O POVOAMENTO DA FRONTEIRA: A LÓGICA DE APROPRIAÇÃO DE TERRAS NA FRONTEIRA MERIDIONAL DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XIX*

Mariana M Corrêa Mestranda pelo PPGH da UFSM [email protected]

RESUMO Este trabalho é um estudo de análise de correspondências que tinham como foco a afirmação da posse ou propriedade de terras na região da Campanha da Capitania de São Pedro no início do século XIX. A análise se debruça sobre as cartas de José de Abreu (futuro Barão do Serro Largo), uma importante liderança político e militar e comandante da Fronteira de Entre Rios entre os anos 1814 a 1822. Através da análise desse conjunto documental pretendemos averiguar como a lógica das relações de reciprocidade atuavam no processo de apropriação, redistribuição, ampliação e consolidação dos patrimônios fundiários da elite, em um período crucial para a reprodução da ordem econômica e social do século XIX.

Palavras-chave: apropriação de terras, elite militar, relações de reciprocidade

INTRODUÇÃO

Nesse trabalho, o foco de nossa análise recai sobre o processo de conquista do território missioneiro e dos campos da Banda Oriental entre o rio Ibicuí até o rio Arapei, nas duas primeiras décadas do século XIX, buscando traçar aspectos acerca de como se deu a apropriação de grandes extensões de terras por particulares e o esforço de povoação daquele espaço pelos luso-brasileiros. Ao estudar o processo de apropriação de terras da Campanha rio-grandense Helen Osório (1990) apontou que a distribuição priorizou a doação de imensas

2 extensões de terras a um pequeno grupo de estancieiros através de sesmarias, a efetiva posse da terra teria sido feita de maneira conflitiva e desigual com os primeiros ocupantes desse território, sendo estabelecido o monopólio da terra e do gado na mão de uma pequena primeira geração de elite da região. Assim o espaço recentemente conquistado foi disputado e negociado de maneira desigual entre grandes latifundiários e pequenos posseiros. Nesse processo, os comandantes da Fronteira tiveram um papel importante, na medida em que cabia a eles averiguar se o conteúdo alegado requerentes de sesmarias à coroa era verdadeiro. Diante disso, nos questionamos acerca de como a análise da atuação de um desses comandantes da fronteira pode nos ajudar a perceber a distribuição de terras em um território recentemente conquistado e ainda em disputa e questões que giravam em torno da propriedade da terra em um período em que o mercado não era capaz de regular completamente a aquisição de recursos, e que a garantia a terra se relacionava com a constituição de relações sociais importantes que afirmassem esse direito. O estudo é centrado no distrito de Entre Rios, território compreendido entre os rios: Quaraí, Ibirapuitan, Ibicuí e Uruguai. Naquela região, os índios missioneiros haviam organizado suas estâncias durante o século XVIII e a invasão e conquista daquele território pelos luso-brasileiros levaria a uma reestruturação do território a partir de uma nova lógica de ocupação, que tinha como fim efetivar o domínio sobre aquele espaço. Nesse processo, foi importante a atuação de José de Abreu (futuro Barão do Serro Largo) como comandante do Distrito de Entre Rios entre os anos de 1814-1822. José de Abreu era um sesmeiro e um dos mais importantes líderes militares do período, ele foi encarregado como povoador e redistribuidor daquelas terras, foi ainda o articulador da fundação da capela de em 1817, em torno da qual se organizou uma povoação de indígenas guaranis, que daria origem ao município de Alegrete anos mais tarde. Dessa forma, a análise de suas correspondências nos pareceu uma forma de delinear melhor o processo de apropriação de terras que formariam a região das grandes estâncias da Campanha. As fontes que usamos para esse estudo fazem partes do fundo Autoridades Militares do Arquivo Histórico do . Foram analisadas cento e quarenta e cinco correspondências, em sua maioria expedidas por José de Abreu, que

3 dão uma imagem acerca das demandas administrativas e militares do distrito, entre elas encontramos José de Abreu mediando disputas ou afirmando informações acerca da posse e propriedade da terra, essa documentação nos ajudou a pensar acerca da ocupação daquele território nos primeiros anos de conquista e também o espaço de disputa pela terra que se formava na região. O referido fundo documental apresenta limitações, contendo informações bastante fragmentadas. Devido a falta de continuidade das correspondências por vezes é impossível acompanhar o desenrolar das contendas retratadas, no entanto, mesmo que originando uma imagem parcial e incompleta acreditamos que a análise dessas correspondências nos ajuda a compreender aspectos importantes da povoação daquela fronteira pelos luso-brasileiros. Iniciamos o estudo refletindo sobre o período de avanço luso sobre as terras missioneiras e da Banda Oriental, e sobre como o conflito entre Portugal e Espanha e tornaria a disputa entre os diferentes projetos emancipatórios na região do Prata a partir das independências, nessa primeira parte do artigo ressaltaremos o o papel estrutural da guerra na sociedade e economia daquele espaço. Em seguida partimos a análise das correspondências que tratam de casos da busca pela propriedade da terra, dos conflitos em tono dela e do papel de José de Abreu como um redistribuidor dos campos conquistados e agente da reorganização da paisagem agrária daquela região.

Abrindo a fronteira: O avanço luso-brasileiro sobre os campos missioneiros e da Banda Oriental

Entre meados do século XVIII e no início do XIX a Coroa portuguesa consolidava uma política de construção de uma fronteira de ocupação mais efetiva por sobre território onde fica hoje o Rio Grande do Sul, a política significava um investimento no domínio luso sobre o Continente de São Pedro, que se daria através da conquista militar, fixação da população e fortalecimento dos laços administrativos entre a elite e a metrópole (MIRANDA, 2006). Ao longo do Setecentos, o interesse por essas terras foi impulsionado principalmente pela extração de couros, é nesse século que se estruturaram as primeiras povoações: Laguna, Colônia do Sacramento e Rio Grande. No entanto, com a ampliação

4 das plantations na colônia portuguesa e o aumento da demanda de alimentos, há um incentivo a produção de alimentos em toda a colônia, de produtos que eram, portanto, voltados preponderantemente para o abastecimento interno, nesse período o charque se tornou a principal mercadoria da Província e o interesse se voltava aos bons pastos missioneiros e uruguaios. O tratado de Santo Ildeofonso de 1777 consolidava os limites entre os territórios português e espanhol na região do Prata, e estipulava que esses seriam separados pela faixa de “Campos Neutrais”, que não deveriam ser ocupado nem por espanhóis e nem por portugueses. Essa zona era tida como as fronteiras de Rio Pardo e Rio Grande, que apesar da decisão de constituírem o fim das possessões europeias na América não deixaram de ser vistas como terras possíveis de serem conquistadas pelos portugueses, e embora não houvesse uma posição formal acerca desse avanço luso por parte da Coroa, muitas terras foram concedidas a portugueses, mesmo a Comissão de demarcação de terras de 1784 foi responsável por distribuir grande número de sesmarias que se expandiam por esse território fronteiriço (OSÓRIO, 1990). Em 1801, os luso-brasileiros avançaram militarmente sobre o território a sul do rio Ibicuí, aproveitando a declaração de guerra dos espanhóis aos portugueses na Europa, a elite militar e aventureiros que viam uma oportunidade na guerra, preparam um rápido ataque aproveitando a crise diplomática entre os dois países. Graças a aliança com grupos de indígenas missioneiros os luso-brasileiros conquistaram o Forte de São Martinho e a região de missões, que não se limitava aos Sete Povos do lado oriental do Uruguai, mas era formada ainda pelos vastos campos da campanha, onde os índios das reduções possuíam estâncias de criação de gado. Com a conquista, os luso-brasileiros puderam se apoderar desses campos e rebanhos. Como a declaração de paz entre as duas nações ibéricas não tratava dos limites americanos, a fronteira do Rio Grande foi alargada até o rio Uruguai no noroeste, e até Jaguarão no sul. A incorporação da porção missioneira ao território português não só dobrava o território da Capitania, como adicionava cerca de 14 mil indígenas, auxiliando a dobrar a população dela (COMISSOLI, 2011). A terra recentemente conquistada seria incorporada a malha administrativa lusa ao longo daquelas primeiras décadas do século XIX. Esse foi um período de promoções

5 militares e distribuições de mercês entre os homens que efetuaram a conquista. A Coroa portuguesa se utilizava de um método que vinha de uma tradição monárquica de Antigo Regime, estimulando a conquista através das redes clientelares dos chefes locais, o que acabava por encorajar a formação e fortalecimento de potentados nas regiões conquistadas. A manutenção do território conquistado também cabia em boa parte a particulares, e ao longo das primeiras décadas daquele século o medo de que os espanhóis restituíssem o território missioneiro estaria bastante presente, o que impeliu uma povoação excepcionalmente militarizada da região (COMISSOLI, 2011). Em maio de 1810, as colônias espanholas, ao se verem sem um rei, reivindicaram sua emancipação política, e assim estouraram as revoluções de independência do Prata. Rapidamente a Coroa lusa, já transposta ao Brasil, se voltava para as fronteiras hispânicas revoltosas, e visando tanto que a revolução não se estendesse ao território já conquistado, quanto oferecer-se como uma alternativa para pacificação da região, enviou um exército de observação e pacificação às fronteiras. É nesse contexto que José Gervasio Artigas sublevou a Banda Oriental com ideias revolucionárias de reestruturação agrária pretendendo anexar à região de Missões e a Banda Oriental ao seu projeto, o que colocava em risco as bases da sociedade hierárquica luso-brasileira (COMISSOLI, 2011). Em 1811 Artigas invadiu Montevideo, e o exército pacificador português liderado pelo governador geral D. Diogo de Souza se prontificou a prestar socorro a praça comercial de Montevideo, de onde, após expulsar Artigas, só saiu diante de grande pressão por parte da diplomacia internacional, preponderantemente da Inglaterra, no entanto a retirada se deu somente até a margem direita do Quaraí, assegurando a posse dos campos entre Ibicuí e Quaraí, submetendo a população e afastando a presença indígena da região (FARINATTI, 2010). A partir de 1816 os ataques dos homens de Artigas, se voltaram ao território missioneiro e do distrito de Entre Rios, eles sitiaram São Borja e saquearam a região, Várias batalhas se seguiram entre 1816 até 1820 quando Artigas se retira para o Paraguai, e os luso- brasileiros mais uma vez avançaram sobre o território da Banda Oriental, anexando o território como província Cisplatina. Foi um período de batalhas importantes para o aumento do poderio da elite militar rio-grandense, que mais uma vez garantia os

6 interesses da corte nos confins do império e se aproveitava da distribuição de riquezas e terras saqueadas na guerra (FARINATTI, 2010). A Incorporação da Cisplatina trazia grandes possibilidades para os potentados rio-grandenses, o desenvolvimento da região pode ser exemplificado no grande aumento de número de em , tornadas possíveis pela grande quantidade de cabeças de gado trazidas para a Capitania e desmantelamento dos saladeiros uruguaios (VARGAS, 2013). Os rio-grandenses apossaram-se mais de um terço das melhores terras ao norte do Rio Negro. Mais do que isso, eles promoviam grandes arriadas de gado para o Rio Grande (GUAZZELLI, 2014). Em todo esse processo José de Abreu teve um papel importante, não só no avanço militar da região, como um povoador e redistribuidor das riquezas conquistadas. Seu cabedal de alianças fora importante nesses anos de luta, graças a elas ele pode contar com homens para lutar pelo Império português. As vitórias em batalhas lhe deram prestígio, terminando essa guerra como Marechal de Campo, e na medida em que os portugueses avançavam pelos bons campos da Banda Oriental, José de Abreu deveria distribuir as terras da fronteira tendo em conta os serviços prestados pelos homens que lutaram ao seu lado orientado pela lógica de relações de reciprocidade desigual de dom e contra dom que era estrutural na política, economia e sociedade do período (FARINATTI, 2010), analisando as correspondências podemos ver a importância dessas questões na hora de garantir a propriedade da terra.

“É o que posso informar”: O comando da Fronteira e a distribuição de sesmarias na Fronteira

Quando o exército pacificador se deslocou as fronteiras, em 1811, foi organizado um acampamento as margens do rio Inhanduí, em torno dele seria fundada uma capela, que tinha como função fixar a população no local que estrategicamente se localizava próximo suficiente as Missões para socorrê-la em caso de ataque, e demarcava a intenção lusa de domínio por sobre aquele território. Em 1814 José de Abreu, na época Tenente Coronel, foi encarregado pelo governador geral como comandante daquela fronteira, e como tal encarregado de distribuir as terras em seu entorno. Segundo

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Trindade (1985) Abreu já estaria na região desde 1810, organizando lista de interessados em sesmarias ao governador e fazendo assentamentos nas imediações da Guarda até que houvesse licença superior para distribuição de sesmarias: O dito tenente tinha consentimento meu para deixar sem barulho nem desordem, fazer alguns assentamentos nas imediações daquela guarda, onde não houvesse inconveniente, enquanto os pretendentes não obtiveram as primeiras licenças superiores e ali se conservaram até que cheguem suas competentes sesmarias, sendo isto mesmo o que eu facilitava e permitia àqueles que para este fim a mim recorriam. Joaquim Félix da Fonseca a a D. Diogo de Souza, 11.04.1810 TRINDADE (1985)

O espaço recentemente conquistado e ainda em disputa sofreria constantes ataques dos espanhóis que tentariam empurrar a povoação lusa para leste. Nas correspondências José de Abreu percebia esses ataques cada vez mais frequentes, em uma carta ao governador da capitania ficou retratado seu terror ao acordar no meio da noite convencido de que os “castelhanos” chegavam a povoação organizada as margens do Inhanduí. Com toda a atenção e respeito ponho na respeitável presença de V.Exa. O que nesse mesmo instante acaba de acontecer nessa capela; e é que estando toda povoação em sossego, sendo quatro horas da madrugada me batem a porta dizendo que estávamos sendo avançados pelos castelhanos, e levanto- me a toda pressa me pus em armas com a pouca gente que aqui há, para me por em defesa,... se pôs tudo em alvoroço e pensando que eram os castelhanos, pois todo dia se esperam nesse lugar pelo muito que tem ameaçado avançarem e levar os interesses que aqui há, sendo a coisa mais fácil que eles tem ao seu favor, em razão de não haver na linha quem os ataque, como (?) tem entrado até a distancia de cinco e seis lagoas, e havido mortes entre eles e os nossos Estancieiros, e já entram sem ter respeito algum as guardas, pois até essa distância, da nossa tinha pra dentro não tem mais já que roubaram, tem levado tudo que é animal cavalar, e ainda gados para (?), roupas e fazendas, e até mulheres, e assim exmo. Snr. não lhes é difícil de caminhar mais quatro ou cinco léguas para chegarem a esse lugar... (José de Abreu para o Marquês de Alegrete, 20/06/1816. AHRS, Autoridades Militares, maço 59)

De fato, naquele mesmo ano a povoação seria atacada por Andresito Artigas, filho adotivo de Artigas, que ateaou fogo sobre a capela e colocou em fuga os habitantes. Como resposta uma nova povoação com uma nova capela foi fundada por José de Abreu as margens do Ibirapuitã, sobre as ordens do Marquês de Alegrete, em torno dela foram aldeados os índios que formavam a companhia de lanceiros comandados por José de Abreu com suas famílias, segundo Abreu povoações como essa eram importantes pois os índios andando “dispersados serão prejudiciais aos estancieiros da fronteira.” (José de Abreu para o Marquês de Alegrete, 25/01/1817.

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AHRS, Autoridades Militares, maço 63). Essa afirmação parece confirmar o que Favre (2016) sugeriu a respeito de as autoridades portuguesas se preocuparem com fixar a população missioneira em povoados mais afastados da linha de fronteira, por considerar os índios facilmente seduzidos a enfrentar o Império português, mesmo que levassem em conta seus importantes papeis como soldados. Assim podemos ver a administração portuguesa reorganizando aquele espaço, aldeando indígenas e construindo povoados, que tinham nas capelas um fator de atração dessa população, Isso aconteceria ao mesmo tempo em que eram distribuídas grandes extensões de terras entre os conquistadores. A nova capela seria construída nos campos de Antônio José Vargas, para quem seria designado outro campo, a lei de sesmarias permitia que o campo fosse destituído em caso de consolidação de povoações. Anos mais tarde, Vargas apareceria pedindo por um novo campo no lugar daquele que ainda não havia lhe sido concedido, um dos motivos apontados foi a falta de membros de sua família servindo a SMR (José de Abreu João Carlos da Saldanha, 10.01.1822. AHRS, Autoridades Militares, maço 86) Segundo Osório (1990) a concessão de terras no momento de conquista dependia exclusivamente das informações fornecidas pelos militares comandantes da fronteira, que deveriam comunicar os serviços prestados a coroa pelo requerente, a situação do povoamento da terra (se havia gado ou cavalhadas, mangueiras ou cercas de pedra) e o período que o suplicante entrara para terra. Nesse sentido, é exatamente esses aspectos encontrados na documentação de José de Abreu. Aqueles primeiros anos de conquista foram marcados pela redistribuição dos campos entre os militares que a haviam efetuado. José de Abreu estava ajustado a realidade local e militar do espaço que comandava e a administração portuguesa para se estender aquele território necessitava de homens como ele, mediadores, capazes de negociar com o centro e com a periferia. Nos parece uma hipótese atrativa que como as terras eram demarcadas tendo como divisores acidentes naturais, serros, rios e arroios, seria uma das razões da coroa em averiguar as informações com lideranças presentes na realidade local, conhecedores, não só das pessoas como das características daquele território, o que de fato era um atributo importante as lideranças militares. Como é possível ver nas transcrições a

9 seguir, as relações mantidas com essas lideranças que poderiam ser essenciais para concessão de terras Em virtude do respeitável despacho de V.Exa., no requerimento junto, digo que o tenente de Dragões Valentin Bueno de Camargo, obteve sesmaria no terreno compreendido entre o Arroio do Capivari, e o Salsal, que devido o rincão chamado do galego, cujo terreno terá de atrevessio seis ou mais léguas, e de fundo a boca terá quatro em partes; em cujo terreno há um rincão entre os dois arroios, que são o Capivari e Itapitangui, de cujo rincão obteve sesmaria, ainda que mais moderna que do alferes Manoel Godinho, do mesmo regimento de Dragões com as confrontações certas do mencionado rincão fazendo dentro dele o citado tenente um rancho e curral, é o que posso informar a V.Exa. que mandará o que for servido.“ ( José de Abreu para Marquês de Alegrete. 1815- lata 175, Autoridades Militares José de Abreu )

Em virtude do respeitável despacho de V.Exa. Informo que Lourenço Alvez se acha de posse do campo mencionado no requerimento, junto antes da ordem do Exmo. Antecessor de V.Exa. Com porção de animais de toda espécie. É o que posso informar a V.Exa. Que mandara o que foi servido..." 1815- lata 170 maço 53 Autoridades Militares José de Abreu)

Cartas como essa foram comuns entre 1815-1820, esse parece ter sido um período de regularização da posse de uma terra que fora conquistada nos anos antes, as datas apontadas por José de Abreu remetem que os homens que requeriam as porções de terras teriam entrado nessas entre os anos 1809-1811. Entre os anos 1815,1816 e 1817 José de Abreu responde acerca do maior numero de requerimentos de sesmaria, interessante é que esse período coincide com o acirramento das batalhas contra Artigas e o avanço luso até pelo menos o rio Quaraí, é um período de consolidação de José de Abreu como grande liderança local e de aumento de seu prestígio militar, em que ocorreram grandes saques de guerra e também apoderamento de terras pelos luso- brasileiros. Em uma correspondência trabalhada por Luís Augusto Farinatti (2010) podemos ver Cláudio José de Abreu, que era filho de José de Abreu fazendo menção a uma redistribuição de terras feita por seu pai naqueles anos: ... se ele (Antônio José da Silva, laf), algum dia ali teve posse, não compareceu na ação em que o Excelentíssimo Sr. General Governador de Armas, de ordem superior, fez a repartição dos campos, o que prova que direito nenhum tem àquele terreno, por cuja razão foi concedido ao Major Eleutério dos Santos. (Autoridades Militares. Major Comandante Cláudio José de Abreu, 15.03.1824. por FARINATTI (2010))

Nos parece sintomático que até 1820 o fundo das correspondência é bastante simples, trazem apenas constatações acerca do estado de povoação dos campos, sem nenhuma disputa maior. Diante do requerimento do Governador da Capitania, José de

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Abreu apenas atesta a veracidade ou não dos fatos. É a partir de 1820 que aparecem os casos de disputa pela terra na região, em que há um enfrentamento entre duas partes mediadas por José de Abreu. Nesse período temos a marca da redistribuição de campos ao sul do Quarai, recém conquistados após a derrota definitiva de Artigas, e um momento de grande capitalização de recursos. Mesmo que esse fosse um tempo de incorporação de novas terras ao Império temos um aumento de disputas, um caso sintomático é a contenda entre o Alferes Gaspar Nunes de Miranda e Inácio José Figueiredo, esse último dizia ter comprado um campo de Francisco Esteves, mas esse campo coincidia com o do referido Alferes que servia no Corpo de José de Abreu. José de Abreu arbitrou em defesa do Alferes, que havia sido promovido aquele carogo militar pelo próprio José de Abreu dois anos antes, a disputa parece ter se estendido no tempo pela influencia de Inácio José Figueiredo em , e recorrentemente Gaspar Nunes teve de levantar sua defesa em que especificava alguns aspectos da povoação da fronteira. Quando José de Abreu não era mais comandante da Fronteira, o conflito ainda correria sem solução, passando as mãos do novo comandante da fronteira, Bento Manuel Ribeiro. O caso retratado na correspondência é que alguns anos antes da disputa, Francisco Esteves havia pedido uma porção de terras a José de Abreu, que lhe cedeu, mas esse teria tomado posse de um campo já ocupado, que se tratava da sesmaria do Alferes Gaspar Nunes, após passar um tempo fugido depois de ser chamado a guerra, Esteves teria vendido o campo que não lhe pertencia a Filgueira, que agora requisitava essa terra: ... Enquanto ao que requer o dito Filgueira em nome de Francisco Esteves não se pode ter direito algum por quanto o dito Esteves apareceu-me aqui e com efeito me pediu lhe concedesse deixasse parar num pedaço de campo imediato ao arroio das pedras, que em rigor terá meia légua e eu lhe concedi, porém em lugar de fazer o campo onde tinha pedido o foi fazer no campo do alferes Gaspar, e logo que se precisou de gente para auxiliar o sargento-mor Manuel dos Santos Pedroso, falecido se retirou escondendo-se para dentro este hoje e não compareceu mais aqui desde 1811 .Em cujo pedaço de campo se armou Manuel Alvez onde se conserva tendo sido este sempre útil ao serviço de Sua Magestade..."(Autoridades Militares. Marechal José de Abreu, 10.06.1821, maço 81)

José de Abreu parece expressar bem que Francisco Esteves, que vendeu os campos não tinha direito a esses não só porque não eram os mesmos campos que esse

11 lhe havia cedido como porque Esteves havia fugido em um momento que o Império necessitava de homens. Assim, mesmo que essas fossem de fato as terras que José de Abreu lhe havia cedido Esteves não teria mais direito sobre ela, uma vez que quem detinha sua posse agora era do Pardo Manuel Alvez, que sempre se fizera útil em momentos de necessidade. Esse trecho parece esclarecer bastante sobre como a lógica de reciprocidade agia por sobre a economia e direito da época. Ao que deixa entender a correspondência de defesa de Gaspar Nunes, Filgueira havia declarado que Esteves fora expulso a força de suas terras pelo Alferes, o que Gaspar Nunes declarava é que em verdade Esteves teria se apossado de partes de suas terras, tomando proveito quando ele estava em Campanha no Uruguai: ... Enquanto o que requer o referido Filgueira respeito a Francisco Esteves de eu o haver violentado é falso, por que achando-se esse Francisco Esteves dentro dos limites das mesmas sesmarias, eu lhe fiz ver que retirasse para evitarmos contendas, ... Ilmo. Snr. antes pelo contrário quando V.S. consentiu ao dito Esteves que fizesse uma pequena posse na costa do Arroio das Pedras, em meia légua, pouco mais ou menos donde se acha hoje o Pardo Manuel Alves, cujos vestígios ainda se acham: Este Esteves alegou de V.Sa posse em 1811, achando-me eu em Campanha na costa do Uruguai com o falecido tenente Manuel dos Santos Pedroso, ele fez despejar os meus peões do lugar que hoje quer contender, e fez um pequeno rancho donde se conservou até a minha vinda com quatro vacas e cinco ou seis cavalos, sem fazer caso de uma ordem que o dito Manuel dos Santos mandou a requerimento meu para que larga-se daquele lugar e desta forma é que aqueles que fogem do serviço Real enriquecerão aqueles que com todo desejo e gosto se empregam nele. (Gaspar Nunes de Miranda José de Abreu. Autoridades Militares, José de Abreu, 25.12.1821, maço 81)

Os argumentos de Gaspar Nunes enalteciam os serviços que ele vinha fazendo para manter aquela fronteira, se inseria em uma retórica que defendia os esforços dos primeiros conquistadores, que haviam entrado para aquela terra quando os ataques de índios e castelhanos eram constantes, e que enfrentando os desafios da fronteira haviam tornado aquela terra produtiva, e povoada: Digo que os campos em que me acho estabelecido entrei para eles em 1807 donde me conservo desde então sempre empregado em atual serviço da nação, exposto por mais de dois anos aos ataques dos infiéis sendo-me preciso em todo esse tempo andar dormindo pelos matos, para não perder a vida na mão daqueles índios que por várias vezes me queimaram os ranchos que eu fazia junto com Joaquim Cardoso de Toledo, quem depois de passados estes dois anos meteu a venda da parte que lhe visse a pertencer por não poder já suportar aquela vida! Cuja venda foi feita perante quatro homens de bem. Como consta no papel que se acha na secretaria, sendo ainda dois destes homens vivos e dois já falecidos! Porem nesta fronteira todos conheceram seus procedimentos que não eram da qualidade de Inácio José Figueira, que me chama de intruso... naquele tempo e com estes despachos

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me fui conservando emitindo gados até 1811 de onde me recolhi em 1812 achando muitos prejuízos para deixar os meus animais a cargo de um índio, tornei a procurarei fazer outra vez de novo meu arranchamento, o qual tenho levado ao ponto que V.S é testemunha e todos que por aqui passam que esta importando em uns poucos de contos de réis por ser tudo obras de pedra não esta escondido assim como de arvoredos de toda qualidade que aqui se tem podido trazer, o que tudo já da fruto... Só tratou de vender (Francisco Esteves) por semelhante preço de 25600 unicamente para me incomodar procurando outro da mesma qualidade, com os mesmos que fazeres que não tem outro modo de vida se não de incomodar a quem trabalha para ver sempre este meio rapinam alguma pataca para comerem e beberem e este modo de vida lhes é muito fácil por que estão na capital donde lhes é suave fazerem requerimentos todos os dias incomodando também por este modo ao Senhores Governadores. O Terreno que foi concedido a Francisco Esteves acha-se nele Manuel Alves, cujo terreno mal terá meia légua de comprido e meia de largo o que se mostra pelo preço que comprou o dito Figueira de 25600 estando isto já tão cheio de habitantes e sem risco de inimigos, como era no princípio que muitos fizeram o mesmo por falta de constância e medo que tinham dos índios infiéis. (Gaspar Nunes de Miranda a Bento Manuel Ribeiro, 15.04.1822, Autoridades Militares, Tenente Coronel Bento Manuel Ribeiro, maço 84).

Em um período que a regularização da posse de terras e mesmo de doação de sesmarias se dava sem ter demarcações bem determinados, devido as limitações da tecnologia de agrimensura, as testemunhas eram essenciais para garantia do direito as terras, as relações se faziam essenciais na resolução das contendas. Gaspar Nunes arguia que tinha a seu lado documentação para comprovar a regularidade de suas terras, mas que principalmente contava também com a palavra dos dois comandantes de fronteira de Entre Rios: José de Abreu e Bento Manuel Ribeiro. Ele não só lutava no mesmo regimento que José de Abreu, que lhe havia encarregado como Alferes, como se ligava com laços pessoais ao filho de José de Abreu, o Sargento-mor José Inácio da Silva que havia batizado um filho natural de Gaspar Nunes com uma índia guarani, Ana Eufrasia de Jesus. Através das conexões encontradas podemos visualizar que o espaço social por onde transitava Gaspar Nunes lhe trazia alguma segurança quanto a manutenção da sua propriedade.

Conclusão Ao analisar o processo de ocupação da fronteira podemos ver como a guerra seria estrutural naquele espaço. Para a fronteira que se abria se dirigiam aventureiros, milicianos e militares em busca de oportunidades trazidas pela guerra; para o Império

13 esse avanço era importante permitindo a expansão territorial, a economia pecuária se consolidava através da reprodução de um sistema agrário extensivo; nesse processo a população indígena da região ou entraria em choque com os invasores lusos, ou se aliaria a esses, sendo incorporada pela administração portuguesa que aos poucos através da criação de povoados e freguesias se ramificava por aquele território, distribuindo terras e cargos entre os vitoriosos ao mesmo tempo que levava suas instituições aos confins fronteiriços. Conseguimos visualizar todos esses elementos tomando forma simultaneamente, e a leitura e reflexão acerca das correspondências trocadas por José de Abreu nos permitem caracterizar o desenvolvimento dessa ocupação, certamente esse artigo é uma etapa inicial do trabalho que necessita ainda de apoio de outras fontes que nos auxiliarão a entender esse processo de maneira mais ampla.

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