PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Carla Bertuol

CRIANÇAS NO ESPAÇO URBANO: UM ESTUDO SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO DAS “CIDADES AMIGAS DA CRIANÇA”

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2008

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Carla Bertuol

Crianças no espaço urbano: um estudo sobre políticas públicas no contexto das “cidades amigas da criança”

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia : Psicologia Social, sob orientação da Profa. Dra. Mary Jane Spink.

SÃO PAULO 2008

Banca Examinadora

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RESUMO BERTUOL, C. Crianças no espaço urbano: um estudo sobre políticas públicas no contexto das “Cidades Amigas da Criança”. 2008. 160f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. Esta pesquisa aborda as relações entre crianças e cidades nas políticas públicas que visam transformar as cidades em bons ambientes para as crianças. Seguindo orientação construcionista, consideramos que a definição de criança de forma universalizada ocorreu com a separação destas da vida social e a construção de espaços próprios, formas de controle da racionalidade moderna sobre a experiência de ser criança. Nas políticas públicas, uma agenda para as crianças nas cidades brasileiras é proposta inicialmente com a municipalização político-administrativa na Constituição Federal, em 1988, e, em seguida, com as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Nessa agenda observam-se iniciativas peculiares e voluntárias de avaliação e premiação das cidades que desenvolvem políticas públicas voltadas para este grupo e configuram-se como possibilidade de inscrição na iniciativa Child Friendly Cities da Organização das Nações Unidas. Entendemos as políticas públicas como formas de escolhas das ações públicas implementadas pelos governos e partimos do pressuposto de que, apesar das concepções hegemônicas sobre as crianças, ao olharmos para a cidade como lugar, atentando para sua presença na cidade e para suas relações com as práticas das políticas públicas, podemos contribuir para que suas posições e suas possibilidades de resistência se tornem mais visíveis e, assim, expandir o diálogo entre crianças e políticas públicas. A tese que defendemos aqui é de que as cidades, ao se organizar com base em pressupostos universalistas sobre a infância, trazem para as políticas públicas uma visão adulta sobre as crianças, que, no espaço do cotidiano das práticas, usam o espaço urbano como forma de resistência. Dois objetivos norteiam este estudo: –(1) discutir como as políticas públicas, orientadas pelos pressupostos das iniciativas “Amigas da Criança”, trabalham com as especificidades das crianças, consideradas como a(u)tores sociais; e (2) conhecer as estratégias de enfrentamento utilizadas pelas crianças em relação às ações emanadas dessas políticas. – Para o primeiro, buscamos aproximações ao campo-tema por meio de interlocuções com os gestores da política pública municipal, acompanhando as reuniões da “Redinha”, realizando entrevistas e participando de eventos em Santo André-SP. Para o segundo objetivo, fizemos observações não estruturadas do uso do espaço urbano pelas crianças, acompanhando-as numa ação programática, o Expresso Lazer. Percebemos que a visão adulta sobre a infância ainda é hegemônica nas formas organizativas voltadas para a garantia dos direitos das crianças e na consideração do uso do espaço urbano por elas como algo que não entra nas possibilidades de resolução das situações ali discutidas. Desse modo, a abordagem de tais políticas muitas vezes se distancia de experiência de ser criança. As crianças, por sua vez, buscam ativamente construir sua presença no cotidiano junto aos adultos, e nesse afã mostram-se capazes de se auto-organizar e de usar o espaço de maneira autônoma, sem se moldar às formas de dominação e reagindo com resistência no uso do espaço urbano. Nas considerações finais indagamos sobre a potência transformadora dos direitos para as crianças no contexto das Cidades Amigas da Criança e sugerimos possibilidades de diálogo com a Psicologia Social.

Palavras-chave: Psicologia Social, políticas públicas, infância, construcionismo social, resistência.

ABSTRACT BERTUOL, C. Children in the urban space: a study on public policies in the “child’s friend cities” context. 2008. 160f. (Doctorate in Social Psychology) – Program of Postgraduate Studies in Social Psychology. Pontificia Catholic University of São Paulo. São Paulo.

This research addresses the relationships between children and the cities within the public policies aimed at to transform the cities in good environments for children. From a constructionist stance, we consider that the current universal definition for child taken for granted derived from the segregation of children from the social life space and the construction of due specific places as ways for the modern rationality wield control over the experience of being child. The Federal Constitution of 1988 proposed an agenda dedicated to the childhood in the public policies of brazilian cities, within the political- administrative decentralization trend or municipalization processes and afterwards within the Child and Adolescent Statute of 1990. In this agenda some peculiar voluntary initiatives of evaluation and award are proposed for the cities that develop public policies pointed to this issue and also a possibility of registration in the “Child Friendly Cities” initiative of the United Nations Organization. We understand the public policies as the government’s ways to make choices about public actions to be implemented and we start from the presupposition that despite of the hegemonic conceptions about children, if we look to the city as a place, looking at children’s presence in the city and his/hers relationships with public policies practices, we can contribute so that their positions and resistance possibilities become more visible, expanding the dialogue between children and public policies. The theory that we present here is that the cities, when organized based in universalistic assumptions about the childhood, bring forth a vision of the adults over the children into the public policies, and that in the daily practices, children take the urban space using it as resistance forms. This study pursues two objectives. The first one – to discuss how the public policies guided by the “child’s friend” initiative presuppositions deals with the children’s specificities, considered as social authors and actors – we have approached the field-theme through dialogues with the decision makers of the municipal public policies, followed up the meetings of the municipal facilities “Little Net”, made interviews and took part in events accomplished in Santo André- SP. For the second objective – to know the resistance strategies of the children in relation to the actions emanated from those policies - we have accomplished unstructured observations on the use of the urban space by children and we observed them within a programmatic action, the Expresso Lazer. We found that the adult vision about children in organizational forms devoted to warrant children’s rights are hegemonic and that any consideration from the children about the use of the urban space doesn’t enter among the possibilities for solving the issues discussed there, resulting in an approach that is usually far from the experience of being child. We also found out that children actively attempt to build his/her presence close to the daily life together with the adults, and in this enthusiasm they show auto-organization capacity and autonomy in the use of the space, an don’t show their selves malleable to the dominance forces reacting with resistance in the use of urban space. In the final considerations we discuss how children’s rights have potential for transformational in the “child’s friend cities” context and we suggest dialogue possibilities within Social Psychology.

Key Words: Social Psichology; public policies; childhood; social constructionism; resistance.

RIASSUNTO BERTUOL, C. Bambini nello spazio urbano: uno studio su le politiche pubbliche nel contesto delle città amiche dei bambini. 2008.160f. Tesi (Dottoramento in Psicologia Sociale) – Programma di Studi di Post-Grado in Psicologia Sociale.Pontificia Università Cattolica di São Paulo.São Paulo

L’oggetto di questa tesi sono le relazioni tra bambini e città nelle politiche pubbliche dirette a trasformare lo spazio urbano in atmosfere buone per i bambini. Sotto orientamento costruzionista, considera che la definizione universalizzata dei bambini ha sorto dalla separazione dei bambini della vita sociale e della costruzione di spazi proprii, forme di controllo della razionalità moderna sulle varie esperienze del essere bambini. Una politica pubblica per i bambini nelle città brasiliane è stata proposta inizialmente attraverso il decentramento politico-amministrativo istituito nella Costituzione Federale del 1988 e dopo con gli orientamenti dello Statuto del Bambino e dell'Adolescente, nel 1990. In questa agenda si osservano iniziative peculiari e volontarie di valutazione e premio alle città che sviluppano politiche pubbliche dedicate ai bambini e che guadagnano la possibilità di iscrizione nelle Child Friendly Cities , iniziativa dell'Organizzazione delle Nazioni Unite. Essendo la politica pubblica assunta come forme di scelte delle azioni pubbliche avviate dai governi, abbiamo partito della presupposizione che, nonostante le concezioni egemoniche sui bambini, al guardare la città come luogo, atenti alla loro presenza nella città e ai loro rapporti con le pratiche della politica pubblica, si può contribuire per tornare più visibili le loro posizioni e le loro possibilità di resistenza e, così, ampliare il dialogo tra bambini e politica pubblica. La tesi che ora presentiamo è che le città organizzate su presupposti universalistici sui bambini sono carichi di uno sguardo dei adulti per la politica pubblica per i bambini ma che, nello spazio del quotidiano delle pratiche, questi usano lo spazio urbano come forma di resistenza. Due obiettivi orientano questo studio: (1) discutere come la politica pubblica, guidata dalle iniziative “amiche dei bambini”, lavora con le specificità dei bambini considerati come attori/autori sociali, e (2) conoscere le strategie usate dai bambini per affrontare le azioni emanate di quelle politiche. Per il primo, sono state portate a termine osservazioni non strutturate sull’uso dello spazio urbano dai bambini e questi sono stati osservati entro un’azione programmatica, Expresso Lazer. Si trovò che lo sguardo adulto sull’infanzia è ancora egemonico nelle forme organizative dirette alla garanzia dei diritti dei bambini e nelle considerazioni del loro uso dello spazio urbano come qualcosa che non rientra nelle possibilità di risoluzione delle situazioni lì discusse. Così, l'approccio ai bambini molte volte si allontana dell’esperienza di essere bambini. I bambini cercano attivamente di costruire la loro presenza nel quotidiano degli adulti, e sotto questo entusiasmo dimostrano la capacità di auto-organizzazione e di autonomia nell'uso dello spazio, senzalasciarsi moldare dalle forme di dominazione e rispondendo con resistenza nell’uso dello spazio urbano. Nelle considerazioni finali se ha indagato sulla potenza di trasformazione dei diritti dei bambini nel contesto delle città amiche dei bambini e suggeriamo possibilità di dialogo con la Psicologia Sociale.

Parole chiave: Psicologia Sociale; politiche pubbliche; infanzia; costruzionismo sociale; resistenza.

Dedico este trabalho às crianças com quem venho trabalhando desde minha formação em Psicologia e com quem aprendi muito sobre sensibilidade, alegria e amizade.

Ao meu irmão Fábio Ilso Bertuol ( in memoriam ), que foi criança enquanto eu crescia.

AGRADECIMENTOS

À CAPES e à Universidade Católica de Santos pelas bolsas de estudo concedidas ao longo do doutorado.

A Peter Spink, pela orientação nestes anos, pela convivência afetiva e respeitosa com as dúvidas e singularidades de seus orientandos e pela forma inteligente, produtiva e generosa com que conduziu o Núcleo de Pesquisas Organizações e Ação Social da PUC-SP, do qual me orgulho de ter participado.

A Mary Jane Spink, pelas aulas, sugestões, por ser um exemplo de competência e envolvimento com a Psicologia Social e por ter sido minha orientadora num momento difícil, pela acolhida carinhosa e pela forma segura e respeitosa com que conduziu esta tese.

À profa. Mitsuco (Mimi), por suas importantes sugestões, encorajamento e participação no exame de qualificação.

Aos integrantes do Núcleo de Pesquisas Organizações e Ação Social, pelas discussões, reflexões, companheirismo, solidariedade e amizade. E, em especial, a Adriana, Simone e Karen, nos últimos tempos.

Aos integrantes do Núcleo de Pesquisas de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, pelo interesse, troca e aprendizado conjunto e cotidiano. Em especial, a Vanda, Sergio e Jacqueline.

Aos gestores da Redinha de Santo André, da Secretaria Municipal de Cultura, Esportes e Lazer, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, pela acolhida e disponibilidade em me receber como pesquisadora. Em especial, aos integrantes da Gerência de Ação Comunitária e à equipe do Expresso Lazer.

A Décio de Castro Alves e à sua equipe no Centro de Atenção Psicossocial Infantil de Santo André, pelas conversas, informações e troca durante todo o período da pesquisa. Em especial, a Gláucia, Stella, Irene, Ana Carolina, Liziane, Letícia e Roberta.

À Coordenadora do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos, Flávia Henriques, e aos colegas professores do curso, pelo apoio nas questões burocráticas e cotidianas da elaboração da tese.

Aos alunos, supervisionandos e orientandos do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos, nesse período do doutorado, pela disposição, atenção sensível e alegria

com que se formam psicólogos. Especialmente, a Déa, Fernanda, Mariana, Wagner, Priscilla e Ursula.

Aos psicólogos, ex-alunos do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos: Verônica Lemos de Oliveira, Carla Ribeiro Oliveira, Luciana Tavares, Flávia Gutierrez, Denis Wolpert e Alberto Tavares, pela colaboração nessa pesquisa, pela disponibilidade em se aventurarem nas observações e reflexões sobre as crianças no espaço urbano.

A Beatriz, Nídia, Alice e Sílvia, pelo apoio, amizade e exemplo de resistência e de boas práticas de Saúde, no Centro de Saúde Martins Fontes.

A Silvana Cobucci, pela revisão e formatação primorosas deste texto, pela amizade ao longo de tantos anos em Santos.

Ao Paulo Leite, pelo envolvimento com a tese e a ajuda na reta final.

Aos meus pais, Hercy e Aldir, pelo apoio e incentivo, de sempre.

Às minhas irmãs, Rossane e Sonali, por tomarem conta de tudo nos momentos em que eu estava estudando.

A Tykanori, Isabella e Marco, pela torcida, confiança, ajuda com os resumos e amor sem os quais nada teria sido possível, por estarem sempre ao meu lado.

SUMÁRIO

Prefácio: Fragmentos do cotidiano das crianças na cidade...... 1 Introdução: Políticas públicas na perspectiva pós-construcionista...... 4 • As relações entre crianças e cidades como objeto de atenção de políticas públicas...... 5 • Políticas públicas como práticas sociais ...... 9 • Aproximações do cotidiano como lugar...... Erro! Indicador não definido. • Estrutura da tese...... Erro! Indicador não definido.

Capítulo 1: Crianças no espaço público — a ambigüidade entre o cuidado e o controle...... 19 1.1. A infância como construção social...... Erro! Indicador não definido. 1.2. A infância como foco do poder disciplinar ...... Erro! Indicador não definido. 1.3. A criança como sujeito de direitos: o Estatuto da Criança e do Adolescente...... 29 1.4. Resistência: a resposta possível aos poderes...... Erro! Indicador não definido.

Capítulo 2: A presença das crianças no espaço público: a cidade como lugar Erro! Indicador não definido. 2.1. Conceituando lugar...... Erro! Indicador não definido. 2.2. Crescendo nas cidades: o estudo de Kevin Lynch...... 43 2.3. Experiências com a paisagem urbana: contribuições de Roger Hart...... Erro! Indicador não definido. 2.4. Sobre espaços polissêmicos: a visão de Colin Ward...... Erro! Indicador não definido.

Capítulo 3: Sobre cidades amigas da criança...... Erro! Indicador não definido. 3.1. As cidades amigas das crianças na perspectiva do UNICEF.... Erro! Indicador não definido. 3.2. As iniciativas brasileiras de priorização da qualidade de vida para as crianças que vivem nas cidades ...... Erro! Indicador não definido. • Prefeitos amigos da criança merecem um selo: a iniciativa da Fundação ABRINQ ...... 67 • Os municípios amigos da criança: o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde entra em cena...... 68

Capítulo 4: Procedimentos de coleta e análise das informações ...... Erro! Indicador não definido. 4.1. Objetivos da pesquisa ...... Erro! Indicador não definido. 4.2. Adotando a perspectiva de campo-tema no delineamento da pesquisa.... Erro! Indicador não definido. 4.3. A escolha do “caso”: por que Santo André?...... Erro! Indicador não definido. 4.4. Sobre as políticas públicas voltadas para crianças...... Erro! Indicador não definido. • Aproximações aos gestores: conversas e entrevistas...... Erro! Indicador não definido. • Acompanhando os gestores em seu cotidiano: a Redinha...... Erro! Indicador não definido. • Participação nos fóruns públicos: eventos e conferências ...... Erro! Indicador não definido. 4.5. A vivência das ações emanadas das políticas voltadas às crianças Erro! Indicador não definido. • Observação das crianças no espaço urbano...... Erro! Indicador não definido. • O Expresso Lazer como estudo de caso...... Erro! Indicador não definido. 4.6. Procedimentos de análise ...... 78

Capítulo 5: Santo André: uma cidade amiga das crianças...... Erro! Indicador não definido. 5.1. Sobre Santo André...... Erro! Indicador não definido.

• Santo André, cidade amiga da criança...... Erro! Indicador não definido. 5.2 A presença das crianças na cidade...... Erro! Indicador não definido. 5.3 As ações voltadas à criança em sua relação com a cidade – a Redinha..... Erro! Indicador não definido. • De que relações com a cidade se fala? – Casos discutidos nas reuniões da Redinha...... 88 5.4. Os espaços públicos na perspectiva da cultura e da qualidade de vida ..... Erro! Indicador não definido. • A Conferência sobre os Direitos da Criança e do Adolescente...... Erro! Indicador não definido. • Sobre o direito ao lazer...... Erro! Indicador não definido. • Sobre a inclusão da comunidade...... Erro! Indicador não definido.

Capítulo 6: Vivências das ações emanadas das políticas: o caso do Expresso Lazer ...... 99 6.1. Caracterizando o Expresso Lazer...... 99 6.2. O projeto em ação ...... Erro! Indicador não definido. 6.3. A relação das crianças com o Expresso Lazer...... Erro! Indicador não definido. • Crianças brincam em qualquer lugar...... Erro! Indicador não definido. • Brincar e a paisagem urbana...... 109 • A auto-organização...... 111 • A reciprocidade ...... 112 • Chegando ao mundo adulto...... 114 • Conflitos...... 115

Considerações finais...... 117

Referências bibliográficas...... 124

Anexos...... 129

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PREFÁCIO Fragmentos do cotidiano das crianças na cidade

Cena 1 – No centro de Santos

Eudes é um menino de catorze anos trazido ao Centro de Saúde por sua mãe. Ela conta que foi encaminhada pela escola que a mandou procurar uma psicóloga, pois, caso contrário, seu filho seria expulso. A mãe diz que ele não aprende nada e gostaria que se fizesse um “exame na cabeça” do filho: ele não é normal , acho que tem problemas porque na escola só quer saber de ficar brincando. Ela tem pressa e queria que isso fosse feito logo, pois estava prestes a perder a vaga do menino na escola, ou melhor, achava que já a perdera, pois havia assinado um papel, a pedido da escola, e deveria fazer a matrícula em outra escola. Enquanto a mãe fala todas essas coisas, o menino chora num canto da sala e diz que não sabe por que está chorando, mas é evidente que está com muita raiva. Eudes sabe ler e escrever, sabe fazer contas. Nasceu na Bahia, onde viveu até os oito anos, com sua mãe, sua avó e seus tios. Sua mãe casou-se novamente e veio com o padrasto para Santos; os três moram num quarto de cortiço, no centro da cidade. O menino não tem cama. Depois que todos jantam, ele afasta um pouco a mesa e estende um colchonete no chão, onde dorme e descansa para mais uma jornada de trabalho. Ele trabalha como vendedor de produtos de limpeza, água sanitária, detergente, cloro. Seus olhos brilham de felicidade ao descrever seu trabalho: ele enche garrafas de refrigerantes com os produtos, coloca-as num carrinho e sai à rua para vender. Anda toda a General Câmara, desde o porto até quase a Prefeitura, e consegue vender todas as 36 garrafas que carrega quase todos os dias. Quando lhe perguntamos o preço, ele diz que há dois: um para as garrafas maiores e outro para as menores. Todas as manhãs, Eudes arruma seu carrinho, enche as garrafas e sai para vender, volta, almoça e vai para a escola. Pedimos que faça um desenho sobre seu trabalho. No papel que ele apresenta, menino e carrinho formam uma coisa só e têm um título: “Meu trabalho é uma Limpeza”. O problema para ele não é o trabalho; é a escola. A diretora disse que ele só poderia ficar lá com um laudo. Para Eudes, não existe isso de um lugar para brincar e um lugar para coisa séria. Ele se diverte em seu trabalho e é uma coisa muito séria porque é o dinheiro que precisa levar para sua mãe e seu padrasto. Ele quer brincar de jogar bola e diz: “não sou só eu, todos ficam jogando”. Conta que sabe jogar futebol muito bem e pergunta se queremos ver. Pega uma pequena bola da caixa de brinquedos e mostra embaixadas, laterais, pulo com a bola, dribles; ele sabe mesmo. Perguntamos então qual é o problema na escola e ele diz que não gosta de ficar “se aparecendo para os outros” e que na classe dele só tem criança pequena. Interessa-se pelas revistas e, ao ser perguntado se gostaria de levar algumas para ler, ele sorri e escolhe algumas. No dia seguinte, traz um desenho que “tirou assim de olhar para a figura”. É um ursinho Puf, muito bem desenhado e colorido com capricho. Continua desenhando o busto de um menino jovem e diz que é um jogador de futebol. Conta que gostaria de ser jogador de futebol. Quando lhe perguntamos o motivo, ele diz: “para jogar futebol”. Em seguida, encontra o tabuleiro de damas e convida-nos para jogar. Ele se mostra muito habilidoso e consegue antever quase todas as jogadas. Sabe jogar baralho também, buraco, sete-e-meio, e outros: aprendeu com os tios lá na Bahia. Perguntamos se eles haviam ensinado e diz que não, que ficava por perto olhando e aprendendo.

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Cena 2 – Nas praias de Santos

Na praia não vai quem quer; alguns, como as crianças, são levados até ela. Há crianças em toda a orla da praia. Encontramos bebês à beira-mar, levados por suas mães para pôr o pezinho na água. Vêm em carrinhos empurrados por suas mães; alguns são recém-nascidos, outros nem andam e há também os que estão dando os primeiros passos e já vão correndo para a água. É uma festa, para eles e para suas mães, pais, avós e também para quem passa rapidamente, durante sua caminhada. As crianças fazem parte dessas caminhadas na praia e, ao fazê-las, podemos reviver nossa alegria de estar junto ao mar reeditada pelas crianças que também estão ali, vivendo um encontro sem passado. Ficamos encantados com a atração que as crianças têm pela água. É uma felicidade... Seus pezinhos e mãozinhas batem na água e a gargalhada vem fácil. A criança senta, levanta, se deita, vai e volta, descobre a areia na mão, no pé, mostra para a mãe, sorri, continua batendo na água. Vira-se, engatinha. Sua mãe está ali perto, atenta, seu pai um pouco mais longe, sentado na barraca. O guarda-sol aberto e toda a parafernália arrumada estão ali para garantir sol e sombra para o filho. Mais adiante, ficamos impressionados com uma cena protagonizada por outras crianças; ficamos felizes e interrompemos um pouco a caminhada para poder assistir. Crianças riem, falam alto, agitam-se, dão pulos e mais pulos sobre as ondas, jogam água umas nas outras. Em grupo, entram no mar e avançam um pouco na água. São muitas crianças, todas juntas num pequeno espaço de um mar enorme. Em volta desse grupo, alguns adultos se posicionam, formando um quadrado de seis pessoas. Fecham o espaço que dá para a água, delimitando assim o pedaço de mar onde as crianças podem ficar. Um espaço delimitado em largura e comprimento. Não podem ir para o fundo e também não podem deixar o grupo e ficar na areia. “Aonde vai? Volte lá com os outros”, diz o inspetor, monitor da Caravana do Conhecimento: O interior na praia , como informa a sua camiseta. E o menino obedece. A caravana traz crianças do interior para conhecer a praia. Olhamos para essas crianças, sorrindo. Receber crianças do interior é quase um costume em Santos. Uma casa bem antiga recepciona crianças pobres de outros municípios e também as que moram nos bairros da periferia da própria cidade de Santos. Elas chegam à praia em grupos grandes, acompanhadas de monitores, todas com o uniforme da escola, sem guarda-sol ou brinquedos, e ficam todas juntas, andando na areia bem perto da água ou brincando na água. Sabemos que a praia não é um espaço para as crianças irem sempre; elas são levadas até ali por alguém, geralmente por seus pais, e chegam de formas diferentes. As crianças pobres de Santos e de outras cidades ocupam esse espaço de uma maneira ainda mais peculiar. Ficamos felizes ao considerar que aquelas crianças estão tendo a oportunidade de ir à praia e, assistindo à cena, não podemos deixar de lembrar aquela sensação maravilhosa de ver o mar pela primeira vez. As crianças acompanhadas de seus pais, da parafernália de objetos e práticas corporais com o sol não nos despertam essas lembranças. Já estamos acostumados a elas. No entanto, chama-nos a atenção o fato de a criança trazer no braço uma pulseira com o nome, para que possa ser achada e rapidamente devolvida aos familiares, caso se perca. As crianças da caravana não precisam de pulseiras, pois não podem arredar pé do espaço administrado pela autoridade pública que está lhes dando uma “oportunidade única”, pois “de outra forma não poderiam conhecer o mar”. As crianças pobres da cidade e do interior têm a instituição, têm a “caravana do conhecimento: o interior na praia” e, assim, têm garantido o seu direito ao lazer. Mas, ao contrário das outras, não têm um espaço público que favoreça e garanta o seu lazer na praia junto com seus pais. Os pais que podiam usar o velho costume do turismo de um dia já não podem fazê-lo, pois essa prática está proibida na cidade. Os chamados “farofeiros” foram banidos e não podem freqüentar o “maior jardim em praia do mundo” registrado no Guiness . Não tão banidos quanto alguns gostariam, no entanto. Em alguns lugares notamos focos de resistência: são famílias de turistas que com suas crianças aproveitam o dia na praia, usam os chuveiros públicos e fazem seus lanches embaixo do guarda-sol, exatamente como as crianças turistas ou locais que podem vir individualmente para a praia. 3

Cena 3 – No ônibus, em Santos Em janeiro de 2005, a Prefeitura Municipal de Santos divulgou amplamente nos meios de comunicação escritos e falados o seu feito de permitir que as crianças andem de ônibus “como gente grande”. Uma peça de publicidade do tipo cartaz foi feita e circula colada, próximo à roleta dos ônibus da cidade. Três colunas verticais dividem o cartaz: A primeira à esquerda diz: “Nem por cima nem se arrastando no chão, como gente grande. A Prefeitura Municipal de Santos atende a uma antiga reivindicação”. Na segunda, a fotografia de um menino atrás das asas da roleta, vestindo uma camisa tamanho adulto e sorrindo. Segue uma terceira coluna, também na vertical do cartaz, com o seguinte texto: Como gente grande. Nem por cima e nem por baixo. De mãos dadas com o papai ou com a mamãe e passando pela catraca. Como gente grande. Esta é a nova realidade, mais confortável e segura, dos baixinhos no sistema de transporte coletivo de Santos. A Prefeitura Municipal decidiu que a partir de 1º de Março de 2005 as crianças com até cinco anos de idade passam livremente pela catraca dos ônibus e ganham um motivo a mais para sorrir. Andando de ônibus, ao lado da catraca, acompanhamos o movimento: vimos um menino grande, certamente com mais de cinco anos, arrastar-se pelo chão e passar por baixo; um pequeno, com menos de cinco, que nem esperou a catraca ser liberada pelo motorista, e foi logo passando por baixo; mãe e sua filha de 7 anos, que ficaram juntinhas e passaram de uma só vez. No ponto em frente à escola, muita gente faz fila para poder subir no ônibus. Cada um é dono de si e passa com cartão, com passe ou com dinheiro; o motorista é também recepcionista dos passageiros, conhece a maioria, bom dia pra cá, bom dia pra lá. Na fila da subida, muitas crianças, com seus cartões de passe escolar, mas nem todas... Vimos o motorista fazer sinal com a mão direita, chamando dois meninos para dentro. Eles prontamente subiram no ônibus. O motorista apontou para a placa de sinalização do itinerário no vidro da frente, do lado do passageiro, e lhes disse: vira aí, meu . Os meninos viraram a placa, mudaram o itinerário, e depois o motorista disse: Pode ir lá , e eles desceram e entraram novamente no ônibus, pela porta de trás, rindo, bem felizes. Sentaram-se naturalmente num banco duplo, e continuaram a conversa de dois amigos falando sobre tudo o que ocorre. Com certeza era algo que eles faziam havia muito tempo.

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INTRODUÇÃO

Políticas públicas na perspectiva pós-construcionista

Eu não quero uma cidade da infância. Quero uma cidade onde as crianças vivam no mesmo mundo que eu. Se queremos uma cidade compartilhada, mais que uma cidade onde terrenos indesejados são reservados para conter as crianças e suas atividades, nossas prioridades não são bem as mesmas que as dos ativistas da criança. Se se aceita a reivindicação das crianças de compartilhar a cidade, todo o meio ambiente precisa ser projetado e moldado tendo em mente as necessidades delas. (Ward, 1978: 204; tradução livre da autora) 1

[...] o bem-estar das crianças é o principal indicador de um ambiente saudável, uma sociedade democrática e um bom governo. (www.childfriendlycity.org/about; tradução livre da autora) 2

Esta pesquisa aborda as relações entre crianças e cidades nas políticas públicas que visam transformar as cidades em bons ambientes para as crianças. Partindo de pressupostos teóricos sobre a construção social da infância, entendemos que a própria idéia de infância remete aos lugares que as crianças podem ocupar na vida social. É com muita naturalidade que hoje consideramos as crianças frágeis e vulneráveis, necessitadas de proteção e, mais recentemente, com direito à proteção. Contudo, muitos pensam com preocupação na sociabilidade protegida das crianças nas instituições, por um lado, e na vulnerabilidade em que elas se encontram nas ruas e em outros espaços nas cidades, por outro.

1I don’t want a Childhood City . I want a city where children live in the same world as I do. If we seek a shared city, rather than a city where unwanted patches are set aside to contain children and their activities, our priorities are not quite the same as those of the crusaders of the child... If the claim of children to share the city is admitted, the whole environment has to be designed and shaped with their needs in mind. 2 ....the well-being of children is the ultimate indicator of a healthy habitat, a democratic society and of good governance.

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Tais preocupações têm como pressuposto a regulação histórica de controle e disciplinamento das relações sociais que constroem, no tempo longo, uma visão hegemônica sobre o que é e não é apropriado para essa faixa etária. Na vida cotidiana, o lugar que as crianças ocupam e as relações que estabelecem com adultos nem sempre estão de acordo com essas visões, mas mostram que conflitos e disputas pelo espaço urbano acontecem.

As relações entre crianças e cidades como objeto de atenção de políticas públicas

A presença das crianças no espaço urbano tem sido abordada por pesquisadores e planejadores urbanos, tais como Kevin Lynch (1977), Roger Hart (1979) e Colin Ward (1978). Cada um a seu modo contribuiu para as atuais orientações de agências internacionais relativas às políticas públicas que envolvem a sustentabilidade e o meio ambiente, no espaço das cidades. Uma dessas iniciativas, Child Friendly Cities , orienta modelos de ação que incluem as crianças nas agendas municipais de todos os países.

No Brasil, as políticas públicas voltadas para as crianças fundamentam-se atualmente em princípios normativos, sobretudo na perspectiva da descentralização político-administrativa e nas orientações emanadas do Estatuto da Criança e do Adolescente, e não refletem os processos cotidianos de uso do espaço da cidade. Ao abordar as políticas públicas como formas de escolha e de avaliação das ações públicas, implementadas não apenas a partir de orientações estatutárias, e dirigir nosso olhar para o lugar em que as pessoas constroem os sentidos da vida, no cotidiano, podemos perceber a potência emancipadora das práticas públicas, como aponta Peter Spink (2002). Essa potência pode ser apreendida quando se consideram os saberes das pessoas que ali vivem, inclusive das crianças, incluindo nas metodologias de trabalho o lugar e os processos cotidianos da construção das ações.

Partindo de uma orientação construcionista, questionamos o conceito de criança como uma natureza a priori . Entendemos que os processos relacionais, permeados de relações de poder, se constituem como forças que buscam definir o modo como entendemos as crianças, habitando lugares específicos, afastadas da vida social. Partimos do pressuposto de que, apesar do poder de concepções hegemônicas sobre as crianças, ao olharmos para o lugar que elas ocupam na cidade e para suas relações com 6 as práticas das políticas públicas, podemos contribuir para que suas posições e suas possibilidades de resistência se tornem mais visíveis e, assim, expandir o diálogo entre crianças e políticas públicas.

Focalizando as relações estabelecidas no uso do espaço público pelas crianças e no cotidiano de uma ação programática voltada para o lazer e o tempo livre, em Santo André, uma cidade considerada Amiga da Criança, esta pesquisa tem como principais objetivos (1) discutir como as políticas públicas consideram as especificidades das crianças, vistas como a(u)tores 3 sociais, e (2) analisar as estratégias de cooptação e de enfrentamento utilizadas pelas crianças em relação às ações emanadas dessas políticas.

Atualmente as relações entre as crianças e as cidades estão entre as preocupações de políticos, ativistas e acadêmicos. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU (1989) e sua ratificação nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, definem o direito a uma proteção especial para a faixa etária de 0 a 18 anos, com o objetivo de incluí-la nos direitos humanos fundamentais e reconhecê-la como um grupo específico da sociedade cujo status engendra formas específicas de interesses, vulnerabilidades e direitos (White, 2002) e tem influência importante nas organizações sociais e nos poderes públicos em diferentes estratégias de políticas públicas destinadas a esse setor da população.

Em nosso país, as ações voltadas para saúde, educação e assistência social têm sido tradicionalmente as políticas privilegiadas para a ação dos governos nessa área. No entanto, os princípios da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e sua transformação em diferentes formas de ação envolvendo governos e sociedade civil vêm sendo debatidos em diversas conferências internacionais, promovidas pela Organização das Nações Unidas. Desde sua promulgação, em 1989, aquela Convenção tem sido a referência para que vários países – inclusive o Brasil – atualizem suas legislações sobre crianças e adolescentes. A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente visou garantir o acesso à saúde, educação e assistência social como direitos fundamentais das crianças. A esses direitos somaram-se recentemente outras preocupações com a vida das crianças e o ambiente em que elas vivem, envolvendo as

3 Ao considerá-las como atores e/ou autores na vida social, visa-se enfatizar aspectos relacionados à vida cotidiana das crianças e contempla-se a ambigüidade dos processos de sua participação (inclusão) nas políticas públicas. Esse conceito será retomado ao longo deste estudo, especialmente no capítulo 2 e nas considerações finais. 7 discussões sobre as melhores formas de planejamento e de desenvolvimento da cidade, como podemos ver na cronologia abaixo:

Ano Instância Evento 1978 ONU Ano Internacional da Criança 1978-1989 ONU Fóruns de discussão da Convenção Internacional dos Direitos da Criança 1988 Brasil Promulgação da Constituição Federal de 1988 1989 ONU Convenção Internacional dos Direitos da Criança 1990 Brasil Promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente 1992 Brasil Prefeitos Defensores da Criança 1992 Brasil Programa Prefeito Amigo da Criança (Fundação ABRINQ) 1996 Brasil Programa Município Amigo da Criança (Conasems) 1997 ONU Child Friendly Cities UNESCO Reedição do projeto Growing up in Cities 2001 Brasil Estatuto da Cidade

As duas legislações prevêem a participação das crianças na elaboração das políticas públicas e trouxeram expectativas de intervir e de aprofundar o conhecimento sobre o espaço em que os direitos são construídos e exercidos, a cidade. A movimentação social em torno do tema da infância na última década, as várias iniciativas e as formulações de políticas públicas mostram que os municípios se organizam politicamente para garantir os direitos das crianças. Esse tipo de organização tem sido objeto de diferentes premiações que têm repercussões políticas positivas na mídia e nas redes de atenção à criança e ao adolescente.

A Constituição Federal (Brasil, 1988), em seu artigo 227, define os termos da doutrina da Proteção Integral regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990:

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Já naquela época , esses termos eram conhecidos de movimentos sociais e entidades que militavam em prol dos direitos das crianças e foram levados a um amplo processo de discussão com a sociedade brasileira visando introduzir o conteúdo e o enfoque dessa Convenção na Constituição brasileira antes mesmo de o país a ter 8 assinado. A orientação que balizou essa discussão estava na pauta dos fóruns realizados em Genebra para a elaboração da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Esta foi o resultado de um processo longo, iniciado em 1978 com as discussões sobre o Ano Internacional da Criança. Foi um processo amplo, realizado em nível internacional, que, inevitavelmente, pela necessidade de consensos, tendeu a traçar diretrizes generalizadas para o enfoque das políticas públicas para as crianças. No entanto, diferentemente de outras cartas de direitos existentes, que requeriam um compromisso moral, a assinatura da Convenção pelo país exige a aplicação de seu conteúdo aos estados e suas legislações.

O Estatuto da Criança e do Adolescente define as políticas públicas que garantem os direitos das crianças e adolescentes. Mais do que isso, esse estatuto nos diz que as crianças têm direitos mediante o estabelecimento de políticas públicas. Seu texto parece destacar os temas mais implicados com a perspectiva dos direitos humanos, como aqueles em que as práticas socialmente reconhecidas e legitimadas para as crianças acontecem, tais como educação, saúde e convivência. Embora constitua um reconhecimento de que as crianças passam por tais situações, o Estatuto ao mesmo tempo as vincula ao imperativo ético de uma noção de desenvolvimento individual da criança, coladas às práticas e relacionamentos instituídos que a própria lei parece reconhecer como privilegiados para a efetivação dos direitos. É o que leva a pensar a seguinte estruturação: “a criança terá direito a [...] mediante a efetivação de políticas públicas”, uma formulação do direito abstraída de uma condição interna, que favorece o rosto da criança que não se inscreve em nenhuma prática e deixa em aberto as concepções e as práticas já existentes de exercício de poder (Bertuol, 2003).

Outro aspecto relevante é que a Constituição Federal determina que o município seja o lócus da ação política dos governos por ser o lugar onde as pessoas vivem e onde é possível uma melhor aproximação das demandas pela organização das políticas públicas. Saúde, Educação, Assistência, entre outras, estão nessa organização. Alguns artigos da Carta Magna falam também sobre o controle social que deve ser exercido pela população através da participação popular representativa em diferentes conselhos, que, além de serem formas de garantir o processo democrático, são também exigências para que sejam feitos repasses financeiros da União aos municípios.

Em 2001, os municípios passaram a ter não apenas políticas públicas voltadas para as crianças e adolescentes, mas também um plano diretor que, através do Estatuto 9 da Cidade (Lei n. 10.257, de 2001), estabelece de forma conjunta e comunitária que o direito à cidade é “direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra- estrutura, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

Porém, além de envolver legislações importantes, tais como a Constituição Federal (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e recentemente o Estatuto da Cidade (2001), os esforços para assegurar o bem-estar das crianças nas cidades, sob a perspectiva da garantia de direitos e da cidadania, incluem ainda outras iniciativas que influenciam as ações públicas no campo-tema das relações entre crianças e cidades.

Pode-se perceber a influência de documentos estatutários, por exemplo, na iniciativa da ONU, Child Friendly City . Organizada a partir de conferências internacionais, e definindo orientações para as ações nos espaços das cidades, seus esforços visam transformar as cidades e torná-las “amigáveis” para as crianças. Entre as estratégias, destaca-se a divulgação de iniciativas particulares desenvolvidas, às quais se agregam também os benefícios políticos de participação de uma comunidade internacional, como a ONU. O conceito de cidade amigável, ou Cidade Amiga da Criança, tem sido trabalhado nas diversas iniciativas apresentadas no site da Child Friendly City , de acordo com as políticas públicas que visam garantir os direitos das crianças. Algumas iniciativas têm enfatizado sobretudo a participação das crianças na elaboração das políticas.

Localizadas também em diversos municípios brasileiros, essas iniciativas seguem o padrão básico das descritas naquele site , isto é, são empreendidas por governos municipais em parceria ou não com outras entidades. No Brasil, elas são organizadas a partir das formas de participação democráticas que regulamentam as práticas públicas desde a Constituição de 1988, tais como os diferentes Conselhos de Controle Social, e têm como finalidade a promoção dos direitos das crianças nas cidades onde elas vivem.

Políticas públicas como práticas sociais

No entanto, a participação, assim como outras formas de aproximação do universo infantil, nem sempre é um processo horizontal, e as políticas públicas têm 10 diversas formas de chegar até as pessoas. A política pública pode ser definida como “o que os governos escolhem fazer e escolhem não fazer” (Dye, 1981, apud Spink, P., 2007). Desse modo, ela pode ser vista também como uma forma de avaliar as ações de governos (Spink, P., 2006) para determinado segmento da população ou para determinada questão. As políticas públicas incluem objetivos definidos pelo próprio governo sobre as populações, isto é, implicam um a priori de que devem ser feitas pelo Estado, pois, por si mesma, a situação não teria condições de se modificar ou assumir outra configuração. As políticas públicas definem, portanto, as prioridades da ação dos governos para uma sociedade e, ao mesmo tempo, permitem analisar e avaliar o processo de construção de manutenção dessas prioridades.

Definem-se como proposições e raramente se apresentam unidas às práticas públicas que visam resolver problemas ou questões identificados daquela forma. Por esse motivo, os problemas que requerem a ação das políticas públicas merecem atenção especial, na medida em que eles envolvem as pessoas, seus modos de vida, os lugares que habitam, questões econômicas e políticas. No caso das políticas públicas destinadas à infância, que visam tornar as cidades bons ambientes para as crianças viverem ou garantir que seus direitos fundamentais possam ser respeitados, é preciso fazer algumas considerações importantes.

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que, na vida das pessoas e dos lugares, bem como nas ordens sociais, políticas e econômicas, existem saberes e formas de viver característicos do lugar e da cultura das pessoas, inclusive das crianças. Os pesquisadores também precisam levar em conta, no debate do processo de formulação e de execução das políticas públicas, conceitos como a criação das agendas, os grupos de interesse advocatórios ou de coalizão e toda a organização ou matriz (Hacking, 1999) 4 que configuram a política como um processo social. Esses aspectos estão relacionados

4 Ideas do not exist in a vacuum. They inhabit a social setting. Let us call the matrix within which an idea, a concept or kind, is formed. [...] The matrix in which the idea of the woman refugee is formed is a complex of institutions, advocates, newspaper articles, lawyers, court decisions, immigration proceedings. Not to mention the material infrastructure, barriers, passports, uniforms, counters at the airports, detention centers, courthouses, holiday camps for refugee children. You may want to call these social because their meanings are what matters to us, but they are material, and in their sheer materiality make substantial differences to people. Conversely, ideas about women refugee make a difference to material environment (woman refugees are not violent, so there’s no need for guns, but there is a great need for paper, paper, paper). Material influences the people (many of whom have no comprehension of that paper, paper, paper, the different offices, the uniforms). Sheer matter, even the color of the paint on the walls can gradually replace optimistic hope by a feeling of impersonal grinding oppression. [...] his discussion of ideas and classification takes for granted the obvious, namely that they work only in a matrix. (Hacking, 1999: 10-11) 11 com as ações, com os processos e nem sempre se ligam capilarmente à face pública assumida pelas políticas.

Hacking (1999: 10-11) afirma que as idéias não existem no vácuo, mas são produzidas em lugares sociais ou em cenários sociais (Canelón, 2003), em que, além das ações das instituições legitimadas para lidarem com elas, outros processos estão em jogo para lhes dar forma. Em outros termos, para o autor, as idéias habitam um lugar social e, portanto, as sociabilidades e as materialidades nelas envolvidas são consideradas co-constituintes.

Isso não é diferente em relação à orientação para a implementação dos direitos das crianças, que prevê responsabilidades e compromissos entre os diferentes atores que vivem no meio urbano, entre eles as crianças, consideradas atores do processo de transformação das cidades. No entanto, a concepção que entende o município também como um local de vida cotidiana, de relações entre as pessoas, inclusive de relações com crianças e entre as crianças, muitas vezes torna-se secundária.

A consideração das crianças como atores sociais e como autores do processo social que as envolve nem sempre tem sido problematizada no interior dessas iniciativas, uma vez que, ao se focalizar a relação da criança com a cidade, parte-se do conhecimento de uma relação ou interface que privilegia aspectos adultos ou conteúdos valorizados numa perspectiva universalizante da criança, deixando em segundo plano os usos e disponibilidades dos espaços urbanos.

As crianças, com tudo o que lhes diz respeito, com suas formas peculiares de usar o espaço das cidades, nem sempre têm voz no debate. As formas como a maioria dos estudos as retratam reafirmam a inferioridade das crianças nas relações assimétricas que historicamente vêm sendo estabelecidas entre elas e os adultos. A atualidade da participação das crianças nos assuntos que lhes dizem respeito, tal como prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção, não se traduz de forma operativa nas formulações políticas, submetidas a várias dificuldades, especialmente na aproximação do espaço urbano, quase sempre apresentado como algo perigoso e prejudicial à criança (Rosenberg e Andrade, 1999).

A presença das crianças nos espaços urbanos é problemática na construção moderna da infância. Somos tentados a naturalizar sua ausência e a nos conformar com 12 sua presença em lugares especificamente prescritos, tais como o espaço da casa familiar e da escola, configurando uma espacialidade própria à infância.

As crianças ficam de fora da questão pública e são chamadas apenas para participar na definição de detalhes de processos previamente definidos. Essa configuração se constrói com as materialidades e as sociabilidades produzidas por tecnologias de controle e por regimes disciplinares que afirmam certa verdade sobre o período em que somos crianças. Historicamente, essa maneira de lidar com as crianças teve a contribuição decisiva do florescimento das ciências sobre a infância e dos paradigmas da socialização e do desenvolvimento, como construções individualizantes, balizadas pela reprodução social e refletindo o modelo adulto vigente ou dominante como parâmetro a ser alcançado.

No entanto, não é apenas como participantes de um processo de estabelecimento de políticas públicas que a presença das crianças, como atores e autores sociais, vem sendo questionada. Os estudos sobre as crianças têm passado atualmente por uma renovação e, sobretudo no campo da sociologia e da antropologia social, várias discussões procuram encontrar nas próprias concepções de criança as formas de estudá- las. Nesse campo vêm sendo propostos novos paradigmas (Montandon, 2001; Sirota, 2001) que buscam trazer as crianças não apenas para temas em que elas tradicionalmente têm sido consideradas: como parte da família ou como parte do sistema escolar, mas também para temas atuais, tais como pobreza, trabalho e economia. Esses paradigmas buscam apreender a participação das crianças não apenas como futuros cidadãos, mas como elas são no momento atual de sua vida.

Nessa perspectiva, Berry Mayall e Leena Alanen (2001) consideram que, embora os paradigmas que vêem a infância como fase do desenvolvimento ou como objeto de socialização venham sendo questionados, ainda faltam estudos que a coloquem como uma categoria relacional:

Um dos axiomas fundantes dos estudos da infância é que a infância deve ser entendida como uma “construção” social e histórica. Há, de qualquer maneira, algo paradoxal, freqüentemente um grave “déficit” do construcionismo nas próprias propostas dos pesquisadores para estudar as crianças, nas quais a condição de ser uma criança é simplesmente assumida como um ponto de partida, sem dar atenção à complexidade dos processos materiais, sociais e discursivos e sua interação, através dos quais a infância é diariamente reproduzida como uma condição específica geracional. Afinal, nem tudo o que acontece na vida dos pequenos seres que, na linguagem cotidiana, são chamados de “crianças” acontece porque eles estão relacionados a outras categorias geracionais (como adultos). As crianças são também meninos e meninas, e sua infância também é 13

determinada pelo gênero. E o mesmo se aplica a classe, “raça” ou etnicidade: elas também são condições sociais que estruturam a vida das crianças, enquanto são também estruturadas pelas atividades destas. A problematização da geração, ou outra ordem geracional (comparável ao gênero, p. ex. Connell, 1987), está bem longe do nível de qualidade de estudos dedicados ao gênero, classe, “raça” ou etnicidade, e ainda não se esclareceu sua natureza igualmente (porém diferentemente) construída, bem como os processos materiais, sociais e discursivos de sua construção. A atitude natural (Garfinkel) ainda prevalece no estudo social da infância. 5 (tradução livre da autora; grifos nossos )

Aproximações do cotidiano como lugar

As preocupações do Estado moderno com os direitos das crianças surgem a partir de arranjos internacionais como ordens morais a serem seguidas. Em momento algum questionam as concepções universalizantes sobre a criança e tampouco a separação desta do mundo dos adultos. De forma prescritiva e restritiva, tratam de aproximar a criança dos espaços públicos ou lhe atribuem uma forma de participação na vida política. Assim, supõe-se que não são neutras com relação à organização da vida das crianças nos espaços públicos e nos espaços privados.

Spink, P. (2002) afirma que as ações de governo e as políticas públicas podem ou não ter a processualidade do cotidiano e que o diálogo, como norteador das ações, é parte importante da construção do que podemos chamar de público. Participação e cidadania podem ser processos que se apresentam reificados e assim são tomados cotidianamente nas práticas.

O sentido de lugar nas práticas psicológicas também tem foi objeto do questionamento de Spink, P. (2000), que apontou as potencialidades transformadoras das desigualdades sociais que uma abordagem a partir do lugar poderia trazer para a

5 One of the grounding axioms of Childhood Studies is that Childhood is to be understood as a social and historical “construction”. There is, however, somewhat paradoxically, often a grave “deficit” of constructionism in researcher’s own approaches to studying children, in that the condition of being a child is simply assumed as a start pointing without giving attention to the complexity of material, social and discursive processes and their interplay through which childhood is daily reproduced as a specifically generational condition. After all, not everything in the life of the little beings who in everyday parlance are called “children” follows from their being related to other generational categories (such as adults). Children are also boys and girls, so that their childhood are also gender ordered. And the same case can be argued also for class, “race” or ethnicity: these are also social conditions that structure children lives while also being structured by their activities. The problematization of generation, or the generational order (comparable to gender order; e.g. Connell, 1987), lags far behind the level of quality of work given by researchers to analyzing gender, class, “race” or ethnicity, and its equally (but differently) constructed nature and the material, social and discursive processes remain unilluminated. The natural attitude (Garfinkel) still prevails in the social study of childhood.

14 sociedade e para a disciplina. O lugar é entendido como um espaço ocupado por pessoas, relações e sentidos que são compartilhados e também apresentam uma dimensão no tempo, sempre atual. Como tal, o lugar não existe para si mesmo, assim como muitas vezes nos referimos à comunidade, que estaria lá (no seu lugar) à espera de um processo de conscientização. Para Spink, P., ao considerar o lugar, é preciso levar em conta a processualidade da vida cotidiana e as forças e resistências presentes nas ações na vida social. Esse é um campo que nos permite analisar a construção social das crianças e de seus direitos, que nos aproxima da noção das crianças como autores sociais, de modo a superar o dualismo entre indivíduo e contexto e contribuir para que o diálogo promova maior visibilidade das crianças na vida da cidade.

Na vida urbana, os lugares destinados à infância estão distribuídos de maneira heterogênea (desigual) e são constituídos ao mesmo tempo de lugares para a criança, tais como escolas, creches, parques, e de lugares de crianças. Os primeiros não apresentam grande potencial emancipador para as crianças, uma vez que estão construídos como instituições de controle. Já os lugares de criança são aqueles que se configuram como lugares de experiência, de importância para as crianças.

Para Spink, P. (2000), a Psicologia Social conceitua o lugar de forma diferente do que vem sendo feito pela maioria dos psicólogos, que tomam como ponto de partida de suas análises compromissos mais ou menos nítidos com as instituições com as quais trabalham. No entanto, o lugar não é apenas um contexto que abriga ou influencia o indivíduo. Entendido como co-constituinte da vida social, o lugar tem o potencial de inevitavelmente trazer para a discussão aspectos da vida social que muito facilmente seriam remetidos a esferas de resolução política ou burocrática. Assim, a aproximação entre lugar e vida cotidiana torna-se óbvia.

O contraponto dessa perspectiva da universalização muitas vezes traz apenas a particularização de um caso ou de uma situação que se deve procurar adequar a determinada norma ou prescrição. Em outros termos, busca-se o ajustamento da criança individual. No entanto, a vida cotidiana, considerada sem importância para a vida universalizada, a ela se opõe completamente, pois contém os vários sentidos sobre ser criança e sobre as determinações ali presentes.

Esta pesquisa visa questionar em que medida as iniciativas de organização das cidades como Amigas da Criança se aproximam do cotidiano das crianças vistas como autores sociais e são capazes de favorecer as possibilidades de encontro, de diálogo e de 15 troca com elas, uma vez que as relações entre crianças e cidades estão distribuídas de forma heterogênea (desigual) e que sua construção tende a ser universalizante. Parte-se da premissa de que essas formas organizativas da cidade também propõem formas de organização da vida das crianças nas suas várias relações com a cidade onde vivem, regulando suas possibilidades e oportunidades de contato e uso do espaço urbano. Em outros termos, a cidade se organiza e também continua a organizar a experiência de ser criança, a presença de crianças nos espaços públicos, bem como as relações entre elas e os adultos. No entanto, não podemos perder de vista que a vida cotidiana se apresenta não apenas como um espaço de singularizarão, mas também como um espaço de co- construção, de possibilidades de diálogo com diferentes saberes e conhecimentos sobre a forma de viver a vida na cidade.

Ao dirigir o nosso olhar para os lugares das ações públicas, assim como para os lugares disponíveis, criados para e usados por crianças e adultos no espaço urbano, na vida cotidiana, para os espaços privilegiados de sociabilidade na vida de crianças, podemos articular um campo que aborda as socialidades (entre elas, as posições disponíveis para as crianças) e as materialidades (Spink, P., 2003) que co-constituem esse relacionamento. Dessa forma, deixando de lado as bases universalistas da moderna concepção de criança, pode-se colaborar também para o estabelecimento de políticas públicas em bases democráticas, pois a aproximação com a criança numa área de sociabilidade tem condição de tornar visíveis algumas relações de poder e de dominação, bem como as estratégias de enfrentamento que as crianças utilizam. Desse modo, é possível produzir um conhecimento útil para ampliar o diálogo sobre a posição das crianças no espaço público.

No entanto, as escolhas sobre como abordar e pesquisar a vida das crianças nas cidades também não são neutras e exigem uma forma de conhecimento situado e parcial para evidenciar essas articulações, bem como as formas de resistência às imposições de poder e de controle que vêm atuando sobre as ações desenvolvidas nas políticas públicas voltadas para a criança.

Ao abordar as crianças, atores sociais, em seus cotidianos, adotamos uma perspectiva de epistemologia pós-construcionista que visa superar dualismos e mediações, trazendo para a arena da pesquisa a reflexividade das escolhas dos pesquisadores e a consideração dos aspectos sociais, materiais e discursivos como componentes de processos intersubjetivos que situam o processo investigativo numa 16 perspectiva ética. Nesse sentido, a consideração social e histórica do tratamento dado às crianças e à infância, a atenção para a permanência dos sentidos e a importância recíproca dos condicionantes do sistema social e das implicações do mundo infantil no sistema social norteiam os objetivos estabelecidos nesta pesquisa: (1) discutir como as políticas públicas, orientadas pelos pressupostos das iniciativas amigas da criança, trabalham com as especificidades das crianças, consideradas como a(u)tores sociais e (2) analisar as estratégias de enfrentamento utilizadas pelas crianças em relação às ações emanadas dessas políticas.

A tese que defendemos aqui é de que, por um lado, as cidades, ao se organizarem a partir de pressupostos universalistas sobre a infância, trazem para as políticas públicas uma visão adulta sobre as crianças. Por outro lado, no espaço do cotidiano das práticas, as crianças usam o espaço urbano como forma de resistência.

Estrutura da tese

A tese está organizada em sete capítulos. No capítulo 1, abordamos a infância como construção social, tomando como ponto de partida as teses de Philippe Ariès e de Michel Foucault, que falam da institucionalização da infância na modernidade e de seu controle, através da racionalidade moderna, nos diferentes espaços que passam a ser destinados às crianças. O entendimento do período em que somos crianças como uma construção social e, portanto, histórica tem sido frutífero para as ciências sociais e traz muitas contribuições, sendo especialmente crítico em relação às formas de controle assumidas na modernidade. No que diz respeito aos direitos das crianças propriamente ditos, abordamos o Estatuto da Criança e do Adolescente, pois esse dispositivo está composto por várias faces de crianças, construídas no bojo das ciências dedicadas ao estudo da infância. Especialmente no capítulo Da Prevenção , o Estatuto apresenta várias regulações sobre a presença das crianças nos espaços urbanos, vinculando-as à construção de uma relação de responsabilização delas por parte dos adultos.

O capítulo 2 apresenta algumas formas de ver as crianças no espaço público e discute a peculiaridade da criança no uso do espaço urbano, norteando-se pelas experiências pioneiras da década de 1970 de Colin Ward, Roger Hart e Kevin Lynch. Este último é autor do projeto Growing up in cities , reeditado pela Unesco a partir da Conferência HABITAT da ONU, de 1996, por ocasião do lançamento do projeto Child 17

Friendly Cities . Esse projeto tem direcionado a implantação de estratégias nas políticas públicas para a vida urbana de crianças e adolescentes em diferentes países.

O capítulo 3 aborda o tema Cidades Amigas da Criança, contextualizando essa iniciativa da ONU no Brasil. Através de levantamento no banco de dados do site dessa iniciativa, foram identificados os municípios brasileiros nela inscritos. São apresentadas também as formas pelas quais as cidades brasileiras puderam ter sua inscrição nessa iniciativa: o Prêmio Prefeito Amigo da Criança (ABRINQ), o Prêmio Municípios Amigos da Criança (CONASEMS) e o Selo UNICEF.

No capítulo 4, sobre procedimentos de coleta e análise de informações, trazemos o nosso posicionamento sobre o trabalho de campo desde uma perspectiva pós- construcionista, com o campo-tema (Spink, P., 2003). Nessa perspectiva, a presença do pesquisador é negociada em vários momentos e as oportunidades de aproximação ao assunto do campo-tema são abordadas. Usamos observações no espaço urbano como uma forma de aproximação ao cotidiano do uso. Essas observações não estavam voltadas apenas para as crianças, mas para aspectos que consideramos relacionais. No percurso de pesquisa, na cidade de Santo André, os gestores foram acompanhados nas reuniões da Redinha, uma forma peculiar de organização das políticas públicas voltadas para as crianças. Essas observações foram registradas num diário de trabalho durante todo o período em que durou a pesquisa.

Entendendo que a passagem do pesquisador pelo campo-tema não é neutra e a pesquisa é ao mesmo tempo produto e produtora de saber, trazemos para a análise o material registrado no diário e em algumas partes analisamos as proposições das políticas públicas a partir da voz de seus atores. No espaço de gestão, a Redinha, em que são discutidos casos envolvendo a rede de serviços e os agentes da proteção à criança no município, incluímos pequenas narrativas de casos nelas discutidos: fragmentos que apresentam as relações das crianças com a cidade.

Os capítulos 5 e 6 estão destinados à análise das informações obtidas. No capítulo 5 voltamos nosso olhar para o município de Santo André como Cidade Amiga das Crianças, enfatizando os espaços da política pública construídos como estratégias de ação de qualidade de vida. 18

No capítulo 6 trazemos as observações de uma ação programática, na perspectiva das relações entre adultos e crianças nesses espaços e da resistência das crianças quanto ao uso do espaço urbano nessa ação programática peculiar.

Por fim, nas conclusões finais apresentamos um apanhado do trabalho de pesquisa desenvolvido e acrescentamos nossas reflexões suscitadas durante o seu fazejamento, tendo sempre em mente que as ciências, particularmente as ciências sociais, onde se inclui a Psicologia Social, sempre será um campo aberto à continuidade e a novas reflexões.

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CAPÍTULO 1

Crianças no espaço público — a ambigüidade entre o cuidado e o controle

[...] Para dizer isso com mais veemência, podemos sugerir que as crianças nem sequer ocupam espaços designados, isto é, elas são colocadas, em berçários ou na escola, por exemplo, ou são flagradas por invadir imprópria ou precocemente o território adulto. Assim, infância é aquele status de pessoalidade que por definição está no lugar errado, como a cama dos pais, a poltrona do papai, no estabelecimento público ou até mesmo no cruzamento da rodovia congestionada. Todas as pessoas em qualquer sociedade estão sujeitas a proibições geográficas e de espaço, sejam elas definidas por discrição, por propriedade privada ou embargo político, mas a experiência da criança desses parâmetros é particularmente paradoxal, freqüentemente sem princípios e certamente irregular. (Jenks, C. 2005: 73-74; tradução livre da autora) 1

Neste capítulo, abordamos a ambigüidade que permeia as relações públicas com as crianças na modernidade, tomando como principais referências o filósofo Michel Foucault (1977) e o historiador Philippe Ariès (1973). A ambigüidade no trato com a infância é evidente mesmo nas legislações que buscam garantir seus direitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, traz um capítulo, Da prevenção , em que são regulamentadas várias relações das crianças e adolescentes no espaço público.

Só recentemente passou-se a tomar a criança como objeto de políticas públicas. Foucault (1977) e Ariès (1973) escrevem a partir da filosofia e da história, respectivamente, sobre o fato de o afastamento das crianças dos espaços públicos ser parte constituinte da própria idéia de infância construída na modernidade. De acordo com Ariès, um sentimento particularizado em relação à criança surgiu a partir do século XIII e consolidou-se no século XVIII com a mudança nas formas de vida familiar. Para

1 [...] To put it more vigorously we may suggest that children either occupy designated spaces, that is, they are placed, as in nurseries or in school, or they are conspicuous by their inappropriate or precocious invasion of adult territory. Childhood then is that status of personhood which is by definition in the wrong place, like the parental bed-room, Daddy’s chair, the public house or even crossing the busy road. All people in any society are subject to geographical and spatial prohibitions whether delineated by discretion, private possessions or political embargo, but the child’s experience of such parameters is particularly paradoxal, often unprincipled and certainly erratic.

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Foucault, por sua vez, a entrada das crianças nas formas de vida propostas pela racionalidade da era moderna foi submetida ao controle e à regulamentação.

1.1. A infância como construção social

Antes de abordar o espaço social das crianças na articulação com as políticas públicas que hoje tratam de aproximá-las de seus direitos, vamos situar a construção social da infância tomando como base o estudo de Ariès (1973). A ênfase recai sobre a questão espacial ou o lugar que a criança ocupa na cidade, o que implica considerara vida das crianças em espaços específicos, diferentes dos destinados aos adultos.

O livro de Ariès, A história social da criança e da família , tem constituído a referência básica para os estudos da infância. Embora suas teses tenham sido objeto de críticas, elas foram o ponto de partida para a reflexão sobre a maneira como as crianças vêm sendo consideradas ao longo do tempo. O historiador francês mostrou que nas sociedades tradicionais as crianças não eram objeto de afeição no seio familiar, uma vez que a família cumpria outras funções. As crianças eram protegidas no interior da ordem social vigente e recebiam um teto, tendo seus bens conservados. Era essa a forma de terem um lugar no mundo.

Entre os séculos XIV e XVII, o aprendizado direto a partir da vida social e cotidiana foi substituído pela educação na escola e, nessa mudança, a criança passou a deixar de viver misturada aos adultos. Nesse processo, segundo Ariès, começou “um longo período de enclausuramento das crianças (como o dos loucos, dos pobres e das prostitutas), que se estenderá até os nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização” (1973: 11). Nessa mesma linha, a família tornou-se um espaço de afeição entre adultos e também para com as crianças.

As possibilidades teóricas de aplicar às crianças o conceito de construção social tem sido alvo de polêmicas. Ariès afirma que, por um lado, a criança foi afastada da vida de sociabilidade e, por outro, sua realidade social tornou-se específica. Essa construção não representou um verdadeiro avanço, como uma análise mais superficial poderia levar a crer. Sem discordar de que modernização e individualização da infância podem ter significados muito próximos, Ariès argumenta que, se na Idade Média as crianças estavam misturadas aos adultos no dia-a-dia, elas passaram a ser separadas a partir da configuração de diversas materialidades e socialidades da vida cotidiana: 21 ganharam roupas próprias e os jogos, inicialmente compartilhados entre crianças e adultos, pouco a pouco adquiriram especificidades e começaram a surgir os primeiros jogos destinados exclusivamente às crianças (século XVIII).

Na sociabilidade medieval, as crianças tinham um lugar que lhes era reservado pelo uso e estavam no espaço público pela mesma razão que todos os outros: esse papel exigia a presença delas nas festas, cerimônias e reuniões familiares, algo bastante próximo do que poderíamos chamar de um coletivo que mobilizava todo o grupo social. Entre os séculos XVII e XVIII, teriam surgido prescrições e regras estabelecendo o que deveria ser apropriado à criança do ponto de vista moral, de educação e de regulamentação das relações com adultos. Ariès problematiza essa particularização, lembrando que a criança ganhou mais espaço no interior da família, mas também passou a ser objeto de maior quantidade de medidas disciplinares.

Paralelamente ao fortalecimento dos vínculos entre família e criança, uma parte importante da sociabilidade foi sacrificada, uma vez que, nas sociedades modernas, esse afastamento, inicialmente restrito às classes mais abastadas e de pouca influência sobre as outras classes até o século XVII, generalizou-se. Como afirma Ariès: “A partir do século XVIII, ele estendeu-se a todas as camadas e impôs-se, tiranicamente, às consciências. [...] o sentimento de família e de sociabilidade não eram mais compatíveis” (1973: 273-274). A promoção moderna da infância, com sua individualização e particularização, teria correspondido ao isolamento das crianças da vida coletiva. Desse modo, a criança deixava de ser a “companheira natural do adulto” (1973: 276).

Além de terem sido alijadas dos espaços de sociabilidade, as crianças passaram a ser ainda mais diferenciadas dos adultos. Segundo Ariès, o afastamento das crianças da vida social, tal qual vivenciado hoje, deve ser entendido, no conjunto das modificações ocorridas no tempo que se estende do século XV ao século XVIII, como produto de um longo processo que também engendrou outros afastamentos. Essa lenta separação produziu a diferenciação entre adultos e crianças, que foi tomando as mais diferentes formas sociais. Embora esse processo, por si só, não nos permita compreender os relacionamentos das crianças com o mundo tal como o vemos na atualidade, ele pode ser visto como um acontecimento histórico que abriu caminho para uma série de formulações no campo da infância. Mais do que isso, ele nos leva ao questionamento fundamental de que essa diferenciação entre adultos e crianças não pertence à ordem 22 natural das coisas. As crianças não são apenas diferentes dos adultos; nós também construímos diferenças entre elas.

Já foi um privilégio dos ricos, dos nobres e dos santos ter sua individualidade comentada, descrita, documentada e relatada para a posteridade em imagem e texto. Mas durante o século XIX o olhar individualizante chegou àqueles que estavam no outro extremo das relações de poder – os criminosos, as meretrizes, os pobres, os deficientes seriam alvo de muitos projetos laboriosos e criativos destinados a documentar sua singularidade, registrá-la e esclarecê-la de modo a disciplinar sua diferença. As crianças tornaram-se objetos preferenciais e alvos desses programas. Psicólogos reivindicaram uma perícia especial na disciplinarização das singularidades e idiossincrasias da infância, individualizando as crianças por meio de categorizações para então calibrar suas aptidões, inscrevendo suas particularidades de forma ordenada, gerenciando sua variabilidade conceitualmente e governando-a na prática. (Rose, N. apud Prout, 2005: p. 6) 2

Particularmente influenciado pela perspectiva histórica sobre a infância introduzida por Ariès, um movimento no interior da sociologia na década de 1970 levou à criação da disciplina sociologia da infância, que entendia as relações entre infância e sociologia não mais como um estudo sobre socialização e internalização das normas sociais e culturais, mas como uma possibilidade crítica de reflexão sobre esse grupo etário, sua construção social e as conseqüentes formas de abordagem metodológica no campo da sociologia. O paradigma inicial traçado nesses estudos foi sucintamente apresentado por James e Prout (1990: 8-9):

1. A infância é compreendida como uma construção social. Desse modo, ela fornece um quadro interpretativo que permite contextualizar os primeiros anos da vida humana. A infância, vista como fenômeno diferente da imaturidade biológica, não é mais um elemento natural ou universal dos grupos humanos, mas aparece como um componente específico tanto estrutural como cultural de um grande número de sociedades.

2 It was once the privilege of the wealthy, the noble and the holy to have their individuality remarked upon, described, documented and reported for posterity in image and text. But during the nineteenth century the individualizing gaze alighted upon those at the other end of power relations – the criminal, the madam, the pauper, the defective were to be the target of many laborious and ingenious projects to document their uniqueness, to record it and classify it, to discipline their difference. Children were to become favoured objects and targets of such programs of individualization. Psychologists were to claim a particular expertise in the disciplining of the uniqueness and idiosyncrasies of childhood, individualizing children by categorizing them, calibrating their aptitudes, inscribing their peculiarities in an ordered form, managing their variability conceptually and governing it practically.

23

2. A infância é uma variável da análise social. Desta forma, não pode ser inteiramente separada de outras variáveis como gênero, classe e etnicidade. Ao contrário, as análises comparativas e transculturais revelam a variedade de infâncias e não um fenômeno único e universal.

3. As relações sociais e culturais das crianças merecem um estudo à parte, independente das perspectivas e preocupações dos adultos.

4. As crianças são e devem ser vistas como ativas na construção e determinação de suas próprias vidas, da vida daqueles que estão em volta delas e da sociedade na qual vivem. As crianças não são apenas sujeitos passivos das estruturas e processos.

5. A etnografia é uma metodologia particularmente útil para o estudo da infância. Ela confere às crianças uma participação e voz mais direta na produção de dados sociológicos do que comumente é possível nos estilos de pesquisa experimental e de levantamento.

6. A infância é um fenômeno no qual a dupla hermenêutica das ciências sociais está intensamente presente (Giddens, 1976). Isso significa que proclamar um novo paradigma da sociologia da infância é também engajar-se no processo de reconstrução da infância na sociedade e responder a ele.(James & Prout, 1990:8-9) 3

Uma grande variedade de estudos surgiu mostrando as várias possibilidades de estudo do tema em diferentes disciplinas. James, Jenks & Prout (1998:207) passaram a

3 1. Childhood is understood as a social construction. As such it provides an interpretative frame for contextualizing the early years of human life. Childhood, as distinct from biological immaturity, is neither a universal feature from human groups but appears as a specific structural and cultural component of many societies. 2. Childhood is a variable of social analysis. It can’t be entirely divorced of others social variables such as class, gender or ethnicity. Comparative and cross-cultural analysis reveals a variety of childhoods instead rather than a single and universal phenomenon. 3. Children socials relationships and cultures are worthy of study in their on right, independent of perspectives and concerns of adults. 4. Children are and must be seen as active in the construction and determination of their own social lives, the lives around them and the society in which they live. Children are not just the passives subjects of structures e processes. 5. Ethnograpy is particularly useful methodology for the study of childhood. It allows children a more direct voice and participation in the production of sociological data than usually possible through experimental and survey styles of research. 6. Childhood is a phenomenon in which the double hermeneutic of social sciences is acutely present (see Giddens, 1976). That is to say to proclaim a new paradigm of sociology of childhood is also to engage in and respond to the process of reconstructing childhood in society.

24 falar de “Estudos Sociais da Infância”. O paradigma que orienta essa nova nomenclatura é a compreensão da criança como o que ela é:

A criança é concebida como uma pessoa, um status , um curso de ação, um conjunto de necessidades, direitos ou diferenças – em suma, como um ator social [...] esse novo fenômeno, o “ser”criança, pode ser entendido por conta própria. Não deve ser abordado como suposta falta de competência, razão ou importância.(James; Jenks:Prout, 1998 : 207, tradução livre da autora) 4

Halloway & Valentine (2000), discutindo as possibilidades das novas abordagens, falam de um interesse crescente, na geografia, pelas crianças como atores sociais e, paralelamente, do interesse pela espacialidade da infância, emergente na sociologia. Nessas áreas, tem sido particularmente fecunda a noção de lugar como um conceito que supera a cisão entre as abordagens global e local da infância. Elas discutem que as crianças são constituídas nos, e através de, espaços particulares, e propõem que as formas como os adultos compreendem a infância podem dar sentido a espaços e lugares.

As formas de estudar a infância passaram a ser questionadas sobretudo no que diz respeito às dualidades sobre as quais os estudos sobre a infância estavam fundamentadas. Prout (2005: 10) cita algumas dessas oposições: infância e vida adulta; público e privado; natureza e cultura; racional e irracional; dependente e independente; ativo e passivo; competente e incompetente; brincar e trabalhar.

1.2. A infância como foco do poder disciplinar

Em seu livro Vigiar e punir (1977), Michel Foucault não demonstra nenhuma condescendência para com as supostas melhorias da modernidade. Embora não aborde diretamente o tema das crianças, ele as situa entre os que precisam constantemente ser alvo das estratégias de individualização do controle e do poder disciplinar que substituiu as antigas formas de punição dos criminosos. Nesse livro, ele descreve o que seria uma anatomia do poder nas sociedades ocidentais. Sugere que teria ocorrido uma pausa no século XVII, quando o espaço simbólico ocupado pela disciplina se desloca da arena

4 The child is conceived of as a person, a status, a course of action, a set of needs, rights or differences – in sum, as a social actor [...] this new phenomenon, the “being” a child, can be understood in its own right. It does not have to be approached from an assumed shortfall of competence, reason or significance.

25 pública para a arena privada. O autor apresenta duas imagens da disciplina que refletem dois modos de controle, o hospital e a escola, que são, por sua vez, duas formas de integração social, pois são um reflexo da própria disciplina nos espaços da cultura.

Foucault inicia seu livro com a descrição de um suplício de um suspeito de atentar contra a vida de Luís XV. A punição é completamente pública e demonstrável, característica da antiga ordem medieval. Observa-se, daí até o século XX, um deslocamento importante da ênfase na punição para o processo judicial e para a sentença nos aparelhos do Estado, como se um processo racional discreto tivesse suplantado o excessivo simbolismo. Esse deslocamente é um claro indicador de modernidade. As relações entre as pessoas e entre estas e o Estado passam a ser marcadas por uma preocupação racionalista humanitária.

Para Jenks (2005), há nesse deslocamento mais do que uma simples mudança de atitude. Na modernidade, a convenção disciplinar da violência física contra o corpo transformou-se numa correção intrusiva e treinada da psique. Nos regimes do cuidado infantil, pedagogia e psicologia da educação, por sua vez, a transição do espaço exterior ao interior concretiza-se em algo que Nicholas Rose chamará de governing the soul.

A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta repentina, e sim como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns nos outros, distinguem-se segundo seu campo, entram em convergência e pouco a pouco esboçam a fachada de um método geral de aplicação (Foucault, 1978: 127).

As condições espaciais são relevantes para a construção social da infância, pois se configuram como práticas sociais e culturais em que as relações de poder são estabelecidas entre os diferentes atores que as compõem. Foucault não identifica um sujeito ou um objeto de poder; entende-o como relacional.

No entanto, a consideração do espaço nessa dinâmica, segundo o autor, nos mostra que as pessoas são localizadas; sempre há a necessidade de uma “cerca”, um “fechamento”. A clausura da atividade que nele é exercida é também subordinada à lógica do melhor controle sobre o que ali deve ser feito: Cada indivíduo num lugar, cada lugar um indivíduo, até que eles se confundam. “Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza o espaço analítico” (Foucault, 1978: 131) e, 26 com isso, visa tirar proveito de espaços antes livres e disponíveis para vários usos. O cercamento do espaço e nele a localização do indivíduo permitem o controle e o uso da atividade nele exercida para os fins institucionais. Esse domínio tem como finalidade fazer chegar aos indivíduos, que são colocados separadamente, isolados, ou de forma combinada, as regulações do poder. De forma precisa, isto é, controlável, os indivíduos são regulados através do espaço. Pessoas e unidades do espaço tornam-se sinônimos.

O modelo inicial desse ordenamento espacial é o de um monastério. Cada monge tem sua cela. A partir desse compromisso com a instituição religiosa que se torna mais diversificado, atendendo a hospitais, fábricas e, em relação à infância, especialmente às práticas educacionais, vai-se definir um modo de ser criança:

A colocação das crianças em salas de aula para permitir que a comunicação geral de um professor alcance todas elas foi um movimento para a criação de uma maquinaria educacional, facilitada pelas tecnologias emergentes do quadro-negro, quadro-branco, retroprojetor, vídeo e assim por diante. As crianças podem ser colocadas em filas, as classes podem ser divididas em grupos de alunos, especializados em atividades, os indivíduos podem ser colocados no canto de leitura, forçados a permanecer no canto simbólico do isolamento e da fiscalização pública, chamados a ficar de pé ao lado da mesa do professor ou a ir à lousa, e todos podem ser removidos, isto é, enviados para exercício no playground . Nada disso fala da experiência da criança como um “espaço neutro”. (Jenks, 2005: 80; tradução livre da autora) 5

A forma moderna de controle descrita por Foucault é exercida através de regimes de disciplina. O poder não é exagerado na aparência, nem tampouco triunfante, mas é exercido por meio da observação hierárquica, do julgamento normalizador, e da combinação de ambos durante o exame.

Porém, para o autor, o poder vai além: desloca-se ainda mais das formas autoritárias e repressivas, pois atua com a forma de relações a que as pessoas estão submetidas e as pessoas não existem fora de relações. Para Foucault, o poder não é uma entidade separada da vida cotidiana das pessoas e só existe quando é exercido entre as pessoas e os grupos sociais. Nesse sentido, não é uma posse ou uma delegação a grupos

5 The placing of children in classrooms to enable the general communication of one teacher to reach all was a move towards the development of an educational machine, further facilitated by the emerging technologies of the blackboard, whiteboard, overhead projector, VDU and so on. Children can be placed in rows, classes can be broken into tables or groups specialized into activities, individuals can be put in the “reading corner” made to stand in the symbolic corner of isolation and public scrutiny, required to stand by the teacher table or to came out to the front and everyone can be evacuated, that is, send out to exercise in the playground. None of this speaks of child’s experience of a” neutral space”. 27 ou instituições. Em outras palavras, não se trata de vê-lo como uma força unidirecional, mas como uma relação ou rede de relações: o poder opera em diversos níveis, entre todos os níveis, e entre todas as pessoas na sociedade.

De acordo com Foucault, a ação do poder, em todas as relações, não é nem um ato de consenso nem o efeito da violência, mas um modo de ação que serve para estruturar as possibilidades de ação dos outros. É algo que todos exercem.

O poder pastoral é um poder que orienta sua ação ao redor do Estado. Está orientado tanto para o indivíduo como para a comunidade e estrutura-se no conhecimento esmiuçado do indivíduo, no seu interior e exterior. Exemplo dessa forma de poder é a consideração do indivíduo como sujeito e como objeto das ciências psicológicas e psiquiátricas, e, no que concerne às crianças, a capacidade de ambas as disciplinas de prescreverem sobre o desenvolvimento e a inteligência das crianças.

O resultado das técnicas de poder é, de acordo com Foucault, a “subjetificação” do indivíduo: cada indivíduo é categorizado e identificado – como crianças, por exemplo – e, por meio desse processo, é definido e entendido. Ser criança é ser certas coisas, ter certas necessidades, e ser diferente de outros grupos de pessoas. E não apenas os outros atores sociais que não são crianças a vêem desse modo. O mais importante é que a própria criança se vê assim. Ser criança é ser um objeto de conhecimento, mas é também internalizar esse conhecimento. O poder é experimentado não simplesmente como uma força negativa, mas também como um produção positiva do próprio indivíduo.

Foucault utiliza a metáfora e a realidade do pan-óptico para ilustrar como se passou da experiência externa de vergonha e degradação para um sentimento privado e profundo de culpa.

Daí o efeito mais importante do Pan-óptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder [...] o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo. (Foucault, 1978: 178)

Para Jenks (2005), na modernidade a criança se transforma em seu próprio policial e aprende o “seu lugar”. Uma diversidade de profissionais e aparatos estão aí para apoiar essa introspecção: psicólogos educacionais, testagens psicométricas, 28 aconselhamento escolar, oficiais do bem-estar na escola, associações de pais e mestres, assistentes sociais e visitadores domiciliares, todos conspirando para o próprio bem da criança.

A família moderna rompeu com aquilo que fazia a riqueza da sociedade medieval: "as pessoas viviam num estado de contraste; o nascimento nobre ou a fortuna andavam lado a lado com a miséria, o vício com a virtude, o escândalo com a devoção” (Ariès, 1973: 279). Em algum momento, as classes abastadas retiraram-se “da vasta sociedade polimorfa para se organizar à parte, num meio homogêneo, entre suas famílias fechadas, em habitações previstas para a intimidade, em bairros novos, protegidos de qualquer contaminação popular” (id., ibid.).

Por outro lado, nesses espaços, as crianças também estariam submetidas a novas formas de sujeição de sua sociabilidade, de disciplina e de contato com tecnologias de controle que estariam produzindo certa verdade sobre a vida social. Tais tecnologias permitiam a constituição do self . Com suas normalizações e técnicas disciplinares da separação e da visualização das diferenças, a psicologia acaba realizando algo semelhante ao que Ariès aponta sobre os jogos e as criações das primeiras peças de vestuário, materialidades que geram expectativas normatizantes e universalizantes para as crianças e para o modo como elas devem ser tratadas. Essas psicologias acompanharam de forma dominante a construção de uma infância individualizada e universal.

As características do espaço destinado à infância nas sociedades modernas revelam que a criança deve, ao mesmo tempo, ter autonomia e estar controlada dos perigos exteriores. As decisões que colocam a criança no centro das preocupações com as políticas públicas na modernidade tardia enfatizam que o controle deve capturar o interior, ao invés de limitar o exterior (Prout,2005: 56).

Jenks (1996) cita Nicholas Rose:

A infância é o setor da existência pessoal mais intensamente governado. De diferentes maneiras, em diferentes tempos e por muitos caminhos diferentes, variando de um setor da sociedade a outro, a saúde, o bem-estar e a criação das crianças têm sido ligados, no pensamento e na prática, ao destino da nação e às responsabilidades do Estado. A criança moderna tornou-se o foco de inumeráveis projetos que se propõem salvaguardá-la do perigo moral e sexual para garantir o seu “desenvolvimento”, para promover ativamente certas 29

capacidades e atributos, tais como inteligência, educabilidade e estabilidade emocional. (Rose, 1989: 121, apud Jenks, 1996: 68; tradução livre da autora) 6

1.3. A criança como sujeito de direitos: o Estatuto da Criança e do Adolescente

As políticas públicas voltadas para a infância e a adolescência têm atualmente como orientação básica a garantia dos direitos humanos fundamentais nessas fases da vida. No Brasil, o referencial principal para as ações desenvolvidas nesse âmbito é o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Federal 8.609/90) – a assinatura e a ratificação nacional da Convenção Internacional dos Direitos da criança da ONU, de 1989.

Esse estatuto está dividido em três partes: na primeira, são apresentadas as disposições preliminares e os direitos fundamentais de crianças e adolescentes; a segunda contém as orientações para a política de atendimento; e a terceira relaciona as multas e penalidades a serem aplicadas nos casos de violação de tais disposições e direitos.

Os dispositivos de implementação desse Estatuto nos municípios – tais como os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Direitos, os Conselhos Tutelares e as formas de participação popular – têm sido valorizados como estratégias de avaliação e premiação das ações por organismos internacionais e por diferentes iniciativas nacionais.

Os direitos das crianças e adolescentes estão descritos em formulações que os ligam ao estabelecimento e ao funcionamento das ações implementadas nas diferentes políticas públicas, tais como Saúde, Educação, Assistência Social, entre outras. Ali se apresentam diferentes concepções de crianças, como se vários rostos de crianças estivessem presentes. Porém, em sua maioria essas concepções partem do pressuposto de que as crianças se desenvolvem, estão ligadas à vida social por um laço de responsabilização por parte de adultos que geralmente são seus pais. São crianças que têm direitos, a serem usufruídos mediante a efetivação de políticas públicas, com

6 Childhood is the most intensively governed sector of personal existence. In different ways, at different times and by many different routes varying from one section of society to another, the health, welfare, and rearing of children have been linked in thought and practice to the destiny of the nation and the responsibilities of the state. The modern child has became the focus of innumerable projects that purport to safeguard it from physical, sexual, and moral danger, to ensure its “normal” development, to actively promote certain capacities of attributes such as intelligence, educability and emotional stability. 30 absoluta prioridade. A apresentação da criança que tem direitos no Estatuto da Criança e do Adolescente é formada por vários rostos de criança e está equacionada em desenvolvimento, responsabilização e direitos mediante políticas públicas (Bertuol, 2003).

No entanto, as relações com as crianças e seus direitos não se restringem a um simples arranjo em que são especificados novos agentes e novas formas de proteção: um capítulo especial do Estatuto descreve as formas de prevenir a violação dos direitos. Nele são definidos claramente os espaços públicos dos quais as crianças estão excluídas, bem como a forma como devem ser incluídas em outros. Apresenta-se uma listagem de idades, com as correspondentes possibilidades e prescrições para as relações a serem estabelecidas com as crianças, como as pessoas adultas devem se conduzir com relação à presença de crianças e adolescentes em lugares públicos – tais como espetáculos e eventos, cinemas, bancas de jornal –, bem como nos espaços construídos por adultos, especialmente para elas.

Nesse capítulo da lei apresenta-se, de modo articulado, o que é próprio e impróprio para a criança, especificamente nos espaços públicos. Diríamos que ali também se fala do espaço urbano como um lugar a ser regulado para as crianças. É dever de todos prevenir a violação dos direitos da criança. Toda a sociedade é envolvida diretamente com atitudes que explicitam essas categorias.

Trata-se das formas pelas quais as pessoas adultas devem se conduzir com respeito aos espetáculos e aos materiais de circulação pública com as restrições de acesso para as crianças.

A prevenção, definida como um dever de todos, é descrita especialmente para os espaços públicos de circulação nas cidades. Estabelece uma responsabilidade para os que lidam diretamente com os materiais impressos e com a circulação das pessoas, viagens, permanências em hotéis, compra, venda e aluguel de revistas ou fitas de vídeo, por exemplo. As pessoas envolvidas são pessoas físicas ou jurídicas e são responsabilizadas. Essa é uma forma típica do funcionamento do ECA: estabelecer padrões relacionais individuais para com a criança.

Os espetáculos públicos, o acesso a fitas de vídeo, jogos de bilhar, apostas e congêneres são regulados para a presença de crianças. Vão desde a proibição, como no caso das apostas, até a advertência de impropriedade, como o caso das fitas de vídeo, e a 31 capa plástica opaca para as revistas pornográficas. Nomeiam-se os responsáveis por essa regulação: os diretores, gerentes e funcionários das empresas.

As crianças menores de 10 anos, desacompanhadas dos pais, não podem freqüentar lugares públicos de espetáculos, mesmo que apropriados para a sua idade. Indica-se assim uma idade em que é possível andar sozinho pela cidade, estar num lugar público 7.

A programação da televisão deve seguir um horário destinado ao público infanto-juvenil para a transmissão de programas educativos, artísticos, culturais e informativos. Todas essas questões revelam o controle sobre a experiência das crianças e, ao mesmo tempo, buscam impor uma cultura própria à infância. Na lei, não se apresentam meios-termos; as crianças estão separadas do mundo dos adultos, vivem um tempo de espera, como comprova, por exemplo, a impossibilidade de irem sozinhas a um espetáculo programado para a sua idade.

A criança não pode se hospedar sozinha em um hotel. O ECA também diz que ela tem direito de pedir socorro. É estranho pensar o ato de pedir ajuda como um direito . Será que a criança ameaçada por algum perigo não poderia simplesmente afastar-se do local ou fugir? Por que ela deve pedir socorro ?

A criança não pode viajar desacompanhada, precisa da autorização dos pais e do juiz e não pode sair do país em companhia de estrangeiro sem autorização do juiz.

1.4. Resistência: a resposta possível aos poderes

Resistência é uma resposta ao poder. 8

A resistência é uma forma de desafiar e negociar as relações de poder que podem torná-lo indeterminado. É uma prática na vida social; não é uma prática anti- social ou excepcional. Mas, da mesma forma que o poder, a resistência é relacional e ocorre dentro das redes de relações sociais que são produtoras das interações. As relações de poder envolvem diferentes tipos de sociabilidade e a resistência deve ser

7 “Art. 75. Toda criança ou adolescente terá acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária. Parágrafo Único. As crianças menores de 10 anos somente poderão ingressar e permanecer nos locais de apresentação ou exibição quando acompanhadas dos pais ou responsável” (grifos nossos)”. 8 Resistance is a response to power (Vinthagen, & Lilja, 2006: 1). 32 pensada como prática que não está dissociada delas e pode questionar uma sem questionar a outra. Para Vinthagen & Lilja (2006), a resistência não deve ser confundida com poder e as freqüentes confusões se devem ao reduzido número de estudos sobre o tema. São as possibilidades de entendê-la apenas dentro de formas organizadas da vida social que a tem definido como não produtiva ou produzindo apenas oposição. Para as autoras, pode- se entender a resistência nos mesmos termos que outras práticas sociais, mais complexas, produtivas e parte da vida cotidiana:

James Scott (1990) 9 mostrou como a resistência raramente aparece como a esperada erupção violenta nas ruas, mas sim como “transcrições ocultas” e “resistência cotidiana” atrás do discurso público e de uma cena aberta, mascarada como ironia, roubo, blasfêmia, lentidão no trabalho ou bancando o tolo. As formas ocultas de resistência são especialmente cruciais quando as necessidades básicas das pessoas que resistem dependem do regime ao qual resistem, por exemplo, pacientes de hospital, prisioneiros, crianças , soldados ou operários de fábricas. São aqueles que podem se dar ao luxo de perder em confrontos abertos e ousar em desafios públicos. A resistência silenciosa e velada não é uma confrontação organizada ou explícita, mas uma que evita a criação de consciência sobre o que está sendo desafiado e ainda pode de fato solapar as relações de poder. Como “resistência nômade”, evita o controle e o poder do olhar científico do poder e é até mesmo resistente a sua identificação. Assim, a resistência também cria contradiscursos. Embora dispersa, aleatória e individualizada, a resistência cotidiana pode ser entendida como um material de construção numa cultura emergente de resistência que poderá então alimentar confrontos abertos ocasionais. 10 (Vinthagen, & Lilja, 2006: 3; tradução livre da autora, grifos nossos)

As crianças ocupam essa posição peculiar quando pensamos sobre suas formas de resistência. Resistência é sempre sobre poder. Neste estudo, em que relacionamos políticas públicas e crianças no contexto das Cidades Amigas da Criança, escolhemos observar as crianças e suas relações com a cidade numa área onde tradicionalmente as

9 Scott, J. Domination and the arts of resistance: Hidden transcripts . New Heaven: Yale University Press, 1990. 251 p. 10 James Scott has shown how resistance rarely appears as the expected violent eruption on urban streets but rather as “hidden transcripts” and “every day resistance” behind the public discourse and open scene, masked as irony, theft, slander, slow-downs in the workplace or playing dumb. Hidden forms of resistance are especially crucial when resisters basic needs and security depends on the regime they resist, for example, for hospital patients, prisoners, children, soldiers or factory workers. It is those who can afford to lose who wage open battles and dare public challenge. The silent and veiled resistance is not a formally organized or explicit confrontation but one that avoids creating awareness of ongoing challenge yet de facto might undetermined power relations. As “nomadic resistance” it avoids control and the scientific gaze of power and it is resistant even to identification. As such, resistance also creates counter discourses. Yet scattered, random, and individualized everyday resistance maybe understood as building material in an emergent resistance culture which then might feed occasional open confrontations.

33 crianças têm maior liberdade, num território considerado mais autônomo para elas que a vida institucionalizada: a brincadeira. Estudioso do brincar e apoiado na teorização de Scott (1990) sobre a resistência, Sutton-Smith (1997) lembra-nos que, na situação de brincadeira, vivemos um momento particularmente ambíguo. O brincar envolve as sete caracterizações da ambigüidade:

1. A ambigüidade da referência (isso foi um som falso de revólver ou você está atirando?); 2; A ambigüidade do referente (isso é um objeto ou um brinquedo?); 3. A ambigüidade da intenção (você quis dizer isso ou isso é fingido?); 4. A ambigüidade de significado (isso é sério ou isso é ridículo?); 5. A ambigüidade da transição (você disse que nós estávamos só brincando...); 6. A ambigüidade da contradição (um homem brincando de ser mulher); 7. A ambigüidade de sentido (isso é uma brincadeira ou uma luta?). (Sutton- Smith,1997: 2; tradução livre da autora) 11

Para as crianças, nas relações de poder com os adultos, o brincar tem potência de resistência, pois traz uma possibilidade de expressão que elas dominam com maestria e que convive com as formas hegemônicas de entender o brincar nas ciências que lidam com as crianças. Para o autor, elas também devem lidar com as “transcrições ocultas” 12 e também buscam expressar suas formas de resistência nas ações e nos momentos em que podem. E, embora nós tenhamos uma idéia sobre o que é brincar, ao tentar descrever esse ato, explicar suas funções ou mesmo identificar as pessoas que estão brincando, sua ambigüidade se manifesta: brincar não é o que aparenta ser, tem e não tem uma função. Essa não é válida apenas para as crianças. O autor lembra que as crianças estão longe de produzir, nas suas resistências, as mesmas produções que os adultos, pois têm que lidar cotidianamente com a “transcrição pública dos adultos de que elas não têm capacidade de se organizar” (Sutton- Smith,1997: 126). Isso é patente, por exemplo, quando os pais ficam desapontados com a adesão contagiante que as crianças têm a produtos e a modelos vendidos pela mídia,

11 1. The ambiguity of reference (is that a pretend gun sound or are you shocking?); 2. The ambiguity of referent (is that an object or a toy?); 3. The ambiguity of intent (do you mean it or is it pretend?); 4. The ambiguity of sense (is this serious, or is it nonsense?); 5. The ambiguity of transition (you said we were only playing...); 6. The ambiguity of contradiction (a man playing at been a woman); 7. The ambiguity of meaning (is it play or play fighting?)

12 Hidden transcripts, no original. 34 pela televisão. Por outro lado, o script produzido pela psicologia mostra como as crianças podem se transformar naquilo que seus pais lhes ensinam, dentro das paredes de casa. E, na sociologia, até recentemente trabalhava-se apenas com a perspectiva da socialização, daquilo que a criança viria a ser. Na atualidade, nos estudos sociais da infância é clara a preocupação em investigar como as crianças se tornam o que são, por elas mesmas, na sua interação com outras crianças e vendo-as como grupo social que se organiza também entre outras formas, como construções hierárquicas e de poder. As crianças e seu brincar têm, como vimos anteriormente, dimensões históricas de sua construção. Sutton-Smith nos lembra que, com a Revolução Industrial, as crianças foram gradualmente separadas do mundo do trabalho, em que elas atuavam como pequenos adultos, e ganharam cada vez mais as marcas de um grupo social distinto e subordinado. As crianças participavam ativamente de movimentos sociais, de protestos e de desordens, mas, com a escolarização obrigatória foram “encarceradas” (Sutton-Smith, 1997: 121). A aquisição de roupas e brinquedos próprios, no século XVIII, é um indício dessa mudança de status . Ao ficarem livres do trabalho, depois da Revolução Industrial, as crianças desenvolveram também outros interesses, relacionados ao lazer e aos esportes, que as tornaram semelhantes às crianças tais como as conhecemos na atualidade.

O caráter oculto das transcrições das crianças é indicado por evidências tais como os clubes secretos, as atividades proibidas como roubar, vandalismo, apostas, beber e espiar prostitutas. Na segunda metade desse século (XX), com o aumento das tentativas dos adultos de “domesticar” as crianças com a introdução dos playgrounds e dos equipamentos de playgrounds , dos esportes organizados, dos pátios fechados nas escolas, dos clubes organizados (escoteiros), da recreação (ballet e ginástica) e da supervisão do brincar, as agendas ocultas das crianças tornaram-se crescentemente indiferentes, como a categoria das brincadeiras em ônibus, na cantina, de passar bilhetes por sob a carteira, as risadinhas, os rabiscos, músicas e rimas satíricas, brincadeiras de banheiro, imitação de lutas e “brincadeiras ilícitas na escola” 13 (Sutton-Smith, 1997: 121, tradução livre da autora)

13 The hidden character of children transcripts is indicated by such evidence as secrets clubhouses and forbidden activities such as stealing, vandalism, gambling, drinking and watching prostitutes. In the second half of this century, with increasing attempts by adults to “domesticate” children through the introduction of play grounds and playground equipment, organized sports, fenced-in school yards, organized clubs (Scouts), recreation (dancing and gymnastics), and supervision play, the children hidden agendas in the have become increasingly supine, as the category of bus play, cafeteria play, under-the- desk-play, note passing, giggling, doodling, satirical songs and rhymes, toilet play, mock fighting, and “illicit school play”.

35

A separação entre crianças e adultos na vida social carrega também uma retórica que orienta relações de poder também nas brincadeiras das crianças e, embora não seja nosso objetivo aprofundar essa retórica, entendemos que vale a pena citar novamente o autor, a respeito do conflito de gerações. Para ele, na sociedade ocidental, é evidente que as crianças e os adultos disputam sobre como deve ser o mundo.

A transcrição pública dos adultos é fazer as crianças progredirem, a transcrição privada dos adultos é negar os impulsos sexuais e agressivos delas; a transcrição pública das crianças é serem bem-sucedidas como membros da família e como alunos e sua transcrição oculta ou privada é sua vida de brincadeiras, na qual elas podem expressar ambos, sua identidade especial como criança e seu ressentimento de ser uma população cativa. (Sutton- Smith,1997: 123, tradução livre da autora) 14

Nessa –queda-de-braço de sentido sobre o que é ser criança, evidentemente as crianças estão em desvantagem. Mas nem por isso elas devem ser consideradas vulneráveis. A arena do brincar é social e as crianças entendem e fazem suas formas de resistência nas suas relações com seus pares, irmãos, amigos, colegas de escola, crianças maiores e menores, membros de times, e outros. Essas formas também irão variar conforme o lugar em que elas estejam, bem como as possibilidades de negociação pessoal nesses espaços. Assim, Sutton-Smith nos diz que muito do que as crianças fazem em casa, tal como assistir televisão ou jogar videogame , traz informações e proporciona as habilidades de que elas vão precisar para brincar junto ao seu grupo. Nesses espaços, saberão o que brincar, o que é esperado ou não que brinquem. Nem de longe a experiência de ser criança é simples; nem de longe é universal, mas construída cotidianamente em diferentes relações. No capítulo seguinte, abordamos as relações das crianças com as cidades, entendidas como um lugar, e apresentamos três perspectivas de planejadores urbanos. Dessa forma, pretendemos discutir as possibilidades de as crianças serem levadas em consideração nas políticas de planejamento da cidade.

14 The adult public transcript is to make children progress, the adult private transcript is to deny their sexual and aggressive impulses; the child public transcript is to be successful as family members and school children and their private or hidden transcript is their play life, in which they can express both their special identity and their resentment at being a captive population.

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CAPÍTULO 2

A presença das crianças no espaço público: a cidade como lugar

Na década de 1990, passou-se a questionar as políticas governamentais em relação às possibilidades de inclusão/exclusão das pessoas do espaço público. Quando as agendas internacionais, tais como a AGENDA 21 e a HABITAT trouxeram para o centro das políticas ambientais e de desenvolvimento a consideração de que os lugares bons para todos viverem são aqueles em que as crianças podem viver bem, esses questionamentos foram retomados, reavaliaram-se os métodos de pesquisas e as relações entre as crianças e as cidades deixaram de se restringir ao campo interdisciplinar do planejamento urbano para ganhar o exercício da cidadania e as crianças passaram a ser vistas como atores sociais.

A aproximação entre as relações das crianças com as cidades e o campo dos direitos da criança e do adolescente trouxe um aumento significativo de discussões e estudos nos meios acadêmicos. Produziram-se muitos estudos sobre essa relação, considerando o ambiente e a sustentabilidade, especialmente após a Conferência HABITAT realizada em Istambul em 1996. No entanto, as intersecções entre as crianças e as cidades de modo algum constituem um tema novo para os meios acadêmicos, pois vêm sendo discutidas, especialmente por arquitetos urbanistas, desde as décadas de 1960 e 1970 e estão presentes nas preocupações de importantes psicólogos sociais como Kurt Lewin nas primeiras orientações para uma abordagem de psicologia ecológica e na corrente do interacionismo simbólico.

As intersecções entre as crianças e as cidades têm como uma de suas características a heterogeneidade de propostas de estudos. No final da década de 1970, vários autores, entre eles Hart (1979), Ward, (1978) e Lynch (1976), desenvolveram abordagens originais e valiosas no campo do planejamento das cidades e contribuíram para o reaparecimento da criança na cena urbana. Na época já estavam presentes, como podemos observar naqueles trabalhos, as preocupações com o público e o político – com as boas condições de vida, de habitar e de viver a infância, enfim, com temas relevantes para a vida coletiva e para a vida das crianças. Embora não incluíssem a construção de um tipo especial de criança – que tem direitos –, voltando-se mais para a construção de 37 cidades que estivessem em sintonia com as crianças, aqueles trabalhos suscitaram várias críticas e posições sobre a constatação de que o modo de vida urbano e o espaço assim ocupado não deixavam lugar para a infância.

2.1. Conceituando lugar

A cidade, entendida como um lugar, está intimamente relacionada com as maneiras com as quais vivemos em espaços urbanizados. O arquiteto Delgado (2005) relembra a questão central para a prática dos arquitetos e urbanistas que é trabalhar a partir de espaços projetados, representados ou concebidos; espaços que conflitam com os praticados, vividos e usados pelas pessoas.

Seus instrumentos de trabalho estão mais a serviço de uma pólis do que de uma urbs, temida pelos planejadores. A primeira é pensada como uma “quimera” política de organicidade, tranqüilidade e estabilidade, e a segunda, como o cenário onde inumeráveis ações e atores tratam de negociar, inovar, surpreender. É no espaço urbanizado que também se definem e se estruturam as relações de poder, de forma subordinada ou não, para simplesmente ignorá-las, com todas as possibilidades de auto- organização.

No espaço do planejamento não se leva em conta a sociabilidade das pessoas que irão desenvolver suas vidas ali, e o espaço que se apresenta no cotidiano é permeado pela heterogeneidade das formas de ação social. Para o autor, o espaço urbano é uma “apropriação, nunca uma possessão” (p. 24). No espaço urbano, “não existe nada parecido a uma verdade por descobrir” (p. 24). Assim, ele distingue espaço urbano e espaço público, questionando a dimensão do espaço urbano, o que nele há de público na intersecção entre o que os planejadores definem e a sociabilidade e convivialidade do espaço que é público. Esta é uma dimensão consideravelmente negada pelos planejadores, mas não se trata apenas disto, muitas vezes:

A esse respeito, deve-se recordar que a associação entre o público e aquele [espaço] cuja titularidade corresponde ao Estado introduz um elemento de mal- entendido no momento de definir um espaço como público, uma vez que de algum modo questiona a própria dimensão aberta e acessível a todos que é aceita como sua primeira qualidade. Considerar que deve estar sujeito às instituições estatais equivale a afirmar que o espaço público não é do público, 38

mas de uma ordem política que se arrogou a função de fiscalizá-lo e impor-lhe seus sentidos. (Delgado, 2004: 25, tradução livre da autora) 15

O autor aponta que o espaço público não é unitário ou derivado de sua concepção como pólis ou como racionalidade. Ao contrário, o espaço público socializado, a vida nas cidades, tem “uma natureza permanentemente intranqüila, de cenário ativo”.

O espaço público só existe na medida em que é usado, que é o mesmo que dizer atravessado , pois na verdade só poderia ser definido como uma mera maneira de passar por ele. (Delgado, 2004: 26, tradução livre da autora) 16

Spink, P. (2006) nos chama a atenção também para as desigualdades presentes no que denominamos de espaços urbanos. Tomando como exemplo o uso das calçadas na cidade de São Paulo, o autor mostra como a mídia, a partir da análise da veiculação de notícias no jornal, naturaliza as desigualdades. Essa constatação leva-o a ponderar que não podemos entender o acontecimento urbano a partir de uma única perspectiva, mas como constituído por uma complexa matriz que envolve os cidadãos, os arquitetos e as pessoas, de modo que alguns usos e, portanto, sociabilidades, vão sendo sistematicamente descartados dos discursos oficiais e do esquadrinhamento dos planejadores.

O autor salienta que a materialidade do espaço público é o que sustenta a desigualdade:

O problema é posto como sendo um problema com a calçada e a solução é institucional com as autoridades que são responsáveis pelo trânsito, de carros e pedestres. Não há uma discussão [...] onde a exclusão do outro é normal [...]. O problema é que o outro desconhecido não é uma pessoa, mas um coletivo, nós mesmos. (Spink, P., 2006)

15 Hay que recordar al respecto que la asociación de lo público a aquello cuya titularidad corresponde al Estado introduce un elemento de malentendido a la hora de definir un espacio como público, puesto que de algún modo cuestiona la propia dimensión abierta y accesible a todos que se acepta como su primera cualidad. Considerar que ha de estar supeditado a las instituciones estatales equivale a afirmar que el espacio público no es del público, sino de un orden político que se ha autoarrogado la función de fiscalizarlo e imponerle sus sentidos. 16 El espacio público sólo existe en tanto es usado, que es lo mismo que decir atravesado , puesto que en realidad sólo podría ser definido como una mera manera de pasar por él. 39

O entendimento das crianças como atores sociais inclui necessariamente o entendimento do social como espaço ocupado também por elas. A partir da consideração do processo social – e não natural – que constrói e configura os pequenos seres como crianças, a aproximação que a Psicologia Social faz do lugar (Spink, P., 2000) como o espaço local de ação conjuga dois aspectos importantes da construção social da infância: a apresentação da criança como sujeito de direitos mediante as políticas públicas e sua consideração como ator social.

O espaço de médio alcance não pode ser extrapolado para situações naturalizadas. “[...] enquanto ponto de partida para o social permite um olhar a partir do enraizamento da processualidade do cotidiano” (Spink, P., 2000:4) que possibilita um diálogo com a política pública e com sua pesquisa. O lugar, o espaço social da ação que as crianças têm nas cidades, não está lá fora no estudo da infância, mas é constituído pelas várias formas que elas empregam para lutar por seu espaço na cidade, e não pelas estratégias usadas para fazer uma ciência psicológica dos desiguais. Afinal, nas pesquisas, o estudo de um ambiente amigável para as crianças pode ser mais um assalto daquela luta.

A noção de lugar deve, portanto, trazer a reflexividade para as práticas de pesquisas. O que escolher, o que abordar e, especialmente, como relatar fazem parte dos cuidados pelos quais os pesquisadores devem pautar a sua ética. Por esse motivo, nossa preocupação não é apenas o campo tradicionalmente entendido, mas sobretudo o campo-tema (Spink, P., 2003) o campo como um lugar também para o pesquisador. Como um lugar cheio de sentidos, de conversas, de poderes e de disciplinamentos, e não como o espaço neutro que se configurou anos atrás, a partir das práticas de pesquisa em laboratório.

Muitos cientistas sociais têm se debruçado sobre a forma não neutra como o conhecimento é produzido ou fabricado em lógicas e redes que o configuram como uma prática social qualquer (Latour,1999) que, mesmo em laboratório, está sujeita a todas as negociações com as quais as atividades humanas e não humanas põem a vida e também o conhecimento em movimento.

Cada vez mais os psicólogos sociais buscam orientar suas ações para os horizontes que se apresentam nas práticas cotidianas como possibilidades emancipatórias e de solidariedade (Spink, P., 2004). O espaço público é um espaço social, um lugar que, longe de se constituir como uma ocupação voluntária, quer dos 40 adultos, quer das próprias crianças, dos vazios urbanos ou rurais, é, ao contrário, um produto social, uma questão de luta e de disputa entre privilégios e mecanismos de exclusão.

A praça, a cidade, a rua, o campo, como todas as demais noções, são produtos sociais; não são os estranhos elementos de um meio ambiente independente das pessoas, conforme preconiza uma grande parte da psicologia ambiental. (Spink, P., 2006: 97)

Assim, não se trata de entender que existe uma infância específica, separada e escondida nos lugares públicos. Trata-se, ao buscarmos essa aproximação, de entender que os lugares públicos, onde as crianças estão, também são formados por “milhares de pedaços que adquirem sentido em relação uns com os outros e se constituem e reconstituem nas redes das quais fazem parte como co-constituintes” (Spink, P., 2006: 99).

Além disso, as discussões do historiador Ariès (1972) e mais recentemente do sociólogo Qvortrup (1993) sobre a presença das crianças nos diferentes espaços das cidades em outros tempos, e a marcada diferença ou desaparecimento delas com a modernidade, indicam que o uso dos espaços públicos constitui um aspecto social a ser considerado na definição da moderna construção social da infância.

Passaremos, então, a focalizar mais especificamente a construção do lugar da criança na sociedade, a partir da Antropologia Social, utilizando especialmente como referência Olwig & Gullov (2003), que definem o conceito de lugar como sendo ao mesmo tempo uma posição social e uma localização física. Em seu livro Children’s Places. Cross-cultural perspectives, as duas autoras examinam as formas como adultos e crianças, a partir de suas vantagens geracionais na sociedade, negociam os lugares “próprios” para crianças.

Para elas, o conceito de lugar, quando aplicado às crianças, pode designar os lugares firmemente estabelecidos e aqueles informais, potencialmente subversivos, que as próprias crianças criam ao se engajar em várias formas de relações intra e intergeracionais. Os lugares das crianças são assim marcados por seu relativo status na ordem geracional da transmissão cultural, na qual elas, como “juniores” são incorporadas na ordem social sob a orientação de vários “seniores”: educadores e cuidadores. Essa incorporação acontece de forma ambígua, uma vez que se dá em espaços especializados, separados do resto da sociedade. Caso ela fracasse, as crianças 41 ficam rodando em espaços públicos fora do controle dos adultos. Os espaços destinados às crianças contrastam com o ambiente urbano onde elas têm dificuldades para negociar sua presença. Isso acarreta a marginalização das crianças nos espaços públicos, especialmente nos países em desenvolvimento, pois as crianças não-institucionalizadas tendem a ser vistas como “fora de lugar”.

Por outro lado, os lugares destinados às crianças podem ser facilmente criticados, pois englobam idealizações adultas sobre o que é ser criança e são construídos com base nelas. Da mesma maneira, eles também refletem o futuro que os adultos idealizaram para as crianças.

Então, os tipos de lugares que a sociedade destina às crianças em grande parte influenciarão a habilidade delas de desenvolver novos contextos de vida social e cultural que não apenas refletem a ordem social existente da qual elas são parte, mas também têm o potencial de modificá-la. (Olwig & Gullov, 2003: 3, tradução livre da autora) 17

As autoras consideram controverso o conceito de lugar na antropologia e questionam a metodologia com que a disciplina vem lidando com as formas de aproximação do campo, especialmente pelo fato de a cultura e o trabalho de campo serem pilares fundamentais do trabalho nessa área. Elas ressaltam que o trabalho de campo e o lugar têm sido desconsiderados em suas relações recíprocas e apontam que o trabalho de campo tem sido visto “com ligações bem próximas com o estudo de ‘grupos de pessoas’ localizadas, definidas e diferenciadas por sua aderência a uma cultura específica que as distingue de outros grupos de pessoas” (id., ibid.: 5, tradução livre da autora) 18

O acesso aos lugares, marcados por um aqui e agora no trabalho dos pesquisadores, tem tido como resultado uma ausência de questionamento ou uma certa concordância com as relações de poder ali existentes. Essa postura acaba por ofuscar o que acontece além da paisagem apresentada na versão oficial, deixando de lado outros espaços, confusos, mistos, nos quais a vida cotidiana é levada adiante. Os lugares de criança, em particular, são marcados por valores que apresentam a versão oficial.

17 Thus, the kinds of place that society allows to children will, to a great extent, influence their ability to develop new social and cultural contexts of life that do not just reflect the existing social order of which they are part, but rather carry the potential to modify this order. 18 [...] as closely linked to the study of particular localized “groups of people” defined and distinguished by their adherence to a specific culture that distinguishes them from other groups of people. 42

Por esse motivo, Nieuwenhuys (2003) alerta-nos para os perigos de uma abordagem que trata de olhar para os lugares a partir da perspectiva da criança, pois com isso pode-se correr o risco de assumir os valores da classe média que informam a posição oficial. Essa autora aponta como o principal problema de uma abordagem sobre a relação entre infância e lugares o fato de que “a noção de infância, nas sociedades ocidentais, é histórica e culturalmente embasada na separação espacial” (Nieuwenhuys, 2003: 99, tradução livre da autora). 19

Para ela, a abordagem das crianças e dos adultos no lugar está muito próxima da abordagem construcionista, segundo a qual o primeiro e mais fundamental passo ou etapa é uma mudança que opera no próprio pesquisador de conhecer suas próprias determinações e se desfamiliarizar dos sentidos assumidos no cotidiano (cf. Spink, M. J., 1999).

No caso das crianças e lugares, é preciso entender que os lugares do tipo playgrounds , os objetos tais como brinquedos, livros, os lanches, as brinquedotecas e tudo o mais contêm o código da classe média. Tais lugares também podem ser vistos como materialidades que co-constituem os sentidos que damos à infância e que estão presentes no campo. As crianças estão ali imersas desde cedo, e esse fato é importante para a nossa pesquisa, mas isso não significa que elas estão ali imersas e passivas. As crianças estão ali continuamente construindo e sustentando o seu lugar no mundo.

No capítulo “Growing up between places of work and no-places of childhood: the uneasy relationship” (Crescendo entre lugares de trabalho e não-lugares de infância: a relação difícil), Nieuwenhuys (2003) faz uma comparação entre as crianças numa vila no sul da Índia e aquelas envolvidas numa organização não governamental com um projeto para “crianças de rua” em Adis Abeba, na Etiópia. A partir do trabalho de Auge (1995) 20 , a autora afirma que a escola na vila indiana e o projeto etíope são ambos “não- lugares” na paisagem local, pois “ o que acontece ali permanece, em grande parte, desconectado das relações que unem os lugares locais ”21 . Ela argumenta que um estudo de antropologia social que se limite a esses “não-lugares” falha em apreciar a importância dos lugares cotidianos – como as praias onde os pescadores jogam suas redes ou as casas onde as crianças, identificadas (ou vistas potencialmente) como “de

19 [...] is that the notion of childhood is both historically and culturally predicated on spatial separation. 20 Non-places: introduction to an anthropology of supermodernity , 1995. 21 [...] what goes on there remains largely unconnected to the relationships that lace local place together. 43 rua”, aparentemente estão em risco – nos quais as relações das crianças com a vida social são formadas.

2.2. Crescendo nas cidades: o estudo de Kevin Lynch

A pesquisa Growing up in the Cities , realizada por Kevin Lynch e colaboradores, procurou relacionar a vida das crianças em cidades que passam por constantes mudanças, descobrir como elas usam e avaliam o seu meio ambiente, além de identificar a importância do espaço urbano como um recurso vital no desenvolvimento da adolescência à idade adulta. A pesquisa envolveu pequenos grupos de crianças e adolescentes em cidades de diferentes continentes: Varsóvia, Melbourne, Salta e Cidade do México, entre outras. Esse projeto produziu resultados bastante interessantes, seja pelas discussões que pode suscitar entre os planejadores urbanos ante a possibilidade de usar relatos e mapas produzidos pelas crianças, seja pela diversidade dos métodos empregados e pela valorização da inserção do pesquisador no campo, no lugar em que sua presença era requerida diretamente no ato de pesquisar e desenvolver seu tema.

Sob os auspícios da iniciativa da UNESCO, “O homem e a biosfera”, Kevin Lynch e seus colaboradores realizaram um estudo pioneiro 22 naquelas cidades, enfatizando o microambiente imediato, particularmente o interior das casas e o espaço externo vizinho, e concentrando-se em grupos de baixa renda, em regiões de poucos recursos e de mudanças rápidas, com a intenção de

ajudar a documentar os custos e benefícios do desenvolvimento econômico, mostrando como o uso e a percepção que a criança tem do microambiente resultante afeta sua vida e seu desenvolvimento pessoal. As crianças são recursos fundamentais de toda a sociedade. E, assim fazendo, esperamos sugerir políticas e programas para melhorar o ambiente espacial das crianças durante o crescimento nacional ou para melhorar a maneira como ela usa ou aprende a partir deste ambiente, assim como avaliar a efetividade de quaisquer políticas ou padrões a ele relacionados, tais como aquelas para educação, moradia, espaços abertos, proteção ambiental ou para o design ou manutenção de espaços públicos e estabelecimentos. (Lynch, 1977: 81, tradução livre da autora) 23

27K. Lynch. Growing up in Cities . Studies of the Spatial Environment of Adolescence in Cracow, Melbourne, Mexico City, Salta, Toluca and Warsawa. Paris: Unesco, 1977. 23 To help document the human costs and benefits of economic development, by showing how child’s use and perception of the resulting micro-environment affects his life and his personal development. Children are the fundamental resource of any society. In doing so, we hope to suggest policies and programs for improving the child’s spatial environment in the course of national growth, or for improving the way he 44

A pesquisa buscou a perspectiva da criança através de entrevistas, grupos de discussão e passeios e usou diferentes instrumentos, tais como desenhos de mapas, fotografias locais, aéreas e de paisagem. Foram realizadas também entrevistas comparativas com os pais das crianças, políticos e funcionários públicos envolvidos com o planejamento urbano, bem como a observação do comportamento dos adolescentes nos diferentes espaços abertos disponíveis nas cidades.

O estudo mostrou-se relevante por dar destaque à valoração do espaço urbano na perspectiva da criança e também por detalhar aspectos tratados de forma superficial na prancheta dos planejadores, em que “os valores das crianças foram particularmente negligenciados”. De acordo com Lynch, seria possível aplicar o estudo também a outras cidades para obter a proximidade e o aproveitamento das perspectivas infantis pelo planejador.

Ao considerar as ações do planejamento, o autor e seus colaboradores apresentaram os seguintes eixos resultantes das pesquisas:

1. O uso do espaço não-programado. Nas diferentes cidades onde ocorreu a pesquisa, as crianças preferem as ruas, os quintais e as escadas dos apartamentos como lugares de permanência. As ruas permitem um tipo de comportamento mais livre e menos prescritivo e com maiores possibilidades de engajamento das crianças entre si. O autor ressalta que as crianças relatam a escolha de outros lugares, tais como escolas ou clubes, apenas quando a localidade não oferece essa possibilidade; quando as calçadas das ruas são estreitas.

2. Orçamentos de tempo 24 . Chama a atenção do autor a rigidez dos dias de semana: escola, lição de casa e então televisão. Embora as crianças não estivessem em trabalhos remunerados, como seus pais, elas tinham pouco tempo para organizar livremente suas atividades e também dispunham de muito pouco tempo fora de espaços fechados. Apenas de cinco a dez por cento do dia não era programado e esse tempo era gasto nas ruas, nos seus quartos ou na casa de amigos. Os fins de semana variaram conforme a localidade analisada, sendo que em sua maior parte

uses or learns from that environment, as well as to evaluate the effectiveness of any related existing policies and standards, such as those for education, housing, open space, environmental protection, or for design and maintenance of public space and facilities. 24 Time budgets. 45

eram constituídos também de atividades programadas; em Toluca, no México, muitas dessas atividades destinavam-se à manutenção da casa.

3. O raio de ação. As crianças, em geral, movimentam-se pouco nas cidades. As crianças de Salta, Argentina, tinham em torno de quinhentos metros de espaço livre no qual se movimentavam com confiança e, embora se mostrassem confiantes em se deslocarem para qualquer lugar da sua cidade, mostravam menos conhecimento sobre como fazê-lo. As crianças de Toluca, por sua vez, iam a parques e ao centro da cidade ao menos uma vez por semana e os conheciam razoavelmente bem. Em outras cidades, tais como Varsóvia, na Polônia, as crianças mostravam familiaridade com um raio de ação mais amplo devido à distância entre a escola e seus locais de moradia, ao uso do metrô ou às horas em ônibus lotado até chegar a ela. Em Melbourne, o autor notou que as crianças tinham um raio de ação bastante ampliado e uma grande variedade de meios de locomoção, tais como bicicletas e cavalos, mas eram restritas quanto aos tipos de lugares que podiam freqüentar livremente, conheciam uma variedade pequena de lugares e desconheciam o centro da cidade. Ele conclui que:

As barreiras importantes para movimentar-se não são as distâncias, mas o medo pessoal, o trânsito perigoso, a falta de conhecimento espacial, o custo do transporte público, ou, no caso das meninas, o controle dos pais… “Abrir” completamente a cidade para essas crianças – por meio do transporte, encorajamento ou exemplos – poderia ser a única forma de educá-las, fortalecendo suas independências, e acalmando sua fome de estímulos. 25 (Lynch, 1997: 23-24, tradução livre da autora) 4. Tédio e engajamento. As crianças que tinham maior possibilidade de se engajar em atividades de administração dos lugares tais como jardins, praças e quintais estavam mais explicitamente conectadas com a comunidade e o lugar e o sentiam como seu. Ao contrário, aquelas que viviam em outros lugares, tais como conjuntos residenciais, tinham como seu uma peça de mobília ou, no máximo, uma parte do quarto. As crianças de Salta, na Argentina, falaram sobre o seu papel na celebração local do Natal. Porém, no geral, o autor relata o sentimento de que havia pouca coisa nova para ver ou fazer. Na Austrália, as

25 The important barriers to movement are not distance but personal fear, dangerous traffic, a lack of spatial knowledge, the cost of public transport, or, in case of the girls, parental control… “Opening” the entire city to this children – by means of transport, encouragement or example – might be the one way of educating them, strethening their budding independence, and appeasing their hunger for stimulus. 46

crianças eram atraídas pelas luzes do centro da cidade e aguardavam ansiosamente que algo de novo acontecesse. Em contraste, as que viviam no centro da cidade e tinham acesso a novidades, estavam famintas por espaços externos para brincar. No entanto, as que residiam em lugares com muito poucos estímulos, como no México, não tinham sentimentos explícitos de tédio, o que levou o autor a comentar: “Talvez as expectativas das crianças sejam moldadas pelas possibilidades dos adultos, que são tão limitadas em Toluca e em Ecatep”(Lynch, 1997 : 25, tradução livre da autora)26 .

5. Terrenos baldios. As crianças eram geralmente atraídas por eles, ao mesmo tempo, em que os temiam, usando-os como espaços de exploração e socialização. Só as crianças de Ecatep, no México, não manifestaram esses sentimentos, por não gostarem do lixo acumulado nesses terrenos e da sujeira toda depois da chuva. Com medo de cair em buracos e de entrar nas casas abandonadas onde poderiam deparar com ladrões e bêbados, elas não usavam a única coisa farta em seu ambiente. De forma similar, as crianças na Polônia também não usavam uma grande área próxima de seus conjuntos habitacionais, pois tal área estava separada de seus apartamentos por uma avenida grande e movimentada.

6. A imagem da localidade. As diferenças eram evidentes também nas imagens de comunidade que as crianças das diferentes cidades produziam. Nessa parte da pesquisa pediu-se que as crianças desenhassem um mapa da “área onde você mora”. As crianças de Salta e Las Rosas, na Argentina, desenharam uma imagem coerente e demonstraram sentimentos positivos e otimistas em relação ao futuro. Tratava-se, segundo o autor, não apenas de uma unidade física, mas de uma comunidade ativa, apesar de ser constituída de casas padronizadas construídas de acordo com um planejamento bastante aleatório sobre um depósito de lixo, próxima a uma penitenciária. As pessoas construíram cercas, decoraram a entrada de suas casa, plantaram árvores e abriram caminhos. Internamente as casas eram descritas como cheias de objetos, o que contrastava com a ordem externa. Nesse lugar, como foi dito, as crianças têm papéis

26 Perhaps children’s expectations are shaped by adults possibilities , which are so very limited in Toluca and Ecatep. 47

importantes na execução e organização dos festejos natalinos e acompanham direta e ansiosamente as melhorias que vão sendo feitas na comunidade.

7. Os lugares preferidos. Quando inquiridas sobre os lugares em que mais gostavam de ficar, de encontrar com seus amigos, as crianças de Melbourne responderam que gostavam do seu quarto e , melhor ainda, de ficar na casa de amigos. As crianças de Salta e Las Rosas responderam que gostavam também de ficar nas praças, nas esquinas e algumas também nas montanhas. As crianças polonesas acrescentaram os playgrounds e entre os lugares em que não gostariam de estar incluíram aqueles onde elas são controladas e onde não há amigos por perto. Em geral, elas não mencionaram os lugares perigosos, a não ser as de Ecatep, que os classificaram como os piores lugares. Entre os bons lugares para estarem figurava, como único lugar preferido, a escola. O autor reflete que, nesse contexto, o ambiente escolar pode ser entendido como “um oásis de experiência estimulante onde as crianças podem fazer coisas novas e ler livros que abrem as maravilhas do mundo” (Lynch,1977: 49,tradução livre da autora) 27 e ressalta o papel importante que a escola pode ter na vida das crianças pobres...

Sobre os lugares ideais onde elas gostariam de viver (as utopias), os temas são recorrentes: árvores, amigos, quietude, ausência de trânsito, tamanhos pequenos, limpeza. Algumas situavam esses locais em cenas rurais; outras, na excitação do centro das cidades, ou ainda em cidades distantes, tais como na Europa e na Austrália. As crianças de Ecatep falaram sobre viver perto do mar ou nos Estados Unidos, no sudeste da Califórnia.

Sobre as limitações impostas pelos adultos e a falta de liberdade, apenas as crianças da Austrália manifestaram seu desejo de viver de forma mais independente. Outras limitações sentidas pelas crianças de outras localidades não surgem de sua curiosidade, e sim das imposições dos pais, tais como a proibição de freqüentar bares, clubes e cinemas (para assistir a filmes adultos). De forma semelhante, as crianças da Polônia, que viviam em conjuntos habitacionais, falaram sobre “pessoas más”, bêbados etc. e disseram que eram

27 [...] an oásis of stimulating experience where the children can do new things and read the books that open up the wonders of the world.. 48

livres para ir aonde quisessem, embora a grande quantidade de trancas e fechaduras nas portas observadas nos conjuntos habitacionais tenha revelado que elas viviam sob constância vigilância dos adultos.

8. Os lugares bonitos e feios. Para muitas crianças, não existiam lugares bonitos em suas comunidades. Os lugares bonitos eram os que tinham árvores, jardins e parques e que eram encontrados em outro lugar, não lá. As crianças de Toluca, no México, também nomearam de forma consensual um único lugar como bonito, um parque no topo de uma colina de onde elas podiam avistar seu bairro. As da Argentina mencionaram vários lugares de sua cidade, como suas próprias praças, flores, ruas locais e a montanha, bem como as praças, parques e monumentos no centro da cidade. A principal dimensão de beleza, no centro da cidade, para todas elas, estava relacionada com a limpeza e a modernidade.

9. Mudanças. A maior parte das crianças nas localidades pesquisadas tinha conhecimento de mudanças que estavam acontecendo em suas comunidades. Essas mudanças eram vistas de forma positiva por crianças de algumas localidades, mais do que em outras. Assim, as crianças da Argentina entendiam que a cidade iria continuar progredindo. Lembravam-se de mudanças que já haviam acontecido e as percebiam de maneira positiva. Essa situação foi um pouco diferente para crianças de Melbourne, que não tinham uma opinião formada sobre vários aspectos das mudanças, uma vez que algumas já ocorridas haviam restringido de forma progressiva sua liberdade de ação, com a presença de novas pessoas, novos grupos étnicos, mais apartamentos, mais barulhos, poluição, multidões e tráfico. No entanto, elas foram unânimes em valorar as mudanças de forma negativa apenas em relação aos apartamentos e ao trânsito.

Todas as crianças gostariam de, no futuro, poder ver mais árvores, ruas melhores e mais espaços de recreação.

Todos esses grupos de crianças acreditam que têm pouco poder de afetar o meio ambiente, embora um menino de Melbourne ajude a manter um pequeno parque, os moradores da vila compartilhem a manutenção de suas casas e quintais, e muitas crianças de Salta digam 49

que trabalham nas montanhas, melhorando a escola, ou participando na festa de Natal. (Lynch, 1977: 54, tradução livre da autora) 28

Os três itens finais – melhoria ambiental, identidade comunitária, advocacia institucional e planejamento responsável – têm implicações políticas e indicam ações ou recomendações a serem realizadas pelos planejadores urbanos, entre as quais se destacam:

o À luz de sua importância para a interação social e o brincar informal, a forma e a regulação das ruas e pequenos espaços abertos constituem uma questão crítica. (p. 56)

o Os riscos do tráfego podem ser reduzidos através da instalação de semáforos ou desníveis, pelo fechamento periódico ou permanente de algumas ruas. Ruas sem saída sempre foram um espaço excelente para brincar. O tráfego também pode ser diminuído por políticas mais gerais. (p. 56)

o As crianças devem viver em lugares que tenham uma clara identidade social e espacial; lugares que elas possam entender e dos quais possam ter orgulho. Elas devem ter um papel a cumprir na manutenção e celebração da comunidade – funções particulares atribuídas a elas, lugares particulares pelos quais sejam, pelo menos em parte, responsáveis. (p. 57)

o Seu senso de passado e de futuro deve estar conectado a sua localidade, relacionado com a conservação dos recursos naturais e com a sua herança histórica. (p. 57)

o Planejadores, designers e gerentes ambientais deverão preocupar-se mais com as necessidades das crianças. A observação e a pesquisa deverão fazer parte do processo de planejamento. O cliente criança, se acessível, deverá ser consultado para avaliar o ambiente existente e participar do planejamento e construção de ambientes especificamente destinados para crianças. Mas é claro que, se os direitos e as necessidades da criança devem estar representados nas decisões públicas, deverá haver organismos formais ocupados com o bem-estar da criança

28 All these groups believe they have little power to affect the environment, although one Melbourne boy helps to maintain a small park, the villagers join in keeping their houses and yards, and several Salta children speak of working in the hills improving the school, or participating in Christmas pageant. 50

em âmbito local e nacional. Muitos países dispõem de instituições como essas e a UNESCO tem sua própria comissão. Sem essas instituições formais, este estudo ou estudos similares terão impacto muito pequeno. (p. 58)

O pioneirismo do autor em estudar as relações entre crianças e cidades na década de 1970 (sua pesquisa foi realizada entre 1970 e 1975) deve-se à novidade do tema e a sua inserção internacional, bem como ao fato de trazer a perspectiva infantil para o campo do planejamento urbano e das políticas urbanas. Ao considerar a infância e as crianças como atores sociais, o autor vê nelas o universo dos que estão se desenvolvendo hoje e que, ao mesmo tempo, serão os cidadãos de amanhã. Assim, conhecer suas representações, seus mapas, suas formas de relacionamento com a cidade possibilita avaliar os efeitos do desenvolvimento econômico nesses que serão os futuros cidadãos. Dessa forma, sua participação no processo é desejada e inovadora, pelas questões que traz para o debate.

Growing up in Cities II

O projeto Growing up in Cities foi reeditado pela UNESCO-MOST (Management of Social Transformations) em 1994. Nessa ocasião, foi definido como um programa internacional para envolver as crianças, os jovens e os governos na avaliação e melhoria dos ambientes locais 29 . Os objetivos são assim definidos:

Documentar historicamente as melhorias ou deteriorações nas condições e experiências urbanas das crianças, comparando os dados da metade da década de 1970 com os resultados de 1997 em reaplicação, e estabelecendo novas bases em novos lugares . Situar as comparações entre os lugares e os tempos nos contextos das políticas locais, nacionais e globais, com o objetivo de relatar a qualidade da experiência urbana cotidiana das crianças em padrões de larga escala no desenvolvimento econômico e urbano. Comparar as medidas da experiência das crianças com as percepções de especialistas em desenvolvimento, planejadores urbanos e funcionários sobre as conseqüências de suas decisões para a vida das crianças e fazer recomendações para políticas e programas mais responsáveis. Fomentar o interesse e a capacidade local e nacional na participação das crianças no monitoramento e melhoria da qualidade da vida urbana e criar um

29 “an international program to involve children, young people and governments in evaluating and improving local environments” (www.unesco.org/most/guic/guicmin.htm; acesso em ago. 2008). 51

manual sobre métodos de participação para planejadores urbanos e funcionários, técnicos da área de desenvolvimento com interesse em crianças, e pesquisadores da área infantil. Estabelecer uma rede global de sites para os monitoramentos em curso das experiências das crianças quanto às mudanças urbanas. Conduzir pesquisa-ação para colher informações e formar redes de comunicação, de uso imediato nos esforços para melhorar a qualidade de vida nas cidades estudadas. (http://www.unesco.org/most/guic/guichistframes.htm, tradução livre da autora) 30

A apresentação do projeto, que envolveu cidades em nove nações (África do Sul, Suécia, Venezuela, Argentina, Austrália, EUA, Índia, Nova Guiné e Polônia), bem como as ações desenvolvidas nas diferentes cidades, estão acessíveis na Internet 31 , onde se encontra também um breve histórico. No site são relatadas as mudanças de enfoque no que diz respeito à consideração das crianças no novo projeto, argumentadas a partir da Promulgação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU, de 1989, que, em sua nova versão, enfatiza a participação delas nas ações de pesquisa.

No entanto, é interessante enfatizar que esse novo enfoque dado à relação das crianças com as cidades traz um direcionamento maior para objetivos que não foram definidos com as crianças, mas começaram a ser inseridos e negociados a partir do conhecimento dessa relação ou interface. Entre conhecer o uso e a avaliação que a criança faz do seu ambiente e conhecer a participação das crianças na implementação de melhorias em sua comunidade há uma grande distância, evidenciando que essa

30 To document historical improvements or deterioration in children’s urban conditions and experiences, by comparing mid-1970 baselines with 1997 results at replication sites, and by establishing baselines at new sites. To place cross-site and cross-time comparisons in the context of local, national, and global trends and policies, in order to relate the quality of children’s everyday urban experience to large-scale patterns of economic and urban development. To compare actual measures of children’s experience with development advisors’, urban planners’, and city officials’ perceptions of the consequences of their decisions for children’s lives, and to make recommendations for more responsive policies and programs. To build local and national interest and capacity in children’s participation in monitoring and improving urban life quality, and to create a manual of participatory methods for city planners and officials, development workers with an interest in children, and child researchers. To establish a global network of sites for the ongoing monitoring of children’s experience of urban change. To conduct action research that will gather information, and form communication networks, of immediate use in efforts to improve urban life quality in the study cities.(http://www.unesco.org/most/guic/guichistframes.htm) 31 Disponível em www.unesco.org/most/guic/guicmain.htm . Acesso em: ago. 2007. 52 relação é marcada por várias interfaces, ao menos no campo da produção do conhecimento.

Lynch chama a nossa atenção para as peculiaridades do trabalho que envolve pesquisadores e pesquisados quando se trata de pesquisas com crianças.

Quando se pede às crianças polonesas que sugiram mudanças que fariam “se fossem arquitetos”, elas elaboram projetos muito semelhantes aos que arquitetos costumam fazer – projetos não particularmente congruentes com sua própria experiência e interesses. Os papéis sociais são poderosos, mesmo na imaginação. (Lynch, 1977: p. 77; tradução livre da autora) 32

2.3. Experiências com a paisagem urbana: contribuições de Roger Hart

O livro de Roger Hart, Children’s Experience of Place, publicado em 1979, descreve um estudo sobre as crianças, suas experiências com a paisagem e o desenvolvimento da experiência de lugar. Seu propósito era entender o comportamento espacial das crianças e o uso do espaço territorial “e ao mesmo tempo descobrir o seu conhecimento do, e sentimentos pelos lugares no seu ambiente.” (Hart, 1979: 13). Hart viveu por dois anos numa pequena cidade da Nova Inglaterra com o objetivo de estudar crianças e seu comportamento espacial. A localidade de sua pesquisa recebeu o nome fictício de Inavale.

Trata-se do arquétipo de pequena comunidade da Nova Inglaterra, aparentemente auto- suficiente e contida em si mesma. A decisão de excluir qualquer consideração do mundo além das montanhas locais faz sentido, pois Inavale é um casulo, o tipo de lugar em que muitas pessoas, em momentos de devaneio, gostariam de ser criadas. O quão especial é essa comunidade? Não há minorias étnicas ou raciais mencionadas; não há pessoas muito ricas, sendo a distinção social maior entre moradores da classe trabalhadora e a recém-chegada classe média. Há uma geografia social, mas as distinções parecem triviais... [...] As crianças de Inavale não são certamente crianças da crise. A única crise enfrentada pelas crianças de Inavale é a prototípica de seres humanos: de se ajustar ao mundo ao redor delas. (Downs, 1980: 229. tradução livre da autora) 33

32 When the polish children were asked to suggest changes they would make ‘if they were the architects’, they made plans very similar to those that architects normally make – plans not particulary congruent to their own experience and interests. Social roles are powerfull, even in the imagination. 33 It is the archetypal, small New England community, seemingly self-sufficient and self-contained. The decision to exclude any consideration of the world beyond the local hills makes sense because Inavale is a cocoon, the sort of place where many persons, in moments of romantic daydreaming, would like to have been reared. How special is this community? There are no ethnic or racial minorities mentioned: there are no very rich people, the major social distinction being between working-class locals and middle-class new-comers. There is a social geography, but the distinctions seem trivial… [...] the children of Inavale are most definitely not the children of crisis. The only crisis faced by the children of Inavale is the usual human one of coming to terms with the world around them. 53

Hart identificou dois agrupamentos, com idades entre quatro e onze anos, e pouco a pouco passou a conhecer as crianças e suas famílias, obtendo a concordância delas para observar seus comportamentos e envolvê-las em uma variedade de atividades relacionadas ao espaço durante os dois anos de estudo. O cotidiano da vida mundana interessava a Hart, pois segundo ele os “cientistas sabem mais sobre a vida dos primatas na selva do que sobre a vida das crianças nas cidades” (Hart, 1998 : 1). Para o autor, “todas as crianças têm o impulso de explorar a paisagem que as rodeia, de aprender sobre ela, de lhe dar ordem e investi-la de sentidos – tanto compartilhados como privados” (Hart, 1979: 3) 34 . Nesse estudo, ele mapeou as amplitudes dos movimentos das crianças no bairro e na comunidade e desenvolveu uma tipologia aplicada a cada grupo etário consistindo de: 1. livre amplitude; 2. distâncias maiores com liberdade de alcance; 3. distâncias maiores com alcance “com permissão”; 4. distâncias maiores com alcance “com permissão e com outras crianças”. Além disso, ele descreveu os caminhos e os atalhos percorridos pelas crianças de triciclos ou de bicicleta. Os lugares também foram classificados de acordo com o que as crianças expressavam: lugares assustadores, perigosos, altamente valorizados, favoritos, mágicos, de verão e de inverno. Hart concluiu que todas as crianças criam lugares que são do tipo casa. Em outras palavras, de uma maneira ou de outra, elas fazem uma “casa” ou um cercado – nas florestas, no quintal de casa, embaixo das escadas, num cantinho do quarto de brincar... Como geógrafo, o propósito de Hart nesse estudo era compreender o comportamento espacial das crianças e suas necessidades relativas ao design dos bairros e das comunidades. Seus resultados mostram que os aspectos da paisagem que favorecem as ligações das crianças com o lugar são: as possibilidades de atividade espacial, o conhecimento que a criança tem do lugar, os valores e sentimentos em relação ao lugar e o uso que faz dele. Quanto às preferências das crianças pelos lugares, ele observou que se dão pelo uso do local para brincadeiras, pelas pessoas que ali estão, pelo que podem comprar, pela beleza ou pelo sentimento despertado pelo lugar.

34 All children have an urge to explore the landscape around them, to learn about it, to give order to it, and to invest it with meaning – both shared and private. 54

Estudos anteriores sobre playgrounds haviam indicado que as crianças descobrem e usam áreas próprias para brincar, que são distintas das planejadas pelos adultos. Isso ocorre por que os arranjos institucionais para as crianças são insuficientes para fornecer um cenário social propício. Então como são e onde estão esses lugares dos quais as crianças naturalmente se aproximam? Como eles satisfazem as experiências das crianças? Hart faz perguntas enganosamente simples. O que é uma paisagem fenomênica? Como uma criança chega a conhecer aquele minúsculo segmento da superfície terrestre que é literalmente o lugar onde ela cresce? Como medos e sentimentos, esconderijos e tocas surgem em lugares que os adultos ignoram? Como e por que o espaço se torna um lugar? Em um sentido, o mundo da criança é mundano. Mas se você aceitar os pontos de partida de Hart, de que o mundo é ativa e conscientemente explorado e construído por uma criança, então o livro torna-se um ensaio fascinante sobre a redescoberta e reexploração de algo que todo o adulto experimentou e de igual maneira, perdeu. (Downs,1980: 230, tradução livre da autora) 35

Em seu estudo, Hart documentou como as crianças exploram, usam e manipulam o seu ambiente cotidiano, definido por ele como paisagem fenomênica. Ele notou que evita-se fazer construções em lugares limpos e organizados, dando preferência a lugares desarrumados em que prevalece um sentido de posse da criança. As crianças preferiam os lugares com grama, arbustos, árvores e com diversos objetos ali largados, abandonados, que elas se sentiam livres para usar de modo a alterar o ambiente. Esses lugares estavam normalmente a uma distância de 100 metros de casa e pertenciam à categoria livre-acesso-desacompanhado-de-adultos. As qualidades e disponibilidades dos elementos nas paisagens fenomênicas encorajavam atividades específicas das crianças entre oito e onze anos. Dentre as mais importantes situavam-se o modelar e o construir, que davam à criança a possibilidade de aprender atividades de construção diretamente do ambiente. Ao realizar essas atividades em que tinham de interagir umas com as outras, elas não apenas adquiriam as habilidades para as tarefas de solucionar problemas, mas também aprendiam habilidades relacionadas à territorialidade, à propriedade e à comunidade. Esse desenvolvimento de

35 He asks some deceptively simple questions. What is the "phenomenal land-scape"? How does a child come to know that minuscule segment of the earth's surface that is literally the place where he grows up? How do fears and feelings, hideaways and haunts grow out of places that adults ignore? How and why does space become place? In one sense the world of the child is mundane. But, if you accept Hart's starting points, namely that the world is actively and willingly explored and constructed by a child, then the book becomes a fascinating essay in the rediscovery and reexploration of something that every adult experienced and, equally well, lost. 55 habilidades para atividades compartilhadas era amplamente favorecido pela proximidade de casa, ausência da possessão do adulto e presença de paisagens flexíveis compostas por pedaços ou partes de coisas perdidas. Hart sugere que as áreas para as brincadeiras incluam, em suas paisagens, algumas qualidades importantes para as crianças, tais como água, árvores (para subir), arbustos, argila (para modelar), objetos descartados e uma topografia variada, com declives. Os caminhos são importantes elementos do lugar na paisagem fenomênica e se apresentavam de muitas formas para as crianças. Como atalhos através de pequenas aberturas, impossíveis de ser atravessadas por adultos, funcionavam como uma forma de manter distância deles e, às vezes, como um fim em si mesmo; eram uma oportunidade para as crianças simplesmente caminharem, em seu próprio tempo e espaço.

No livro, Hart argumenta que os adultos devem estar atentos às atividades das crianças em suas experiências com o ambiente físico. A razão para tanto é que as crianças, como participantes, vêem as coisas de forma que nós, como observadores, podemos não ver ou entender. As idéias das crianças acrescentam uma dimensão necessária e freqüentemente negligenciada no processo do design.

2.4. Sobre espaços polissêmicos: a visão de Colin Ward

Essas visões e propostas não foram imunes a críticas e, em vários lugares, registraram-se vozes divergentes sobre as possibilidades de conhecimento das relações que podem ser estabelecidas entre crianças e cidades. Colin Ward pergunta se

[...] a cidade, como instituição humana, adota um helping mode para com seus jovens cidadãos ou se Paul Goodman estava certo quando declarou anos atrás que “a cidade, sob as inevitáveis condições modernas, não pode mais ser abordada de maneira prática pelas crianças”, porque a “tecnologia, a mobilidade das famílias, a perda da terra, a perda da tradição do bairro e o desaparecimento do espaço de brincar, levaram embora o verdadeiro ambiente”. (Ward, 1978: vii; tradução livre da autora) 36

36 [...] the city as a human institution, adopts a helping mode towards its young citizens, or whether Paul Goldman was right when he declared years ago that “the city under inevitable modern conditions, can no longer be dealt with practically by children” because “concealed technology, family mobility, loss of the country, loss of neighborhood tradition, and eating up of the play space, have taken away the real environment. 56

Segundo esse autor, a intersecção entre criança e cidade subverte o pressuposto inicial de que as crianças estão fora desses espaços ou de que precisamos construir metodologias para conhecer esses sujeitos individualizados e suas perspectivas. Para além disso, ele nos mostra que as crianças criam suas próprias maneiras de atuar nas cidades, de usar o espaço urbano, apesar de as condições de relação com esse espaço estarem profundamente constituídas por condições sociais e agendas políticas. A cidade precisa ser devolvida às pessoas, em particular às crianças, trancafiadas nos modelos de desenvolvimento urbano vigentes em que veículos e vagas de estacionamento têm mais valor que os seres humanos. Para Ward, o espaço das cidades não é um espaço tranqüilo, formado por vazios ou por locais previamente construídos e tampouco precisa ser dotado de lugares próprios para as crianças, uma vez que estas tendem a construir ativamente seu próprio espaço no mundo construído (o que não se faz sem disputas).

O autor procura problematizar essa relação, chamando a atenção para o fato de que as crianças já estão nos espaços das cidades . Não se trata de simplesmente definir um lugar onde elas deveriam ou não estar, ou mesmo o modo como elas deveriam ou poderiam estar, mas de retratar e relatar o espaço urbano como lugar de sociabilidade, compartilhado, discutindo como a cidade, por sua vez, também pode ser um lugar para crianças, com todas as “contradições” dessa convivência. No entanto, tais contradições não são colocadas a priori num plano em que se atribui à criança uma posição de inferioridade ou de submissão:

É difícil, sem dúvida, para aqueles que se dedicaram a campanhas pelo espaço físico para os jovens na cidade, uma luta que se autojustifica, se acostumarem à idéia de que, muito cedo na vida, outra demanda mais urgente e mais dificilmente reconhecida se manifesta: a demanda pelo espaço social ; a demanda das crianças da cidade em ser parte da vida da cidade. (Ward, 1978: 31, tradução livre da autora) 37

Colin Ward foi diretor da revista inglesa Anarchy , professor na London School of Economics e autor de vários trabalhos e livros sobre planejamento urbano e políticas sociais. É recorrente, nos seus escritos, a ênfase na importância de uma contínua

37 It is hard, no doubt, for those who have devoted themselves to campaigning for physical space for the young in the city, a claim which is certainly self justifying, to accustom themselves to the idea that very early in life, another, more urgent and more difficultly met demand arises, for social space ; the demand of the city’s children to be part of the city’s life. 57 negociação e contrato entre os governantes institucionais das cidades modernas e os grupos que lá vivem e agem no cotidiano, a partir “de baixo”, dando freqüentemente uma resposta mais eficaz a uma grande variedade de necessidades. Em seu livro Child in the City (1978), ele aborda as relações entre as crianças e as cidades na atualidade, questionando muitos lugares-comuns sobre a infância, construídos na modernidade, e que são considerados valores quase absolutos, impossíveis de ser discutidos sem levantar polêmicas de diversos tipos.

O livro chama atenção por não ser um catálogo sobre a condição desprivilegiada das crianças nas cidades. Sua visão vai além disso, partindo de um pressuposto: no que diz respeito à liberdade de movimentos, especialmente nas grandes cidades, as crianças são vistas como cidadãos de segunda classe, obrigadas a se restringir cada vez mais ao âmbito domiciliar. Isso não se deve ao fato de a cidade em si ser algo ruim para a criança. Resulta de uma confluência de fatores, tais como: a radicalização da concepção de infância como uma idade da vida que deve ser o mais possível protegida e dependente; uma situação metropolitana que, em geral, se mostra cada vez pior, com especulação imobiliária, planejamentos dissonantes e com o “direito natural” dos automóveis de ocuparem todos os lugares. O autor cita uma pesquisa da década de 1990, que revela que um menino de nove anos e meio tinha a mesma liberdade (negociada com seus pais) de que gozava um menino de sete na década de 1970.

A segunda metade do século XX, em que foram promulgados os direitos das crianças como preocupação também do Estado, também foi, segundo o autor, o período do triunfo do estilo de vida “casacêntrico” e “segregacionista”, que apresenta como desejável a progressiva restrição das crianças às atividades não programadas ou não supervisionadas por adultos e que propõe como único lugar seguro a casa.

As crianças têm cada vez menos oportunidades de estar no espaço urbano e de assim poder construir um equilíbrio pessoal entre a privacidade da vida doméstica e a vida exterior. Ao chegar à adolescência, essas crianças são lançadas no mundo urbano. Sem terem podido explorar a cidade, elas dificilmente a reconhecerão como sua. Ward usa a metáfora da caixa de areia para referir-se aos espaços públicos projetados para crianças, tais como as playland dos shoppings. Os pequenos brincam, e estão calmos, protegidos, enquanto os adultos conversam e os vigiam com o canto do olho, prontos para intervir: 58

Uma caixa de areia é um lugar onde os adultos estacionam as suas crianças para conversar, brincar ou trabalhar com um mínimo de interferência. Os adultos, tendo encontrado uma distração para as crianças, podem tocar as coisas sérias da vida. Há algumas recompensas para as crianças nisto. A caixa de areia lhes é dada como território próprio. Ocasionalmente, areia e brinquedos novos são colocados na caixa de areia acompanhados de uma advertência implícita de que essas coisas são fornecidas para minimizar o nível de barulho e incômodo. Se as crianças de fato ficam barulhentas e distraem seus pais, novos brinquedos talvez sejam trazidos. Se os ocupantes da caixa de areia escolhem lados e começam a bater nas cabeças uns dos outros, os adultos virão correndo, estapearão as crianças mais ou menos indiscriminadamente, acalmarão as coisas e então, talvez como algum tipo de penitência, trarão areia e brinquedos novos, passarão a mão na cabeça dos ocupantes da caixa de areia, e desaparecerão novamente nas suas preocupações e envolvimentos adultos. (George Sternlieb, apud Ward, 1978: 202; tradução livre da autora) 38

Para o autor, a cidade que realmente se preocupa com as necessidades da criança não deve ser planejada para as crianças, mas deve ter aquelas necessidades em mente e tornar todo o ambiente acessível para as crianças, pois elas, diferentemente dos adultos, tentarão ocupar o espaço da cidade: “[...] as crianças irão brincar em qualquer lugar e com qualquer coisa. A provisão que é feita para as suas necessidades opera num plano, mas as crianças operam em outro plano” 39 (Ward, 1978: 87, tradução livre da autora).

Ao falar dos parques e playgrounds e dos limites físicos impostos às crianças nessas áreas, Ward cita Joe Benjamin, um pioneiro nessa área:

Não importa como consideramos o potencial lúdico no desenho de nossos projetos presentes e futuros, as crianças continuarão a interpretá-los de maneira própria. A questão é que as ruas, o comércio local, a escadaria dos conjuntos habitacionais, e todas as coisas que a comunidade urbana oferece, são parte do hábitat natural da criança. Nosso problema não é desenhar ruas, prédios, postos de gasolina ou lojas que as autorizem a brincar, mas educar a sociedade a aceitar as crianças em bases participativas. (Ward, 1978: 87, tradução livre da autora) 40

38 A sand box is a place where adults park their children in order to converse play or work with a minimum of interference. The adults, having found a distraction for the children, can get on with the serious things of life. There is some reward for children in this. The sand box is given to then as their on turf. Occasionally, fresh sand and toys are put in the sand box, along with an implicit admonition hat this things are furnished to minimize the level of noise and nuisance. If the children do come noisy and distract their parents, fresh toys maybe brought. If the occupants of the sand box choose up sides and start bashing each other over the head the adults will come running, smack the juniors more or less indiscriminately, calm things down and then, perhaps in act of same contrition, bring fresh sand and fresh toys, pat the occupants of sand box on the head, and disappear once again into their adult involvement and pursuits. 39 “[...] children will play everywhere and with anything. The provision that is made for their needs operates on one plane, but children operate on another. 40 No matter how we might consider play potential in our present and future designs, children will continue to interpret this in their own way. The point is that streets, the local service station, the housing estate stairway, indeed anything our urban community offers, is part of the natural habitat of the child. 59

A idéia é chamar a atenção para os aspectos do universo infantil que devem ser levados em conta e o que se deve adaptar no ambiente, tendo em vista as necessidades da criança. Isso não significa que o planejamento ou a busca por relações com a criança não devam acontecer, pois as crianças adaptam o ambiente que lhes é imposto. Essa adaptação, contudo, não ocorre sem conflitos pelo uso dos equipamentos e mesmo dos espaços públicos. Um exemplo emblemático é o uso que as crianças fazem dos hidrantes das ruas para brincar com água e também a apropriação de espaços livres ou de terrenos baldios. De forma mais complexa, o autor cita o exemplo do Rochdale Canal, em Manchester, mostrando claramente que o uso que a criança pode fazer de um espaço público e comunitário nem sempre interessa a todos.

Ward conta que, com o fim da industrialização naquela cidade, em 1952, esse canal foi fechado, cercado e ficou um longo tempo sem uso, tornando-se um depósito para diferentes coisas que as pessoas lá jogavam, até que uma criança caiu, em parte porque as cercas estavam sem manutenção, em parte porque, como o lugar não era usado, não havia ninguém para socorrê-la. As autoridades tiveram então algumas alternativas para a urbanização daquele canal, que o autor resume da seguinte maneira: tornar o canal novamente navegável, o que foi rejeitado devido às dificuldades econômicas e políticas daquele período, ou, ao contrário, limitar-se a encher o seu leito de água, sem restaurar a navegação. A solução final e mais simples tratou de manter o nível da água em aproximadamente 18 centímetros e controlar o fluxo com diques, transformando o seu leito numa espécie de várias cascatas. Essa solução simples abriu o canal para as pessoas daquele subúrbio, que passaram a usar as cascatas como lugar para brincadeiras e esportes aquáticos. Esse uso foi amplamente criticado pelos opositores, que reclamavam do lixo produzido e das confusões entre os usuários, bem como do vandalismo.

Colin Ward argumenta que, infelizmente, não houve o dimensionamento de que uma solução sem muitos gastos e útil para as pessoas, sobretudo para as crianças, poderia implicar gastos de manutenção que incluíam a educação das pessoas para o uso apropriado do ambiente e sobretudo os esforços para envolver as crianças, tornando-as guardiãs de seu próprio playground , dispostas a impedir o lançamento de lixo e de garrafas no canal.

Our problem is not to design streets, housing, a petrol station or shops that can led themselves to play, but educate society to accept children on a participating basis. 60

CAPÍTULO 3

Sobre cidades amigas da criança

A cidade ganhou o prêmio Prefeito Amigo da Criança em 2000. Foi com o prefeito Celso Daniel. Em 2004, o prêmio Prefeito Amigo da Criança com o prefeito João Avamileno e em 2005 e 2006 já ganhamos o selo Prefeito Amigo da Criança. Falo isso não só por causa do prêmio. O prêmio significa que conseguimos fazer um bom trabalho. (João Avamileno. Prefeito de Santo André, na abertura da Pré-Conferência Não ao Trabalho Infantil , 2007)

Como vimos, a partir de 1989, com a promulgação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da ONU, os formuladores de políticas públicas passaram a se preocupar também em transformar as cidades em ambientes bons para as crianças viverem. Em 1997, a UNESCO retomou o já mencionado projeto de Kevin Lynch, desta vez com o objetivo de promover a efetiva implantação dos direitos das crianças e de implementar as formas como elas participam no espaço urbano (Chawla, 2002).

A reunião de cúpula da ONU para os direitos da criança, realizada em 1990, havia traçado como meta a implementação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança até o ano 2000. A partir dessa reunião, tomaram-se várias iniciativas no âmbito das políticas públicas, visando estabelecer prioridades para a infância. Dentre essas medidas, destaca-se um movimento de prefeitos municipais, que resultou na proposição Prefeitos Defensores das Crianças, iniciativa apoiada pelo UNICEF fundamentada na idéia de que é possível garantir os direitos das crianças no contexto do município e das ações ali desenvolvidas. Foram realizadas várias reuniões internacionais de organização, inclusive na América Latina e com grande repercussão na Itália, sobretudo na região da Emília Romana. Em 1993, o Decálogo de um Prefeito Defensor da Criança estabelecia o Compromisso de Quito, com as seguintes ações: 61

I. Desenvolver uma política social e um programa municipal de Ação em favor da criança. II. Apoiar e promover programas e ações anuais que contribuam para a consecução das metas propostas para o ano 2000, determinadas pelo Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado em 1990, e que faz parte do presente Decálogo. III. Efetuar uma ampla discussão da Convenção dos Direitos da Criança e emitir disposições que contribuam para seu cumprimento e zelar pela sua aplicação plena. IV. Promover processos permanentes de sensibilização que contribuam para o bem-estar da criança e que façam da infância uma prioridade municipal. V. Promover um amplo pacto social pela infância, propiciando o estabelecimento de mecanismos de cooperação e coordenação com programas governamentais, com organizações não-governamentais e com a sociedade civil em geral. VI. Realizar os esforços que sejam necessários para adequar a legislação municipal, em relação à Convenção Internacional dos Direitos da Criança, dando condições de efetivo funcionamento aos instrumentos previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e o Conselho Tutelar. VII. Estabelecer mecanismos de consulta para a tomada de decisões sobre assuntos vinculados à infância, ouvindo as crianças beneficiárias. VIII. Promover o atendimento das crianças, particularmente daquelas que estejam em situação de risco, como os meninos de rua, órfãos, vítimas de abuso físico e sexual, crianças exploradas, assim como crianças em conflito com a lei. IX. Contribuir para a erradicação do trabalho infantil, assegurando às crianças sustento adequado e educação, assim como proteção ao menor trabalhador com menos de 18 anos. X. Promover a cooperação com os prefeitos de outras cidades com o objetivo de fortalecer e difundir o desenvolvimento dos programas municipais de ação anuais, em favor da infância. Fonte : UNICEF. Folheto Prefeitos Defensores da Criança, na América Latina e no Caribe , 1993.

Outras agendas, dentre as quais a AGENDA-21, a ECO-92, do Rio de Janeiro, e a HABITAT II, de Istambul, realizada em 1996, buscaram estabelecer as referências conceituais para o desenvolvimento sustentável. Assumindo o desafio de tornar as cidades mais habitáveis e agradáveis para todos, essas agendas têm como um de seus principais pontos de partida o conceito de participação da população nos processos de transformação de suas cidades. O projeto Child Friendly Cities , estabelecido na conferência de Istambul em 1996, assumiu a meta de nomear as cidades que atribuem às crianças o primeiro lugar em suas agendas políticas e de desenvolvimento, 62 estabelecendo que o critério máximo para se considerar uma boa cidade para todos é o de ser uma cidade boa para as crianças viverem.

3.1. As cidades amigas das crianças na perspectiva do UNICEF

Em 1990, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) organizou, em Nova York, uma reunião de cúpula sobre a infância na qual 71 chefes de Estado e de Governo assinaram uma Declaração Mundial pela Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Infância e adotaram um plano de ação mundial para alcançar determinados objetivos dentro de um período preestabelecido de 10 anos.

Os líderes assumiram compromissos em diversos campos, entre os quais o de fornecer mais comida, mais água potável e também o de garantir um ambiente mais sustentável, melhor qualidade das escolas e vacinação das crianças. Nessa reunião de cúpula sobre a infância enfatizou-se que o plano de ação seria o instrumento mais idôneo para o compromisso dos governos em favor das gerações mais jovens e também como deveria ser implantado no nível das nações particulares. As estratégias para essa execução, contudo, haviam sido preparadas por uma movimentação paralela.

A partir da promulgação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, da ONU, em 1989, empreendeu-se a iniciativa pioneira dos Prefeitos Defensores das Crianças com o objetivo de comprometer os prefeitos municipais a usar sua força e autoridade para melhorar a vida das crianças. Desse modo, definia-se claramente um uso para o poder já instituído do prefeito municipal, especialmente no Brasil, onde ocorreu uma confluência entre essa iniciativa e a recém promulgada Constituição Federal que trazia a novidade da descentralização das ações e das políticas públicas para os municípios. Assim, crianças e cidades passariam a construir uma pólis , um projeto político.

Por outro lado, a AGENDA 21, promulgada no Rio de Janeiro, em 1992, definiu um programa de ação para o desenvolvimento sustentável, e propôs, entre suas prioridades, a justiça social e intergeracional, identificando como esferas de ação a Economia e o Ambiente. Os governos deveriam se comprometer a monitorar numerosos parâmetros para medir os níveis de sustentabilidade e o grau de comprometimento com políticas internacionais, comunitárias e nacionais em favor de um desenvolvimento urbano mais eco-sustentável. Em seu capítulo 25, a AGENDA 21 identifica as crianças 63 e os jovens como atores que devem ser envolvidos na proteção do ambiente e na ação para sociedades sustentáveis.

No âmbito europeu, O Livro Verde sobre o Ambiente Urbano, publicado em 1990, e a Pesquisa para uma Cidade sem Automóveis, de 1991, embora não constituam acordos internacionais, ofereceram indicações e linhas de orientação em setores específicos para a construção de cidades mais sustentáveis, entre as quais as de favorecer usos e funções mistas no planejamento urbano, promover a competência do tecido social e evitar expansões ulteriores, conservar, ampliar e comunicar entre si áreas naturais da cidade, favorecendo meios e modos de transporte urbano alternativos aos meios motorizados privados.

Outro documento, a Carta da Cidade Educativa (Barcelona, 1991), mesmo não tratando explicitamente da questão da sustentabilidade urbana, chamou a atenção das administrações locais para o reconhecimento do papel formativo do ambiente urbano e a co-responsabilidade que ele (e quem o planeja e gerencia) tem no desenvolvimento cultural de todos os cidadãos, a partir das crianças.

Em Istambul, em junho de 1996, os signatários da Segunda Conferência da ONU HABITAT II confirmaram oficialmente as preocupações e análises presentes na área havia pelo menos 30 anos: os atuais processos de desenvolvimento econômico, de planejamento e de gestão urbana são ecológica e economicamente insustentáveis. Eles não apenas põem em risco o bem-estar de uma proporção cada vez maior da população (em particular, as crianças), mas enfraquecem a capacidade dos sistemas naturais do planeta de suportar esses mesmos processos no futuro ( Guia para as cidades sustentáveis , 1998).

Durante a Convenção de Istambul definiu-se uma estratégia internacional guiada pelo UNICEF, intitulada Child Friendly Cities , e aprovou-se uma agenda voltada particularmente para os governos e administrações locais. Além de enfatizar os danos ambientais sobre as crianças, indicam-se ali as prioridades de intervenção para melhorar a qualidade da vida, com especial referência aos adensamentos urbanos. Os objetivos primários enfatizados naquela ocasião foram:

o As crianças são o fundamento do futuro e devem poder se desenvolver de modo tal que assegure o desenvolvimento sustentável do planeta. A educação, a brincadeira e a participação são as chaves. As cidades devem ser projetadas para permitir mover- se autonomamente, a pé, de bicicleta ou em meios públicos. 64

o A participação das crianças é essencial para criar projetos idôneos e viáveis para o ambiente urbano. As cidades projetadas pelas e com as crianças são melhores para todos, constituem um enriquecimento para a sociedade inteira.

o É essencial que todas as crianças possam gozar de um ambiente salubre e seguro, com livre acesso às estruturas sanitárias básicas, a água potável, e sejam protegidas da poluição, das doenças contagiosas e de qualquer outra condição que possa pôr em risco a sua saúde, onde seja possível socializar-se, brincar, participar e conhecer o mundo natural e social, desenvolvendo um sentido de pertencimento.

o Brincar é uma necessidade fundamental para o desenvolvimento e um fator chave para a educação e aprendizagem das crianças. É um meio crítico para compreender a si mesmo, o próprio ambiente, a própria cultura. O ambiente urbano deve ser planejado de modo tal a fornecer o espaço e tempo para a brincadeira livre, e assim permitir a experiência direta do contexto urbano.

o As crianças e suas famílias têm direito a viver num ambiente sustentável, bem como a poder contar com um futuro baseado em condições sociais e econômicas justas.

Outros objetivos considerados igualmente importantes incluem atenção à prevenção, por meio de ações desenvolvidas em centros que garantam as necessárias informações higiênicas e sanitárias e, ao mesmo tempo, forneçam as estruturas para enfrentar as situações de primeira intervenção; o monitoramento e intervenções voltadas para as crianças, especialmente aquelas em desvantagem – como os meninos de rua ou os portadores de deficiência – que devem ser ajudados a superar o isolamento, para depois ser integrados plenamente na comunidade em que vivem, e a potencialização de um clima que não discrimine, mas que favoreça a solidariedade, no respeito às diferenças de gênero, econômicas, culturais, étnicas e religiosas.

Para sustentar esse objetivo, o UNICEF desenvolveu, nesses anos, uma rede com outras agências das Nações Unidas, em especial com a HABITAT, composta por especialistas e por instituições locais, com as quais têm sido realizadas iniciativas importantes para promover o projeto Child Friendly Cities e levar a termo aquelas propostas.

Uma etapa posterior é descrita em Kyoto, na terceira conferência das partes, à qual aderiram 169 países. A Conferência elaborou um protocolo internacional sobre a 65 redução das emissões de gás carbônico, ressaltando que o desenvolvimento das cidades estava entre as causas das mudanças climáticas do planeta.

Outra etapa institucional e supranacional foi a preparação do Plano de Ação para a sessão especial da Assembléia Geral da ONU, prevista para acontecer de 19 a 21 de setembro de 2001 e remarcada para maio de 2002 em decorrência dos atentados de 11 de Setembro. Esse documento, intitulado A World Fit for Children , não apenas reafirma os princípios da Convenção sobre os direitos das crianças, mas define as estratégias e os compromissos das Nações Unidas para o Decênio 2001-2010. Ali podemos ler que:

Nós, por meio deste, reafirmamos o compromisso de não poupar nenhum esforço para continuar a criação de um mundo adequado para crianças, construído sobre nas realizações da última década e guiado por princípios de primeira ordem para as crianças. De forma solidária e com uma ampla gama de parceiros, conduziremos um movimento global pelas crianças, que criará um impulso irrefreável para a mudança. Fazemos esta promessa certos de que, dando alta prioridade aos direitos das crianças, para sua sobrevivência e proteção, servimos aos melhores interesse de toda a humanidade e garantimos o bem-estar de todas as crianças em todas as sociedades. (ONU, 2002: 23, tradução livre da autora) 41

Como podemos ver, o projeto Child Friendly Cities , cujo objetivo é nomear e divulgar as cidades que atribuem às crianças o primeiro lugar em suas agendas políticas e de desenvolvimento, foi precedido pelas proposições da ECO-92, do Rio de Janeiro, e pela HABITAT II, de Istambul em 1996, até assumir a configuração atual, em que são fornecidas as referências conceituais para o desenvolvimento sustentável (cujo desafio é tornar as cidades mais habitáveis e agradáveis para todos).

Essa iniciativa, que vem sendo desenvolvida e discutida em 756 cidades no mundo inteiro, tem raízes e desdobramentos em proposições internacionais dos direitos das crianças (Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU, de 1989), mais especialmente a partir da HABITAT de 1996. Trata de estabelecer medidas que favoreçam os direitos das crianças nas cidades, considerando especialmente o desenvolvimento urbano e condições de vida favoráveis para o desenvolvimento

41 We hereby recommit ourselves to spare no effort in continuing with the creation of a world fit for children, building on the achievements of the past decade and guided by the principles of first call for children. In solidarity with a broad range of partners, we will lead a global movement for children that creates an unstoppable momentum for change. We make this solemn pledge secure in the knowledge that, in giving high priority to the rights of children, to their survival and to their protection and development, we serve the best interests of all humanity and ensure the well-being of all children in all societies.

66 sustentável e para o desenvolvimento das crianças. Vários mecanismos (locais, governamentais, não-governamentais e internacionais) permitem a inscrição dos municípios, projetos e teorizações sobre o assunto nesse programa.

3.2. As iniciativas brasileiras de priorização da qualidade de vida para as crianças que vivem nas cidades

De acordo com o site da iniciativa Child Friendly Cities, dentre as 756 cidades consideradas “amigas da criança” constam 226 cidades brasileiras. Essas cidades, que assumiram o compromisso de estabelecer boas práticas públicas para as crianças nas cidades, estão espalhadas por todo o território nacional.

Essas 226 cidades brasileiras desenvolvem uma diversidade de práticas públicas com crianças e estão distribuídas por várias regiões do país, como pode se visto no Quadro 1. Trata-se de uma grande diversidade de programas voltados à criança no espaço público.

Quadro1 Número de municípios brasileiros, por Estado, inscritos no Programa Child Friendly Cities (CFC) da ONU

CE CFC em Estados Brasileiros SP MG 80 PR 72 SC 70 SC RS 60 BA PE 50 46 SE ES PA 40 RO PB 30 RJ MA 20 17 16 12 12 12 TO 8 AP 10 5 7 5 4 3 3 3 3 RR 2 1 1 1 1 2 1 GO 0 CE SP MG PR SC SC RS BA PE SE ES PA RO PB RJ MA TO AP RR GO MT MS PI MT MS

67

No âmbito nacional, tais municípios estão ligados a iniciativas de premiação de municípios que desenvolvem políticas públicas a favor dos direitos da criança. Em muitos deles, a atribuição do título se deu por várias entradas, isto é, por meio de várias formas de inscrição. Entre essas formas destacam-se: a iniciativa da Fundação ABRINQ para os Direitos da Criança, denominada Prefeito Amigo da Criança e Selo Prefeito Amigo da Criança; a iniciativa Município Amigo da Criança, do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), e o Selo UNICEF.

Prefeitos Amigos da Criança merecem um selo: a iniciativa da Fundação ABRINQ

O Programa Prefeito Amigo da Criança foi lançado em 1996 pela Fundação ABRINQ para os Direitos da Criança. Esta fundação é uma iniciativa de empresários brasileiros vinculados à Associação dos Fabricantes de Brinquedos. Desde 1989, ela apóia programas e projetos relacionados à garantia dos direitos das crianças e “busca desenvolver e também influir no processo político da construção dos direitos da criança” (www.fundabrinq.org.br)

Atualmente essa iniciativa abarca nove programas e cinco projetos: Programa Adote um Sorriso, Programa Biblioteca Viva, Programa de Educação Infantil, Projeto Empreendedorismo Juvenil e Microcrédito, Programa Empresa Amiga da Criança, Programa Garagem Digital, Projeto Mudando a História, Programa Nossas Crianças, Projeto Orçamento Criança, Programa Prefeito Amigo da Criança, Programa Prêmio Criança, Projeto Presidente Amigo da Criança, Projeto Virada de Futuro, Projeto Petrobrás Jovem Aprendiz e Semeando Tecnologia.

Essa iniciativa se identifica com “o desenho político dos anos de redemocratização do país, e especialmente com a descentralização político- administrativa que se instala a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988” (www.fundabrinq.org.br).

O programa Prefeito Amigo da Criança foi lançado com o objetivo de comprometer os candidatos às eleições municipais com uma plataforma em favor das crianças e adolescentes.

Um Prefeito Amigo da Criança é o dirigente municipal que assume o compromisso de priorizar a infância e adolescência em sua gestão e estabelece 68

metas em sua administração para a melhoria da qualidade de vida desse segmento da população, envolvendo a comunidade local em suas decisões.(www.fundabriq.org.br)

A definição do referido Programa informa-nos que ele “compromete e apóia as gestões municipais na implantação de políticas públicas que promovam a melhoria da qualidade de vida de crianças e adolescentes”. Além disso, define-se como parceiro das gestões municipais e pretende contribuir para o fortalecimento dos mecanismos de controle social e garantia de direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Esse programa teve três edições, 1997/2000, 2001/2004 e 2005/2008, coincidindo com o calendário das eleições municipais. As edições trabalharam de modo a enfatizar diferentes medidas de proteção às crianças e adolescentes nos municípios e foram introduzidas mudanças de uma edição para outra, visando sua institucionalização e a possibilidade de ser aplicado em municípios com diferentes condições econômicas, tamanhos e estratégias de trabalho com as crianças.

Os Municípios Amigos da Criança: o Conselho Nacional de Secretários Municipais da Saúde entra em cena

O Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), em parceria com o UNICEF, promoveu a iniciativa Município Amigo da Criança, em janeiro de 1996, tendo como objetivos

[...] promover a elaboração de políticas públicas adequadas dirigidas à criança como prioridade das administrações municipais, sensibilizando e estimulando as novas autoridades municipais sobre os serviços básicos de saúde e apoiar a informação e capacitação dos novos gestores municipais nas políticas e práticas dirigidas à saúde da criança, produzindo e difundindo informação sobre o Sistema Único de Saúde... (Relatório Gestão CONASEMS, 1995-1997: p.8)

Uma Comissão Nacional, constituída por representantes do Programa de Redução da Mortalidade Infantil (Ministério da Saúde), da área de saúde do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), da Pastoral da Criança da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS) e do Fundo das Nações 69

Unidas para a Infância (UNICEF), foi instituída pelo referido Conselho para dar acompanhamento e desenvolvimento ao projeto e também ficou responsável pela seleção dos inscritos. A partir de 9 indicadores que “permitiram abrir uma competitividade real entre os municípios brasileiros, considerando as suas diferenças regionais” (CONASEMS, Relatório Gestão 95/97: 9), a iniciativa deixa em aberto o desenvolvimento de estratégias adequadas a cada realidade local.

Os projetos inscritos foram analisados segundo os seguintes critérios:

• Cobertura vacinal de 80% em todas as vacinas do Programa Nacional de Imunização; • Existência e funcionamento do Conselho Municipal de Saúde e Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente; • Desenvolvimento de Programas Intersetoriais através de ações específicas envolvendo Ação Social, Saúde e Educação; • Desenvolvimento de Programas Especiais para crianças e mulheres; • Percentual de cobertura de abastecimento de água e esgoto de 50%; • Percentual de gestante com pré-natal adequado de 80%; • Sistematizar e difundir as experiências municipais a fim de garantir o intercâmbio entre os municípios; • Reformular o processo e os critérios de credenciamento da iniciativa Município Amigo da Criança (Ofício circular); • Percentual de crianças com baixo peso ao nascer inferior a 10%; • Taxa de evasão escolar inferior a 10%; • Comprovação da existência de alojamento em conjunto nas maternidades existentes nos municípios. (CONASEMS, Relatório de Gestão 95-97: 10)

Dentre os inscritos foram selecionados e habilitados sete municípios. Em solenidade realizada em Brasília(DF), as cidades de Angra dos Reis (RJ), Assis (SP), Cambé (PR), Niterói (RJ), Volta Redonda (RJ), São José dos Campos (SP) e Sete Lagoas (MG) receberam um certificado de reconhecimento público pelo esforço desenvolvido em prol das crianças brasileiras, e o título de Município Amigo da Criança. No Relatório de Gestão do referido Conselho, na seção que trata sobre a reedição do prêmio, notamos alguns parágrafos de reflexões sobre a conjuntura nacional e as estratégias do prêmio. A análise aponta para a imensa desigualdade entre as cidades brasileiras, grande número das quais vinculadas à necessidade de a política de saúde atingir a prevenção e a promoção da saúde, em contraposição ao modelo curativo, hegemônico, baseado na consulta médica e nos hospitais. Vale a pena ressaltar que nesse momento o CONASEMS lança um kit para as prefeituras, em que um dos livretos apresenta o Programa de Saúde da Família “que teve grande impacto” junto às 70 administrações municipais. Foi também a partir de 1997 que o selo UNICEF, outra entrada das cidades brasileiras na iniciativa Child Friendly Cities , foi distribuído, aproveitando a mobilização nos municípios do estado do Ceará, onde a iniciativa foi implantada inicialmente. Na segunda edição do prêmio temos, portanto, a leitura da necessidade de ampliar as ações da saúde da criança para práticas intersetoriais como estratégia para a melhoria da qualidade de vida da população e, particularmente, de mulheres e crianças. Reformulado, o prêmio reafirma a intenção de estimular o gestor público municipal a exercer o seu poder e faz avançar o Sistema Único de Saúde na sua descentralização e consolidação, aliando, ainda, várias forças locais em prol das crianças e mulheres.

Os objetivos do prêmio para a edição 1997/2000 foram os seguintes:

• Promover, como sua função central, a elaboração de políticas públicas adequadas dirigidas a mulheres, adolescentes e crianças como prioridade nas administrações municipais, sistematizando seu desenvolvimento em diversos níveis de complexidade, integrando as políticas públicas desenvolvidas nos municípios e garantindo melhor qualidade de vida; • Promover e fortalecer o trabalho intersetorial voltado para a atenção integral à criança; • Sistematizar e difundir as experiências municipais a fim de garantir o intercâmbio entre os municípios; • Reformular o processo e os critérios de credenciamento da iniciativa Município Amigo da Criança. (CONASEMS, Relatório Gestão 97-99: 46)

Foram critérios excludentes para a inscrição dos municípios nesta segunda fase:

• Descumprimento da Lei de Gratuidade no fornecimento das certidões de Nascimento e Óbito; • Inexistência e/ou não funcionamento dos Conselhos: o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente; o Conselho Municipal de Saúde; o Conselho Tutelar; o Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle do FUNDEF; • Inexistência de atividades/Programas de combate ao Trabalho Infantil e Exploração Sexual de crianças e adolescentes. (CONASEMS, Relatório de Gestão 97-99 p.48)

No campo-tema das relações entre as crianças e as cidades encontramos uma área densa de poderes e de organizações ligadas ao poder público e aos dispositivos da implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente com influência das orientações de diversas agências internacionais para estabelecer um parâmetro de como e onde os esforços das políticas públicas locais devem ser aplicados e trabalhados para que as cidades sejam amigas da criança. 71

No capítulo seguinte abordamos os procedimentos de coleta e análise das informações desta tese na cidade de Santo André, considerada Amiga da Criança pela iniciativa Child Friendly Cities , cuja forma de inscrição na iniciativa deveu-se a premiações da Fundação ABRINQ e também do CONASEMS. 72

CAPÍTULO 4

Procedimentos de coleta e análise das informações

4.1. Objetivos da pesquisa

Os objetivos desta pesquisa são (1) discutir como as políticas públicas consideram e dialogam com as especificidades das crianças, consideradas a(u)tores sociais e (2) discutir as estratégias de cooptação e de enfrentamento das crianças em relação a elas.

4.2. Adotando a perspectiva de campo-tema no delineamento da pesquisa

Ao adotar a perspectiva do campo-tema, o pesquisador posiciona-se fazendo parte da produção do conhecimento relativo ao campo, especialmente do conhecimento elaborado na disciplina com a qual trabalha. Além disso, o campo é entendido como

[...] um processo contínuo e multitemático no qual as pessoas e os eventos entram e saem dos lugares transformando-se em versões e produtos que também são feitos por pessoas e utilizados por pessoas em diálogos que podem ser lentos e distantes, mas mesmo assim acontecem. (Spink, P., 2003: 23-24)

Essa perspectiva considera que os lugares onde os pesquisadores vão realizar suas pesquisas são produções sociais e não realidades independentes. O pesquisador é parte do campo e sua presença nele é negociada junto a outros atores e a outras conversas que estão presentes.

Desse modo, tomando como ponto de partida o trabalho de Spink, P. (2003) e as discussões travadas no Núcleo de Pesquisas Organização e Ação Social da PUC-SP, consideramos a pesquisa como uma ação, uma prática social. Uma de suas características é a processualidade de seu desenrolar nos vários lugares em que acontece, pois a presença do pesquisador no campo-tema é sempre negociada. Isso implica, entre outras coisas, que nossa legitimidade no campo não se dá simplesmente pelo fato de sermos os pesquisadores ou pelo fato de sermos psicólogos sociais, mas especialmente por estarmos nele.

Precisamos, ainda, estar preparados para discutir como negociamos a nossa presença nas diferentes partes da matriz do campo-tema e como lidamos com a 73

questão ética nos lugares onde fomos e nas conversas que tivemos e como fizemos de maneira compreensível para todas as pessoas direta ou indiretamente presentes. Precisamos lembrar que psicólogas e psicólogos sociais são, antes de mais nada, seres sociais. (Spink, P., 2003: 39)

Essa concepção exige dos pesquisadores uma postura ética no sentido de explicitar seus objetivos junto às pessoas e aos espaços de relacionamento presentes no campo e obter sua aceitação. Na presente pesquisa, nossos objetivos apontavam para o campo das relações das políticas públicas com as crianças na cidade, de forma que a ênfase recaía sobre os aspectos cotidianos e da ação, sobre o modo como aconteciam essas práticas.

4.3. A escolha do “caso”: por que Santo André?

Nas aproximações iniciais do campo-tema, o interesse e a curiosidade pelas relações entre as crianças e as Cidades Amigas da Criança surgiram naturalmente, em decorrência de nosso trabalho na área da infância. Esse campo-tema pouco a pouco mostrou-se relevante para a disciplina e, nesse processo, o diálogo com nosso posicionamento pessoal e profissional esteve sempre presente. Uma questão que se apresentava era como escolher as cidades ou a cidade e de que forma nossa posição como pesquisadora também poderia dizer o que é uma cidade “amiga” da criança. Um passo na escolha inicial partiu da constatação de que, se tornar público é parte da política pública, então a escolha deveria incidir sobre aquela ou aquelas cidades nomeadas como Amigas da Criança. Assim, na primeira aproximação, não bastaria encontrar exemplos de cidades com boa prática de gestão pública, com políticas voltadas para as crianças. Era preciso encontrar um bom exemplo de Cidade Amiga da Criança, que não apenas promovesse políticas voltadas para as crianças, mas também tivesse tornado público esse esforço, inscrevendo suas iniciativas em programas destinados a essa finalidade. Conseqüentemente, optamos por escolher um caso em que havia uma intenção política de transformar a cidade num bom lugar para as crianças viverem e que possibilitava a observação do cotidiano das ações das políticas públicas voltadas para a criança. A escolha de Santo André pautou-se no fato de a cidade ser uma Child Friendly City que recebeu premiações no Programa Prefeito Amigo da Criança e no Programa Município Amigo da Criança. 74

Além disso, a escolha também foi influenciada pela proximidade física, uma vez que Santo André fica a uma hora de Santos, local onde residimos, e pelo fato de desenvolvermos um trabalho de supervisão junto à equipe do Centro de Atenção Psicossocial Infantil daquela cidade, desde sua implantação em 2005.

4.4. Sobre as políticas públicas voltadas para crianças

As aproximações à política pública municipal voltada para as crianças e adolescentes foram feitas por meio de conversas, entrevistas e participações em eventos e em reuniões de gestores.

Aproximações aos gestores: conversas e entrevistas

Quando pensamos em quem seria a primeira pessoa a contatar, pedimos ao coordenador da Saúde Mental, que acompanhava de perto as políticas públicas da cidade, que nos sugerisse alguém para uma conversa inicial. Ele nos indicou a Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança. Por contato telefônico, apresentamo-nos como aluna do curso de doutorado em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explicando a nossa intenção de conversar com ela sobre a cidade e sobre as políticas premiadas, pois esse era o tema da pesquisa. Pedimos também que, se possível, nos indicasse outras pessoas e programas que pudéssemos conhecer. A entrevista aconteceu em São Paulo, na sua casa, com gravador ligado, e trouxe-nos muitas informações sobre a cidade. Entusiasmada com as políticas públicas do município, a presidente do Conselho falou-nos da “Redinha” e do programa de acompanhamento das famílias com bolsas governamentais.

Essa entrevista inicial abriu muitas perspectivas de conhecimento da política para a criança na cidade e deixou entrever a centralidade do trabalho desenvolvido junto às famílias que recebem o auxílio das bolsas governamentais. Assim, procuramos a coordenadora desse programa, que aceitou conversar sobre ele. Falamos do nosso interesse pelas políticas premiadas como Cidade Amiga da Criança e em conhecer como a cidade de Santo André se organizava nas políticas voltadas para a infância. Em seu local de trabalho, conversamos longamente com ela sobre a iniciativa de acompanhamento das famílias nos programas de assistência social, sem gravador ligado. A coordenadora informou-nos que esse acompanhamento acolhe também casos graves e 75 difíceis, que exigem outros recursos. Além disso, tal como a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança, apontou para a importância das reuniões dos serviços na “Redinha” para a resolução dos graves problemas que as famílias enfrentam no cotidiano.

Acompanhando os gestores em seu cotidiano: a Redinha

Na Redinha, encontramos a proposta de construção do trabalho intersetorial para a política de inclusão da administração municipal. Acompanhamos os gestores em suas reuniões quinzenais por três meses. Negociamos a nossa presença nesse espaço com a apresentação dos objetivos do trabalho, enfatizando o fato de a cidade ter práticas premiadas na política pública voltada para crianças. Com boa acolhida, os diferentes gestores se colocaram à disposição para conversar sobre os seus serviços e ressaltaram que seria importante solicitar autorização por escrito, caso precisássemos entrevistar as crianças ou ter contato com elas, especialmente as que estavam abrigadas. Nesse período, participamos das discussões de casos pelos serviços e pudemos acompanhar a visita que a Redinha fez à unidade de internação da Fundação CASA, em Mauá, e também parte da organização da Conferência Municipal dos Direitos da Criança.

Participação nos fóruns públicos: eventos e conferências

Durante o período de participação na Redinha, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente estava organizando a Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Essa organização era discutida também na Redinha, não como forma de deliberação, mas como encaminhamento de sugestões sobre os temas a serem abordados nas pré-conferências.

Um dos temas que se fez presente nas discussões foi o das crianças em situação de rua. A questão mais enfatizada pelos gestores foi a compreensão de que as crianças que estão nas ruas estão também trabalhando. Falou-se das dificuldades de inseri-las em postos de trabalho, como aprendizes, pois as empresas exigem não apenas a matrícula na escola, mas também que a escolaridade seja compatível com a faixa etária, e a maioria dessas crianças estão defasadas na série escolar. 76

Pudemos estar em vários fóruns municipais relativos aos direitos das crianças. Na pré-conferência de abertura da Conferência Municipal, que versou sobre trabalho infantil, por exemplo, ao ver o folder da conferência, percebemos que um dos temas a ser discutidos eram os “Espaços públicos de difusão da cultura e promoção da qualidade de vida”. Nessa conferência, foram apresentados dois trabalhos desenvolvidos pela administração municipal, os Centros Educacionais de Santo André, CESAs, e a Política Municipal de Lazer.

Diferentemente dos outros espaços que vínhamos acompanhando, essa pré- conferência trouxe a perspectiva de uma aproximação às crianças e famílias de forma comunitária e menos institucionalizada pelas determinações da organização da política pública, tal como determinada pelo ECA, e com objetivos claros de construção de espaços comunitários e de aproximação com a política pública. Os dois projetos, o dos Centros Comunitários e o Expresso Lazer, apresentaram-se como espaços de relação entre as crianças e a cidade que foram deliberadamente trabalhados pelas políticas públicas: os CESAs foram apresentados como locais para serem usados pelas pessoas da comunidades como espaço público com o objetivo de que se apropriar dele. A política de lazer, por sua vez, tinha como proposta levar o lazer às comunidades que não têm acesso a ele, na periferia da cidade. Ao final da pré-conferência, nos apresentamos ao palestrante da Secretaria de Cultura, cumprimentando-o pelo trabalho, e falamos sobre a pesquisa. Ele mostrou-se interessado e solicitamos um horário para conversarmos sobre o projeto do Expresso Lazer. Durante a entrevista, realizada na Secretaria de Cultura, de gravador ligado, conversamos sobre a política de lazer em Santo André e sobre o Expresso Lazer, revelando o nosso interesse de conhecer o projeto. O funcionário da Secretaria sugeriu que acompanhássemos a ação do Expresso, por considerar que a pesquisa poderia ser importante para a equipe que então se preparava para trabalhar de forma mais próxima das crianças, como agentes de lazer nas comunidades. Além disso, ele se prontificou a organizar um encontro com o gerente de Ação Comunitária, responsável direto pelas ações do Expresso Lazer na Secretaria.

4.5. A vivência das ações emanadas das políticas voltadas às crianças

Observação das crianças no espaço urbano 77

Durante o período de pesquisa, nos dirigíamos para Santo André semanalmente e lá percorríamos uma parte considerável da cidade de automóvel até chegar ao nosso destino. Durante essas idas e vindas, pudemos fazer algumas paradas e observar as crianças em seu cotidiano na cidade, de forma aleatória.

Essas observações, bem como as participações, conversas e impressões sobre as entrevistas, foram anotadas num diário de campo. Ao mesmo tempo, fizemos uma coleta de panfletos, folhetos e materiais que eram distribuídos pela administração municipal para o público.

Observamos as crianças caminhando em grupos pelas ruas, uniformizadas e esperando o ônibus para ir à escola ou voltar para casa. Nas vias mais urbanizadas por onde andamos, as crianças circulavam do mesmo modo que a maioria dos adultos, mostrando-se ocupadas, mas o faziam de forma mais pessoal e livre, com movimentações corporais mais amplas, às vezes mais lentas, detendo-se em pequenas coisas, para conversas, por exemplo. Nessas ocasiões, elas usavam os espaços de forma mais livre, subiam nos bancos, abraçavam os postes, corriam, paravam para conversar, chamavam uns aos outros. Quando estavam desacompanhadas de adultos, predominava a interação.

Em dois momentos nos detivemos com a finalidade explícita de observação: numa praça no centro da cidade, e num parque, junto a um equipamento da Secretaria de Cultura, a brinquedoteca municipal.

O Expresso Lazer como estudo de caso

Tanto os projetos dos Centros Comunitários como o Expresso Lazer são espaços de relação entre as crianças e as cidades deliberadamente trabalhados pelas políticas públicas. Embora os outros espaços também relacionem as crianças às cidades, a suas escolas e à possibilidade de usarem ou participarem de espaços públicos, decidimos observar o Expresso Lazer por considerar que o brincar é tradicionalmente conhecido como uma área de expressão autônoma da criança.

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4.6. Procedimentos de análise

A análise foi construída na forma narrativa e será apresentada aqui numa mescla de várias vozes, pois entendemos que as pessoas observadas na pesquisa também são autores e que a interpretação resulta de uma confluência de diferentes vozes. O fio condutor da análise são as narrativas de caso discutidas na Redinha e as situações no Expresso Lazer usadas como disparadores das interpretações e como amarrações temáticas do campo. Em outras palavras, foram escolhidas para ilustrar os temas que dão vida aos objetivos da pesquisa.

As informações coletadas sobre como a Cidade Amiga da Criança se organiza na Redinha têm caráter mais descritivo. As entrevistas serviram de apoio para a compreensãodo desenvolvimento das políticas e os casos ajudaram a descrever como ocorre o cotidiano das práticas públicas.

Na perspectiva dos objetivos de pesquisa, essas informações possibilitaram discutir como as políticas públicas consideram as especificidades das crianças. O estudo sobre o Expresso Lazer, por sua vez, atende mais às expectativas de entender as estratégias de cooptação e enfrentamento das crianças no que diz respeito ao uso do espaço público.

As observações do Expresso Lazer ocorreram em cinco finais de semana no mês de agosto e um em setembro de 2007. Nesta parte da pesquisa contamos com o apoio de ex-alunos do curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos. Organizamos um espaço de troca das informações onde conversávamos sobre as observações: os ex- alunos relatavam suas observações por escrito e as apresentavam para o grupo, discutindo-as em encontros semanais, na universidade.

As informações foram transcritas de forma a fazer emergir conexões entre os conteúdos das políticas públicas e as relações entre as crianças e a cidade. Assim, vários aspectos chamaram nossa atenção nos diferentes lugares de nossa aproximação ao campo-tema: Expresso Lazer, Redinha, pré-conferências, eventos. Na perspectiva do campo-tema, além da atenção na construção do foco da pesquisa, também precisamos nos pautar por uma ética mais ampla, que busca não colonizar o cotidiano, especialmente no momento de relatar os resultados (Spink, P., 2003: 39). Uma forma de apresentação que dá conta desse cuidado é justapor idéias, argumentos e ações que estão presentes no campo-tema. Com esse objetivo, a análise das informações procurou 79 justapor a fala das pessoas entrevistadas, as situações observadas e nossas interpretações, vinculadas aos objetivos da pesquisa.

Demos um tratamento temático a esse material, de maneira a apresentá-lo num formato que procura explicitar algumas das conversas presentes no campo-tema.

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CAPÍTULO 5

Santo André: uma cidade amiga das crianças

Este capítulo tem o objetivo de trazer os temas principais que emergiram durante a pesquisa nos diferentes espaços de gestão que fizeram parte do nosso percurso. Abarcando as relações entre crianças e as cidades, os temas se relacionam às proposições das políticas públicas organizadas como amigas da criança, que estão apresentadas nos capítulos anteriores.

5.1. Sobre Santo André

A cidade de Santo André tem 667.891 mil habitantes e uma área territorial de 175 quilômetros quadrados 1 , está localizada no ABC paulista, conhecido por ser uma região industrial com alta concentração de indústrias metalúrgicas, especialmente de autopeças. O mapa da cidade mostra algumas características peculiares. Em primeiro lugar, Santo André tem fronteiras com várias outras cidades (São Paulo, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Suzano e Santos). A maior parte do seu território está localizada em áreas de mananciais (90%). A cidade é parte do assim chamado ABC paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano), região caracterizada pela grande atividade industrial e historicamente conhecida pela organização de atividades sindicais e pela resistência dos trabalhadores no Estado de São Paulo. Ao observar seu território pode-se perceber que apenas um pequeno espaço da cidade é urbanizado no sentido mais conhecido do termo. Uma área engloba a maior parte dos bairros da cidade e concentra os maiores índices de população. Trata-se da região onde o poder público tem investido na criação de serviços de saúde e de educação, além de ser também a que concentra os investimentos do Programa Municipal de Inclusão (pobreza) e posteriormente o Programa Santo André mais Igual. O plano diretor da cidade normatiza a distribuição quanto à ocupação do solo urbano em diferentes regiões e em especificidades, tais como a definição de áreas de preservação ambiental, área urbana propriamente dita e mistas. Busca ser um

1 IBGE. Contagem da população , 2007. 81 instrumento de igualdade na distribuição das ações e das políticas públicas e sua apresentação como um mapa da cidade é semelhante à divisão da cidade de acordo com as estratégias e as áreas do programa Orçamento Participativo. Tais características, derivadas do contexto histórico da criação de uma cidade em torno de uma ferrovia, mostram uma cidade que foi ocupada e cresceu por causa de grande atividade industrial (química, metalúrgica e de transformação), tendo a ocupação de seu território seguido esse desenvolvimento, e, não menos importante para sua configuração de cidade, com intenso fluxo migratório de todas as regiões do país de pessoas que buscam a vida no estado de São Paulo.

A partir dos anos 1980, e com mais intensidade na década seguinte, é iniciado um processo de evasão industrial no Grande ABC, com a substituição desta atividade pela comercial e de prestação de serviços, que afetou especialmente Santo André, com uma perda de valor agregado de cerca de 39%. Uma economia de 6 bilhões de reais se reduziu a apenas 3,6 bilhões no período 1980 a 20001. O empobrecimento da cidade se refletiu no aumento de população residente em favelas, com um incremento de 3,78%, ao ano, de 1991 a 1996, enquanto no mesmo período a população da cidade aumentou em apenas 0,31%2. (Laranjeira, 2003: 4)

Seu mapa retrata um território com uma mescla de espaços intensamente urbanizados e outros com necessidades de urbanização, ocupados por favelas e por áreas de mananciais. A parte mais urbanizada da cidade recebeu melhorias com a canalização do rio Tamanduateí (gestão do Prefeito Celso Daniel), que, trouxe embora tenha melhorado a vida da cidade, é muitas vezes criticada por ter privilegiado a ocupação do território pelas pessoas com melhores condições socioeconômicas. Outros esforços políticos e de administração da política pública no espaço urbano tornaram-se conhecidos pela urbanização de várias favelas (Sacadura Cabral, Tamarutaca, Quilombo I, Quilombo II e Capuava). O processo de urbanização dessas favelas também apresenta peculiaridades daquela forma de intervir no espaço urbano. O espaço urbano não se apresenta dissociado das condições em que que as pessoas vivem, nem tampouco das formas como a política pública orienta suas ações. A iniciativa é apresentada como Destaque no Programa Gestão Pública e Cidadania da Fundação Getúlio Vargas.

Santo André, cidade amiga da criança 82

A população infanto-juvenil de Santo André está assim distribuída quanto a sua faixa etária:

Faixa etária Habitantes 0 a 3 38.410 4 9.275 5 e 6 18.554 7 a 9 30.521 10 a 14 55.090 15 a 17 35.879 2

A nomeação que a cidade recebe como Cidade Amiga da Criança (CFC) deve-se a sua inscrição por ter ganho o selo e o prêmio Prefeito Amigo da Criança da criança da Fundação ABRINQ com os programas:

• Programa de Educação Inclusiva (educação especial); • Programa de Atenção e Prevenção à Violência contra Crianças, Adolescentes e Mulheres de Santo André; • Programa Mais Igual de Complementação de Renda (renda familiar); • Participação Ativa (assistência a jovens); • Programa de Combate às Carências Nutricionais (saúde da criança); • Cultura, Esporte e Lazer para Crianças e Adolescentes (cultura); • Complementação Socioeducativa (assistência a crianças e adolescentes); • Ampliação do Atendimento da Educação Infantil (educação infantil); • Programa de fortalecimento dos mecanismos de defesa dos direitos da criança e do adolescente (direito e justiça); • Programa Bem Nascer (mortalidade infantil). (ABRINQ 2004: 31)

Tais programas foram destaque no livreto comemorativo do prêmio, juntamente com os municípios de Goiânia, Porto Alegre, Timon e Uruará. O município também inscreveu 76 programas no programa Gestão Pública e Cidadania da Fundação Getúlio Vargas durante o período de 1996 a 2005. Foi considerado finalista em 17 deles, ganhou a categoria “Destaque” para o Programa Integrado de Inclusão Social, em 2000. Ao todo, 18 projetos envolviam diretamente crianças e adolescentes. Ao longo dos últimos quinze anos, Santo André foi considerada cidade amiga da criança especialmente por seu Programa Integrado de Inclusão Social das Famílias:

2 Fonte: IBGE. 2001. 83

O Programa integrado, implantado em 1999 pela Prefeitura de Santo André, SP, tem caráter de projeto-piloto com o objetivo de executar uma nova forma de gestão das políticas públicas destinadas à inclusão social. A inovação está no fato de ser experiência de gestão integrada, descentralizada e participativa, envolvendo projetos e ações da administração municipal voltados para a inclusão social de setores tradicionalmente excluídos dos mais elementares direitos de cidadania . Coordenado pelo gabinete do prefeito, o programa consiste na aplicação conjunta e simultânea de ações prioritárias, num mesmo território da cidade . Nas áreas selecionadas busca-se dar oportunidade de inclusão social à população de favelas, a partir de ações integradas e da participação da comunidade. Uma conquista importante tem sido o entrosamento do trabalho cotidiano das equipes envolvidas (urbanização, renda mínima, saúde, educação, trabalho e renda e crianças e adolescente), sem perda das particularidades de cada projeto, abrindo- se canais de comunicação entre técnicos, agentes locais e população. Com forte apelo à participação direta da comunidade, o programa pretende que ela se aproprie do território onde mora como local agradável de viver. (Fundação ABRINQ, 2004: 53)

O trabalho em rede 3 não se restringe ao trabalho com crianças e pode ser encontrado no contexto de todas as políticas públicas desenvolvidas na cidade. O exemplo maior dessa forma de trabalho foram os Programas de “Inclusão” e depois o “Santo André Mais Igual”. Na entrevista com a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, percebemos a ênfase dada à política municipal de inclusão, que tem o objetivo de modificar as situações de pobreza em que vivem as pessoas que moram. Busca, assim, uma organização das ações municipais que favorecesse as pessoas com as ações estabelecidas nos setores tradicionalmente distribuídos das políticas. Conforme afirma a entrevistada: “Para melhorar a vida das pessoas, elas precisam mais do que de dinheiro”. Outra característica presente na cidade ao se organizar para defender os direitos da criança: a entrevistada fala da busca constante do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do poder público municipal pela participação da sociedade civil e da importância do envolvimento de todos os atores, inclusive dos empresários, no sentido de formular políticas e fazer as parcerias necessárias, angariar fundos, doações para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e sensibilizar as pessoas a se envolverem, inclusive financeiramente, com os direitos das crianças. Cabem aos conselheiros as iniciativas de organização dessa interface da prática entre conselho e sociedade civil. Ela aponta a organização entre as secretarias como principal

3 Entrevista com a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Santo André. 84 característica do poder público municipal e como isso dinamiza o trabalho e funciona para a transformação das desigualdades. Ela também enfatiza que, para a transformação dessas situações, o acompanhamento das famílias envolvidas nos projetos e que recebem as bolsas do governo é uma parte importante da política pública. Relata que, antes de ser uma política (Bolsa Família) do governo federal, esta já era também uma iniciativa do próprio município. O programa de Renda Mínima, implantado junto com a urbanização das Favelas Sacadura Cabral, Capuava, Tamarutaca e Quiombo II, pagava uma quantia em torno de 900 reais, pelo período de até dezoito meses, para as famílias inscritas no programa de urbanização com filhos até 14 anos cujos rendimentos não ultrapassassem meio salário mínimo per capita e residentes na cidade há mais de três anos. De acordo com a entrevistada, várias iniciativas do poder público municipal, juntas e coordenadas, sem duplicidade, sem burocracia, podem resolver a situação. Ela mostra entusiasmo com a proposta e, como Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, conta que uma de suas funções é discutir e levar propostas e projetos a serem implantados que ajudem essa situação a melhorar cada vez mais. Quanto à política pública municipal para a criança, o Departamento de Assistência Social tem uma seção que lida com as inscrições das famílias nas bolsas e as acompanha em relação aos condicionantes que são estabelecidos. A coordenadora dessa seção relata que existem muitas dificuldades no acompanhamento das famílias e no cumprimento das obrigações ou reciprocidades, tais como estão determinadas nas leis. Os profissionais trabalham com esta perspectiva e conseguem identificar situações mais difíceis, fazem acompanhamento mais personalizado de alguns casos, ao passo que os muito difíceis são levados para a discussão junto a outros equipamentos e serviços. Ocorre que, muitas vezes, o foco das resoluções dadas nesses fóruns extrapola a ação de acompanhamento em sua seção e requer, por exemplo, uma internação em comunidade terapêutica, quando o caso é de uso de drogas. Além disso, às vezes o dinheiro das bolsas não é suficiente para manter a criança em casa e as relações familiares precisam ser trabalhadas. Nesses casos, as crianças e as famílias devem ser encaminhadas para atendimentos psicoterapêuticos. A entrevistada conta que a rede de serviços de Santo André é ampla, composta por vários serviços públicos, privados e conveniados à Prefeitura Municipal.

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5.2 A presença das crianças na cidade

Qual é, no entanto, a presença da criança em Santo André? Andando na cidade, a pé ou de carro, observamos que se trata de uma cidade com uma grande malha viária, muitos rios, aterros, muitos viadutos e muito trânsito; assim, não é fácil andar nela. No trajeto, encontramos crianças andando em grupos, mas apenas na hora do almoço, na saída da escola, quando, todas de uniforme, se dirigem para o ponto de ônibus. Com essa exceção, no espaço urbanizado da cidade não há crianças andando. Em determinados horários, pela manhã ou à tarde, pudemos ver poucas crianças, seja em grupo, seja sozinhas. Como Colin Ward diz, na cidade as crianças devem encontrar espaços em que possam estar. Nesse caso, além de a situação urbana mostrar-se inóspita, o lugar de estar na cidade é ir da escola para casa. Em outra observação, na Praça do Carmo, no centro da cidade de Santo André, num dia de semana à tarde, algumas crianças, também em grupo, brincavam no chão da praça. Chama a atenção, primeiro, pela pergunta: por que não estão na escola? Embora se tente manter a naturalidade e a possibilidade de uso daquele espaço público, essa pergunta não fica de lado. Eram crianças pobres que bem poderiam ter ido à escola no período da manhã. Elas (três meninos e duas meninas entre seis e dez anos) brincavam entre si, sentadas no chão. Buscavam sempre nos canteiros próximos ou nos caminhos da praça algum galho de árvore ou florzinha e oscolocavam no centro de círculo que formaram entre si. As brincadeiras se seguiam nesse movimento de buscar e trazer as coisas que encontravam. Ao buscar alguma coisa, acontecia uma brincadeira de pega- pega, uma aposta de corrida, uma conversa, uma briga, depois das quais elas retornavam ao círculo onde estavam no começo, depositando os materiais. Uma mulher adulta estava com elas. Somente algum tempo depois percebemos que estavam juntos, pois as crianças não a procuraram nem foram procuradas; ela estava sentada num banco, quieta. A interação entre eles foi breve e limitou-se a pedir à mulher adulta que segurasse ou guardasse para elas algumas coisas que haviam juntado no centro do círculo. Ainda nas imediações da Praça do Carmo, onde as ruas da cidade são calçadões e o comércio é bastante variado – com lojas, restaurantes e camelôs –, um lugar com uma grande circulação de pessoas, observamos algumas crianças andando junto com suas mães, de mãos dadas. No entanto, embora quisessem se deter em alguns lugares, para olhar e mexer naquele mundo de coisas que estão expostas nas vitrines e nas barracas de camelôs, elas são puxadas pelas mães que seguem caminhando para seus 86 destinos, apressadas. Acompanhamos, como pedestre, transeunte, uma criança em especial; ela vai andando, ao lado de sua mãe, acompanhando o ritmo de seu passo até que se detém numa cerca de ferro da passarela de um viaduto, passa a mão que está livre pelos vazios verticais da grade e olha o trânsito. Logo a mãe a puxa pela mão e seguem andando, no mesmo passo. Mais adiante um muro com acabamento irregular de cimento com muitos grafites desenhados, novamente a criança passa a sua mão livre nele enquanto anda, tenta parar para ver os desenhos, mas o mesmo se repete. Avenidas, viadutos, comércio. Outra observação foi feita na chácara Pignatari, lugar onde existe uma brinquedoteca do Departamento de Lazer da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, sábado à tarde e numa terça-feira pela manhã. Na terça-feira pela manhã a brinquedoteca está vazia: é o dia de arrumação e de faxina e ela não é aberta ao público. Havia poucas crianças lá fora no parque. Duas crianças entram no parque, andam até uma área onde há alguns escorregadores e balanços, aproximam-se dos brinquedos, mexem rapidamente neles e saem andando da mesma forma como entraram. Ficamos com a impressão de que elas não se interessaram por estar lá, mas que certamente teriam gostado de entrar na brinquedoteca. Sábado à tarde, com a brinquedoteca em funcionamento, as crianças circulam em maior número pelo parque, algumas estão em grupos e outras acompanhadas por adultos. A brinquedoteca atrai e elas vão juntas brincar lá dentro. Entram e saem constantemente, alguns adultos entram e ficam lá dentro, não saem. As crianças vão e voltam à brinquedotca. No parque, elas brincam de pega-pega e esconde-esconde, sentam nos bancos, correm e param para conversar. No espaço onde estão os escorregadores e balanços ficam as crianças menores, acompanhadas de seus pais. As crianças maiores não vão lá, olham, mas raramente brincam nos brinquedos.

5.3 As ações voltadas à criança em sua relação com a cidade – a Redinha A Redinha é formada por representantes do poder público municipal: Secretaria Municipal de Educação, especialmente com gestores do Programa de Inclusão, Secretaria de Assistência Social (ou departamento da Assistência Social), com gestores dos programas de atendimento às famílias e às crianças em situação de rua, o Programa Andrezinho Cidadão, Secretaria Municipal de Saúde, especialmente com gestores dos serviços, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) e Centro de 87

Atenção Psicossocial Infantil (CAPSI) e gestores de entidades conveniadas à Secretaria Municipal de Educação para os abrigos, serviços de atendimento especializado para as situações de violência doméstica. Prevê também a participação do Conselho Tutelar e conta, eventualmente, com a presença de convidados que podem participar de forma pontual ou se agregar de forma contínua às discussões, tais como representantes da Fundação Casa e da Secretaria de Estado da Educação através da Divisão Regional de Ensino. A Redinha teve seu início junto com a política de inclusão, porém como uma iniciativa das pessoas que trabalhavam com as crianças e atendiam os casos mais graves nos serviços. Esses casos apresentavam as situações mais difíceis de ser transformadas pelas práticas. Os profissionais, especialmente da área da Saúde, foram os precursores da iniciativa ao se reunir para discutir as ações de cada serviço, visando integrá-las para que fosse alcançado um resultado melhor e mais eficiente. A proposta foi também levada ao Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente e passou a integrar gestores das outras áreas. Tal processo foi facilitado pela iniciativa de trabalho conjunto existente nas secretarias municipais que realizavam reuniões com objetivos de favorecer a inclusão das pessoas da cidade. Essas reuniões eram realizadas com a presença do prefeito municipal. A nosso ver, essa característica, de reunião entre vários gestores com foco em situações que envolvem seus trabalhos e as crianças, é a característica mais marcante desse trabalho. Embora as reuniões nem sempre consigam atingir as ações a que se propõem, os gestores discutem os casos mais desafiadores e espera-se que a rede de serviços possa resolver. Fica claro que essa iniciativa trabalha com a lógica da inclusão e que o acontecer dessas reuniões é marcado pela lógica da política de inclusão do município. A presença do poder público é marcante, seja pela participação de um grande número de gestores de secretarias municipais, seja pela presença constante dos coordenadores da reunião: gestor do departamento de Assistência Social e também da presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança.

No entanto, não estamos falando de um processo de transformação nas relações com as crianças de forma direta. E podemos refletir sobre uma linha vertical que paira sobre a lógica da Redinha, no contexto da Política Pública Municipal, Inclusão, dinheiro das bolsas, condicionantes e acompanhamento dos casos. À primeira vista, a Redinha pode dar a idéia de que estamos falando de um momento de construção; no entanto, ela 88 se mostra mais como um lugar de muitas conversas, reclamações, apoios mútuos e também onde as pessoas se sentem capazes de resolver as questões e querem todos os atores se envolvendo com isso. A riqueza da Redinha está no fato de as pessoas não quererem ficar sozinhas, com seus casos e com as situações difíceis, porém os acordos e encaminhamentos para a resolução das situações mais problemáticas não questionam a ausência de dialogia com as crianças nas práticas cotidianas. Observa-se isso numa situação em que o foco da discussão era o atendimento de um adolescente de Santo André internado na Fundação Casa, com diversos problemas comportamentais e de saúde mental e que demandava ações conjuntas de vários serviços, programas e profissionais da rede municipal de atenção à criança, bem como uma integração de objetivos junto à Fundação Casa, onde ele estava cumprindo medida de privação de liberdade. No entanto, as propostas levantadas – que envolviam visitação familiar, planejamento junto com o adolescente do seu processo de desinternação por profissionais que já o conheciam e tinham com ele um relacionamento de confiança, bem como a reavaliação de condutas referentes à medicação durante o período de internação – não se concretizaram. A responsabilização de cada ator não foi modificada, permanecendo a lógica anterior, que ali, pelo menos, não conflitou com a idéia da inclusão: essa mesma questão ou caso não foi apresentado como um problema a ser discutido pelos gestores depois do desfecho da situação (o adolescente foi internado, com medida judicial, num hospital psiquiátrico). A lógica de inclusão ali observada enfoca mais a intersetorialidade, entendida como o conhecimento compartilhado que os serviços têm dos casos e as propostas de ação conjunta. De que relação entre cidade e criança estamos falando nessa forma de organização das políticas públicas? A seguir, apresentamos alguns casos que foram discutidos na Redinha, procurando fazer emergir relações que se estabelecem, nesse contexto, entre as crianças e as cidades.

De que relações com a cidade se fala? – Casos discutidos nas reuniões da Redinha

1. As crianças que não são de Santo André e que estão em situação de rua

As crianças em situação de rua foram assunto de várias reuniões envolvendo os gestores na Redinha. Trata-se de uma preocupação de muitos municípios e, historicamente, o assunto também se relaciona de maneira muito próxima com a 89 implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo sido abordado pela mídia e também nas discussões parlamentares e audiências públicas realizadas para a sua aprovação. Esse Estatuto tem a municipalização como orientação para a política de atendimento em todas as áreas relativas à criança e ao adolescente. Muitos Promotores Públicos e Conselheiros Tutelares, ao longo de sua implementação e negociações em torno das ações a serem desenvolvidas nos municípios, têm o entendimento de que a criança, qualquer criança, deva ser atendida em seu município. No entanto, a questão de que ela deve ser recambiada para seu município de origem é assumida com naturalidade por todos, o que já não acontece no que diz respeito a quem deverá fazê-lo: se o conselho tutelar ou o poder público municipal. Na Redinha configura-se uma disputa sobre quem deve fazer o recâmbio das crianças a seus municípios. Evidencia-se um conflito entre o Conselho Tutelar e os gestores presentes na Redinha que apresentam várias situações envolvendo crianças que são entendidas como de responsabilidade do Conselho Tutelar, que, por sua vez, se recusa a participar das reuniões da Redinha. Na reunião da Redinha discutia-se que as crianças são duplamente fora de lugar. Fora de lugar por estarem nas ruas da cidade, e fora de lugar por não estarem no seu município. O Conselho Tutelar também não está no lugar em que deveria estar – nas discussões da Redinha. Os gestores ali reunidos organizavam seus argumentos para convencimento próprio e, também, porque neste dia de reunião contavam com a presença de advogados que estavam ali para orientar a confecção de um documento conjunto a ser encaminhado à promotoria pública. Além de apresentar a situação de recusa da participação do conselho tutelar nas reuniões, a intenção do documento era relatar a grave situação de violação dos direitos provocada pela recusa em fazer o recâmbio das crianças em situação de rua. As discussões sobre a responsabilidade em relação às crianças de outros municípios que estão nas ruas de Santo André mobilizaram uma rede de atenção. A proposta de atuação no recâmbio para os seus municípios não se fez de forma burocratizada (há municípios que simplesmente enchem uma perua com as crianças e as depositam na porta do Conselho Tutelar do outro município, prática comum em cidades do estado de São Paulo) e várias sugestões foram abordadas. As propostas apresentadas incluíram desde a possibilidade de criar uma estação que funcionasse como um contato entre os municípios que pudesse dar conta da acolhida das crianças que estão sendo recambiadas, até a constatação de que as crianças 90 gostam mais de estar em Santo André e que o recâmbio tem sido inútil, pois outros municípios não têm estratégias voltadas à resolução da situação das crianças que estão nas ruas. Além das ruas de Santo André, as crianças procuram também os serviços da cidade. Essa constatação faz emergir um certo orgulho nos integrantes da Redinha, por acharem que estão desenvolvendo os seus trabalhos de forma melhor que os municípios vizinhos. No entanto, há uma relação mais próxima da visão das crianças e de suas relações cotidianas com a cidade quando se trata de falar sobre as ações com as crianças que estão em situação de rua, mas que têm residência na cidade. São as crianças que usam, ou se recusam a usar os serviços municipais, cujos gestores estão na Redinha.

2. As crianças que estão nas ruas e são da cidade nem por isso contam com menos conflitos

O espaço da rua é visto como caótico, sem limites, cheio de atrativos e sem dimensão de tempo ou espaço. Durante as reuniões, muitas vezes observamos que, ao falarem sobre as vivências das crianças nas ruas, é como se estivessem se referindo a algo distante e não cotidiano na experiência das crianças: considerações como “para quem está na rua qualquer coisa é bom, qualquer canto para dormir está bem”. Durante as discussões de caso fechavam a possibilidade de aproximação e diálogo com a experiência das crianças. As considerações tornavam-se mais particularizadas e voltadas para a experiência das crianças, caso elas pudessem estar num espaço “mais organizado”. O espaço mais organizado podia ser, por exemplo, a Casa de Acolhida, onde as crianças permanecem como forma de ser preparadas para a transição para outros espaços, tem caráter provisório e a criança é preparada para retornar à família. Assim como pode ser também a preparação para estar no espaço dos abrigos municipais conveniados. Para que essas graduações da adequação de espaços para as crianças sejam definidas, saber identificar em que lugar cada criança cabe torna-se uma arte. É desejável que os gestores e o Conselho Tutelar a conheçam bem. O foco das discussões passou então a ser as crianças que estão “fora de lugar”, na rua, por não estarem convivendo “normalmente” com suas famílias. Foram relatadas várias situações envolvendo o abrigamento indevido de crianças.

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Caso Júlio 4, 9 anos. Chegou ao abrigo, à noite, levado pelo Conselheiro Tutelar. O gestor do abrigo conta que a criança, apesar de apenas ter sido encontrada na rua, perdida de seus pais e, de saber seu nome, nome dos pais e endereço, precisou passar a noite no abrigo, pois as informações que deu sobre si e seus pais não foram suficientes para que o Conselheiro buscasse outras soluções: passou a noite lá, assustada e chorando. No dia seguinte, o pessoal do abrigo, já não mais apenas a equipe de plantão, conseguiu fazer contato com a família e devolver a criança aos seus pais.

No entanto, as crianças nem sempre querem permanecer nos abrigos e o tema da fuga é recorrente. A proteção oferecida por esse espaço é para a criança, mas não leva em consideração o lugar da criança, apesar de visar protegê-la das vivências e situações que ocorrem em lugares mais periféricos da cidade, bem como da criminalidade. Nas discussões de caso feitas pela Redinha, estes são considerados os casos especialmente difíceis. No cotidiano das relações com as crianças, elas mostram potencialidades, capazes de desorganizar o espaço/criança construído nessas relações de poder.

Caso Julia, 11 anos, usuária de drogas. Suspeita de ter participação num seqüestro, está envolvida também com exploração sexual. Vive e freqüenta áreas da cidade dominadas pelo tráfico de drogas. Estaria jurada de morte. Foi atendida por vários serviços da rede pública, presentes na reunião. Contam que ela pediu para sair de casa, onde sofria maus-tratos, pois a sua avó, com quem ela morava desde que sua mãe foi presa por assassinato, “era linha dura” com ela: cobrava-lhe horários para estar em casa e queria que ela andasse “na linha”. Durante sua estada no abrigo municipal, teve problemas de adaptação aos horários e normas da casa e saiu. “Evadiu-se.” O gestor do abrigo diz: “o problema da Júlia estar lá é que ela carrega mais meia dúzia com ela. [...] ela gosta de viver perigosamente...”. O grupo entende que os serviços do Centro de Atenção Psicossocial infantil e do abrigo municipal devem retomar os atendimentos e negociar com ela a sua permanência em ambos os serviços, “assim que ela for localizada”, por via de denúncias ou encaminhamento do Conselho Tutelar.

3. As crianças que estão em lugares inóspitos e inacessíveis

Quando saímos dos lugares mais urbanizados da cidade onde a presença das crianças em situação de rua é problemática, e nos deslocamos para os bairros mais periféricos, lugares onde algumas crianças moram, encontramos maiores dificuldades para lidar com seus problemas. São dificuldades de outra ordem que se apresentam: são situações de pobreza extrema, estes lugares não são considerados como passíveis de ação por parte dos serviços representados na Redinha; são lugares onde se considera que

4 Os nomes das crianças apresentados nas discussões de caso são fictícios. 92 a ação das pessoas e dos serviços necessita de apoio da polícia ou do Conselho Tutelar. Esses lugares são chamados de Favela ou Fundão. Diz-se que os lugares são perigosos e dominados pelo tráfico de drogas, o que coloca as pessoas que devem lidar com a situação, bem como as crianças envolvidas, em risco. Elementos importantes da experiência de ser criança, como a sociabilidade do bairro, as possíveis amizades, ou mesmo de respeito que as crianças constroem em suas posições com adultos nos lugares onde vivem, não entram na discussão das ações. Viver numa favela ou num lugar precário é visto de forma indiscriminada, como perigoso para o técnico e para a criança. Em suma, essa situação, que é bem pouco trabalhada ou mesmo conhecida, carrega o sentido de ser, em si mesma, prejudicial à criança.

José Carlos é um menino que está próximo de seus 13 anos. Dizem que é um velho conhecido, um assim chamado “freguês” dos serviços. Isto é, uma criança que já foi abordada diversas vezes pelos serviços, inclusive pelo Conselho Tutelar e pelos abrigos municipais. Os gestores dos serviços são unânimes em apontar como principal dificuldade o fato de que ele simplesmente se evade constantemente. Outra questão chave na resolução da situação é a família: constituída por uma avó materna, sua mãe e dois irmãos pequenos, um bebê de colo e o outro, de três anos. A família é grande, moram juntos num lugar sem urbanização, construído sobre uma área invadida, pertencente ao Estado. O local é precário e o alcance dos programas municipais é restrito, pois tal lugar não se encontra nos projetos (de urbanização) Programa Santo André Mais Igual.

Os gestores dos serviços da Redinha conhecem as crianças e as famílias com as quais trabalham há muito tempo. Isso, ao mesmo tempo em que permite proximidade e familiaridade com a situação da criança, também faz com que as visões pessoais sobre as crianças e suas famílias estejam presentes em seus posicionamentos e avaliações sobre as ações a serem desencadeadas a partir das discussões de caso. No exemplo abaixo, a capacidade da criança em se organizar para morar sozinha não é considerada ou trazida para as referências das discussões, mas sim a sua situação de risco e a falta de apoio que os profissionais muitas vezes sentem por parte das famílias para resolver a situação das crianças.

Caso Júnior, 15 anos, é conhecido dos serviços desde os 10. Estava “evadido do abrigo”. Uma equipe do Departamento de Assistência Social deu notícias de seu envolvimento com o tráfico de drogas: ele havia construído um barraco para si, num local afastado da periferia da cidade; outras crianças moram com ele. Surgem comentários dos gestores sobre a dificuldade de fazer qualquer tipo de abordagem naquele local. Ele é considerado, nessa circunstância, como alguém que já é um bandido, um caso perdido. A gestora conta que a situação deixou os técnicos bastante “mexidos”, pois, para desespero deles, ao atenderem sua mãe, inscrita nos 93 programas de bolsas, constataram que ela não só tem contato com ele, como o visita. Contou que recentemente foi até lá levar um bolo para festejar o aniversário dele. Todos ficaram perplexos com a atitude da mãe, da qual esperavam mais energia e autoridade para lidar com a situação e expressaram dó pelo menino.

4. Atividades ilegais, roubo e tráfico de drogas

Um dos visitantes ilustres da Redinha durante o período de nossa participação nas reuniões foi a da gestora da Fundação Casa. Ela foi apresentar a proposta de trabalho da referida fundação em Mauá, uma unidade de internação para adolescentes infratores que estão cumprindo a sua primeira medida de internação ou que estão aguardando a sentença judicial. A reunião interessou a todos de forma especial, pois a troca de nome de FEBEM para Fundação Casa era recente e as mudanças eram aguardadas com expectativa: situações de maus-tratos, fugas e rebeliões são marcas na maneira de os gestores verem as medidas de privação realizadas naquele lugar. No entanto, o assunto que mais mobilizou a todos foi novamente o conhecimento de que havia crianças na Fundação Casa que eram de Santo André. Uma visita dos gestores da Redinha à Fundação Casa de Mauá foi organizada pelo Departamento de Assistência Social e Conselho Municipal dos Direitos da Criança para que os gestores conhecessem as mudanças e também fossem se apropriando das necessidades dos adolescentes de Santo André, lá internados. E, num dia frio e chuvoso, lá fomos nós. Com descontração e alegria, os gestores foram ocupando seus lugares no ônibus e, entre acertos e erros no trajeto, chegamos à Fundação. Todos os gestores sentem a atmosfera do local, o peso de viver sem liberdade impressiona e os comentários e conversas durante a visita às alas mostram a preocupação com o fato de as crianças de Santo André estarem vivendo num local como aquele. Muitos se questionavam sobre o que haveria de socializador para uma criança numa prisão. Em reunião na sala da direção da unidade, a gestora apresenta o funcionamento da casa e diz que são poucas as crianças de Santo André que estão internadas lá. Explica que, no seu ponto de vista, isso se deve diretamente ao fato de que as que lá estão internadas receberam essa medida de proteção de forma adequada e justa. E comenta que em Santo André as crianças são mais punidas com medidas socioeducativas de privação de liberdade por crimes de roubo (armados) e que, no caso, de tráfico de drogas, as medidas de liberdade assistida são as mais aplicadas.

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5. A Casa de Shows e Baile Funk

A cidade tem uma casa de shows e bailes que algumas crianças freqüentam, apesar de ser proibido. Acontece e todos sabem. Vários gestores contam que já viram crianças por lá. Lá acontecem shows eróticos e danças, e a casa funciona também como um lugar de encontros. O assunto é trazido por um gestor na segunda reunião de que participamos. A expectativa era de que o Conselho Tutelar fizesse uma fiscalização no local. Houve uma conversa com Conselheiros durante a semana seguinte, mas a fiscalização não aconteceu. O Conselho mandou o recado: só faz fiscalização se houver uma denúncia, o que frustra as expectativas das pessoas presentes em relação à atuação dos conselheiros. A Redinha lida com os casos mais difíceis. Constitui uma ação nas políticas públicas que trata do desvio. Nela, as relações das criança com o espaço urbano o caracterizam basicamente como impróprio para as crianças. Na discussão dos casos, orienta-se duplamente pela política de inclusão do Município e pelas determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente.

5.4. Os espaços públicos na perspectiva da cultura e da qualidade de vida

A Conferência sobre os Direitos da Criança e do Adolescente As Pré-Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente são espaços preparatórios para a Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, previstas no ECA como forma de avaliação e participação popular. Devem ser realizadas a cada dois anos. Não há unanimidade sobre a forma como devem ser organizados. Uma das questões, por exemplo, é como devem ser definidos os assuntos a serem discutidos: se devem emergir dos grupos de discussão em seus territórios, se o tema da Conferência deve ser proposto pelo poder público, se deve ser proposto pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os assuntos mais procurados pelo público das Pré-Conferências, segundo um de seus organizadores, são aqueles que falam das garantias processuais, da sexualidade e da violência intrafamiliar. Os comentários dos gestores sobre esses eventos são positivos no sentido de que atraem o público e que, em algumas delas, foram convidadas pessoas que deram depoimentos sobre sua vivência. Por exemplo, em relação à violência doméstica e ao 95 atendimento recebido, uma jovem de 20 anos falou sobre a sua experiência. O comentário que surgiu logo em seguida à sua fala (“e é tão melhor quando eles falam”) mostra que depoimentos enriquecem as discussões e tem como conseqüência o maior envolvimento das pessoas que trabalham com essas populações. Essa forma de apresentação é contraposta com outras em que só os serviços ou os gestores falam e a reunião acaba tendo um desenrolar mais monótono. Os gestores explicam que as pré-conferências são “espaços de apresentação dos projetos e que a discussão com a população se dará na Conferência”, propriamente dita. Não é esperado que as pré-conferências, organizadas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e pela Prefeitura Municipal, produzam propostas e isso explica, em parte, a pouca participação do público em alguns encontros.

O folheto de divulgação da conferência nos chama a atenção. Nele as ilustrações mostram as crianças basicamente em atividades que consideramos de lazer e públicas. As crianças, bonequinhos estilizados em desenhos computadorizados, estão andando na rua, carregando suas mochilas escolares, brincando no escorregador. O folheto é entendido aqui como um documento de domínio público, como uma materialidade que faz circular repertórios sobre o que é ser criança.

Essa apresentação das crianças no contexto da Conferência Municipal dos Direitos da Criança contrasta com os casos e assuntos que envolvem as crianças discutidos pelos gestores nas reuniões da Redinha. Desse modo, somos levados a refletir sobre as visões do que é ser criança no espaço da cidade e sobre quais são as possibilidades de conexão entre as ações das políticas públicas voltadas para as crianças e a experiência que elas têm do espaço urbano. As crianças estão retratadas de forma individualizada e com autonomia em situações públicas e de lazer. Não há adultos desenhados no folheto, mas eles estão presentes no texto.

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Sobre o direito ao lazer Uma das pré-conferências a que assistimos tratou do tema “Espaços públicos de difusão da cultura e promoção da qualidade de vida”. Foram discutidos temas como o 97 direito ao lazer, e os espaços de cultura existentes na cidade, pontuando duas propostas: o direito ao lazer e a inclusão da comunidade nos espaços de cultura. O direito ao lazer é entendido como um direito da população da cidade reconhecido a partir da Constituição Federal de 1988. Na perspectiva das políticas públicas, não pode ser entendido de forma restrita a uma vivência individual, tal como estamos acostumados a entender o lazer, mas está relacionado a possibilidades e disponibilidades lúdicas coletivas, a atitudes das pessoas de estarem em situações prazerosas. 5 No cotidiano da vida da cidade, porém, isso acontece no tempo que as pessoas têm fora de suas obrigações, e muitas vezes apenas nos finais de semana. Não raro as cidades não reservam espaços para esse fim e as comunidades se apropriam dos espaços que não são construídos para isso. O palestrante explica que o lazer é visto de forma ampla e “a vida das pessoas na cidade não pode excluir o lazer”. A cidade, nessa perspectiva, é tratada pelas políticas públicas como “um equipamento de lazer”. A missão do departamento de lazer é “prover lazer para a população de Santo André para que gostem da cidade e se sintam bem nela”. O lazer serve para divertir, para descansar pessoas e comunidades e tem ainda o objetivo de levar informação às pessoas.

Sobre a inclusão da comunidade Na Pré-Conferência sobre os espaços públicos, abordou-se a participação da comunidade de forma variada, por exemplo, no processo de construção dos centros comunitários. O processo da construção e da transformação urbana naqueles lugares foi trabalhado com grupos de discussão com as pessoas da comunidade, que opinaram sobre as mudanças a serem feitas nos locais. Foram mostrados vários slides do tipo “antes e depois da intervenção” e relatadas as dificuldades encontradas em algumas situações de embate com a população local que, por exemplo, não queria que o centro modificasse algum aspecto do lugar por entender que mexer lá seria perigoso por ser um lugar de tráfico de drogas. No entanto, acabou aceitando a urbanização (criação de jardins) do espaço, que passou a ser um local de passagem da população e não mais um lugar ocupado pelo tráfico e por atividades ilícitas. Outro aspecto referente à inclusão da comunidade que foi enfatizado durante a Pré- Conferência foi a integração física dos centros na vida comunitária. Os centros não têm

5 Fala do palestrante da Secretaria de Cultura, Esportes e Lazer de Santo André. 98 muros no sentido mais tradicional do termo, mas têm grades vazadas ou em forma de rede ou teia de metal, que permitem que o local seja acessível, que os jardins sejam ocupados por mesas e bancos, e que estejam abertos para as pessoas usarem durante o dia, bem como nos finais de semana. Observamos também que existe uma queixa generalizada sobre as dificuldades da comunidade em utilizar esses espaços. Tais dificuldades são atribuídas a fatores históricos. Nos debates Pré-Conferência, a palestrante enfatizou que, durante o período da ditadura militar no país, as pessoas foram impedidas de utilizar o espaço público, de se apropriarem da coisa pública e que tal situação permanece atualmente, como uma espécie de despreparo da população para esse uso, que implica a convivência, o respeito mútuo e o sentimento das pessoas de se sentirem donas do local, no sentido de que podem se apropriar dos espaços públicos, de forma coletiva. Apesar de ou justamente por isso, existem várias iniciativas de construção do espaço dos centros comunitários como públicos. A palestrante explica que as práticas que lá são desenvolvidas junto às crianças e às famílias são intersetoriais: as diversas secretarias e/ou departamentos desenvolvem atividades junto à população nesses lugares. É comum que crianças com necessidades especiais, por exemplo, sejam atendidas nas oficinas de cultura realizadas nesses centros e que os professores sustentem essa prática inclusiva através do fomento de atitudes pedagógicas, na lida cotidiana com as crianças, e busquem valorizar as diferenças entre as pessoas. Outra prática no centro, vinculada à proposta de construção do espaço, é permitir que os alunos se engajem individualmente nas atividades (oficinas, grupos) que sejam de sua própria escolha e interesse, como forma de valorizar a autonomia que está envolvida em todo o processo pedagógico de construção do espaço público. As políticas públicas para as crianças estão fundadas na hegemonia de visões adultas sobre o que é ser criança. Nessas visões, o futuro da criança é uma constante; as situações que ameacem as possibilidades de um futuro de cidadania são vistas como situações de risco para as crianças. No capítulo seguinte abordamos as relações das crianças com as políticas públicas numa ação programática da Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Lazer da Prefeitura Municipal de Santo André.

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CAPÍTULO 6 Vivências das ações emanadas das políticas: o caso do Expresso Lazer

6.1. Caracterizando o Expresso Lazer Iniciaremos este capítulo caracterizando o Expresso Lazer, conforme entrevista com o diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Lazer da Prefeitura de Santo André. A questão do lazer nas políticas públicas é, para ele, um direito da população. Essa posição, apresentada na Pré-Conferência e posteriormente na entrevista com o gestor, pode ser observada no Expresso Lazer como uma proposta de mudança que a gerência de ação comunitária vem tentando estabelecer na sua abordagem às comunidades e no fazer do Expresso. Em entrevista, ele nos conta que o lazer a ser promovido pelo Expresso respeita as premissas levantadas como missão do Departamento de Cultura, que são: (1) acessibilidade e universalidade; (2) qualidade, eficácia, eficiência, efetividade; (3) transversalidade – ações integradas com outras secretarias, evitando as ações fragmentadas. Santo André foi a primeira cidade que criou o cargo de agente de lazer. A aprovação na câmara de vereadores exigiu esforços de convencimento e debates sobre o lazer na cidade. A criação do cargo de agente de lazer trouxe mais qualidade para os projetos e para os trabalhos. Com o tempo, essas pessoas contratadas para “agentes de lazer” viraram “gerentes de lazer”. O tipo de ação que é exigido no trabalho é um complicador; por exemplo, o Expresso Lazer funciona aos finais de semana, o que exige desprendimento por parte dos agentes, de seus compromissos familiares e de convivência social. Essas questões fizeram com que algumas pessoas contratadas “fugissem” desse tipo trabalho. A contratação passou então a ser feita pelo período de um ano. Atualmente, o maior desafio encontrado pelos gestores do Departamento de Lazer é o de formar as pessoas para trabalharem no Expresso Lazer. Essa preocupação deriva da explicação de que “O ônibus não trabalha sozinho”. Os gerentes se vêem, a cada ano, começando do zero, pois o ônibus é entendido como um elemento de animação e uma ferramenta. Nele há um palco com som, mas não funciona sem a animação, sem alguém para fazer a intermediação. Ou seja, o elemento principal do Expresso Lazer é o animador, pois é ele quem promove a convivência lúdica entre as pessoas. 100

O entrevistado conta ainda que outra questão importante é a política local, pois o Departamento de Lazer é relativamente novo, foi criado em 1997 e já não dá conta do trabalho, uma vez que a Prefeitura desenvolve várias ações que envolvem o lazer os moradores da cidade e a maior dificuldade é articular as iniciativas existentes. Essa dificuldade deriva do entendimento, talvez limitado, sobre o que é lazer e o que é diversão. A idéia de um Expresso Lazer – ele continua – é inspirada nas ruas de lazer e nas transformações que sua concepção original sofreu ao longo do tempo. Há aproximadamente 30 anos, uma lei assegurava que as ruas poderiam ser fechadas ao trânsito aos finais de semana se 75% dos moradores assim o desejassem. A prefeitura fazia a contagem dos moradores do local e dos interessados na rua de lazer, cedia os cavaletes para o fechamento da rua e dava uma formação básica para o lazer, com idéias para as pessoas construírem seus jogos e programas comunitários ao ar livre. A situação mudou com o Código Nacional de Trânsito, pois as pessoas passaram a pedir os cavaletes “só para terem a sua rua fechada e aí a coisa virou uma questão de trânsito” (sic ). Com o Código Nacional de Trânsito, percebeu-se que essa ação significava muito gasto do poder público, sem a certeza de que a proposta desenvolvida naquele espaço seria lazer. Outro problema dessa iniciativa é que dificilmente se identificava o que poderia ser do interesse da comunidade como lazer. O projeto do Expresso Lazer começou como um aprofundamento de questões que foram surgindo ao longo do tempo e também com a inspiração de outros projetos desenvolvidos em outras cidades: por exemplo, o Ônibus Brincalhão da Prefeitura de São Paulo e um ônibus no Paraná. O entrevistado nos conta que o Expresso Lazer trabalha com uma regra de ação pontual: leva a sua ação para lugares onde as pessoas têm dificuldade de ter acesso a programas de lazer. Assim, a equipe de ação comunitária procura organizar algo mais consistente, próximo a algum equipamento de uso da comunidade local, evitando que a presença seja apenas uma passagem. O Expresso busca deixar uma marca de autonomia nas comunidades onde atua para que os próprios moradores organizem o seu lazer, pois, mesmo que quisessem, não poderiam estar no mesmo lugar o tempo todo. Há três maneiras de solicitar a intervenção do Expresso: as pessoas da comunidade o fazem diretamente; as secretarias da prefeitura municipal que desenvolvem algum tipo de ação solicitam sua presença nas comunidades, por exemplo, em mutirões de limpeza, dias de vacinação, ou a própria equipe entra em contato com 101 lideranças de lugares da cidade mais distantes e sem acesso ao lazer. Existe ainda uma outra forma que a gerência do projeto não vê com bons olhos: a solicitação feita por vereadores do município, para atuação em seus redutos políticos. A gerência de ação comunitária tem procurado atender prioritariamente às solicitações provenientes de lugares onde há dificuldade de acesso a outros programas. Nos lugares, por exemplo, que passaram por processo de urbanização e contam com CESAs, eles entendem que ali já existe um equipamento municipal que pode promover lazer e cultura. A gerência foge das solicitações feitas por vereadores por considerar que o interesse ali é o de chamar atenção para alguma coisa que não lhes permite avaliar o impacto causado por sua presença. A gerência de ação comunitária tenta orientar seus agentes a buscar um contato mais próximo com as comunidades, a conversar com as pessoas e a procurar entender as suas necessidades. Assim, a abordagem inicial costuma ser uma reunião com quem fez a solicitação ou foi identificado como uma liderança local que então convida os moradores. Geralmente as mulheres são a presença mais marcante nessas reuniões, realizadas durante a semana. Algumas crianças comparecem, mas os homens são raros nesses espaços. As mulheres mostram-se preocupadas com o lazer dos filhos. Quando as crianças estão presentes na reunião, não é feita nenhuma abordagem ou escuta específica das necessidades delas. Inicialmente, não se prevê nenhuma forma de participação das crianças na definição das atividades, isto é, as crianças não participam desse momento inicial do Expresso, de aproximação com as necessidades da comunidade, não são os interlocutores. No entanto, quando o Expresso chega, são elas que mais participam, que estão presentes desde o início das atividades. Quanto mais distante e sem recursos de lazer for o local, maior é a participação delas: as crianças ajudam a montar, conversam, mostram- se interessadas e perguntam sobre tudo o que vai acontecer. A programação do Expresso é planejada anteriormente pelos gerentes de lazer e a equipe de agentes ou monitores. As ações em campo são pensadas de forma que possam ser usufruídas por toda a família e não apenas pelas crianças. Nosso entrevistado explica que o planejamento das atividades tem uma orientação explícita de não segmentar as atividades por idades, de modo a promover as relações entre as pessoas da comunidade. Assim, as atividades propostas estão também abertas à participação dos adultos. 102

As crianças e seus pais podem ler um livro de histórias. Há também atividades circences, brincadeiras organizada pela equipe, jogos de xadrez, de damas e pingue- pongue que favorecem a interação entre crianças e adultos. Assim, um dos objetivos é promover a aproximação das famílias, de modo que o lazer possibilite também “o estarem juntos da família”.

6.2. O projeto em ação Nossos contatos, conversas e observações das crianças na atuação do Expresso Lazer ocorreram durante o mês de agosto e na primeira semana de setembro de 2007. Os bairros visitados, aos sábados e domingos, foram: Cruzado 2, Jardim Irene, Vila Lutécia, Vila dos Ciganos, Quilombo, Quilombo II, Jardim Cristina, Jardim Progresso e Espírito Santo.

As preliminares Depois das entrevistas com a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e com a gerente do Programa de Atenção às Famílias do Departamento de Assistência Social, das observações aleatórias no espaço urbano, da participação na Redinha, da participação nas pré-conferências e da entrevista com o Diretor do Departamento de Cultura, fomos recebidos, juntamente com nossos ex- alunos, pelo Gerente de Ação Comunitária, que conversou longamente conosco sobre a atuação do Expresso, apresentou-nos à equipe e colocou tudo à nossa disposição. O relato a seguir é uma compilação das 16 observações feitas nos 9 bairros visitados.

A chegada O Expresso Lazer prepara-se para chegar aos locais no parque Antonio Pezzolo, mais conhecido na cidade como Chácara Pignatari, nome de seu antigo proprietário, onde funciona a sua sede e também uma das Brinquedotecas do Departamento de Cultura e Lazer. Os agentes carregam o ônibus com os materiais que serão utilizados no dia: brinquedos, adereços, fantasias, jogos, caixas de som, microfones, tendas, lonas, livros, mesas e cadeiras. Conversam entre si sobre diferentes assuntos: brincadeiras novas, jogos que acham interessantes, adereços, especialmente adereços, e sugestões de histórias, de maneiras de contá-las, de obter um efeito de suspense, de surpresa. Tudo é feito num clima de bastante descontração. 103

Os agentes entram no ônibus e procuram um lugar onde seja possível sentarem, pois esse está sempre cheio de materiais. A conversa continua animada: brincam entre si, riem uns dos outros, contam situações engraçadas que já passaram no Expresso. O caminho é percorrido com alegria e o celular toca, combinam-se os últimos detalhes com a sede. Quando o ônibus chega ao local, invariavelmente a equipe aguarda o contato com a liderança local para iniciar os trabalhos, mesmo que haja uma faixa anunciando a presença do Expresso Lazer com dia e hora do funcionamento. O contato com a liderança é decisivo para o início dos trabalhos, pois o ônibus não pode estacionar em qualquer local: sua posição na rua é estratégica para o desenrolar das atividades. O ônibus conta com um palco e, por isso, deve ficar numa das extremidades do fechamento da rua. Este contato pode ser feito imediatamente, mas também pode demorar bastante, o que causa certa apreensão na equipe. Algumas tensões entre os moradores e o Expresso podem ser observadas nesse momento, como os moradores que reclamam com o motorista e com os agentes sobre o estacionamento do ônibus no local, o que impedirá a circulação de automóveis durante todo o período de permanência no local: das 9 às 16 horas. O contato com a liderança local também é importante para que os agentes saibam qual casa dará o apoio de um ponto de energia elétrica para ligarem o som, para beberem água, caso a disponível no ônibus não seja suficiente, bem como para usarem o banheiro durante o dia. A chegada do ônibus é sempre acompanhada pelas crianças que estão esperando curiosas para ver o que vai acontecer. A espera, que é parte importante da chegada para o início do trabalho, no entanto, não impede as crianças de iniciarem suas brincadeiras por conta própria. Para muitas, o Expresso é uma novidade, mas outras já o conhecem e, como estão familiarizadas com a proposta, vão logo perguntando sobre brincadeiras mais lembradas. Dentre elas, a mais lembrada é a cama elástica. Por sinal, esse é um detalhe interessante, pois está relacionado com uma visão de lazer que a gerência trabalha para desconstruir; para eles, a cama elástica virou um tipo de ícone do lazer alienado, em que as pessoas se limitam a brincar e a ir embora depois, sem levar consigo nada. Os agentes, por sua vez, só têm que ficar tomando conta de brinquedo, com poucas oportunidades para interação. Ao descer do ônibus, a equipe é recebida pelas crianças. Cada local a recebe de forma diferente e imprevisível, embora seja previsível que elas estarão ali esperando. 104

Algumas se propõem a ajudar e de fato ajudam na montagem das tendas e na arrumação dos brinquedos. Ajudar a arrumar, no entanto, não é tarefa nem trabalho; faz parte da brincadeira, e as crianças conversam, vão explorando, identificando, detém-se em pequenos detalhes, examinam tudo em ritmo próprio e diferente daquele dos agentes, preocupados em montar o Expresso, isto é, em deixar o espaço “arrumado”.

As brincadeiras O Expresso oferece várias brincadeiras, distribuídas ao longo do dia: algumas atividades acontecem no palco, outras no chão. No palco, são desenvolvidas atividades do tipo show . Os animadores encenam, inicialmente, sua própria apresentação, etapa considerada importante para que as crianças os conheçam. Um deles, que está coordenando o Expresso no dia, vai apresentando os outros, um a um, chamando-os ao microfone. Uma música no alto-falante, em volume bem alto, também ajuda a identificá-los. Todos se apresentam com adereços e fantasias e fazem graça. Durante todo o dia, várias outras propostas de show são apresentadas, em sua maioria semelhantes às brincadeiras dos palhaços, que interagem com a platéia. Nem todos os que estão no palco sabem o que está sendo apresentado. Só um deles e a platéia têm domínio do conteúdo e desse modo criam uma relação de cumplicidade,, uma trapaça. As crianças e adultos adoram essa parte do show . Outro momento bastante especial é a apresentação do ventríloquo, que deixa algumas crianças intrigadas e outras irritadas.

Também a partir do palco, os animadores convocam as crianças para os diferentes momentos do Expresso: fazem as chamadas para as gincanas, para o circo, para os jogos (dança das cadeiras, bambolê) e também orientam e disciplinam o andamento da atividade e o comportamento das crianças, quando alguma situação sai do controle dos monitores que estão no chão. Mas não são apenas os monitores que se apresentam ou são apresentados às crianças. Há um momento do Expresso aguardado com muita ansiedade pelas crianças e amplamente anunciado ao microfone desde o início: a chamada apresentação da comunidade “Esta comunidade é show ”. As crianças se inscrevem com os monitores que estão no chão para se apresentarem no palco. Essa parte é bastante divulgada para as crianças, algumas das quais ensaiam previamente o número que vão apresentar, ao passo que outras se inscrevem um pouco antes da apresentação. As crianças podem apresentar o que quiserem e a maioria escolhe dançar; entre os ritmos preferidos estão o black , funk e o axé. 105

No chão os monitores se revezam nos diferentes brinquedos montados na chegada. Mesa de pingue-pongue e mesa de futebol de botão, ao ar livre, são jogos que atraem adolescentes e crianças maiores e suscitam discussões diversas sobre regras e formas de jogar. Sob uma tenda localiza-se o Espaço Criança. Sobre uma lona são colocados diversos brinquedos e jogos: mobília, bichos de pelúcia, bonecas e bonecos de diferentes tamanhos, pacotes de comida, jogos de montar, tais como o lego e utensílios domésticos de brinquedo, como fogão, geladeira, talheres, pratos, copos, xícaras. Também nesse espaço são montadas as mesas e cadeiras e distribuídos jogos de tabuleiro, como damas e xadrez e outros mais simples, como –pula-pirata e equilibrista, para serem jogados em grupo. Ainda nesse espaço dois brinquedos são bastante disputados: uma gangorra de plástico e um trem. Uma outra lona é esticada no chão e nela são distribuídos livros para diferentes faixas etárias: é o Canto da Leitura, onde a proposta é que, em certos momentos do dia, um dos monitores seja contador de histórias e, terminada esta, as crianças explorem os livros e leiam por conta própria ou acompanhadas por um adulto. Outra atividade é o circo. Depois de uma apresentação de malabares e de palhaço, feita por um dos monitores, as crianças e adultos são convidados a aprender como fazer. Os malabares e sapatos de palhaço são distribuídos para todos e os monitores ensinam a manuseá-los. Crianças e adultos que estão presentes se envolvem com os materiais e tentam executar as brincadeiras.

A saída O término das atividades do Expresso geralmente é anunciado ao microfone e ocorre depois de um jogo coletivo do tipo “meninos contra meninas” ou depois da brincadeira do circo. As crianças ajudam a recolher os materiais utilizados e se despedem afetuosamente dos monitores. Algumas vezes perguntam se eles vão voltar e solicitam o telefone para o qual devem ligar para solicitar a presença do Expresso novamente. Mas essa ligação não é incentivada ou mesmo sugerida às crianças. Essa possibilidade foi oferecida apenas uma vez e as crianças ficaram bastante entusiasmadas. Os monitores ficaram surpresos com o entusiasmo das crianças e procuravam contornar a situação, orientando-as a pedir para que algum adulto ligasse, e não elas mesmas.

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A saída do Expresso Lazer do dia 5 de agosto foi marcante. Depois de anunciado o término das brincadeiras do Expresso e com a promessa de que poderiam voltar, várias crianças se juntaram em volta da monitora e pediram o telefone para ligar. Ela respondia que estava no panfleto e que seria preciso pedir para algum adulto telefonar para lá. Isso não desencorajava as crianças e os pedidos continuavam. Elas ficavam procurando papel e caneta umas com as outras; quem conseguia papel e caneta anotava, quem não conseguia pegava a caneta e escrevia no próprio corpo, na mão, no braço, umas escreviam no braço da outras. (Observação feita no dia 5 de agosto de 2007, no bairro Cruzado 2)

No entanto, a saída está relacionada ao andamento do dia com as crianças. Tivemos uma saída abrupta, por exemplo, no dia em que uma criança foi ferida com um tijolo. Em outros dias observamos que algumas crianças se mantiveram por perto, enquanto os materiais eram arrumados para irem embora e também se despediam afetuosamente dos monitores, outras simplesmente saíam andando em direção a suas casa. Havia ainda outras que organizavam alguma outra brincadeira e continuavam com seus próprios jogo depois que os monitores se despediam. Os monitores interpretaram os abraços, agradecimentos, apertos de mão e até mesmo as solicitações de autógrafos que ocorriam durante a despedida como formas de agradecimento, sentindo que seu trabalho estava sendo valorizado.

6.3. A relação das crianças com o Expresso Lazer São muitas as relações que as crianças estabelecem com o Expresso Lazer. Uma das narrativas mais comuns é que elas estão apenas brincando ou passando um dia agradável, porém nem sempre isso acontece. As relações com os monitores do Expresso Lazer são estabelecidas com relativa facilidade, pois as crianças buscam um tipo de aproximação direta: algumas os chamam de tio e todas vão logo perguntando o que eles vão fazer ali. Outra aproximação direta é feita ao ônibus. O ônibus do Expresso Lazer lhes chama a atenção: elas correm para ver, tocam, querem entrar nele, querem mexer. No entanto, as crianças não necessariamente estão dispostas a seguir o que foi planejado para elas e a brincar, se apresentar ou a dizer coisas consideradas aceitáveis pelos monitores, ou mesmo para os adultos, em geral. Evidentemente, os monitores são pessoas interessantes e interessadas em seu trabalho e têm abertura e recursos de formação para se relacionar com as crianças, tarefa esperada e desejada na ação do Expresso Lazer. Porém, a interação com as crianças e o acontecer do Expresso mostram que as crianças decididamente não apresentam a 107 maleabilidade que é esperada delas. Podemos observar conflitos entre ambos no que diz respeito a diferentes formas de uso dos brinquedos, do tempo e do espaço. Nesses conflitos, as crianças ocupam uma posição menos privilegiada. Ward (1978: 96) cita Paul Thompson 1 para falar das fragilidades das crianças nesta posição e de como devemos entender suas expressões de descontentamento nesses conflitos: Seu ponto de conflito com o grupo opressor é através dos membros que elas mais valorizam pessoalmente. Para a maioria das crianças, os pais parecem ser os melhores adultos que elas conhecem. É isso que faz com que suas expressões de descontentamento para com outros adultos, com os quais têm vínculos próximos, como vizinhos, policiais e professores – nas universidades assim como nas escolas - sejam de especial significância. São expressões que precisam ser entendidas, não meramente nos termos de atos observáveis e de questões estabelecidas, mas como um protesto simbólico (e talvez sem esperança) contra todo o sistema do controle adulto da sociedade. (Ward, 1978: 96, tradução livre da autora) 2

Apresentaremos, a seguir, pequenos episódios ocorridos durante a atuação do Expresso Lazer, com a finalidade de ilustrar as estratégias de resistência no contato direto com a política pública voltada para a criança, no espaço urbano. Tanto na entrevista com o diretor do Departamento de Cultura, como na Pré- Conferência, e na conversa com o gerente de ação comunitária foi recorrente a ênfase na relação da criança e dos monitores com os brinquedos. É parte da proposta atual do Expresso que sua passagem pelas comunidades possa servir para o empoderamento das comunidades para que elas usem seus espaços para o seu próprio lazer. Da mesma maneira, na formação dos monitores procura-se construir uma forma de trabalho que “não sejam tomadores-de-conta dos brinquedos”. No entanto, é inevitável que eles atuem em relação aos vários brinquedos distribuídos durante a montagem do Expresso, e esses são um dos atores importantes na construção das relações das crianças com o Expresso. Nesse sentido notamos que a paz entre adultos e crianças reina no Expresso quando as crianças estão usando brinquedos de forma adequada ou quando os adultos ensinam as crianças a brincar. Em suma, os

1 Paul Thompson: “The War with Adults”. Oral History, Journal of the Oral History Society, Vol 3. No 2 Autumn 1975 2 Their point of conflict with the oppressing group is trough the members of it they most value personally. For most children, parents are likely to be the best adults they know. It is which make their expressions of discontent against other adults, with whom they have close bonds, such as neighbours, policemen and teachers – in universities as well in schools – of special significance. They are expressions which need to be understood, not merely in terms of observed acts and stated issues, but as a symbolic (and perhaps hopeless) protest against the entire system of adult control society.

108 brinquedos, como materialidades, são atores importantes na aceitação ou resistência das crianças à proposta do Expresso.

Crianças brincam em qualquer lugar Os planejadores urbanos abordam as preferências dos lugares pelas crianças em diferentes perspectivas: Roger Hart (1979) fala sobre a preferência das crianças por lugares não estruturados que ofereçam possibilidade de construção e de relação. Esses lugares são importantes para o desenvolvimento cognitivo e as interações socializadas. Kevin Lynch (1975) fala sobre as possibilidades de construções de ambientes favoráveis e com oportunidades ao desenvolvimento, nas diferentes cidades do seu estudo. Já Colin Ward (1978) fala sobre o fato de as crianças adaptarem o ambiente que lhes é imposto. No fragmento que apresentamos abaixo pode-se observar que essas três condições estão presentes. No entanto, a adaptação do ambiente não é um processo simples: as crianças buscaram estabelecer uma brincadeira entre elas. Nesse lugar estava acontecendo uma interação das crianças em grupo, ao mesmo tempo em que se configurava a possibilidade de elas se organizarem utilizando elementos do ambiente, da situação proposta pelo Expresso. Porém, nem todas as partes dos enunciados seguem de forma linear e o desenrolar do episódio mostra uma situação de conflito: a ação das crianças, coladas ao brincar, de adaptar o ambiente imposto conflita com a proposta dos adultos para a brincadeira. A situação mostrada neste fragmento aprofunda as proposições sobre a paisagem feitas por Hart, pois as crianças relacionam-se ativamente com a realidade de que fazem parte e questionam as proposições sobre a possibilidade da simples escuta de suas necessidades, desvinculada da vida social, tal como ela se apresenta no cotidiano. Com certeza, as crianças, como muitos adultos, também preferem lugares com árvores e lugares para encontrar amigos. Quando os aspectos relacionais da construção dos lugares estão em cena, os diferentes sentidos presentes podem evidenciar que, para conhecer o espaço social das crianças, é necessário localizar seus direitos também em outros espaços e relações e não apenas nelas mesmas.

O monte de areia . Meninas e meninos pequenos brincavam próximo à tenda do espaço -criança onde vários brinquedos (carrinhos, caminhões, brinquedos de casinha, panelas, pratos, garfos, caixinhas de comida, ursinhos e bichinhos de pelúcia, peças de mobília, um trem onde as crianças podem passar por dentro e sentar em cima, um jacaré que é uma gangorra) são distribuídos numa lona pelo chão e jogos diversos ficam em mesas com quatro cadeiras. Um deles se afasta da mesa e leva um caminhão 109 para carregar num monte de areia que estava na calçada da rua, em frente a uma casa em construção. Ele rapidamente carrega o caminhão e começa a fazer uma garagem para ele, enquanto outras crianças se aproximam com seus caminhões e começam a fazer suas garagens, seus caminhos e a carregar e descarregar seus caminhões. Um outro menino um pouco menor se aproxima, mas um deles não o deixa brincar e diz: “A mãe dele não deixa ele brincar na areia”. Então, ele começa a chorar e fica de fora do monte de areia. Ao ver outras crianças chegarem, seu choro aumenta. Outras crianças começam a sair do espaço-criança com brinquedos, outras se afastam, dando a impressão de levar os brinquedos consigo. Ouve-se a advertência do monitor ao microfone, pedindo para deixarem os brinquedos no espaço-criança e esclarecendo que eles não podem ser retirados. As crianças ficam indiferentes e continuam a fazer a mesma coisa. Então o monitor chama a atenção de um menino, dizendo que ele não estaria ouvindo e, visivelmente irritado, ordena que todos devolvam os brinquedos. Diante disso, alguns largam os brinquedos, enquanto outros os jogam no chão. Em seguida, o monitor passa com um grande saco de plástico e os recolhe. Uma menina de mais ou menos 5 anos mostra a língua.

As formas de as crianças lidarem com o conflito podem ser interpretadas como resistência. Essa resistência, como vimos, nem sempre é aberta, mas sempre atua de forma a questionar a identidade que o poder exerce sobre elas: As crianças exasperam os adultos que acham normal e natural que elas obedeçam, e exasperam a autoridade deles para manter o disciplinamento. Enquanto foi possível, as crianças permaneceram indiferentes e, quando não foi mais possível, pararam de agir daquela forma, largaram os brinquedos no lugar onde estavam, sem, no entanto, fazer o que lhes foi solicitado.

Brincar e a paisagem urbana A organização da cidade e de seus bairros na proposta do plano diretor baseado no modelo das cidades sustentáveis define alguns padrões para a habitação. O uso dos espaços para moradia tem sido uma preocupação nos diferentes fluxos das pessoas nas cidades. A urbanização das favelas tem sido um dos objetivos de vários governos municipais como forma de garantia dos direitos e da qualidade de vida, especialmente porque as pessoas para as quais as iniciativas de urbanização se dirigem são pobres. Sabe-se que as crianças são as mais afetadas pela situação econômica de seus pais, inclusive pela pouca possibilidade de buscar alternativas transformadoras. Essa complexa relação das políticas públicas com os grupos marginalizados muitas vezes constrói o foco de sua atenção como um problema a ser resolvido e identifica esse problema na população pobre. A moradia, assim considerada, torna-se um espaço necessariamente íntimo e protegido que, na periferia, contrasta com a precariedade da vida nos barracos. 110

No episódio utilizado como ilustração deste tema, descrevemos uma visita em que o Expresso estacionou o ônibus numa rua que separava uma favela de uma iniciativa de urbanização que havia construído um grande conjunto habitacional. Nesse conjunto habitacional, um alambrado separava os prédios da rua. Pode-se observar que várias relações sociais estão materializadas ali, inclusive a ação da política pública. Para as crianças e adultos que ali residem configuram-se territórios que dificilmente poderíamos chamar de comunidade. As relações entre as pessoas não se mostraram hostis, no entanto duas posições diferentes se constroem no mesmo espaço: as que moram na favela e as que moram no conjunto habitacional. O estigma da vida na favela ficou bem mais visível nessa divisão do espaço. Cria-se uma situação com a qual as crianças têm que lidar, independente da vontade delas. Seria preciso estudar mais profundamente essas implicações espaciais onde o preconceito e outros nomes se colocam de forma próxima ao lugar cotidiano de sua habitação. No entanto, observamos que as crianças de dentro e de fora do conjunto não buscaram interagir e que muitas não puderam sair do condomínio por causa do alambrado. Ainda, em relação a este item, em outro lugar da cidade, o Expresso foi recebido de forma negativa por moradores que reclamavam do estacionamento do ônibus na sua rua, pois isso tiraria a sua liberdade de circular com o carro. Pediam para que o Expresso fosse embora porque essa atividade era “coisa de favelado”, referindo-se à favela que ficava a algumas quadras do seu pedaço urbanizado.

O alambrado. A Rua da Visão, local onde o Expresso do Lazer estacionou para o desenvolvimento das atividades, limita-se a noroeste com o alambrado de um conjunto da Companhia Desenvolvimento Habitacional Urbano, CDHU. Durante todo o dia pudemos observar que as crianças que moravam no conjunto habitacional acompanhavam as brincadeiras e jogos do lado de dentro da grade ou então das janelas dos seus apartamentos e as crianças da favela circulavam livremente pela rua, entre os brinquedos. Várias crianças acompanharam as atividades sem poder sair à rua, e até observaram as atividades das janelas dos apartamentos, sendo que uma menina ficou na janela do momento em que o Expresso do Lazer chegou até o momento de sua partida. No chão, através do grande muro de arame que separava o espaço das típicas casas de periferia para as construções do CDHU, muitas das crianças que estavam “presas” pela cerca do lado de dentro e puderam descer até o térreo olhavam para as que brincavam livremente, do lado de fora. Algumas delas puderam sair ao longo de 111 manhã, outras não. Essa situação foi encarada com naturalidade pelas crianças que se divertiam no lugar que estivessem. Porém, não observamos que as de fora e as de dentro interagissem. (Observação feita no dia 5 de agosto de 2007, no Bairro Cruzado 2)

A auto-organização

Ao brincar, as crianças estão ativamente construindo o mundo e suas relações sociais nele. O lugar que as crianças ocupam e sua posição na sociedade estão construídos por suas relações com o espaço e, nesse sentido, o espaço não é neutro nem único. No Expresso Lazer temos uma amostra de como as crianças podem usar o espaço de forma autônoma, sem questionar a organização ou os arranjos feitos pelos adultos. Nos dois episódios abaixo relatamos situações onde as crianças organizaram suas brincadeiras sem a influência dos adultos. Esses episódios chamaram nossa atenção, entre outras coisas, porque uma das propostas era que a comunidade pudesse organizar o seu lazer de forma autônoma se empoderando dos espaços em sua comunidade. Nestes dois episódios, as crianças, excluídas do planejamento das intervenções do Expresso, nos mostram que podem ocupar os espaços desenhados pelos adultos de forma própria, sem questionar a ordem, tal como aconteceu no episódio “Hora do almoço”, tanto quanto conseguem organizar jogos e brincadeiras onde claramente faziam uma paródia do mundo, mais especificamente da situação de alimentação. Os adultos também riram e se divertiram com a brincadeira, em que houve uma inversão de posições: as crianças, em vez de ser alimentadas, passaram a alimentar os adultos.

Sopa de Aranha As crianças desta comunidade tiveram capacidade maior de se organizar na brincadeira do que pude observar nas outras. Uma brincadeira pacífica e coletiva: meninas com meninas, meninos com meninos e crianças menores se misturavam entre meninos e meninas. As meninas brincavam de cozinha, utilizando plantas de verdade e outros brinquedos para fazer feijoada e “sopa de aranha”. Outros transformavam os ferros de passar roupas em carrinhos de competição. Dos pedaçosde lego foi feito um prédio da altura das crianças que o montavam e uma metralhadora. O mais engraçado: um menino pequenininho se divertia e gargalhava, andando de lá pra cá levantando uma escova de dentes automática, como um troféu, que tremia. Ao mesmo tempo em que as crianças criavam e brincavam, elas chamavam a atenção, nossa e dos monitores, para seus feitos, fazendo questão de que participássemos das brincadeiras e percebêssemos suas construções e criações. Chamavam a atenção: “... 112 tia olha! “Tia, tia, tia...” e apontavam para aquilo que fizeram. Ou então “tia, experimenta essa sopinha deliciosa que a gente fez...”, e em meio a gargalhadas ofereciam sopa de mato com aranha de brinquedo! Muitos familiares estavam ali aproveitando as atividades de palco e encorajando seus filhos a participarem das brincadeiras. Muitos davam risada e se divertiam apenas observando seus filhos, no chão. (Observação feita no dia 2 de setembro de 2007, no bairro Quilombo II)

A hora do almoço . Na hora do almoço as atividades do Expresso ficaram mais por conta das crianças, pois alguns monitores foram almoçar. No palco não havia ninguém. As crianças estavam distribuídas nos diferentes espaços. Algumas, maiores, jogavam pingue-pongue. No espaço-criança, brincavam com bonecas e brinquedos de casinha. Nas mesas, jogavam damas e jogos de tabuleiro. Próximo do palco, no chão, numa lona com livros espalhados, algumas crianças folheavam calmamente livros e gibis. Uma monitora ali sentada tinha em volta de si três meninas pequenas, que olhavam um livro, enquanto ela contava uma história. Ao terminar, levantou-se e dirigiu-se para o ônibus e não voltou. Durante uns quinze minutos as crianças foram donas do Expresso. Por conta própria.

A reciprocidade [...] os três “r” do uso do ambiente das crianças são recursos, responsabilidade e reciprocidade (Ward, 1994: 146). A reciprocidade refere-se à necessidade de criar coerência entre os diferentes aspectos das experiências das crianças. Por exemplo, muitas experiências da pré-escola tornam a vida mais fácil no ensino fundamental: a responsabilidade pelo comportamento dos outros, bem como pelo seu próprio comportamento, é, de forma similar, aprendida através de interações com outros, sejam eles colegas da nossa idade, crianças mais novas ou mais velhas, ou o mundo adulto (Ward, 1994: 146). Mas a característica mais fascinante e provocadora, que muitos de nós gostaríamos de ver nas crianças, é aquela da riqueza de recursos em fazer uso de seu ambiente, simplesmente porque esse recurso envolve aqueles outros atributos de responsabilidade e reciprocidade. (Qvortrup, 1999: 52, tradução livre da autora) 3

3 […] the tree R’s of children’s use of their environment are resourcefulness, responsibility and reciprocity (Ward, 1994: 146). Reciprocity refers to the need to create coherence between different aspects of children’s experiences. For instance, many pre school experiences make life easier in primary school: responsibility for others as well for our own behavior is similarity “learned trough interactions with others, whether they are our own age mates, older or younger children, or the adult world (Ward, 1994:146). But most teasing and tantalizing of these characteristics, that most of us would like to see in children, is that of resourcefulness in making use of their environment, simply because it involves those other attributes of responsibility and reciprocity.

113

As crianças resistem quando recebem um tratamento estereotipado que lhes solicita uniformidade de comportamento. Porém, mais do que isso, no episódio abaixo, a estereotipia é vivida de forma conflitiva pelas crianças, pois esse tratamento as levou a ser consideradas sem referências a suas famílias, suas mães, que, no caso, estavam presentes. Isso indica um paradoxo das políticas públicas: o Expresso Lazer, pensado e idealizado como lazer da comunidade, oferece lanches para as crianças se elas forem para as filas. Isso coloca as mães que quiserem comer na posição vexatória de participar da fila com as crianças, numa situação em que a comida era “para as crianças”. Crianças e mães dão uma solução para isso: as crianças entraram na fila várias vezes e se serviram várias vezes do alimento. A situação rapidamente saiu do controle dos adultos que estavam organizando a distribuição e fila se desfez.

A Fila. As crianças resistem em se comportarem de forma mais massificada e claramente vemos que elas tendem a auto-organização sempre que isso é possível: Na saída do dia 18 de agosto de 2007, vários aspectos dessa interação entre possibilidades ou disponibilidades do ambiente e a sociabilidade das crianças puderam ser observados. É possível notar algumas diferenças também quando o Expresso participa simultaneamente de outras ações da prefeitura municipal. Nesse dia, fazia parte da agenda do Expresso participar de um mutirão de limpeza. Era um dia festivo, e as pessoas acharam que seria interessante distribuir cachorros-quentes e bexigas para as crianças. Esta distribuição foi feita de forma que as crianças precisassem ficar em fila para ganhar o seu quinhão. Rapidamente a fila virou um “tumulto”: as crianças entravam várias vezes na fila, tomavam as bexigas umas das outras, estouravam aquela que tinham ganhado e pediam outra, colecionavam as bexigas que ganharam e levavam correndo para guardar em suas casas. Algumas mães que estavam por perto pediam a seus filhos que buscassem mais um cachorro-quente para que elas também pudessem comer. Os papéis foram jogados no chão, e lá ficaram. Uma situação bastante diferente aconteceu no fim de semana anterior na Vila Lutécia, quando um grupo de mulheres do Centro Comunitário, ao final das atividades do Expresso, ofereceu saquinhos cheios de pipocas para as crianças. Sem fila, elas se serviram das pipocas, comeram e jogaram os papéis no chão, situação que foi remediada rapidamente com um jogo de gincana proposto pela equipe do Expresso. (Observações realizadas no dia 18 de agosto de 2007, no bairro Jardim Cristina, e no dia 11 de agosto de 2008, no bairro Vila Lutécia)

Algumas vezes as intervenções da política pública adotam a postura de missão educativa junto às comunidades e isso é especialmente ubíquo em relação às crianças, sem que as relações que configuram essa educação sejam consideradas. Novamente aqui vemos que as crianças aceitam as orientações dos adultos em bases respeitosas e recusam e resistem de forma velada, em ações que não comprometem suas relações pessoais com os adultos. 114

Chegando ao mundo adulto

A criança como consumidor recebe um olhar do mundo adulto bastante diferente daquele dado para a criança como beneficiária ou pedinte, e essa lição não se perde nas crianças. É parte da experiência de todos que as ocasiões mais gratificantes na infância foram aquelas em que não fomos tratados como crianças, mas nos situamos no mundo adulto em termos eqüitativos. Alguma atividade, como esportes ou música, foi reconhecida como merecedora de respeito incondicional pelo seu valor em si mesma, sem consideração de idade, e a auto-estima das crianças floresceu. Na vida cotidiana, esse reconhecimento é mais comumente dado às crianças que trabalham, tão importantes pela responsabilidade envolvida, como pelos ganhos independentes que o trabalho possibilita.(Qvortrup, 1999: 54, tradução livre da autora) 4

As apresentações públicas, encenando dança ou canto, sempre fizeram parte do universo das escolas infantis, e Colin Ward (1978) nos diz que são bons exemplos de como as crianças entram no mundo adulto, ou de como elas se sentem bem sendo apreciadas num lugar de destaque, como um palco. No Expresso, tivemos a oportunidade de ver essas apresentações como uma forma organizada a partir das próprias crianças: elas ensaiam, se inscrevem e se apresentam para todos os presentes. Esta apresentação é vivida com grande expectativa pelas crianças que levam isso muito a sério. Num sábado, uma criança se queixou com a monitora que ela se inscrevera e não havia sido chamado para a apresentação. Os dois travaram um longo diálogo do tipo “eu não tenho o seu nome na minha lista”, mas ao final a criança conseguiu ser anunciada e pôde se apresentar dançando um número de black .

Essas formas de apresentação são escolhidas pelas pessoas dos lugares e em alguns deles observamos que as crianças assumem naturalmente papéis como se

4 The child as a consumer has a regard from the adult world quite different from that given to children as a beneficiary or a supplicant, and this lesson is not lost in children. Is part of everyone’s experience, that most gratifying occasions in childhood were those when we are not treated as a child, but met the adult world on equal terms. Some activity, as say, sports or music was recognized as worthy of uncondescending respect without regard to age, and the children self-esteem blossomed. In every day life, this accolade is most given to the children with a job, as important for the responsibility involved, as for the independent earnings that ensue.

115 estivessem em espetáculos fazendo danças e apresentações aparentemente incompatíveis com sua idade, sensualizadas. Minutos depois estão brincando de pega- pega.

Apresentações. Nesta comunidade, chamou atenção o fato de as crianças conversarem pouco entre si e com adultos. Não sabiam jogar dominó e desconheciam muitas músicas que geralmente fazem parte do repertório infantil. Umas debochavam de outras quando se aproximavam para pegar algum brinquedo, como se fosse coisa “de criança”. No entanto, ao ouvirem o som do funk ou de black music , ficaram mais soltas, à vontade, dançavam e pediam para se apresentar. À tarde, o monitor anunciou que iria começar o “Essa comunidade é show”, quando os moradores podem apresentar seus números. Então, um grupo de crianças pediu para dançar black music : um tipo de desafio de quem dança melhor. Nesse desafio, um menino e uma menina estavam dançando no palco e, durante a dança, a menina abaixou a calça do menino e, com isso, ganhou o desafio. Foi tudo rápido e nenhum adulto do local achou inadequado, nem foi surpresa para as outras crianças, que riram e não fizeram comentários sobre o assunto. Em seguida, uma outra menina, que devia ter uns 10 anos e estava vestida com funkeira, pediu para cantar um funk e, no palco, mostrou conhecer bem a dança. Todas as crianças e adultos presentes cantaram junto. Ao lado do Expresso havia um bar, onde ficaram alguns homens da comunidade, bebendo e fazendo comentários machistas sobre as apresentações do Expresso Lazer. Seus comentários às brincadeiras infantis tinham conteúdos sexuais. Ali, bebiam, fumavam e falavam alto e perto das crianças...(Observação realizada em 18 de julho de 2007, no bairro Jardim Cristina)

Conflitos O episódio que relatamos abaixo aborda situações de conflitos vividos por crianças e adultos e entre os dois. Uma situação inicial de rejeição da brincadeira apresentada levou a um conflito aberto, com xingamentos por parte das crianças. Parece-nos que os monitores não dimensionaram corretamente a possibilidade de resposta das crianças ao serem chamadas de feias pelo boneco. A situação não pôde ser contornada com a ambigüidade da brincadeira do boneco e não foi possível encontrar outros recursos, pois as hostilidade foi vivenciada de forma direta pelos monitores. As relações ficaram estremecidas e as interações diminuíram, com o recolhimento dos monitores ao ônibus. Outra situação de conflito envolvendo a todos ocorreu quando uma criança foi ferida. Crianças e adultos viveram a tensão de uma situação violenta e voltaram a se apresentar nas formas mais usuais esperadas para seus papéis, em silêncio. Isso mostra 116 que as crianças sabem muito bem o que se espera delas e esperam que os adultos as protejam dos perigos.

Tensões . Começa uma atividade de ventriloquismo, com um boneco controlado pelo monitor no palco. As crianças deixam os brinquedos e jogos e correm para assistir. Na atividade, o monitor fingia conversar com o boneco e ambos interagiam com a platéia. O boneco, na brincadeira, disse que as crianças eram feias e estas interagiam xingando o boneco: “vou comer você no jantar e vou furar sua cabeça com o garfo”, um menino dizia; “sua cara parece bunda de nenê”. Um integrante do Expresso perguntou ao boneco: “Sashimi, o que você come no jantar?” e ele respondeu: “uma bolacha”, e novamente perguntou ao boneco: “E quando você está com muita fome?” E o boneco respondeu: “Um pacote de bolacha!” E as crianças se manifestaram: “Sai daqui, seu boneco chato!” Alguns garotos mais velhos ficaram xingando o boneco, falando palavrões. Após essa atividade, o ritmo dos trabalhos do Expresso tornou-se mais lento. Alguns monitores ficaram dentro do ônibus, e os intervalos entre uma atividade e outra passaram a ser bem mais longos que o usual. Pouco tempo depois, um garoto jogou um bloco de construção no rosto do outro, numa cena que não presenciamos; vimos apenas o garoto com o rosto bastante ferido. Isso levou à paralisação das atividades promovidas pelo Expresso por quase duas horas, um intervalo em que as crianças ficaram brincando umas com as outras nos diferentes espaços, de forma silenciosa e disciplinada. Elas pareciam estar representando que brincavam sem a participação dos monitores, que apenas cuidavam dos brinquedos. Foi um momento bastante tenso. (Observação realizada em 2 de setembro de 2007, no bairro Espírito Santo)

117

Considerações finais

A maneira característica de lidar com as crianças é – pelo lado do Estado ou das autoridades municipais – seja reativa, seja defensiva, e assim, no fim das contas, significa criar medidas protetivas, que podem ser vistas como positivas, é claro, mas também como controladoras e disciplinadoras. Por isso precisamos desenvolver políticas que sejam pró-ativas e assertivas, ao mesmo tempo em que tomamos as crianças como sujeitos e agentes, deixando um espaço para os direitos das crianças se movimentarem no tempo e no espaço. Essas medidas irão – e não devemos fazer segredo disto – inevitavelmente confrontar interesses entre os adultos. Devemos finalmente encontrar soluções para a compatibilidade entre o mundo das crianças e o mundo da vida adulta, mas nossos esforços para tais soluções devem incluir disposição também do lado dos adultos em fazerem compromissos. Por muito tempo, no meu ponto de vista, nós aceitamos que o mundo adulto é algo ao qual a criança deve se adaptar e as medidas socializadoras são dirigidas às crianças como futuros adultos. Isso não é justo para com as crianças, e penso que defensores da criança deveriam ser mais conscientes e desenvolver idéias a partir da perspectiva e das prioridades das crianças. (Qvortrup,1999: 51; tradução livre da autora) 1

A sugestão do sociólogo de que devemos dar tempo e espaço para o movimento dos direitos das crianças pareceu-nos oportuna para abrir as considerações finais deste trabalho. A questão de como fazer isso é problemática para as orientações de planejamento e especialmente para a execução de políticas públicas. Trata-se de não simplificar, pois nas políticas a definição de um grupo como destinatário de diversas ações do poder público não é um ato inocente ou sem conseqüências, uma vez que está condicionada não apenas pela orientação política partidária, mas embasada em diversas premissas historicamente construídas, entre as quais a de que as crianças ainda não são,

1The characteristic way of dealing with children is – on the side of state and municipal authorities – rather reactive or defensive and thus at the end of the day amounts to create protective measures that may be seen as positive, of course, but also as controlling and disciplinary. We need therefore to develop policies that are proactive and assertive, while taking into account children’s as subjects and agents and living room for children’s rights to movement in time and space. Such measures will – and we should make no secret of it - unavoidably provoke vests interests among adults. We must finally find solutions for compatibility between children’s and adult’s life worlds, but our strivings towards such solutions must include willingness also on the side of adults to make compromises. Too long, in my view, we have accepted that adult world is something that children must adapt and socializing measures are directed to children’s future as adults. This is not a fair deal with children, and I think that advocates for children should be much more conscious about and develop ideas from the children’s standpoint and children’s priorities.

118 ou são um vir-a-ser (White, 2002). Nesta pesquisa, procuramos ir no sentido contrário ao da simplificação de tomar as crianças como um grupo social definido apenas por sua idade e desenvolvimento. Ao tomar como objetivo de pesquisa a discussão de como as políticas públicas orientadas por construções normativas trabalham com as especificidades das crianças, consideradas atores e autores sociais, encontramos a predominância da visão adulta sobre o que é ser criança. Buscamos entender, pois, como as formas peculiares de uso do espaço são incorporadas (ou esquecidas) nas ações delas decorrentes. Tomamos o uso do espaço urbano como aspecto central de nossas problematizações sobre as possibilidades de resistência das crianças perante as ações emanadas das políticas e, a partir de nossas observações e entrevistas, constatamos que as crianças buscam ativamente se fazer presentes nos assuntos da vida adulta, relacionados ao espaço da cidade. Elas querem participar junto com os adultos. No contexto urbano, não parece existir a possibilidade de invenção de um mundo próprio ou de oposição aberta e revolucionária às prescrições dos adultos: as crianças negociam sua presença dentro das opções existentes e nesse afã mostram formas de auto- organização e de autonomia diante do espaço. Dar espaço e tempo para que os direitos das crianças se movimentem, como diz Qvortrup (1999), pode levar a discutir a possibilidade de considerar as crianças também como autores. No entanto, não basta dar voz, é preciso dar ouvidos. Dar ouvidos para escutar o que elas já estão falando e ter olhos para ver o que elas já estão mostrando. O contexto das cidades amigas da criança, entendido como um lugar, na acepção que Spink, P. (2000) dá a essa noção, mostrou-se favorável a essa discussão, pois uma Psicologia Social que possa olhar para os lugares onde as pessoas estão, como no caso das crianças em seus espaços na cidade, está em consonância com o que Ward (1978) nos diz sobre a metáfora da caixa de areia. Se, ao invés de criar caixas de areia onde as crianças ficam isoladas, controladas e separadas de vida social, pudermos, ao construir ações das políticas públicas, trabalhar de modo a dar a mão para que elas possam saltar para fora, estaremos trabalhando num sentido emancipador. Durante a pesquisa, surgiram várias dúvidas sobre qual caminho percorrer e em quais espaços do campo-tema nos situar. Iniciamos realizando observações não estruturadas sobre a presença das crianças na cidade. A pé ou de carro, observamos a presença delas em número bem mais reduzido que o dos adultos. Acompanhadas por eles, as menores andam de mãos dadas com os adultos e as maiores ao lado. Por volta 119 do meio-dia, hora de entrada e de saída das crianças das escolas, elas estão presentes, dentro dos carros, nos ônibus e a pé. Nas ruas, muitas estão em grupo e sua algazarra e alegria contrastam com o barulho dos automóveis e com a pressa das pessoas. Seu ritmo é outro. Raramente observamos crianças andando sozinhas nas ruas da cidade. As que vimos sozinhas eram, na maior parte, crianças que estavam nos faróis vendendo doces ou pedindo um trocado. No espaço das ruas e áreas mais urbanizadas predominam as grandes avenidas e os viadutos, e quase todos andam com pressa. A seguir fizemos aproximações diversas às ações voltadas para as crianças e nelas procuramos deixar explícito que o nosso tema era a relação entre as crianças no contexto das cidades amigas da criança, o que implicava a organização das ações das políticas públicas locais, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao entrevistar a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e, posteriormente, a coordenadora do programa das famílias no Departamento de Assistência Social, pudemos comprovar a conexão que se estabelece entre a inclusão das famílias em programas de auxílios e bolsas governamentais e os propósitos de garantia dos direitos das crianças, como experiência da administração local. Ao participar das reuniões quinzenais com os gestores municipais, percebemos sua preocupação em acompanhar as ações realizadas, de modo a intervir e resolver as situações mais graves envolvendo crianças e famílias, situações entendidas como violação dos direitos das crianças. Os gestores do poder público e das entidades conveniadas para diversos serviços discutem esses casos, bem como as possibilidades de trabalho conjunto. Quanto às políticas públicas voltadas para a proteção da criança, tem sido especialmente produtivo o trabalho dos serviços e dos programas na forma de rede. Essa forma de trabalho encontra-se ainda “em definição” e uma de suas dificuldades de implementação é exatamente definir devem ser considerados como rede os saberes que a integram ou as possibilidades de ação que, no caso, não se desvinculam de processos cotidianos. Durante o período em que participamos na Redinha junto aos gestores que lá estavam representando seus serviços, pudemos observar que tanto eles quanto as crianças que eles atendem são vistos e se vêem em relação à política pública que visa implementar os dispositivos e as ações de garantia dos direitos das crianças. As conferências e pré-conferências municipais dos direitos das crianças, organizadas pelo poder público e pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, também eram debatidas e sugeridas pelos gestores na Redinha, que 120 traziam expectativas de debater amplamente as dificuldades encontradas nos casos. As pré-conferências de que participamos: Não ao Trabalho Infantil e Espaços Públicos de Difusão da Cultura, apresentaram para o público a disposição de articular várias ações das políticas públicas de forma intersetorial. No entanto, a ação programática que se mostrou decisiva para a consecução dos objetivos da pesquisa foi o Expresso Lazer, particularmente por ser uma ação da política pública que não é inserida na pauta da rede de proteção à criança; trata-se de um espaço mais livre, que mostra possibilidades de ações no cotidiano dos lugares onde as crianças vivem, menos institucionalizados, mais sociais. Quando lidamos diretamente com espaços institucionalizados, como é o caso da Redinha, tendemos a considerar nossa ação a partir dos discursos oficiais sobre direitos e muitas vezes esquecemos que eles são produzidos de materialidades e socialidades. Em outras palavras, os discursos oficiais tendem a obscurecer nossa possibilidade de nos relacionar e de perceber que as crianças têm uma vida cotidiana. O que elas estão vivendo como o que nós adultos entendemos como seus direitos não é algo abstrato, mas sim conformado por sociabilidades e materialidades que nos são apresentadas, assim como a elas, de forma cotidiana. As observações no Expresso Lazer, em vários bairros da cidade, levaram-nos a refletir sobre as conexões entre as práticas com os direitos das crianças e a vida cotidiana destas. As crianças mostram a possibilidade de relacionamento e de cooperação com a proposta do Expresso. Pudemos observar que elas não se comportam como uma massa inerte, na expressão de Colin Ward, apesar de muitas vezes as pessoas serem pensadas desta forma no planejamento das políticas públicas. As crianças, portadoras de direitos ou não, se comportaram de modo a mostrar que também sabem o que é lazer, o que é montar a apresentação do Expresso e estão ali para se divertir e para fazer acontecer o Expresso. Isso foi observado na disposição em ajudar a montar o Expresso, na aceitação das propostas de brincadeiras, nas apresentações que elas fizeram, na invenção de brincadeiras e na disponibilidade de se relacionarem de maneira direta com os monitores. Contudo, a análise das informações coletadas sugere que é preciso trabalhar com elas em bases mais participativas. Não se trata apenas de pedir-lhes que participem do planejamento do Expresso ou da definição de atividades ou brincadeiras, pois, como apontam Lynch (1975: 57) e Nieuwenhuys (2003: 100), isso facilmente repetiria modelos adultos e hegemônicos, uma vez que as crianças sabem o que se espera delas e 121 vivem no mesmo mundo que os adultos. Entendemos que, dessa forma, nos aproximamos um pouco do sentido dado pelas crianças e pelos monitores do Expresso Lazer para a situação que queriam transformar em suas práticas: a do lazer alienado, simbolizado no ícone das crianças pulando na cama elástica, tendo ao lado um monitor para tomar conta da fila e do brinquedo, com restritas possibilidades de interação. Aceitar as crianças em bases participativas implica reconhecer a presença de relações de poder e isso fica mais nítido na vida cotidiana. De outra forma, as crianças podem simplesmente demandar da mesma forma que os adultos pensam em relação a elas. Cama elástica e outros brinquedos de playground estão dentro de buffets , nos shoppings centers , disponíveis e valorizadas. Como atores do espaço social, as crianças reclamam por espaço nas suas relações com os adultos e por espaços pessoais na vida social, onde possam agir com agenda própria. Isso quer dizer que elas buscam ativamente construir a sua participação na vida social e a todo o momento surgem dificuldades e disputas no uso do espaço, resistências às imposições que lhes são feitas. As observações no Expresso nos mostram que as crianças dão diferentes usos aos brinquedos e não se comportam de acordo com as prescrições. Isso é aceito por parte dos adultos até certo ponto, mas logo aparece o disciplinamento, como na situação do monte de areia. No entanto, no episódio sobre os conflitos, observamos uma situação-limite, de violência, que nos mostra como crianças e adultos usam o espaço juntos e cooperativamente para se proteger. Aceitar as crianças em bases participativas é uma possibilidade de dar tempo e espaço, pois é na vida cotidiana que as crianças mostram maior liberdade de ação e de negociação. É na vida cotidiana que elas vivem a sociabilidade de serem filhas e filhos, alunos e alunas e que materialidades tais como brinquedos, roupas, bem como os diferentes acessos a essas relações estão presentes. No entanto, em termos cotidianos, isso implica que

As crianças, em bases momentâneas, exercitam tendências anarquistas e não- sociais acima dos limites da tolerância dos adultos e freqüentemente além. Elas são dedicadamente instáveis, sistematicamente subversivas e incontidas, e todas essas manifestações são trabalhadas, freqüentemente, sob a rubrica da criatividade, auto-expressão, primitividade, simplicidade ou até ignorância. Para os adultos, imitar essas condutas fora do contexto de celebração ou de embriaguez seria um convite a ser chamado de excêntrico, no melhor dos casos, e de insensato, no pior. Então, as crianças sempre desafiam potencialmente a 122

ordem social e sua constante promessa de liminaridade extrapola o espaço do normal, do adulto e do tido como correto. (Childhood, 1997) 2

A tese aqui defendida de que as crianças usam o espaço urbano, nas cidades amigáveis à criança, como forma de resistência suscita a pergunta: será que os direitos da criança nas políticas têm potência de transformar a vida das crianças? Pensamos que os direitos podem ser entendidos como um sentido adversarial, como nos mostra Rorty (2000) ao se referir à noção de “direitos humanos inalienáveis” na perspectiva pragmatista: [...] é um slogan tão bom – ou tão ruim quanto à “obediência à vontade de Deus”. Qualquer um desses, quando invocado como um motor imóvel, é simplesmente uma maneira de dizer que esgotamos nossos recursos argumentativos. Discursos sobre a vontade de Deus ou os direitos do homem – assim como os discursos sobre a “honra da família”, ou a “terra de nossos ancestrais em perigo” – não são alvos apropriados para a análise e a crítica filosófica. É infrutífero tentar olhar para o que há por trás deles. Nenhuma dessas noções devia ser analisada, pois elas são todas maneiras de dizer “esta é a minha posição. Não posso fazer mais nada”. Não são as exposições de motivo para ação, mas sim um aviso de que a pessoa já refletiu sobre a questão e chegou a uma decisão. (Rorty, 2000: 115-116)

Os direitos entram para organizar um aspecto da vida social em que as pessoas não conseguem mais fazer acordos; constituem o fim de uma conversa e não um começo. Rorty aponta ainda que a forma de caminharmos para uma cultura de direitos humanos é orientada por ações cotidianas que buscam “tornar irrelevantes as pequenas particularidades que nos separam, não através de uma comparação com uma coisa grandiosa, mas através de comparações com outras coisinhas pequenas” (p. 120), ou seja, trabalhar no sentido de diminuir as diferenças e não de aumentar a semelhança. Finalizando com o pensamento do filósofo, refletimos sobre as possíveis contribuições deste estudo para o campo das políticas públicas voltadas à criança: a perspectiva cotidiana para o trabalho com os direitos das crianças parece-nos um campo profícuo de estudos para a Psicologia Social, uma perspectiva que vai ao encontro do trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisas Organizações e Ação Social. Desse

2Children, on a momentary basis, exercise anarchist tendencies and asociality up to the limits of adult tolerance and often beyond. They are dedicatedly unstable, systematically subversive and uncontained and all of these manifestations are managed, barely, under the rubric of creativity, self-expression, primitiveness, simplicity or even ignorance. For adults to replicate such conducts beyond celebration or intoxication would be to invite the designation of eccentricity, at best, or at worst, insanity. Children, then, always potentially challenge social orders and their constant promise of liminality maps out of the space of the normal, the adult, and the taken-for-granted.

123 modo, pensamos que esta orientação mostrou-se produtiva para evidenciar as conexões e desconexões que a ação das políticas públicas tem para com as crianças. Assim, a utilização de conceitos como lugar e a adoção de perspectivas teóricas de médio alcance (Spink, P., 2000), sem pretensão de esgotar explicações ou teorias sobre o espaço social das crianças, abrem caminho para a continuidade da conversa sobre os direitos das crianças e para o desenvolvimento de trabalhos que as levem a compartilhar a vida das cidades. 124

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1

ANEXOS

Anexo 1: Cronograma de atividades da pesquisa

Atividades de pesquisa - Entrevista com a Presidente do Conselho Municipal dos Direitos Janeiro de 2007 da Criança e do Adolescente de Santo André. - Observações aleatórias de crianças na cidade

Fevereiro de 2007 - Observações aleatórias de crianças na cidade

- Participação nas reuniões da Redinha. Marco de 2007 - Participação na Pré - Conferência de abertura da Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente Não ao Trabalho Infantil

- Entrevista com a coordenadora dos programas de Abril de 2007 acompanhamento das famílias que recebem bolsas do governo. - Participação nas reuniões da Redinha

Maio de 2007 - Participação nas reuniões da Redinha

- Participação na Pré - Conferência Espaços públicos de difusão Junho de 2007 da cultura e promoção da qualidade de vida - Entrevista com o Coordenador do Departamento de Cultura.

- Conversa/ Reunião com o gerente de Ação Comunitária da Julho de 2007 Secretaria Municipal de Cultura de Santo André e colaboradores da pesquisa. - Observação direta das crianças na Praça do Carmo.

- Saídas com o Expresso lazer Agosto de 2007 - Reuniões com colaboradores na pesquisas - Observação direta das crianças na Chácara Pignatari.

Saídas com o Expresso Lazer Data Bairros visitados. 04/08/2007 Cruzado2 05/08/2007 Quilombo II 11/08/2007 Vila Lutécia 12/08/2007 Jardim Progresso 18/08/2007 Jardim Cristina 25/08/2007 Vila dos Ciganos e Jardim Irene 02/09/2007 Espírito Santo e Quilombo II 2

Anexo 2: Observações das crianças no espaço urbano – no Expresso Lazer

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Comunidade do Cruzado Data: 4/8/2007

Chegamos ao Parque Antônio Pezzolo, de onde partem as equipe do Projeto Expresso Lazer para as comunidades, às oito horas da manhã e, lá nos integramos à equipe da coordenadora P., também conhecida pelo apelido de X.. A equipe era composta por oito recreacionistas, sendo eles (de acordo com os nomes pelos quais se apresentam às comunidades): S., Z., B., U., A., V., X e a própria X.. A equipe levou diversos brinquedos e equipamentos para a comunidade do Cruzado, onde chegou por volta das nove horas. Mal o ônibus estacionou e já começaram a chegar as primeiras crianças, algumas correndo. Essas crianças tinham entre cinco e dez anos de idade e, logo que a equipe desembarcou, começaram a nos interpelar, perguntando se haveria a cama elástica, o que os mais novos chamavam de “pula-pula”. Foi-lhes dito, então, que não haveria a cama elástica, mas que teríamos diversas brincadeiras para todos se divertirem. A equipe iniciou a montagem dos equipamentos da seguinte forma: desceu o palco do ônibus, montou duas tendas e esticou uma lona azul abaixo delas, montou as mesas de futebol de botão e de pingue-pongue, colocou algumas mesas e cadeiras e, sobre a lona azul montou o túnel/trem, por onde as crianças poderiam. Notei que havia um garoto de nove anos observando a montagem do túnel/trem, sem se aproximar. Terminada a montagem, perguntei-lhe: ― Vamos brincar no trem? ― Você é grande, não pode brincar! – ele me respondeu. ― E quem disse que quem é grande não brinca? – falei. ― Adulto não brinca. – o garoto finalizou. Após esse breve diálogo, ele se dirigiu ao trem e subiu nele. Outras crianças menores se aproximaram e, em pouco tempo, todos estavam brincando. Cerca de dez minutos depois, um outro garoto da mesma faixa etária do primeiro, chegou ao local e, vendo as crianças brincando no trem, bastante animadas, disse: ― Olha só o tamanho do bebezão brincando! Ele repetiu isso algumas vezes, até que o garoto mais velho deixou de brincar e ficou apenas olhando. Cerca de meia hora após a equipe chegar já havia cerca de quarenta crianças no local e apenas dois adultos acompanhando algumas crianças. A maioria delas estava sem alguém responsável por perto. Outro fato interessante é que algumas crianças passavam sozinhas, levando cães ou gatos para a vacinação, que estava ocorrendo ali perto. 3

A Rua da Visão, local onde o Expresso do Lazer estacionou o ônibus, está situada entre o alambrado de um conjunto do CDHU, a noroeste, de onde várias crianças acompanharam as atividades sem poder sair à rua, algumas, inclusive, apenas puderam observar das janelas dos apartamentos. Uma menina ficou na janela do momento que o Expresso do Lazer chegou até sua partida. A equipe iniciou as atividades com a X. apresentando cada um dos membros de sua equipe, que vinha ao palco caracterizado como uma personagem e tocava uma música relativa a essa personagem. A última a se apresentar foi a própria X., que saiu do palco para fazer a entrada com a música de sua personagem. Porém, o S. chamou as crianças para perto do palco, nesse momento mais da metade das crianças estavam ali, e como se estivesse contando um segredo, disse-lhes que armou uma surpresa para a X. e pediu que as crianças não contassem nada para ela. A armação dele consistia em trocar a música da X., que seria a da Olívia Palito, por outra. Quando a X. entrou no palco começou a tocar a música “P. Ingrata”, do cantor Latino. Todos da equipe que estavam no palco dançavam enquanto a X., de braços cruzados e cara amarrada, dizia que aquela não era sua música. As crianças riram muito dessa brincadeira. S. disse a ela que aquilo foi um erro e que ela deveria entrar novamente no palco para que fosse tocada a música certa. Quando ela se preparava para retornar ao palco, ele voltou a falar com as crianças, combinando um novo segredo entre eles e pediu para as crianças não contarem o que estavam armando para ela. Quando ela voltou ao palco, mais uma vez tocaram a música do Latino. Então a X. gritou mandando parar tudo, disse que era uma sacanagem com ela, porque ela deixou todos se apresentarem e na vez dela estavam sacaneando com ela. Então perguntou às crianças quem foi que tinha feito aquilo com ela e todas apontaram para o S., que fingiu que não era com ele. Mesmo assim, as crianças insistiram em mostrar a ela que ele era o responsável por toda aquela armação. Todas as vezes que uma nova atividade era iniciada, o pessoal do Expresso Lazer tocava a música do plantão do Jornal Nacional e o recreacionista Z. saia correndo entre as crianças balançando as mãos sobre a cabeça. Essa ação do Z. chama tanto a atenção das crianças, que logo passam a imitá-lo. Ao término das apresentações dos membros da equipe, a música do plantão do Jornal Nacional tocou pela primeira vez e quase todas as crianças deixaram os brinquedos e foram para próximo do palco. Então foi pedido que as crianças se dividissem em duas equipes, uma com o Tio S. e outra com o Tio Z. As crianças dividiram-se em dois grupos e cada um dos monitores inventou um nome e um grito de guerra para sua equipe. A equipe do Z. foi chamada de Super Cruzado e a equipe do S., de S.. A X. dirigia a brincadeira e dizia para as crianças: “Eu quero! Eu quero! Eu quero!” E as crianças respondiam: “O quê? O quê? O quê?” Isso em vários tons de voz que eram imitados pelas crianças. Ela, então pedia algo como uma carteira de Identidade, uma garrafa pet ou um tênis maior que 42, e as crianças corriam procurar o que foi pedido. A equipe que trouxesse o objeto pedido primeiro ganhava um ponto. A grande maioria das provas foi ganha pela equipe Super Cruzado, fazendo com que algumas crianças mudassem da equipe S. para a Super Cruzado. Algumas crianças estavam visivelmente frustradas por perderem continuamente e, próximo ao fim da atividade, S. 4 deixou a equipe e foi substituído pelo Z., ficando a equipe do Super Cruzado sob o comando do monitor A.. Quando a atividade terminou, tocou a música do plantão do Jornal Nacional e o resultado da competição não foi comentado pela equipe do Expresso do Lazer. Em outro momento alguns membros da equipe me disseram dentro do ônibus que eles buscam não falar quem ganhou ou quem perdeu para não estimular a competição. A próxima atividade desenvolvida, já próximo ao meio-dia, foi a leitura de histórias e a distribuição de livros infantis para a leitura. Das cerca de cinqüenta crianças que participavam da atividade anterior, apenas sete continuaram nessa nova atividade. No período da manhã a participação de adultos foi bem pequena, enquanto havia cerca de setenta crianças participando das várias atividades, apenas oito adultos estavam no local e nenhum adolescente. As crianças menores de cinco anos ficavam sob a tenda, brincando individualmente com brinquedos trazidos pelo Expresso do Lazer. As atividades na mesa de futebol de botão, pingue-pongue e outros jogos não foram monitoradas por recreacionistas a maior parte do tempo. Ao observar um grupo de meninos jogando futebol de botão notei que uma das duplas não saía da mesa, pois inventava regras na hora para ganhar o jogo. O período da tarde começou com a Oficina de Circo, mas antes do iníco das atividades, o S. apareceu vestido de palhaço e foi apresentado como Y. e impedia a continuidade da atividade. Então a X. disse às crianças para elas gritarem “Y.” e o aplaudirem para que ele fosse embora, caso contrário ele ficaria chorando e não deixaria a oficina de circo começar. As crianças atenderam o pedido da X. e o Y. foi embora. A participação na Oficina de Circo foi bastante animada e contou inclusive com a presença de adultos que chegaram à tarde, a maioria pais que ajudavam os filhos a andar com perna-de-pau, chinelão e outras atividades. As atividades foram monitoradas pelos recreacionistas que ajudavam as crianças sempre que necessário. A penúltima atividade desenvolvida pelo Expresso Lazer foi “Essa Comunidade é Show”, na qual os membros da comunidade subiam no palco para cantar ou dançar. Várias crianças participaram dessa atividade. As meninas cantando músicas do grupo Rebeldes, acompanhadas da música tocando ao fundo e os meninos dançando break ao som de música black . Essa foi uma das atividades que teve maior participação da comunidade. No período da tarde apareceram alguns adolescentes que começaram a jogar pingue-pongue com as crianças e, gradativamente, foram ficando apenas eles na mesa. Essa foi a única atividade que contou com a participação de adolescentes. A última atividade desenvolvida pelo Expresso Lazer foi de competição entre gêneros, o Z. ficou com a equipe das meninas e a A. com a equipe dos meninos As meninas foram ganhando as diversas provas e os meninos iam abandonando a equipe conforme iam perdendo. A U. coordenou a atividade, e ao final, ela declarou vitória para as meninas. Enquanto aconteciam as competições entre as duas equipes, um garoto chorava na porta do ônibus e dizia à X. que fora inscrito para dançar no palco e que não foi 5 chamado. Quando a competição entre meninos e meninas acabou, X. chamou o menino ao palco e ele dançou. Finalmente, a equipe agradeceu a toda a comunidade e nós, as crianças e os recreacionistas nos demos um abraço coletivo. A equipe recolheu os equipamentos e brinquedos, com ajuda das crianças e várias delas pediram o número do telefone para pedir que o Expresso Lazer volte à comunidade. Os recreacionistas, muitas vezes, escreviam o telefone nas mãos ou nos braços das crianças por que elas não tinham papel para anotar. Assim terminou mais um dia de atividades do Projeto Expresso Lazer e o ônibus pôde retornar ao Parque Antônio Pezzolo. Há algumas observações que merecem ser comentadas. Por exemplo, ao contrário do que foi afirmado, as atividades do Projeto têm como foco a criança e não a comunidade como um todo. Além disso, a maioria das brincadeiras depende de equipamentos ou dos recreacionistas para acontecer e não são ensinadas brincadeiras que permitam uma autonomia ao brincar. Há algumas brincadeiras que estimulam a divisão e a competição entre gêneros, como meninas contra meninos. Além disso, algumas atividades estimulam o desenvolvimento da dissimulação nas crianças, como por exemplo, prejudicar a apresentação da X. e pedir segredo. Bater palmas para todos ao se apresentarem mesmo eles sendo ruins ou gritar Y. para agradá-lo, a fim de que ele saia do palco. Por outro lado, deve-se ressaltar que as atividades desenvolvidas pelo Expresso Lazer são únicas para a comunidade e que, provavelmente, em nenhum outro momento as crianças têm a oportunidade de conhecer novas brincadeiras, ou de brincar em grupos como acontece com a presença do Expresso Lazer. O espaço aberto à comunidade é muito desejado pelas crianças e possivelmente tem efeitos positivos na sua auto-estima e no seu desenvolvimento geral.

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Quilombo II Data: 5/8/2007

A equipe chegou ao local às 9h. e, talvez pela garoa e frio que fazia, não havia ninguém aguardando a chegada do Expresso Lazer. Porém, bastou o caminhão estacionar para que as crianças começassem a chegar. Elas vinham só ou em grupos. Poucas vieram acompanhadas de adultos. Uma garotinha de 9 anos contou que sempre, aos domingos, levantava da cama e voltava a dormir porque não tinha nada para fazer, porém, neste dia isso não aconteceu porque ela foi brincar com o Expresso Lazer. As crianças formaram dois grupos que ficaram olhando os monitores prepararem os brinquedos. Algumas crianças ajudaram carregando brinquedos, varrendo e montando a mesa de pingue-pongue, enquanto outros apenas olhavam. Após a montagem da barraca e de alguns brinquedos, como a gangorra e um túnel em forma de trenzinho, algumas crianças começaram a explorá-los, enquanto outras acompanhavam a movimentação dos monitores. As que foram brincar no tubo-trenzinho, em vez de passarem por dentro, preferiam subir ou ficar parados em seu interior. Os monitores só foram orientar sobre a forma correta de se brincar com esse equipamento, quando ele ameaçou desmontar. 6

Aí, um monitor interveio e pediu licença para arrumar o túnel, comentando que aquele brinquedo era um túnel e que eles devem passar por dentro dele. Contudo, após ele arrumar o túnel, elas voltaram a brincar de seu modo, sem que houvesse nova intervenção. A gangorra era leve e quando as crianças se balançavam, podiam deslocá-la com um movimento de corpo e, assim, elas a se aproximavam do túnel. O monitor falou com as crianças sobre a posição do brinquedo, argumentando que se continuassem a brincar daquela forma, poderiam esbarrar nos outros, e sugeriu que elas atentassem para a posição da gangorra. As crianças passaram a controlar mais a gangorra e, com a chegada de outras crianças, passaram a se organizar melhor, controlando quem andavam e quem saia para dar espaço às outras. As crianças maiores, entre 14 e 16 anos, pediram a mesa de pingue-pongue, que foi instalada perto da quadra de futebol de salão. Em determinado momento, quando os monitores estavam preparando as mesas de jogos, algumas crianças da barraca se desentenderam e passaram a xingar-se umas às outras. Os monitores apenas olharam e ignoraram o que estava acontecendo. Uma das mães presentes sentiu-se incomodada e quis saber quem estava falando palavrão, advertindo que ali não era local de se fazer essas coisas. Após uma pequena bronca, as crianças pararam com os palavrões. Os monitores não puderam arrumar todos os brinquedos, devido ao mau tempo. Diante disso, as crianças e os jovens começaram a questionar, alguns com voz mais elevada, se não haveria mais coisas. Por sua vez, os monitores diziam que estavam esperando a melhora do tempo. Um dos monitores ficou na barraca brincando com as crianças de tentar bater um na mão do outro e, ao mesmo tempo, conversava com quem se aproximava. As crianças se divertiram com ele. Contudo, como a chuva não parava, a equipe decidiu que o evento deveria ser suspenso. A monitora “X.” chamou, então, as crianças para junto do palco e os informou. As crianças e os jovens que estavam na barraca, ali permaneceram. A monitora X., que comunicou a decisão, argumentou que preferia brincar, mas que, com aquele tempo, as crianças poderiam pegar um resfriado, além do risco de acidentes porque o palco estava molhado. Prometeu que retornaria com tempo melhor. Assim, as crianças, desanimadas, foram para suas casas. Alguns jovens que não ouviram a explicação questionaram, em voz alta, a suspensão das atividades. Ao recolher a mesa de pingue-pongue, dois jovens de um grupo que estava em cima do túnel começaram a discutir e depois se cuspiram; os monitores olharam, mas continuaram a levar a mesa. Logo em seguida acabou a discussão e um grupo de jovens foi jogar futebol na quadra.

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Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Quilombo II Data: 5/8/2007

A chegada do Expresso Lazer na comunidade ocorreu às 9h da manhã. O local era uma rua em declive, com casas de um lado e uma pequena praça do outro, com mesas de cimento e uma quadra de esportes cercada. A coordenadora (P.) liberou o grupo por 15 minutos para que tomassem um rápido café. Quando a equipe retornou, já havia 5 crianças à sua espera. Perguntaram sobre quando começariam as brincadeiras e, após cumprimentá-las, dissemos que seria logo e pedimos que esperassem um pouco mais. A esse primeiro grupo denominarei de grupo 1, pois todos tinham algum vínculo familiar entre si (irmãos, sobrinhos, primos). Todos aparentavam certo distanciamento tímido frente aos adultos do Expresso. Esse grupo era formado por 2 meninas e 3 meninos , com idade entre 5 e 12 anos, sendo que a mais velha assumia um papel de liderança junto aos mais novos. Enquanto a equipe se preparava para montar o palco e descarregar os materiais e equipamentos, surgiu um novo grupo de crianças, com cerca de 8 integrantes. Aparentavam ter entre 5 e 9 anos, com a exceção da menina mais nova, que deveria ter pouco mais de 3 anos. Essas crianças mostraram-se bem mais alegres, receptivos e à vontade com o pessoal do Expresso, inquirindo sobre os brinquedos e se dispondo a ajudar no descarregamento e montagem dos equipamentos. Este será o denominado grupo 2. Às 9h40min. começaram as primeiras atividades, com a presença de apenas 13 crianças. Foram montadas duas tendas, a lona do Espaço Criança foi estendida pela metade e sobre ela colocados um túnel (trenzinho) e uma gangorra. Em seguida foram montadas as mesas de pingue-pongue e de futebol de botão, mas as peças para sua utilização não chegaram a sair do caminhão. Como principal brinquedo no local, o túnel/trenzinho foi bastante utilizado, embora tenha causado alguma confusão no início, pois as crianças o utilizavam como casinha ao invés de túnel. Percebi uma clara distinção entre as crianças do grupo 1 e as do grupo 2. As do grupo 2 pareciam ser moradoras do próprio local e mais tranqüilas que as do grupo 1. Estas, por sua vez, mostravam-se um pouco mais agressivas que as do grupo 2, xingando a si mesmas e aos membros do grupo 2. Esse comportamento logo atraiu a atenção da senhora - líder da comunidade local -, que cedera sua casa para o afixamento da faixa de divulgação do Expresso Lazer, além de ceder a eletricidade para o sistema de som do ônibus. Após a intervenção de um dos monitores, as crianças passaram a utilizar o brinquedo da forma adequada. No local do Espaço Criança havia 2 mulheres, aparentemente mães de algumas das crianças. Quando a garota mais jovem do grupo 2 ficou parada na extremidade do túnel, recusando-se a sair e gerando protestos das outras crianças, uma dessas senhoras foi até lá e a retirou calmamente, mas apesar da maneira carinhosa com que foi tratada, a menina chorou ao ser retirada do trem. 8

As crianças que utilizaram a gangorra freqüentemente colidiam com o trem, devido à rua ser em declive e à sua aparente indiferença pelo aproveitamento dos demais. Sem uma leve orientação, as crianças prezavam muito mais sua auto-satisfação do que qualquer atuação grupal, tanto na gangorra, quanto no trem. A todo momento, as crianças perguntavam se haveria cama elástica ou pediam pelo material do pingue-pongue. A menina mais velha do grupo 1 quase ordenava que fossem descarregados o material dos jogos. Essa garota assumia um ar de autoridade e de superioridade frente aos outros. Com o tempo começaram a chegar alguns meninos mais velhos, entre 11 e 15 anos, que não participavam das brincadeiras, mas perguntavam pelo pingue-pongue. Um deles começou a fazer a brincadeira de tapa na mão com um dos monitores e assim se divertiu durante um bom tempo. Aproximadamente às 10h35min., a coordenadora P. pediu a todos os presentes para se aproximarem do palco. Os meninos mais velhos resistiram e se mantiveram afastados, sentados sobre o trem, debaixo da tenda. Seus olhares denunciavam descrédito e decepção. P. explicou que devido à chuva que caía durante naquele momento (garoava desde o início da manhã), a equipe não poderia continuar com suas atividades e que, infelizmente, teria que ir embora, pois temia pela saúde das crianças que poderiam se resfriar, além dos riscos de acidentes provocados pelo chão molhado. As crianças menores aceitaram a notícia com um misto de tristeza e aceitação passiva, como que se já estivessem acostumados à decepção. Notei um claro distanciamento e dispersão das crianças após o anúncio. Neste momento de despedida, não houve a mesma ajuda que percebemos na chegada. Enquanto P. anunciava o cancelamento do evento, conforme decisão tomada junto com as lideranças da comunidade, os meninos mais velhos, que se mantiveram afastados, começaram a se organizar para um jogo de futebol na quadra. Esse processo de organização foi permeado por discussões e troca de insultos entre os meninos, que se digladiavam com cusparadas. Mas logo tudo foi resolvido e, antes da equipe terminar de carregar o ônibus, eles já estavam jogando na quadra, sob a forte garoa que caia. Às 10:55h a equipe partiu, após se despedir de duas meninas que ainda permaneciam por perto.

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Vila Lutécia Data: 11/8/2007

O dia amanheceu ensolarado, porém frio. Tudo indicava uma ida promissora com o Expresso Lazer à comunidade da Vila Lutécia. Chegando ao local de destino, fomos recepcionados por uma líder da comunidade, que muito educadamente nos ofereceu um café da manhã e a sede do campo do Colorado para nos instalarmos. O ônibus e tendas montadas no campo de futebol recebiam olhares curiosos das crianças uniformizadas que participavam do jogo final do campeonato. Acima do campo, alguns adultos, na maioria homens, sentados em bancos de concreto, observavam atentos a tudo que acontecia. Aos poucos as crianças foram chegando perto e ouvindo atentamente o que o monitor falava sobre as diversas atividades programadas e foram se acomodando nos “ambientes” propostos pelo Expresso Lazer, como: tenda de jogos de tabuleiro, 9 baralho e dominó, o futebol de botão, a mesa de pingue-pongue, a outra tenda com escorregador e trenzinho para crianças menores. Além disso, foram se integrando às brincadeiras que os monitores promoviam no palco, tudo acompanhado por música alta. Atrás do ônibus do Expresso Lazer, um grupo de quatro meninos, de aproximadamente oito anos, espiava o que estava havendo, por cima do muro que cercava parte do campo de futebol. Estavam curiosos, mas não se aproximaram. Esses meninos vestiam roupas visivelmente melhores que as outras crianças que participavam do evento e, distantes, exibiam passos de dança de rua, break , e davam saltos-mortais, por vezes saltando do muro, que tinha aproximadamente dois metros de altura. Alternavam os passos de dança com as espiadas ao Expresso Lazer. Nesse momento, enquanto observava o grupo de longe, um menino se aproximou do tabuleiro de xadrez e convidou o monitor para uma partida. Alguns minutos mais tarde, depois de inúmeras jogadas pensadas com ar intelectual, que incluíam xeques- mate, o menino ganhou o jogo. O monitor o cumprimentou e convidou as outras crianças, que observavam a partida, a jogar. Havia um menino na fila da mesa de pingue-pongue que não tirou os olhos do jogo de xadrez, mas quando ele teve a oportunidade de jogar, recuou. O desafiante, por sua vez, disse fazendo graça: “...eu aprendi a jogar com o pai dele, agora ele não joga mais comigo porque eu sempre ganho!” O menino sem graça se afastou dali. Na mesa em que eu estava havia um baralho que despertou o interesse de um menino de oito anos. Ele se aproximou de mim, e convidou-me para uma partida de um jogo que ele não sabia o nome, mas sabia como funcionava. Momentos depois, ele com muita astúcia, ganhou o jogo e comemorou. Em seguida perguntou-me se eu gostava de futebol. Respondi que sim, mas que não sabia jogar. Aí, ele me olhou nos olhos, se aproximou, e bem próximo ao ouvido, em tom de segredo, perguntou-me se eu queria jogar com ele. Respondi que não sabia jogar e perguntei-lhe porque não jogava com os meninos que estavam jogando bola por ali. Ele, então, perguntou-me, envergonhado: “...posso falar porquê? Posso mesmo?” Respondi que sim e ele, novamente em tom de segredo, se aproximou e, bem baixinho, falou: “...é porque eles não tocam...” (estava se referindo à bola). Perguntei-lhe como ele sabia disso e ele respondeu que sempre estava por ali, jogando bola com aqueles meninos e que era sempre assim. Ele fez novo convite para o jogo de baralho, dessa vez com outras duas meninas, um pouco mais velhas do que ele, que entraram na brincadeira. Explicaram- me direitinho como se jogava “Pif” e começamos a partida. No meio do jogo uma das participantes ficou confusa com as regras e, então, a outra menina a ajudou, explicando as regras do jogo com muita paciência. Essas duas meninas eram amigas, sendo uma um ano mais velha que a outra. Contaram-me que eram melhores amigas e que uma estava na casa da outra, porque os pais da mais nova estavam trabalhando e eles não gostam que a filha fique sozinha. Elas não se separavam e ficavam sempre preocupadas uma com a outra, como se tivessem uma responsabilidade mútua. No meio da partida, surgiu uma pergunta da menina mais nova: “... vocês são irmãs? (referindo-se a outra pesquisadora que estava próxima de mim). Respondi que não. “...então são amigas?” Respondi que sim. E o interesse continuou: “...são amigas da escola?” Respondi que sim e que havíamos estudados juntas. 10

Foi muito interessante essa experiência porque suscitou uma necessidade de nos apresentarmos como pessoas, estabelecendo trocas, e não só como parte da equipe de recreação, já que estávamos vestidas com a camiseta do Expresso Laser. O menino que me convidara para o jogo de baralho interessou-se pela mesa de futebol de botão, mas disse que nunca havia brincado com aquele jogo e que não sabia como fazê-lo. Pediu-me que o acompanhasse até a mesa para que pudesse perguntar ao monitor se ele poderia ensiná-lo a jogar e permitir que o fizesse. O menino não queria ir sozinho, pois, como disse, estava com vergonha e insistiu para que eu fosse com ele. Acompanhei-o até a mesa de futebol de botão e expliquei o caso para o monitor, que por sua vez, o introduziu no jogo, com outro menino que ali observava tudo. Momentos mais tarde, o garoto retornou e perguntou se “nós” (referindo-se ao Expresso) vendíamos os brinquedos. Respondi-lhe que não e aproveitei para perguntar de qual ele havia gostado mais. A resposta foi imediata, apontando para a mesa de botão, falou: “...quanto é, vai? Fala quanto custa aquele ali...” Expliquei que se nós vendêssemos os brinquedos não poderíamos mais levar para outros lugares e nem voltar ali, pois não ia sobrar nenhum. Aparentemente ele compreendeu a explicação e voltou ao jogo. Foi possível observar que não havia adultos no local, as crianças estavam soltas e se organizando de forma bastante cooperativa. Foi raro o uso de palavrões para ofender os colegas e de brigas entre eles. À tarde, o tempo havia mudado, ventava e fazia muito frio. Muitas crianças estavam sem agasalho apropriado e tremiam de frio, mas não queriam sair dali, no máximo mudavam de atividade para uma de corrida ou futebol, por exemplo. A líder comunitária que nos acolheu, ofereceu pipoca a todos os participantes do evento, trazendo uma alegria a mais para a garotada que, no entanto, jogou os pacotes vazios no chão. O Expresso Lazer aproveitou a deixa e converteu esse comportamento em um interessante jogo de limpeza local. As crianças entraram na brincadeira e logo não havia mais sujeira no chão. Diversos grupos locais se apresentaram no palco, entre eles, os meninos que haviam ensaiado do lado de fora do campo de futebol. Eles levaram sua música e se apresentaram na lona aberta no chão. Sua dança consistia de passos ousados e saltos- mortais. As crianças que assistiam ao espetáculo fizeram uma roda em volta da apresentação e veneraram os meninos do grupo. Os dançarinos, por sua vez, chamavam pessoas da platéia para integrar seu grupo, tendo diversas apresentações improvisadas e criativas. Outra apresentação grupal interessante foi a dança, bastante sensual, que algumas meninas apresentaram. Uma delas, a mais “provocante”, usava calça apertada, mini-blusa e estava bastante à vontade durante toda a apresentação. Essa menina, junto com mais duas, insistiu para se apresentar no palco porque assim, “seria vista por todos que estavam lá”, como ela mesma fez questão de enfatizar. Esse grupo se apresentou duas vezes no palco e depois as meninas se envolveram nas brincadeiras infantis, demonstrando que caminham juntas a diversidade em ser criança e a sexualidade tão reverenciada hoje em dia, ambas experimentando o amadurecimento. O frio e o vento se tornaram insuportáveis e as crianças optaram pelas brincadeiras de correr, enquanto o Expresso terminava suas atividades e ia recolhendo seus brinquedos. Muitas crianças ficaram ali até tudo estar dentro do ônibus, nos abraçaram e pediram para ficarmos mais, demonstrando a valorização do que ali aconteceu. A 11 comunidade nos recebeu e acolheu muito bem, cedeu suas instalações e acima de tudo mostrou o respeito, educação e cordialidade para com os membros da equipe.

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Vila Progresso Data: 12/8/2007

A equipe do projeto chegou ao bairro às 9h35min. Esse pequeno atraso ocorreu porque a equipe precisou trocar parte do material e alguns brinquedos que estavam sujos devido à chuva e ao barro do dia anterior. No local de chegada não havia nenhuma criança à espera e foi somente quando a equipe começou a descarregar seu material que chegaram os primeiros três garotos. A Vila Progresso é bem urbanizada e ocupada por várias casas de bom padrão, com espaço para garagem. As pessoas da comunidade também trajavam roupas de boa qualidade e adequadas ao tempo frio. Além do atraso inicial, a equipe do projeto precisou aguardar que os agentes de trânsito fechassem a rua, para poderem iniciar suas atividades, começando pela instalação dos brinquedos e demais equipamentos. Enquanto a equipe esperava, veio um garoto, de aproximadamente 8 ou 9 anos, e perguntou-me se gostaria de ver a sua revista sobre carros. Juntos, fomos folheando a revista, sobre a qual ele fazia comentários. Era uma revista sobre tuning (carros modificados). O menino elogiava os carros e os sistemas de som. Disse que seu pai gostava de carros tunados e que o carro deles tinha um sistema de som muito bom. Aos poucos outras crianças mais velhas, entre 10 e 12 anos, foram chegando. Esses recém- chegados tratavam o garoto mais novo com certa condescendência. No entanto, quando esse mais novo disse ter feito o desenho de um dos carros, pediram debochadamente que ele o mostrasse. O garoto prontamente correu para ir buscar seu caderno escolar, onde se encontrava o desenho. Quando retornou e mostrou seu desenho, os outros caçoaram um dele, usando de um sarcasmo bastante sutil. Um dos garotos mais velhos disse que desenhava melhor e foi à sua casa buscar seu caderno para mostrar os desenhos que tinha. Ao retornar, mostrou seus desenhos que, obviamente, eram mais elaborados, pois esse garoto deveria ter cerca de 12 e 13 anos. Diante disso, os outros meninos debocharam mais abertamente do mais novo. No entanto, aproveitei para encorajá-lo, dizendo que era um bom desenho para sua idade, e que apenas com a prática ele conseguiria melhorar ainda mais. Nesse meio-tempo, algumas crianças foram chegando à praça onde o ônibus estacionara. Era uma praça com gramado, mesas e bancos de cimento e, ainda, uma quadra de futebol de salão. Embora a equipe estivesse bastante atrasada pela não interdição do trânsito na rua - a montagem dos equipamentos só começou às 10h30min. -, a presença de crianças era bem pequena e elas, desta vez, não ajudaram na montagem dos equipamentos, como fizeram da vez anterior. 12

A equipe terminou a montagem dos equipamentos às 10:45h, e começou a anunciar sua presença pelo sistema de som do ônibus. A equipe usou os seguintes equipamentos: mesa de pingue-pongue, de futebol de botão, jogos de xadrez (também usado como de dama) e dominó dispostos sobre as mesas de cimento. Havia ainda duas tendas armadas sobre uma lona no gramado da praça, com vários brinquedos: carros, bonecas, fogão, ferro, etc., além de grandes cubos de espuma, uma rampa de espuma e o trenzinho/túnel. A todo esse equipamento se juntava o já existente na praça: duas gangorras, dois balanços, um gira-gira e barras para pendurar. No início do dia, a equipe de Expresso Lazer montou times de futebol com os meninos para um jogo de futebol na quadra. No início das atividades, observou-se que havia uma divisão entre as faixas etárias. As crianças mais novas brincavam com os brinquedos nas tendas enquanto os mais velhos se concentravam na mesa de pingue-pongue. As crianças menores brincavam livremente, sob supervisão de uma ou duas componentes da equipe: percorriam o túnel, brincavam com os carros e utensílios, em geral de maneira um pouco individualizada, interagindo uns com os outros, mas sem se organizar para uma brincadeira em comum ou jogo. Dois meninos “brincavam” com uma das peças de espuma, usando-a como “porrete” um no outro. O garoto que iniciou essa prática agressiva foi o mesmo que estava com a revista de tuning, quando a equipe chegou. De certa forma, sua atitude reafirmava a escala hierárquica à qual ele mesmo já fora submetido pelos outros meninos, maiores que ele. Normalmente, essas pequenas disputas são resolvidas pela intervenção dos monitores. A essas intervenções, as crianças reagem com certa indiferença e atitudes como: “não fui eu”, “não fiz nada” etc. Durante a manhã, havia poucos adultos na praça, que permaneceram mais como observadores do que de participantes ativos das brincadeiras de seus filhos. Os adolescentes e crianças maiores (entre 11 e 17 anos) fizeram filas para jogar pingue-pongue, seguindo as orientações do monitor que estabelecera a seguinte regra: quando alguém errava, voltava para o final da fila, de ambos os lados. No entanto, pude observar que essa regra não era satisfatória para todos e que a quantidade de participantes ficara reduzida até que o monitor os deixou sozinhos. A partir daí, as regras foram modificadas pelos que permaneceram, privilegiando uma de forma de competição mais aprofundada. Algo semelhante também ocorreu na mesa de futebol de botão. A participação nesse jogo era bem menor e por várias vezes, a mesa ficou desocupada. Segundo algumas crianças, isso ocorreu devido à morosidade natural do jogo, e pela notável imperícia dos participantes mais jovens. Além disso, havia também certa frustração em relação ao jogo que alguns participantes consideraram chato. Tentei motivar a participação dos outros meninos que observavam o jogo de maneira similar àquela que vira no pingue-pongue. Pedi-lhes que formassem times e trocassem o comando das jogadas a cada três lances, mas essa sugestão não vingou e logo as crianças criaram seu próprio modelo de jogo, negando totalmente o modelo comum de futebol de botão. Após as 11h30min., os integrantes do expresso começaram a organizar brincadeiras junto ao palco. As crianças menores, em especial as meninas, estavam em 13 maior número, pois os meninos mais velhos mantinham-se entretidos com o pingue- pongue. Praticamente não houve participação ativa de adultos nas brincadeiras. Todas as brincadeiras realizadas no palco são sempre comandadas pela equipe do Expresso Lazer, com pouco input das crianças. Brincadeiras do tipo “ Simon diz” ajudam a controlar e direcionar a atividade das crianças. As atividades no palco começaram com um convite para as crianças se apresentarem no palco, desempenhando qualquer atividade, como cantar, dançar, ler um poema etc. Logo uma menina subiu ao palco, mas sem saber para quê. O monitor que comandava o “ show ” propôs que ela cantasse uma música infantil. Terminada a música, ela foi pouco aplaudida, mas o monitor pediu à platéia que aplaudisse com mais entusiasmo Em seguida algumas meninas subiram no palco para dançar. Houve um garoto que também subiu ao palco, nesse momento, mas não para se apresentar, permaneceu lá apenas observando até que assumiu o papel de ajudante do monitor nas brincadeiras que se seguiram. Foram realizadas brincadeiras que utilizavam comandos de equipe, como por exemplo, a brincadeira do “morto-vivo” (com comandos extras). Esse mesmo garoto que ficará no palco durante as brincadeiras retornou mais tarde para pedir a bola de futebol, para jogar com outros garotos. Como as atividades já estavam findando, alguns monitores disseram que a bola estava furada. Insistindo, o garoto escalou o palco e pediu novamente. Um dos monitores, então, lhe disse: “Olha, você desce pela escada e me pede de novo, aí debaixo, que eu penso nisso, ok?” Antes do fim dessa frase, o garoto já havia virado de costas para o monitor e saltado do palco, com um olhar desafiador, como se dissesse: “Dane-se, então não quero.” Quando o pessoal do expresso se preparava para ir embora, o monitor reencontrou-se com o garoto e lhe disse: “Pô! Eu até ia te dar a bola naquela hora que você pediu, mas eu pedi para você descer pela escada e você nem me ouviu. e então, nada feito.” Aparentemente esse comportamento do monitor buscou mesclar autoritarismo com vontade de incutir educação e civilidade no garoto, mas independente de suas boas intenções, pareceu-me mais um reforço à submissão das crianças à vontade dos adultos, ou ainda, da vontade daqueles que têm poder sobre aqueles que pedem. Uma atitude simples, mas que acaba reencenando o papel de inferioridade das classes mais pobres frente aos abastados. Enquanto a maior parte das crianças estava junto ao palco, algumas permaneceram no “espaço criança”, brincando de maneira grupal ou em duplas, interagindo de maneira cooperativa umas com as outras. Os brinquedos próprios do parque também foram bastante utilizados pelas crianças que, eventualmente, se desinteressavam das brincadeiras feitas junto ao palco e procuravam outra atividade de seu interesse. Isso aconteceu de maneira espontânea e extemporânea. Elas simplesmente corriam alegremente de onde estavam para algum dos brinquedos ou outras atividades disponíveis. A certa hora, a equipe direcionou as crianças para o “Momento de Leitura”, entregando-lhes livros e revistas, para lerem sentadas na lona estendida junto ao palco. Enquanto as crianças menores participavam dessa sessão de leituras, os garotos maiores e adolescentes jogavam futebol com alguns membros da equipe. Os garotos 14 ficaram bastante entusiasmados com a participação no futebol, porque puderam usufruir de outro espaço, mais direcionado a seus interesses, já que o único que estavam utilizando até então era a mesa de pingue-pongue. À tarde, as crianças foram chamadas pelos monitores para se aproximar do palco e assistir ao show dos palhaços. A maior parte das crianças rapidamente correu em direção ao palco e sentou-se no chão, assim como os jovens e adolescentes, que se sentaram nas mesas de concreto que havia na praça. Alguns pais também acompanharam atentamente a apresentação dos palhaços, mas se mantiverem distantes do palco. Durante a performance dos palhaços, as crianças ficaram plenamente envolvidas e entretidas, embora não houvesse muito espaço para interação, pois apenas falavam como atores quando, por exemplo, um dos palhaços “tramava” contra o outro e as crianças gritavam, avisando a “vítima” do iminente perigo. Após os palhaços, um dos monitores apresentou um show de ventriloquia, que possibilitou maior interação da platéia. Em seguida houve o show de malabarismo, em que vários membros da equipe se apresentaram individual e coletivamente. Ao término desse número, os monitores perguntaram ao público: “Quem quer aprender a brincar de circo?” E toda garotada gritou: “Eu quero”. Os monitores desceram do palco, levando consigo o material para a realização da “oficina de circo”. Esse material era constituído de bolas, clavas, pernas de pau, chinelão, etc. A oficina teve participação quase total dos presentes. Essa participação envolveu as crianças, assim como a maioria dos jovens adultos e pais presentes. Essa oficina foi um dos momentos em que mais houve a participação ativa dos pais nas brincadeiras com os filhos. Em certo momento, perto do final das atividades, um senhor e uma criança estavam sentados junto à mesa de botão. O senhor falava carinhosamente com o menino, explicando-lhe as regras do jogo e contando sobre seu tempo de menino, quando jogava futebol de botão. O garoto, por sua vez, olhava atentamente as peças enquanto escutava o mais velho. Ao final das atividades, podia se ouvir as músicas de despedida e as promessas de retorno. As crianças e adultos foram pouco a pouco se dispersando e, embora houvesse certa tristeza no ar, percebia-se algo mais, como gratidão à equipe do Expresso e Lazer pelo tempo dedicado e pela diversão proporcionada. Segundo os membros da equipe, essa despedida antes da partida do ônibus foi incomum, pois, normalmente, as crianças ficam até a partida do ônibus, chegando a correr atrás dele. No entanto, neste bairro as pessoas se dispersaram sem grande entusiasmo, logo após o anúncio do final das atividades. Mesmo a ajuda das crianças para recolher o material foi bastante limitada e, logo após os equipamentos serem levados até o ônibus, já não havia mais crianças no local. Apenas um membro da comunidade permaneceu para se despedir da equipe.

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Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Jardim Cristina Data: 18/8/2007

O Expresso Lazer nesse sábado participou do mutirão de limpeza realizado no Jardim Cristina, juntamente com outros serviços, como por exemplo: corte de cabelo, distribuição de doces, lanches, vacinação para cães e gatos, etc. Embora o Jardim Cristina seja um bairro urbanizado, ainda existem algumas ruas sem pavimentação. Mesmo assim, observam-se casas bem arrumadas e, em alguns pontos, muitas casas em reforma. Ao chegar à comunidade, já havia cerca de vinte crianças esperando a equipe do Expresso Lazer. No entanto, devido à ocorrência de outros eventos e à pouca organização da comunidade, a equipe precisou aguardar mais de meia hora para poder descarregar o caminhão. Assim que a equipe desceu do ônibus, o número de crianças que a aguardava no local já era superior a cinqüenta. Todas ansiosas para brincar. Muitas delas perguntaram sobre a cama elástica e se decepcionaram ao saber que a equipe não dispunha mais desse brinquedo na programação do expresso. Embora, a princípio, apresentassem certa tristeza, quando eram questionadas por outras crianças, repassavam a informação com alegria porque o monitor lhes havia dito que, assim, eles aprenderiam outras brincadeiras, que poderiam ensinar a outras crianças e divertirem- se mesmo quando o expresso não estivesse ali. Enquanto o caminhão era descarregado, um monitor distraia as crianças convidando-as a cantar com ele. Neste momento, notou-se que apesar de abraçarem e cantarem a pedido dos monitores, havia grande agressividade naquele ato, embora não intencionalmente. Algumas crianças ao invés de segurarem as orelhas dos amigos, puxavam; outras, ao abraçarem, beliscavam. Esse clima de agressão permeou praticamente o dia todo. Houve vários focos de pequenas brigas, muitas apartadas pelos monitores. Essas brigas ocorreram sempre por causa de algum brinquedo que não queriam dividir. Quando já estava tudo pronto para a equipe iniciar as brincadeiras: os brinquedos espalhados na brinquedoteca e as mesas de jogos montadas, começou um tumulto provocado por várias crianças que começaram a jogar os brinquedos no chão ou queriam levá-los embora. Essa situação fez com que a equipe se visse forçada a retirar o jogo de xadrez da mesa, pois as crianças começaram a jogar as peças no chão. Segundo o relato de um dos monitores, houve um garoto que, quando se percebia perdendo no jogo de dominó, reiniciava o jogo, impedindo que as outras crianças jogassem. Questionado pelo monitor, o garoto respondeu que se não fosse daquela maneira, ninguém jogaria. O monitor, então, disse ao garoto que ele não jogaria aquela rodada, pois havia perdido. Imediatamente o menino pegou o dominó da mesa e saiu correndo. O monitor ainda tentou alcançá-lo, mas foi em vão. O garoto embrenhara-se pelas vielas do bairro. No período da manhã, poucas mães acompanharam seus filhos ao evento. Mesmo os mais novos, entre um e três anos de idade, estavam acompanhados por irmãos mais velhos. 16

O comportamento incompatível com a idade e local presenciado pela equipe - crianças se batendo, xingamentos e palavrões, furto de brinquedos do Expresso Lazer -, nada disso foi reprimido ou corrigido, quer pelos pais, pois a maioria não estava presente, quer pelos vizinhos ou líderes da comunidade, que a tudo assistiam impassíveis. Além disso, os líderes da comunidade resolveram distribuir bexigas para as crianças, o que atrapalhou um pouco a programação do expresso, pois suas atividades ficaram paralisadas devido à enorme fila formada pelas crianças que queriam uma bola de gás. No entanto, as mesmas crianças que enfrentaram aquela fila enorme para pegar o brinde, furavam as bolas umas das outras, causando muitas brigas e choros. Algumas das poucas mães presentes fizeram seus filhos pegar mais de uma bola, deixando sem o brinque as crianças que chegaram mais tarde, assim como aquelas que, por algum motivo, não receberam a bola. Curiosamente, nenhuma dessas mães incentivou seu filho a dar uma de suas bexigas à outra criança. Pelo contrário, houve aquelas que inclusive levaram as bexigas embora, para guardá-las em casa. Essa má distribuição de brindes se repetiu quando as lideranças da comunidade distribuíram os livros de pintura, com o tema cidade limpa. Algumas crianças ficaram com mais de dez livros, todos iguais, enquanto outras ficaram sem. Não houve nenhuma criança capaz de ceder um de seus livros à outra. A desorganização das lideranças comunitárias era tal que acabaram por perder totalmente o controle da situação. Houve casos de mães que tiraram seus filhos das brincadeiras para que eles entrassem na fila do cachorro-quente, mesmo sem fome, pois eram elas mesmas que queriam o lanche. Assim, as próprias cerceavam o direito das crianças brincarem. Apesar de o evento ser referente à limpeza da comunidade, as crianças, assim como os adultos presentes, jogaram as embalagens e papéis dos lanches no chão, sem nenhum pudor. Dessa forma, o lixo só aumentou, devido à grande quantidade de pessoas, crianças e adultos, que estavam no local para utilizar os serviços oferecidos pela prefeitura de Santo André. Um dos líderes da comunidade informou que a equipe do Expresso Lazer poderia utilizar o banheiro da residência de uma senhora, membro da Associação de Mães do Jardim Cristina. Essa senhora, que foi bastante solícita e educada com todos da equipe, tinha três filhos, todos casados. Na ocasião, apenas um deles não morava mais na comunidade, o que parecia dar à mãe, certo orgulho e, ao mesmo tempo, certa dor. Provavelmente, por não tê-lo perto de si, pois os outros dois filhos ainda moram na mesma casa, que foi dividida em três. Em uma das conversas que tivemos com essa senhora, soubemos que ela, além desses três filhos, tinha adotado uma criança, que estava presente e acompanhou todo o relato sobre sua adoção. A senhora nos disse que jamais escondeu a história de seu filho; que ele sabe de tudo e do quanto é importante para sua família. Contou-nos também que a criança não sai de casa sem ela e que o menino é calado, pois não gosta de falar, nem de brincar com as outras crianças, permanecendo sempre sozinho. 17

O menino continuou a ouvir a conversa da mãe e da irmã que, sem nenhum pudor, ou poupando a criança, falaram de como a mãe biológica deu a criança porque ela não gostava dele e que o teria dado a qualquer um que o quisesse. O menino ouviu a tudo isso impassível, sem demonstrar que sabia sobre o que estavam falando. Talvez por isso, elas continuassem a falar. Convidamos o garoto para ir conhecer o Expresso Lazer, mas não obtivemos sucesso, pois ele não emitia nenhum sinal de entusiasmo, e logo se retirou, sem ser obrigado a fazer algo que não quisesse. A mãe, muito compreensiva, parecia entender os motivos do filho e, embora o incentivasse a se soltar mais, sempre respeitava sua vontade. Posteriormente, tivemos outra conversa com a mãe, sem a presença do garoto. Foi, então, que ela nos contou que estava desempregada, pois tinha artrose e artrite, o que impedia de exercer a função de faxineira; mesmo assim, disse que estava contribuindo com o INSS, como autônoma, para tentar conseguir um auxílio-doença. Em sua casa, apenas o marido trabalhava e, embora não tenha comentado sobre sua profissão e renda, Observamos que sua casa estava bem mobiliada e contava com forno microondas, geladeira, televisão de vinte novas polegadas, etc. Percebia-se, ainda, que a casa passara por reforma recentemente e que ainda faltavam alguns acabamentos. Retomou o assunto da adoção dizendo que muitas pessoas achavam que ela não deveria adotar o menino, porém, ele se apegou tanto à família: ela, o esposo e os filhos, que não pensaram duas vezes para adotá-lo. Ela nos contou também que o menino não é filho de nenhum parente deles e que o conheceram em Minas Gerais, mas não explicou claramente como se deu o processo de adoção. Enquanto isso, segundo um dos monitores do Expresso Lazer, algumas crianças “levaram” a maior parte dos brinquedos que estavam à disposição na brinquedoteca. Durante a atividade de leitura denominada Expressando Idéias, a maioria das crianças ficou quieta e algumas pediram ao monitor que contasse as histórias. Enquanto as crianças se deitavam na lona para ouvir, um menino mais amistoso abraçou o monitor e parecia agradecê-lo com os olhos por aquele momento. Neste momento, surgiu uma mãe pedindo à sua filha que entregasse o livro, pois ela não sabia ler; muito timidamente, a menina deixou o livro e foi ficar junto da mãe. Chamou a atenção da equipe do Expresso Lazer o fato das poucas mães presentes serem bastante frias com seus filhos, e preocupadas apenas com eles. Esse comportamento se evidenciava com a insistência delas em obter mais brindes e guloseimas para os seus filhos. Assim, enquanto algumas crianças ostentavam mais de cinco pirulitos e/ou bexigas, outras estavam sem nada. Houve inclusive casos de mães que foram embora com seus filhos para evitar que outras crianças pedissem um dos brindes que carregavam. Algumas delas tinham cinco bexigas em suas mãos. As crianças eram bastante carentes, e por isso verbalizavam muito pouco, levando a crer que fossem pouco estimuladas no aprendizado. Não sabiam jogar dominó e muitas não conheciam as músicas típicas da infância e, embora, no projeto se permitissem brincar com essas músicas, faziam cara de deboche, como se aquilo fosse 18 coisa de “criança”. Contudo, quando a música tocada era mais sensual e comum nas comunidades, tipo o funk e black music , muitas delas não só brincavam como pediam para dançar e cantar. No momento do “Essa comunidade é show”, em que os moradores podem se apresentar, apareceu um grupo de crianças que pediu para dançar black music, como se fosse um desafio para ver quem dançava melhor. O principal movimento da dupla vencedora foi quando a menina abaixou a calça do garoto no meio da dança, provocando risadas na platéia. O movimento foi rápido e parece que nenhum adulto achou aquilo inadequado, assim como também não pareceu espantoso para as crianças que apenas riram, sem comentar o assunto. Logo depois, uma menina com cerca de dez anos de idade pediu para cantar um funk , no que foi acompanhada por todas as crianças e adultos, que cantaram junto com ela.

Havia um bar próximo ao local do evento, onde alguns homens da comunidade, além de ficar bebendo e fumando, ainda faziam comentários bastante “machistas” em relação às apresentações do Expresso Lazer, e davam conotação sexual a todas as brincadeiras infantis. Esses comentários eram feitos em voz alta e perto das crianças. Em frente a esse bar havia a casa de um homem, com quem todos paravam para conversar. Ele ficava na sacada da casa, bebendo e fumando, enquanto observava o movimento. EM determinado momento, uma menina com cerca de treze anos de idade passou e perguntou-lhe, gritando, se ele já havia tomado a vacina, que era para cães e gatos. Ele respondeu-lhe que ainda não tomado e perguntou se ela já havia sido vacinada. Ela respondeu-lhe que sim, apontando para suas nádegas, de forma bastante sensual, mas logo parou de conversar, pois a namorada dele estava em casa. A comunidade relacionava todas as atividades com sexo, a ponto de várias crianças, de cinco anos, questionarem a sexualidade dos monitores por usarem chapéus cor-de-rosa, ou simplesmente por dançarem, principalmente, músicas infantis. Na hora do “Circo”, uma menina que estava acompanhada de seu irmão mais velho encantou-se com o palhaço e parou de jogar dominó para ir vê-lo. Entretanto, parou no meio do caminho e voltou dizendo que estava com medo, porque o palhaço havia batido no outro companheiro, e poderia fazer isso com ela também. Apesar da grande vontade de ir vê-lo, ela não gostou da parte em que o palhaço bateu no outro e ficou com pena e medo de que também fizessem isso com ela. No meio da apresentação disse que ia embora descansar, até chegou a ir, mas voltou, dizendo que descansaria mais tarde. No início da programação, havia um garoto de cerca de cinco anos, encantando com uma bexiga, que enchia e soltava com muito orgulho. Fez isso por diversas vezes, dizendo que sabia fazer aquilo sozinho. Era um garoto que gostava dos brinquedos em que poderia fazer algo, ou seja, montar, e por isso, o lego foi seu grande companheiro durante todo o dia. Montou prédios, casas, meninos, e até uma arma. Disse que tinha uma arma em casa e, vendo minha cara de assustada, falou que era de brinquedo e que eu não precisava ficar preocupada. Esse mesmo menino, na “hora da leitura”, mostrou-se orgulhoso, por ter ouvido uma história que o deixara muito feliz. 19

Apesar da aparente carência afetiva das crianças, muitas delas eram resistentes a carinho e a aproximação de outros adultos como, por exemplo, os monitores que, só conseguirem envolver as crianças nas atividades por serem bastante insistentes. Normalmente, os monitores do Expresso Lazer realizam uma gincana para distrair as crianças na hora de recolher os brinquedos. No entanto, neste dia isso não foi necessário, pois logo que elas perceberam que as atividades estavam terminando, algumas foram embora e outras ficaram para aguardar o brinde que seria entregue no final. Durante todo esse dia, as crianças brincaram e recolheram o lixo, como a gincana pedia e, no final, todos ganharam o pirulito prometido para quem colocasse seu lixo nas lixeiras. Mesmo aqueles que não cumpriram com o acordo ganharam seus pirulitos. Ao termino da gincana, todas as crianças foram embora, sem ao menos se despedirem dos monitores do Expresso Lazer. Diante desse relato, percebe-se que a comunidade do Jardim Cristina tem líderes bem intencionados, mas que ainda não conseguiram se organizar, pela dificuldade em estabelecer vínculos uns com outros. Pelo que se observou, o único vínculo existente e permitido na comunidade, no momento, é o material, pois muitas pessoas que participaram da gincana estavam apenas interessadas nos brindes, e não em proporcionar um dia de brincadeiras e diversão para as crianças, assim como de interação das crianças, entre elas, assim como dos adultos entre si e entre crianças e adultos. As crianças demonstraram ter grande carência afetiva, dificuldade em dividir e pais ausentes. Independentemente das idades, as crianças mostravam-se pouco estimuladas a brincar, a conversar umas com as outras e seus diálogos, na maioria das vezes, eram curtos e agressivos. As crianças brincavam solitárias e somente mantinham contato uma com as outras quando brincavam com os monitores; aquelas mais distantes da dinâmica de grupo proporcionada pelo Expresso Lazer ficavam sozinhas. Não havia possibilidade ensinar umas às outras, pois não sabiam brincar em grupo e tinham grande dificuldade em trocar. Aliás, elas não tinham o que trocar, e as que tinham, se assim o fizessem, ficariam sem. O comportamento observado reflete uma comunidade em que os adultos também não sabem dividir. A maioria deles porque, talvez, não tenham tido exemplos de uma prática mais solidária e, aqueles que tiveram, como é o caso daquela senhora que dispôs sua casa para os monitores, certamente saberiam da importância do servir, e não apenas do ser servido.

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Vila dos Ciganos Data: 25/8/2007

A Vila dos Ciganos está situada em um terreno do Estado e, segundo uma das integrantes do Expresso, por isso não poder sofrer intervenção da prefeitura de Santo 20

André. Trata-se de uma área muito carente onde não há políticas ou programas voltados para a melhoria da qualidade de vida daquela população. A comunidade é pequena e ocupada por casas sem acabamento, muitas delas geminadas e construídas em um único terreno. Seu sistema viário é composto por ruas estreitas, vielas e escadarias. Apesar da proximidade entre as casas, as pessoas quase não se falam e, aparentemente, são pouco solidárias umas com as outras. Apenas as crianças parecem conviver melhor. No início das atividades do Projeto Expresso Lazer, a equipe foi abordada por algumas senhoras que faziam parte da Pastoral da Criança. Elas queriam que a equipe anunciasse às mães que elas deveriam levar suas crianças para serem pesadas. No local onde o ônibus estacionou havia muitas crianças, com idade entre cinco e quinze anos, que aparentavam estrutura óssea incompatível com a idade cronológica, reflexo do grande problema que enfrentamos no Brasil, que é a desnutrição infantil. Muitas crianças, durante o dia, não almoçaram ou tomaram água e algumas disseram que não tinham comida em suas casas. O evento ocorreu em um dia de muito calor. As crianças de colo ficaram expostas ao sol, sem que as mães, que as acompanhavam, as protegessem. Essas mães eram pouco afetuosas e não estimulavam seus filhos a brincar. A maioria delas não trabalhava e demonstrou grande distanciamento dos filhos. A maioria dessas mulheres tinha mais de quatro filhos, com idades próximas, e verbalizavam muito pouco, o que dificultava o contato com os monitores do Expresso e, certamente, com suas próprias vizinhas. Esse comportamento das mães se refletia nos relacionamentos que as crianças estabeleceram entre si, pois foram raras as cenas de diálogo entre elas, que brincavam sozinhas ou em dupla. Só brincavam em grupo quando eram convocadas pelos monitores do Expresso Lazer. Durante todo o dia foi comum a ocorrência de brigas, xingamentos e ameaças. As crianças mais velhas tinham a função de defender seus irmãos menores das crianças maiores, e com isso não tinham oportunidade de brincar. Era comum ver meninas de treze a quinze anos cuidando das crianças, como se fossem seus filhos, preocupando-se com os tombos, etc.. Essas meninas não podiam brincar, pois isso implicaria descuidar do seu papel de “mães”. Apesar da pouca idade, elas possuíam um semblante mais velho, maltratado pela vida. Todas as brincadeiras propostas pelo Expresso Lazer foram bem recebidas, embora várias crianças não soubessem cantar as músicas infantis, fazer associações de personagens de desenhos animados ou séries de tv, jogar dominó, etc. As poucas crianças que sabiam alguma coisa não gostavam de ensinar aos demais que, por não saberem, não participavam dos jogos. Outro ponto importante identificado logo no início das atividades foi a separação de gênero, pois meninos e meninas não brincavam juntos, como se apenas houvessem brincadeiras específicas para cada sexo. As meninas gostavam de brincar de casinha, sozinhas em suas casas, como uma delas comentou. Ela disse que brincava muito pouco de outras atividades, reproduzindo o papel das mães Os meninos, por sua vez, como é de praxe em nossa sociedade, gozavam de toda liberdade e podiam realizar todas as atividades que lhes interessasse, além de contar com algumas regalias, como por exemplo, passar na frente dos outros, bater nas meninas e outras coisas mais. 21

Durante poucos homens estiveram presentes ao evento, os meninos mais velhos ficaram de fora do programa, jogando pingue-pongue, numa mesa improvisada pela comunidade. Nesta comunidade não há projetos direcionados para as crianças nem para os adultos, assim como também não há lideranças comunitárias, isto é, pessoas engajadas. Durante todo o dia, somente uma mãe falou que as crianças não deveriam brigar nem brincar de forma agressiva, assim como os maiores não deveriam utilizar os brinquedos dos pequenos. No entanto, sua própria fala era agressiva e surtiu efeito apenas imediato. Quando ela saiu de perto, todos voltaram a ter a mesma atitude. Durante a atividade denominada “Essa Comunidade é Show”, em que as crianças locais podem apresentar alguma atividade artística, surgiram várias duplas que dançavam músicas funk e black music , gênero musical que faz parte do cotidiano dessas crianças e adolescentes. Sem que ninguém pedisse ou estimulasse, os próprios meninos se organizaram e formaram uma roda de desafio black music , mas este ato não foi comentado ou enfatizado pelos organizadores do Expresso Lazer, e por isso, logo se desfez. Outro momento importante foi quando uma menina pediu para brincar conosco. Ela queria que jogássemos um dado que continha números e, cada vez que ele caia, Ela deveria fazer algo tantas vezes quanto o número indicasse. Muito animada com a atenção que recebia, ela foi chamando outros amigos e, quando notamos, já tínhamos uma roda com umas dez crianças, que se organizaram sozinhas, e que exigiam que os amigos também fossem incluídos na brincadeira. Essa brincadeira foi evoluindo aos poucos, tornando-se um jogo de passar a bola, de olhos fechados, na forma de vôlei, com regras estabelecidas pelas próprias crianças. Havia um menino que sempre pedia para passarmos a bola para seu amigo, pois ele estava sem brincar. Os monitores do Expresso Lazer não gostaram dessa brincadeira porque essas crianças não queriam brincar de corda e isso poderia, talvez, distrair as outras crianças. Assim, percebendo o desconforto causado pela situação, pedimos às crianças que brincassem sozinhas. Contudo elas pediram que continuássemos a brincar e só conseguimos nos afastar saindo pouco a pouco e, então, todos se dispersaram. Durante todo o dia as crianças demonstraram dificuldade em se organizar, isto é, em direcionar seus desejos e vontades, assim como também dificuldade em verbalizar, em se comunicar, mostrando-se pouco estimuladas no dia-a-dia. E quando, finalmente, conseguem criar uma brincadeira, ela não pode ser levada adiante, pois as regras, a forma de estabelecer o contato e a solidariedade vieram naturalmente, através de uma menina que, talvez, tenha sido, ou seja, mais estimulada em seu lar. Uma das atividades desenvolvidas pelo Expresso Lazer na Vila dos Ciganos que merece destaque foi a “Alô Paixão”, em que as crianças podiam mandar bilhetinhos carinhosos para amigos, colegas, família etc., de forma anônima ou não. Essa atividade evidenciou a dificuldade que essas crianças têm em se comunicar e verbalizar seus sentimentos, já que todos os recados tinham o mesmo tema e significado, o amor. Uma menina mandou um recado para a sua mãe, que o recebeu sem externar nenhum sentimento. Outra menina enviou um recado para sua amiga que, timidamente, expressou sua felicidade e mencionou que o recado dizia que estavam juntas mesmo nas 22 dificuldades, na subida e na descida. Essas meninas tinham no mínimo 13 anos e estavam cuidando de seus irmãos e sobrinhos, cumprindo o papel de “mães” deles. Ainda no momento Alô Paixão, os meninos diziam, ironicamente, que amavam seus colegas. Outros diziam que seus únicos amigos eram fulano e sicrano, revelando grande cumplicidade. As crianças ao final das atividades do Expresso Lazer, algumas crianças pediram autógrafos para os componentes do programa e os abraçavam e beijavam, impedindo que a equipe partisse. Timidamente e pouco natural, os beijos e abraços foram sendo intensificados, assim como os pedidos para que a equipe retornasse. Finalmente, as crianças ajudaram a retirar o cavalete que fechava a rua, para que o ônibus pudesse partir. A ida do Projeto Expresso Lazer à Vila dos Ciganos mostrou que a comunidade não é só carente de coisas materiais, mas também de afetividade, refletindo isso na forma como as crianças internalizam seus modelos e como, diante de poucos estímulos tendem a ser mais fechadas e resistentes. Houve muita dificuldade em se estabelecer um vínculo com as crianças do bairro, não sendo possível conhecê-las de fato. Contudo, percebe-se que o vínculo criado pelo Expresso Lazer lhes possibilitou externar seus sentimentos, ainda que timidamente, sem medo e com alguma confiança. No entanto, isso somente é possível quando nenhum adulto está por perto. Como toda criança aprende reproduzindo, isto é, através de modelos, as crianças da Vila dos Ciganos estão deficientes em sua aprendizagem, pois demonstram muita dificuldade em brincar, conversar e interagir. Suas ações, mesmo quando em grupo, são isoladas. Porém, mesmo diante de todas as dificuldades percebe-se um grande potencial para se organizarem. Falta-lhes, porém, o devido estímulo, pois não são parabenizadas por seus atos. Quando há o reconhecimento, elas se revelam extremamente capazes de comunicar-se, como vimos na atividade “Alô Paixão”. Conclui-se que a falta de líderes na comunidade traz um sentimento de insegurança a essas crianças, que tem e terão maior dificuldade no aprendizado escolar e nas relações interpessoais, pois estão muito sozinhas nas descobertas que devem realizar na infância e, mais vulneráveis, terão mais dificuldade de aprender.

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Cidade São Jorge – Comunidade Espírito Santo Data: 2/9/2007

Chegamos ao Parque Antônio Pezzolo, de onde partem as equipes para as comunidades, às oito horas da manhã e seguimos de ônibus com a equipe do Projeto coordenada pelo F.. A equipe chegou ao bairro Cidade São Jorge, comunidade Espírito Santo, às 9h10min. A comunidade visitada é uma favela situada ao lado de um aterro sanitário. O ônibus estacionou em uma área grande, formada por um recuo ao final de uma rua sem saída. Essa área é limitada a oeste por um alambrado do aterro sanitário, que, segundo os moradores, exala um odor forte e desagradável nos dias de calor. A leste, há um campo de futebol de terra, cercado por um alambrado desgastado; ao norte, fica 23 a sede do clube de futebol da comunidade, que consiste em uma construção de bloco aparente, com um bar, uma pequena sala e uma área coberta com telhas de amianto, onde ficam as mesas e cadeiras; ao sul, a área é limitada por casas de bloco aparente, construídas sem colunas estruturais e cobertas com telhas de amianto. O ônibus estacionou em uma rua pavimentada que fica paralela ao alambrado do aterro sanitário. O terreno em volta é irregular, com algumas elevações. A maioria das casas é de alvenaria, sem acabamento, no entanto, há ainda algumas casas de madeira (barracos). As ruas do bairro são asfaltadas, porém irregulares. A comunidade conta com alguns pequenos comércios, bares e mercearias e, suas ruas são bastante movimentadas. No momento em que chegamos, havia cerca de dez crianças brincando na área, mas outras foram chegando enquanto a equipe descarregava os equipamentos e materiais do ônibus. Após descarregar o material, conversamos com um garoto, de uns oito anos, que segurava um saco de pão e que disse não pretender levar o pão para casa. Quando perguntamos o que aconteceria se ele não levasse o pão para casa, ele respondeu que fugiria da mãe, caso ela tentasse bater nele. Depois ele apontou em direção de sua casa, mostrando onde morava. Passados cerca de dez minutos, ele disse que iria tomar café da manhã e depois voltaria para o evento. Mais tarde nós o reencontramos junto das outras crianças, com farelos de pão no rosto. Depois comecei a conversar com um garoto de cerca de sete anos, e mantivemos o seguinte diálogo: ― É a primeira vez que você vem no Expresso? ― perguntei-lhe. ― Não. ― Já veio quantas vezes? ― Umas duas vezes... ― O que você mais gosta do Expresso? ― Do futebol de botão. Não vai descer o futebol de botão? ― Vai, daqui a pouco vai descer a mesa de futebol de botão. ― E pingue-pongue? Vai descer? ― também vai, você gosta do pingue-pongue? ― Gosto bastante. ― Que legal! Você joga pingue-pongue quando o Expresso não tá aqui? ― Jogo. ― Onde? ― Na escola. ― Só na escola? ― Só. ― Do que mais você brinca quando o Expresso não tá aqui? ― De pingue-pongue e de futebol. ― Onde você faz essas coisas? ― Na escola. ―Só na escola? E fora da escola você não brinca? 24

― Fico em casa... ―E faz o que em casa? ― Assisto televisão. ― Só? ― É... ― Você não tem amigos? ― Tenho. ― E você não os vê? ― Só na escola. Em seguida, ele disse que iria brincar e saiu correndo atrás de outro garoto. A equipe demorou bastante tempo para começar as atividades, pois não conseguia um ponto de energia elétrica adequado para o som do Expresso. Quando começaram as atividades desenvolvidas pela equipe já eram quase onze horas. Nesse meio tempo, as crianças brincaram entre si. Havia várias crianças que brincavam sob as tendas, enquanto um grupo de garotos fazia cambalhotas sobre as banquetas acolchoadas, desafiando uns aos outros para ver quem fazia da melhor forma. Essa brincadeira prosseguiu até que um dos monitores interveio, pedindo parassem, pois poderiam machucar as costas se jogando contra o chão. No mesmo local, outro grupo de crianças brincava com os brinquedos, de forma mais individualizada, enquanto outro grupo jogava bola. No espaço onde estavam armadas as mesas de pingue-pongue, de futebol de botão e os jogos de tabuleiro havia várias crianças brincando. Na de pingue-pongue havia também adultos jogando com as crianças. Enquanto o aparelho de som do ônibus não foi ligado, F., o coordenador da equipe, e uma das monitoras começaram a cantar uma música infantil, que se inicia com uma personagem e, conforme iam cantando, novas personagens iam se somando, dizendo que uma estava em cima da outra. Conforme eles iam cantando, um garoto de cerca de dez anos faz de conta que tenta adivinhar quem será a próxima personagem e, antes deles a anunciarem, ele: “P.[palavrão]!” Ele age dessa maneira até o F. concluir a música. Todas as pessoas, incluindo as crianças, parecem ignorar o garoto gritando e, ele, por sua vez não parece notar a observação de qualquer pessoa, demonstrando total concentração na música. Quando me encontrava sob a tenda, um garoto, de aproximadamente de dez anos, parou na minha frente, colocou uma das banquetas ao contrário e começou a batucar. Depois olhou para mim e perguntou: ― Você sabe o toque da fanfarra? ― Não, não conheço. ― É assim que se faz – Ele passou a batucar no fundo da banqueta, como se tocasse um instrumento. ― Onde tem fanfarra por aqui? ― Na escola. ― E você é da fanfarra? ― Era. ― Onde que fica a sua escola? ― Você segue essa rua, vai até descer o morro, a escola fica lá embaixo. 25

― Legal, eu sei qual escola é, eu passei por ela. Você saiu da fanfarra? ― Sai. ― Por que? ― Porque a gente começou aprendendo a tocar o tambor assim (ele faz um toque) e depois assim (ele faz outro toque), e aí, mais pra frente, a gente tinha que tocar assim (ele faz um novo toque) e terminar assim (ele bate bem forte), batendo forte com o pau. E aí, eu dei uma paulada e rasguei o meu tambor. O professor, então falou – Valeu! Relaxa! Tá tudo certo! (ele fala como se fosse o professor) E disse que eu ia trocar o meu tambor por outro, mas o diretor disse que eu teria que arrumar o tambor ou sair da fanfarra. Aí eu sai. ― Você gostava da fanfarra? ― ... (O garoto fica quieto, com cara de triste). Em seguida chegam três meninas, duas mais velhas e uma mais nova e ficam em volta da banqueta na qual o garoto batucava. A menina mais nova encosta-se à banqueta e diz: ― Eu também sei. ― Sabe nada! (responde com agressividade o garoto). ― Olha só! (a menina batuca de qualquer jeito e sorri). ― Sai! Sai! Sai (o garoto dá uns tapas nela, empurrando-a para que saia). As meninas se afastam um pouco e eu digo: ― Opa! Lembre-se da regra do Expresso de que quem brigar no espaço criança não pode brincar. Em seguida as meninas se aproximam da banqueta novamente e eu pergunto: ― Vocês se conhecem de onde? ― Moramos na mesma casa. (respondeu uma das meninas). ― Vocês são irmãos? ― Não. (todos respondem). ― Eu sou irmão dela (menino aponta para a menina mais nova) e elas são irmãs. ― E vocês moram todos juntos? Todos respondem afirmativamente, em seguida começa uma atividade do Expresso e eles saem para frente do palco para acompanhar. Numa outra atividade do Expresso, o coordenador F. pergunta as crianças: ― Vocês querem que a gente cante qual música? ― Black! (responde a maioria das crianças). ― Tem algum brasileiro que canta música black? (pergunta o F.). Um garoto, sentado na frente do palco levanta a mão. F. lhe pergunta: ― Quem? ― Eu. (o garoto responde de forma ingênua, e todos riem), F. continua com a atividade. Fui até a tenda dos jogos e passei a observar um garoto branco de dez anos, jogando damas contra uma garota negra de onze anos. O menino estava ganhando o jogo e dizia continuamente para a menina que ela não pensava; que ela era burra. A 26 menina apenas sorria e continuava jogando, e o garoto inventava regras que o beneficiavam conforme o desenrolar do jogo. Quando o som começou a funcionar, os monitores recolheram os jogos e parte dos brinquedos, incluindo as cadeiras, e pediram para as crianças irem para frente do palco. A primeira brincadeira desenvolvida após o funcionamento do som foi a dança das cadeiras, em que as crianças dançavam e andavam distantes das cadeiras até que a música parasse; quando então deveriam sentar-se nas cadeiras e quem sobrar sai da brincadeira. Não importava se as crianças sentavam-se umas nos colos das outras. Observei que alguns garotos mais velhos se recusavam a sentar no colo dos outros e paravam de brincar, afastando-se dali. Novamente sob a tenda de brinquedos, sentei-me em uma banqueta e fiquei observando um garoto, de cerca de quatro anos, que brincava sozinho com umas peças grandes de encaixar. Pouco tempo depois chegou uma menina, de cerca de seis anos, e começou a brincar com ele, ambos foram brincando se aproximando, até que a menina me perguntou: ― Vamos brincar? ― Vamos. ― Vamos montar alguma coisa. ― Vamos, vamos montar o que? ― Não sei. - ela ficou pensando e depois de algum tempo resolvi propor: ― Já sei, vamos construir uma casa! A menina gostou da idéia e então começamos a construir a casa, eu perguntava para ela o que uma casa tinha e ela ia respondendo e usando as peças para representar a casa. Dois garotos de cerca de sete anos se aproximaram e começaram a opinar na construção. O menino de quatro anos voltou a brincar sozinho. A casa construída tinha um quarto, com uma cama de casal e um guarda-roupas, uma cozinha com pia e fogão, uma sala com tv, dvd, sofá e aparelho de som, e a menina colocou os moradores na casa, representados por pinos, que eram um casal deitado na cama, um filho mais velho na cozinha e duas filhas mais novas na sala, além de um gato que ela disse ser o gato que morrera envenenado por umas crianças más. Perguntei aos três: ― Vocês têm tudo isso na casa de vocês? ― Não, eu tenho TV e rádio (respondeu um dos meninos). ― Eu tenho duas TVs (respondeu a menina). ― Opa! A minha queimou, dá uma para mim? (perguntei). ― Dá uma pra ele, você tem duas e ele não tem nenhuma (disse um dos garotos). A menina acena com a cabeça positivamente e em seguida pega os dois pinos representando o casal, um pino azul e outro vermelho, e fala que eles são casados. Enquanto isso, no palco, tem início uma atividade de ventriloquismo, com um boneco controlado pelo F.. As crianças deixam os brinquedos e correm para assistir. Nessa atividade, F. fazia de conta que conversava com o boneco e ambos interagiam com a platéia. Alguns garotos mais velhos ficavam xingando o boneco, com palavras de baixo calão. 27

Depois dessa atividade, o ritmo dos trabalhos do Expresso tornou-se mais lento e os intervalos entre uma atividade e outra passaram ser bem longos, e, uma parte dos monitores permaneceu dentro do ônibus. Em certo momento, um garoto jogou um bloco no rosto do outro, machucando-o seriamente. Isso resultou na paralisação das atividades do Expresso por quase duas horas. Nesse intervalo, as crianças ficaram brincando entre si, sem a participação dos monitores que ficaram apenas cuidando dos brinquedos. Quando a equipe retomou suas atividades, fui brincar com algumas crianças na tenda, porém sem muita conversa. As crianças sentaram-se à minha volta e começamos a jogar uma bola uns nos outros, exceto uma garota, de uns sete anos, que queria que eu jogasse a bola apenas para ela. Todos jogaram adequadamente, incluindo a menina de sete anos. Para conseguir esse comportamento, disse-lhe que não brincaria mais, se ela impedisse os outros de jogar. As duas últimas atividades desenvolvidas pelo Expresso foram a dos palhaços, que despertou grande interesse nas crianças, e a do ‘carimbador maluco’, em que as crianças tinham que entregar uma folha para todos os monitores assinarem e um dos monitores era o carimbador maluco; quando ele pegava a folha, riscava uma das assinaturas conseguidas. Essa brincadeira envolvia duas equipes e ganhava aquela que recolhesse todas as assinaturas primeiro. O garoto responsável pela folha de um dos times, quando era pego pelo carimbador maluco, recusava-se a entregar a folha, forçando o monitor que fazia o papel de carimbador maluco tomá-la à força. No final nenhuma das equipes conseguiu todas assinaturas antes do final das atividades do Expresso Lazer. O final das atividades foi anunciado pelo coordenador da equipe e imediatamente os monitores começaram a recolher os brinquedos. Nessa hora desceu uma forte neblina e a temperatura caiu bastante. As crianças sumiram em questão de minutos, e o pessoal do projeto ficou aguardando um pouco, até “dar a hora de ir embora”.

Projeto: Expresso Lazer Comunidade: Espírito Santo Data: 2/9/2007

As crianças já estavam aguardando, quando o ônibus do Projeto Expresso Lazer estacionou no local determinado, tendo à frente um aterro sanitário e, atrás, um grande campo de futebol, cercado por casas de alvenaria. Os meninos e as meninas permaneceram em grupos separados. Cada brinquedo retirado do ônibus era explorado euforicamente, em cada detalhe, principalmente pelos meninos, enquanto as meninas permaneciam isoladas e tímidas, apenas olhando e esperando. Alguns meninos permaneceram sentados junto a um bar em frente ao local onde o ônibus estacionara. Ao me aproximar, um deles, que carregava consigo um saco de pães, perguntou-me sobre a cama elástica: “Tia... vai ter cama elástica?” Digo: “Não, mas teremos outras brincadeiras durante todo o dia...” Em outro momento, esse mesmo garoto, ao saber que haveria uma mesa de pingue-pongue, veio e me disse: “Ah!... Então nem vou voltar para casa”. Perguntei-lhe, então: “E se você só voltar para casa 28 depois, o chinelo não come?” E ele respondeu: “Se come? Mas aí, eu saio correndo (risos). Perguntei-lhe sobre o que mais ele gostaria que tivesse no “Expresso”, e ele respondeu: “Videogame, eu tenho um na minha casa”. E saiu correndo para brincar. Mais adiante, já no espaço-criança, alguns meninos, com idade média entre 6 e 8 anos, exploravam os brinquedos grandes: a gangorra, o trenzinho e os dados coloridos. Um deles, o mais alto, realizou um movimento de disputa pelo espaço com os demais, dizendo: “Vou te mostrar, não é assim que se deita, a cabeça fica aqui nesta almofada menor.” Os outros meninos, por sua vez, foram pouco a pouco se afastando, e logo o menino alto já se encontrava deitado sozinho, demonstrando prazer por ter conseguido aquele espaço só para si. Buscando chamar a atenção, disse: “Dá para fazer um mortal aqui!” E, feliz, se jogava sobre os quadrados, dando risadas. Nesse momento ele me vê, e pergunta: “Você conhece a irmã do Papai Noel? Intrigada, respondo: “Não, ela é de verdade?” Ele me diz que sim e pergunta: ”Cadê ela?” Respondo-lhe que não a conheço e peço que ele me apresente a ela. Ele, então, responde: “Acho que ela não veio hoje...”

Logo chegaram outros quatro meninos para brincar e aquele que lá estava cedeu o espaço, dividindo-o com os recém-chegados. Por diversas vezes, dois deles se agrediram. Houve um momento em que um terceiro tentou separar, dizendo: “Vocês são irmãos!” No entanto, um deles retrucou dizendo: “Eu não sou irmão desse aí”. O agressor era o menor e aparentava ser também o mais novo; o outro, aparentemente o mais velho, chorava e se continha para não reagir. Passado algum tempo, junto à mesa de futebol de botão, reencontro aqueles dois meninos que se agrediam no espaço criança e que negavam ser irmãos. Ali também o menor agredia o maior, com tapas e chutes, enquanto este apenas se esquivava das agressões. Vendo que não havia ninguém ali perto para apartar a briga, interfiro, perguntando: “Por quê vocês dois tanto brigam?” Ambos, fazendo expressão de bravos, dizem que foi o outro quem começou e se calam. Interagindo com os outros garotos que se encontravam ao redor da mesa, cerca de 12 meninos, pergunto: “Vocês já eram colegas uns dos outros?” Ao que um dos mais falantes, responde apontando para os demais: “Esse estuda com esse, e com esse e com esse, esse estuda com esse e com esse”, explicando quais estudavam em uma escola e quais em outra. Pergunto-lhes, então, sobre o que há de legal na escola e todos começam a falar ao mesmo tempo. Peço-lhes que respondam um de cada vez e me concentro em um deles que dá continuidade à sua resposta: “Na minha escola eu toco clarinete na fanfarra!” O colega ao lado, participando, diz: “Sorte a sua!” Ao que o outro responde: “Você fala isso porque você não toca nada!” Pergunto, então, qual foi o critério utilizado para selecionar os que participam da banda e o clarinetista responde: “Tinha que escolher algum instrumento e tocar, quem levasse mais jeito poderia participar”. O outro menino saiu andando emburrado. Um garoto com cerca de cinco anos, mais novo que a maioria, não parava de me pedir que pegasse uma bolinha para com ele brincar. Por mais que eu dissesse que eu não poderia pegar a bolinha ou por qualquer outra explicação que eu desse, ele continuava: “Tia, pega lá, vai.... Tia, pega vai....” E eu respondia “Ah!... eu não posso pegar... Espere mais uns minutos que daqui a pouco uma outra moça irá pegar a bola pra você. Espere porque ainda não começou”. Ainda junto à mesa de futebol de botão, enquanto converso com alguns garotos, outros, ao redor da mesa, se organizam para decidir no par-ou-ímpar quem iria jogar primeiro e logo começa uma nova discussão: “Deu ímpar e eu pedi ímpar”; outro 29 dizia: “Você pediu par, fui eu quem pediu ímpar”. Nesse momento interfiro, dizendo que haverá ainda uma pequena demora para a liberação das atividades e pergunto: “O que é mais importante aqui?” Em resposta, praticamente todos eles dizem: “ganhar!” Apenas um deles, timidamente, disse “brincar...” Diante disso, digo-lhes que: certamente alguns vão ganhar e outros perder, mas que o que eles querem mesmo é participar da brincadeira, não é? No entanto, um deles retruca: “é ganhar, ganhar e ganhar.”

Em certo momento, duas meninas brincavam na gangorra, no espaço criança, e uma delas começou a impulsionar o brinquedo, jogando o corpo para trás, fazendo com que a gangorra deslizasse um pouco sobre a lona. Quando o espaço da lona terminou, , a outra menina foi quem começou a inclinar o corpo para trás, tentando fazer a gangorra deslizar em sentido contrário e, embora não tenha conseguido, isso não foi empecilho para o andamento da brincadeira porque elas viraram a gangorra e a mesma que impulsionara antes, passou a impulsionar novamente. Durante praticamente toda brincadeira, não houve diálogo entre as meninas e a solução encontrada fluiu com muita naturalidade... Essa brincadeira, com movimentos e ir-e-vir, ocorreu por diversas vezes, sem qualquer dificuldade. Um rapaz da equipe do Expresso, que monitorava as brincadeiras, aproximou-se e disse às meninas: “Dessa forma vocês podem machucar alguém, podem brincar, mas permanecendo no mesmo lugar, tá bom?” Sem esboçar resposta, as meninas prosseguiram com a brincadeira da mesma forma, porém, a que impulsionava a gangorra passou a olhar para trás sempre que a gangorra iria se mover, desviando-se das crianças que estavam próximas. No palco montado pela equipe do Expresso Lazer, alguns de seus agentes tornaram-se atores, encenando uma peça em que dublavam os cantores Fafá de Belém e Roberto Carlos. Diante dessa encenação, as crianças e adolescentes gritavam a todo momento: “Cara de bosta canta direito”; “Olha só os peitos dela!”; “são de mentira seu bocó”. E entre vaias e algazarras, a platéia foi se dispersando aos poucos, em direção a outros espaços, onde se organizavam por conta própria para brincar de bola, pega-pega, etc. Durante a apresentação de marionetes, um boneco brincou com a garotada, dizendo que as crianças eram feias. As crianças, por sua vez, passaram a interagir com o boneco, divertindo-se ao xingá-lo e ameaçá-lo com dizeres do tipo: “Vou comer você no jantar e vou furar sua cabeça com o garfo”; “Sua cara parece bunda de nenê”. Em outro momento, um integrante do Expresso e Lazer perguntou ao boneco: “Sashimi , o que você come no jantar?” Ele respondeu: “Uma bolacha”. O integrante perguntou-lhe então: “E quando você está com muita fome?” Sashimi respondeu: “Um pacote de bolacha!” Diante desse diálogo, as crianças se manifestaram dizendo: “Sai daqui seu boneco chato!”

Próximo dali, a equipe do Expresso Lazer monitorava a brincadeira dos bambolês no chão. Essa brincadeira se desenvolveu da seguinte maneira: sempre que a música era interrompida, uma criança ocupava um bambolê e depois duas, três, quatro e cinco crianças ocupavam os bambolês, ora com um dos pés, ora com todo o corpo. O número de bambolês disponíveis era ofertado em diferentes quantidades conforme a orientação de ocupação. Algumas crianças, principalmente meninos, não aceitavam dividir o mesmo espaço com os outros e, aos poucos, foram abandonando essa brincadeira. Dentre essas crianças, estavam aquelas crianças que haviam xingado o boneco Sashimi . 30

O calor foi intenso durante todo o dia, algumas crianças saiam da área de brincadeiras e minutos depois retornavam com o cabelo molhado e a roupa grudada no corpo pelo suor. Algumas crianças abrigavam-se do sol intenso ficando sob o palco durante a apresentação de pessoas da própria comunidade. Apenas os meninos dançavam ao som de música black . Durante cerca de dez minutos, cerca de seis jovens adolescentes, com idade entre 16 e 17 anos, aproximadamente, instalaram-se em frente ao palco, mas distante deste, e permaneceram com os braços cruzados e expressão facial e corporal de deboche assistindo a apresentação dos artistas locais. Depois disso, afastaram-se e não mais os vi. A programação do Expresso Lazer continuou sob o forte calor. Enquanto, para se refrescar, algumas crianças corriam atrás de outras, com garrafas plásticas cheias de água, algumas meninas brincavam de bola, à vontade, e os meninos, por sua vez, concentravam-se no pingue-pongue e no futebol de botão, mas já sem tantas brigas e discussões como houvera no início da programação. Na sombra do Espaço Criança, as crianças ocupavam todos os brinquedos e o espaço era bastante disputado. Após consecutivas vaias, o palco ficou vazio por cerca de 40 minutos, até que a equipe do expresso retornou e estabeleceu uma relação de troca com as crianças, que receberiam um brinde se ajudassem a contar quantos objetos estavam dentro de uma blusa colorida, de um dos atores, lembrando que cada objeto representava um chocolate que ele havia comido. Ao final da contagem, as crianças que acertaram o número de “chocolates” receberam o “brinde do expresso”, assim chamado, um beijo e um abraço. As crianças ficaram muito bravas dizendo “Ah!... é isso! Que droga!”; “Eu pensei que fosse chocolate!”. Diante dos reclamos, o ator da Expresso Lazer disse: “Foi o que pensamos de mais especial” e, com isso, as crianças não disseram mais nada...

Ao final da tarde, o intenso calor foi substituído por uma brisa suave e caiu uma forte neblina, mas mesmo assim as crianças continuaram brincando com os palhaços, participando das brincadeiras e divertindo-se muito. Poucos foram os que se mantiveram sentados, pois desta vez o palco era o próprio chão, a poucos centímetros de distância entre eles.

Chegada a hora de partir, muitas crianças já haviam ido embora e as que ficaram, auxiliadas por um adulto, ajudaram a equipe do Executivo Lazer a recolher os brinquedos. As que permaneceram até o final, despediram-se e abraçaram todos que lá estavam.