Afro-Ásia ISSN: 0002-0591 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil

Pereira Cunha, Maria Clementina “ARTISTA É ARTISTA, MANÉ É MANÉ ”. LOPES, NSIMAS, Luiz Antônio. Dicionário da História Social do . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 335p. Afro-Ásia, núm. 54, 2016 Universidade Federal da Bahia Bahía, Brasil

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LOPES, N SIMAS, Luiz Antônio. Dicionário da História So- cial do Samba . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 335p.

No meu dicionário, roqueiro é aquilo que fica lá em cima da rocha E fanqueiro é o cara que vende tecido de linho e algodão. Pra mim sertanejo é antes de tudo um forte e axé é força e boa sorte [...] Nei Lopes, Dicionário

Sou muito fã de Nei Lopes desde no Brasil, consolidou uma obra res- o tempo que Dondon jogava no An- peitável, de consulta obrigatória por daraí e nossa vida era mais simples todos os estudiosos do samba. O con- de viver. Sobre seu parceiro neste junto é formado por mais de uma de- Dicionário da História Social do zena de livros, entre ficção e obras de Samba (mas não no samba “Dicio- referência ou análise cultural, o que nário”), Luiz Antônio Simas, tenho é bastante raro entre seus pares nas pouco a dizer — mas figurar ao lado rodas de samba do Salgueiro e ou- do sambista na capa deste livro re- tros bairros populares da zona norte força o seu perfil de intelectual apai- carioca que, desobrigados de refletir xonado pelo tema da “cultura popu- sobre os significados de seu trabalho, lar carioca”. Sim, porque, do século investem todo o esforço e criativida- XX ao XXI, Nei Lopes acumulou de (não sem razão) nas rimas e nos compassos. Nei Lopes é, finalmente, carreira invejável entre os especia- presença obrigatória nos debates que listas no tema. Em primeiro lugar cercam a questão da consciência ne- porque, ao contrário de todos os au- gra e da militância contra o racismo. tores publicados nesta área (exceção Por tudo isso, tornou-se quase uma feita a Candeia, talvez, cuja obra entidade a ser reverenciada. escrita é bastante limitada), ele tem Não estando imune a isso, sin- o dom de compor que sedu- to-me pouco confortável para co- zem antecipadamente os leitores de mentar, com o habitual rigor crítico seus textos, desanimando possíveis das rodas universitárias, o livro que críticas. Em segundo porque, como acaba de ser lançado — em meio intelectual interessado nos temas da às efemérides em torno do centená- rio da gravação do “Pelo telefone”, considerado por muitos o primeiro

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afro 54.indb 385 06/08/2017 11:22:30 samba registrado comercialmente autores adotaram novamente aqui o no país. Publicado em 2015, ga- formato das “obras de referência” nhador do Prêmio Jabuti em 2016, — com a aparência neutra do saber o aparecimento do livro é oportuno universal e do domínio da informa- neste momento em que há um es- ção. Mesmo assim, cabe lembrar forço de diversos especialistas para que, na História Social, nem mesmo efetuar balanços, trazer novidades dicionários podem aspirar à neutra- 1 A dupla de lidade. É necessário, assim, trazer à autores optou, entretanto, por um luz do dia as ideias que norteiam os formato já muito utilizado no con- critérios de seleção de verbetes e seu conteúdo, a escolha do que seria ou Há entre elas um número bem avul- não pertinente ao campo escolhido, tado de dicionários e enciclopédias, relevante ou irrelevante, importante compostos por verbetes curtos que ou acessório. Elas não são evidentes não favorecem uma discussão mais por si mesmas, nem tão indiscutí- aberta dos conceitos e do que eles veis quanto a autoridade de Nei Lo- implicam na análise do processo pes para falar do assunto. histórico de formação do samba. 2 Para isso, é preciso ler as entreli- Talvez para evitar um debate que, nhas para explicitar e discutir aquilo com boa dose de razão, pode lhes que está por trás dos verbetes des- parecer enfadonho ou incômodo, os te dicionário, em sua maioria úteis e interessantes. Não que eu (ainda) 1 Entre os títulos lançados nos últimos dois goste de discutir ou questionar: ao anos: Lira Neto, Uma história social do contrário, como nos pri- samba – as origens , São Paulo: Com- meiros versos de sua carreira, na Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel maturidade estou mais para “chega Munhoz, Quelé, a voz da cor, Rio de Ja- de demanda”. Mas é indispensável

Clementina Pereira Cunha, Não tá sopa. Sambas e sambistas no Rio de Janeiro de momento quando se trata de Histó- 1890 a 1930. E-book. Campinas, Editora da ria, ou ficamos aprisionados a uma narrativa produzida pelos seus pró- lançamento, em breve, da tradução do prios protagonistas, sem qualquer livro de Marc Hertzman, Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil , inocência. Os profissionais da área Durham e Londres: Duke University Press, consideram um costume saudável o 2013. de clarificar o mais possível, desde 2 Entre eles, além do livro aqui resenhado: Dicionário da hinterlândia carioca: antigos subúrbios e zona rural servem de esteio a análises e inter- Dicionário literário afro-brasileiro Dicionário escolar afro-brasileiro o caso deste Dicionário . Entretanto, Enciclopédia brasileira da diáspora afri- um trabalho que procura se definir cana Dicionário da antiguidade africana Novo Dicionário bantu dentro de uma área específica do co- do Brasil (2003). nhecimento, a História Social, vê a

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afro 54.indb 386 06/08/2017 11:22:30 sociedade como uma arena de con- se distinguia de formas ancestrais flitos. Nela, o debate e o confronto associadas à africanidade. A década de 1930, sob a batuta (melhor dizer constitutivos e ninguém estará livre o apito?) de Vargas, teria assistido à deste escrutínio crítico. Caí no laço, consolidação deste samba verdadei- portanto, e não há como contornar a ro e original, uma vez reconhecido pelo próprio Estado como a princi- presidiram à escolha e o conteúdo pal expressão da música nacional. dos verbetes ou, em outras palavras, Só esta forma de pensar pode à versão que os autores defendem explicar o caráter sumário das in- sobre a história social do samba. A introdução do volume, embora verbetes robustos em torno do sam- bastante econômica, deixa perceber ba praticado no Rio de Janeiro em os traços insistentes de uma forma tempo anterior à existência das “es- de ver a questão que vem sendo, nos colas”. No quesito geográfico, não últimos anos, afastada pela maioria há referência para a Cidade Nova, dos especialistas acadêmicos. Já na lugar de fixação da primeira gera- abertura do livro, vem o endosso à ção de sambistas – embora o Está- ortodoxia cultural de José Ramos Ti- cio de Sá mereça a honra, já que o nhorão: só se poderia falar em sam- bairro é concebido como o “berço ba quando os compositores teriam do samba”, ao lado de outros locais passado a cultivá-lo “consciente- mente”, como portadores de algum como Madureira, o Morro do Bo- um tipo de projeto. Por esta razão, já rel, a Serrinha. 3 Tudo o que acon- bastante discutível, os autores ado- teceu antes disso está condensado tam uma datação comum a outros em um verbete genérico (pp. 27-8), intérpretes: o final dos anos 1920, - com o aparecimento da fórmula do tado da Bahia e a presença de uma Estácio para as escolas de samba, “comunidade baiana” naquela re- seria o marco para o nascimento do gião, mencionando os terreiros de gênero enquanto música urbana. As candomblé ali existentes e pouco mais. O papel da religião como polo Nova comandados por migrantes aglutinador de um forte movimento baianos e por cariocas como Sinhô, musical desde, pelo menos, o início ou Caninha nas déca- do século XX não é reconhecido — das anteriores (que, aliás, convive- ram e disputaram espaço no merca- 3 Na p. 138, lê-se: “O samba carioca, nascido do cultural com e seus no bairro do Estácio e logo estendido a companheiros ao longo das décadas Oswaldo Cruz [...]”. Note-se que há verbete de 1920, 30 e seguintes) são relega- dirigido à zona portuária, “Cais do Porto”, que não atribui a esta parte da cidade a im- das, indiretamente, à categoria de portância que efetivamente teve na história primórdios, origens, algo que mal do gênero.

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afro 54.indb 387 06/08/2017 11:22:30 e nem mesmo a relação disso com música oficializada dos anos 1930, o as famosas “tias” baianas, com seus país vivia um período em que a pala- trajes rituais do culto aos orixás, é vra cultura era associada a erudição mencionada em outro verbete sobre (e não à forma popular dos setores - excluídos). Por isso, a despeito de vés de buscar os nexos na perspecti- consagrado como oriundo da popu- va da história social, enfatizam an- lação negra, o samba era confronta- tes a fixação das alas de baianas nas do pelo racismo em um movimento escolas de samba atuais e os enredos pendular de culpabilização dos afro- carnavalescos mais recentes que descendentes pelo atraso que, afinal, aludem à Bahia ou às baianas. En- também era “coisa nossa”, como di- tretanto, há muito o que explicar em ria . relação a este período e ao próprio A dupla de autores incorpora esforço de legitimação do gênero ainda, na sua definição de sam- musical empreendido por estes gru- ba, uma outra dimensão política: pos. Além de frequentar botequins, apoiando-se no literato Marques Re- terreiros e rodas de partido-alto, belo, não vacilam em afirmar que “o eles atuaram para conferir ao samba samba urbano carioca nasceu como e ao carnaval os traços da “respei- expressão dos anseios de uma clas- tabilidade” que julgavam indispen- se ” que “tomava consciência dos di- sáveis à aceitação e generalização reitos adquiridos com a Revolução do samba para além dos limites de de 1930”, em um processo no qual, seus próprios círculos: não à toa, reafirmam os autores, sempre per- deles vieram os primeiros registros sistiram a tensão e a subestimação fonográficos conhecidos da música (pp. 12-3). urbana carioca, cujo centenário se O jazz norte americano, segun- comemora este ano. do eles, teria nascido de um modo Seja como for, e com quais pro- muito semelhante ao samba carioca tagonistas, tal processo de aceitação (negro, popular, nacional, contesta- — abrindo caminho em meio ao tório) mas, ao contrário deste, logo preconceito e à intolerância como se tornaria “um modo universal de enfatizam os autores — não se daria expressão musical” (p. 13). Para ex- sem conflitos. Para os autores, em plicar a inferioridade do samba nos uma expressão que soa um tanto es- circuitos internacionais, valem-se de tranha, a força do samba neste perí- : na década de 1980, odo “transcendia o racismo” (p. 12): - simultaneamente, servia aos interes- cionais sobre os órgãos formadores ses políticos dominantes e oferecia de opinião pública e seu controle um canal de reconhecimento para os sobre as redes de comunicação de seus criadores negros e marginali- massa teriam gerado uma progressi- zados. Ao mesmo tempo, observam va descaracterização de “nossa” cul- eles, quando o samba se tornava a tura e a alienação crescente da cons-

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afro 54.indb 388 06/08/2017 11:22:30 ciência nacional . Descaracterizar o que aparentemente modernizadas samba da sua forma original seria, em alguns momentos pelo emprego para eles, como abdicar da identida- de palavras como “transnacional” ou de brasileira (pp. 12-3). 4 “multicultural” que aparecem aqui Tudo isso teria levado à “recolo- e ali nos verbetes, as velhas ideias nização do país” e à perda de espaço do samba como uma manifestação do samba como sua expressão mais essencializada, racial e classista, autêntica . Finalmente, face a este de resistência política movida por processo violento, o samba surpre- vários níveis de “consciência” que enderia ainda hoje, tanto no plano perfazem sua identidade nacional artístico como no social, por seu -popular. Dir-se-ia que estamos de poder de resistência à permanente volta aos tempos de Dondon, como pressão derrogatória de que é obje- se, de alguma maneira, eles jamais to. A evidência desta força estaria tivessem se ausentado das conversas em sua renovação constante e na ap- sobre o samba e seus significados. tidão de assimilar valores de outras Muitos autores acadêmicos e não origens, enfrentando nas últimas acadêmicos, entretanto, apostaram décadas a “música transnacionali- nesta construção, de modo que Nei zada” como o funk e o hip-hop que Lopes e Luiz A. Simas não estão sozinhos neste engano que já dura comunidades excluídas e carentes muitas décadas na historiografia dos guetos e periferias” — aparente- e musicografia brasileiras sobre o mente para desgosto dos sambistas samba. Já é hora, portanto, de rever de estirpe e de raiz (pp. 11-3). - Estão presentes nesta forma de mitir que novas possibilidades his- argumentar todos os elementos de tóricas ocupem seu lugar (e talvez uma ideologia cristalizada na calda deem espaço a outros verbetes em açucarada do nacionalismo e uma uma próxima edição deste dicioná- perspectiva que aprisiona a análise rio tão útil aos estudiosos e interes- cultural a uma versão francamente sados no tema). antiquada do marxismo. Os termos Como diz o próprio Nei Lopes utilizados não permitem engano: em outro trecho do samba que abriu autenticidade, resistência, cultura este texto: “ É preciso cuidado com nacional, classe e raça. Por vezes, o que a gente fala/ A boca mais sá- povo ou popular aparecem como bia é aquela que cala/ E que pensa sinônimos dos dois últimos elemen- bastante antes da canção”. Tenho tos, mas isso não muda muito o es- discutido em meus últimos traba- quematismo teórico. Aí estão, ainda argumentando que: a) a associação entre samba e nacionalidade, ou 4 O verbete “Festivais da canção” (pp. 132-4) é um bom exemplo desta concepção. Ver também “Internacionalização”, p. 163. “nacional”, foi uma longa e eficaz

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afro 54.indb 389 06/08/2017 11:22:30 construção empreendida por intelec- em uma linguagem musical que se tuais e agentes políticos, nem sempre universalizou para exprimir as ten- com propósitos idênticos ao longo - dade (e não apenas a visão de mundo com diferentes perspectivas, inten- dos oprimidos ou da nação). 5 Nesta perspectiva, o samba deixa nesta construção também com senti- de ser entendido como uma simples dos que mudaram ao correr do tem- forma de resistência contra a desca- racterização imperialista da “nossa e “cultura negra” (seja lá qual for a cultura” para constituir um lugar de definição que se adote para este ter- embate entre seus próprios produto- mo) é um tanto forçada, em vista das res, oriundos de diferentes lugares no tecido social. Foi assim também o surgimento do gênero em meio às com a música norte-americana, que camadas subalternas da população parece soar um tanto ameaçadora da cidade do Rio de Janeiro e à ine- aos autores do dicionário, a propó- vitável convivência cotidiana entre sito. Nela cabem Louis Amstrong, trabalhadores negros, brancos, bra- Billie Holliday, George Gershwin, sileiros e imigrantes, igualmente nu- Cole Porter, Nina Simone e Frank Sinatra e quem mais vier — e nem nos lugares de trabalho e lazer — ou mesmo a gigantesca indústria do en- no xadrez das delegacias: a presença tretenimento norte-americana, que destes sujeitos entre os sambistas não fez deles artistas que alcançaram seria, nesta perspectiva, uma exceção e comoveram todo o mundo, pode - jamais apagar suas diferenças sob nalmente, que o samba não pode ser o rótulo comum de um (único?) gê- visto como resultado de um proces- nero musical. Se comunidades dos so unívoco: ele foi produto de uma morros e subúrbios, se o movimen- disputa permanente entre diferentes to negro, a juventude dourada da comunidades negras e populares, zona sul carioca e outros sujeitos se com experiências, modos de vida e apropriaram do samba em diferentes décadas e, com seus acordes, hastea- foi erigido como expressão nacional ram as próprias bandeiras, é preciso e fatia lucrativa no mercado cultu- ral, o samba esteve longe de expres- 5 Desenvolvi estas ideias em “Não tá sopa” sar univocidade, constituindo antes e, antes, em Ecos da Folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e um campo de embate cultural entre 1920 , São Paulo: Companhia das Letras, diferentes sujeitos sociais no qual elementos de tensão social como a Moreno”, in Sidney Chalhoub e Ana Flá- via Magalhães Pinto (orgs.), Pensadores negros – pensadoras negras , Cachoeira: gênero, a política e assim por diante recebem diferentes leituras expressas Editorial, 2016, pp. 319-44.

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afro 54.indb 390 06/08/2017 11:22:30 entender estes embates não como sem deixar margem a dúvidas. 7 É tentativas de apropriação indevida, claro que houve, na maior parte dos descaracterização, sintoma de pro- grupos de sambistas, uma preva- cessos de subordinação e resistên- lência de indivíduos descendentes cia. Como qualquer linguagem, o de africanos escravizados e isso foi samba serve para exprimir diferen- decisivo na configuração do gênero tes pontos de vista sobre a socieda- musical — mas talvez essa forma de e seus conflitos – sem perder, é de entender sua história possa ser bom que se diga, o frescor ou a au- temperada pela constatação de que tenticidade. É um espaço múltiplo o racismo lhes fechou, mais que aos e tenso de diálogo entre diferentes, pobres em geral, as oportunidades um idioma comum que teve sempre de saltar para fora das favelas e bair- sotaques diversos. 6 ros populares onde o samba nasceu Já posso ver os autores e muito e se firmou. Isso não confere auto- mais gente torcendo o nariz. Por maticamente aos sambistas qualquer isso, devemos explorar este campo perspectiva de consciência, e muito pisando devagar, miudinho, deva- menos de classe, no interior de um garinho — e pensando bem antes circuito cultural massificado. Tam- da canção como sugere o mestre pouco torna possível lhes atribuir a Nei Lopes. Até porque nada do que exclusividade do gênero, cuja difu- Dicionário são fez com que tivessem acesso a constitui propriamente um erro. ambientes sociais antes vedados a Evidentemente o samba tem um eles. Nos anos 30 já não era possível elo inegável com a síncopa africa- aceitar tal perfil restrito para estes na, como mostrou Carlos Sandroni músicos e compositores — ou te- ríamos que excluir de seu convívio nomes como Noel Rosa, Carmen 6 João José Reis, “Tambores e temores: a Miranda e tantos outros artistas que festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX”, in Maria Clementina Pereira marcaram época —, assim como ne- Cunha (org.), Carnavais e outras frestas. gar o rótulo de samba às harmonias Ensaios de história social da cultura e à “batida” de João Gilberto. (Campinas: Editora da Unicamp, 2002), Repetindo o refrão: sambistas pp.101-55, descreve como esta percepção estava presente na Bahia outocentista. Ao são artistas, não porta-vozes polí- relatar “uma algazarra” ocorrida em janeiro ticos da nação ou dos oprimidos. de 1844, por exemplo, um carcereiro da pri- Oriundos de lugares diversos da so- são municipal de Salvador esclarece: “não ciedade, eles exprimem diferentes podia perceber se era samba de africanos ou de nacionais” (p.128). Além de evidenciar o experiências e modos de ver. Por uso da palavra “samba” no mesmo campo semântico de “batuque” e registrar o uso do termo muito antes do que se costuma supor, 7 Carlos Sandroni, Feitiço decente. Trans- esta passagem (e outras no mesmo texto) formações do samba no Rio de Janeiro sugere como, desde muito cedo, a prática (1917-1933) Editora da URRJ, 2001.

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afro 54.indb 391 06/08/2017 11:22:30 isso, e não por outra razão, o samba racial e socialmente heterogênea das constitui uma excelente fonte de es- ruas de prostituição nos anos 1920. tudo para historiadores: ele expressa Algumas ausências chegam a espan- - tar. A maior delas é a falta de uma renças verticais (entre dominantes entrada especifica para discutir “Ra- e dominados, por assim dizer), mas cismo”, ausente na sistematização também as horizontais (entre seto- proposta pelos autores. Fica difícil res diferentes de uma mesma clas- entender por que tal questão, crucial se, por exemplo). Permite flagrar as para a própria perspectiva defendida por eles, é tratada de passagem em - outros momentos ou traduzida obli- mens e mulheres, negros e brancos, quamente como “Desqualificação” no verbete que enfrenta mais dire- empregados, homens “de família” e tamente o problema (pp. 97-8). Ela poderia ser retomada em “Consciên- pobres da cidade, entre as autorida- cia negra” (76-7), outra oportunidade des e os cidadãos — o que, conve- perdida de deixar aflorar o tema: nes- nhamos, é muito mais do que o olhar ta passagem, os autores limitam-se binário que os autores sugerem aos a uma breve e genérica definição do usuários do volume. 8 termo, uma sumaríssima referência Um passeio por alguns verbetes aos movimentos negros desde o final pode exemplificar estes limites — dos anos 1930 e, finalmente, a arrolar tanto quanto uma busca por aquilo compositores que adotaram este tipo que faz falta no volume. Não há, por de temática em seu trabalho, como exemplo, um dedicado ao teatro de Candeia. revista — que serviu de base para a Cabe mencionar ainda dois ver- popularidade de músicos como Si- betes, que deveriam ser o prato prin- nhô, Pixinguinha e muitos outros cipal do volume, mas deixam bastan- que se lançaram antes do sucesso te a desejar em termos de densidade dos sambistas malandros do Estácio. 9 analítica e mesmo em relação às in- Sinto falta igualmente — retornando às referências geográficas do samba lugar, espanta a curta referência ao na cidade — de um verbete “Zona “Carnaval”, que merece uma entrada própria, mas resumida em oito linhas entre os sambistas e a boemia carioca, — complementadas aqui e ali por in-

8 O verbete “Fonte histórica”, p. 134, aborda outros verbetes (pp. 54-5). O dedi- cado ao termo “Cordão”, por exem- sambas como testemunhos dos contextos plo, diretamente alusivo ao universo em que foram produzidos, mas não desen- carnavalesco, não chega a mencionar volve esta possibilidade. 9 As únicas referências, em todo caso indire- sua característica designada pela im- tas, estão nas pp. 27-8 (verbete “Bahia”). prensa do início do século XX como

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afro 54.indb 392 06/08/2017 11:22:30 “pancadaria”, devido ao uso forte da contribuição começa pelo peso do percussão e cuja semelhança com verbete “Política”, em que as rela- baterias de escolas mais recentes é evidente (pp. 78-9). O verbete “Sam- com suas lideranças e os agentes ba”, por outro lado, não por acaso é o públicos são exploradas (pp.222- maior de todo o volume (pp. 247-55). 4). Certamente este é um tema es- Seu conteúdo, entretanto, decepciona tratégico para compreender certos o leitor mais exigente. Recorre-se mecanismos da política carioca, es- longamente ao perigoso exercício da pecificamente, e também, em certa etimologia (à qual os autores pare- medida, em outras partes do país. cem aficionados, como convém aos Escolas de samba, com seus fortes que apreciam dicionários e enciclo- vínculos comunitários, adquiriram pédias). Há uma rápida apreciação um grande peso eleitoral disputado morfológica para diferenciar samba por diferentes correntes, aspecto que rural e outras modalidades do sam- tem sido pouco desenvolvido pelos ba urbano carioca — apresentando pesquisadores da área. O conteúdo uma visão evolutiva que faz com - que este último derive de cucumbis e portantes para quem se proponha a mergulhar na tarefa de compreender brasilidade, como a presença de ne- gros fantasiados de índios” (p. 253). perigosas que datam, pelo menos, Creio que incorrem em erro aí, pois dos anos 1920. 11 Desconfio que este negros fantasiados de índios bem po- caminho será precioso para enten- diam derivar dos caboclos de terreiro der boa parte do que veio depois — presentes em algumas formas de na história da cidade e do país, ao religiosidade como o candomblé e sedimentar numerosos mecanismos omolokô presentes na cidade do Rio que fizeram florescer o populismo de Janeiro —, mais que revelar algu- nas décadas seguintes. Nei Lopes e ma forma de “brasilidade”. Luiz Antônio Simas oferecem pers- Apesar destes limites, o Dicio- pectivas mais recentes, mas não me- nário tem pontos fortes e oferece nos importantes, para explorar estas - possibilidades analíticas. sadores do tema, tanto sob a forma Há ainda verbetes corajosos. O

fornecimento de instrumentos já de- senvolvidos de investigação. 10 Esta 11 Desde os anos 1920, existiu na cidade um movimento autodesignado “recreativismo”,

10 O verbete “Cinema”, por exemplo, traz um (alguns com projeção nacional) e grupos de sambistas e carnavalescos, organizados do samba de diferentes maneiras. “Escola de samba” (pp. 116-23) também traz infor- elos – ao mesmo tempo em que abriam canais de comunicação direta entre grupos as que se extinguiram ao longo do tempo. políticos e setores populares.

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afro 54.indb 393 06/08/2017 11:22:30 termo “Violência”, por exemplo, zação — parecem considerar como aborda um tema delicado e difícil sua tarefa primordial defender, de tratar, mas relevante ou talvez até mesmo decisivo para entender o de autenticidade e resistência, uma samba em nossos dias e sobre o qual experiência que foi e é ainda vital é necessário falar: a criminalidade e - a força que ela adquiriu nas comu- dades esquecidas e vilipendiadas da nidades que abrigam as escolas de cidade que se diz maravilhosa. Tal samba (pp. 297-300). O tema está dimensão, que havia sido percebida diretamente ligado à compreensão por Candeia, tem ainda um signifi- da força comunitária e política das cado político e social que faz com ela possa se manter viva e fazer sentido para tanta gente. 12 Isso dife- a política institucional e com o po- rencia a perspectiva de Nei Lopes e der paralelo da criminalidade orga- Luiz Antônio Simas (ou de Candeia) nizada, que invadiu inclusive estes do simples nacionalismo teimoso e canais de comunicação oficiais. A antiquado de outros autores. Nei força das escolas de samba no Rio Lopes não é propriamente um his- de Janeiro, produzindo identidades, toriador, mas um artista com boa sentimentos de pertença e de comu- formação intelectual, sensibilidade nidade nas favelas e periferias, é um política e muita habilidade, tanto tema subjacente a boa parte dos ver- na hora de versejar quanto na de Dicionário . organizar o seu saber, resultado de Este é, aliás, o ponto alto da inter- décadas de convívio com o mundo que descreve e torna mais inteligível trazidas pelo volume — uma espé- para os leigos. Assim, nada melhor cie de visão organizadora que está para fechar estes comentários que os por trás de boa parte de seus conteú- versos que encerram o mesmo sam- dos. Se isso não chega a configurar ba que abriu este texto: uma história social do samba, é por- Artista, em meu ponto de vista, que Nei Lopes e seu parceiro — que é quem cria e conquista têm domínio incontestável sobre as E que sabe que, mesmo em capa de - revista, volvem seu trabalho de sistemati- Artista é artista e mané é mané.

Maria Clementina Pereira Cunha Universidade Estadual de Campinas [email protected]

12 Cf. Maria Clementina Pereira Cunha, “Candeia e o Anjo moreno”, op. cit.

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