UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PROGRAMA DE DOUTORADO EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE

SIMONE MARINS DOS SANTOS

DE CABRAL A CABRAL: Um estudo de caso sobre Poder e Corrupção na Administração Pública do Brasil

RIO DE JANEIRO 2020 SIMONE MARINS DOS SANTOS

DE CABRAL A CABRAL: Um estudo de caso sobre Poder e Corrupção na Administração Pública do Brasil

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação Strictu Sensu – Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade | UVA| Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Psicanálise. Área de concentração Psicanálise e Sociedade.

Orientador: Prof. Drº Auterives Maciel

RIO DE JANEIRO 2020 FICHA CATALOGRÁFICA

Universidade Veiga de Almeida

Programa de Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade

Doutoranda: Simone Marins dos Santos

Título: De Cabral a Cabral

Um estudo de caso sobre poder e corrupção na administração pública do Brasil.

Banca Examinadora

Orientador: Prof. Dr. Auterives Maciel Júnior (UVA – RIO)

Profa. Dra. Ana Maria Rudge (UVA – RIO)

Prof. Dr. José Maurício Loures (UVA – RIO)

Dra. Ana Carolina Wolf Baldino Peuker (UFRGS – RS)

Prof. Dr. Mário Bruno (UERJ)

Dedico esta tese à sofrida população do Rio de Janeiro, estado fluminense símbolo da crise que vive o país. Dos conflitos éticos aos econômicos, da insegurança à calamidade na saúde por tamanha corrupção. Os problemas do Rio vão muito além das críticas, eles sintetizam a deterioração de um país mergulhado em escândalos de corrupção.

AGRADECIMENTOS

A Deus, que me deu força e perseverança para chegar até aqui, e conquistar, com fé, mais uma etapa vitoriosa da minha trajetória.

Aos meus queridos pais, Daniel e Cirley, e ao meu amado companheiro

Alessandro, pelo amor, incentivo e apoio constantes.

Aos meus professores, em especial ao meu Orientador, Professor Auterives

Maciel, por ter me acolhido “aos 45 minutos do segundo tempo”, com carinho e entusiasmo, e pelo zelo, dedicação nas causas acadêmicas.

À minha fiel escudeira Elizabeth, e a todos que, de alguma forma, estiveram do meu lado nessa caminhada.

“Se o povo for conduzido apenas por meio de leis e decretos impessoais e se forem trazidos à ordem apenas por meio de punições, ele apenas procurará evitar a dor das punições, evitando a transgressão por medo da dor. Mas se ele for conduzido pela virtude e trazido à ordem pelo exemplo e pelos ritos em comum, ele terá o sentimento de pertencer a uma coletividade e o sentimento de vergonha quando agir contrário a ela e, assim, bem se comportará de livre e espontânea vontade”.

Confúcio

RESUMO

De Cabral a Cabral reflete sobre o fenômeno da corrupção desde a história colonial do Brasil, perpassando por fatos em diversos períodos até os dias atuais com a operação “Lava Jato” e a prisão do ex-governador Sérgio Cabral. Assim, contextualizamos conceitos de ética e poder de forma objetiva para uma melhor compreensão do estudo. Nesse contexto, os representantes públicos têm como premissa a promoção da confiança da sociedade em seu caráter ético, na sua conduta, exercendo suas funções com segurança e clareza sobre o que pode e o que não pode ser feito, estabelecendo valores como paz, segurança, desenvolvimento socioeconômico das nações e dos povos. A partir da análise de um governo corrupto, contextualizado pelo caso do ex-governador, concluímos que a falta de ética é um sintoma de uma administração deficiente, o que permite que gestores públicos inescrupulosos explorem oportunidades para pôr o interesse próprio acima do interesse público, contrariando as exigências de seus cargos, corroborando o modo de funcionar da administração pública desde seus primórdios, favorecendo a não observância dos preceitos éticos e que as relações de poder funcionam como fonte de corrupção das pessoas que são corrompidas exatamente pelo abuso destas relações com o poder. Entendemos que é necessário estabelecer sanções administrativas e punições contra a má conduta, por intermédio de processos criminais e civis, para demonstrar que a corrupção não pode ser tolerada, e que a sociedade se politize para se manifestar contra a corrupção.

Palavras-chave: Administração Pública; Corrupção; Ética e Psicanálise; Poder, Sociedade.

ABSTRACT

From Cabral to Cabral reflects on the phenomenon of corruption since the colonial history of , going through facts in various periods until the present day with the “Lava Jato” operation and the arrest of ex-governor Sérgio Cabral. Thus we contextualize concepts of ethics and power in an objective way for a better understanding of the study. In this context, public representatives have as premise the promotion of society's trust in its ethical character, in its conduct, exercising its functions safely, and clarity about what can and cannot be done, establishing values such as peace, security, socioeconomic development of nations and peoples. From the analysis of a corrupt government, contextualized by the case of the Former Governor, we conclude that the lack of ethics is a symptom of a deficient administration, which allows unscrupulous public managers to explore opportunities to put self-interest above the public interest, contrary to the demands of their positions. Corroborating that the way of functioning of the public administration since its beginnings favors the non-observance of the ethical precepts and that the power relations function as a source of corruption of the people who are corrupted exactly by the abuse of these relations with the power. We understand that it is necessary to establish administrative sanctions and punishments against misconduct, through criminal and civil processes, to demonstrate corruption cannot be tolerated, and that society politicizes itself to demonstrate against corruption.

Keywords: Public Administration; Corruption; Ethics and Psychoanalysis; Power; Society.

RESUMEN

De Cabral a Cabral reflexiona sobre el fenómeno de la corrupción desde la historia colonial de Brasil, pasando por hechos en varios períodos hasta la actualidad con la operación "Lava Jato" y el arresto del ex gobernador Sérgio Cabral. Por lo tanto, contextualizamos los conceptos de ética y poder de manera objetiva para una mejor comprensión del estudio. En este contexto, los representantes públicos tienen como premisa la promoción de la confianza de la sociedad en su carácter ético, en su conducta, en el ejercicio de sus funciones de manera segura y en la claridad sobre lo que se puede y no se puede hacer, estableciendo valores como la paz, la seguridad. , desarrollo socioeconómico de naciones y pueblos. Del análisis de un gobierno corrupto, contextualizado por el caso del exgobernador, concluimos que la falta de ética es un síntoma de una administración deficiente, que permite a los administradores públicos sin escrúpulos explorar oportunidades para poner el interés propio por encima del interés público, contrario a las exigencias de sus cargos. Corroborando que la forma de funcionamiento de la administración pública desde sus inicios favorece el incumplimiento de los preceptos éticos y que las relaciones de poder funcionan como una fuente de corrupción de las personas que están corrompidas exactamente por el abuso de estas relaciones con el poder. Entendemos que es necesario establecer sanciones administrativas y castigos contra la mala conducta, a través de procesos penales y civiles, para demostrar que la corrupción no se puede tolerar, y que la sociedad se politiza para manifestarse contra la corrupción.

Palabras-clave: Administración Pública; Corrupción; Ética y Psicoanálisis; Poder; Sociedad.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Esquema de corrupção na 57 Figura 2. Resultados da Operação Lava Jato no STF 57

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

1 A CORRUPÇÃO NO BRASIL: DO DESCOBRIMENTO À ATUALIDADE 20 1.1 A contextualização da Ética e sua diferenciação da Moral no fenômeno corrupção 21 1.2 Panorama da corrupção 23 1.3 A corrupção e o exercício do poder 30 1.4 Corrupção e causalidade 32 1.5 A origem da corrupção no Brasil 36 1.5.1 A corrupção no Brasil Colônia 39 1.5.2 A corrupção no Brasil Imperial 43 1.5.3 A corrupção no Brasil República 45 1.5.4 A corrupção na Ditadura 48 1.5.5 A corrupção na Democracia 50 1.6 O caso de corrupção da Operação Lava Jato 53 1.7 Ascensão e queda do ex-governador Sérgio Cabral 59

2 POLÍTICA, PODER E SUAS RELAÇÕES COM A CORRUPÇÃO 64 2.1 A questão da corrupção sob a ótica do poder 65 2.2 Análise dos principais relatos do ex-governador Sérgio Cabral 66 2.3 As relações de poder para Foucault 68 2.4 Foucault e o biopoder, a governamentalidade e a culpa 78 2.5 Reflexões acerca da Corrupção na ótica de Foucault 84 2.6 O mal da atualidade: o olhar da Psicanálise no fenômeno do Poder e da Corrupção 87 2.7 Reflexões sobre a Corrupção e o Mal-Estar na Civilização 102

3. DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 110 REFERÊNCIAS 119

12

INTRODUÇÃO

A corrupção se tornou um dos assuntos mais comuns nas mídias sociais e cada vez mais expõe a falência da ética - fundamental à vida social, pois é baseada na consciência de que cada ação individual se reflete no contexto social e no universo particular do indivíduo. O ato de corromper é a expressão equivocada dos valores de uma dada cultura que justifica a exploração de uma pessoa sob a outra e que condecora aquele que obtém vantagens por sua perspicácia. A corrupção, quando praticada na administração pública, expõe um universo de inversão de valores no qual prevalecem interesses particulares em detrimento dos interesses públicos, interferindo em todo processo social e político. Quando um governante desvia uma verba destinada à saúde ou supervaloriza a compra de insumos por meio de licitações ilícitas em seu benefício ou em benefício dos seus cúmplices, ele acaba por condenar ao desamparo social todos aqueles que necessitaram deste auxílio. Os recursos públicos são provenientes dos cidadãos na forma de contribuições obrigatórias (impostos). Assim, a sociedade exige respostas aos seus anseios e necessidades na aplicação desses recursos, com o objetivo de ver e usufruir dos resultados decorrentes de um eficiente destino desta contribuição. É dever da administração pública a prestação de serviços públicos com qualidade e transparência na gestão destes recursos. A aplicação de capitais nesse setor expõe que nem sempre o sucesso se configura em aumento de confiança na conduta ética dos agentes públicos. A inquietação com a falta da ética pública faz parte da agenda política internacional devido às consequências que resultam da sua falta, pois além de ser um embaraço moral é uma cominação à ordem econômica e à saúde coletiva. Neste sentido, este estudo busca discutir sobre o fenômeno da corrupção e suas relações com o poder nos indivíduos que trabalham na administração pública e de verificar como ela se expressa no comportamento ético nesse contexto, em observância aos preceitos que orientam a conduta no trabalho no serviço público. A pesquisa que subsidiará este projeto tem um enfoque genealógico, político, social e ético, e ainda usará alguns conceitos da Psicanálise. Partiremos de 13

algumas hipóteses, entre elas, a de que há fatores no próprio modo de funcionar da administração pública que favorecem a não observância destes preceitos éticos, e de que a própria formação pessoal do indivíduo, tanto pelo contexto social quanto pessoal, pode favorecer ou dificultar a conduta ética no trabalho. O interesse por este estudo se justifica, primeiramente, pelo fato de a pesquisadora exercer desde 2012 suas atividades profissionais no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ) - Órgão responsável pela fiscalização da aplicação dos recursos públicos por parte dos governantes. O uso de todo o dinheiro do contribuinte aplicado em impostos é verificado por esse setor da Administração Pública, que tem sua missão e atribuição definidas pela Constituição. Segundo informações disponibilizadas no site do TCE/RJ, o órgão atua em conjunto com a Assembleia Legislativa, e, quando solicitado, atua também com o Executivo, o Judiciário, o Ministério Público, a Receita Federal, demais tribunais de contas e outros setores. Um dos trabalhos de fiscalização refere-se à prestação de contas do Chefe do Poder Executivo do Governo do Estado, que são julgadas pela Assembleia Legislativa, com base no parecer prévio (contrário ou favorável), emitido pelo Tribunal - que verifica, por exemplo, se a Lei Orçamentária Anual aprovada por essa Assembleia foi respeitada, bem como o cumprimento dos limites constitucionais, em termos de aplicação de recursos em diferentes áreas, tais como educação, saúde e meio ambiente, entre outras. Este trabalho também se estende às contas dos chefes dos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como do Ministério Público e do próprio Tribunal de Contas, além dos prefeitos, presidentes de câmaras dos 91 municípios fluminenses, secretários estaduais e municipais, presidentes de autarquias, fundos e fundações, entre outros órgãos. As contas dos administradores da Capital são analisadas pelo Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro. Assim, num ambiente onde as irregularidades são frutos da má-gestão ou efeito dos equívocos éticos praticados por estes servidores, identificamos a necessidade de buscar respostas acerca da prática da corrupção e da ausência da moralidade na administração pública, não apenas no âmbito deste estado, mas em todo o Brasil. Este projeto é a continuidade de uma vida dedicada à minha formação (graduação, especializações, pós-graduações e Mestrado) na área da Psicologia. Esse caminho se funde à minha trajetória profissional e ao meu interesse pelo 14

estudo do comportamento humano, do Direito, da Filosofia, da Sociedade e, atualmente, pelo estudo da dimensão ética do sujeito e suas relações com o poder. Esta pesquisa também se justifica pelos atuais questionamentos que a sociedade tem feito sobre a atuação de nossos governantes e aos escândalos que levaram a população a grandes manifestos, indagações e conflitos que permeiam a prática da ética na administração pública. Ela ainda se justifica pelo inexpressível número de material publicado sobre o tema, o que mostra a necessidade de uma maior investigação e reflexão do fenômeno. No aspecto institucional, o assunto abordado se torna relevante no contexto da ética, o que me permitirá, como servidora, agregar valor sobre as atividades exercidas hoje e futuramente, visando ao cumprimento da missão institucional; no incentivo ao autodesenvolvimento e desenvolvimento profissional contínuo; na disseminação do conhecimento adquirido, visando ao aperfeiçoamento profissional e institucional; no comprometimento com a chefia com o processo de desenvolvimento do servidor; na inovação de processos educacionais; no estímulo à pesquisa e a publicações sobre ética na administração pública; para a excelência dos serviços prestados no âmbito deste Tribunal, entre outras. O objetivo geral deste estudo é apresentar uma compreensão teórica e prática da corrupção a partir da investigação bibliográfica e de dados colhidos por meio de publicações em jornais, revistas de dados relevantes das falas, ações e condutas sobre o tema, e do estudo do caso de um ator envolvido no cenário político (reconhecido pelo seu descompromisso ético e condenado por seus atos de corrupção na Administração Pública Governamental do Estado do Rio de Janeiro) – o ex-governador Sérgio Cabral. Os agentes públicos têm como premissa a promoção da confiança da sociedade em seu caráter ético, na sua conduta, exercendo suas funções com segurança, inteireza, e clareza sobre o que pode e o que não pode ser feito, como preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no campo da promoção da ética pública, estabelecendo valores como paz, segurança, desenvolvimento socioeconômico das nações e dos povos e padrões éticos internacionais, a serem perseguidos pelos Estados. A Declaração ainda define, em seu artigo 21, que todos têm o direito de participar do governo de seu país, todos têm o direito de 15

acesso igual ao serviço público em seu país e a vontade dos povos será à base da autoridade do governo. Nesse sentido, é uma responsabilidade do governo, pois é necessário assegurar e facilitar a participação de seus cidadãos no processo de governança e a prestação de serviços públicos de qualidade, acessíveis a todos. Assim, algumas hipóteses devem ser consideradas, como o modo de funcionar da administração pública que favorece a não observância dos preceitos éticos; a formação pessoal do indivíduo, tanto pelo contexto social quanto pessoal pode favorecer ou dificultar a conduta ética no trabalho; o poder político como fonte de corrupção das pessoas; e as pessoas corrompidas pelo abuso entre as relações com o poder. Dessa forma, abordaremos no primeiro capítulo a história da corrupção no Brasil, suas possíveis causas e tipos, perpassando por fenômenos, fatos e história em diversos períodos até os dias atuais com a operação “Lava Jato” e a prisão do ex-governador Sérgio Cabral. Neste capítulo, ainda contextualizaremos conceitos de ética e poder de forma objetiva para uma melhor compreensão do estudo. No segundo capítulo investigaremos o fenômeno da corrupção e introduziremos o pensamento filosófico contemporâneo. Pesquisaremos ainda a questão da corrupção sob a ótica do poder, utilizando, além da filosofia, a abordagem psicológica e psicanalítica na constituição do poder neste sentido. Para a metodologia, o presente estudo tem como proposta a abordagem qualitativa de um estudo de caso. Segundo Chizzotti (2003), a pesquisa qualitativa se refere a um trabalho empírico, por meio do desenvolvimento de uma pesquisa que visa reunir e organizar um conjunto comprobatório de informações. Essas informações retiradas dessa pesquisa são documentadas, abrangendo qualquer tipo de informação disponível, escrita, oral, gravada ou filmada, que se preste para fundamentar o relatório do caso que será, por sua vez, objeto de análise crítica pelos informantes ou qualquer interessado. Godoy (1995) destaca que a pesquisa qualitativa parte de questões amplas, que se definem ao longo do estudo, não havendo hipóteses pré-estabelecidas, separação sujeito-objeto, neutralidade científica, generalização ou manipulação de variáveis. Nesse sentido, não tem perspectiva de investigar em termos de causa e efeito, pois considera que os fenômenos sociais que estuda são determinados por uma complexidade de causas e efeitos. Neste tipo de pesquisa, o mais importante 16

é o porquê do fenômeno, partindo de como o olhar, os discursos e as práticas em relação ao objeto estudado foram construídos historicamente. O estudo também se dará por meio de uma pesquisa bibliográfica. Serão utilizadas produções acadêmicas e artigos publicados em sites científicos, indexados nas bases de dados como: SCIELO (Scientific Eletronic Library Online), BVS (Biblioteca Virtual de Psicologia), PEPsic (Periódicos Eletrônicos em Psicologia) e no Google Acadêmico, a respeito do tema pesquisado, em consonância com o objetivo exposto. Também serão analisadas as publicações de livros que abordam assuntos como a Psicanálise, ética, política e sociedade. Nesse contexto, serão utilizadas as obras de Michel Foucault, Sigmund Freud e suas reflexões de amplitude social e cultural juntamente com outros autores contemporâneos. Para complementar a fundamentação teórica, estudaremos autores que suplementarão os estudos além de outros que contribuíram para história social e política da corrupção e sua relação com o poder. Diante da escassez de produção bibliográfica referente à corrupção na atualidade, utilizamos ainda publicações jornalísticas, principalmente a coleta das falas públicas do ex- governador. A pesquisa será descritiva, pois visa observar, analisar e registrar as informações sobre o poder e a corrupção na Administração Pública, assim como sua dimensão ética. A pesquisa será ampla dentro do fenômeno estudado, pois buscará compreender e refletir sobre o indivíduo e suas relações com o poder, e como esta relação implica de forma contundente na ética presente no trabalho dos representantes legais do Estado, perpassando ainda pela figura do ex-governador, visando definir os condicionantes da relação entre poder e corrupção. Para Minayo (1994), uma pesquisa qualitativa será sempre descritiva e as descrições nela contidas estão sempre influenciadas pelos significados que o ambiente lhes proporciona, ou seja, são produtos de uma visão subjetiva. Segundo a autora, é uma realidade que não pode ser quantificada, respondendo a questões muito particulares, trabalhando com um universo de significados, crenças e valores e que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos que podem não ser reduzidos à operacionalização de variáveis. O método incluirá revisão crítica da literatura, visando subsidiar e a dar sustentação às afirmações contidas neste estudo, especialmente no que tange às Leis, à Administração Pública, à Psicanálise e à sociedade. Triviños (1987) 17

salienta que no processo de desenvolvimento do estudo há também a necessidade de uma fundamentação teórica geral, sendo fundamental uma revisão aprofundada de toda a literatura em torno do tema. E é essa fundamentação teórica que proporciona a formulação das questões de pesquisa e das perguntas norteadoras. As publicações disponibilizadas foram investigadas por meio das palavras- chave isoladas ou em interação: Ética/Corrupção; Origem/Corrupção; Corrupção/ Poder; Corrupção/Psicanálise; Psicanálise/Poder. Esse levantamento foi fundamental para a verificação empírica quanto ao estado da arte e no que se refere ao ineditismo proposto neste trabalho no Brasil. Para a coleta de dados serão utilizadas falas, ações e condutas do ex- governador – disponibilizadas nos grandes periódicos jornalísticos produzidos à época. A metodologia da análise de dados será calcada na abordagem de Bardin (2002), bem como as exigências da análise de conteúdo. Tal análise foi definida pela autora como um conjunto de técnicas que tem a comunicação como ponto de partida e é sempre feita a partir da mensagem, tendo por finalidade a produção de inferências. O ato de inferir significa a realização de uma operação lógica, pela qual se admite uma proposição em virtude de sua ligação com outras proposições já aceitas como verdadeiras. Na análise de conteúdo, os dados são reunidos segundo um significado comum (dados brutos) e depois reunidos em categorias empíricas relativas à problemática da pesquisa. Essas categorias são escolhidas pelo pesquisador, segundo critérios definidos tanto pela pesquisa quanto pelos próprios dados brutos, como veremos abaixo (BARDIN, 2002). Neste caso, os registros das falas do ex-governador compreendem as fases de pré-acusação, pós-acusação, pós-condenação e pós-prisão. Para sua contextualização, o presente trabalho apresentará o estudo do caso do ex-governador Sérgio Cabral para a coleta de dados, selecionados diante dos papéis fundamentais que representam no cenário da corrupção. Outro critério adotado para a participação nessa pesquisa foi a relação do caso com o poder e a Administração Pública. A análise desses dados se dará à luz de Bardin (2002), que aponta como pilares na análise de conteúdo a fase da descrição ou preparação do material, a inferência ou dedução e a interpretação. Dessa forma, os principais pontos da pré- análise foram a leitura flutuante (primeiras leituras de contato os textos), a escolha 18

dos documentos (no caso os relatos transcritos), a formulação dos objetivos (relacionados com a disciplina), a referenciação dos índices e elaboração dos indicadores (a frequência de aparecimento) e a preparação do material. De acordo com Ludke (1996), o processo de análise de conteúdos tem início com a escolha de uma unidade de análise. Há dois tipos de unidade: a de registro e a de contexto. Na primeira, selecionam-se segmentos específicos do conteúdo, como, por exemplo, a frequência com que aparece no texto uma palavra, um tópico, um tema, uma expressão, uma personagem ou um determinado item. Em outros casos será preferível analisar o contexto em que uma unidade dada ocorre. Serão utilizadas as seguintes sugestões de Bardin (2002) para a análise de dados propriamente dita: 1 - Uma delimitação progressiva do foco de estudo; 2 - Uma formulação de questões analíticas, a fim de permitir a articulação entre os pressupostos teóricos do estudo e a evidência empírica; 3 - O aprofundamento da revisão da literatura; 4 - A testagem de ideias junto aos sujeitos, neste caso o ex- governador; 5 - Um uso extensivo de comentários, observações e especulações ao longo da coleta. Quanto aos procedimentos de análise de dados, inicialmente será realizada uma leitura vertical das publicações. Entendemos por leitura vertical a das entrevistas, reportagens, artigos e depoimentos, um a um, do começo ao fim (sem preocupação de análise), mas, sim, com a compreensão do conteúdo. Recorreremos a áudios e vídeos disponibilizados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no momento dos depoimentos para nos certificarmos ou esclarecer falas reproduzidas em forma de texto. Serão realizadas as correções às transcrições no sentido de dar maior fidedignidade possível às falas. Após uma nova leitura de cada material, desta vez marcando os temas relacionados ao objeto da pesquisa, agruparemos as categorias identificadas em cada relato, formando um conjunto organizado em temas, para efeito de comparação, quanto às semelhanças e variações. A leitura exaustiva de cada um dos dados pode realçar categorias mais evidentes que deram origem a uma primeira classificação: o estudo de caso. Buscaremos, com isto, atender aos critérios de qualidade das categorias, sugeridos por Bardin (2002), ou seja, que as categorias devem ser mutuamente exclusivas, homogêneas, pertinentes e produtivas. Embora considerados esses 19

critérios, a complexidade e a ambiguidade das falas, ao contrário de constituírem problema para análise, serão enriquecedoras de aspectos novos que permitiram criar categorias próximas do conteúdo delas. As categorias identificadas ao final deste processo de análise serão trabalhadas utilizando ainda alguns fundamentos da Psicanálise. Ressalta-se a importância dos estudos empíricos referenciados na análise do material extraído das publicações sobre o caso. As categorias não serão quantificadas, mantendo- se fiel ao princípio qualitativo (MINAYO, 1994). Os resultados serão obtidos por meio do estudo do referido caso. Percorreremos as categorias definidas pela análise de conteúdo e traçaremos alguns comentários a título de articulação de conteúdos significativos e/ou relevantes para o objeto de estudo. A partir da análise de um mau governo, refletir que a falta de ética é um sintoma de administração e gestão deficientes, o que permite que gestores públicos irresponsáveis ou inescrupulosos explorem oportunidades para pôr o interesse próprio acima do interesse público, contrariando as exigências de seus cargos. É necessário estabelecer sanções administrativas e punições contra a má conduta, por intermédio de processos criminais e civis, para demonstrar que falhas éticas não são toleradas. Esta pesquisa busca evidenciar que a má conduta está ligada, não só a um problema estrutural de fragilidade institucional, mas emocional e ético também. Um sistema legal inadequado antecipa, catalisa e reforça padrões de comportamento inadequados. Mas, por outro lado, a falta de treinamento profissional no serviço público e dos planos de carreira faz com que a corrupção crie raízes e um sentimento de impunidade que toma conta daqueles que não possuem valores éticos. Educar os cidadãos sobre os seus direitos, aumentar a transparência e a responsabilização dos gestores públicos para com suas ações é fundamental numa sociedade; contudo, para assegurar um padrão ético adequado no setor público são necessários: vontade política, transparência, normas simples e suficientes de conduta. Diante disso, este trabalho buscar avançar nesse novo entendimento, como contribuição ao controle social, tendo como consequência o surgimento de um novo olhar no campo da administração pública, trazendo para análise modelos já existentes sobre a ética pública. 20

CAPÍTULO 1:

A CORRUPÇÃO NO BRASIL: DO DESCOBRIMENTO À ATUALIDADE

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1.1 A contextualização da Ética e sua diferenciação da Moral no fenômeno corrupção

Iniciaremos nosso estudo realizando a priori uma contextualização da moral e da ética no fenômeno corrupção para um maior esclarecimento sobre o seu panorama. Contudo, seu desenvolvimento e aplicabilidade serão explorados no decorrer da pesquisa teórica que subsidiará a tese, pois a dimensão ética do exercício do poder sustentará a hipótese proposta. Este capítulo reflete um propósito que é a compreensão e interesse geral sobre um tema importante para o Brasil no contexto atual, vivendo a maior crise de sua história, o que demanda uma reconstrução política, exigindo um reforço da dimensão ética desta prática. A corrupção não é um episódio esporádico, é uma novela infinita do cotidiano brasileiro. Assunto comum nos lares e botequins faz parte do senso comum e dos julgamentos mais superficiais sobre a política brasileira. Não é novidade que a corrupção é o um dos crimes mais perversos que podem ocorrer dentro de uma democracia liberal. Como afirmado anteriormente, ela expõe a falta da ética num mundo em que o indivíduo é autodeterminado, indica a falta ética de um sujeito por meio de escolhas e decisões individuais. Para vivermos em sociedade é necessário cumprir regras éticas e o corrupto corrompe essa regra, essa lei. Segundo Vasquez (1997), a palavra ética vem do grego ethos que significa “modo de ser, caráter”. Algumas vezes é considerada como sinônimo da palavra moral, esta de origem latina, morale, que quer dizer “costumes”. No entanto, a moral pode ser definida como um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos numa comunidade social. A ética, por sua vez, relaciona-se ao estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana, do ponto de vista do bem e do mal, seja relativo a uma sociedade, em determinada época, seja de modo absoluto. De acordo com Hegel (1990), a ética, muitas vezes, é confundida com a moral, pois na Grécia Antiga já foram consideradas sinônimas, embora tenham conceitos diferentes. O filósofo Aristóteles, inclusive, afirmou que moralidade não está apenas na ordem do discurso, mas também na paixão e na ética. A separação dos dois termos se deu progressivamente e se afirma com a 22

declaração de que a vida ética exige o desempenho de obrigações morais, legais e éticas. O autor ainda utiliza o argumento de Kant, de que a moralidade é a consciência moral, em seu imperativo categórico, como códigos para determinados grupos sociais, sem precisar prestar contas a ninguém. A eticidade, em contraponto, constitui-se da formação do caráter de cada indivíduo, segundo padrões de identificação do ambiente familiar e social (HEGEL, 1990). Conforme Sung e Silva (1995), a ética é uma reflexão teórica que analisa e critica ou legitima os fundamentos e princípios que regem um determinado sistema moral, ou seja, a ética poderia ser entendida como a teoria sobre a prática moral. A moral, portanto, fica compreendida como algo que se impõe de fora para dentro, baseada nos costumes; a ética, por outro lado, implica uma análise crítica destes costumes que serão aceitos ou questionada pelo indivíduo. A ética pressupõe um juízo de valor que vem de dentro para fora do indivíduo. Analisando ainda o conceito de ética, observa-se que esta depende de opções dadas ao indivíduo, ou seja, do poder da liberdade de escolha. Esta possibilidade de escolha, como requisito para classificar uma atitude como ética, é colocada por Aristóteles em Ética a Nicômaco. A ética implica uma escolha própria de cada indivíduo e não deve depender de terceiros. Diante de uma situação, o indivíduo age de acordo com seus valores e com as opções que lhe são apresentadas em um determinado momento. Além de ter como pré- requisito a liberdade, o exercício da ética implica também responsabilidade. Dessa forma, a moral é cristalizada na sociedade, enquanto a ética é individual e crítica, estando relacionada, assim, à liberdade de escolha e à responsabilidade. Para Vasquez (1997), a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. A eficácia ética tem por propósito a reflexão crítica da atividade moral, quer dizer, sobre o que é ou pode ser errado. Dessa forma, a ética não é moral. Moral é o objeto de estudo da ética, diz respeito aos costumes, valores e normas de conduta de cada sociedade. A ética pode ser entendida como o regimento, a lei do ato moral, o controle de qualidade da moral. Os códigos de ética, por exemplo, servem para os diferentes “tipos” de sociedades dentro do sistema maior. A ética ainda está presente em todas as ações humanas, que, por sua vez, são norteadas por valores. No sentido das atitudes humanas estão os estudos científicos nas quais também estão incluídos os valores. Os valores não 23

são estáveis, eles evoluem com as necessidades do homem, haja vista o princípio da igualdade, que diz respeito a tratar da mesma maneira indivíduos diferentes, hoje repensados como da equidade, ou seja, devem-se atribuir tratamentos diferentes a indivíduos diferentes, entendendo-se que não há nada mais desigual do que tratar igualmente situações ou indivíduos com características diversas. Na leitura de Vasquez (1997) ainda podemos definir a ética como um conjunto de regras, princípios ou maneiras de pensar que guia, ou chama a si a autoridade guiar, as ações de um grupo em particular (moralidade), ou, também, o estudo sistemático da argumentação sobre como nós devemos agir (filosofia moral). A real subsistência da moral não significa a existência evidente de uma ética, entendida como filosofia moral, pois é essencial uma reflexão que questione e interprete o sentido dos valores morais. Assim, temos a compreensão de que existe uma profunda ligação entre Ética e Filosofia: a primeira nunca pode deixar de ter como fundamento a concepção filosófica do homem que nos dá uma visão total deste como ser social histórico e criador. Uma série de conceitos com os quais a ética trabalha de uma maneira específica, como os de liberdade, necessidade, valor, consciência e sociabilidade pressupõe um prévio esclarecimento filosófico. Também, os problemas relacionados ao conhecimento moral ou com a forma, significação e validade dos juízos orais exigem que a ética recorra a disciplinas filosóficas especiais, como a lógica, a filosofia da linguagem e a epistemologia. A questão da dimensão ética deve ser abordada a partir de pressupostos básicos que a fundamenta, como o da dialética da necessidade e da liberdade. Assim, a história da ética se entrelaça com a história da filosofia, e é nesta que ela busca fundamentos para regular o desenvolvimento histórico-cultural da humanidade. Dentro do nosso estudo, esse viés perpassa ainda pela história do Brasil e a formação do indivíduo.

1.2 Panorama da Corrupção

A corrupção não acontece somente no Brasil, é um fenômeno político e, principalmente, econômico que possui uma longa história. No decorrer da evolução dos povos está repleta de fatos denegridores que foram proporcionados por seus governantes, independente de seus títulos – Caciques, Faraós, Reis, 24

Imperadores, Papas, Presidentes, entre outros, estiveram envolvidos em tais atos. Atualmente, o tema faz parte do cotidiano social de forma insistente e de várias maneiras. Contudo, existe uma diversidade de atos que abrange seu histórico como nepotismo, propina, desvios de funções, altos salários de servidores que não comparecem ao trabalho, suborno, entre outras condutas ilícitas da posição pública em benefício próprio que são veladas e não chegam ao conhecimento da sociedade, pois sua prática é sempre encoberta. A corrupção é um fenômeno negativo e injusto do ponto de vista social, pois favorece um ambiente de incerteza e ineficiência que afeta o desenvolvimento dos mercados, atrasa o crescimento de um país, acentua as condições de pobreza, diminui o desenvolvimento econômico, atingindo principalmente os cidadãos menos abastados. Nesta pesquisa, identificamos diferentes abordagens sobre corrupção, apresentando diversas dimensões do seu estudo, como a legal, a econômica, a política, a cultural e a administrativa. Cada teoria traz distintos entendimentos sobre a corrupção e quais possíveis formas de reduzir a sua ocorrência, como citaremos sob a forma de uma breve explanação, mediante a pesquisa sobre a temática. A dimensão legal abrange três aspectos: a má aplicação das leis, a falta de leis e as leis que favorecem a corrupção por meio de lacunas. É um rompimento com os deveres formais da função pública, como o suborno e o nepotismo. Nesse sentido, entendemos que com mais leis e com sua melhor aplicabilidade existiria menos corrupção; a dimensão econômica abrange pesquisas sobre a obtenção de vantagem financeira ilegal e seus efeitos nocivos para economia de um país; a dimensão política abrange estudos que caracterizam o aspecto político da corrupção, fraudes, irregularidades, superfaturamento, desvio de fundos públicos diante de manipulações de ordem política, levando em consideração que a prática é realizada por “políticos corruptos”; a dimensão cultural está ligada a crenças, religiões, influências da mídia e o comportamento social – aborda a questão da corrupção de acordo com a região, procurando entender se os aspectos culturais podem explicar como a corrupção está vinculada a uma sociedade e como esta tolera os agentes; a dimensão administrativa se traduz na ausência de um bom governo, reforçado sob a ótica da vulnerabilidade e fragilidade da prática governamental e o interesse do funcionário público em benefício próprio, 25

rompendo instruções e regras internas com objetivos pessoais. Nesse sentido, o próprio Estado não elabora medidas anticorrupção, posto que falta formação e capacitação. Como observado, existem algumas interpretações acerca do estudo da corrupção. Mesmo reconhecendo a importância das abordagens dessas dimensões na compreensão desse estudo, todas têm em comum o viés moral acerca da sua conceituação. Nesse sentido, constatamos que a corrupção tem a ver com o rompimento das virtudes do indivíduo, e se origina quando as regras são rompidas numa relação com a moral. Contudo, propomos o estudo da dimensão ética sob a ótica da nociva prática governamental do ex-governador e atual detento Sérgio Cabral Filho, que estudaremos no próximo capítulo. Dessa forma, algumas conceituações são importantes para a apresentação do panorama da corrupção. Para Tanzi (1998), o termo corrupção é derivado do verbo latino rumpere, que significa romper, quebrar. É o que se rompe na sua organização; estava associado e se solta. Seria o rompimento de uma regra, uma lei, um código moral ou social. Para consolidação do ato, ele deve ocorrer pela intenção de um favorecimento pessoal ou com pessoa com a qual o corrupto tenha o algum vínculo. De acordo com Miranda (2018), um dos primeiros acadêmicos a definir corrupção foi Valdimer Orlando Key, em 1936. Em sua Tese, ele considera a corrupção como o controle abusivo do poder e dos recursos do governo, visando tirar proveito pessoal ou partidário. Esse proveito pode ser na forma de poder ou controle dentro da organização política ou na forma de apoio político por parte de vários indivíduos (KEY, 1936, p. 5-6 apud MIRANDA, 2018). Nesse sentido, vemos que inicialmente o fenômeno se caracteriza como uma forma de obter vantagens por meio da extrapolação das tarefas dos servidores públicos. Na redação dada pela Lei de Improbidade Administrativa, o conceito de “Corrupção” é inserido no entendimento dos “atos de improbidade administrativa”, que são caracterizados por causarem danos ao erário, enriquecimento ilícito e violação aos princípios administrativos. No Código Penal, corrupção é o termo para designar o mau uso da função pública, visando obter uma vantagem. A Corrupção passiva sobrevém quando um servidor público exige dinheiro ou outra 26

vantagem para fazer algo ou deixar de fazer algo. Em contraponto, a corrupção ativa transcorre no momento em que um cidadão oferece um benefício financeiro ou de outra natureza a um agente público, visando a uma vantagem. Segundo o site do The World Bank - Banco Mundial -, de acordo com as Diretrizes sobre Prevenção e Combate à Fraude e à Corrupção configura prática corrupta oferecer, dar, receber ou solicitar, direta ou indiretamente, qualquer coisa de valor para influenciar de maneira imprópria as ações de outra parte, sendo exemplos típicos dessas práticas o suborno e o “pagamento por fora”. Para Agostinho de Hipona, o conceito de corrupção tem a religião como indicador das práticas políticas e a Terra seria um mundo corrupto de cobiça, luxo e vaidade, numa eterna busca de redenção por meio da fé cristã. Santo Agostinho, como ficou conhecido, foi um defensor obstinado da corrupção moral, pois colocava a moralidade religiosa acima da política, defendendo inclusive que a queda do Império se deu pela corrupção moral dos romanos em sua obra “Cidade de Deus”. Na sua visão, a política é algo fundamental para que haja na sociedade a ordem. Por meio do exercício com retidão do poder, os governantes prestarão a todos um excelente serviço voltado para o bem comum. Santo Agostinho não distingue o fundamento ético do homem e do Estado, pois o Estado será bondoso, justo e correto se os seus agentes forem movidos pela justiça – que se encontra somente em Deus, sendo esta a condição para que o Estado desempenhe com eficácia sua função de promover a segurança, a paz e a concórdia dos cidadãos. O pensador renascentista Maquiavel, em sua obra O Príncipe (1686), faz uma anteposição aos que tinham a corrupção como um caráter relacionado à moral individual, pois via na corrupção uma ligação com o enfraquecimento de leis e instituições políticas, bem como a falta de preocupação e ação dos cidadãos em relação à coisa pública. Para o autor, a corrupção é uma desgraça que soterra o conceito de bem público, sem distinção de partido e com poucas exceções, gerando a decadência e a ruína do Estado. Maquiavel rompe com a tradição do governante bonzinho, comparando-o a um déspota, desmistificando a ideia de que era um patriarca da pátria. Podemos observar que, a partir desse discurso, iniciamos um movimento de ruptura da ética com a política a partir do momento que o autor desenvolve a ideia sobre como chegar ao poder sem escrúpulos, defendendo, inclusive, 27

métodos pelos quais os fins justificam os meios. Nesse sentido, podemos destacar que diversos políticos no decorrer da História seguiram à risca os preceitos de Maquiavel (1686), lesando e prejudicando o próprio homem. Bezerra (1995) aponta três definições mais usadas para a corrupção; a primeira delas é baseada no ofício público. Nesse sentido, a corrupção existe quando há desvio por parte dos servidores públicos, com o objetivo de obter benefícios para si ou para outrem. A segunda está baseada no mercado, que considera corrupção o ato do servidor que tem por premissa a maximização de sua renda pessoal. E, em terceiro, a definição centrada na ideia de bem público, que entende a corrupção como sendo a violação do interesse público em função da preocupação com ganhos particulares. Para os juristas e filósofos italianos Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998), a corrupção é um comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura do Estado. É entendida como um fenômeno pelo qual o servidor público é levado a agir fora dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa. Ainda de acordo com os autores, a corrupção é o comportamento ilegal de quem desempenha uma atividade estatal. Segundo Prado (2014), a corrupção é uma forma de violar o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito, principalmente porque acaba influenciando na Administração Pública. Neste sentido, a corrupção torna-se uma confusão entre interesses particulares com os interesses da Administração Pública, cujos fins sempre serão ilícitos. A imagem do Estado fica comprometida, sua credibilidade é questionada, já que o dever de todos que exercem alguma função pública é agir com probidade, eficiência e impessoalidade. Carvalho (2001) afirma que no Brasil o sentido da palavra corrupção ganhou novos contornos, de acordo com cada período da História, e argumenta:

Uma das causas de nosso pobre desempenho analítico pode estar na dificuldade de precisar o que cada um entende por corrupção. Em nossa história e sem dúvida também em outras, o sentido da palavra variou ao longo do tempo (CARVALHO, 2001).

Para o autor, a corrupção pode ser ainda caracterizada pela determinação de se fazer algo por vias ocultas de acordo com a concepção ética da maioria (corroborando com a proposta do estudo), não se tratando apenas de uma 28

questão de imoralidade, mas sim de ilegalidade, visto que está intrinsecamente ligada a um comportamento contrário à lei, por parte de quem desempenha um papel na estrutura estatal. No Brasil, quando pensamos em atos de corrupção, atribuímos imediatamente aos representantes políticos, que no país são eleitos democraticamente pela sociedade para o exercício de governo. Diante deste senso comum, não há dúvidas que, historicamente, os agentes políticos adotam práticas ilícitas, caracterizando-os frente à sociedade, como a face da corrupção. Por outro lado, o conceito popular de “jeitinho brasileiro” assumiu um papel preponderante nas relações entre os indivíduos, tornando-se tão comum ao cotidiano, que em muitos casos ocorre de modo imperceptível. Para Bittencourt (2010), de acordo com o Código Processual Penal Brasileiro, a corrupção é um delito (art. 333). Conforme dispõe o referido artigo, a corrupção está baseada no ato de oferecer ou prometer alguma vantagem indevida ao funcionário público, como forma de ele praticar, omitir ou retardar ato de ofício, que é aquele compreendido entre as atribuições funcionais específicas do servidor público. A corrupção está dividida em ativa - quando o servidor realmente a pratica – e a passiva – que acontece em razão da sua conduta no sentido de receber ou aceitar de vantagem indevida. De acordo com o Código de Ética dos Servidores Públicos, toda e qualquer prática que atente contra a moral, ou burle as leis e regulamentos, com intuito de obter vantagens para si ou para outrem se caracteriza como o objeto da corrupção. Contudo, no dia a dia, são comum atitudes como oferecer propina a agentes fiscalizadores e policiais para evitar multa, não emitir uma nota fiscal, furar fila, comprar produtos falsificados, bater ponto para o colega, colar na prova da escola, fazer “gato” na televisão a cabo ou na energia elétrica, alterar o peso e medida de produtos, exercer a profissão sem a devida observância aos Códigos de Ética profissional, sonegar impostos, utilizar bens públicos para fins particulares ou em benefício de terceiros, entre outros atos tão ilícitos quanto os cometidos pelos governantes do País. O fato é que poucos reconhecem que praticam atos corruptos, ainda que muito pequenos, mas, mesmo assim não conseguem abrir os olhos para verem as próprias falhas e mergulham pouco a pouco na corrupção cotidiana. 29

Desta maneira percebemos que a corrupção não é privilégio dos políticos ou servidores públicos, posto que está arraigada no cenário social brasileiro como uma doença contagiosa e até incurável, pois não foi descoberta a vacina ou o antidoto para esse mal que ultrapassa os limites da moral e da ética. Para Nietzsche (2008), o sujeito decadente é crente, iludido pela estrutura do pensamento; é aquele que vive num mundo de fantasia e sombras. O autor dá o nome de corrompido a um animal, a uma espécie, a um indivíduo, quando perde seus instintos, quando escolhe o que lhe é nocivo. A corrupção não se trata de criar uma estratégia para movimentar mais poder, para se afirmar como o detentor desse poder: pelo contrário. Ela é o sentir-se culpado por ter criado a estratégia e revelar-se como culpado para as autoridades:

A entendo – e desejo enfatizar novamente – livre de qualquer valor moral: e isso é tão verdade que a corrupção de que falo é mais aparente para mim precisamente onde esteve, até agora, a maior parte da aspiração à “virtude” e à “divindade”. Como se presume, entendo essa corrupção no sentido de decadência: meu argumento é que todos os valores nos quais a humanidade apoia seus anseios mais sublimes são valores de decadência (NIETZSCHE, 2008).

Para o autor, a corrupção é a decadência contra a humanidade, pois acreditam que o futuro é tão incerto que vivem para o momento: estado de alma que favorece o jogo dos tentadores de todas as espécies, posto que também não se deixa seduzir, e corromper, se não por “um momento”, reservando-se a um futuro e à virtude. Este panorama evidencia que o político acha justo fazer de tudo para continuar no exercício do poder, considerando como ações legítimas atos como lesar o erário, subornar e extorquir, agindo dentro da lei, só que uma lei própria. Esse abuso de poder não pode ser considerado comum. O poder é a capacidade de agir direta ou indiretamente que se exerce entre pessoas, configurando uma estratégia política. Não existe sociedade sem poder e as relações de poder nascem dentro da sociedade. O poder político surge com Estado, e ele definirá as regras sociais que estabelecem as relações entre os cidadãos, visando organizar, proteger e assegurar a vida em sociedade. Com o Estado nascem as instituições e os regimes políticos que inicialmente foram estabelecidos para pôr fim ao sistema de poder pessoal. Neste sentido, faremos 30

uma contextualização inicial do poder; contudo, este será a base para os próximos capítulos.

1.3 A Corrupção e o Exercício do Poder

A Constituição Federativa do Brasil (1988) declara em seu primeiro artigo que o povo é titular do poder, que o exerce por meio de representantes eleitos democraticamente. Na Constituição, o povo é soberano e detentor do poder, podendo este estipular limites ao exercício deste, pois é direito do povo reavê-lo quando os interesses dos representantes se sobrepuserem aos interesses coletivos. Essa soberania popular é exercida pelo voto, e os direitos e deveres que tratam da participação do povo na vida política são assegurados, sendo um instrumento que dará limites ao próprio poder, o arbítrio, dentro da sua regulamentação baseada na democracia e com seus objetivos fundamentais: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Na atualidade, um dos fundamentos da democracia baseia-se na ideia de que os governantes devem prestar contas ao povo, responsabilizando-se por suas ações ou omissões no exercício do poder. Em contraponto, sempre surgem preocupações do lado dos que detêm o poder, e da força que essas instituições que os controlam possam ganhar; um desses órgãos são os Tribunais de Contas. Notamos que existe uma preocupação latente de que o controlador se torne sem limites, que ele se sobreponha e se torne um grande um vilão sobre o governo e sobre a própria sociedade, impedindo o desenvolvimento do país. O filósofo francês Michel Foucault, em sua obra “A Microfísica do Poder”, de 1979, afirma que o poder é exercido de múltiplas maneiras e não somente a partir do Estado ou outras estruturas sociais historicamente poderosas, como a Igreja, a escola ou forças armadas. Segundo o autor, existe um “micropoder”, que é exercido igualmente nas relações sociais diferentes do “macropoder”, em que indivíduos ou a sociedade exercem o poder e praticam a coação mediante ele, podendo afetar uma relação conjugal, familiar, trabalhista ou até social, pois nossas relações diárias são um conjunto de pressões e contrapressões entre indivíduos. 31

Foucault (1979) analisou como os mecanismos de poder operam na sociedade. Sua reflexão sobre o tema vai além da esfera pública e política, já que, para ele, o poder está na base de todas as práticas sociais e não se traduz numa posse, mas, sim, numa relação entre uma ou mais pessoas e jamais será exercido sem algum tipo de resistência. Ele deve obedecer às regras sociais, institucionais e culturais interiorizadas pelo indivíduo. Neste sentido, para Foucault (1979), o poder está difundido em todas as formas e setores, sendo mais evidente nas instituições políticas. A sociedade se constitui como vítima desse poder, tornando o homem escravo dessas instituições e de toda forma de poder. O autor afirma que o poder é micro e macro, pois ele se fragmentou e se tornou eficaz, formando autoridades ditadoras em nome do Estado de direito, destruindo, assim, a democracia. Dessa forma, o poder não está apenas no setor público, mas em todos os lugares, em todas as classes. Contudo, o controle desse poder é fundamentalmente político, ideológico, possibilitando vantagens aos seus agentes. Com o poder nas mãos, a corrupção se vislumbra e pode acometer tanto um policial quanto um senador. De acordo com Foucault (1979), não é possível a prática da corrupção sem o poder; portanto, a corrupção é um fenômeno de quem exerce o poder. Desse modo, é primordial a criação das leis, que são rigorosas para aqueles que usufruem o poder, beneficiando, assim, a punição dos corruptos. Foucault (1979) ainda analisou a questão dos interesses ao tratar das artes de governar ou governamentalidade, alegando que esta diz respeito à gestão das coisas e das pessoas, a um problema do próprio governo, no sentido de condução das populações. É o problema do governo como gestão das condutas que forma o objeto das diferentes formas de governamentalidade política, sendo a primeira forma a razão do Estado, cuja ideia é definir os objetos que devem orientar o governo dos homens, realizado pelo poder soberano, e os objetos pelos quais se estruturará esse poder. O Estado é ao mesmo tempo um dado e um objeto a ser construído. Por isso, é organizado por uma política interna baseada em princípios ilimitados de intervenção. Segundo Foucault, após uma ruptura conceitual houve uma transformação nas formas de governamentalidade, uma limitação nas medidas de política interna. A partir deste, as atividades individuais passaram a obedecer a um 32

princípio de limitação intrínseco. Para ele, o instrumento intelectual que motivou essa transformação foi a economia política e o seu resultado foi a nova forma de governamentalidade chamada liberalismo. Foucault (1979) aponta que a principal característica do liberalismo é assegurar o jogo complexo dos interesses, garantindo a liberdade necessária para que tal jogo se desenrole. Assim ele inicia a discussão sobre os mecanismos de segurança como o princípio de cálculo para a fabricação das liberdades necessárias à arte de governar liberal, que tem seu funcionamento unificado à necessidade de determinar exatamente em que medida, e até que ponto, os interesses individuais, as liberdades individuais, vão constituir ou não um perigo para o interesse de todos. A partir dessa discussão entende-se que o jogo de interesses no liberalismo só poderá se manter puro ou livre de corrupção se houver mecanismos de segurança que garantam a separação das esferas de interesse, a pública e a privada. O fenômeno da corrupção no Brasil tomou um curso grandioso que atinge todos os degraus institucionais com raras exceções. Sua prática gera descrédito seja qual for sua natureza, sendo considerado o grande mal da política, que acabou tornando o poder em crime. A corrupção é o uso discricionário do poder, opondo-se não só às virtudes, mas às leis como um todo. O agente político é visto como um indivíduo que tem acesso a esse poder, por isso a ideia de que a corrupção é um problema somente ligado à política. Essa afirmação corrobora com o pensamento de Foucault, pois essa “microfísica da corrupção” existe e dela participam muitos indivíduos que publicamente condenam esse histórico de desvio de conduta. Essas microformas de corromper a vida social perdem a visibilidade diante dos altos desvios de verbas que esvaziam os cofres do Estado com a macrocorrupção, que envolve ministros, parlamentares, etc. Contudo, todos nós somos cúmplices quando não denunciamos todas as formas de corrupção praticada, que deve ser combatida tendo como base o viés da ética.

1.4 Corrupção e causalidade

A corrupção, como já foi acima constatado, é um crime mais conhecido e difundido no meio político diante do acesso ao poder. Não existe uma causa única 33

para sua existência, visto que ela decorre de uma variedade de fatores. Um destes é a impunidade, que significa ausência de punição. A impunidade faz com que a corrupção se torne uma prática costumeira, frequente, cotidiana, em que o corruptor tem a segurança de que nunca será descoberto. Esta certeza da ausência de punição não é somente a falta da lei, mas, sim, da sua má aplicabilidade, na qual um advogado consegue facilmente encontrar lacunas na lei e livrar pessoas que lesaram o erário público de responder um processo criminal. O peso dessa impunidade recai sobre três esferas: a política, a econômica e a social. Na política, perde-se a credibilidade nos agentes públicos; na econômica, os danos ao erário, sem contar as mazelas sociais e a péssima qualidade dos serviços públicos, como saneamento, saúde, educação e segurança.·. De acordo com Andrioli (2006), as consequências do sistema político brasileiro que se constitui num ciclo vicioso que facilita as ações corruptas são a falta de transparência, a exclusão da maioria da população das decisões políticas mais importantes, a baixa participação política da sociedade civil e a impunidade com relação à corrupção. Para Sousa (2011), as causas da corrupção estão agrupadas em quatro aspectos: níveis de desenvolvimento, processos de modernização, cultura cívica e qualidade das instituições, dentre as quais destacamos a que encontra causas da corrupção nos níveis de desenvolvimento de um Estado, e a que faz correspondência da cultura cívica da sociedade com a corrupção. A primeira dimensão está intrinsecamente ligada a países com grandes desigualdades sociais, funcionando como um mecanismo paralelo de distribuição de renda, já que o Estado, enquanto detentor dessa função, não a realiza satisfatoriamente. Já no aspecto da civilidade das culturas como fator essencial para uma sociedade corrupta, o autor destaca que ela se justifica à medida que as sociedades com altos níveis de confiança social e institucional, e com uma maior participação e interesse da sociedade pela política, apresentam níveis de corrupção menos críticos. Como observa Klitgaard (1994), a corrupção não está limitada aos países em desenvolvimento e seu predomínio e resistência são desalentadores. Para o autor, a corrupção tem um efeito nocivo sobre os gestores públicos e o desenvolvimento econômico e político, juntamente com órgãos ineficientes da 34

administração pública, provocando um impacto imediato no crescimento dos países mais pobres. Ele aponta que se trata de um crime de cálculo e não de paixão, o que significa que este comportamento derivaria menos da falta de princípios éticos ou morais e mais das condições materiais favoráveis para a prática do crime. Vale ressaltar que o autor, ao fazer referência aos primeiros autores que escreveram sobre nações atrasadas ou colônias, ressaltaram a corrupção como sendo sinal de debilidade moral ou de inferioridade dos nativos (KLITGAARD, 1994). Para Klitgaard (1994), de acordo com a teoria de cálculo, a corrupção ainda envolve três variáveis: a oportunidade para ocorrer o ato ilegal, a chance de a ação corrupta ser descoberta, e a probabilidade de o autor ser punido. Portanto, é importante a punição do autor, a penalização do ato corrupto exerce papel avançado no combate à corrupção de forma imediata, e na sua ocorrência, de forma mediata. A prática da transgressão está particularmente ligada à possibilidade de os atos corruptos serem descobertos. Assim sendo, diante do apresentado podemos constatar que a questão da corrupção não seria sua distinção, mas sua punição, para que haja uma resposta à sociedade, visto que um sistema mais rígido causa temor ao pretenso corrupto. É comum subentender que um servidor público detém certos poderes, podendo, dessa forma, favorecer-se deles, utilizando o poder como moeda de troca, constituindo o abuso de autoridade de forma arbitrária. O filósofo Aristóteles (2016) possui uma obra que trata especificamente da corrupção. Este livro sobre “A Geração e a Corrupção” aborda este tema mais como questão biológica do que como problema ético. Para o autor, todos os seres naturais possuem uma essência e uma finalidade. Quando a substância de algum ser ou sua finalidade se modifica, ele se corrompe, se degenera, se perverte. Assim, o ser vivo, ao morrer, também se corrompe. Há ainda corrupção quando um ser não cumpre ou deturpa sua finalidade. Segundo Aristóteles:

(...) no que diz respeito à geração e à corrupção dos entes que se geram e se destroem por natureza, devemos distinguir, em todos eles do mesmo modo, suas causas e definições; ademais, é preciso determinar qual é o aumento e a alteração, e se por acaso se deve considerar que a alteração e a geração têm a mesma natureza ou se, pelo contrário, são 35

diversas, tal como se diferenciam também quanto aos nomes que levam (...) (ARISTÓTELES, 2016)

Por exemplo, quando alguém afirma ser o que não é também é corrupção. O filósofo ainda realizou um estudo sobre a corrupção dos magistrados da época, em que alega que a ambição é a origem das revoltas políticas, posto que estas nascem da prepotência e abuso de cargos dos magistrados ambiciosos. Dentre o conjunto de fatores responsáveis pelo nível de corrupção observado nas diversas nações, é possível destacar, dentre elas, as seguintes: a elevada burocracia, que reduz a eficiência da administração pública; um sistema judiciário lento e pouco eficiente; um elevado poder discricionário do Estado na implementação e condução de políticas; e salários inferiores no setor público, em relação ao setor privado. Em nosso país existem inúmeros fatores que contribuem para a corrupção, é o que afirma Carvalho (2001):

...entre as inúmeras razões que agravaram a corrupção no Brasil estão, em destaque, o crescimento da máquina estatal, trazendo consigo uma excessiva burocratização, ampliando as oportunidades para o exercício de práticas clientelistas e patrimonialistas, e aumentando o domínio do executivo sobre o legislativo; a ditadura militar, que protegeu com o arbítrio a atuação dos governantes; e a construção de Brasília, que libertou os políticos do controle das ruas, ampliando a sensação de impunidade (CARVALHO, 2001).

A ineficiência estatal, por exemplo, comum em diversos Estados no mundo, é um considerável fator de desenvolvimento da prática de atos corruptos. Entendemos, assim, que a fonte da corrupção é a própria fonte do Estado. Várias manifestações dessa ineficiência do poder público podem ser mencionadas como incentivos à corrupção, como, por exemplo: decisões arbitrárias, que desvirtuam o uso do poder, sendo resultado de uma imódica discricionariedade dos agentes públicos; o corporativismo existente em setores da Administração, como a Justiça, por exemplo; a ineficiência quase generalizada de repressão à práticas ilícitas praticadas por pessoas que exercem funções públicas importantes, entre outras. Conforme se notam, inúmeras são as causas da corrupção, variando desde a civilidade das sociedades como um todo, até a reduzida probabilidade de efetiva punição. Importante salientar que a atribuição à corrupção não advém 36

apenas de uma causa específica, mas antes de um conjunto de fatores que colaboram para sua prática e são esses fatores que devem ser analisados como forma de remediação de seus danos.

1.5 A Origem da corrupção no Brasil

No Brasil, a intimidade com a corrupção é tamanha que flerta com o cotidiano do brasileiro, que foram dados vários adjetivos para o termo corrupção, como cerveja, molhar a mão, jeitinho, rolo, esquema, mamata, negociata, por fora, taxinha, propina, presentinho, falcatrua, maracutaia, entre outros. Essas nomenclaturas estão associadas ao comportamento de querer “tirar vantagem em tudo”, pressupondo que os sujeitos aguardam o máximo possível de benefícios, visando exclusivamente ao benefício próprio. A corrupção no Brasil não é novidade e sua história é marcada por diversos acontecimentos. Sendo assim, fica oportuna a necessidade de estudar o contexto histórico da corrupção em sua origem – O Descobrimento e, em outros momentos, que caracterizam e servem de referência para o fenômeno. Neste capítulo, essas épocas serão retratadas de acordo com as percepções sociais, políticas e morais, arraigadas em nossa atualidade. De acordo com o site da Transparência Internacional, no momento desta pesquisa (dezembro, 2019), o Brasil ocupa no seu Índice de percepção da corrupção referente a 2018 da 96ª posição para a 105ª no ranking mundial. O País caiu e sua pontuação passou de 37 para 35: o valor mais baixo dos últimos sete anos. Ao lado do Brasil, estão países como Armênia, El Salvador, , Timor Leste, entre outros. Neste sentido, o Brasil é um dos países mais corruptos do mundo, estudiosos afirmam que a corrupção surgiu na desde a época do seu Descobrimento (1500), o que aponta para um aprimoramento da arte de corromper na sua evolução histórica em todas as suas dimensões. Segundo Mello (2015), as raízes da corrupção são observadas desde o processo de colonização e, posteriormente, nos primórdios da vida sociopolítica brasileira, no patrimonialismo, no clientelismo e no coronelismo. Os primeiros que aqui chegaram não tinham compromisso ético, moral, religioso e político, apenas a vontade de tirar proveito da situação, ludibriando os índios, por exemplo, em troca das riquezas naturais do novo território. 37

Eigen (2002), corroborando outros autores estudados, afirma que a Carta de Pero Vaz de Caminha enviada ao Rei de Dom Manuel sobre o Descobrimento do Brasil, no ano de 1500, é um dos primeiros registros de corrupção no País. Quando, no fim, Caminha aproveita para solicitar ao rei que libertasse da prisão em Portugal seu genro, que havia sido condenado na Ilha de São Tomé, por ter roubado uma igreja e por ter ferido um padre anos antes. Segundo Mello (2015), a Carta seguiu até chegar às mãos do Rei em Lisboa como documento altamente secreto, dado o receio de que a notícia chegasse aos espanhóis. Inicialmente confundido pelos historiadores como um pedido de emprego, o caso é, na verdade, uma solicitação para resgatar o genro de Caminha, como podemos no trechotrecho da Carta na qual fica caracterizado o pedido:

... E, pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro o que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, 1º dia de maio de 1500. (mello,2015).

Como podemos observar no trecho deste documento histórico, além de o escrivão entrar para a História por relatar na Carta o Descobrimento de novas terras, ele é também autor do primeiro registro oficial de corrupção em terras brasileiras, a partir do momento que utiliza da sua proximidade com o Rei para solicitar um favor pessoal. Nesse sentido, se o termo corrupção em uma das suas conceituações é definido como a utilização do poder ou autoridade para obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse ou de outrem, podemos afirmar que a Carta de Caminha é o registro nato do primeiro caso de corrupção no Brasil. De acordo com Barbosa (2006), Portugal, na época do Descobrimento, contava com apenas um milhão e meio de habitantes, por isso enfrentou dificuldades para povoar a terra descoberta, enviando para o Brasil os encarcerados, degredados, falidos, marginalizados e todos sem perspectivas daquele País. Quem chegava procurava explorar o possível, enriquecer e se proteger. Por outro lado, o governo português, interessado em manter esse quadro e temendo a formação de uma elite intelectual que viesse questionar o seu 38

domínio, também impedia a criação de faculdades, o que além de ser um desserviço foi um desestímulo à educação. Ainda segundo Eigen (2002), nos primeiros anos após o Descobrimento, no período colonial, a fraude mais comum na colônia era o contrabando do ouro, sendo uma das formas de se fazer corrupção por meio de santos de madeira com vazios na parte interna, no qual eram escondidas as pedras preciosas. Dessa corrupção foi derivada a conhecida expressão “santa do pau oco”, que significa que aquilo ou aquele que parece algo por fora, mas internamente é completamente diferente. De acordo com o site Movimento Contra a Corrupção (MCC), diante das dificuldades de encontrar súditos dispostos a deixar o conforto da corte em troca de uma aventura selvagem num novo território, Portugal adotou um mecanismo de concessão de cargos para garantir seu domínio e explorar as riquezas da nova colônia. Para os que aceitavam vir, esses cargos trariam prestígio social e vantagens financeiras. No auge desse período ocorria o comportamento ilegal dos funcionários públicos, que eram encarregados de fazer a fiscalização do contrabando e também de outros crimes praticados contra a Coroa portuguesa em solo brasileiro. Em vez de fiscalizarem tais práticas, eles cobravam propina para ignorar o que era feito pelos contrabandistas. Além disto, há a participação em práticas ilícitas, como o comércio ilegal de produtos que vinham do Brasil, como o pau-brasil e as pedras preciosas, entre outros. Cabe ressaltar que tais produtos somente poderiam ser comercializados com autorização especial do Rei, mas acabavam nas mãos dos contrabandistas. Ainda de acordo com o MCC, outro dado a ser destacado nesse período foi a construção de Salvador para servir como sede da Coroa portuguesa nas Américas, envolta em uma série de corrupção. Segundo historiadores contemporâneos, estima-se que a obra custou o equivalente a um terço das receitas do reino, e somente os desvios justificariam esse gasto. As licitações da época (como as de hoje) já eram esquemas arranjados, e o nome do vencedor não causava surpresa. Os empreiteiros loteavam as obras entre si, combinando os lances antecipadamente, muitas vezes em conluio com o leiloeiro, superfaturando o custo das obras. Segundo Mello (2015), o império que nos descobriu e colonizou já trazia consigo a semente da corrupção, com práticas de nepotismo, clientelismo, tráfico 39

de influência, entre outros fatores. Pesquisadores sobre o tema referem que o surgimento da corrupção no Brasil está intrinsecamente ligado ao emprego de degredados (como citamos) no início de nossa colonização. Todavia, muitos discordam de tal afirmativa, visto que muitos dos degredados apenas cometeram pequenos delitos, relacionados à moral ou à religião. Essas práticas proliferaram no Brasil por todo o período colonial e, com a manutenção da mesma elite no poder depois da independência do país, elas continuaram a encontrar um terreno fértil para prosperar. Dessa maneira, será realizada uma pequena análise acerca da corrupção desde o período colonial até os dias atuais. Portanto, para comprovar que a corrupção no Brasil realmente não é um fenômeno recente e que está arraigada em praticamente todos os setores de nossa sociedade, vamos mostrar em detalhes a história da corrupção no Brasil.

1.5.1 A Corrupção no Brasil Colônia

O período colonial Brasileiro corresponde à chegada dos seus descobridores no ano de 1500 e à sua independência em 1822. Contudo, nos primeiros 30 anos, denominado período pré-colonial os portugueses não fizeram muito além de encaminhar pessoas para o reconhecimento das suas regiões e territórios. De acordo com Barboza (2006), o primeiro sistema político do Brasil Colônia foi denominado Capitanias Hereditárias, que se traduzia na privatização do patrimônio do reino. Contudo, esse sistema não funcionou a contento e em 1548 foi instalado um governo central, significando que a sociedade brasileira se desenvolveu de forma descentralizada, quanto à exploração e à busca de riquezas, e centralizada quanto à observância de normas oriundas de Portugal, permitindo excessiva e predatória arrecadação de impostos por funcionários aristocratas, que apenas fiscalizavam a classe produtiva e consumia, fazendo do seu posto de trabalho uma função pública de propriedade pessoal privada. Ao discutirmos a corrupção na era colonial, é necessário estudar a cultura política desse momento, suas dinâmicas comerciais, mercantilistas e como ocorriam as práticas administrativas da Coroa portuguesa. Nesse sentido, percebemos que tanto a sociedade como a administração nesse período necessitavam de ordem e regras, pois havia ausência de nexo moral, com etnias 40

e indivíduos no contexto social, pois se perpetuava o segregacionismo, impedindo que houvesse interação entre seus partícipes. Para Carvalho (2004), o patrimonialismo e o clientelismo caminhavam lado a lado, já que a riqueza não era distribuída de forma equitativa, mas em troca de favor político e, nesse sentido, construíram um sistema sociopolítico viciado que se perpetuaram além da independência, passando pelos séculos XIX e XX. De acordo com Aires e Melo (2015), nesse cenário a corrupção era tida como um desdobramento natural, consequente de uma sociedade abstrusa e instável, permeada de pobreza, miséria e uma economia excludente, dirigida por leigos e eclesiásticos sem qualquer valor moral. Ainda de acordo com os autores, o momento foi marcado por um pluralismo político, que se mostrou de forma nociva ao convívio social, visto que a implantação de um regramento jurídico português trouxe inúmeros problemas, pois o modo de viver dos colonizados eram bem diferentes de seus colonizadores. Barboza (2006) aponta que outras formas nocivas de convívio social também eram presentes naquele período, como a criação em 1534 das Capitanias Hereditárias pela Coroa portuguesa, que constituíam a primeira divisão de terras realizada na colônia. Dessa maneira, o território brasileiro foi dividido em grandes lotes e entregue a uma pequena parte da burguesia portuguesa, ao qual esse sistema criado teve grande fracasso, pois a Coroa permitiu livre arbítrio de governar a seus donatários. Segundo Aires e Melo (2015), esses donatários, diante do desinteresse da Coroa em amparar suas queixas, e em virtude da distância geográfica entre a colônia e a Coroa, nem sequer ousavam pisar em terras Tupiniquins. Os autores atribuem aos primeiros núcleos de colonização à incidência do fenômeno da corrupção, pois o livre arbítrio dos donatários, aliado à ambição, não havia disciplina em relação à Justiça e os abusos eram comuns. Faoro (2001) aponta que outro fato a ser levado em consideração é:

...o perfil e o animus daqueles que vieram habitar as terras da antiga Ilha de Vera Cruz, visto que muitos apenas estavam em busca apenas de acumular fortunas e retornar ao seu país de origem (FAORO, 2001, p. 127).

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De acordo com Aires e Melo (2015), entre os exemplos de ações corruptas desse período têm-se:

...funcionários régios responsáveis pela guarda e armazenamento de pau Brasil e outras mercadorias, ao qual tinham a responsabilidade de protegê-la contra invasão de navios estrangeiros. Todavia, tais funcionários aproveitam da falta de fiscalização e negociavam com nações vizinhas, tirando proveito dessa situação para uso pessoal (AIRES; MELO, 2015, p. 7).

Segundo Aires e Melo (2015), os agentes públicos eram escolhidos de forma celetista, bastando apenas a indicação do rei, pois este era um atributo inerente à sua soberania. Tal forma de política ocorria, pois remunerava mal seus servidores, abrindo um leque de possibilidades para ganhos escusos, ou seja, os baixos salários “justificavam” lucros paralelos dos servidores, sendo a Coroa conivente com tais práticas:

Nota-se que tal comportamento era tido como indiferente pela Coroa, pois essa tentava compensar os baixos salários, desde que atendessem duas condições implícitas: a primeira, a de não atentar contra as receitas régias; a segunda, a de agirem com um mínimo de discrição. Dessa maneira, os ganhos paralelos não eram enquadrados como “corrupção”, pois havia certa tolerância a tal prática (AIRES; MELO, 2015, p. 9).

Abrimos um parêntese aqui para Wagner José de Souza, quando, em seu artigo (2013), disponível no site da UGT, afirma que o serviço público no Brasil teve origem em 1808, quando a família real portuguesa se instalou no Rio de Janeiro. A partir daí é que se iniciou o processo de tomada de consciência da importância do trabalho administrativo, diante da necessidade de promover o desenvolvimento da então colônia, de acordo com a diplomacia real. Proclamada a independência o Brasil virou Império, depois virou República e, ao longo da história política do país, sempre estiveram presentes os funcionários públicos, ajudando a administrar a máquina que impulsiona o desenvolvimento da nação brasileira. A definição de funcionário público é como aquele que mantém um contrato de trabalho com o Estado, e seus vencimentos decorre da arrecadação de impostos. Após a Constituição Federal de 1988, preferiu-se empregar a designação Servidor Público e Agente Público, referindo-se aos trabalhadores do Estado. Segundo Furtado (2006), ainda no período colonial, a Companhia do Comércio do Maranhão andou longe de funcionar corretamente, pois os pesos e 42

as medidas que usavam eram falsificados; tudo era produzido em quantidade insuficiente para abastecimento do mercado e da pior qualidade; o próprio governador estava envolvido no esquema, pois o cravo que produzia era depositado no palácio e embarcado com prioridade, para não falar nas negociatas laterais que faziam. Para Aires e Melo (2015), o que ocorre é que diante de tais práticas outras situações foram surgindo. Para os autores:

Mesmo que não fosse tipificado nem considerado contrário aos “bons costumes”, o interesse particular quando praticado em detrimento do interesse público, traz consequências nefastas em sequência”. (...) Não podemos esquecer que tais costumes, práticas e modos operandi acabaram por afetar outras áreas da sociedade, contribuindo para a criminalidade. No entanto, verifica-se que os juízes da época faziam vistas grossas, abrandando penas ou deixando de aplicá-las, unhando parte das mercadorias e facilitando a soltura de presos (AIRES; MELO, 2015, p.10). Embora na atualidade não seja permitido por lei o recebimento de lucros indevidos, na época colonial tal prática era tolerada, não sendo enquadrada como corrupção. Entre os excessos administrativos desse período encontravam-se ainda:

(...) confusão de leis, morosidade, regalias e benesses da máquina estatal, justaposição de funções administrativas, remunerações desniveladas e acumulação de cargos pelos mesmos oficiais, aliadas às recorrentes contradições existentes nos códigos legais. Tal fato decorria porque inexistia um sistema jurídico ordenado e organogramas que obedecessem à distribuição racional de funções [...], divisão calculada de tarefas e carreiras pontuadas pelo mérito (AVRITZER et al., 2012, p. 211).

A historiadora Adriana Romeiro, que é doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), investigou a corrupção neste período em arquivos da Biblioteca Nacional numa pesquisa dedicada ao seu doutorado, na qual apontou que o enriquecimento ilícito de governadores, autoridades e políticos vêm desde o governo de Mem de Sá, entre 1558 e 1572, que, na época, já era acusado de enriquecimento ilegal. Outro governante foi Dom Lourenço de Almeida, que governou entre 1720 e 1732, que também foi acusado de ter constituído fortuna a partir de atos ilícitos a partir do comércio de ouro e diamante. Contudo, havia dois tipos de requisitos para que a pessoa pudesse roubar sem ser importunado nesta época: agir com discrição e respeitar determinados limites. Dom Lourenço transgrediu tudo isso, extraindo pedras 43

preciosas sem o conhecimento da Coroa. Esses governos já eram auditados; contudo, o investigado acabava subornando a autoridade responsável pela devassa. Ainda segundo a historiadora, a impunidade estava prevista em lei, pois investigar e punir alguém poderia se constituir em algo tão catastrófico que poderia prejudicar o bem comum, então era feito “vista grossa”. A impunidade também era um privilégio concedido pelo Rei às elites locais, pois estas prestavam serviços à Coroa, fazendo o comércio funcionar, que em troca ganhou o direito a impunidade, havendo um abismo entre a norma e a prática. Pela corrupção, as elites puderam garantir os interesses econômicos e participar do jogo político e do processo de colonização. Por meio de “maracutaias”, homens comuns ascenderam socialmente à elite, dando flexibilidade ao império português. Se a política adotada pela Coroa portuguesa fosse inflexível, o império não teria resistido, por isso a tolerância. Fazendo um paralelo aos dias atuais, podemos afirmar que nenhum governante desta época chegou a tanto como alguns políticos contemporâneos, numa indiferença própria da classe desde o século XVI. A corrupção não é exclusividade do Brasil; contudo, em razão da nossa Constituição, aparece bem mais forte, pois desde o Descobrimento foi tolerada pela Corte e ignorada pela Justiça. A corrupção encontrou desta maneira, em solo brasileiro, condições propícias para sobreviver e se difundir na cultura do novo país durante a sua formação. O contexto colonial instaurou estratégias e artifícios para burlar o pacto colonial, e a classe política hoje reflete essa mentalidade. Dessa forma, a corrupção só pode existir porque está disseminada na sociedade.

1.5.2 A Corrupção no Brasil Imperial

Como uma espécie de tradição, a corrupção continuou no Brasil com a chegada da família real portuguesa. No dia em que Dom João desembarcou no Rio de Janeiro, ele recebeu “de presente” de um traficante de escravos a melhor casa da cidade, no mais belo terreno. Ao ceder a Quinta da Boa Vista à família real, Elias Antônio Lopes assegurou um status de “amigo do rei” e foi seu visto de entrada para os privilégios da Corte. No período em que Dom João VI esteve no Brasil, de 1808 a 1821, a corrupção se alastrou consideravelmente, chegando ao 44

período Imperial. É denominado Brasil Império o período da História brasileira que teve início com a Independência, em 07 de setembro de 1822, e terminou com a Proclamação da República. De acordo com Aires e Melo (2015), Dom João VI foi substituído por Dom Pedro I, que assumiu o cargo de príncipe regente nomeado por seu próprio pai, que deixou o país falido e endividado. O príncipe, que apesar de ter um perfil estadista, tinha um apreço pela vida mundana e amigos de recomendação duvidosa, que assumiram posições importantes no Império, entre eles o português Francisco Gomes da Silva, considerado o homem mais poderoso do período. Companheiro de farras de Dom Pedro, ele nomeava e demitia quem queria. Segundo o autor, embora durante o seu reinado o cenário político fosse bastante conturbado, neste período o termo corrupção foi pouco empregado, havendo escassas referências a ele, muito embora o solo brasileiro continuasse propício e fértil à prática. Para Aires e Melo (2015), durante o reinado do Imperador D Pedro II, a corrupção foi tida como fato normal, principalmente porque ele era visto como um monarca de direito divino e um mecenas das artes, um homem culto, apreciador das artes e da ciência, mas sem nenhuma aptidão para governar, posto que o príncipe ficava constantemente entediado com as rotinas do Estado. Por isso, fazia vistas grossas para os desmandos e a corrupção, inclusive a corrupção eleitoral. Seu reinado foi marcado por diversas festas que aconteciam sem preocupação com as contas do país. Contudo, foi somente a partir de 1880 que o governo imperial se viu envolvido com questões comprometedoras, que geraram uma série de acusações que colocaram em xeque a credibilidade e transparência do Governo. Ainda segundo os autores, é importante salientar que nessa época a corrupção era restrita basicamente às ideias de corromper e corromper-se, sendo a primeira vez que no regime de D. Pedro II teria indicado haver dentro de sua gestão práticas recorrentes dessas ideias. Alguns fatos corroboraram para essa afirmação:

Um desses culmina com o furto das joias da coroa, da residência imperial do Palácio São Cristóvão, que valiam em torno de 400 contos de réis e consideradas bens públicos. Assim, o desaparecimento dessas joias foi considerado como claro sinal de irresponsabilidade de gestão: “um 45

imperador omisso e desleixado, que não conseguia administrar nem a própria casa” (AIRES; MELO, 2015, p.16).

Esse episódio foi alvo de inúmeras críticas e resultou em denúncias de improbidade administrativa, apontando diversos pressupostos, como favorecimentos, proteções políticas e pagamentos de propinas. Diante desse ambiente político surgem outras formas de corrupção, como a eleitoral e a concessão de obras públicas, como podemos observar:

No que se refere à corrupção eleitoral, comum naquela época, é capítulo singular na história brasileira. Deve-se considerar que a participação na política representa uma forma de enriquecimento fácil e rápido. No Brasil Império, 1822 a 1889, o alistamento de eleitores era feito a partir de critérios diversificados, pois somente quem possuísse uma determinada renda mínima poderia participar do processo eleitoral. A aceitação dos futuros eleitores dava-se após uma listagem elaborada e examinada por uma comissão que também julgava os casos declarados “suspeitos”. “Enfim, havia liberdade para se considerar eleitor quem fosse de interesse da própria comissão”. Depois disso ocorriam as eleições, sendo que os agentes (eleitorais) deveriam apenas verificar a identidade dos cidadãos que constava na lista previamente formulada e aceita pela comissão. (AIRES; MELO, 2015, p.20).

Diante dessas situações, uma grande insatisfação tomou conta da sociedade, servindo como exemplo pequenos casos, pois não havia como elencar todos os incidentes decorrentes da corrupção desse Governo. Contudo, o príncipe se mantinha alheio à crise e à corrupção que assolava o País; seu governo se tornou insustentável após a descoberta de corrupção num destacamento do Exército no Piauí. No início de novembro de 1889, ele ofereceu uma festa luxuosa para os oficiais de um navio chileno, com três mil convites disputados pela elite do Rio de Janeiro, como se não houvesse crise. Essa festa ficou conhecida como baile da Ilha Fiscal e foi considerada a derrocada do Império, que caiu em seguida, no dia 15 de novembro, com a Proclamação da República.

1.5.3 A Corrupção no Brasil República

Segundo Aires e Melo (2015), a República teve seu surgimento em 15 de novembro de 1889 e decorre até os dias atuais, sendo dividida em República Velha, Era Vargas, República Populista, Ditadura Militar e Nova República. Para Carvalho (2008), o modo como se deu o governo da Primeira República do Brasil foi semelhante ao Império, o que causou incômodos em setores da população que consideravam o sistema republicano despótico e 46

oligárquico, sob a acusação de que este não promovia o bem público. Os revolucionários de 1930 acusavam os políticos republicanos de carcomidos, não querendo dizer que eram ladrões, mas pretendendo demonstrar que o sistema estava ruído, estragado e velho, por apresentar características tradicionais e excludentes, ao tempo em que havia anseios na população pela superação dessa forma de governo. O sistema democrático-representativo era acusado de estar corrompido em sua essência. Segundo Aires e Melo (2015), esse período foi marcado por inúmeras promessas de ordem e progresso, como o fim da tirania e dos sistemas de privilégios, das injustiças, e pelas garantias de oportunidade e voz para o povo brasileiro, que poderia opinar e decidir sobre os rumos do país. Contudo, apesar da propaganda, observa-se que a implantação da República ocorre perante um golpe militar com escassa participação de civis, apontando que tal concepção desse regime não abrangia a população em si. Nesse sentido, a participação popular encontrou inúmeros entraves nesse período, pois a falta democracia acabou por instituir o voto de “cabresto”.

Os “coronéis”, donos de infindáveis hectares de terra impunham coercitivamente o voto desejado aos seus empregados, agregados e dependentes. Outra forma comum de eleger algum candidato era pela compra de votos. “A forma mais pitoresca relatada no período foi o voto pelo par de sapatos”. No dia da eleição o eleitor ganhava um pé do sapato e somente após a apuração das urnas que o coronel entregava o outro pé. Caso o candidato não ganhasse o eleitor ficaria sem o produto completo. Vale lembrar que o sufrágio não era livre nem secreto, dessa forma, impossível manter os interesses individuais daqueles que detém poder, afastados da seara pública. (AIRES; MELO, 2015, p.22).

De acordo com Carvalho (2004), os coronéis eram membros de oligarquias locais que centralizavam a indicação de influentes postos da estrutura política, fomentando a prática da corrupção. Já o coronelismo que imperava na época era o poder dos coronéis, possuidores de propriedades agrícolas, que, em troca de do apoio político prestado, tinham os trabalhadores como súditos e não como cidadãos. As normas da época eram ditadas por eles, a quem cabiam às indicações dos juízes, delegados, coletores de impostos, agentes dos correios, e professores. Esse modelo ainda se assemelha ao modelo atual de “quem indica” A concentração do poder resultava e ainda resulta em benefício da elite dominante. 47

Para Aires e Melo (2015), deu-se nesse período o “sistema de degolas”, arquitetado pelos governadores que manipulavam as eleições para deputado federal, a fim de garantir apoio ao presidente Campos Sales (presidente do Brasil de 1898 a 1902), ou seja: os deputados eleitos contra a vontade do governo eram simplesmente excluídos das listas ou “degolados” pelas comissões responsáveis pelo reconhecimento das atas de apuração eleitoral. Conforme Aires e Melo (2015), na era do presidente Getúlio Vargas, seu Governo foi marcado por inúmeras críticas por parte da população, devido a denúncias de práticas ilegais e acusação de proveito de verbas públicas, além de enriquecimento ilícito. Carvalho (2008) afirma que a oposição contra Getúlio Vargas, por sua vez, acusou os políticos getulistas e o próprio Vargas de corruptos por, supostamente, enriquecerem aos amigos e a si mesmo à custa do roubo do dinheiro público. A hipotética falta de moralidade individual dos membros do governo incomodava a oposição e a imprensa, que, pela voz de Carlos Lacerda, acusou-os de estarem “mergulhados em um mar de lama”. Motta (2008) diz que o governo de foi visto pela oposição como um continuador do de Getúlio Vargas, pelo mau uso da máquina pública. A realização de grandes obras, como a construção de Brasília, forneceu aos opositores argumentos para denunciar a corrupção. Aconteceram denúncias de superfaturamento de obras e de favorecimento de empreiteiras ligadas ao seu grupo político, que jamais chegaram a ser comprovadas. Apesar da falta de comprovação, as suspeitas de que o presidente estivesse ligado a casos de corrupção e sendo apoiado por comunistas foram suficientes para que Jânio Quadros vencesse as eleições de 1960, com a promessa de acabar com a corrupção no país. O autor aponta que a candidatura de Quadros adotou propositalmente uma abordagem contrária a corrupção, adotando a vassoura como símbolo de campanha, que prometia limpar do governo a corrupção e de seus praticantes. Contudo, meses depois de assumir a presidência, Jânio Quadros renuncia alegando que “forças terríveis” se impunham contra ele. É possível, inclusive, que a falta de alianças políticas motivado pelo discurso anticorrupção tenham impedido o presidente de adquirir o mínimo de governabilidade necessária para se manter na presidência. 48

De acordo com Motta (2008), depois disso, João Goulart, seu vice, assumiu o governou em clima de instabilidade política, e foi acusado de estar ligado a comunistas. O autor aponta que:

...parte da indisposição contra o governo de Jango se deu em razão da convicção de que o presidente era tolerante com a corrupção, característica que seria típica de seu grupo político. De acordo com seus adversários, a corrupção seria prática corriqueira na sua gestão, sendo esse o argumento importante na mobilização liberal-conservadora responsável pelo golpe de 1964. (MOTTA, 2008, p. 208)

A ditadura militar veio na promessa de derrotar o comunismo e combater a corrupção, no sentido de furto do dinheiro do Estado. Havia a ideia de que o vício estava impregnado no espaço público, enquanto a virtude na sociedade se encontrava fora do governo, e que somente um “punho firme” limparia o país de tamanha desonestidade.

1.5.4 A Corrupção na Ditadura

Lembrada pelo desrespeito aos direitos Humanos, a Ditadura Militar se instalou no Brasil em março de 1964, caracterizando-se sob a forma de abusos políticos, censura e torturas que marcaram gerações. No início do governo militar foi criado um subsistema financeiro em torno do Banco Nacional de Habitação, o extinto BNH, com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), tornando possível o financiamento em longo prazo para aquisição de moradias, uma forma de evitar a migração da classe média para o comunismo, fomentando a corrupção, tornando tênue e difusa a relação entre sociedade e administração pública, com o poder restrito aos quartéis. Aires e Melo (2015) destacam que a Ditadura Militar se firmou sob o argumento de lutar contra a corrupção e subversão. No entanto, em março de 1964, estabelece-se o discurso ditatorial, revelando publicamente os principais inimigos públicos do Estado, aos quais conduziam suas ações repressivas por parte do Estado Militar. A batalha contra a corrupção foi considerada um dos maiores fracassos das Forças Armadas, devido à compreensão distorcida do tema, pois atribuíam a ele características puramente morais e éticas, identificando o fenômeno como uma desonestidade específica - o mau uso do dinheiro público. 49

Motta (2008) corrobora estes autores, alegando que a Ditadura Militar veio na promessa de derrotar o comunismo e combater a corrupção, no sentido de furto ou mau uso do dinheiro do Estado. Havia a ideia de que o vício estava impregnado no espaço público, enquanto a virtude na sociedade se encontrava fora do governo, e que somente uma condução com mãos de ferro limparia o país da desonestidade. O regime militar, no entanto, fracassou no combate à corrupção e conviveu com ela, ao tempo em que a censura impedia a divulgação de esquemas de corrupção. O autor aponta que o fenômeno estava em sua natureza, pois se a corrupção é a violação do interesse público, a ditadura era corrupta quando colocava barreiras à participação na vida pública do país pelos cidadãos. Segundo Aires e Melo (2015), o regime militar não estava vacinado contra a corrupção, pois representava a própria natureza da estrutura de poder, pautado por um modelo de Estado autoritário e excludente, que não abriu espaço à participação do povo em matérias públicas, além de deixar desprovidas as reivindicações coletivas. Aqui cabe citar alguns escândalos desse período, no quesito improbidade administrativa, vejamos:

... o caso Hanna Mining Company, sendo esta companhia como dizem, responsável pela queda de dois governos no Brasil e vários abusos na Guatemala; o caso Delfin que durante o governo Figueiredo, em 1983, com a quebra do grupo Coroa-Brastel, surgiu denúncias de que os ministros do Planejamento, Delfim Neto e da Fazenda, Ernani Galveas teriam favorecido o grupo, desviando empréstimos concedidos pela Caixa Econômica Federal. O caso foi aberto na justiça em 1985 e julgado nove anos depois. Galveas teve a denúncia rejeitada e Delfim Neto, deputado federal à época, gozou de imunidade parlamentar e não foi a julgamento. Ao falir, o grupo deixou 34 mil investidores financeiros sem receber e os fatos permaneceram desconhecidos, e os montantes envolvidos, são estimados no valor de 200 milhões de dólares na época. Ainda na referida lista de casos, citamos o do Instituto Brasileiro do Café; o projeto Jari; a construção da ponte Rio-Niterói a Transamazônica, a Operação Capemi (GALEANO, 2008 p.17).

Segundo o autor, essa crise perdurou dos anos 1970 aos 1980, refletindo a degradação das instituições econômicas e o Estado. Enquanto a especulação financeira tem prevalência sobe a ética do trabalho e do investimento produtivo, na administração pública os recursos operacionais do Estado priorizam os interesses individuais, resultado do tráfico de influência e de proteção. Esses escândalos financeiros foram produtos do duplo fracasso das instituições – Estado e economia, respaldados pelo ato institucional – 5 (AI-5), resultando em corrupção no sistema estatal, autoritarismo político e censura dos meios de comunicação. 50

Para Starling (2008), o auge desse período de descrença e descrédito foram as práticas de tortura, que eram medidas largamente utilizadas na atuação política e de conhecimento das autoridades, estabelecendo-se como um meio fértil da proliferação da corrupção:

...para a tortura funcionar é preciso que na máquina judiciária existam aqueles que reconheçam como legais processos absurdos, confissões renegadas, laudos e perícias mentirosos; também é preciso encontrar, nos hospitais, gente disposta a fraudar autópsias, autos de corpo de delito e a receber presos marcados pela violência física. (STARLING, 2008, p. 220)

A partir da pesquisa, podemos constatar que a corrupção também instalou no Estado durante o regime militar, sendo suas principais causas a repressão a liberdades dos cidadãos e a exagerada liberdade de ação do governo em detrimento aos Direitos Humanos. A medida em um governo tem liberdade total de ação, além de também possuir mais liberdade para agir de maneira corrupta; para tanto, a sociedade deve ter a liberdade de participação no governo capaz de reprimir esse mal, e isso só possível na democracia.

1.5.5 A Corrupção na Democracia

Com a volta do País a um regime legítimo, a representatividade dos órgãos legislativos voltou a sua autenticidade, mas não em sua plenitude, pois os índices de corrupção na atualidade só crescem. Por isso, o tema corrupção deve ser estudado e analisado sob qualquer enfoque da história humana, uma vez que permite realizar comparativos entre as concepções modernas desse fenômeno e sua progressão e modificação ao longo do tempo. A Democracia brasileira tem seu início com as eleições indiretas em 1985 e com a promulgação da Constituição Federal em 1988. Neste período a corrupção foi tema de inúmeros debates e discussões. Contudo, após a redemocratização, a corrupção aumentou e ganhou densidade; os escândalos políticos afloraram; jornalistas, historiadores, acadêmicos e alguns atores políticos buscam apontar suas causas institucionais, bem como suas origens históricas e culturais, chamando a atenção para os seus custos e as consequências sociais, sugerindo reformas para a diminuição de sua incidência. Aires e Melo (2015) evidenciam que o aumento do fenômeno se deu devido a três fatores: 51

...maior liberdade de imprensa, sendo possível denunciar casos de corrupção sem censura dos governos, atuação mais enérgica do Ministério Público e Promotores de Justiça, tendo eles maiores atribuições e destaque na sociedade; e o principal fator, maior participação da população na política, que agora, passa a dar mais atenção e importância à transparência das gestões pública. (AIRES; MELO, 2015, p. 38).

Com a Democracia, os cidadãos começaram a participar de forma mais efetiva na política escolhendo diretamente seus representantes. Desde então, em ordem cronológica fazem parte desse período os ex-presidentes: Tancredo de Almeida Neves, que não chegou a tomar posse, em decorrência de sua morte, assumindo, então, o seu vice José Sarney; , primeiro presidente a sofrer um processo de “”, assumindo seu vice ; Fernando Henrique Cardoso; Luiz Inácio Lula da Silva; , segunda presidente a sofrer “impeachment”, assumindo o seu vice , e o atual presidente, Jair Messias Bolsonaro. Embora mesmo com a troca eletiva de governos, a corrupção não deixou de ser vivenciada, inclusive, de forma mais transparente, como por exemplo:

...na época das eleições de 2010 houve seis escândalos com algum destaque, cinco negativos para o “Partido dos Trabalhadores” (PT) e sua candidata, Dilma Rousseff, e um negativo para o “Partido da Social Democracia Brasileira” (PSDB). Foram os casos Erenice Guerra, Verônica Serra, Mensalão, Eduardo Jorge, Paulo Preto, e FARC. Sendo apenas o escândalo Paulo Preto referir-se a candidatura de José Serra, e os demais são relacionados ao governo do PT. (AIRES; MELO, 2015, p.38).

Cabe destacar em nosso estudo os dois episódios que marcam a atual história neste período democrático: o impeachment do ex-presidente Collor e da ex-presidente Dilma Rousseff. Blume (2017) relata acerca do impeachment de Collor:

...Em maio de 1992 estourou a denúncia que levaria o governo Collor a um fim prematuro. O irmão do presidente, Pedro Collor, concedeu entrevista à revista Veja acusando-o de manter uma sociedade com o empresário Paulo César Farias, tesoureiro de campanha de Collor. Segundo Pedro, o tesoureiro seria “testa de ferro” do presidente em negociações espúrias, ou seja, aquela pessoa que faz a intermediação de transações financeiras fraudulentas, a fim de ocultar a identidade de quem realmente as contrata. Em junho de 1992, o Congresso instaurou uma CPI só para tratar das atividades de PC Farias. Com o desenrolar dos trabalhos da comissão, as acusações de Pedro Collor foram ganhando substância, com muitas provas de transações ilícitas ligando PC Farias a Collor. Com a abertura do processo de impeachment 52

autorizado pela Câmara, Collor foi afastado do cargo dias depois. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente, Itamar Franco. Enquanto isso, o Senado apurava se Collor havia cometido ou não um crime de responsabilidade. Com a condenação iminente no Senado, Collor resolveu renunciar ao cargo, no dia 29 de dezembro de 1992. (BLUME, 2017, p.1).

A liberdade de imprensa foi a responsável pela maior veiculação e publicidade a um maior número de casos de corrupção que abalaram a opinião pública. Uma das consequências desses escândalos foi o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Ironicamente, o presidente foi eleito com uma campanha baseada no controle da corrupção, que o colocava como o “caçador de marajás”, aquele que tiraria as benesses e privilégios em forma de salários desproporcionais de funcionários públicos. Quando perdemos a base ética do social, buscamos um salvador, como o representou o ex-presidente Collor. Para Ribeiro (2000), o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso executou uma série de desestatizações que deram espaço a fraudes. Já o governo populista de Luís Inácio Lula da Silva foi marcado pelo escândalo do Mensalão, pelo qual, na primeira vez na história do Brasil, políticos de alto escalão foram julgados e presos. No governo de Dilma Rousseff, o escândalo envolvendo o pagamento de propinas a diretores da Petrobras foi visto como o maior escândalo de corrupção da história do Brasil, dando início a uma série de investigações. Após uma denúncia de crime de responsabilidade teve início o processo de impeachment da ex-presidente, que teria ordenado a edição de créditos suplementares sem a autorização do Senado, bem como realizado operação de crédito com instituição financeira controlada pela União, o que ficou popularmente conhecido como pedaladas fiscais. No dia 31 de agosto de 2016, o plenário do Senado aprovou por 61 votos favoráveis e 20 contrários seu impeachment. Ribeiro (2000) ainda evidencia que:

...a história do Brasil foi marcada por sucessivos casos de corrupção e que a corrupção ocupa um espaço de grande relevância na mídia e em campanhas políticas eleitorais, onde ela incorpora o papel de desmoralizar o outro para reduzir seu poder. Todos os governos eleitos desse modo, no entanto, conviveram com a corrupção. (RIBEIRO, 2000, p. 160).

O autor coloca e nossas pesquisas corroboram que a proposta de colocar ética na política muitas vezes serve para ocultar manipulações, mais que para 53

produzir uma vida social decente. No período democrático recente, entre os inúmeros casos de corrupção, o caso da Petrobrás foi um dos mais significativos, visto que acabou por culminar com a instauração da Operação Lava Jato pela Polícia Federal. Apontando o envolvimento de inúmeros políticos renomados, executivos de grandes corporações, construtoras entre outros.

Segundo a PF, a Petrobrás contratava empreiteiras por licitações fraudadas. As empreiteiras combinariam entre si qual delas seria a vencedora da licitação e superfaturavam o valor da obra. Parte desse dinheiro "a mais" era desviado para pagar propinas a diretores da estatal, que, em troca, aprovariam os contratos superfaturados. O desvio é estimado em mais de R$ 10 bilhões pela PF. (UNIVERSO ONLINE, 2015, p.1).

Assim, podemos concluir que, mesmo nos dias atuais, a corrupção constitui solo fértil em nossa sociedade e que um governo democrático não garante uma democracia de convívio. Neste sentido, é necessário cobrar dos governantes uma conduta ética na condução dos assuntos públicos. Não basta falarmos em democracia das instituições sem ações efetivas para a promoção do seu declínio; cada um tem de fazer a sua parte, procurando conquistar efetivamente a condição de sujeito da história, deixando de ser apenas um objeto das decisões alheias. A ética se distanciou da política na contemporaneidade, sendo tratada de forma autônoma e independente da política, por isso a necessidade da discussão de sua dimensão na atualidade. Devido à importância da Operação Lava Jato no combate à corrupção no contexto atual, a próxima seção será dedicada a pesquisas, principalmente com dados jornalísticos devido à contemporaneidade do assunto e sua repercussão na mídia.

1.6 O caso de corrupção da Operação Lava Jato

A ausência da ética na cultura brasileira sempre foi uma questão crucial, pois o país é historicamente comprometido com a corrupção, mas ao mesmo tempo se indispõe em razão dela, porque não há controle para esse mal social. Nesse sentido, surge a Operação Lava Jato como um episódio recente que deixará um legado permanente, pois trouxe para sociedade o debate sobre as condutas corruptas, que até então eram veladas, e a punição para seus agentes, provocando na nação a esperança da mudança de paradigma. 54

Essa questão ganhou espaço na mídia em razão dos escândalos dos últimos governos, motivado pelo judiciário brasileiro que agiu na perseguição de pessoas acusadas da prática de corrupção em todos os níveis e aspectos. Nesse sentido, a indignação tomou conta da sociedade, a condenação à imoralidade e à falta de ética provocou um sentimento coletivo de punição, sobre o qual o povo já estava descrente. O brasileiro indignado sonhou com um movimento contra a corrupção e contra qualquer prática que atente contra a ética. A questão da punibilidade é uma das queixas que os brasileiros têm, pois acreditam que os ricos, políticos e poderosos raramente sofrem punição pelos seus crimes, sejam eles quais forem, devido a sua acessibilidade ao poder. Para o povo, o sistema judiciário é para o pobre e sem poder. Essa ótica comum e estereotipada pode ser sustentada, por exemplo, pelo perfil do preso no nosso sistema penal. Assim, a Operação Lava Jato se destacou, constituindo-se como um agente de punição e redenção popular, pois rompe com essa visão, e a sociedade começa a ver políticos poderosos e empresários bilionários, com grande influência política e econômica, serem sentenciados e presos em cadeias como meros mortais. Abaixo destacaremos a historicidade da operação e suas principais ações no contexto do fenômeno abordado nesse estudo. Segundo informações obtidas no jornal online da Folha de São Paulo, a Operação Lava Jato teve início em um posto de gasolina onde funcionava um lavador de carros, de onde surgiu seu nome. Foi deflagrada em 17 de março de 2014 pela Polícia Federal, com o objetivo apurar um grande esquema de lavagem de dinheiro envolvendo a Petrobras e grandes empreiteiras do país. É considerada pela Polícia Federal como a maior investigação de corrupção da história do Brasil. A “Lava Jato” ficou popularmente conhecida como um conjunto de operações da Polícia Federal do Brasil, que investigam esquemas de lavagem de dinheiro, que movimentam bilhões de reais em propina. Investigam crimes de corrupção ativa e passiva, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, organização criminosa, obstrução da justiça, operação fraudulenta de câmbio e recebimento de vantagem indevida. A Procuradoria Geral da República também considera a Operação Lava Jato como uma das maiores investigações sobre crimes do colarinho branco no Brasil. Os volumes operados pelo esquema advindos de propinas, desvios e lavagem de dinheiro ultrapassam a casa dos bilhões de reais. De acordo com o 55

Ministério Público Federal (2016), a repercussão política do caso evidenciou a presença de ilustres figuras políticas, envolvendo o maior número de investigados e titulares de foro privilegiado. De acordo com o Ministério Público Federal (2016), a primeira etapa da operação Lava Jato teve seu início no ano de 2009, com a investigação do ex- deputado federal José Janene, os doleiros e Carlos Habib Chater, por lavagem de dinheiro, além de antecedentes ligados ao tráfico de drogas, esquema de corrupção junto à Empresa Petrobras, entre outros. O desdobramento da Operação Lava Jato culminou em mais outras quatro operações; contudo, devido repercussão da mídia, as demais foram tratadas em conjunto. Por meio do acordo judicial de delação premiada, o doleiro Alberto Youssef revelou a participação de executivos da Petrobras no esquema. Na segunda fase da operação apurou-se a prática de crimes de ocultação de recursos provenientes de outros crimes praticados por empreiteiras junto à Estatal (MPF, 2016). Ainda segundo o MPF, em um cenário normal, empreiteiras concorreriam entre si, em licitações, para conseguir os contratos da Petrobras, e a estatal contrataria a empresa que aceitasse fazer a obra pelo menor preço. As empresas obedeciam a um cartel na substituição da concorrência, os preços oferecidos a estatal e quem ganharia o contrato eram ajustados anteriormente de forma secreta, os valores inflados em benefício do privado o que caracteriza um grande prejuízo ao erário. O cartel era tão organizado a ponto de ter normas para a distribuição dessas obras. Em conluio com os executivos da Petrobras atuavam de forma desconcertante para benefícios próprios, por meio de contratos assinados, ou seja, partes dos respectivos contratos eram repassados a executivos e diretores da Petrobras, além de partidos políticos, parlamentares e operadores encarregados da distribuição desses valores (MPF, 2016). Segundo Pacelli (2014), as empreiteiras se beneficiavam dos contratos junto à Estatal. Tais práticas somente permaneceram por longo período porque os diretores indicados pelos partidos promoviam a manutenção de um falso cenário de concorrência, sem questionar o escopo dos respectivos contratos. O autor afirma que essas práticas tiveram início no ano de 2004. A divisão dos contratos, a princípio, ocorria antes do certame licitatório, de forma que outras empresas não conseguiam competir. Em síntese, era um jogo de cartas marcadas ao qual já 56

antecipava como vencedores seus partícipes. Para Pacelli (2014), o crime de formação de cartel evidenciou práticas de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Diante do desdobramento e persecução processual, o Juízo da 13º Vara Federal na Capital Paranaense, , acatou tal prevento. Para o autor, devido à autonomia evidente pela ciência processual, instituiu-se a necessidade de estabelecer normas de competência, decorrentes da Teoria Geral do Direito Penal, no sentido de adotar mais eficácia para a persecução criminal, ou seja, a operação Lava Jato, diferente do caso mensalão, não consiste em uma única ação penal. A conhecida ação penal 470, julgada no Supremo Tribunal Federal, foi objeto de um único inquérito que deflagrou a denúncia de mais de 40 pessoas. Segundo o Ministério Público Federal, a persecução criminal da ação penal 470 desvelou falhas que se depuram na operação Lava Jato. Já em sua 22ª fase, diferentemente da ação penal 470, possuía implicações processuais diferentes. Nesse contexto, aponta-se um trecho da sentença que contextualizou a persecução criminal, vejamos:

67. Tramitam por este Juízo diversos inquéritos, ações penais e processos incidentes relacionados à assim denominada Operação Lava Jato. 68. A investigação, com origem nos inquéritos 2009.7000003250-0 e 2006.7000018662-8, iniciou-se com a apuração de crime de lavagem consumado em /PR, sujeito, portanto, à jurisdição desta Vara, tendo o fato originado a ação penal 5047229- 77.2014.404.7000. 69. Em grande síntese, na evolução das apurações, foram colhidas provas, em cognição sumária, de um grande esquema criminoso de corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da empresa Petróleo Brasileiro S/A - Petrobras cujo acionista majoritário e controlador é a União Federal. 70. Grandes fornecedores da Petrobras de obras e equipamentos pagariam sistematicamente propinas a dirigentes da empresa estatal calculados em percentual sobre o contrato. 71. Paulo Roberto Costa, ex-Diretor de Abastecimento, receberia propinas por intermédio de Alberto Youssef, que dirigia escritório especializado em lavagem de dinheiro. Após acordo de colaboração com a Procuradoria Geral da República e que foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal, confessou os crimes e descreveu todo o esquema criminoso. 72. Na área de engenharia, receberiam propinas Renato de Souza Duque, ex-Diretor de Engenharia, juntamente com seu subordinado Pedro José Barusco Filho, gerente de Engenharia. Como intermediadores, atuariam outros operadores de lavagem de dinheiro. Após acordo de colaboração com o Ministério Público Federal, Pedro Barusco confessou os crimes e descreveu todo o esquema criminoso. 57

73. As propinas também eram em parte destinada a partidos ou agentes políticos que, por sua vez, davam respaldo político à indicação e manutenção no cargo dos aludidos Diretores. A Diretoria de Abastecimento era controlada pelo Partido Progressista - PP. A Diretoria de Engenharia, pelo Partido dos Trabalhadores - PT, enquanto a Diretoria Internacional, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB.

No infográfico produzido pelo Jornal sobre o esquema montado junto à Estatal podemos observar o Esquema de Corrupção na Petrobras:

Figura 1. Esquema de corrupção na Petrobras

Fonte: O Globo

Segundo infográfico do MPF, se a independência das instituições chegou a ser questionada, os números apresentados que traduzem tal afirmativa apontam na Figura 02 os resultados da Operação Lava Jato:

Figura 2. Resultados da Operação Lava-Jato no STF

Fonte: Ministério Público Federal

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Segundo a Procuradoria Geral da República (2014), embora houvesse certo inconformismo pelo uso do instituto da delação premiada, decisões não terminativas, prisões cautelares e preventivas chegaram às instâncias Superiores e não foram reformadas, apontando a higidez com que a Jurisdição fora exercida no decorrer da operação. Hoje, após questionamento do Superior Tribunal de Justiça - o STJ - proibiu alguns desses mecanismos. Mendes, Branco e Vale (2010) afirmam que quando se utiliza inapropriadamente o termo garantismo penal, o Direito Penal constitui fato social em movimento, limitando o poder interventivo do Estado no combate à criminalidade e protegendo seus cidadãos de sua repressão desmedida, por meio de mecanismo de proteção contra o abuso do indivíduo. Roxin (1998) corrobora, alegando que as faces de uma mesma moeda devem conviver para que haja o respectivo Estado de Direito, protetor da liberdade individual, mas também para atender às expectativas do interesse social, correspondente ao Estado Social, mesmo que à custa da liberdade do indivíduo. Podemos então entender à priori que a impunidade aparece relativamente em baixa no país, enquanto o sistema ético brasileiro começa estar em alta, em razão dessa discussão. A prisão para todos, independentemente de classe social, inaugura uma época em que o exemplo, para quem tem a intenção de cometer um crime, demonstra-se como uma ferramenta da contravenção, estendendo-se para outros casos de corrupção e outras práticas ilícitas. Essa ferramenta é a punição que nesse sentido só acrescenta ao sistema ético. Como já vimos, na corrupção a vítima não aparece, e o corrupto permanece escondido, prevalecendo-se dessa condição, pois não há crime sem vítima. Isso acontece até o sujeito da corrupção não ser pego com a “mão na massa”, e mesmo quando pego é amparado pelas leis, que são as normas morais criadas para sua defesa e acusação. A Operação Lava Jato mostrou os bastidores da política brasileira e o poder que os políticos e empresários têm em instrumentos jurídicos à sua disposição de defesa. Estamos em 2020 e ninguém pode prever o que ainda pode acontecer no país em relação à renovação da ética após esta Operação. Analisando o fenômeno, não podemos considerar a operação como uma ação “salvadora da pátria”, mesmo deixando uma cicatriz positiva na história. Um mau passo pode desconstituir sua estrutura, posto que já verificamos mecanismos que deturpam 59

sua origem e questionam sua práxis. É inegável que a Operação tenha retomado o espírito ético na nossa sociedade; contudo, a cultura arraigada por meio de vários segmentos deve discutir, repensar e questionar sobre o quanto vale a pena a honestidade para a civilização contemporânea. Dentro desse contexto, para localizarmos dentro do fenômeno o caso que será analisado em nossa pesquisa, é importante destacar que a Operação Lava Jato se desdobrou em outras operações como a Calicute, Eficiência, Fratura Exposta, Mascate e Unfair Play, nas quais empresários e políticos influentes foram presos, como o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, figura pública que servirá como exemplo para o estudo do poder e da ética na corrupção, a fim de corroborar nossa hipótese. Em 2016, ele se tornou réu e foi condenado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, organização criminosa, fraude de licitações e formação de cartel.

1.7 Ascensão e queda do ex-governador Sérgio Cabral

Não podemos escrever sobre o ex-governador Sérgio Cabral sem falar da questão da moral e da ética. A moral pode ser comparada a um jogo de comportamentos que expõe o caráter da desigualdade da formação brasileira, seja associada à colonização portuguesa, seja constituída na civilização, seja ela ainda constituída por sujeitos desconectados com a moral civilizacional. Toda essa miscelânea teria produzido seres imunes à moral como aquela ideia da música de , popularmente disseminada na voz do cantor Ney Matogrosso: “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. E falando no território brasileiro, o pecado foi extinto da Região Sudeste, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, onde há décadas não temos um governo regido pela moral coletiva ou pela ética individual, vide que todos os últimos governadores desde 1998 estão ou foram presos por práticas ilícitas. A questão ética cultural e social continua latente e aparentemente sem solução, pois temos moral, mas questionamos nossa própria ética. O brasileiro almeja uma moral pela ética, mas em contrapartida a sua própria imagem é questionada por seu caráter. O indivíduo brasileiro se vê como um sujeito honesto, generoso e batalhador, mas que não afirma o mesmo entre seus pares. Sua conduta é desafiada e desvelada por essa contradição, pois alguém que se 60

considera diferente do outro por distintas razões e méritos são iguais aos seus semelhantes. Ao questionarmos o comportamento do brasileiro pelo viés da ética, observamos atitudes e ações que se desviam da retidão do caminho que ele propõe para os outros e para si. O ex-governador é um desses casos. De acordo com o Jornal On-line Folha de São Paulo, do início de sua carreira até os dias atuais, vemos a evolução pública do ex-governador e as mudanças éticas em sua atuação. Em sua primeira campanha política seu slogan foi “meus valores são outros”, sendo a ética e a moral a base de sua plataforma eleitoreira. Ao perder sua primeira candidatura ao Executivo, ganhou a alcunha de paladino da moralidade lapidada ao longo de três mandatos na Assembleia legislativa, por meio de uma série de ações marqueteiras, que fazia questão de deixar a mídia a par. O mesmo homem que, como governador, só ia ao trabalho de helicóptero, nesta época abriu mão do seu carro oficial e era figura frequente dos bailes de terceira idade – categoria que ele privilegiou com diversos projetos. Já foi presidente de CPI de corrupção no futebol, sendo até ameaçado pelos investigados. Como presidente da Assembleia debruçou seus discursos sobre a moralidade e criou um teto antissupersalários. Era considerado um jovem político de vanguarda nessa sua primeira fase política. Alguns filósofos argumentam que o conceito de ética pode ser interpretado, assimilado e aplicado de distintas maneiras e de acordo com interesses pessoais; dessa maneira, o que se entende ser falta de ética é relativo a uma determinada da situação. Alguns autores, inclusive, apontam que os meios podem até justificar os fins; contudo, o mínimo que se espera de quem escolhe representar o povo por meio de uma carreira pública é que tenha um sólido e complexo entendimento da dimensão da ética. Parece lógico que esse conceito varia de pessoa para pessoa, mas temos que reconhecer que o ex-governador tem um conceito distinto sobre o tema, como já podemos analisar adiante. Segundo a BBC News (2016), a escalada do ex-governador Sérgio Cabral aponta dados importantes sobre a Corrupção no Estado do Rio de Janeiro. Podemos observar nos momentos ao longo da sua trajetória, como a primeira eleição, aproximação com rivais políticos, apoio do Partido dos Trabalhadores, Olimpíadas do Rio, luxos, escândalos, presentes milionários, uso indevido do erário público até a sua prisão. 61

Ainda segundo a reportagem da BBC News (2016), Sérgio Cabral foi eleito pela primeira vez em 1990, como deputado estadual pelo PMDB, devido ao apoio de idosos, como citamos anteriormente, sendo reeleito duas vezes, isso por conta de se aproximar do eleitor recusando mordomias inerentes ao seu cargo. Em 2002, Cabral foi eleito senador com o apoio do ex-governador , chegando ao poder devido coalização de partidos de esquerdas. Garotinho também foi preso na mesma operação, ajudando Cabral a se eleger governador no ano de 2006. Considerados inimigos políticos, foi Garotinho quem tornou pública a famosa foto que retratou a farra dos guardanapos, como veremos. Em 2009, junto com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (que posteriormente também foi condenado em uma operação), o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, e o então prefeito do Rio, Eduardo Paes, assinou o contrato que oficializou o Rio como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Em 2010, Cabral recebeu o apoio do PT – e do ex-presidente, promovendo- lhe campanhas. Cabral foi eleito no primeiro turno com boa parte dos votos válidos. A aprovação da população em relação às UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora) nas favelas na época colaborou para sua popularidade (BBC NEWS, 2016). Ainda, de acordo com o site:

O jogo virou em 2011, quando foi revelada sua amizade com empresário Fernando Cavendish, da Delta Construções, após a queda de um helicóptero a caminho da Bahia, onde o empresário comemoraria seu aniversário. Na época, Cavendish, o mesmo que o entregou à Polícia Federal em sua delação, era acusado de tráfico de influência no governo federal - sua empresa faturou R$11 bilhões de erário nas obras feitas entre 2007 e 2012. Somente em 2011, a Delta havia faturado R$ 1,4 bilhão em obras públicas no Rio. (BBC NEWS, 2016).

A situação piorou em 2012, quando Garotinho, seu ex-aliado político, publicou fotos de Cabral e seus secretários dançando em um jantar luxuoso em Paris com Cavendish. Uma das fotos mostrava os secretários de Cabral dançando com guardanapos na cabeça, o episódio ficou conhecido como “a farra dos guardanapos” (BBC NEWS, 2016). No ano de 2013 recai sobre o ex-governador o peso do Caso Amarildo, o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza em julho do mesmo ano, logo após prestar depoimento na UPP da Rocinha. O caso ganhou ampla repercussão popular e midiática, em que 25 policiais militares denunciados pelo 62

desaparecimento e morte de Amarildo foram condenados (BBC NEWS, 2016). Ainda no ano de 2013, a revista VEJA revelou que Cabral gastava R$ 312 mil mensais em helicópteros que levavam sua família para passear. Diante desses fatos houve uma verdadeira revolta da população, e sua popularidade despencou de 45% para 12%, segundo medição do Ibope. Protestos eram constantes e ele era frequentemente vaiado em solenidades. Embora tentasse reverter a situação ao devolver aos cofres públicos o valor referente às suas diárias de hotel em uma viagem privada que fez à França, em 2008, sua popularidade nunca foi recuperada (BBC NEWS, 2016). Em 2014, seu vice Luiz Fernando Pezão foi eleito governador do Rio, mas Cabral voltou aos holofotes, quando Cavendish afirmou em sua delação premiada que, em 2009, pagou por um anel de R$ 800 mil para que Cabral presenteasse sua mulher, Adriana Ancelmo, em seu aniversário. Em nota, o governador confirmou o presente, mas disse não saber o valor do anel na época. Ele também disse ter devolvido o presente após as denúncias contra a Delta Construções. (BBC NEWS, 2016). No dia 17 de novembro de 2016 Cabral é preso no Rio. Ele recebeu dois mandados de prisão preventiva, um expedido pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, e outro pelo juiz Sergio Moro, em Curitiba. Os mandados dizem respeito a duas operações diferentes - a Calicute, tida como um braço da Lava Jato no Rio, com base na delação premiada do empresário Fernando Cavendish, e a própria Lava Jato, baseada na delação da Andrade Gutierrez e da Carioca Engenharia. A operação “Calicute”, responsável pelo mandado de prisão de Cabral, investigava o desvio de recursos públicos federais em obras realizadas pelo Governo do Rio de Janeiro, um prejuízo estimado em mais de R$ 220 milhões. O nome da operação é uma referência à cidade na Índia onde Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, envolveu-se em uma sangrenta disputa com comerciantes locais, em um episódio conhecido como "Tormenta de Calicute” (BBC NEWS, 2016). Até 28 de agosto de 2019, as penas impostas a Cabral já ultrapassavam 233 anos de prisão, segundo fontes dos principais jornais cariocas. Como relatado acima, é importante ressaltar que o ex-governador começou a ser investigado na “Operação Calicute” homônima à batalha na Índia que vitimou Pero Vaz Caminha, 63

ator do primeiro ato de corrupção realizado no Brasil como apontamos no início deste capítulo. Também é importante ressaltar que Sérgio Cabral é o ator principal de nosso estudo, dada a repercussão de seu caso em relação à temática da tese e à sua conduta em torno da prática e suas controversas declarações públicas acerca de seu comportamento. Concluímos que o avanço e a consolidação da democracia produziram linhas de pensamento que parecem impor gradativamente, constituindo uma tendência a resolver esses conflitos cada vez mais em favor da ética. No aspecto político, as promessas não cumpridas e a corrupção sob todas suas formas, crescem as exigências da chamada "transparência" nas ações públicas, políticas e governamentais, sendo condição necessária à efetivação da liberdade e o direito a verdade, como reza a Constituição. Vários filósofos discorreram sobre a ética; contudo, de uma forma prática, a ética se apresenta como uma exigência do convívio social, estando além da educação, que não se confunde com a instrução, nem com as chamadas boas maneiras, mas o que se exige dos homens no relacionamento social, posto que pensar no outro é uma maneira de garantir a harmonia social. Nos próximos capítulos analisaremos a dimensão ética da corrupção e sua relação com o poder usando exemplos os discursos públicos do ex-governador associada a diferentes abordagens.

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CAPÍTULO 2:

POLÍTICA, PODER E SUAS RELAÇÕES COM A CORRUPÇÃO

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2.1 A questão da corrupção sob a ótica do poder

A sociedade brasileira não pode mais ignorar a corrupção. A babel política dos últimos anos e as condições instáveis em que se encontram as principais demandas governamentais como a saúde, a educação e a segurança, vêm mobilizando a população na busca de uma renovação moral, política, social e democrática. Assim podemos constatar que o mal-estar da corrupção na política criou um propósito comum para a indignação social, independentemente de classe, etnia, gênero e idade. A bandidagem oficial atinge tanto os delinquentes que assaltam o bem público para fazer transações particulares escusas quanto os ativistas que se transformaram em mercadores do poder, eliminando significantemente os princípios republicanos e as reservas éticas no campo dos costumes políticos. Historicamente, esses escândalos de corrupção atingiram uma importância inestimável. Verdadeiras quadrilhas se organizaram para explorar o orçamento público. Gestões deficitárias, gastos indevidos, enriquecimento ilícito, desvios de recursos para benefício próprio e o favorecimento de terceiros são algumas das transgressões que tramitam nos tribunais. A insegurança social aponta para a necessidade de que o Brasil tenha uma nova direção, uma mudança, para que o brasileiro deixe de enxergar o oportunismo de uma imagem política desgastada e passe a confiar de forma considerável na estabilidade econômica. A vida política brasileira dos últimos anos teve a ideia de “corrupção” como tema dominante no discurso do governo. Apesar dessa sucessão de escândalos, ainda existe uma sensação de impotência por parte da sociedade, pois os cidadãos ficam apenas aguardando qual será o próximo que circulará nos jornais, sem que verbalizem ou se mobilizem de maneira democrática sobre essa questão. Atualmente chamam à atenção os casos de corrupção envolvendo gestores de diferentes setores dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Os políticos brasileiros, há tempos, são indivíduos questionados pela lisura de seu caráter e valores éticos sólidos. O que impressiona nos casos recentes é a quantidade de gestores públicos envolvidos com os mais diferentes tipos de irregularidades e como eles lidam com esse tipo de acusação; ora negando, ora assumindo, causando forte impacto na opinião pública e grandes manifestações. 66

Nesse sentido, para condução do nosso estudo apresentamos o caso do ex-governador Sérgio Cabral, grande protagonista deste cenário de corrupção; explicitando algumas de suas atitudes e comportamentos que ganharam ampla divulgação da mídia nos últimos anos.

2.2 Análise dos principais relatos do ex-governador Sérgio Cabral

Como observamos, após profunda análise de dados qualitativos, e respeitando as fontes de diversos jornais e revistas, incluindo O Globo (2019), dividimos as falas de Cabral em duas categorias, desde sua prisão. A primeira classificamos como a fase da negação das acusações; o ex-governador negava ter recebido propina, admitindo apenas caixa dois para suas campanhas eleitorais e de aliados: “Nunca houve propina. Houve apoio”. Afirmou em audiência ao juiz federal Marcelo Bretas, em junho de 2017 (RODAS, 2019). De acordo com matéria de Marcelo Remigio, publicada na Revista Época, em sua versão on-line (2019), Sérgio Cabral, em depoimento de dezembro de 2017, citou o político , ex-governador de São Paulo, e uma de suas frases memoráveis, ao negar o recebimento de “um por fora”: “Eu não sou Adhemar de Barros, ‘rouba, mas faz’. Eu realizo, eu realizei” (REMIGIO, 2019). O mesmo jornalista ainda resgatou outra fala do ex-governador em outra audiência ocorrida no mesmo ano: “Nunca recebi propina nem no Maracanã nem em nenhuma outra obra ou serviço” (Referindo-se às obras super faturadas das Olimpíadas de 2016). Ele continua: “O que recebi foi colaboração de campanha, e eles (delatores) hoje misturam campanha com propina ao bel-prazer” (REMIGIO, 2019). Após alguns escândalos dentro do complexo penitenciário que lhe rendeu como consequência processos disciplinares por ter alimentos não permitidos: iogurte, camarão, queijos e bacalhau em sua cela, e por forjar uma doação de uma televisão de 65 polegadas e um home theater, com seis caixas de som e 160 filmes para uma “videoteca”, Cabral mudou seu discurso e, com ele, vieram acusações a seus ex-secretários e a confissão:

Um vício, antes, pagava-se propina, isso me foi dito pelo Arthur (o empresário da área de Saúde Arthur Soares), em governos anteriores. E aí falei com o Sérgio Côrtes: ‘Vou ficar com 3% e você fica com 2%’. 67

Esse meu erro de postura, de apego a dinheiro, a poder, a tudo isso. Isso é um vício (O GLOBO, 2019).

Esse período evidencia nossa segunda categoria, na qual ele começa a assumir seus crimes. Em audiência em 2019, o ex-governador afirmou que resolveu “falar a verdade” por causa de sua família e pediu desculpas, admitindo ter mentido em depoimentos anteriores: “Em nome da minha mulher, dos meus filhos e da História, resolvi falar a verdade e ficar bem comigo mesmo. Hoje, sou um homem muito mais aliviado”. Ainda neste relato de 2019, Cabral procurou isentar a mulher, Adriana Ancelmo, do esquema de propina:

Ela tinha o escritório dela, e eu contaminei o escritório quando pedi o repasse de caixa dois, que ela não sabia, para o dono da Rica... eu a enganei e a prejudiquei e ela entrou de uma maneira que me dói muito o coração.

Com a decisão de falar sem ser delator, Cabral esperava que suas penas fossem amenizadas pelo juiz. Na verdade, uma estratégia parecida com a criada por outros réus da Lava-Jato: “Admito que pedi propina por apego a poder e dinheiro” Condenado a penas que somam mais de 200 anos de prisão, Cabral se disse “aliviado” por revelar o esquema de desvios do qual participou: “Dói muito admitir ser corrupto”, afirmou, ao explicar a demora em assumir seus crimes, o que definiu como um vício... “esse foi meu erro de postura, apego a poder, dinheiro... é um vício” (TV GLOBO, 2019). Esses relatos sustentam que a corrupção é um assunto preocupante que nos faz pensar se o poder exerce algum tipo de influência nessa atitude. Observamos que existe um abuso de poder associado ao governo, que é implementado pela convicção de impunidade. Lembramos que todos os dados obtidos são públicos, o que não demandou análise do comitê de ética. No próximo tópico abordaremos questões para a articulação desses dados ao estudo por meio de reflexões, que nesses tempos conturbados, de uma forma ou de outra, temos feito constantemente. Em algumas traduções, o termo corrupção significa quebrado, partido em pedaços – afirmamos então que a sociedade ou o indivíduo encontram-se partidos, divididos, mutilados. Num contexto político social, a 68

corrupção é definida como utilização do poder ou da autoridade para conseguir um benefício pessoal, obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse, de um integrante da família ou amigo. O poder aparece como o cerne da questão, mantendo uma ligação direta com a corrupção. Nesse sentido, utilizaremos no próximo tópico o autor Michel Foucault e as pesquisas de outros autores que corroboram esse fenômeno para descrevê-los. A partir destas obras, apresentaremos uma genealogia da formação do homem do ressentimento e do espírito de vingança, cujo momento atual pode ser identificado no funcionamento dos sistemas estatais e em todos os aparelhos, e produções subjetivas que a eles se unem e neles se sustentam, e que não findam de produzir e instigar a proliferação dos clamores justiceiros, a sede de castigo no sentido de punição e o ódio às diferenças.

2.3 As relações de poder para Foucault

Michel Foucault tentou explicar a emergência dos saberes pelas formações históricas; pensando as suas condições de possibilidade pela exterioridade do ser da linguagem e das práticas de visibilidade, para situá-lo como elemento formal de um dispositivo de natureza essencialmente estratégica que inclui práticas de saber e relações de poder. E é a partir dessa arqueologia dos saberes que ele pretende explicar sua existência e suas transformações, situando-a em pressuposição com as relações de poder, ambas incluídas em um dispositivo político. O olhar Foucaultiano neste contexto versa sobre as questões relativas aos mecanismos de saber e poder, analisados nas suas obras Vigiar e Punir (1975) e A Vontade de Saber (1976). Por meio do estudo acerca da loucura e da prisão, o autor analisou como foi criada a mecânica a partir da qual se realiza a seleção entre os normais e os anormais, tendo como cenário a sociedade industrial emergente e o aparelho punitivo do Estado, deixando claro que é pelo estudo dos mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos, nos comportamentos, que é preciso construir a arqueologia das Ciências Humanas (FOUCAULT, 2007). Foucault (2007), no livro Vigiar e Punir buscou desmistificar a pretensa infusão de doçura e humanidade na vida em sociedade pelo advento da prisão moderna, apontando para o fato de que esta instituição efetuaria um tipo de coerção discreta e basicamente indolor, por meio da qual o indivíduo acaba por 69

interiorizar um sentimento de culpabilidade e vergonha, elaborando uma forma de vida unidimensional, que deixa o animal humano dócil, contudo fraco. Podemos, nesse sentido, definir dois momentos na genealogia do poder de Foucault; o primeiro compreende o período até a publicação de Vigiar e Punir; e o segundo, que corresponde ao período posterior a essa publicação. Até essa obra, o autor coloca a questão da disciplina e, posteriormente, ele concentra seus estudos sobre a dominação política do Estado sobre a população e a regulação das sociedades. Assim, percebemos um movimento que parte de uma temática, em que o foco estava nos exercícios de poder sobre o indivíduo para a atuação do poder como governo, numa perspectiva em que a noção de população e as macroestruturas do governo político desenvolvem outra função do poder (o biopoder). Neste sentido, o anátomo poder das disciplinas e o biopoder da população configurarão, conjuntamente, as duas funções de poder que Foucault colocou em análise neste momento da sua obra (e tomam o lugar do indivíduo e dos investimentos de natureza disciplinar do poder sobre ele exercidos). Foucault identificará como uma micropolítica que consiste em uma análise molecular, que nos fará passar das formações de poder. Por outro lado, em seu livro intitulado “A Vontade de Saber”, Foucault (2007) sugere que a constituição da subjetividade está amparada na questão do sexo. Para ele, o sexo e a sexualidade são a causa dos acontecimentos da vida social. O filósofo empreendeu, ainda, uma pesquisa histórica, na qual relacionou uma antropologia a uma análise dos discursos sobre o tema. A Vontade de Saber mostra que a sexualidade não foi reprimida com o capitalismo, depois de ter vivido em liberdade. Sua hipótese é que o sexo foi incitado a se manifestar por uma vontade de saber sobre a sexualidade, que é peça das estratégias de controle dos indivíduos e das populações características das sociedades modernas. Neste sentido, a sexualidade ocupa uma posição estratégica, uma vez que se encontra no ponto de intersecção sobre o qual modernas tecnologias de poder se aplicam, e aí está a razão para que Foucault tenha escolhido lidar com o tema da sexualidade. O filósofo sugere que o poder não atua somente por meio de instrumentos repressivos ou ilusórios, mas de forma produtiva, não somente no que se refere ao saber e às práticas, como estaria esclarecido em Vigiar e Punir e em A Vontade de Saber, mas também naquilo que se refere à própria constituição do sujeito. 70

De acordo com Sousa (2011, p.103), ao estudar Foucault e sua análise do poder, esta “não poderia ser identificada como uma teoria geral do poder”, não tendo sido este tema do poder situado como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que Foucault procuraria definir por suas características universais”. O autor ainda reitera que Michel Foucault recusou encarar o poder como uma entidade reificada (grifo nosso) durante sua vida, posto que, segundo ele, “não existe algo unitário e global chamado poder, mas formas díspares, heterogêneas, em constante transformação” (FOUCAULT, 1979 apud SOUSA, 2011, p.104). Desta feita, pode-se dizer que o poder é uma prática social constituída historicamente, e não uma coisa, um objeto natural, mas uma relação de forças, posto que cada época possui seu diagrama de relações de forças. No início de Vigiar e Punir, Foucault analisa, em traços gerais, aspectos da sociedade de soberania, e depois ele analisará a sociedade disciplinar. O autor argumenta que a disciplina é o poder que se exerce sobre o corpo do indivíduo, transformando-o numa máquina de obedecer, e explica como a ontologia do presente está marcada pela questão do poder. Segundo Foucault, a disciplina é interiorizada, fabricando corpos mais submissos e servis, sendo exercida fundamentalmente por três meios globais absolutos: o julgamento, o medo e a destruição. Na sua obra, ele ainda analisa diversas instituições sociais, fazendo uma leitura sobre o poder, sobre a rede de poderes em que vivemos. Foucault entende o poder como uma prática social atrelada ao conjunto de relações sociais. Essas relações de poder não se restringem ao governo, mas a toda sociedade, mediante um conjunto de práticas essenciais à manutenção do Estado, moldando, assim, nossos comportamentos, atitudes e discursos. Foucault retrata o surgimento de uma sociedade disciplinar e de controle que se deu pela decadência da sociedade soberana, na qual a figura do rei tinha total controle sobre os homens e agia de forma direta sobre o corpo do indivíduo. Ele descreveu como o suplício a punição corporal, que era utilizado pela sociedade soberana, para controlar a população. Assim, Foucault analisa a passagem da Sociedade Soberana (em que o poder está na mão de um soberano) e utiliza a ameaça de morte e a punição como formas de controle (para a sociedade disciplinar e de controle) e a lógica do confinamento (como o presídio, a fábrica, a escola, entre outros), por meio do modelo panóptico e centralizador do poder e da vigilância de um sobre todos. Nesse modelo de sociedade não existe 71

mais a figura de um rei, mas de grupos setoriais que vigiam e controlam toda a sociedade. Dessa forma, de vigia exaustiva da sociedade, o Estado encontra a melhor forma de manipular o povo, pois, mais do que vigiar, era preciso construir um sistema de poder capaz de moldar o indivíduo, transformando-o em um indivíduo dócil, útil e disciplinado. Podemos observar que os aparelhos econômicos e políticos constroem e transmitem suas próprias verdades e, juntamente com o Estado, criam mecanismos para vigiar e controlar o povo. A partir da perspectiva apresentada por Foucault, podemos entender que as relações de poder descritas, sejam elas institucionais, foram marcadas pela disciplina. Foucault (1983) afirma que a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um modelo reduzido do tribunal.

O que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não conforme: o soldado comete uma “falta” cada vez que não atinge o nível requerido; a “falta” do aluno é, assim como um delito menor, uma inaptidão a cumprir suas tarefas. O regulamento da infantaria prussiana impunha tratar com “todo o rigor possível” o soldado que não tivesse aprendido a manejar corretamente o fuzil (FOUCAULT, 1983. p.160).

Com o fim das instituições de confinamento disciplinar, novos dispositivos de controle surgiram; contudo, algumas ferramentas não foram extintas, e sim aperfeiçoadas, dando início à sociedade de controle. Neste modelo de sociedade, de acordo com Foucault (1983), a lógica do poder não é regida panopticamente. Nesse sentido, a mudança para a sociedade de controle abrange uma subjetividade que não está caracterizada na individualidade, mas numa maneira em que todos se vigiam. Dessa forma, como ”todos vigiam todos”, o indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas. Passa a ter importância a visibilidade, a rotina da vida cotidiana se torna visível; há uma valorização do homem comum, em que os próprios indivíduos passam a exercer uma autovigilância permanente. Tudo isso corrobora as novas tecnologias, que acabam por dar uma visibilidade maior à vida social, fomentando a história do homem comum. Alguns autores, como Dreyfus e Rabinow (1995), em concordância com os estudos de Foucault, elencaram algumas características referentes ao tema do poder, segundo o filósofo, apontando que as relações de poder são desiguais e 72

móveis, que seu funcionamento decorre do estabelecimento de relações desiguais e assimétricas e que são estratégicas e não subjetivas. Além do mais, o poder é a operação de tecnologias políticas por meio do corpo social; é uma matriz geral de relações de forças, em determinado contexto histórico e ainda é exercido tanto sobre dominantes quanto sobre dominados. Para os autores, o poder não pode ser pensado como uma posição, uma mercadoria, uma trama ou recompensa, devendo ser pensado como uma operação de tecnologias políticas por intermédio do corpo social. Observando que o seu funcionamento será responsável pelo estabelecimento de relações assimétricas, é que podemos caracterizar as relações de poder como relações de forças assimétricas. A mobilidade do poder decorre, por sua vez, do fato de que o poder não é, como frisamos, uma coisa e tampouco o controle de um conjunto de instituições. Para analisá-lo é preciso observar o modo segundo o qual ele opera. Ou seja, para compreender o poder é preciso que nos remetamos à análise de seu funcionamento diário, das micropráticas, das tecnologias políticas nas quais nossas práticas se formam (DREYFUS; RABINOW, 1995). Nesse sentido, para Foucault (2007), a menos que essas relações desiguais de poder sejam traçadas de acordo com seu real funcionamento material, elas escapam à nossa análise e continuam a funcionar com uma autonomia não questionada, o que possibilitaria, ilusoriamente, que fosse avalizado um argumento equivocado, segundo o qual o poder é apenas aplicado de cima para baixo, ou seja, de que o poder se exerceria somente em função dos dominantes, de modo a subjugar os dominados. Foucault certamente não nega as realidades da dominação de classe, no entanto, argumenta que a dominação não seria a essência do poder. Isso porque, embora diferentes grupos estejam emaranhados em relações de poder, desiguais e hierárquicas, nenhum desses grupos possuía, realmente, o controle acerca dessas relações. A isso se liga a afirmação de que as relações de poder são estratégicas e não subjetivas, de modo a caracterizar que não é necessário buscar pelas motivações secretas ou subliminares às ações dos atores e, tampouco, a necessidade de vislumbrar a ação dos políticos a partir da imagem de pessoas hipócritas, pois as práticas locais operadas por indivíduos e grupos não estão destituídas de consciência, posto que os atores sabem mais ou menos aquilo que eles estão fazendo, quando 73

o fazem e podem. Não obstante, isto não significa que as consequências mais amplas destas funções locais sejam coordenadas (FOUCAULT, 2007). Segundo Dreyfus e Rabinow (1995) há uma lógica das práticas. Há um impulso em direção a um objetivo estratégico, mas ninguém impulsionando. O objetivo emergiu historicamente, tomando formas particulares e encontrando obstáculos, condições e resistências específicos. Desejo e cálculo foram envolvidos. O efeito global, contudo, escapou às intenções dos atores, assim como de todos. Sobre isso, os autores ressalvam que não devemos nos enganar e dar margem a interpretações que associem a perspectiva de Foucault à perspectiva funcionalista. Isso porque o legado de Foucault não nos conduz à ideia de equilíbrio, não nos entrega um sistema e, portanto, não há espaço para afirmarmos algo como uma lógica de estabilidade inerente ao sistema para que se pudessem estabelecer as premissas para uma investida a esse modo funcionalista. Como observamos, há um cenário oposto a esse na perspectiva de Foucault, pois seus estudos demonstram habitantes tomados em uma dinâmica de pensamentos mesquinhos, confronto de desejos, emaranhado de interesses menores. A temática abordada pela perspectiva de Foucault não estaria apta à dedução de uma teoria, mas à investida de uma análise, que Foucault irá nos propor: uma analítica do poder. Após esse apanhado podemos dar sequência ao pensamento de Foucault por meio de outros pontos relacionados ao tema do poder na obra foucaultiana, como o micropoder. Machado (1979) aponta uma explicação razoável quando diz que aquilo que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Em Foucault, a asserção de análise do poder emprega uma mudança espacial ao focalizar o tema do poder a partir dos extremos. Com isso, o objeto fundamental da análise não está situado no Estado, que transporia a figura do centro, mas no que se refere à designação espacial na figura oposta - diagrama. Dessa maneira, para o filósofo, dentro da dinâmica das relações de poder, o centro estaria representado pelo Estado, e nos pontos adjacentes ou periféricos estariam as instituições como a escola, a família, a polícia, o hospital, o sanatório e o presídio, como exemplos. O cerne de análise de Foucault apontaria para as extremidades desse quadro, dando mostras das operações de poder que investem os corpos dos indivíduos, seus gestos, suas atitudes, seus hábitos, seus discursos e seus 74

comportamentos. Essa forma de abordagem pôde evidenciar que há uma relativa independência ou autonomia da periferia com relação ao centro, de maneira que as pequeníssimas transformações do poder não estão obrigatoriamente associadas às transformações ocorridas no âmbito do Estado. Deleuze (2014) dedica um módulo inteiro à problemática do poder na perspectiva de Foucault, sempre com seu método de levar os enunciados do autor original a outros campos, desenvolvendo mais características sobre o poder. Nesse sentido, Deleuze aponta que a primeira originalidade de Foucault foi ampliar a perspectiva do que é o poder, invertendo a perspectiva de análise, compreendendo que o poder não é substância, lugar, ente ou estrato – e sim uma prática, exercida e disseminada por todos os lados.

Compreende-o, pois, como multiplicidades de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 2006 p. 103).

Observamos que o poder é entendido como relações incessantes de forças, que trazem variabilidade e instabilidade, assumindo grande plasticidade em suas configurações. Então, o poder não está totalizado numa instituição, como o Estado, ou nas mãos de um soberano; pelo contrário, está descentralizado, capilarizado, regionalizado em relações móveis e instáveis, disseminado em inúmeros pontos, portando relações desiguais. Dessa forma, está difundida tanto nos grandes conjuntos sociais, instância molar, como nos micro conjuntos, instância molecular. Há uma onipresença do poder, em que este “é sempre um conjunto de micropoderes”. Deste modo, Foucault propõe uma inversão em relação ao senso comum, na qual “deve-se captar o poder no nível das moléculas e corpúsculos, e não no nível das grandes instituições”, pois o poder pode ser um atributo molar, mas é uma relação molecular (DELEUZE, 2014, pp. 32, 65, 190). Deleuze, em seus estudos, afirma que, para Foucault, o poder é local, e não global, é molecular, e não estatístico. Nesse sentido, para o filósofo, ele é uma agitação molecular antes de ser uma organização estatística, e tal agitação é que formará os estratos, e não o contrário. Assim, não se deve explicar o poder 75

pela ação das instituições, mas sim as instituições pelas relações de poder que aí se atualizam (os estratos são decorrentes das relações de forças). Deve-se, portanto, realizar antes uma microfísica do poder que uma macrofísica (DELEUZE, 2014). Contudo, não se tratava de diminuir o papel do Estado nas relações de poder existentes na sociedade. O que se pretendia era se insurgir contra a ideia de que o Estado seria o órgão central e único do poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de ação, o que seria destruir a especificidade dos poderes que a análise pretendia focar. Assim, se há um deslocamento de lugar, do centro para a extremidade, há também uma inversão de sentido. Em vez de realizar uma análise no sentido descendente, que seria representado por uma investigação que partiria dos efeitos de poder, tendo como perdulário o Estado (centro), Foucault orientará suas análises no sentido inverso, partindo do diagrama, pois o poder se encontra em toda parte. A análise ascendente que Foucault não só propõe, mas realiza, estuda o poder não como uma dominação global e centralizada que se pluraliza, repercute e se difunde nos outros setores da vida social de modo homogêneo, mas como tendo uma existência própria e formas específicas ao nível mais elementar.

O Estado não é o ponto de partida necessário, o foco absoluto que estaria na origem de todo tipo de poder social e do qual também se deveria partir para explicar a constituição dos saberes nas sociedades capitalistas. Foi muitas vezes fora dele que se instituíram as relações de poder, essenciais para situar a genealogia dos saberes modernos, que, com tecnologias próprias e relativamente autônomas, foram investidas, anexadas, utilizadas, transformadas por formas mais gerais de dominação concentradas no aparelho de Estado (MACHADO, 1979).

Foucault (2006) estipula quatro regras para entender o poder: regra da imanência, das variações contínuas, do duplo condicionamento e da polivalência tática dos discursos. Contudo, o filósofo Deleuze descreve seis postulados denunciados por Foucault: propriedade, localização, subordinação, essência ou atributo, modalidade e legalidade. Todos estes postulados implicam um deslocamento do enfoque sobre o poder, que, no senso comum, está localizado numa analítica macrofísica (uma microfísica dos poderes, ou de uma micropolítica). Para Deleuze, Foucault cria um elemento novo, uma nova palavra para se referir ao mapa complexo em que ocorre esse inter jogo das relações 76

entre forças, denominado diagrama, como apontamos anteriormente. É que a estrutura se refere a um ciclo fechado, designando um estado de equilíbrio, mas, como as forças são movediças, dinâmicas e instáveis, a estrutura não seria o melhor modelo para seu entendimento, mas sim o diagrama (DELEUZE, 2014 apud HUR, 2016, p. 224).

O diagrama não é mais o arquivo, auditivo ou visual, é o mapa, a cartografia, co-extensiva a todo o campo social. É uma máquina abstrata. Definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não discursiva. É uma máquina quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar (DELEUZE, 1988, p. 44).

Para Deleuze (1988), o diagrama aparece como o plano deste composto de forças, o mapa, mas sem a constituição de estratos e formas. Por isso, não é um arquivo nem uma máquina concreta, mas, sim, uma cartografia e uma máquina abstrata. Pode ser definido como a apresentação das relações de força que caracterizam uma formação - é a repartição dos poderes de afetar e dos poderes de ser afetado - “uma mistura das puras funções não formalizadas e das puras matérias não-formadas” (DELEUZE, 1988, p.80). O autor considera que o diagrama, primeiro, em relação às formas, é o plano de forças anterior às máquinas concretas, aos agenciamentos e aos dispositivos. Os estratos são os resultantes do diagrama. Nesse sentido, ele é a máquina abstrata, o mapa das relações de forças, mapa de densidade, de intensidade, que procede por ligações primárias não localizáveis e que passa a cada instante por todos os pontos. Ele afirma que o diagrama é sempre instável e, por isso, intermediário entre duas formações sociais, pois se trata de um lugar de mudança. O diagrama é caracterizado por ser uma máquina instável, informal, difusa, virtual, abstrata, em perpétua mutação, e que varia com as coordenadas do espaço-tempo. Nas palavras de Deleuze (2014, p. 78): “diagrama é a relação de uma matéria não formada e de uma função não formalizada”, operando como um mapa das relações de forças, uma máquina abstrata. Deleuze (2014), quando menciona as forças, inicia seu relato trabalhando com um modelo bipolarizado. Entende que toda força tem dois poderes: o de afetar outras forças e o de ser afetado por outras. Esse poder de afetar está relacionado aos pontos de espontaneidade da força, enquanto o poder de ser 77

afetado está relacionado aos de receptividade da força, ou seja, com os afetos ativos e reativos. Por conseguinte, “continua a trabalhar com as mesmas categorias de forças ativas e reativas, e o poder de afetar e ser afetado” (HUR, 2016, p. 225). A partir de sua análise sobre a Vontade de Saber, de Foucault, Deleuze (2014) vai além do par ‘poder de afetar e poder de ser afetado’, traçando uma terceira modalidade, que é o poder de resistir. Em sua investigação, o poder de resistir é algo que não se deixa apreender nas relações de forças dadas no diagrama. Não é o poder de afetar, nem o poder de ser afetado. Está além desta relação de dois vetores, sendo um terceiro vetor. Assim, o poder de resistir concerne a singularidades que não se deixam enlaçar pela curva integral do diagrama, não se deixam regularizar - é o que resiste às relações de forças, é o primeiro em relação ao poder. Os pontos de resistência como irredutíveis às relações de poder e tendo a estranha propriedade de voltar contra o poder àquilo pelo qual o poder faz seu objeto, ou seja, aquilo que o poder pretendeu controlar. O ponto de resistência é algo incontrolável no objeto do poder. Portanto, esse algo incontrolável no objeto de poder é primeiro em relação ao poder (DELEUZE, 2014). Deleuze (2014) afirma que Foucault criou a concepção do poder de resistir, para que pudesse pensar a transição de um diagrama social a outro, como, por exemplo, a do diagrama do poder de soberania para o diagrama do poder disciplinar: São os pontos de resistência que forçam e acarretam uma mutação do diagrama, isto é, uma segunda tirada que vem do fora, não menos que a precedente, que terá também seus pontos de resistência, e uma terceira tirada, etc., que vão disparar as mutações. No momento em que os pontos de resistência se globalizem, haverá derrocada do diagrama, em proveito de um novo diagrama (DELEUZE, 2014 p. 208).

Para Deleuze (1988), as forças vêm sempre de fora, de um fora mais longínquo que toda forma de exterioridade. Por isso, não há apenas singularidades presas em relações de forças, mas singularidades de resistência, capazes de modificar essas relações, de invertê-las, de mudar o diagrama instável. Estas linhas do fora, de fuga, o poder de resistir, por estarem além das relações de poder instauradas e por resistirem ao diagrama, podem, inclusive, fissurá-lo e transformá-lo. Assim sendo, Deleuze estabelece uma relação entre resistência e vida, aproximando o pensamento de Foucault de um vitalismo. 78

A vida se torna resistência ao poder quando o poder aceita como objeto à vida. Quando o poder se torna biopoder, a resistência se torna poder da vida (poder vital), que vai adiante das espécies, dos caminhos e dos meios desse ou daquele diagrama (DELEUZE, 1988).

Deleuze propõe que o poder de resistir torna-se vida quando o poder se torna biopoder, isto é, poder sobre a vida. Então a vida, a resistência, é o que escapa, o que traça linhas de fuga frente aos mecanismos disciplinares e de controle do biopoder. Então é o poder de resistir que traça linhas de singularização frente às relações de força instituídas e normalizadoras. Portanto, o poder de resistir é diretamente relacionado à criação e à vida, é o que vai em direção contrária das forças de captura e de morte. Vida que se insurge contra a disciplinarização e o controle do biopoder (DELEUZE, 1994).

2.4 Foucault e o Biopoder, a Governamentalidade e a culpa

Para Foucault (2012), o Biopoder foi colocado em prática no Ocidente na segunda metade do século 18 e consistia numa maneira de governar a vida, que se situava como um dos dois principais eixos que vigoravam na Europa ao longo deste século – biopolítica, o governo da população como um todo e disciplina, o governo dos corpos dos indivíduos.

No discurso do poder em Foucault, o biopoder pode ser apresentado a partir da comparação com o poder soberano. Dessa forma, a potência da morte em que se simbolizava o poder soberano será agora recoberta pela administração dos corpos (poder disciplinar) e pela gestão calculista da vida (biopoder). Neste universo, o fato de viver, ou seja, a vida não representará mais esse lugar inacessível e veremos que o biológico passa a ocupar um lugar central na problemática política. Não mais sobre a ameaça de morte veremos o exercício de poder alicerçado, como é o exemplo do poder soberano. Veremos erguer-se o império do biopoder sobre uma instrumentalidade que se encarrega, não da morte, mas que se ocupa de conhecer, organizar e controlar a vida (SOUSA, 2011, p. 120).

Nesse sentido, dantes de o biopoder se consolidar prevalecia uma espécie de poder soberano, que gozava do direito de vida e de morte sobre os súditos e atuava pelo fazer morrer e pelo deixar viver. Com o advento do biopoder, o poder de morte converteu-se no complemento de um poder que se cumpre positivamente sobre vida, influenciando em sua gestão, na sua majoração e em sua multiplicação.

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Foucault (2007) considera o poder como algo positivo, na medida que ele se exerce sobre indivíduos que possuem um poder de transformação, indivíduos que se deixam incitar, seduzir, persuadir, intervindo sobre os corpos de modo a maximizar suas possibilidades, seja por meio da formação do sujeito como individualidade, o que se dá por meio da sujeição, da formação do homem máquina pelos mecanismos disciplinares, utilizando-se técnicas de controle detalhado e minucioso que, articuladas a um saber, visam tornar os corpos dóceis e úteis, seja por meio do governo de uma população, da governamentabilidade; ou seja, a ação do governo passa a ser sobre uma pluralidade, entendida esta enquanto massa global de uma população (SOUSA, 2011, p. 120)

Segundo Sousa (2011), enquanto o poder disciplinar teve papel fundamental, levando-se em conta o foco sobre o corpo do louco, do delinquente, da criança aprendiz para essa tarefa de isolamento e individualização, o biopoder voltará seus cuidados aos acontecimentos ligados à raça humana, vista como conjunto. O intuito desse cuidado é caracterizado pela pretensão de regulação, não mais do gesto que o corpo do indivíduo deve produzir, mas sobre questões como a do nascimento, da mortalidade, a média do tempo de vida das populações, enfim: aos fenômenos coletivos mais relevantes para garantir a existência e a manutenção desse corpo social. Isso não significa, contudo, uma substituição ou desativação do poder disciplinar. O biopoder soma-se, então, à disciplina, havendo um tipo de sobreposição, uma complementação de táticas.

Nesta inversão de morte e vida, o princípio de poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados. Mas a existência em questão já não era aquela jurídica da soberania, era outra: biológica, da população. O velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído pelo poder de causar a vida. “Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação. A morte é o limite, o momento que lhe escapa. Ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais privado”. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação, durante a época clássica, desta tecnologia de duas faces anatômica e biológica, individualmente e especificamente, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida, caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima para baixo (FOUCAULT, 2012, p.151 p.152).

Como pontua Machado (1979), a abordagem do Estado adquire uma importância que não existia em Foucault e, por conseguinte, abriu campo para as investigações que se debruçariam sobre práticas de gestão de governo ou aquilo que o pensador francês nomeou como governamentalidade. Essa pesquisa identificará que esta tem como objeto de conhecimento a população, como saber mais significativo a economia e como mecanismo básico de atuação os 80

dispositivos de segurança. Ao conceber um novo paralelo com as Ciências Humanas, levando em conta a forma do biopoder, abre-se uma oportunidade para apontar o seguinte:

Se as ciências humanas têm como condição de possibilidade política a disciplina, o momento atual da análise [genealógica de Foucault] parece sugerir que o ‘bio-poder’, a ‘regulação’, os ‘dispositivos de segurança’ estão na origem de ciências sociais como a estatística, a demografia, a economia, a geografia, etc. (MACHADO, 1979, p. 22, 23)

Assim, Foucault (1978) trabalha a temática do governo, que ele define logo de início como a relação entre segurança, população e governo. Observado no século XVI, o aparecimento do problema do governo refere-se a questões que contemplavam problemas heterogêneos, apresentados sob quatro formas gerais: o governo de si; o governo das almas e das condutas; o governo das crianças; e o governo dos estados. Ao mesmo tempo, esse fenômeno (o aparecimento do problema do governo) ocorre em um determinado contexto histórico, no qual Foucault vislumbra a convergência de dois movimentos. Um primeiro estaria identificado pela instauração dos grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais, fenômeno, pois, que sucedeu à estrutura do feudalismo. Em suma, movimento de concentração estatal. Para Sousa (2011) um segundo movimento estaria materializado no questionamento que vinha sendo dirigindo à forma ou às formas sob as quais o homem deve ser dirigido, naquilo que concerne à espiritualidade, de que maneira se pode alcançar a salvação. Isto é: movimento de dispersão e dissidência religiosa. Segundo o autor, Foucault em seu texto intitulado “A governamentalidade”, trabalha um questionamento fundamental nesse ponto, qual seja: de que maneira teria ocorrido o movimento pelo qual se passou de uma teoria da soberania para algo que Foucault denomina “arte de governar”? E qual a diferença entre esses dois mecanismos de exercício de poder? A cena sobre a qual esse questionamento é trabalhado apresenta alguns personagens como a população, a família e o nascimento da economia, e apresenta três séries de fenômenos para a caracterização da governamentalidade, intitulado Segurança, Território e População (SOUSA, 2011, p.122, 123).

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Em primeiro lugar, a herança do poder sacerdotal cristão como o vínculo que especializa o poder governamental frente ao poder soberano e ao poder disciplinar; em segundo, a população constitui o foco de atuação dessa tecnologia de poder, a economia política constitui o seu principal saber e os dispositivos de segurança constituem seus instrumentos fundamentais de execução. Por fim, o processo segundo o qual o Estado de Justiça Medieval vai se tornando Estado Administrativo até alcançar a forma de Estado governamentalizado ocorre graças à integração da velha técnica de poder pastoral, forjada pelo cristianismo. (SENELLART, 2007 apud CARDOSO, 2008, p. 63)

Vale apontar que uma etapa integrante da apresentação do tema do poder, em Foucault, alude ao fato de que o tema da governamentalidade representa aqui a passagem que precede o tema do poder sacerdotal, que não será aprofundado em nosso trabalho. Vale salientar que o pensamento de Michael Foucault expõe a dominação e imposição do saber como estratégia de poder e controle sobre as populações e os indivíduos. Na sua obra “A História da Sexualidade”, na qual fala sobre a vontade de saber, concebe seu pensamento a partir das ciências modernas, como a biologia e a medicina, por exemplo, que, a partir de análises e investigações, buscam o conhecimento da sexualidade, tentando explicar suas relações e a maneira por meio do discurso, da linguagem e da conceituação. O autor disserta a respeito da possibilidade de que na sociedade moderna capitalista não houve uma repressão à sexualidade e ao sexo em seu sentido real, mas, sim, uma fundamentação teórica sobre essas relações e manifestações. Foucault, na sua análise, retorna à Grécia Antiga, na tentativa de esclarecer as formas de atividades sexuais expostas para conceituação moral e dominação, criando uma estética da existência. Foucault (2014), não afirma que o sexo não tenha sido bloqueado, proibido, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo afirma que a partir daí ele o tenha sido menos do que antes. Também não disse que a interdição do sexo é uma ilusão, e sim alegou que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte, a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Contudo, o filósofo não está negando uma repressão ao sexo, nem uma proibição relacionada à sexualidade, muito menos tentando mostrar que houve um afrouxamento com o passar dos séculos. O que é primordial é sua tentativa de priorizar o poder e a força do discurso sobre o sexo e a sexualidade, sua vontade de saber e suas 82

consequências diante das relações baseadas na técnica e, assim, ditadas pelo conhecimento e adequação ao que se trata sobre ambos. O filósofo analisa as relações pertinentes ao discurso científico proferido estritamente sobre a sexualidade e sua regulação por meio da interdição, afirmando que por mais que o discurso seja pouca coisa, as interdições que o atingem revelam rapidamente sua ligação com o desejo e com o poder (FOUCAULT, 2009). Segundo Gomes (2015), ao escrever sua “Genealogia da Culpa”, Foucault afirma que a repressão ao sexo é tratada como um exercício constante de punições, por se constituir uma forma de pecado desde Idade Média. A Igreja controla os instintos e impulsos por meio das confissões e reprime por meio das penitências todos os atos que fogem ao que se é estabelecido moralmente; já o pensamento moderno traz na figura do psicólogo, do médico e do psiquiatra esse mesmo conceito confessional, marcado pelas relações de poder caracterizadas na Idade das Trevas. Nesse sentido, o que era tido como infração às leis de Deus ganha no pensamento moderno a investigação e a adequação por intermédio da ciência. Na visão de Foucault, a mesma lógica é aplicada nas relações sociais, seja no âmbito familiar, hospitalar, escolar ou prisional; qualquer estratégia de poder é regida pelo controle e pela inibição sexual pelo discurso (GOMES, 2015 p.118). Segundo Foucault (2014), os controles familiares, a investigação psiquiátrica, o exame médico e o relatório pedagógico podem ter como objetivo central dizer não a todas as sexualidades improdutivas ou errantes, e que, na realidade, funcionam como mecanismos de dupla incitação: o poder e o prazer. Prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder e enganá-lo, e prazer em exercer um poder que questiona, investiga, vigia, revela e fiscaliza. O falar do saber discurso regulamentador do sexo é ainda mais latente quando o desejo é materializado por uma iniciativa que foge ao padrão do casamento e das relações heterossexuais. Nesse procedimento vemos desenvolver uma ars erótica que otimiza o prazer do sexo por intermédio de exemplos dados pelo próprio mestre de iniciação, posto que, para Foucault, nossa civilização não possui “ars erótica”; em compensação, é a única a praticar uma “scientia sexualis” (FOUCAULT, 2014,). Segundo Gomes (2015), é por meio da ciência que o homem busca explicar questões que fogem a essa norma moral, chamando de “aberração” todo modelo que refute a normatização imposta e que, de alguma maneira, traga algum 83

desconforto ou desarranjo ao equilíbrio científico. O resultado de todas essas limitações e conceituações, na visão da filosofia de Foucault, é um maior controle da sociedade e uma garantia do poder vigente. Entre os motivos para esse padrão, o filósofo francês cita o controle de natalidade e as garantias à figura da família tradicional como modelo correto do contrato social humano. Seguindo a mesma linha genealógica traçada por Nietzsche, Foucault defende que existem, historicamente, dois procedimentos para produção da verdade sobre o sexo. Por um lado, o Oriente, em que a verdade sobre ele é extraída do próprio prazer e é concebida como uma prática resultante da experiência e da vontade. Dessa forma, a verdade sobre o sexo é extraída do próprio sexo (GOMES, 2015, p.119). Isso quer dizer que só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral, que é a confissão. Neste contexto, Foucault explicita que “o homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente”, o qual passou, de forma espontânea ou forçada, a manter uma lógica própria de contenção dos desejos e devaneios errantes de pensamentos e de atos considerados imorais e impróprios. As relações de poder estabelecidas e estruturadas no pensamento foucaultiano constituem o parâmetro para discutirmos o que excede e transborda na teoria nietzschiana sobre os discursos e os conceitos concedidos pela modernidade e toda a sua capacidade construtiva de teorias universais capazes de restringir, coibir e anular vontades inerentes ao homem (FOUCAULT, 2014). Fazendo um parêntese, aludimos Gomes (2015) que, ao citar Nietzsche, aponta que o problema da modernidade é a supremacia da racionalidade, da razão, do discurso científico filosófico e dos conceitos, sobre outras possibilidades e alternativas ao entendimento da realidade e das relações concebidas por esta por meio das emoções e das subjetividades expostas nos homens. Para ele, a razão é sobreposta à vontade, reprimindo sua inquietude e sua destemida busca do prazer pelo prazer, pelo erro, pela inebriada elevação das vontades e das potências. Nesse sentido, Gomes (2015) afirma que Nietzsche versa sobre a culpa, atribuindo uma condição de interiorização do homem, permitindo sua própria dilaceração, em que limita a si próprio, castigando-se e servindo-se como inventor da própria noção de má-consciência. Talvez neste ponto pudéssemos expor uma 84

condição de angústia do homem ou, nas palavras de Nietzsche, um sofrimento do homem com o homem consigo, em que a causa de tal sentimento seria o aprisionamento dos instintos animais inerentes a ele por suas concepções racionais que lhes causa temor, apreensão e que lhes castiga incessantemente (GOMES, 2015, p. 120).

Esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência (...). (NIETZSCHE, 2009, p. 68).

Gomes (2015) aponta que na teoria de Foucault a relação entre culpa e dominação é observadamente valiosa, e isto se reflete na vontade de saber sobre a sexualidade. Na teoria de Nietzsche, o homem é o próprio inventor da culpa, da má-consciência. Tendo criado a culpa, a solução encontrada agora pelo homem é a construção do castigo. Castigar-se se torna um padrão estabelecido, tanto pelo poder exercido pela religião quanto pelo poder concentrado nas próprias relações sociais cotidianas. Nas relações religiosas é criado o hábito da confissão aos superiores eclesiásticos, como sacerdotes, bispos e padres. Nas relações sociais externas ao círculo religioso este hábito de se confessar se sustenta nas relações voltadas aos psicólogos e médicos.

O Cristianismo, segundo Nietzsche, carrega o propósito de “aniquilar as paixões e os apetites apenas para evitar sua estupidez” e, segundo ele, “a Igreja combate as paixões com a excisão em todos os sentidos: seu procedimento, sua “cura” é o castratismo” (NIETZSCHE, 2010, p. 42. 43).

Para o autor, Foucault acredita que a confissão gera uma relação de poder em que o ouvinte sempre está numa posição de superioridade em relação ao confessor. Tal relação de poder é observada em qualquer das circunstâncias, seja na relação religiosa, seja na relação moderna científica, sempre pautada pela hierarquia do conhecimento (GOMES, 2015 p.121).

2.5 Reflexões acerca da Corrupção na ótica de Foucault

Para Michel Foucault, a questão central é saber como essas sociedades burguesas vieram a construir e regular os conceitos de normalidade e 85

anormalidade, e, por consequência, de corrupção e não da corrupção, no que diz respeito à distinção do público e do privado. Nesse sentido, o autor aponta como o normal é socialmente construído pela produção do patológico. Para tanto, o normal, tanto no caso da corrupção política quanto nas doenças mentais, é um conceito produzido ou construído. E há normas que indicam o patológico. O normal deriva do latim norma, que é aquilo que segue a literalmente a norma. Na corrupção política, o normal seria aquilo que não violasse as regras que regulam a pureza ou a separação das categorias (público e privado). Tomando como exemplo os escândalos políticos do ex-governador do estado do Rio de Janeiro, sabe-se que ele costumava convidar empreiteiros para suntuosos jantares, seja no Brasil ou no exterior; também era comum a prática de presentear a primeira dama com joias caríssimas e exclusivas. Em sentido clássico, tais atos jamais poderiam ser considerados como um ato de corrupção política; contudo, no sentido moderno, podemos assim considerá-lo, porque essas atividades com fins privados foram realizadas em lugar público, por um agente público, o qual, indevidamente, permitiu a contaminação do espaço público pelos interesses privados. Todavia, provavelmente, em outros tempos, os mesmos gastos nas mesmas condições poderiam ser considerados como fatos corriqueiros. Essa diferença entre noções de corrupção política traz consequências significativas. É preciso legitimar os interesses privados das classes dominantes como se fossem de interesse público. Para isso, o agente público precisa agir no domínio público, como se fosse destituído de qualquer motivação ou interesse privado. Toda história de Sérgio Cabral demonstra essa apropriação do bem público. E assim procedendo, ele não só reafirmaria a pureza de sua conduta, ao manter a separação categórica entre o público e o privado, mas também legitimaria a dominação política do Estado burguês. Em outra vertente, a divisão entre o público e o privado torna-se um valor em si, uma qualidade imanente a todas as sociedades, o padrão de normalidade, o que lhe confere uma suposta naturalização histórica. É este pressuposto hegemônico que constitui o padrão, segundo o qual se classificam os níveis de corrupção nos ordenamentos políticos modernos. Foucault (1972), em seus estudos, trabalha com a ideia de um poder, que seria produtor de individualidade, antes de ser um poder inibidor, daquilo que ele denomina como um tecido de hábitos e práticas, o qual ele chama de norma. 86

Assim, a norma é uma medida que permite que se separem, no seio de um grupo determinado, duas categorias ou dois estados de indivíduos: os indivíduos normais, aqueles que se identificam com o perfil estabelecido por essa medida, e os indivíduos anormais, isto é, aqueles que, de algum modo, afastam-se de tal perfil; a norma, então, é um critério que deve ser observado. A função da normalização consistiria em tornar as pessoas, os atos, gestos, conforme o modelo da norma. Percebemos uma anterioridade da norma nesse tipo de normalização ou normação (FOUCAULT, 1972-3 apud CARVALHO JR., 2007) Segundo Carvalho (2007), os normais e os anormais não se encontram fora desse critério de separação, ou seja, a norma. O que os diferencia não é uma natureza ou uma essência, mas um estado ou posição, em termos de coincidência ou não, de cada um em relação à norma. Desta maneira, a concepção de Foucault ao interpretar a norma como um princípio de comparabilidade, de comparação, uma medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo, sem verticalidade, sem exterioridade (EWALD, 1993, p. 86 apud CARVALHO JR., 2007) Mas, para melhor compreensão da ideia de norma, para Foucault (1997), é necessário compreender também a noção de poder, como vimos anteriormente, e em que contexto tais noções foram desenvolvidas. É no interior da analítica do poder que Foucault desenvolve sua crítica às noções de poder predominantes no pensamento político ocidental.

Isso não significa dizer que em Foucault haja uma teoria do poder, a qual suporia de algum modo a existência de um objeto de poder, uma estrutura determinada de poder. Pelo contrário, sua analítica do poder não pressupõe uma essência chamada poder, nem procura definir o poder, mas se limita a perceber diferentes situações estratégicas a que ele chama de poder. (DAU, 2004, p. 91 apud CARVALHO JR., 2007, p. 163).

Portanto, para Foucault (1997, p. 89), “o poder não é uma coisa, uma instituição, nem uma estrutura dotada de potência, mas apenas um nome dado a uma situação estratégica complexa numa determinada sociedade”. O filósofo trata de refutar as principais versões de um modelo a que se pode chamar de substancial ou essencialista do poder, ou seja, o modelo que entende o poder como uma coisa. A esse modelo, ao qual ele denomina em termos gerais de jurídico-discursivo, suas análises opõem o modelo da normalização; quer dizer, 87

um modelo em que o poder será pensado enquanto estratégia. São as duas principais versões do modelo jurídico-discursivo de poder que constituem o objeto de suas críticas nos trabalhos “A Vontade de Saber” e “Em Defesa da Sociedade”. O ponto de chegada comum dessas críticas será a abertura para as análises acerca de uma nova face dos mecanismos de normalização: a biopolítica, o biopoder ou a arte de governar. Para Foucault:

O biopoder encerra uma forma de normalização diferente da normalização disciplinar. Nos mecanismos de poder da biopolítica, a normalização já não se configura como disciplina dos corpos dispostos no interior de certas instituições como a prisão, o hospital e a escola, entre outros, mas como o resultado de mecanismos de regulação e de segurança, que atuam sobre os processos do dia a dia das populações. Uma das versões do modelo jurídico-discursivo do poder é aquela em que este aparece como algo que reprime e que impõe interdições. Seria a identificação do poder à repressão, em suas mais variadas formas. Pode-se dizer que a matriz teórica que melhor expressa essa concepção é o pensamento marxista, em que o poder tem por forma de atuação principal a opressão organizada e exercida pelas classes dominantes. A outra versão (liberal) é aquela em que o poder se confunde com a ordem, instaurada pela lei civil, decorrente de um Estado legítimo. Tal concepção, por sua vez, remonta ao pensamento dos filósofos contratualistas, em que a lei se constitui na manifestação essencial de poder. Em oposição à versão que considera o poder como uma instância repressiva, “A Vontade de Saber” procura mostrar que o poder não reprime nem interdita, mas incita e produz. Ao contrário da versão que vê no poder o veículo da instauração da paz social e da ordem, por meio da lei, em defesa da sociedade, procura pensar o poder enquanto guerra perpétua. A partir destas duas vias críticas que faz incidir sobre as concepções de poder dominantes no pensamento ocidental, Foucault chega a uma concepção de poder que o entende enquanto um conjunto de mecanismos que têm no cotidiano das pessoas seu ponto de incidência mais importante. (CARVALHO JR, 2007, p.163-4)

Foucault aponta a problemática do sujeito tal como Freud em “O Mal-estar na Civilização”, que em seu estudo repensa a problemática do sujeito, como veremos no próximo tópico.

2.6 O mal da atualidade: O olhar da Psicanálise no fenômeno do poder e da corrupção

Como podemos refletir até aqui, a corrupção faz parte da história do Estado brasileiro, ultrapassando todos os limites da razoabilidade, passando a ser surreal. Nesse sentido, a sociedade anseia por mudança e iniciam-se as tentativas de combatê-la. Podemos, inclusive, afirmar que a queda do ex-governador se dá 88

quando “sua taxa de corrupção” se exacerba, tornando-se insustentável. Assim, nesta seção, pensaremos este mal da atualidade a partir da obra de Sigmund Freud e das suas reflexões de amplitude social e cultural, e complementaremos a fundamentação teórica do fenômeno perpassando ainda por autores que suplementarão o estudo a partir da sua contribuição para história social e política da corrupção e sua relação com o poder pela ótica da Psicanálise. Um assunto que perturba a sociedade é a questão da felicidade para o homem, sendo um tema recorrente entre vários autores que se debruçaram sobre a temática no decorrer da história. Sigmund Freud foi um desses que dedicou uma parte da sua obra ao estudo deste tema. Levantando uma nova compreensão do ser humano, o autor enxergava no indivíduo um ser dotado de uma razão imperfeita, influenciada por impulsos, desejos e sentimentos, constantemente contraditórios face à condição própria de ser biopsicossocial que qualifica nossa espécie. Segundo o psicanalista e autor espanhol Saúl Peña K. (2003), é neste sentido que a Psicanálise, com sua técnica de análise e com a teoria da interpretação do inconsciente, permite uma percepção mais aprofundada dos desejos não manifestados, contudo decisivos na tomada de decisão. É difícil antever a quem se destina um voto, mas a mudança pode se tratar de pôr em evidência as crenças latentes, como o imaginário, que persuadem nas opções políticas e, assim, não nos surpreendemos pelas que parecem irracionais e ilógicas em um dado momento. A Psicanálise é um campo capacitado para dar conta destas variantes com rigor, ainda que não se saiba com exatidão das tendências ocultas que se traduzem na tomada de decisão. Peña K. (2003) explica que o objetivo é identificar os imaginários ou crenças populares, os ideais compartilhados mais generalizados e que valor se concede a eles em um grupo social determinado. Precisar quem é o outro na relação intersubjetiva político-indivíduo, que significa o que representa o um para o outro, que lugares ocupam, ou que acreditam que ocupam ou desejam ocupar. Desvendar as características atribuídas e almejadas de um líder político e a valorização que se dá a seu discurso. O autor ainda afirma que esta teoria, como campo de saber, lida tanto com questões que envolvem os impasses do sujeito moderno quanto com questões que dizem respeito à constituição desse sujeito na Modernidade, e esse sujeito só se constitui inserido na sua cultura. A Psicanálise 89

surge na Modernidade, estando intimamente relacionada aos impasses desse sujeito dentro seu contexto social e histórico. Para tal, julga possível estabelecer um diálogo entre a teoria psicanalítica freudiana e no nosso estudo, com a corrupção na administração pública no Brasil. Birman (2009) um estudioso da Psicanálise Freudiana, que relaciona suas pesquisas ao poder, afirma que é ilusório pensar no sujeito freudiano fora dos dilemas realizados para ele pelo seu contexto cultural. As variantes de subjetivação e de constituição do sujeito estão precisamente ligadas às formas de sociabilidade e de poder exercidas pelo e sobre o sujeito moderno. Muitas das argumentações do autor são inspiradas na genealogia de Foucault, e é nesse sentido que as nuances desse mal-estar coletivo são abordadas. Observamos, em sua obra, a relevância dada por Freud à questão do mal-estar na Modernidade, por meio de sua análise, na qual é possível apontar essa articulação conflituosa no sujeito entre a urbe interior e exterior. O poder cria uma estratégia ao dar a entender que a corrupção é menos danosa, corrosiva do que outros crimes violentos, como o homicídio, pois sempre é abordada de forma amena. Podemos, então, afirmar que a corrupção é um crime sem face e, assim, aparenta possuir um potencial menor, um problema menor. Contudo, ela é um crime que prejudica a vida das pessoas e da nação, posto que os corruptos não matam, teoricamente, uma ou outra pessoa; suas vítimas são anônimas. Essa descaracterização, essa falta de personificação da vítima, faz com que a corrupção seja menos grave do que outros delitos, como o assassinato ou tráfico de entorpecentes. Nesse sentido, os políticos fazem várias vítimas anônimas que, por exemplo, morrem sem ter acesso a saúde pública, propagando a ideia de que seus delitos são menores que outros. Sigmund Freud (1974) em seu texto “O Mal-estar na Civilização” produz uma reflexão sobre a Modernidade por meio do seu discurso sobre o processo civilizatório. A análise freudiana é marcada por sua inovação, ao instaurar o uso de uma linguagem psicanalítica, para abordar tais questões da Modernidade. Nesse sentido, o fundamento da reflexão freudiana sobre este período é amparado na constituição do sujeito moderno e nos impasses instaurados por esse período histórico para o sujeito. Assim, ao identificar os polos conflituosamente que constituem o sujeito (pulsão versus civilização) Freud retoma uma oposição presente nas análises das Ciências Humanas sobre a 90

Modernidade e a polarização entre natureza e liberdade. Observamos que se a natureza é o que marca a tradição ou o mundo pré-moderno, a liberdade representa a condição de passagem para a civilização, sendo, para tanto, por meio da liberdade e da razão científica que o sujeito moderno pode desafiar o discurso religioso e o tradicional. Desse modo, o sujeito, para Freud (1974), constitui-se num jogo de forças entre as exigências da cultura e as exigências das pulsões. Por conseguinte, torna-se oportuno e até desejável um diálogo entre a Psicanálise e outras Ciências Humanas e, neste estudo, como apontamos, entre poder, ética e a política. Assim sendo, o sujeito freudiano é marcado, desde seus primórdios, por um conflito de forças, e o discurso psicanalítico se constitui direcionando seus interesses para os conflitos que envolvem o sujeito na modernidade, desde sua origem, e ao mundo Ocidental. Freud oferece uma investigação antropológica e psicológica do homem em sua incessante busca pela felicidade, ora dada pela ausência de grandes sofrimentos, ora pela vivência de fortes prazeres. O autor evidencia três fontes de sofrimento que perturbam, ameaçam o homem: a ameaça de deterioração e decadência oriunda do nosso próprio corpo, o poder devastador e implacável das forças da natureza e o sofrimento proveniente das relações sociais. O princípio de prazer, neste sentido, mostra-se utópico; no entanto, Freud sinaliza que não podemos e nem devemos abdicar às nossas demandas de felicidade (FREUD,1974). Freud (1974) ainda reflete sobre a Modernidade atravessando um sujeito constituído no conflito e pelo conflito de forças. É que a administração ou a gestão desses conflitos se torna um tema importante para a Psicanálise, questão que perpassa toda a obra freudiana e que toma diferentes rumos nas duas fases de seu pensamento. O autor substitui a palavra poder por algo mais categórico: força, e manifesta que o direito e a força são antagônicos, retrocedendo até origens arcaicas da humanidade, e que os conflitos de interesses entre os homens são solucionados mediante os recursos da força, que, neste caso, são as pulsões. Em Freud, o nosso processo civilizatório inibe as satisfações pulsionais. Dessa forma, aponta Elias (1993) que

Nenhum tipo de sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções do indivíduo, sem um controle específico de seu comportamento. Nenhum controle desse tipo é possível sem que as 91

pessoas anteponham limitações umas às outras, e todas as limitações são convertidas na pessoa a quem são impostas, em medo de um tipo ou de outro tipo.

Segundo Birman (2009), o poder não é o tema central das preocupações freudianas no desenvolver da sua obra; contudo, os quesitos que são abordados, em sua teoria, tem relação muito próxima com essa temática, sendo relevante mostrar de que tipo de poder falamos, ou a que noção de poder nos aludimos ao apresentar neste estudo essa questão, pois é importante, ao pensar nas relações de poder, analisar de que maneira a psicanálise freudiana dialoga e se relaciona com esse poder. O autor afirma que a questão do poder, para Freud, está atrelada à questão da autoridade e, por essa razão, a preocupação com a figura do pai esteve sempre em ênfase nas suas análises, como uma figura que, subjetivamente e historicamente, representa a autoridade e o poder. Agejas (2010) afirma que Freud não dedicou um espaço a esta temática do poder em sua obra; no entanto, ele aportou elementos precisos para que a Psicanálise contribuísse para esta questão em muitas das suas dimensões, posto que é uma teoria interdisciplinar. Podemos observar, inclusive, aquilo que poderíamos chamar de expressões implícitas de poder, inconscientes, diferentemente das que poderíamos chamar “explícitas”. Não tenhamos dúvidas de que estas manifestações explícitas de poder têm sua sustentação no inconsciente, e essas contribuições freudianas deram luz aos aspectos inconscientes da questão, que são as formas implícitas de poder, que são da ordem do inconsciente. Nesse sentido, podemos considerar que o conjunto da obra freudiana que revela o poder do inconsciente para a totalidade dos atos do sujeito e que nos aporta entendimentos metapsicológicos que são valorosos para o aprofundamento da questão do poder. Segundo Freud (1974), o ponto crucial para a civilização constitui-se pelo poder que uma sociedade exerce sobre o poder do indivíduo, encontrando sua essência na restrição das possibilidades de satisfação por meio da justiça sob o aspecto de um estatuto legal que sobreponha a vontade da maioria sobre o ser individual. Deste modo, Freud inaugura o conceito de civilização fundamentada numa renúncia à satisfação pulsional, em que, para conviverem em sociedade, os indivíduos reprimem suas pulsões, resultando numa economia libidinal. Esse sofrimento nos explicita como mais penoso que qualquer outro. Assim, não 92

existiria uma regra comum no que se refere à busca da felicidade, incumbindo a cada um de nós de descobrirmos por si mesmo a maneira mais particular de ser feliz. Para Birman (2009), figuras como Deus, o Rei, o Estado e o Pai estão na mesma linhagem de poder por representarem uma autoridade em diferentes esferas e contextos. E é nessa linha de raciocínio que, por exemplo, julgamos oportuno pensar o abandono da primeira teoria do trauma freudiana em favor da teoria da fantasia, pois a preocupação de Freud com o poder não está presente apenas nos textos ditos sociais, mas, desde o início de seu pensamento, na esfera micro das relações de forças, entre os sujeitos e a autoridade entre o sujeito. Para Peña K. (2003), se somarmos uma história de abandono a um passado traumático de uma sociedade, marcada pela marginalização, descuido, violência humana, associados à privação cultural, afetiva, econômica, aos conflitos raciais e às diferenças de classes vividas ao interior de uma realidade sinistra e ameaçadora, podemos explicar o ocorrido no Brasil nos últimos anos. Políticos corruptos, candidatos questionáveis, partidos com ideologias contraditórias aos quais não se constituem opção de alternativa popular. A sociedade frente à ausência de identificação com um pai confiável e consistente escolhe uma pessoa que, aparece representando o desconhecido, o inexistente, o marginal; acompanhamos isso há anos no Brasil no período eleitoral. Erroneamente, grande parte do país se identifica com ele, sem perceber de que se trata do representante de um engano maior, projetando uma confiança idealizada a favor do governo, ao qual atribuem boas intenções. Na realidade, os que compartilharam do banquete da corrupção pretendiam a perpetuação de seu poder para satisfazer uma ambição exacerbada, sustentada somente na ideia de que o poder faz o homem, e não o homem o poder. Podemos observar claramente no caso Sérgio Cabral, que usurpou dos cofres públicos do estado do Rio de Janeiro valores que ele próprio não teria como gastar nesta vida. É o que o autor denomina como filosofia torta, ou seja, da repartição. Lamentavelmente, em determinados momentos, alguns setores da oposição se viram seduzidos, consciente ou inconscientemente, a igualar certas atitudes antidemocráticas do governo que correspondem à lógica perversa de comumente conhecida em nosso país de que “o fim justifica os meios”. Devemos nos perguntar sobre os efeitos que um governo desta natureza tem no psiquismo e na cultura de um país. 93

Quando Freud (1996) escreveu inicialmente sobre histeria, acreditava que as histéricas sofriam abusos sexuais na infância; mais tarde essa teoria foi modificada. Porém, a etiologia da histeria coloca por terra a hipótese da hereditariedade como sua causa fundamental. O autor acreditava que, fazendo com que o paciente relembrasse a cena em que o sintoma apareceu primeiramente, seria possível corrigir o curso dos eventos posteriores. Freud intuía que o trajeto dos sintomas até a sua causa deveria ser mais complexo e longo. Nesse sentido, o trauma perpassaria por duas premissas: a de ser adequado como determinante e a de produzir força traumática suficiente e proporcional, pois as cenas lembradas pelas histéricas como originárias dos sintomas apenas estabeleciam uma conexão com a verdadeira cena traumática anterior, sendo essa mais difícil de ser rememorada. Assim, o trauma sofrido advinha de um precoce abuso sexual na fase pré-sexual; na puberdade ou adolescência alguma cena também de caráter sexual ativaria traços do abuso vivido, possibilitando a atribuição de um sentido erótico à primeira cena. O indivíduo oscilava à vitimização e à culpabilização pelo abuso. Acontecia uma divisão psíquica que recalcava traços de um evento traumático. Contudo, o que era excluído da consciência persistia em revelar-se, propiciando os sintomas histéricos, ou seja, o conflito psíquico era transposto para o registro sensorial, corporal e o motor. Birman (2007) afirma que Freud considerou que seria viável a cura legítima da histeria quando se desvelasse por inteiro a cena traumática etiológica de um caso – dessa forma, todos os sintomas sumiriam para sempre. Quando não se conseguisse chegar a essa cena originária, ainda que os sintomas tivessem sido eliminados, esse desaparecimento corria o risco de ser temporário. Nessa primeira teoria do trauma freudiano, a dignidade da figura da autoridade é posta em questão, isso porque, segundo o autor, os adultos que infligiam a sedução sexual às crianças eram, na maior parte das vezes, pessoas próximas, de seu convívio, e nas quais elas confiavam e dedicavam afeto e que, mantinham com a criança uma relação amorosa regular. Muitas vezes, o próprio pai era o abusador. Para Freud (1996), as compulsões, os sintomas, os rituais obsessivos, a conversão histérica e os delírios se caracterizavam por conter uma dimensão representativa, um sentido. Desta maneira, é por meio da decifração desses sintomas que o autor acreditava poder chegar à cura definitiva. Supor a realidade material desses abusos foi possível para Freud na família extensa, na qual o pai, 94

enquanto representante de um poder absoluto (o pátrio poder) exercia esse poder na esfera familiar. O pensamento de Freud, anterior à Modernidade, é que a infância não era diferenciada da vida adulta; a diferenciação que havia era apenas física, sendo a criança considerada um ser mais fraco. Assim, as crianças participavam com os adultos de qualquer evento social e assunto, inclusive os de ordem sexual. Nesse sentido, era um problema para a hipótese de estabelecimento da cultura e sua manutenção, na qual Freud acreditava que houvesse abusos sexuais praticados incestuosamente pelo próprio pai. O autor percebeu que por conta da sua experiência com as histéricas, o incesto estava inerente à cultura, e assim o articulou em sua teoria. Entretanto, essa hipótese não se sustentaria por muito tempo, mesmo porque, enquanto iluminista e crente na perspectiva de sucesso do projeto civilizatório por meio da ciência, Freud não podia acreditar tão facilmente no fracasso desse projeto. É claro que a presença do sofrimento psíquico já indicava problemas na cultura, mas o psicanalista acreditava que a ciência na qual estaria incluída a psicanálise pudesse reparar esses equívocos produzidos (BIRMAN, 2007). Foi assim que Freud (1996) começou a questionar se a sedução sexual efetivamente acontecia no plano da realidade material ou se apenas no plano da realidade psíquica. Para Birman (2007), quando Freud se deu conta de que ocorria apenas na fantasia, ele abandona a teoria traumática das psiconeuroses. A sedução passou a ser um acontecimento ficcional, mas não uma mentira, porque o indivíduo realmente acreditava que ela havia ocorrido. Ao passar da teoria da sedução, tendo o pai como abusador, agindo conforme seus desejos e não em função da proteção dos filhos para a teoria da fantasia, Freud permite um reparo da dignidade da figura paterna. No entanto, a visão do autor acerca da autoridade muda após a Primeira Guerra Mundial, deixando de considerar a figura paterna como ente protetor da vida. Freud também constatou que um mundo civilizado era capaz de solucionar seus conflitos de maneira, terrível, cruel, bárbara. Nesse sentido, o autor aponta que a aptidão para a cultura seria composta por duas partes, uma inata e outra adquirida na vida. Segundo ele, a capacidade de aculturar-se foi superestimada, ignorando a premissa da pulsão que estaria em estado primitivo, essa tendência levou a ilusão de que os humanos eram mais civilizados do que realmente eram. 95

A visão Freudiana da constituição do poder na Modernidade está baseada no seu estudo sobre as pulsões. Assim, o que podemos chamar nesta compreensão de questão do poder, neste contexto, propõe uma problemática que nos leva tanto ao sujeito como à intersubjetividade e à transubjetividade. É um tema de interesse de muitas disciplinas e questão de debate habitual no conjunto social, não apenas atualmente, como desde a antiguidade. Nesse sentido, Freud se vê levado a estudar as questões sociais que envolvem a constituição do poder e que caracterizam a Modernidade, justamente porque os impasses desta também constituem o sujeito, mas não apenas ou preponderantemente. Na realidade, o sujeito é constituído entre o polo da cultura e da alteridade e o polo pulsional e narcísico, numa relação dialética permanente e inacabada. Nesse sentido, a Psicanálise foi capaz de levar em conta tanto os registros da alteridade quanto os registros do poder por meio da problemática do mal-estar do sujeito moderno. Freud (2006) em seu texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” faz uma alusão de que as doenças nervosas ou as neuroses e as psiconeuroses seriam causadas pelo fator sexual. Nesse sentido, o ideal de cura seria alcançável pela erradicação desse mal-estar pela Psicanálise e por uma reforma política e moral. Por outro lado, identificar um mal-estar nessa época significava identificar também um fracasso da promessa de felicidade iluminista; no entanto, essa falha poderia ser corrigida por meio de uma maior liberação sexual. O problema, portanto, estava do lado da moralidade moderna que reprimia excessivamente a sexualidade. Em seus estudos, Freud (2006) compreende que a civilização moderna teria construído suas bases na repressão da sexualidade, pois cada renúncia individual de onipotência ou agressividade se traduzia numa contribuição para o acervo cultural coletivo. Essas renúncias pulsionais seriam possibilitadas pela capacidade individual de sublimação, a qual poderia modificar o objetivo sexual da pulsão por outro não sexual, sem que, para isso, a pulsão necessitasse abdicar de grande parte de sua intensidade. Mas como essa capacidade de sublimação variava de sujeito para sujeito, aos que não fossem capazes de sublimar eficientemente suas pulsões sexuais, restaria submeter-se às doenças nervosas - que se manifestavam assustadoramente em sua época. Para Birman (1994), o conceito de sublimação para Freud, não obstante as torções que sofreria ao longo da obra, seria uma forma de deserotização da 96

pulsão sexual que manteria o mesmo objeto da pulsão, mas este deixaria de ser erótico para tornar-se sublime, ou seja, um objeto valorizado pela cultura. No entanto, a obrigatoriedade imposta ao sujeito de sublimar impediria a expansão do erotismo no psiquismo, o que geraria mais mal-estar. A moral sexual moderna apenas permitia, como meta da sexualidade, a reprodução. Para Freud (1974), a sublimação dos instintos torna possível o funcionamento de um papel importante na vida civilizada das atividades psíquicas, artísticas, ideológicas ou científicas como forma de nos levar a felicidade frente a uma repressão externa inevitável, evidenciada, assim, como um aspecto evidente do desenvolvimento cultural. Num primeiro momento, a sublimação pode configurar algo compulsório aos instintos pela necessidade civilizatória da natureza humana; contudo, é uma resposta do homem ao próprio meio que criou e se viu inserido. Em outras palavras: é um procedimento que evidencia nitidamente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos sem nos livrar completamente de todas as nossas aflições reais. No entanto, conforme Freud (1996) já havia mostrado, a pulsão é perverso- polimorfa e tem como objetivo não a reprodução, mas a satisfação e o prazer. Nesse sentido, mostrava-se praticamente impossível para a constituição pulsional sexual humana submeter-se a tamanhas restrições impostas por essa moral, como a restrição da atividade sexual ao seu exercício exclusivo dentro do casamento monogâmico e com fins exclusivamente reprodutivos, sem que os sujeitos tivessem que pagar o preço da doença nervosa e de outros prejuízos. A quem não tivesse se casado ainda ou àqueles que nunca se casassem estariam destinados à abstinência sexual. Freud (1996) chamava, assim, a atenção para o fato de que as pulsões sexuais não podiam ser reprimidas excessivamente, pois caso fossem impedidas de satisfazer-se sexualmente, encontrariam meios substitutivos para isso, por meio dos sintomas. A satisfação sexual, portanto, seria uma proteção contra as manifestações das doenças nervosas que geravam grandes prejuízos, não apenas para o sujeito, mas também para civilização moderna. Segundo o autor, outro problema gerado pela moral sexual civilizada seria certa hipocrisia e tolerância com a moral dupla permitida aos homens daquela época, o que, junto aos altos índices de adoecimento nervoso, já insinuava a 97

impossibilidade humana de obedecer a essa excessiva imposição de repressão sexual. A educação, ao impor essas restrições aos sujeitos, produzia inibições também intelectuais, entre outras, que acabavam por comprometer o próprio avanço da civilização. Para Agejas (2010), o conflito psíquico se dava entre as pulsões sexuais (princípio do prazer) e as pulsões de autoconservação ou pulsões do Eu (princípio de realidade). Por ser o lugar de expressão da conservação da individualidade vital, o Eu teria certa autonomia para resistir às exigências das pulsões sexuais, utilizando o recalque e sendo representante da censura e da moralidade em nome da individualidade, não obstante o assédio pelas pulsões sexuais. Isso porque o inconsciente era a instância marcada pelo sexual e pela pulsionalidade perverso- polimorfa, enquanto a consciência era o espaço da autoconservação e da razão. Entretanto, no mal-estar, o dualismo pulsional vigente dá-se entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Freud (2006) afirma que toda a interdição imposta pela moral civilizada produzia justamente um incremento no palco social para a possibilidade da reversão do sadismo em masoquismo. As doenças nervosas e o sofrimento psíquico daquela época tinham suas bases assentadas exatamente sobre essa reversão masoquista, reversão que a Psicanálise, enquanto inserida no logos científico, tinha a pretensão de suspender, possibilitando ao sujeito a compreensão de que obter prazer pela dominação do objeto não implicaria, necessariamente, em impingir-lhe dor. Nesse sentido, a reversão da pulsão de domínio em masoquismo, psiquicamente, seria a fonte do mal-estar na Modernidade. Assim, segundo Agejas (2010), Freud, aos nos conceder as bases pulsionais destas manifestações humanas, mostra-nos que o poder é algo inerente ao sujeito, e, portanto, é inevitável a sua consideração no funcionamento dos seres humanos. Por isto – e esta é uma postura deste trabalho – quando enfocamos a questão na própria Psicanálise, é em vão anular a questão do poder. Devemos ser conscientes de sua inevitável presença, tratando de aprofundar que seus modos de expressão, estejam a serviço de processos criativos ou destrutivos. Ao abdicarmos simplesmente de satisfazer um instinto sem recompensar economicamente essa perda, estaríamos predestinados a um percurso de 98

distúrbios. Procurando conciliar a vontade da comunidade em que vive e sua exigência pela liberdade, o indivíduo tenta se acomodar em um cenário que lhe permita encontrar a felicidade. Para efetivar a “tarefa econômica de nossas vidas”, identificada pela analogia entre os métodos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo, somos instigados a mover nossas satisfações pulsionais reprimidas para outras direções, correspondendo, em boa parte dos casos, com o processo de sublimação dos instintos. O trabalho se constitui em reorientar os propósitos instintuais reprimidos para outras atividades. Dessa, digamos assim, “frustração cultural” logra-se o máximo quando o deslocamento do prazer original resulta para as fontes de tarefas intelectuais e psíquicas, como a alegria do cientista em resolver problemas ou constatar verdades. A vulnerabilidade do método está em não ser acessível a todas as pessoas e não proteger integralmente àquelas que dele se beneficiam contra o sofrimento. Como abordamos anteriormente, Freud não debruça seu olhar nos estudos do poder; contudo, é inegável que estas questões estão implícitas na sua obra e suas contribuições deram luz aos aspectos inconscientes da questão. Podemos, neste contexto, observar a dualidade do poder nas contribuições que Freud faz sobre a pulsão de dominação e sua participação tanto no sadismo como na pulsão do saber. Em seu texto “Três Ensaios de Teoria da Sexualidade”, referindo-se aos componentes cruéis da pulsão, Freud (1989) diz que, com independência ainda maior das outras atividades sexuais vinculadas às zonas erógenas, desenvolvem- se na criança os componentes de crueldade da pulsão sexual. A crueldade é algo perfeitamente natural no caráter infantil, já que a inibição que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro - a capacidade de compadecer-se tem um desenvolvimento relativamente tardio. Segundo Agejas (2010), podemos supor que o impulso cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual numa época em que os genitais ainda não tenham assumido seu papel posterior. Assim, ela domina uma fase da vida sexual, que é descrita como organização pré-genital. Para Freud (1989), uma segunda fase pré-genital é a da organização sádico-anal, na qual a atividade é produzida pela pulsão de dominação pela musculatura do corpo, mostrando-nos como a pulsão de dominação e o poder de atuar sobre o outro se entrelaçam. Agejas (2010) percebe que a vinculação entre a dominação e o sadismo é reforçada nas considerações que nos brinda sobre o tema em “O Mal-estar na 99

Civilização”, texto que aprofundaremos adiante. Uma destas pulsões de objeto, a sádica, destacou-se, sem dúvida, pelo fato de que sua meta não era precisamente amorosa. Ademais, ela se encontrava obviamente ligada às pulsões egóicas, não podendo ocultar sua estreita afinidade com as de dominação que não possuem propósito libidinal. Havia, então, um desacordo, que passou por alto, e apesar de tudo, era evidente que o sadismo pertencia à vida sexual, pois as atividades de ternura poderiam ser substituídas pelas cruéis. Ainda segundo Agejas (2010), essas considerações permitiam a Freud, fazendo uma prolongação nos fenômenos transubjetivos, propor em sua carta a Einstein, em seu texto “Por que a Guerra?” a autorização da substituição da palavra “poder” por “violência” e a consideração de que faremos um mau cálculo se desprezarmos o fato de que a lei era, originalmente, força bruta, e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência. Por outro lado, vários escritos de Freud nos mostram outro aspecto da pulsão de dominação e pressupõem a busca de fins libidinais às necessidades do sujeito. Freud (1989) afirma que a pulsão de autoconservação é, sem dúvida, de natureza erótica, porém, deve ter à sua disposição a agressividade para que atinja o seu propósito. Do mesmo modo, também a pulsão de amor dirigida a um objeto, necessita de alguma contribuição da pulsão de dominação para que obtenha posse deste. Isto já havia sido advertido por Freud (1989) ao dizer que “nos meninos, a preferência pela mãe já indica a importante contribuição que a pulsão de dominação está destinada a dar para a atividade sexual masculina”. Assim, inicialmente, o autor distingue pulsão de autoconservação e pulsão sexual. Depois, ele unifica as duas pulsões e as nomeia de pulsões de vida, criando, dessa forma, um novo dualismo: pulsão de vida e pulsão de morte. Segundo Agejas (2007), uma posição oscilante que se expressa claramente no texto “À disposição à neurose obsessiva – uma contribuição ao problema da escolha da neurose”, em que encontramos a antítese entre as aspirações de objetivo ativo e as de objetivo passivo. A atividade é suprida pela pulsão comum de dominação, que chamamos sadismo, quando a encontramos a serviço da função sexual; por outro lado, mesmo na vida sexual normal plenamente desenvolvida, ela tem importantes serviços auxiliares a desempenhar, levantando dentro destas derivações um aspecto fundamental para suas considerações, que é o aporte sobre a pulsão do saber. 100

Para Freud (1989), a pulsão de saber não pode ser computada entre os componentes pulsionais elementares, nem se subordinar à sexualidade. Sua ação corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de dominação, e, de outro, trabalha com a energia da pulsão de ver, e em respeito particular à pulsão de saber, temos a frequente impressão de que ela pode substituir o sadismo no mecanismo da neurose obsessiva. Segundo o teórico, a verdade é que ela é, no fundo, uma ramificação sublimada da pulsão de dominação, exaltada em algo intelectual, e seu repúdio, sob a forma de dúvida, desempenha grande papel no quadro da neurose obsessiva. Em relação ao que podemos chamar conceito de poder, Freud (2010) contribui fundamentalmente em “O Mal-estar na Civilização” com questionamentos vinculados ao poder da comunidade, que se estabelece como “direito” em oposição ao poder do indivíduo, condenado como “violência bruta”. Essa substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Seus aportes sobre o intra e o intersubjetivo são escassos. Corroboramos o autor Agejas (2010), que afirma que a obra freudiana nos permite realizar algumas considerações acerca do poder, tais como a compreensão dos fenômenos da constituição do poder potencial, entendendo, por este, as disposições para ele, para além de seu exercício, posto que são o resultado de um processo complexo. As manifestações do poder podem ser explícitas, sendo estas as mais evidentes e conhecidas, e para as quais a Psicanálise deu origem a aportes como os anteriormente citados, contribuindo para sua melhor compreensão. Porém, também podem ser implícitas; quer dizer, estarem presentes sem serem tomadas pelo sujeito, percebendo-as ou com escassa consciência de sua importância, dando lugar a expressões tanto construtivas como destrutivas para os vínculos intersubjetivos e transubjetivos. O poder, como abordamos, é inerente ao ser humano, e, portanto, seu exercício ativo ou passivo é inevitável. Daí a importância de estudá-lo, sobretudo em suas formas explícitas, às quais a Psicanálise pode contribuir com aportes originais.

Podemos ainda mencionar outros estudos nos quais essa ideia aparece como relações das questões poder na obra de Freud, como em “Totem e Tabu”. Nela, o autor concebe sua hipótese acerca da passagem de um estado primitivo da humanidade para o estado civilizado, o que podemos ler como dizendo respeito 101

à passagem do Antigo Regime para a Modernidade. Na obra, dois temas são fundamentais: a morte e o poder absoluto. Segundo Birman (1997), aos soberanos eram permitidas ações proibidas aos outros da comunidade; no entanto, o que aos outros era permitido, ao soberano era vetado, como, por exemplo, cortar unhas e cabelos em estado de vigília, pois esses povos acreditavam que reis, chefes e sacerdotes eram dotados de magia, que se transmitiria por contato e que poderia até levar à morte quem não estivesse protegido por força igual; assim, o contato só era permitido se esses soberanos o permitissem. Só poderia haver contato direto ou indireto com essas figuras caso elas próprias o promovessem, pois acreditavam no poder de cura. Essas figuras recebiam proteção e eram elevadas acima da comunidade. Assim como uma criança acredita que seu pai é o homem mais forte de todos, duras restrições eram-lhe impostas, que podem ser compreendidas enquanto uma vingança dos súditos para com ele. Os sentimentos ambivalentes implícitos nos tabus em relação ao soberano nessas comunidades eram equivalentes aos sentimentos dos neuróticos em relação à figura paterna. Havia sentimentos de amor e idealização, mas também de hostilidade (FREUD, 2012). Segundo Birman (2009), o fundamento do pacto simbólico freudiano origina-se entre o sujeito e o social, tendo em vista que o sujeito freudiano se constituiu no registro do inconsciente e não no registro da consciência. A evidência relevante da Filosofia política moderna de que o estado gozou o monopólio legítimo do uso da força e da violência é perfeitamente articulável com o discurso freudiano, pois se o sujeito é forjado na relação de conflito entre a pulsão, enquanto força que impele ao trabalho e às exigências culturais, aquele já nasce inscrito na relação com o poder e com a violência, o que pressupõe a necessidade da política enquanto instância de gestão e mediação das relações de poder entre os seres humanos. Nesse sentido, a política apoiaria a soberania do Estado moderno por meio da negociação e da retórica, com o pressuposto de manter a harmonia social, a paz e a ordem. Todavia, essa teoria que tornava pública a crença de Freud na promessa de felicidade do Iluminismo e no poder da ciência para torná-la viável estava prestes a ruir perante o início da Primeira Guerra Mundial, que expôs toda destrutividade e crueldade que a humanidade poderia atingir, apesar do avanço científico que havia alcançado. 102

Segundo Elias (2011), as mudanças comportamentais introduzidas pela modernidade nos coagem de tal maneira que, no perpassar de um estudo sobre tais manifestações das incivilizações, chegamos a sentir uma inquietação desconfortante, visto o juízo de valor que conferimos ao termo civilizado. É a natureza desse mal-estar que justifica a incivilização ou, em termos mais específicos e menos valorativos, o mal-estar ante uma díspare estrutura de emoções, o distinto padrão de repugnância identificada ainda hoje em numerosas sociedades que chamamos de não civilizadas, o padrão de repugnância que antecedeu o nosso e é sua precondição. Essas ocupações morais também foram estabelecidas como padrões civilizatórios frente aos costumes e da rejeição a tudo o que desarvora das regras pré-estabelecidas.

2.7 Reflexões sobre a Corrupção e o Mal-estar na Civilização

Conforme esse estudo, analisaremos o fenômeno da corrupção tomando como base os elementos trazidos por Freud (1996) em sua obra “O Mal-estar na Civilização”, que se encontra pautada na infelicidade do convívio social. Observamos que a mentira faz parte do cotidiano e da condição humana, e que mentimos das mais variadas maneiras. Contudo, ao lesar e prejudicar o outro, isto pode implicar um agravo ao próprio ser humano. Para Freud, os homens não são criaturas amistosas, afáveis, que anseiam por serem amados e, no máximo se defendem quando são atacados, mas antes criaturas instintivamente agressivas. Por outro lado, a sociedade não está preparada para essa natureza agressiva e a repudia. Resultante disso, o seu próximo não é apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo ou até matá-lo. Nesta obra, Freud (1996) apresenta uma hipótese de que a cultura causa um mal-estar, já que existe uma oposição intransponível, um conflito entre paradigmas, a redução da tensão provocada pela pressão de impulso energético interno que direciona o comportamento do indivíduo. Assim, o homem é sacrificado, pagando o preço da renúncia da satisfação pulsional. O autor ressalta o indivíduo como inimigo da civilização, já que nele existe uma tendência 103

antissocial, destrutiva e anticultural, travando uma luta constante entre viver isolado ou ter sua liberdade. Neste sentido, podemos repensar as relações de poder a partir do momento em que Freud afirma que civilização é tudo aquilo que diferencia o homem do animal e o que o afasta da sua natureza. Ele ainda pontua que os homens valorizam muito mais o que os outros têm do que o que realmente tem valor em suas vidas, e vivem em busca de riquezas, poder e sucesso, enquanto os que não valorizam essa busca são pouco admirados. O autor ressalta o indivíduo como inimigo da civilização, já que nele existe uma tendência destrutiva, antissocial e anticultural, travando uma luta constante entre viver isolado ou ter sua liberdade. Podemos observar também que Freud se utilizará dos princípios da metapsicologia em relação à teoria das pulsões e do psiquismo humano para dar conta do fenômeno cultural, do mal-estar que nele se abriga e das opções éticas que se abrem para o ser humano. Ele demonstra isto partindo da negação de que havia sentimentos religiosos inatos a instigarem os homens a terem comportamentos éticos, identificando na origem destes comportamentos premissas internas oriundas das pulsões de autoconservação, que, a posteriori, configuraram-se estratagemas da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. No texto, Freud ainda denuncia o desamparo humano, evidenciando a impossibilidade de o superarmos, mostrando que o pensar neste abandono é a melhor forma de amenizar os problemas gerados por este desamparo. A justificativa de trabalhar a problemática do mal, num olhar psicanalítico, origina do fato de o problema do mal ter também inquietado Freud, tornando-se a sua principal reflexão sobre a civilização. Assim, o autor remete à intensidade das pulsões e da necessária renúncia à sua satisfação plena na cultura; o preço que todos pagamos pela vida em sociedade e fala da agressividade humana e do modo como ela se funde ao narcisismo. Assim, ele propõe a ideia de narcisismo das pequenas diferenças que alude à forma como os elementos de uma comunidade podem se unir, ocultando ou disfarçando inconscientemente seus conflitos e projetando no outro sua agressividade. Essa relação intrínseca entre o indivíduo e a cultura é um operador necessário do pensamento freudiano para a construção das formas de pensamento sobre a subjetividade humana, dedicando uma profunda reflexão aos vínculos entre o indivíduo e a massa, e entre o indivíduo e o poder, assim como entre o narcisismo, a sexualidade e a formação da moral, da ética e dos ideais. 104

Freud (1996) afirma que a civilização, quanto ao desenvolvimento, é possível a partir de uma imposição delegada aos homens, afirmando ainda que a civilização tem a tarefa de dar segurança, colocando o prazer em segundo plano, reduzindo a possibilidade de felicidade. Vivemos presos a uma organização mental falsa, hipócrita, desleal, enganadora chamada de EU, que parece preencher um pouco da necessidade do indivíduo quando se fala em amor e se desenvolve; no entanto, não pode ser demonstrado, apenas exemplificado. Uma criança não tem noção do EU, apenas aprende gradualmente, reagindo com o ambiente, e o identifica como parte corpórea de si. O autor, apesar de não ser contra a ideia de Deus, diz que a religião é uma ilusão, que tem uma incumbência conservadora e que todo seu alicerce é fundamentado na defesa do homem ao estado de abandono infantil que persiste até a vida adulta, respondendo ao anseio de um pai cuidadoso e dedicado, oferecendo proteção e segurança, afirmando ainda que o homem necessita de tal controle para que possa conviver em sociedade e se não tivesse, criaria outro tipo de dogma para defender e seguir. No livro, Freud (1996) faz uma crítica à civilização, alegando que ela é responsável por todas as regras e proibições que levam o ser humano a negarem seus desejos verdadeiros; ela é a fonte de todo sofrimento, e ele afirma que ela é uma verdadeira desgraça. Pensando em acordo com sua suposição, isso é a mais pura verdade, porque a civilização, com todas as suas regras, acaba por inibir o homem e impedi-lo de buscar o que de fato saciará seus impulsos, prazeres. É como se ela estivesse trazendo algum tipo de desconforto e insatisfação para o ser humano, tornando impossível a busca pela verdadeira felicidade, levando-os a procurar maneiras paliativas de lidarem com isso. Freud ainda nos traz um leque de questionamentos, suposições e ideias para conseguir explicar a busca incansável do ser humano de procurar felicidade e a sua grande insatisfação e dificuldade de encontrar essa felicidade; o homem está o tempo todo sendo afetado por diversos tipos de sofrimento e frustrações. Mesmo que todas as condições sejam favoráveis para a busca e realização do prazer, com o avanço da cultura e da tecnologia e o bem que elas propiciam, o homem se encontra sempre infeliz e contra a civilização. Para Freud (1996), uma dessas formas paliativas de busca da felicidade e satisfação pode ser a religião, posto que o ser humano está incessantemente preocupado em encontrar o propósito e o motivo da vida, e viver sem saber disso 105

pode ser completamente frustrante. Então, apenas a religião pode trazer essa resposta, provavelmente seja esse o motivo das pessoas se apegarem tanto a ela, e ser considerada como detentora desse sentimento denominado “oceânico”. Para Freud, nesse ensaio, esse sentimento é uma expressão forte de unidade com a fonte da religiosidade e possivelmente adequada para expressar uma experiência de contato com o divino. Provavelmente pelo motivo de que a religião traga esse sentimento, essa ideia de um pai protetor que está sempre presente afirmando que existe um bem maior e que todo sofrimento não será eterno, mas algo muito melhor nos espera futuramente, o que acaba trazendo certo alivio a tantos desejos reprimidos que, por consequência, trarão dor e desalento. Para o autor, as religiões estão classificadas como um delírio de massa, visto que os seus elementos agem como paranoicos, vivendo a ilusão do alcance da felicidade. Podemos, então, constatar nesta leitura que o homem tem um elevado grau de maldade e agressividade. Dessa maneira, a corrupção está no homem, tendo em vista ele ser iminentemente mau. Esta maldade afeta seus sentidos, sua moral, seus sentimentos, seu intelecto e vontade. Ele é livre para fazer escolhas, partindo de sua liberdade relativa, e de acordo com o que lhe é agradável e com o que lhe oferece mais vantagens. Ele é relativamente livre para escolher o que lhe convém, o que lhe agrada, de acordo com suas inclinações. E se essas tendências forem para o mal, ele escolherá naturalmente a corrupção, elemento que tem afetado os governos de forma avassaladora e, principalmente, o brasileiro, pois começa nas atitudes desonestas mais simplórias de cada um de nós até o mais alto posto legislativo. Essa sensação de mal-estar coletivo com a corrupção cria concepções de senso comum acerca de uma natural desonestidade do brasileiro, como observamos no capítulo anterior. Para o autor, a civilização ditou regras para o homem olhar e sentir os seus desejos sexuais, porque o homem é agressivo e sexual por natureza, por instinto; porém, ele não pode agir assim, como e onde quiser, então a sociedade e seus valores existem na intenção de podar e controlar tais atitudes. Então, se pararmos para analisar a civilização, há o seu lado fundamental e positivo; o homem tem de lidar com toda essa pressão da sociedade, mas também de sua própria consciência, pois ao ter determinadas vontades e desejos, ele próprio pode se penalizar e achar errado os instintos que possui. Surge também um sentimento de culpa desencadeado por toda repressão dos instintos de 106

agressividade; o ego absorve essa agressão e a usa contra si mesmo, a partir de onde surge o superego, que usará toda essa raiva contra a própria pessoa, causando, assim, sentimentos de culpa. Uma das características do senso comum no Brasil é de que o brasileiro tem um caráter duvidoso e que, a priori, não se nega a levar algum tipo de vantagem no nas relações sociais mais comuns. Neste contexto, alguns indicadores de confiança classificam o Brasil como um país onde a desconfiança impera. Para além do senso comum, esse tipo de leitura da realidade social brasileira converge para termos centrais das interpretações do país e a produção de conceitos no mundo acadêmico também incorpora esse tipo de visão, sendo o brasileiro um cidadão voltado para seus desejos intensos, que se expressam em diversas formas sociais clichês, tais como a malandragem e o “jeitinho brasileiro”. Contudo, por meio do mal-estar, analisamos o problema da corrupção no Brasil, a partir da antinomia entre normas morais e prática social, defendendo a hipótese de que a prática de corrupção não está relacionada apenas aos aspectos do caráter do brasileiro, mas à constituição de normas informais que institucionalizam certas práticas tidas como moralmente degradantes, mas cotidianamente toleradas. A antinomia entre normas morais e prática social da corrupção no Brasil revela uma outra antinomia: a corrupção é explicada, no plano da sociedade brasileira, pelo fosso que separa os aspectos morais e valorativos da vida e a cultura política. Isso acarreta uma tolerância à corrupção que está na base da vida pós-democracia. Segundo o cientista político e social Raymundo Faoro (2001), a corrupção no Brasil não começou há poucos dias e foi se fundamentando em um círculo vicioso, ela é um mal ou um vício herdado desde a época do Descobrimento, como observado em nosso estudo inicial. Neste círculo identificamos a figura do corruptor, do corrompido e do conivente (aquele que sabe do ato de corrupção, mas não faz nada para evitá-lo), favorecendo o corruptor e o corrompido. É o caso do eleitor que vota em candidatos corruptos, mesmo sabendo da sua condição, muitas vezes um réu em algum processo congênere. Outro é aquele que vota em troca de algum benefício ou favor, uma oportunidade de trabalho, um contrato, ou a popular dentadura (ícone das artimanhas na década de 80); essas atitudes favorecem e nutrem a corrupção. As práticas corruptivas mais comuns da administração pública são: o nepotismo, o clientelismo, o peculato, entre outras que exemplificamos nos relatos colhidos neste estudo, como: caixa dois, que é o 107

acúmulo de recursos financeiros não contabilizados, tráfico de influência, uso de “laranjas” (empresas ou pessoas que servem de fachada para negócios e atividades ilegais), fraudes em obras e licitações, venda de sentenças, improbidade administrativa, enriquecimento ilícito, dentre outras apontadas no caso do ex-governador Sérgio Cabral. Por outro lado, pensar que o Brasil é um país corrupto apenas pela ocorrência de sucessivos escândalos políticos de desvios de dinheiro público é uma ingenuidade, pois existem vários tipos de corrupção, as quais se desenvolvem em todas as camadas sociais, indiferentemente se está atrelada à coisa pública ou não. Segundo o autor, muito dessa corrupção nasce no seio da família; a criança cresce com este quadro de referência e se torna uma pessoa com interesse vão e escuso. Desta maneira, a corrupção deve ser tratada desde o início no seio familiar, com atenção aos valores, aos princípios de justiça, honestidade, dentre outros ligados à virtude, desenvolvendo e se consolidando até chegar às esferas de governo. Segundo Freud (1996), os traços antissociais são resultantes de um déficit na estruturação do superego, ocorrendo nos indivíduos, nos quais a consciência moral e a ética não se instalam adequadamente. Defendem a ideia baseados na constatação de que, nesses casos, as infrações expressas na conduta não carregam o sentimento de culpa, advertindo que não devemos falar de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir que exista antes do superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa autoridade. Fazendo uma alusão ao “Seminário 07 - A Ética da Psicanálise”, de Lacan (1988), temos a princípio a pergunta que norteia Freud à teorização sobre como se instala a experiência moral - seria a culpa mítica do assassinato do pai, que deu origem ao desenvolvimento da cultura ou a introdução da pulsão de morte, em 1920? E é exatamente em “O Mal-estar na Civilização” que Freud (1996) afirma a autonomia da destrutividade em relação à sexualidade, sendo sua maior contribuição sociológica justamente a ideia de que a civilização origina e fortalece o que é anticivilizatório. Sendo considerando desesperador o fato de que nunca venceremos totalmente a destrutividade, já que ela faz parte do processo civilizatório. Nesse sentido, Freud afirma que quando consideramos o quanto 108

fomos malsucedidos nesse campo de prevenção do sofrimento social, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível repousar uma parcela de nossa própria constituição psíquica. Para Birman (2009), quando começamos a considerar essa possibilidade, nos deparamos com o seguinte argumento de Freud: Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é, em grande parte, responsável por nossa desgraça, e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos, a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização (FREUD, 1996 apud BIRMAN, 2009)

Rosa (2007) afirma que foi justamente coincidindo com a perda da autoridade, indispensável como atributo da função paterna, que se instala na sociedade pós-moderna o autoritarismo de um poder hegemônico de uma única nação, mais rica e mais tecnológica, a impor normas, democracia, comportamentos, sanções econômicas, além de guerras e métodos bárbaros de tortura, culminando com a obrigatoriedade do estudo do criacionismo nas escolas, violência explícita ao progresso científico e à teoria de Darwin da evolução das espécies. Segundo Rosa (2007), podemos dizer que a:

Corrupção rompe a cadeia do desejo, originando buracos negros e vazios representacionais que se refletem na cultura da superficialidade e do descartável, submundo do espetáculo de temas fúteis, na ideologia do ‘quanto pior, melhor’. A corrupção é, assim, o ponto central, a pedra angular do regime imperial. Ela está presente nas salas dos burocratas, nas classes emergentes ansiosas por ascensão social, nas religiões fundamentalistas, nas terapias alternativas enganadoras que bloqueiam a subjetividade. Além disso, a corrupção está sempre presente no mundo da política, contaminando como uma epidemia por vírus mortal as estruturas mais diversas da sociedade. Ela é um ataque ao poder gerador da vida e um insulto aos valores éticos da comunidade produtiva (ROSA, 2007.pp. 71-72).

Diante do exposto podemos pensar que o fenômeno da corrupção se mostra como sintoma social contemporâneo que se promove da cultura da destrutividade e da pulsão de morte, como fica evidenciado no texto de Freud:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber até que ponto seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pela pulsão de agressão e autodestruição [...]. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, 109

até o último homem. Sabem disso e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois poderes celestes, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD, 1930/1974, p. 170).

As disputas pelo poder social, religioso e até mesmo científico fragilizaram as relações. Não é à toa que Freud já colocava as relações humanas como a pior das tragédias que poderia acontecer ao homem, graças à hipocrisia. Podemos afirmar, então, que esta obra foi um alerta para o difícil convívio em sociedade e para a impossibilidade de o homem ser feliz por três motivos: pela fraqueza humana frente às forças da natureza, impossíveis de serem dominadas; pela fragilidade de nossa constituição física, que nos leva a adoecer, envelhecer e morrer; e, por fim, pelo sofrimento advindo da convivência com os outros seres humanos. E é justamente dessa convivência com desvios de conduta de personagens do cenário político nacional que advém esse sentimento, misto de indignação e revolta dos cidadãos de bem, que trabalham arduamente enfrentando a grave crise econômica e pagando altos impostos, sem receber recursos de educação, saúde e segurança dignos para uma vida saudável. Embora saibamos que a corrupção existe desde o princípio dos tempos, nunca estivemos tão vulneráveis ao desfile midiático de corruptos que seguem impunes, a desdenhar de todos os princípios éticos. Trata-se de um real que suscita uma melhor avaliação das causas do decréscimo do simbólico no mundo pós-moderno.

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3. DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo apresentamos uma compreensão teórica e prática da corrupção a partir da investigação bibliográfica e de dados colhidos por meio de publicações em jornais, revistas de dados relevantes das falas, ações e condutas sobre o tema, e do estudo do caso de um ator envolvido no cenário político (reconhecido pelo seu descompromisso ético e condenado por seus atos de corrupção na Administração Pública Governamental do Estado do Rio de Janeiro) – o ex-governador Sérgio Cabral. Os agentes públicos têm como premissa a promoção da confiança da sociedade em seu caráter ético, na sua conduta, exercendo suas funções com segurança, inteireza e clareza sobre o que pode e o que não pode ser feito, estabelecendo valores como paz, segurança, desenvolvimento socioeconômico das nações e dos povos e padrões éticos internacionais, a serem perseguidos pelos Estados. Nesse sentido, compreendemos que é uma responsabilidade do governo, assegurar e facilitar a participação de seus cidadãos no processo de governança e a prestação de serviços públicos de qualidade, acessíveis a todos. Assim, refletimos sobre as hipóteses consideradas, posto que o modo de funcionar da administração pública desde seus primórdios favorece a não observância dos preceitos éticos e que as relações de poder funcionam como fonte de corrupção das pessoas que são corrompidas exatamente pelo abuso destas relações com o poder. Neste contexto, abordamos num primeiro momento a história da corrupção no Brasil, suas possíveis causas e tipos, perpassando por fenômenos, fatos e história em diversos períodos até os dias atuais com a operação “Lava Jato” e a prisão do ex-governador Sérgio Cabral. Neste capítulo, também contextualizamos conceitos de ética e poder de forma objetiva para uma melhor compreensão do estudo. Assim corroboramos que a corrupção é um tema frequente na sociedade atual; é um assunto denso, amplo, significando a decomposição, a degradação, a deterioração física de algo, uma força exercida de um sobre o outro. No primeiro capítulo conceituamos o termo corrupção etimologicamente como decompor, deteriorar, perverter, depravar, estragar ou romper. O prefixo “co” faz menção à 111

necessidade de que haja duas pessoas, para que esse ato possa acontecer. Esse termo não traz consigo características resilientes, visto que se esgarça, se rompe, se decompõe. É uma prática desviante, corrompida, extraída do curso natural do qual ela se encontrava. Representa a deterioração do conceito de justiça, da lei, da representação simbólica de um laço social que se ampara num pacto simbólico, mas que se deteriora e se transforma numa relação de favoritismo, proteção, evidenciando que o poder corrompe. Observamos ainda que a corrupção representa um traço característico da sociedade brasileira, pois está disseminada por meio de pequenas práticas ilícitas que existem no Brasil há muito tempo, desenvolvida em várias esferas, e não nasceram há pouco tempo, estão configuradas no cenário da política brasileira desde o momento em que o país emerge como nação oficial. Essas corrupções são desenvolvidas em dois níveis: a que é percebida por todos e as pequenas corrupções, como atos ilícitos que também estão presentes na sociedade brasileira. Percebemos que estes atos estão nos poros da sociedade como estão igualmente nas estâncias governamentais. Como não há punição, essas práticas ilícitas vão se alastrando. Entendemos que a noção de poder sempre remeteu ao domínio exercido pelo Estado ou pelo soberano sobre seus súditos, agregado ao autoritarismo, à violência contra o outro e até a censura. O poder tem a pretensão intencional de exercer um domínio. E essa ideia de domínio é plural e necessária na compreensão das forças que movem o psiquismo, Comportando dois grandes grupos de sentidos - um voltado para si e outro voltado para o exterior, no exercício de domínio sobre o outro mediante diferentes formas de controle, de sedução, do ato e do sadismo, ambos fazendo parte do potencial humano e operando em permanente tensão. Nesse sentido, a referência da sociedade são os governantes, o Estado, que estão em descréditos, e esse descrédito vem de um abuso do governo que inúmeras vezes traiu a população. Um governo excessivo, em cuja própria esfera, atos ilícitos foram praticados sem o consentimento desta população. É um fenômeno que não tem a ver com a ausência do pai, e sim com a usurpação das relações de poder, em que certas pessoas se sentem devidamente empoderadas, achando que podem cometer certos atos, colocando-se impunimente acima das regras, das leis, que regem a população. Isso não é novidade; contudo, hoje a 112

sociedade parece estar mais atenta, desconfiando deste político que foi desmoralizado. A credibilidade sendo desmoralizada, como aconteceu a exemplo da operação Lava Jato. Na atualidade, as formas de poder e de domínio estão mais disseminadas, e fazem parte do cotidiano, não identificado com uma instância; no entanto, onipresente como meio de controle da subjetividade e das ações dos indivíduos. Essas formas de poder podem mutilar as subjetividades, de modo que o ato se aflore como única resposta possível para certos indivíduos ou grupos. Este é o cerne da questão para estudiosos que cada vez mais se debruçam sobre o tema. A ideia do cidadão acima do bem e do mal e de qualquer suspeita preconiza a noção narcísica do indivíduo que não estaria sujeito às regras do coletivo e estaria acima da lei; a corrupção revelando de modo concludente os intrincados jogos de forças entre o Estado, as paixões humanas e o poder. Por outro prisma, a condição de submissão, opressão e impotência na qual indivíduo, nações ou grupos se encontram conduz sujeitos movidos pela falta de escolha à utilização consciente ou inconsciente do recurso ao ato devastador. No Brasil, essa ideia de que você no topo do exercício do poder pode agir impunemente não é recente, remontando a nossa própria origem como vimos no primeiro capítulo, configurando um caso particular da população brasileira de descrédito com os governantes desde o descobrimento. Apontamos que a corrupção nasce com a relação de poder, e não é uma primazia de uma classe, não é mais restrita a elite, e sim é oriunda das relações de poder, e esse poder deriva da corrupção e se alastra pela sociedade (que antes era restrita à polis). Antes, o poder era colonial, conforme foi se disseminando no tecido social. Com o poder colonial no Brasil, a corrupção emerge com o ato violento do colonizador, em que o índio foi corrompido das suas práticas habituais para poder, de alguma maneira, colocar-se a serviço do poder daquele que vinha de fora. Da mesma forma, os brancos retiraram os negros da África e os submeteram ao cativeiro, e isso mostra a decomposição, a degradação de duas sociedades, de duas etnias corrompidas pelos europeus. A corrupção, neste sentido, emerge no país com a corrupção dos índios que foram domesticados, dos negros que foram tirados do seu território e postos em cativeiro, com as prostituições nas casas grandes, e com o coronelismo que foi se implantando no Brasil (em que famílias sentiam-se donas do país e corrompiam toda a sociedade). 113

Assim, desde que nos tornamos uma nação a corrupção se instaurou, e isso se torna perceptível com o uso da retórica, pois é típico do homem do Estado prometer e não cumprir. A política se assenta numa prática chamada retórica, na qual o político não honra sua palavra, e sim muda, transforma numa outra fala: “não foi bem isso que eu quis dizer”, usando a persuasão para provocar o “esquivamento” da palavra inicial. Isso fica evidente no segundo capítulo, com os relatos do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, em que ele afirma que sabia da prática ilícita, e esse saber torna-o conivente; ele poderia ter coibido, mas aproveitou a oportunidade para obter vantagens em cima do outro (do povo), usufruindo deste poder. “Se ele pode, eu posso”, gozando, assim, a partir desta prática ilícita. Essa percepção de que todo mundo pode tirar proveito de qualquer coisa em cima do outro se alastra no contexto social, pois há certos aspectos da nossa sociedade que estão tão corrompidos (já que os nossos representantes legais são corruptos), que a sociedade acaba se perguntando por que ela não pode usufruir também: “Se eles podem, por que eu não posso?”. A ótica do poder que irradia esse poder central faz com que todos se sintam empoderados e queiram também usufruir de pequenas ilegalidades. No Brasil, esse fato se torna difuso; alguns setores acham a corrupção “normal”, partindo do princípio de que essas práticas são necessárias para não serem considerados “bobos” ou extremamente “ingênuos”, como se uma pessoa não corrupta fosse considerada boa e, nesse sentido, ser vista como “otária”, o que é lamentável. No segundo capítulo investigamos o fenômeno da corrupção e suas implicações com o poder, introduzindo o pensamento filosófico contemporâneo de Foucault e a abordagem psicanalítica na constituição do poder. Para sua contextualização, apresentamos o estudo do caso Sérgio Cabral diante dos papéis fundamentais que representam as falas do ex-governador no cenário da corrupção e traçamos alguns comentários a título de articulação com os conteúdos relevantes para o objeto de estudo. Neste capítulo ao discutirmos o poder sob a ótica de Foucault, apontamos que ele foi capaz de definir uma lógica do poder que não se implementa pela via da repressão, mas pela via da produção de afetos que podem corromper certas atividades. Para o autor, o poder é visto como uma estratégia de poder, uma relação de forças, e, nessa relação, uma força incita a outra a agir segundo 114

determinadas estratégias definidas. O poder produz subjetividade sujeitadas; o poder produz indivíduos sujeitados (dóceis e revoltados). O poder adentra até na esfera da ciência sexual, dentro daquilo que o autor estabelece na sua perspectiva genealógica das relações de poder. Foucault diz que o poder se dissemina pela sociedade como um todo, e que esse poder produz “uma certa” subjetividade, desenvolvendo sua política de uma forma muito interessante: valorizando as práticas de resistência – o autor se direciona no caminho de uma ética no momento em que ele está fazendo a história do poder, incluindo episódios de corrupção (evidente no livro Vigiar e Punir). Nesse contexto, houve um tempo em que o exercício do poder soberano se dava pelo suplício do infrator em praça pública – um espetáculo sangrento de justiça, em que o indivíduo era submetido a um ritual de suplício para o soberano gozar sua autoridade absoluta. Com essa tortura, a população começou a ficar indignada, passando a atacar os carrascos; assim surgem os reformadores, que constroem novos dispositivos de poder para acalmar, controlar a população por meio de teorias de reforma. Foucault culmina sua análise com o surgimento das prisões e o modelo panóptico – dentro da nossa perspectiva uma forma de corrupção, de decomposição da vida. Uma vida desviada dos seus princípios éticos a partir de uma relação de forças que vão invadindo sua maneira de viver. Dentro deste contexto, afirmamos que Foucault coloca o problema da corrupção no campo das relações de poder, pois toda vez que um suborno é oferecido a alguém tentando corrompê-lo, exerce-se sobre ele um domínio, e que toda vez que uma pessoa aceita um suborno de alguém, a primeira coisa que ela pensa é na vantagem que ela vai tirar disso e como ela pode exercer algum domínio por conta dessa vantagem. No Brasil, a “coisa” fica mais calamitosa, pois recentemente a operação Lava Jato descobriu que pessoas extremamente poderosas e visivelmente cínicas – imaginando que porque estavam no centro do poder – jamais seriam denunciadas, postas ao nu. Contudo, elas foram banidas do poder pela operação. Nesse sentido, a sociedade acreditou na possibilidade de fazer uma reforma no poder e por meio dessa reforma eleger “bons” governantes. Infelizmente continuamos assolados por mais escândalos, mostrando que o problema não é o bom ou o mau governante, e sim o próprio poder. 115

Assim, entendemos que a solução seria a produção de homens melhores pela sociedade, e isso se torna uma urgência política, posto que ela necessita ser politizada. Num sentido mais amplo: por meio de micropolíticas que devem ser implantadas por movimentos que tirem a sociedade deste marasmo no qual ela se estagnou por certas vicissitudes que são sintomáticas na nossa maneira de pensar. Uma característica do Brasil é ser um país messiânico, no qual o povo crê num salvador (podemos evidenciar isso no atual cenário político, em que, para muitos, o Presidente Jair Messias Bolsonaro é considerado por parte da população um “messias” de fato), e, nesse sentido, várias forças se juntaram para, por exemplo, ganhar uma eleição – são vários poderes seguidos por diversas pessoas de forma cega. O povo precisa se conscientizar que não precisa de um salvador para vencer na vida, na posição de seres desejantes, no campo social. Essa política de aliciamento e de domínio diminuiria, afrouxaria, mais pela própria tensão política que o campo social é capaz de produzir, mas o povo precisa acreditar que ele não precisa de um salvador para ser conduzido na vida, e sim que ele seja devidamente politizado e que ele não queira as vantagens que o poder oferece a ele como se fosse um benefício. Consideramos que agir e pensar eticamente transcende o universo do eu para nos projetar ao encontro do outro. Nesse sentido, a política postula seu sentido original a serviço da vida em sociedade e não na sua reducionista e corrupta perspectiva do favoritismo e obtenção de privilégios. Assim, ainda no segundo capítulo abordamos o fenômeno à luz da Psicanálise, que contribuiu para reconhecer e desconstruir, diante do possível, as formas de poder sociais e internas que alienam a subjetividade e o cidadão. No contexto, novos desafios nos interpelam se nos deixamos atingir pela diferença, pela alteridade e o respeito à lei e ao laço social que nos constituem. O imperativo ético da Psicanálise, por meio do reconhecimento da estranheza do desejo inconsciente em nós, reconhece a estranhamento do outro e suas singulares demandas. Sua inevitável estranheza nos estimula à criação de uma prática e de um discurso coerentes que nos permitam conviver melhor com nós mesmos e com o diferente. Em observância aos preceitos freudianos, evidenciamos que o autor se utiliza dos princípios da metapsicologia em relação à teoria das pulsões e do 116

psiquismo humano para poder dar conta do fenômeno cultural, do mal-estar que nele se abriga e das opções éticas que se abrem para o ser humano. Partindo da negação de que havia sentimentos religiosos inatos a instigarem os homens a terem comportamentos éticos, identificando na origem destes comportamentos, premissas internas oriundas das pulsões de autoconservação, que, à posteriori, configuraram-se estratagemas da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. Freud faz uma denúncia ao desamparo humano, mostrando a impossibilidade de o superarmos, evidenciando que o pensar neste abandono é a melhor maneira de atenuar os problemas causados por este desamparo. O fundamento de trabalhar a problemática do mal, à luz da Psicanálise, origina-se do fato de o problema do mal ter também inquietado Freud, tornando-se a sua principal reflexão sobre a civilização. Dessa forma, o autor remete à intensidade das pulsões e da necessária renúncia à sua satisfação plena na cultura, o preço que todos pagamos pela vida em sociedade. Freud ainda cita a agressividade humana e o modo como ela se entrelaça ao narcisismo. O autor propõe a ideia de narcisismo das pequenas diferenças que alude à forma como os elementos de uma comunidade podem se unir, ocultando ou disfarçando inconscientemente seus conflitos e projetando no outro sua agressividade. Essa ligação íntima entre a cultura e o indivíduo é um operador essencial do pensamento freudiano para a construção dos modos de pensamento sobre a subjetividade humana, dedicando uma extensa reflexão as relações entre o indivíduo e a massa e entre o indivíduo e o poder, assim como entre a sexualidade, o narcisismo e a formação da ética, da moral e dos ideais. Então, é necessário que a sociedade acredite que a corrupção não seja a única via de realização de desejo, e que só resolveremos esse embróglio por intermédio de atividades e intervenções políticas que, no Brasil atual, devem ser realizadas com urgência, pois falta política. Isso só se dará partindo das manifestações populares e de pessoas realmente engajadas, e que estes sejam movimentos anticorrupção e que não estejam empenhados na luta da degradação do ser humano no exercício. Movimentos que sejam potentes, que engendrem alianças e que deem aos seres humanos possibilidades de novas conexões e colocar a sociedade em movimento, tirando o tecido social desta lama chamada corrupção, que funciona como um tumor no interior da sociedade. 117

Partindo dessa premissa, precisamos pensar que as pessoas necessitam criar novas possibilidades de vida. Resistir é criar possibilidades de viver, de existir, e só criamos possibilidades de vidas inéditas se formos capazes de romper com a corrupção, que é, sem dúvidas, uma degradação que assolou, contaminou a sociedade. Neste estudo, compreendemos que uma das causas da corrupção é o poder, que desde a origem da nossa nação corrompeu índios, negros, pobres, mulheres. Também vimos que esses elementos de poder estão em toda parte e, teoricamente, quem não está do lado do poder tende a ser explorado. Fica claro que no Brasil esses focos de poder se alastram desde cedo, assim como índio foi corrompido com a chegada de Cabral, ainda somos corrompidos por governantes como Cabral. Quando pensamos a História do Brasil dentro desta perspectiva, observamos que os centros do poder foram vigiados pela população, e, em vez de a população denunciar, ela reproduz esses micropoderes, pois acreditam que “se estão roubando lá, vou roubar também”, e “se não há punição, farei o mesmo”. Então se a degradação é moral, “se estão degradando, eu também irei degradar”, o que é lamentável. Essa logica foi implementada na cabeça dos indivíduos, e essa perversão social pode ser considerada um tipo de degradação, pois os perversos estão na sociedade ao lado de outras pessoas que não são perversas, mas são empoderadas. O foco está nas relações de poder, isto é, sair da lógica do exercício do poder sobre o outro, seja pela via da sedução, seja pela via da violência. Assim entendemos que falta uma ética na política, já que na perspectiva Foucaultiana, as relações éticas são indispensáveis para que não fiquem submetidas ao domínio das relações de poder. E que nessas novas relações possamos privilegiar bons encontros, e que nestes possamos nos fortalecer, saindo da lógica de querer reinar sobre o outro - a partir da tristeza e do desamparo produz nesse outro que você ameaça, queira reinar. A partir da análise de um governo corrupto, contextualizado pelo caso do ex-governador, concluímos que a falta de ética é um sintoma de uma administração deficiente, o que permite que gestores públicos inescrupulosos explorem oportunidades para pôr o interesse próprio acima do interesse público, contrariando as exigências de seus cargos. Entendemos que é necessário 118

estabelecer sanções administrativas e punições contra a má conduta, por intermédio de processos criminais e civis, para demonstrar que a corrupção não pode ser tolerada. Esta pesquisa evidenciou que a má conduta está ligada, não só a um problema estrutural de fragilidade institucional, mas ético também, pois a sociedade não pode permitir mais que todo mundo possa tirar proveito de qualquer coisa em cima do outro, contribuindo para o alastramento do mal da corrupção no contexto social. Um sistema legal inadequado antecipa, catalisa e reforça padrões de comportamento inadequados. Se há aspectos da nossa sociedade que estão tão corrompidos, como os nossos representantes legais, a população não pode se permitir contaminar, pois a corrupção é como uma doença pandêmica e a sociedade não pode mais usufruir de pequenas ilegalidades sem pesar suas consequências – a morte social. Em contrapartida, faz-se necessário educar os cidadãos sobre os seus direitos; também é fundamental aumentar a transparência e a responsabilização dos gestores públicos para com suas ações. Nesse sentido, para assegurar um padrão ético adequado ao setor público, é necessário: vontade política, transparência e normas simples e suficientes de conduta. Diante disso, este trabalho avança nesse novo entendimento como contribuição ao controle social, tendo como consequência o surgimento de um novo olhar no campo da administração pública, trazendo para análise as relações de poder e o fenômeno da corrupção.

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REFERÊNCIAS

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