ela usa as vestimentas mais inesperadas, se disfarça de tudo que a imaginação pode inventar. — E sem esperar mais resposta nenhuma ela veio pra junto da gente, anunciou que ia fazer a cena que nós tínhamos pulado e começou a representar.” (2005: 11)

Se a morte devia estar no conto, que aparecesse como todos esperavam, como é representada no senso-comum: de capa preta, com capuz cobrindo-lhe a face e munida de uma foice. Entretanto, a Mulher traz para a cena uma representação não convencional da morte, inesperada, disfarçada, o que incomodou Jorge. O guarda-roupa vasto é uma metáfora para as várias faces da morte, como se diz na cultura popular.

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Numa leitura mais profunda, Lygia chama a atenção do leitor para o fato de que um ato cruel e doloroso, como um estupro por exemplo, pode ser camuflado pela delicadeza do criminoso. Acreditamos que este seja o cerne da questão nesta obra, como veremos adiante. Cristina ficara perturbada e igualmente fascinada pela performance da Mulher. Na intenção de compreender esses sentimentos, a moça a procura para trocar impressões e fica ainda mais espantada quando a Mulher revela que já a ouvira falar sobre os planos de uma viagem à Veneza. Diz a ela que já brincaram juntas. Imediatamente, a moça se lembra de uma amiguinha de infância que sumiu numa praia quando estava de férias com a mãe e nunca mais voltou. Clarice era seu nome. A Mulher pode ser vista aqui como uma alegoria da criança que é morta num estupro. Sua presença é um alerta para que Cristina nunca esqueça do que um dia aconteceu a ela:

“— Mas, hem? a gente já tinha se encontrado antes? — Muitas vezes. A gente brincou junta quando era criança. — Disse isso e me abraçou. Justo quando ela estava me abraçando anunciaram que o conto que ia ser contado começava no escuro. As luzes se apagaram. O abraço se acabou. E eu fiquei paralisada; o abraço era o mesmo! era o mesmo!! o abraço era o mesmo que a Clarice tinha me dado. — Clarice — eu gritei. — Psiu! — Clarice! — Eu tateei no escuro, querendo retomar o abraço, querendo sentir de novo a presença dela. — Psiu! — Clarice...” (2005: 16)

Esse alerta leva Cristina a cantos escondidos de sua memória e traz à tona a lembrança de um ato de violência que ela mesma sofrera. Foi numa viagem para uma fazenda distante, em Minas, onde brincava na praia de um rio. Um homem a arrastara para dentro da floresta, para uma cabana escura e lá consumou o ato. Ela acordou sozinha e fugiu de volta para a fazenda e para o cheiro de pão fresco, de leite quente e para as jabuticabas doces arrancadas do pé. Cheiros e sabores que Cristina esqueceu, apagou. A mãe e outros a interrogaram na ocasião, mas ela perdeu-se em ser criança de novo e respondeu sem dar atenção às palavras que dizia:

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“Todos me faziam perguntas ao mesmo tempo. Mas sabe a única coisa que eu queria? Comer jabuticaba. O pé estava cheio. Pertinho ali da casa. Colhi logo uma porção. E saí da sombra da árvore e fui comer elas no sol. Tinham visto um homem de terno escuro e gravata cinzenta saindo da mata, eu tinha visto esse homem? Tinha. Esse homem tinha falado comigo? Tinha Tinha falado o quê? Fui examinar outro pé de jabuticaba. Esse homem tinha me agarrado? Tinha. Minha mãe não tirava o olho de mim e eu não tirava o olho das jabuticabas, que maravilha! (...) E todo mundo (tinha uns cinco ou seis casais) de olho grudado em mim, querendo saber, e aí? e depois? conta! Fui pegar mais jabuticaba, contei seis na minha mão. Eu tinha ficado esse tempo todo com ele? Tinha. Onde? onde? Joguei uma casca de jabuticaba pro lado da mata e estalei outra no dente. Eles olhavam uns pros outros; a minha mãe tinha uma cara esquisita, feito coisa que tava morrendo de dor de ouvido. Na mata? eu tinha ficado na mata? Tinha. Prisioneira dele na mata? Tinha. Ele tinha me batido. Não tinha. Ele tinha... — Deixa ela comer jabuticaba em paz, tá bem? tá bem?! — a minha mãe berrou.” (2005: 32-34)

Nesse trecho, Bojunga expressa as percepções, distintas, dos adultos e da criança sobre o fato. Pais e amigos ansiosos pela confirmação daquilo de que já desconfiavam. A menina afastando da memória uma situação ainda incompreendida, procurando resgatar o tempo perdido longe da diversão com a fruta colhida direto do pé. No entanto, há um ponto de convergência: existe tensão em ambas as partes, evidenciada pelas frases curtas que a autora constrói para esta passagem. No presente, Cristina conta sua história como um desabafo para o escritor, está desestabilizada com a lembrança de Clarice e pela quase descoberta da verdade sobre seu desaparecimento. A moça se recorda de que o homem que a seqüestrou sempre fazia referência a uma menina chamada Clarice, falava de como ela era bonita. E o homem passou a tratá-la por Clarice também.

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Bojunga descreve todo o seqüestro e o ato em si de forma a sugerir as situações. É a memória da criança, de acordo com sua percepção dos fatos, na voz da jovem. Cristina percebe a presença do homem, após emergir de um mergulho, pelo seu reflexo na água. Nota que as roupas não são adequadas para um ambiente rural: terno, camisa de colarinho, gravata. Registra o cabelo encaracolado e preto, a pele branca e a barba por fazer. O olhar era forte e as feições, muito atraentes. O homem leva consigo uma mecha de cabelo de outra menina, compara com o de Cristina, satisfaz-se com o acerto e então parte para a repetição do ato de outrora. É aí que passa a tratar a nova menina como a primeira, Clarice. Para o leitor, fica a impressão de que a Clarice deste agressor é a mesma da infância de Cristina. Essa confusão nos parece um ato proposital da autora, que mistura as situações para destacar o fato de que as duas são um crime e para forçar a memória de Cristina a trabalhar para que ela nunca esqueça do que sofrera, como uma forma de punição por um dia não ter denunciado o que acontecera. Podemos observar isso no trecho a seguir:

“De repente, eu queria, eu precisava saber se a Clarice era uma menina, assim feito eu era lá na fazenda, ou se a Clarice era uma moça, feito eu sou agora, ou, quem sabe, uma mulher mais velha que ele, por um desvio mental qualquer, tinha reduzido a uma criança indefesa? e será que eu tinha sido a única Clarice? ou será que ele andaria sempre à espreita, num lugar solitário qualquer, pra se apossar de uma outra Clarice? e depois de mais outra e mais outra...” (2005: 53-54)

Embora sempre tendendo a condenar a atitude do homem, Lygia provoca o leitor quando o humaniza:

“A voz dele era sempre meio baixa, grave, sem pressa. Às vezes ele falava muito. Dizia que lá no mato era bom. Ruim era voltar pra cidade, procurar emprego, arrumar casa e comida, tudo tão difícil, não tinha mais água limpa, era tudo sujo, e acabava sempre dizendo: é melhor eu ficar aqui.” (2005: 30)

“Mas, às vezes, quando eu chorava, a voz chorava também, e chorava apertado, feito querendo sair de uma boca fechada com força (...)” (idem: 31)

Provocação maior, no entanto, vem a seguir, quando uma situação inusitada coloca Cristina diante do homem que a feriu. Ele agora é palhaço de circo. Acreditamos

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que esse movimento seja uma preparação para o discurso panfletário que Lygia vai assumir ao final da trama. O que significa esse palhaço? Pode ser uma reprimenda de Lygia, afinal ser chamado de palhaço é muitas vezes um xingamento. Mas o palhaço também é equivalente à criança, representa seus sonhos e sua inocência, encanta. Por trás de um palhaço com feições doces, existe sempre um homem, talvez não tão doce assim. Mais uma vez a presença da máscara, do disfarce, termo que a autora já havia usado para a morte. Bojunga não impõe regras nem generaliza, apenas cria metáforas como alerta. A escritora ousa: faz sua personagem adulta sentir atração sexual por seu agressor da infância, até quase apaixonar-se. Em sua memória apagada, o que ficou foi a sensação do “abraço” forte, da força. A menina havia desmaiado enquanto era agredida sem ter a noção exata do que se passava, da apropriação indevida de seu corpo inocente. O homem era bonito e repetia que não ia machucá-la. Os retalhos da memória de Cristina constroem a cena do estupro. Lygia não deixa sua personagem raciocinar de maneira linear, o que cria uma expectativa no leitor para a conclusão da cena brutal. Ao invés de enfraquecer a imagem, a autora a fortalece na medida em que insere o leitor na memória e no discurso da jovem. Sem deixá-lo respirar, o ápice da violência é um parágrafo sem palavras fortes ou chulas, colocado no meio de um de capítulo.

“Eu me lembro também do barulho de uma chuvarada caindo. E foi com essa chuva chovendo lá fora que a voz dele falou assim, eu te prometo, Clarice, eu te prometo que, dessa vez, você não vai morrer no meu abraço. E me abraçou mais forte que das outras vezes e entrou mais forte dentro de mim.” (2005: 31)

A atração da protagonista pelo palhaço/homem/agressor, a nosso ver, é uma forma de esgarçar ao máximo a denúncia. Lygia defende claramente o não perdão justamente porque esse crime pode ser cometido das formas menos suspeitas, mais engabeladoras. Cristina lembra da voz do homem — é o que mais a marcou porque fora mantida num casebre escuro e sem luz —, e ainda assim vai atrás dele depois da apresentação no circo, o quer, quer saber dele, o deseja:

“Abaixada assim feito eu estava, era fácil ficar de olho fechado, só ouvindo ele falar no escuro. E eu fiquei. A dúvida tinha acabado, mas a perturbação

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era cada vez maior: eu estava sentindo uma curiosidade enorme de conhecer melhor aquele homem. E pela primeira vez eu pensava nele como uma mulher. Ele parecia mais à vontade; se abaixou pra mostrar o primeiro exercício que durante muito tempo ele tinha feito com o cachorrinho, e num dos movimentos que ele fez o braço dele roçou no meu. O meu susto foi tão grande que nem deu pra disfarçar. Eu estava sentido o susto que eu não tinha sentido nos meus oito anos. O grande susto dos meus oito anos tinha sido: ele vai me matar? E só agora eu sentia o outro, e quanto mais eu me assustava mais a curiosidade aumentava. Eu queria conhecer aquele homem melhor. Pra ver se eu entendia por que que ele tinha feito aquilo comigo, pra ver se eu descobria por que que pra ele eu era a Clarice.” (2005: 53)

Essa paixão de Cristina nos remete ao comentário de Coelho acerca das características estilísticas/estruturais da literatura infantil e juvenil contemporânea:

“Quanto ao comportamento ético, começa a prevalecer a complexidade das forças interiores (positiva e negativa) sobre a dualidade maniqueísta que sempre caracterizou o comportamento das personagens tradicionais. A intenção maior é dotar as personagens de ficção da ambigüidade natural dos homens e, através dela, revelar as forças polares ou contraditórias, inerentes à condição humana.” (2000: 154)

Estas são as características de Cristina. Bojunga poderia tê-la feito consciente da gravidade do que sofrera na infância, no entanto, preferiu instigar o leitor à reflexão com uma personagem capaz de sentir afeto por seu agressor. Até aqui, a autora não apresentava qualquer intenção pedagógica. Mas, Cristina vai atrás da amiga perdida, Clarice — a Mulher, a morte. Essa personagem então assume um discurso panfletário, que, a nosso ver, compromete a narrativa quando a força das imagens já seria denúncia suficiente. É uma advertência, quase como numa campanha publicitária, para que as mulheres não esqueçam, não perdoem e ainda denunciem. A própria Lygia assume essa postura no “Pra você que me lê”:

“Não vou falar aqui do ‘crime que não tem perdão’. Acho que a narrativa d’O Abraço é tão explícita e veemente que qualquer outra consideração sobre esse tipo de crime transbordaria o corpo...” (200: 95)

A Mulher culpa Cristina pela atração que mais parece ser um perdão, pelo seu silêncio, pela sua suposta não compreensão, por ter esquecido. Nesse momento do texto toda a insinuação para o leitor se perde. Ela escancara as imagens que foram construídas

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de forma singular, assustando e incomodando, e, ao mesmo tempo, envolvendo o leitor sem deixá-lo desconfiar para onde a autora o estava levando. Em uma longa passagem, Cristina e a Mulher discutem sobre o crime do estupro. Selecionamos trechos para ilustrar nossa reflexão sobre este panfleto:

“— O abraço que eu te dei foi pra você não perdoar, foi pra você nunca esquecer o que ele fez contigo quando você só tinha oito anos. Não é porque você só tinha oito anos, não. Podia ter dez, vinte, cinqüenta, cem não importa! o que importa é que não existe perdão pra quem arromba o corpo da gente. — Sacudiu a cabeça assim, ó, e falou: — E você vai e transforma o abraço do não-perdão num abraço de tesão: você é mesmo uma infeliz, você merece o pior. Eu fiquei... sei lá! eu fiquei assim meio tonta olhando pra ela, e ela pegou e disse: — É por causa de gente feito você, gente que não tem memória, que perdoa fácil, que esse crime continua sem o castigo que merece. Tá me olhando assim por que, hem? por quê? Será que você nunca parou pra pensar que o que aconteceu foi um crime? Crime, sim, crime! Então não é criminoso quem arromba uma casa pra se apossar do que tem dentro? e, se é preso, não é condenado? não vai pra cadeia? Mil vezes pior é o criminoso que arromba o meu corpo. Meu, meu! a coisa mais minha que existe; a minha morada verdadeira, do primeiro ao último dia da minha vida, o meu território, o meu santuário, o meu imaginário, o meu pão-de-cada-dia, e ele vai e arromba! Nem disfarça, nem se insinua: entra na marra. Só porque tem mais força. Não, não, desculpa, eu me expressei mal: força é inteligência, força é imaginação, força é saber trincar dente quando a dor é grande, ele entra na marra porque tem mais músculo, e por isso, só por isso, ele me arromba, ele me rasga, ele me humilha (ele sabe que humilhação é a dor que dói mais, e pra qualquer ser que se preze não tem humilhação maior do que ser arrombado assim) e ainda arrisca na saída de me deixar um filho que eu vou ter que arrancar, uma aids que eu nunca mais vou curar. E você fica aí me olhando feito quem tá duvidando que pra esse arrombamento o castigo tem que ser o pior. Você é mesmo uma infeliz. (...) — Mas então você não é a minha Clarice?... — Ô meu deus! mas que diferença faz se eu sou a Clarice-tua-amiga-de- infância-que-um-dia-saiu-de-casa-e-nunca-mais-voltou, ou se sou a Clarice- que-se-fingiu-de-morta, ou se a Clarice-que-botou-a-boca-no-mundo, ou se a Clarice-que-morreu-numa-gravata-cinzenta, ou as mil outras Clarices que eu posso te contar, o que que isso importa, me diz! o que importa é que você tá sendo cúmplice de um crime...” (2005: 61-67)

Ali, naquele quase monólogo, o símbolo, a metáfora, se perdera. A bela e, ao mesmo tempo cruel, metáfora do abraço para descrever um ato tão violento se esvai. O abraço diferencia e iguala agressor, Clarice e Mulher, pois a memória de Cristina só foi capaz de guardar as sensações provocadas pela ação de abraçar. Um abraço que pode

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ser forte, leve, apertado, longo, rápido, doce, carinhoso ou violento. A força desse símbolo está justamente no fato do ato não ter um rosto, e sim um sentimento. O panfleto poderia ter sido evitado pela mediação da leitura, papel daquele que oferece o livro ao jovem. É claro que estupro é um crime, mas as mulheres precisam, antes de tudo, de coragem para denunciarem, e acusações e agressões verbais podem, com efeito contrário, inibi-las de tomar qualquer atitude. Bojunga exagera em seu discurso pelo forte desejo de fazer com que seus jovens leitores sejam questionadores e contribuam para a transformação da sociedade. Esta atitude é também apontada por Coelho como uma característica de autores contemporâneos (2000:150). Já Sandroni acredita que Lygia estava buscando o público adulto neste livro pela maneira como o tema da violência sexual contra a mulher é abordado em O abraço (2003: 271). Entretando, discordamos. Acreditamos que uma novela como esta fala a toda mulher, em qualquer idade, que precisa aprender a importância de seu corpo, que precisa valorizar-se antes de tudo; e fala a todo homem, igualmente. É também um alerta para pais quando trata do abuso sexual infantil. Lembremo-nos que o interlocutor de Cristina é o autor do conto que desencadeia a história. Ela mesma diz que entregara a ele esse seu “pedaço de vida”. Ela sente-se como se fosse sua personagem por isso. E, no final, Lygia aproveita-se disso para punir de uma vez por todas Cristina. Ela esqueceu, não denunciou, perdoou em forma de atração física. Lygia, através da pena do escritor, mata Cristina. Faz a moça morrer num ato de estupro, indefesa, vitima do próprio esquecimento, do descaso consigo mesma.

O meu amigo pintor e O abraço são exemplos de como temas densos podem ser tratados de forma franca na literatura para jovens, sem subestimá-los e valorizando sua inteligência e capacidade de questionamento e transformação. Isso tudo sem abandonar a intenção do prazer do leitor. Bojunga desliza para o panfleto, a nosso ver, em alguns pontos, como colocado neste capítulo. Ainda assim, oferece ao jovem, e a todo tipo de leitor, uma leitura provocante, que deixa marcas. Sem fins pedagógicos, abre caminhos para a reflexão e aproxima cada vez mais o jovem desta arte.

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CONCLUSÃO

“O que é literatura?” “Para que serve?” São perguntas sem respostas, ou com tantas que não seríamos capazes de listá-las. Apenas notamos que quem domina esse saber é o leitor, mesmo que não tenha consciência disso. É o leitor, a partir de sua experiência com a literatura, quem vai dizer qual seu significado. E o mais intrigante é que cada livro pode ter um significado diferente. O mercado editorial pode dizer que a literatura serve para gerar dividendos para uma editora, uma livraria, uma distribuidora, um site de comércio eletrônico, uma banca de jornal ou um sebo. As instituições governamentais ligadas à educação e à cultura podem dizer que a literatura serve para enriquecer a cultura do povo, formar cidadãos, desenvolver seu senso crítico. O escritor pode dizer que lhe serve como válvula de escape, como ambiente de desabafo, como divã, como instrumento para compreender o mundo em que vive. No entanto, nada disso importa se o leitor não pensar dessa forma. E o jovem, então, nem se fala! Se a criança não conhece livros através dos pais, vai fazê-lo através da escola. E ainda que começasse a se interessar pelos livros em casa, a escola seria o ambiente em que o contato com esses objetos se tornaria costumeiro para ela. Sendo assim, desde muito cedo, a literatura está ligada ao ambiente que se freqüenta para aprender alguma coisa. São livros para a matemática, para o português, para os exercícios, para as histórias. O processo acompanha o crescimento da criança. Ela se torna adolescente, surgem estímulos de todos os lados e os interesses se dispersam facilmente entre variadas opções. E os livros agora são de química, de física, de história, de geografia, de literatura-romance-conto-crônica-poesia-romantismo-parnasianismo-modernismo-ismo. Mas não eram de histórias?! Essas funções atribuídas pelos diversos setores que lidam com literatura pouco têm a ver com arte. Como vimos nesta dissertação, a literatura é uma manifestação artística. Narrativas são obras de arte. E se vamos usar as palavras função e literatura na mesma frase devemos dizer então que a função da literatura é provocar seu leitor e lhe dar prazer no ato da leitura.

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Difícil tarefa a de dissociar o hábito de leitura de crianças e jovens do ambiente escolar. Acreditamos que este seja um bom e adequado espaço para isso. Contudo, a literatura não deve ter um papel pedagógico dominante nas instituições de ensino. A nosso ver, a escola deve possibilitar e estimular o convívio diário do jovem com a literatura, e não apenas no momento da lição, para que os estudantes se familiarizem com essa forma de arte e o hábito se desenvolva naturalmente, sem imposições. Historicamente, como colocamos no capítulo II, a literatura com a designação “infanto-juvenil” surgiu por uma demanda do sistema de ensino implementado no Brasil no final do século XIX. Ao longo do século seguinte, porém, esse tipo de literatura sofreu muitas modificações de estilo e conteúdo e, a partir da década de 70, uma transformação determinante para a mudança de perspectiva da crítica especializada e do público leitor. Autores pioneiros desvincularam seus textos dos conteúdos curriculares e começaram a falar francamente com crianças e jovens através de suas obras. Não por coincidência, aqueles eram os anos de chumbo e a comunidade artística optara por contestar o regime militar com sua arte. Entretanto, a postura dos educadores em relação à literatura parece não ter mudado tanto. As obras literárias são largamente utilizadas nas salas de aula de hoje como material de apoio a alguma disciplina do currículo escolar. Nesta prática pedagógica, a literatura precisa ensinar alguma coisa aos jovens, que são tratados como estudantes e não como leitores. Mesmo quando a disciplina é “língua portuguesa e literatura”, espera-se que os alunos compreendam e interpretem os textos. Se eles gostaram da leitura ou dela se aproveitaram já não tem tanta importância. Aqueles que assumem o discurso do incentivo à leitura, muitas vezes, estão desestimulando os jovens leitores. Os livros são impostos e não oferecidos. É preciso ler tal obra não porque será uma leitura prazerosa e, sim, porque com ela o adolescente vai aprender sobre um novo assunto, ou acompanhar a discussão do momento. Percebemos que as pressões vindas do mercado editorial e os temas da moda, bem como o contexto social em que está inserido, são capazes de conduzir um escritor no seu trabalho de criação, alterando seu estilo e o tom da narrativa. Isto porque, na maioria das vezes, o gosto que está em jogo é o de professores e pais, que acreditam ter o poder de cercear e controlar o hábito de leitura do jovem. Torna-se cada vez mais imperativo escrever para atender a essa demanda.

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Além do rótulo de juvenil, a literatura que abrange também o leitor em formação ganha o que podemos chamar de sub-rótulo: “obra juvenil de tal assunto”. A pergunta “esse livro fala de quê?” já é um clássico entre professores em busca de títulos para adoção e pais em busca de livros que possam fazer de um filho que não gosta de ler um leitor voraz. Em cerca de um ano trabalhando em duas livrarias da cidade do Rio, fomos obrigadas a responder essa pergunta inúmeras vezes. E ainda o somos, em nosso trabalho atual. Entretanto, “que história esse livro conta?” nos parece uma questão bem mais interessante de responder. A literatura da qual falamos nesta dissertação conta histórias. São narrativas que fazem rir, chorar; que causam indignação, medo, estranheza; que deixam uma marca. Mas, acima de tudo, dão prazer ao leitor. Analisando a obra de Lygia Bojunga Nunes, encontramos exemplos de leitura prazerosa. A escritora consegue impor seu estilo para contar as histórias mais diversas. Comprovamos isso em duas das obras que escolhemos, cujos panos de fundo são a morte. Teoricamente, um tema evitado nas rodas de conversa entre alunos e professores, filhos e pais. Todavia, Lygia não mascara as faces da morte em seus livros. Violência, tristeza, incompreensão, revolta, saudade, dúvidas e explicações são elementos para a criação das imagens fortes contidas nos textos. O meu amigo pintor e O abraço são histórias que falam de forma honesta ao leitor, qualquer leitor. Não subestimam a inteligência dos jovens, pelo contrário, a estimulam. Nestes textos são dadas as condições para que o leitor se envolva no ato da leitura e participe das tramas. A autora proporciona experiência única ao enriquecer as narrativas com metáforas, ousando no uso da língua portuguesa. Contudo, em alguns momentos, deixa surgir uma faceta panfletária, que chega a desvalorizar, a nosso ver, os ricos trechos do quais falamos. Acreditamos que o esforço para se comunicar com o seu leitor provoque esses deslizes. Tanto na trilogia composta por LIVRO — um encontro, Fazendo Ana Paz e Paisagem quanto em Retratos de Carolina, Bojunga esmera-se na tarefa de difundir o amor aos livros e à literatura falando de si. São belos livros; no entanto, tornam-se excessivos na medida em que abusam de metalinguagem, embora esta seja, como registramos no capítulo III, uma das características da literatura contemporânea para jovens. Lygia, literalmente, diz o que quer nestes livros, pois parece não ceder às pressões das quais falamos acima.

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Infelizmente, o tom que utiliza contribui para que o jovem desenvolva uma visão de idolatria da literatura, colocando-a num lugar inacessível. Aquele que discursa sobre as vantagens de ser um leitor e sobre as transformações pelas quais é possível passar na leitura de determinado livro, se esquece da essência dessa forma de arte: o contar histórias. Os livros e a literatura, em nossa opinião, devem ser amados porque é bom ouvir, contar e ler uma história, qualquer que seja, mesmo que, ao final, digamos que não gostamos daquilo que lemos. Em nosso capítulo I, discorremos sobre esse gostar. Não é preciso alguma explicação racional para o prazer que a experiência da leitura é capaz de proporcionar. A fruição e o deleite devem, simplesmente, fazer parte do ato, devem ser sentidos. Isto porque quando falamos de arte, falamos de sentidos e sentimentos, que não necessariamente dialogam com a razão. Bourdieu, Iser e Jauss nos ajudaram a compreender este fato. Observamos isso em nosso próprio hábito de leitura. Costumamos ler um livro rapidamente. Depois de algum tempo, o protagonista Fulano passa a ser apenas “o rapaz”. Os detalhes da trama vão se perdendo, conforme o tempo passa. Todavia, o livro ganha adjetivos como “envolvente” e “arrebatador”, ou “angustiante” e “triste”. Todos relacionados a sentimentos e sensações, pois o que fica da obra de arte para o expectador é a lembrança da sensação que ela causou, do impacto, tenha sido positivo ou negativo. Acreditamos que estes sentimentos sejam os elementos transformadores da literatura, capazes de impulsionar o leitor, de fazê-lo mover-se do lugar em que se encontra. Se preferirmos, podemos dizer que são esses elementos transformadores, produtos da leitura e não da literatura, que ensinam. Porém, sem a ajuda de nenhum tipo de pedagogismo. A partir de nosso trabalho de pesquisa, pudemos compreender melhor a importância da literatura na vida de um jovem, bem como a relevância dos livros destinados a ele, principalmente, no panorama literário nacional. É exemplo de obra de arte, sim, ainda que o escritor esteja sujeito à intervenção de fatores externos manipuladores, tais como os que citamos aqui. Para nós, não deve existir uma literatura para a sala de aula e outra para fora dela. Na visão do jovem, e de todo leitor, acreditamos que deva existir, simplesmente, literatura.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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