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Revista do Instituto Humanitas Unisinos IHUNº 491 | Ano XVI 22/08/2016

ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online)

SUSpor um fio De sistema público e universal de saúde a simples negócio

Jairnilson Silva Paim: A macropolítica de saúde pública

Simone Paulon: A dignificação do “patinho feio” da Saúde

Cristiani Machado: Quando o Estado não resolve sua equação

Maria Izabel Noll: Róber Iturriet Avila: Moisés Sbardelotto: Getúlio e Lula: aproximações, Transição ecológica Católicos em rede: de distanciamentos, ganhos e como caminho para ouvintes a produtores limites de duas Eras estancar a crise econômica da palavra de fé Editorial SUS por um fio. De sistema público e universal de saúde a simples negócio

Sistema Único de Saúde - -feira, 25 de agosto, a conferência SUS tem sido amplamente “Getúlio Vargas e o positivismo”, Odebatido e defendido nas que também é o tema da entrevista páginas impressas e eletrônicas publicada nesta edição. do Instituto Humanitas Unisinos – Preparando o IV Colóquio Inter- IHU. A este tema foram dedicadas nacional IHU ‘Políticas Públicas, inúmeras entrevistas e artigos. A Financeirização e Crise Sistêmi- revista IHU On-Line desta semana ca’, a ser realizado nos dias 13 e A IHU On-Line é a revista do Instituto volta ao tema pois, se é verdade 14 de setembro, o Prof. Dr. Ró- Humanitas Unisinos - IHU. Esta publicação pode ser acessada às segundas-feiras no sítio que o SUS sempre tem vivido em ber Iturriet Avila, professor da crises, nenhuma é de tal gravidade www.ihu.unisinos.br e no endereço www. Universidade do Vale do Rio dos com a atual. ihuonline.unisinos.br. Sinos – Unisinos e pesquisador da A versão impressa circula às terças-feiras, a No debate promovido pela pre- Fundação de Economia e Estatís- partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo da sente edição participam: tica – FEE, apresentará e debate- IHU On-Line é copyleft. Jairnilson Silva Paim, professor rá na próxima terça-feira, 23 de Diretor de Redação de Política de Saúde do Instituto de setembro, o livro de Gaël Giraud, Inácio Neutzling ([email protected]) Saúde Coletiva da Universidade Fe- “Ilusão financeira: dos subprimes Coordenador de Comunicação - IHU deral da Bahia – UFBA; à transição ecológica” (São Paulo: Ricardo Machado - MTB 15.598/RS ([email protected]) Simone Paulon, psicóloga e pro- Loyola, 2015). Giraud é jesuíta e Jornalistas fessora da Universidade Federal do economista francês, que participa- – UFRGS; João Flores da Cunha - MTB 18.241/RS rá do Colóquio. “Transição ecoló- ([email protected]) Cristiani Machado, pesquisadora gica como caminho para estancar João Vitor Santos - MTB 13.051/RS 2 e docente da Escola Nacional de a crise econômica ” é o título da ([email protected]) Saúde Pública da Fundação Oswal- Márcia Junges - MTB 9.447/RS resenha do livro de G. Giraud ela- ([email protected]) do Cruz - ENSP/Fiocruz; borada pelo economista e profes- Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS Carlos Ocké-Reis, economista, sor da Unisinos. ([email protected]) doutor em Saúde Coletiva pela No próximo dia 1º de setembro, Vitor Necchi - MTB 7.466/RS ([email protected]) Universidade do Estado do Rio de Moisés Sbardelotto, doutor em Co- Janeiro – UERJ e pós-doutor pela municação, proferirá a conferência Revisão Carla Bigliardi Yale School of Management (New “E o Verbo se fez rede”: religiosi- Haven, EUA); Projeto Gráfico dades em reconstrução no ambien- Ricardo Machado José Antonio Sestelo, dentista e te digital. Na entrevista publicada vice-presidente da Associação Bra- Editoração nesta edição, ele analisa como os Rafael Tarcísio Forneck sileira de Saúde Coletiva – Abrasco; atravessamentos do processo de Atualização diária do sítio Rosa Maria Marques, professora midiatização, a partir das redes Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia Fachin, titular do Departamento de Econo- sociais, modificam a relação entre Cristina Guerini, Evlyn Zilch, Fernanda Forner, mia e do Programa de Estudos Pós- Igreja Católica e seus fiéis. Matheus Freitas e Luísa Boésio. -graduados em Economia Política Por sua vez, Cybeli Moraes, Colaboração da Pontifícia Universidade Católica jornalista, mestra e doutora em Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba- de São Paulo – PUC-SP; Comunicação, que reflete sobre PR. Áquilas Mendes, professor de caminhos para a formação cidadã Economia da Saúde na Universida- através dos meios e veículos de co- de de São Paulo – USP e municação e o conceito de comuni- Júlio de Matos, diretor Geral e cação para a cidadania. de Relações Institucionais da Ir- Também pode ser lida nessa edi- mandade da Santa Casa de Miseri- ção a entrevista com a psicóloga e córdia de Porto Alegre. psicanalista Diana Corso e o arti- Na semana em que ocorre o ani- go “A Governança global do poder Instituto Humanitas Unisinos - IHU Av. Unisinos, 950 versário da morte de Getúlio Var- realmente existente”, de Bruno São Leopoldo / RS gas, Maria Izabel Noll, graduada em Lima Rocha, professor de Relações CEP: 93022-750 História e mestra em Ciência Políti- Internacionais da Unisinos. Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 ca pela Universidade Federal do Rio A todas e a todos uma boa leitura e-mail: [email protected] Grande do Sul – UFRGS e doutora em e uma excelente semana! Diretor: Inácio Neutzling Ciência Política pela École des Hau- Gerente Administrativo: Jacinto tes Études en Sciences Sociales de Imagem da capa: George Hodan/Pu- Schneider ([email protected]) Paris, proferirá na próxima quinta- blic Domain

SÃO LEOPOLDO, 22 DE AGOSTO DE 2016 | EDIÇÃO 491 Sumário

Destaques da Semana

6 Destaques On-Line 8 Linha do Tempo

Tema de Capa

12 Baú da IHU On-Line 13 Jairnilson Paim: A macropolítica de saúde pública 18 Simone Paulon: A dignificação do “patinho feio” da Saúde 23 Cristiani Machado: Quando o Estado não resolve sua equação 27 Carlos Octávio Ocké-Reis: Parasitismo do privado no público 31 José Antonio Sestelo: A inanição de um organismo desidratado 36 Rosa Marques: Quando o público e o universal são sufocados pelo capital 39 Áquilas Mendes: O capital soberano e as súditas políticas públicas 45 Júlio de Matos: A saúde como palanque 3 IHU em Revista

50 Agenda de Eventos 51 Róber Iturriet Avila: Transição ecológica como caminho para estancar a crise econômica 58 Maria Izabel Noll: Getúlio e Lula: aproximações, distanciamentos, ganhos e limites de duas Eras 64 Moisés Sbardelotto: Católicos em rede: de ouvintes a produtores da palavra de fé 74 Cybeli Moraes: Comunicação cidadã: de fonte à mídia 76 Bruno Lima Rocha: A Governança global do poder realmente existente 78 Diana Corso: Um olhar infantil sobre o diferente 82 Publicações: Dirce Koga - Diagnóstico Socioterritorial entre o chão e a gestão 83 Retrovisor

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Destaques da Semana DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Destaques On-Line Confira as entrevistas publicadas entre os dias 15-08-2016 e 19-08-2016 no sítio do IHU

Desenvolvimento: Amazônia não é uma tábula rasa

Entrevista especial com Daniela Alarcon, doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília – UnB, com especialização em Estudos Comparados sobre as Américas, e graduada em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo – US. Publicada em 19-08-2016. Disponível em http://bit.ly/2bjfNat Apesar de o Ibama ter cancelado o processo de licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, alegando inviabilidade ambiental, outros empreendimentos continuam em curso na região, compondo o grupo de projetos de infraestrutura e rotas logísticas na bacia do Tapajós. Entre eles, destaca-se a construção da hidrovia Teles Pires-Juruena-Tapajós, que “é voltada para o escoamento de com- 6 modities e surge do interesse do setor do agronegócio de encurtar as rotas logís- Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br ticas existentes nesse processo e, assim, reduzir os seus custos”, informa Daniela Alarcon à IHU On-Line.

“O Brasil precisa de uma revolução no que tange ao saneamento ambiental”

Entrevista especial com Fernando Rosado Spilki, graduado em Medicina Vete- rinária e doutor em Genética e Biologia Molecular, área de Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, professor na Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS. Publicada em 18-08-2016 Disponível em http://bit.ly/2aZlSKh Quando se trata de analisar a qualidade da água que consumimos, “a inclusão de novos parâmetros, especialmente microbiológicos, é prioritária para lidar com os atuais desafios de proteção à saúde púbica”, defende Fernando Rosado Spilki, professor de Microbiologia, em entrevista à IHU On-Line. Na entrevista, conce- dida por e-mail, garante que investimentos complexos e rigorosos em análises

microbiológicas da água trariam vantagens em curto e médio prazo, entre elas, a Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br “redução dos índices de atendimento e hospitalização por doenças veiculadas pela água”, como as gastroenterites virais.

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As periferias de Porto Alegre: Suas pertenças, redes e astúcias. Bases para compreender seus saberes e dinâmicas éticas

Entrevista especial com Leandro Pinheiro, professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, com estágio realizado na Univer- sidad Complutense de Madrid. Publicada em 17-08-2016 Disponível em http://bit.ly/2bl9HU8 Na entrevista, Pinheiro descreve a situação de algumas das periferias da capital gaúcha e comenta que, segundo os moradores, na última década houve melhorias nas condições de vida da população. “Porém, na maioria das vezes, não parecem associar as mudanças a lutas e conquistas, ou distingui-las como bandeira de um grupo partidário ou outro. Figuras pessoais têm proeminência em suas interpre- Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br tações sobre a política, com destaque aos nomes de Lula e Dilma, e, ainda assim, estes são passíveis de questionamento quando o cenário socioeconômico sinaliza para a retração das ainda incipientes conquistas”, relata.

Olimpíadas Rio 2016: várias questões não foram respondidas

Entrevista especial com Orlando Alves dos Santos Junior, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR da UFRJ e pesquisador da Rede Observatório das Metrópoles. É autor e organizador de mais de dez livros, dentre os quais citamos As Metrópoles e a Questão Social Brasileira (São Paulo: Revan, 2007). Publicada em 16-08-2016. 7 Disponível em http://bit.ly/2b3Hjsc A crítica de que os Jogos Olímpicos se transformaram em “um grande negócio” tem sido recorrente entre muitos especialistas que analisam os impactos financei- ros e sociais que esse tipo de evento tem causado às cidades-sedes. Mas o que é mais “grave”, diz. Na entrevista, Santos Junior afirma que os recursos financeiros envolvidos na realização do evento são oriundos de grandes companhias, emprei- Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br teiras e corporações que, “mesmo com sede nacional, hoje não podem mais ser chamadas de empresas nacionais, no sentido de que seu capital não tem pátria” e são o “principal instrumento de financeirização”.

Os algoritmos e a política. Nem bons ou ruins, os algoritmos também não são neutros

Entrevista especial com André Pasti, graduado e mestre em Geografia pela Uni- versidade de Campinas – Unicamp e atualmente cursa doutorado em Geografia Hu- mana na Universidade de São Paulo – USP. Leciona no Colégio Técnico de Campinas – Cotuca, da Unicamp, e Marina Pita, jornalista graduada pela Pontifícia Univer- sidade Católica de São Paulo – PUC-SP e integra o Conselho Diretor do Intervozes. Publicada em 15-08-2016 Disponível em http://bit.ly/2bib8EQ “À medida que cresce a importância econômica e política da internet, cresce, também, a disputa por seu controle”, e por isso, “empresas, governos e a socie- dade civil disputam as diretrizes que definirão o futuro da Web”, dizem André Pasti e Marina Pita.Na entrevista, concedida por e-mail, os entrevistados também comentam o uso que empresas e governos têm feito dos algoritmos, “conjuntos Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br de regras e procedimentos lógicos definidos por programação”, para “influenciar e determinar comportamentos e culturas”.

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Linha do Tempo A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU que tiveram destaque ao longo da semana

Católicos e esquerda As críticas à Políticas invisíveis, cobertura machista redistribuição radical, uma da participação das perversa e atletas olímpicas convergência de “politização”... pela Quando se referem às compe- direita lutas? Artigo de Gaël tidoras de elite nos Jogos Olím- picos, os discursos jornalísticos “O “estado submerso” é o con- Brustier se inclinam mais a destacar ou junto de políticas públicas que avaliar sua beleza, sexualizar a funcionam através de incentivos, visão sobre seus corpos e não va- subsídios ou repasses a organiza- “Bergoglio-Laclau: convergên- lorizar seus méritos. A cobertura ções privadas. Nos últimos trinta destes Jogos Olímpicos destaca cia de lutas? Entre o “pós-marxis- anos, o discurso político tem sido que quando falam de esportistas invadido por uma filosofia públi- mulheres e de suas conquistas, mo” e o “populismo de esquer- ca conservadora, que defende os meios de comunicação não fa- as virtudes do governo mínimo. da”, por um lado, e a teologia do zem o mesmo que quando falam de esportistas varões. “A cober- Ironicamente, no entanto, a mu- 8 povo, de outro, entrelaçaram-se tura dos meios de comunicação dança mais dramática ao longo esportivos é majoritariamente deste período foi o florescimento relações, antecipando as aproxi- machista, homofóbico e esconde das políticas do estado submer- conquistas, resultados, marcas, so. Os governos – nos três níveis mações atuais”. A opinião é do abusos, violências, destrato, – estão inseridos em toda a vida falta de apoio que as mulheres diária, da saúde à casa própria, cientista político francês Gaël vivem no esporte. Graças a es- tes Jogos isso foi evidenciado. da educação ao transporte. Mas Brustier, membro do Observató- Seria bom que dure e se siga permanecem invisíveis porque com o mesmo olhar sobre as co- operam indiretamente, atra- rio de Radicalidades Políticas da berturas”, destaca a especialis- vés de atores privados”, escre- ta em Esporte e Gênero, Marta Fundação Jean-Jaurès. O artigo ve Reginaldo Moraes, professor Antúnez. de Ciência Política da Unicamp, foi publicado no sítio Slate.fr, A reportagem é de Sonia San- doutor em filosofia e autor de “O toro, publicada por Página/12, Peso do Estado na Pátria do Mer- 16-08-2016. 16-08-2016. cado” (2013), em artigo publica- Leia reportagem completa em do por Jornal GGN, 14-08-2016. Leia o artigo completo em http://bit.ly/2aZF9v3. Leia reportagem completa em http://bit.ly/2b76hWr. http://bit.ly/2b3uLCN.

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“O deus Dinheiro, o Leigos e famílias: três ‘O saneamento básico primeiro terrorismo”, passou a ser um novo segundo o Papa nomeações e um novo ambiente de negócios’ Francisco. Entrevista dicastério No momento da atual crise po- com Rémi Brague lítica brasileira, o governo inte- rino de parece re- Ao retornar, no dia 01 de agos- Na semana em que o Papa cuperar o discurso (e a prática) da privatização, de forma ainda to, da Jornada Mundial da Juven- mais ampliada, atingindo direta- Francisco faz uma importante tude em Cracóvia, marcada pelo mente as políticas sociais. A bola assassinato do padre francês Ja- da vez é a política de saneamen- mudança na Cúria Romana, com cques Hamel em sua igreja de to básico, que deve integrar um pacote de concessões proposto Saint-Etienne-du-Rouvray, o Papa a criação de um novo dicastério pela União como parte do Pro- Francisco declarou no avião: “No grama de Parcerias de Investi- centro da economia mundial está e três importantes nomeações, mento (PPI) – o novo nome, mais o deus Dinheiro, e não a pessoa, palatável, que a privatização ga- 9 podem ser lidos os artigos de Lui- o homem e a mulher; este é o nhou no governo interino. Depois de anunciar no seu programa primeiro terrorismo”. Esta de- gi Accatoli, jornalista italiano es- antecipado de governo, o ‘Ponte claração lapidar merece alguns para o futuro’, que promoveria esclarecimentos. Nós conversa- pecializado na cobertura dos as- amplas “concessões” e “parce- mos com Rémi Brague, filósofo rias” com a iniciativa privada para “complementar a oferta de e cristão, especialista no pensa- suntos relacionados com a Igreja serviços públicos”, a imprensa mento medieval árabe e judeu. A Católica e de Andrea Grillo, teó- começou a noticiar, aqui e ali, entrevista é de Caroline Brizard o ‘potencial’ dessa área para o ‘avanço’ do setor privado e o e publicada por Le Nouvel Obser- logo leigo italiano. vateur, 15-08-2016. consequente desenvolvimento econômico do país. Leia a entrevista completa em Leia texto completo em Leia a entrevista completa em http://bit.ly/2bmIjaq. http://bit.ly/2b6BUAo. http://bit.ly/2bwssZx.

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Tema de Capa DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Baú da IHU On-Line Confira alguns textos sobre o SUS já publicados pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU:

• Crise do SUS: desafios são estruturais e conjunturais. Entrevista especial com Eugênio Vilaça Mendes, publi- cada na Notícias do Dia de 26-01-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http:// bit.ly/2bIKtQL. • SUS: “Brasil nunca investiu para viabilizar plenamente o acesso à saúde”. Entrevista especial com Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro, publicada na Notícias do Dia de 24-11-2015, no sítio do Instituto Huma- nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bJxKxK. • A contaminação do SUS pela fragilidade da atenção básica e má formação de médicos. Entrevista especial com José Gomes Temporão, publicada na Notícias do Dia de 21-01-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bYTXv9. • “Sem crescimento econômico e sem aumento de produtividade, mudanças sociais não são sustentáveis”. Entrevista especial com Luiz Carlos Prado, publicada na Notícias do Dia de 20-11-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bbVlFe. • Ricardo Barros segue firme na privatização da Saúde e o desmonte do SUS. Reportagem da Rede Brasil Atual – RBA, reproduzida nas Notícias do Dia de 22-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU disponível em http://bit.ly/2bILubt. • O plano B ao SUS. Reportagem de EPSJV/Fiocruz, reproduzida nas Notícias do Dia de 17-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU disponível em http://bit.ly/2bupz6M. • Plano de Saúde Acessível ou o desmonte do SUS? Nota do Projeto Direitos Sociais e Saúde: Fortalecendo a ci- dadania e a incidência política, reproduzida nas Notícias do Dia de 15-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bYTXeB. 12 • Terror Fiscal e Desmonte do SUS: uma ameaça à democratização da saúde. Artigo de Carlos Octávio Ocké-Reis, economista e técnico de planejamento e pesquisa do IPEA, e Francisco R. Funcia, economista e mestre em economia política pela PUC-SP, publicado por Plataforma Política Social e reproduzido nas Notícias do Dia de 16-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bINVL5.

Leia mais em ihu.unisinos.br/noticias.

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A macropolítica de saúde pública Para compreender o SUS, segundo Jairnilson Paim, é preciso encará-lo para além de uma política pública, algo maior, que abarca uma série de políticas e ações que buscam bem-estar social

Por João Vitor Santos

mestre em Medicina e dou- de universalidade de políticas sociais e tor em Saúde Pública Jair- econômicas que se constituem num sis- Onilson Silva Paim considera tema de saúde público, universal, inte- que, para se mergulhar no conceito e gral e democrático. Visão que também de fato entender as questões de fun- é alvo de ataques desde sua concep- do acerca do Sistema Único de Saúde ção. “A Reforma Sanitária Brasileira – – SUS, é preciso entender a lógica desse RSB é um processo e, como tal, sofre as sistema. Como a maioria dos especia- vicissitudes das conjunturas”, aponta. listas ouvidos pela IHU On-Line, en- “Com o SUS não é diferente. Como um tende que é uma forma de abordar a dos filhos diletos da RSB, o SUS sempre saúde pública que emerge das bases e tem vivido em crises, mas não com a tem sua materialidade na Constituição gravidade da atual”, prossegue, ao re- de 1988. Embora forjado como uma lacionar a história com o atual momen- política pública de saúde no Brasil, o to de ameaças ao SUS. SUS, no entendimento de Paim, “não Jairnilson Silva Paim é mestre em se restringe a uma política pública, Medicina, doutor em Saúde Pública. enquanto resposta social do Estado aos 13 Atualmente, é professor de Política de problemas e necessidades de saúde da Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da população”. Isso porque, na perspecti- Universidade Federal da Bahia – UFBA e va de Paim, dentro do SUS há inúmeras coordenador do Observatório de Análi- políticas públicas para a proteção da se Política em Saúde. Entre suas publi- saúde. “No limite, poderia compreen- cações estão Reforma Sanitária Brasi- dê-lo como uma macropolítica pública leira: contribuição para compreensão de saúde”, conclui. e crítica (Salvador: Edufba/Rio de Ja- Na entrevista a seguir, concedida neiro: Editora Fiocruz, 2008), O que é por e-mail à IHU On-Line, o doutor em o SUS (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Medicina ainda recupera a Reforma Sa- 2009), Desafios da Saúde Coletiva no nitária, movimento que inspira a cons- Século XXI (Salvador: EDUFBA, 2006), tituição do SUS. “A Reforma Sanitária Saúde Coletiva: Teoria e Prática (Rio Brasileira representa uma reforma so- de Janeiro: MEDBOOK, 2013) e a Crise cial voltada para a questão da saúde, da saúde pública e a utopia da Saúde o que implica acionar intervenções so- Coletiva (Salvador: Casa da Qualidade, bre problemas e a atenção às necessi- 2000). dades de saúde de toda a população”, explica. É dela que emana essa visão Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- pública. É parte de uma totalida- econômicas, ideológicas e cultu- ender o Sistema Único de Saúde de concreta e complexa, resultado rais) ilustram as articulações entre – SUS enquanto política pública de múltiplas determinações. Seus a saúde e a estrutura da sociedade de Saúde? O que o distingue de determinantes históricos lhe con- brasileira, especialmente no que outros sistemas públicos de saúde ferem certa especificidade em re- se refere ao papel do Estado na ga- no mundo? lação a outros sistemas públicos de rantia dos direitos sociais. Jairnilson Silva Paim – Entendo saúde do mundo, e as relações so- Na medida em que o SUS en- o SUS para além de uma política ciais que lhe atravessam (políticas, contra-se inscrito na Constitui-

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ção da República, respaldado IHU On-Line – Dentro da pers- Exceto Chile, que teve o seu Ser- em leis, dispondo de instituições pectiva histórica em saúde cole- viço Nacional de Saúde criado cin- permanentes e de regras explíci- tiva no Brasil, o que representa a co anos após o NHS do Reino Unido tas, ele não se restringe a uma criação do SUS? (mas destruído pela Ditadura de Pi- nochet), Cuba após a Revolução de política pública, enquanto res- Jairnilson Silva Paim – O SUS, 1959 e Costa Rica com um abran- posta social do Estado aos pro- ancorado na Constituição Cidadã, gente e bem estruturado sistema blemas e necessidades de saúde representava, no interior da Se- de saúde, os países da América da população. Na realidade, no guridade Social, a possibilidade de Latina e Caribe, de um modo ge- seu interior são gestadas inúme- construir um Estado de Bem-Estar ral, apresentam sistemas de saúde ras políticas públicas de grande no Brasil com o reconhecimento do segmentados, calcados no modelo importância para a vida e para direito à saúde inerente à condição de seguro social (não de seguridade a proteção da saúde do nosso de cidadania. Isto significava um social ou beveridgeano), com forte povo. No limite, poderia compre- atraso de mais de quatro décadas tendência privatizante como os ca- endê-lo como uma macropolítica em relação ao Welfare State2 eu- sos da Colômbia e do Chile. Desse pública de saúde. ropeu, quando considerado o Re- modo, o SUS é reconhecido como latório Beveridge3, mas, ao mesmo uma referência para muitos cole- Um sistema que emerge tempo, um grande avanço em com- gas e companheiros latino-ameri- paração ao assistencialismo (sis- canos, tal como se tem manifesta- Ele se distingue, fundamental- tema de proteção social residual do a Associação Latino-americana mente, de outros sistemas públicos baseado na filantropia privada ou de Medicina Social e Saúde Cole- estatal) e ao seguro social (medici- de saúde porque não se originou tiva – Alames, e para países como na previdenciária que teve origem do Estado, nem de governos, nem Argentina, República Dominicana, nas caixas, seguidas dos institutos de partidos, nem de organismos Venezuela, Equador e, mais recen- de aposentadorias e pensões, do internacionais. Nasceu na socieda- temente, Colômbia. de civil, nas lutas de estudantes, INPS4 e do INAMPS5), quando o di- segmentos populares, sindicatos, reito à saúde não era reconhecido. Para mim, o problema maior não profissionais de saúde e setores da foi o SUS, assim como a seguridade 2 Welfare State: expressão em inglês que social, ser estabelecido tardiamen- academia, envolvendo professores, significa “estado de bem-estar” e abrange te no Brasil. A grande questão foi 14 intelectuais e pesquisadores. Essas as noções de Estado de bem-estar social e lutas contra a ditadura nos anos 70 de políticas públicas, ou seja, o conjunto de não ter sido implementado pelos benefícios socioeconômicos que um governo governos de acordo com a Cons- e 80 confluíram para a proposta proporciona aos seus súditos. (Nota da IHU tituição, a legislação e as demais da Reforma Sanitária Brasileira1, On-Line) normas, nem ter contado com uma defendendo a democratização da 3 Relatório Beveridge: elaborado pelo economista e reformista social britânico base de sustentação política e so- saúde, do Estado, da sociedade William Henry Beveridge (1879-1963) em cial que incluísse a classe trabalha- e da cultura. Assim, chegaram à 1942, o Report on Social Insurance and Allied dora, setores populares e a classe Constituinte de 1987-1988 e, pro- Services, famoso Plano Beveridge, visa liber- tar o homem da necessidade. Propôs, assim, média levando em conta princípios gressivamente, ao Estado no Legis- que todas as pessoas em idade de trabalhar de solidariedade semelhantes aos lativo, no Executivo e depois no Ju- deveriam pagar uma contribuição semanal ao que vicejaram na Europa do perío- diciário. As suas diretrizes voltadas Estado. Esse dinheiro seria posteriormente usado como subsídio para doentes, desem- do pós-guerra. para a integralidade da atenção, pregados, reformados e viúvas. Os subsídios para a participação social e para deveriam então tornar-se um direito dos ci- IHU On-Line – Como o senhor a descentralização, numa comple- dadãos, em troca de contribuições, em vez de pensões dadas pelo Estado. Segundo Be- compreende a Reforma Sanitária xa federação, diferem de outros veridge, este sistema permitiria um nível de Brasileira? Como o SUS se articula sistemas públicos como o inglês, o vida mínimo, abaixo do qual ninguém deveria com ela? E como pensar em Re- canadense, o francês, o cubano e viver. Instituiu um modelo de segurança no rendimento, contra todo o risco que ameace o forma em “tempos de crises”? o alemão. rendimento regular dos indivíduos. (Nota da IHU On-Line) Jairnilson Silva Paim – A Reforma 1 Reforma Sanitária: o movimento da Re- 4 Instituto Nacional de Previdência Sanitária Brasileira – RSB represen- forma Sanitária nasceu no contexto da luta Social – INPS: foi um órgão público previ- ta uma reforma social voltada para contra a ditadura, no início da década de denciário federal brasileiro criado em 1966 a 1970. A expressão foi usada para se referir ao partir da fusão dos Institutos de Aposentado- a questão da saúde, o que implica conjunto de ideias que se tinha em relação às ria e Pensões existentes na época. No Brasil, mudanças e transformações necessárias na hoje, a Previdência Social é administrada Ministério da Previdência Social), e foi criado área da saúde. Essas mudanças não abarca- pelo Ministério da Previdência Social e as po- pelo regime militar em 1974 pelo desmem- vam apenas o sistema, mas todo o setor da líticas referentes a essa área são executadas bramento do Instituto Nacional de Previdên- saúde, em busca da melhoria das condições pela autarquia federal denominada Instituto cia Social (INPS), que hoje é o Instituto Na- de vida da população. As propostas da Refor- Nacional do Seguro Social – INSS. (Nota da cional de Seguridade Social (INSS). O Institu- ma Sanitária resultaram na universalidade IHU On-Line) to tinha a finalidade de prestar atendimento do direito à saúde, oficializado com a Cons- 5 Instituto Nacional de Assistência Mé- médico/dentário aos que contribuíam com a tituição Federal de 1988 e a criação do Sis- dica da Previdência Social – INAMPS: previdência social, ou seja, somente aos con- tema Único de Saúde – SUS. (Nota da IHU foi uma autarquia federal vinculada ao Minis- tribuintes de toda forma e seus dependentes. On-Line) tério da Previdência e Assistência Social (hoje (Nota da IHU On-Line)

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acionar intervenções sobre proble- mobilização em torno de políticas com saúde e educação por 20 anos mas e a atenção às necessidades afirmativas e de reconhecimento (uma geração!!!!), enquanto a po- de saúde de toda a população. Isso de outros direitos e identidades, pulação cresce, envelhece e muda tudo sem discriminação ou precon- como o caso das lutas das mu- o seu perfil epidemiológico com ceitos, através de políticas sociais lheres, dos negros, grupos LGBT, destaque para doenças crônicas, e econômicas e de um sistema úni- índios, população do campo, tra- transtornos mentais, acidentes e co de saúde, público, universal, in- balhadores sem terra e sem teto, violências. tegral e democrático. população em situação de rua etc. Além das mortes, doenças e so- A RSB sempre viveu “tempos de frimentos que serão produzidos crises”. Para além de uma proposta Ameaças com a quebra da universalidade, ou projeto, a Reforma Sanitária é isto significa rasgar a Constituição um processo e, como tal, sofre as As ameaças à universalidade se no que diz respeito aos direitos so- vicissitudes das conjunturas, com fazem pelas vias ideológica, políti- ciais e de saúde e à promoção da avanços e recuos, na dependên- ca e econômica. No primeiro caso cidadania. Se esses parlamenta- cia da correlação de forças e da quando a mídia, políticos, gesto- res que hoje ocupam o Congresso atuação política dos sujeitos e do res, economistas, profissionais de Nacional aprovarem nos próximos movimento sanitário. E com o SUS saúde e segmentos da classe mé- meses esta PEC 241, ameaçando a não é diferente. Como um dos fi- dia defendem um SUS pobre para vida e a saúde de milhões de bra- lhos diletos da RSB, o SUS sempre pobres, ou quando se difunde a sileiros e brasileiras por duas dé- tem vivido em crises, mas não com concepção de Cobertura Universal cadas, certamente serão julgados a gravidade da atual. em Saúde como alternativa aos pela História como perpetradores sistemas públicos e universais de de um crime de lesa-pátria. IHU On-Line – Em que medida é saúde. No segundo caso, quando os possível afirmar que a universa- poderes Legislativo e Executivo se IHU On-Line – Que avaliação o lidade do SUS é um instrumento articulam para aprovar a autoriza- senhor faz do sistema de finan- para redução de desigualdades ção do capital estrangeiro na saú- ciamento que irriga o SUS, desde no país? Hoje, quais as ameaças de, para adotarem as terceiriza- a União, passando por Estados e a essa universalidade e o que ções ou mesmo para estimularem o Municípios? E como avalia a ges- representaria a restrição desse crescimento de planos privados de tão, articulada entre esses três princípio do SUS? saúde com a adesão dos funcioná- entes? 15 rios públicos ou pela tentativa de Jairnilson Silva Paim – Os prin- obrigatoriedade de planos de saú- Jairnilson Silva Paim – Inúmeros cípios da universalidade e da de para todos os trabalhadores ou estudos e pesquisas realizados no igualdade que sustentam o SUS pela defesa da expansão de “pla- Brasil indicam que o financiamen- contribuem, por si mesmos, para nos populares”. to do SUS é insuficiente, desigual a redução das desigualdades de e injusto. Decorre em parte da es- saúde e sociais, pois desde a sua Quanto à via econômica de res- trutura tributária brasileira regres- implantação o SUS incluiu mais de trição à universalidade, já é bem siva que penaliza os mais pobres um terço da população brasilei- conhecida: trata-se, sobretudo, do através dos impostos indiretos, ra, urbana e rural, que não esta- subfinanciamento crônico, acresci- poupando os ricos dos impostos di- va vinculada ao mercado formal do presentemente da manutenção retos sobre a renda, o patrimônio, de trabalho (carteira de trabalho da Desvinculação das Receitas da a herança, enfim sobre as grandes assinada e, portanto, dispondo do União – DRU, associada à Desvin- fortunas. Aquele pato ridículo que cartão do INAMPS) nem tinha poder culação das Receitas dos Estados anda desfilando na frente da Fede- de compra de serviços no mercado, – DRE e à Desvinculação das Re- ração das Indústrias do Estado de via planos de saúde ou da medicina ceitas dos Municípios – DRM, e da São Paulo – Fiesp esconde da popu- liberal. PEC 2416, que congela os gastos lação brasileira e da mídia o fato de que quem paga mais imposto no Além disso, o fato de a Lei Or- 6 A Proposta de Emenda Constitucional – Brasil proporcionalmente é o povo, gânica da Saúde sugerir o uso da PEC 241, de autoria do Executivo, na gestão não são os empresários, não é o epidemiologia no planejamento de do governo interino de Michel Temer, esta- belece um limite para os gastos públicos e capital. saúde possibilita identificar gru- prevê o congelamento de gastos públicos por pos populacionais mais vulneráveis 20 anos. Conforme especialistas no setor de Por outro lado, quem mais arre- ou com maior risco de adoecer ou Saúde, pode resultar na redução de 12 bilhões cada impostos e contribuições é a morrer, favorecendo a equidade, de reais em repasses para a área, nos próxi- União (governo federal). Apesar de mos dois anos. Para saber mais sobre a PEC pois pode orientar a atuação do 241, acesse a entrevista com Grazielle David, os municípios arrecadarem menos SUS para a população que mais intitulada PEC 241/16: Uma afronta à saúde, tributos que a União é sobre eles precisa de determinados serviços, aos direitos sociais e à Constituição, publica- que recaem as maiores responsabi- sem, contudo, deixar de ser iguali- da nas Notícias do Dia de 11-07-2016, no sítio lidades em relação ao SUS. O go- do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- tário. E, também, o fato de o SUS ponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota da verno federal desde o início do sé- ser democrático cria espaços para IHU On-Line) culo vem reduzindo relativamente

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a sua participação no financiamen- zaram partidos políticos, especial- essa relação repercute em crises to do SUS, obrigando que os muni- mente de esquerda. e tensões entre médicos e o SUS? cípios, especialmente, contribuam Orientei uma dissertação de Jairnilson Silva Paim – Não tenho mais com o financiamento, com- mestrado, publicada no ano pas- estudado, ultimamente, o papel da prometendo mais de 20% do seu sado por uma revista eletrônica categoria médica nas políticas de orçamento com a saúde, enquanto da Fiocruz, que descreve os fatos saúde face ao SUS e ao mercado o seu piso fixado em lei é de 15%. apoiados em muitas evidências no de planos privados, embora alguns No que se refere à gestão, o que sentido de identificar certos inte- pesquisadores do Observatório de me parece mais preocupante, além resses de classe e político-ideoló- Análise Política em Saúde8 que co- da falta da profissionalização e de gicos nessas manifestações. Outros ordeno estejam realizando algumas qualificação dos gestores (com as estudos têm sido publicados em investigações nessa perspectiva. devidas exceções) é a descontinui- livros e revistas reiterando esses Portanto, não me sinto muito con- dade administrativa decorrente da achados, havendo também aqueles fortável em responder essas per- vulnerabilidade do SUS aos inte- que exibem outras interpretações. guntas. Posso adiantar apenas que resses político-partidários, quando Mesmo que considere equivocado os médicos, independentemente cargos de confiança e contratos de reivindicar “hospital padrão Fifa”, da remuneração que recebem dos trabalhadores de saúde são utiliza- sobretudo considerando as de- planos ou do SUS, percebem certo dos como moedas de troca para o núncias de corrupção envolvendo constrangimento da sua autonomia clientelismo e o favoritismo políti- parte de seus dirigentes, entendi relativa enquanto profissional de cos mais rastaqueras. Há muito que nesses cartazes uma ironia diante saúde diante das restrições impos- defendo um SUS blindado desses de governos que investiram bilhões tas pelas operadoras para a redu- interesses mesquinhos e uma car- na Copa para a alegria de emprei- ção dos custos da atenção (diante reira de Estado para seus trabalha- teiras e, especialmente, a defesa da progressiva implantação do ra- dores, a exemplo daquelas assegu- de um sistema de saúde digno e de cionamento, racionalização e aten- radas para o Judiciário, Ministério qualidade. ção gerenciada ou managed care) e Público, Forças Armadas e Itama- das limitações concretas à sua prá- raty. Sem negligenciar a relevância Resposta do governo tica nos serviços públicos diante de dos servidores dessas instituições, condições de trabalho insatisfató- penso que aqueles que cuidam da Lamentavelmente, a resposta do rias e da infraestrutura deficiente 16 vida e da saúde dos brasileiros de- governo federal foi minimalista, das unidades de saúde ambulato- veriam ser tratados pelo Estado reduzindo a demanda por direitos e riais e hospitalares. com igual distinção! serviços públicos de qualidade para todos ao Programa Mais Médicos7. IHU On-Line – Que ameaças o IHU On-Line – Como o senhor lê Enquanto os manifestantes deman- sistema privado de saúde traz ao as manifestações de 2013, em es- davam mais saúde, mais educação, SUS? É possível o convívio desse pecial a pauta que reivindica mais mais transporte gratuito e de qua- modelo baseado no lucro e mer- atenção à saúde? O que essa pau- lidade, enfim, mais direitos, o Go- cantilização com uma política de ta revela em termos de limites do verno não conseguiu ousar nas me- saúde universalizada? SUS? E como avalia as “reações” didas necessárias ao atendimento Jairnilson Silva Paim – A Consti- do governo a essa pauta? daquela pauta que significariam, tuição assegura que a saúde é livre em última análise, a concretiza- Jairnilson Silva Paim – De um à iniciativa privada, mas também ção de princípios e proposições da modo geral, vejo como positivas determina que a saúde é questão Constituição Cidadã. as manifestações de 2013. A par- de relevância pública. Isto pode ser ticipação política dos cidadãos e interpretado como possibilidade cidadãs revigora e redefine a de- IHU On-Line – Como o senhor de existência da iniciativa privada, mocracia. Não sou ingênuo, porém. vê a relação da categoria médi- porém sob o primado do interesse É possível identificar pelo menos ca com planos de saúde, muitas público. Aliás, a legislação define o dois momentos naquelas manifes- vezes tidos como cooperados de caráter complementar dos serviços tações: o primeiro quando a juven- planos privados? Em que medida privados por referência ao SUS. tude ocupou as ruas defendendo 7 Mais Médicos: programa de Estado lan- Entretanto, com o subfinancia- o direito à cidade, à mobilidade çado em 2013, cujo objetivo é suprir a carên- mento público de um lado e o es- urbana, transporte e serviços pú- cia de médicos nos municípios do interior do tímulo, subsídios e sub-regulação blicos de qualidade, com destaque país e nas periferias das grandes cidades do Brasil. O formato da “importação” de médi- do setor privado, de outro, o país para a saúde e educação. O segun- cos de outros países foi alvo de duras críticas estabeleceu uma relação público- do, quando foram introduzidas ou- de associações representativas da categoria, privado espúria na saúde, com a tras pautas mediante a indução de sociedade civil, estudantes da área da saúde e presença de promiscuidade entre setores da mídia e outros segmen- inclusive do Ministério Público do Trabalho. Confira as publicações do Instituto Humani- tos da população manifestaram a tas Unisinos – IHU acerca do tema em http:// 8 O endereço do observatório é analisepoliti- sua oposição aos governos e hostili- bit.ly/2aVtcTh. (Nota da IHU On-Line) caemsaude.org. (Nota da IHU On-Line)

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os entes em prejuízo do interesse da saúde e da vida dos trabalhado- nos mais pobres, estimulando o ca- público. Embora para os meus va- res e da população em geral. É isto pital na saúde e deixando-o correr lores considere repugnante obter que ocorre nos países capitalistas solto a ponto de indicarem para lucros e favorecer a mercantiliza- avançados, sobretudo do Norte. O integrar as diretorias colegiadas ção diante da dor, do sofrimento, Welfare State foi um exemplo des- das agências reguladoras (inclusi- da doença e da ameaça de morte, ta possibilidade, embora também ve as da saúde) representantes das entendo que o Estado capitalista se encontre ameaçado desde Mar- operadoras de planos de saúde e de tende a favorecer a acumulação do garet Thatcher9 e Ronald Reagan10, outros setores “regulados”. Foram capital onde houver espaço para e especialmente após a crise de coniventes, deixando a raposa to- tal e, consequentemente, apresen- 2008. mar conta do galinheiro. te-se como normal a privatização Os governos Lula e Dilma, não Não vejo viabilidade na reversão da saúde. Mas se pretendemos ser obstante certas conquistas em ter- desse quadro e, particularmente, uma nação civilizada não podemos mos de políticas sociais, nem se- na garantia do financiamento pú- desconhecer certos pactos e as quer esforçaram-se para cumprir o blico adequado ao SUS sem uma leis, lembrando que o princípio da pacto social estabelecido em 1988 grande mobilização democrática e dignidade humana está na frente pela Constituição, muito menos popular capaz de incluir este tema de privilégios, do direito à proprie- para conter o avanço do capital na na agenda do Estado. dade e da iniciativa privada. saúde. Satisfizeram-se com políti- Enfim, entendo que as ameaças cas racionalizadoras e focalizadas IHU On-Line – Como avalia os do sistema privado ao SUS passam movimentos do governo interino pela dominação dos interesses do 9 Margaret Hilda Thatcher (1925-2013): política britânica, primeira-ministra do Rei- de Michel Temer com relação ao capital, pela omissão deliberada no Unido de 1979 a 1990. Ao liderar o gover- SUS? do Estado, pela conivência de po- no do Reino Unido, Thatcher estava deter- líticos e gestores, bem como pela minada a reverter o que via como o declínio Jairnilson Silva Paim – Um de- fragilidade das instâncias de parti- nacional de seu país. Suas políticas econô- sastre total! Até a grande mídia, micas foram centradas na desregulamenta- normalmente solidária ao capital, cipação social em saúde. ção do setor financeiro, na flexibilização do mercado de trabalho e na privatização das à privatização da saúde e à redu- empresas estatais. Sua popularidade esteve ção dos gastos públicos tem apon- IHU On-Line – Certa vez, o se- baixa em meio à recessão econômica iniciada tado, em apenas três meses de in- nhor declarou que o capital finan- com a Crise do petróleo de 1979. No entanto, terinidade, o desmonte do SUS, os uma rápida recuperação econômica, além da 17 ceiro está matando a saúde. Mas retrocessos nas políticas públicas, como isso ocorre? Em que medida vitória britânica na Guerra das Malvinas, fez ressurgir o apoio necessário para sua reelei- a montagem de uma bomba-relógio o governo petista de Lula e Dilma ção em 1983. Devido ao fato de Thatcher ter que deve implodir o que restar do permitiram o avanço desse capi- sobrevivido a uma tentativa de assassinato SUS nos próximos vinte anos através tal sobre a saúde? Como reverter em 1984, de sua dura oposição aos sindicatos e de sua forte crítica à União Soviética, foi al- da PEC 241, enfim, a dilaceração esse quadro e assegurar o SUS cunhada de “Dama de Ferro”. (Nota da IHU da Constituição da República. Bas- como política de saúde de finan- On-Line) ta ler a Revista Radis11 da Fiocruz e ciamento público? 10 Ronald Reagan (1911-2004): ator norte- -americano formado em economia e socio- visitar os sites do Centro Brasileiro Jairnilson Silva Paim – Não só logia. Foi eleito governador da Califórnia de Estudos em Saúde Cebes12 e da o capital financeiro. O capital, em 1966, e se reelegeu em 1970 com uma Associação Brasileira de Saúde Co- margem de um milhão de votos. Conquistou letiva – Abrasco13 para se perceber enquanto relação, é patogênico. a indicação à presidência pelo Partido Repu- Os estudos sobre a determinação blicano em 1980, e os eleitores, incomodados que não estou exagerando. social do processo saúde-doença com a inflação e com os americanos mantidos há um ano como reféns no Irã, o conduziram 11 Revista da Escola Nacional ■de Saúde assim apontam. Mas o Estado de- à Casa Branca. Antes de ocupar a presidên- Pública Sérgio Arouca. O endereço eletrônico mocrático de direito pode, legiti- cia, passou 28 anos atuando como ator em 55 é ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis. (Nota mamente, estabelecer limites e filmes que não entraram para a história, mas da IHU On-Line) condições para a acumulação capi- que lhe deram fama e popularidade. Sua car- 12 O endereço é cebes.org.br. (Nota da IHU reira no cinema terminou em 1964, em The On-Line) talista, seja em função da prote- Killers, único filme em que atuou como vilão. 13 O endereço é abrasco.org.br. (Nota da ção ao ambiente, seja em defesa (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— “O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político”. Entrevista com Jairnilson Paim, publicada por IHU On-Line número 376, de 17-10-2011, disponível em http://bit.ly/2aERZyE. —— A necessidade de avançar na democratização da saúde. Entrevista com Jairnilson Paim, pu- blicada por IHU On-Line número 233, de 28-07-2007, disponível em http://bit.ly/2b9ma0m.

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A dignificação do “patinho feio” da Saúde Simone Paulon destaca que é pela perspectiva do SUS que demandas como as do movimento antimanicomial passam a ser discutidas e efetivadas. Para ela, são lógicas que retiram a saúde mental das sombras

Por João Vitor Santos

e num ranking de investimen- “melhorar a atenção em saúde men- tos em políticas públicas a tal hoje no Brasil, não tenho qualquer Sárea da saúde não está en- dúvida, significa ampliar investimen- tre os melhores colocados, imagine tos nesta incipiente e fundamen- a saúde mental. A psicóloga Simone tal Rede que garante o cuidado sem Mainieri Paulon, professora da Uni- exclusão, inserido na comunidade, o versidade Federal do Rio Grande do cuidado em liberdade”. Sul – UFRGS, destaca que essa subá- rea é historicamente depreciada em Simone Mainieri Paulon é psicólo- detrimento de outras. “A saúde men- ga, doutora em Psicologia Clínica pela tal é considerada o ‘patinho feio’ dos Pontifícia Universidade católica de segmentos da saúde para muitos ges- São Paulo – PUC-SP. Professora da Uni- 18 tores públicos, infelizmente”, lamen- versidade Federal do Rio Grande do ta. Entretanto, ressalta que essa ló- Sul – UFRGS, atua junto ao laboratório gica vem sendo subvertida dentro do de políticas públicas do Departamen- bojo das conquistas com a implanta- to de Psicologia Social e Institucional, ção do SUS, pois constitui uma espé- ao Programa de Pós-Graduação de cie de inclusão democrática de quem Psicologia Social e ao Programa de busca tratamentos através das redes Pós-Graduação em Saúde Coletiva. de atenção psicológica. Atuou como consultora da Política Na- cional de Humanização do SUS e, atu- Na entrevista a seguir, concedida almente, coordena o grupo INTERVI- por e-mail à IHU On-Line, Simone RES – Pesquisa-Intervenção em Saúde ainda analisa que “não se faz política Mental, Políticas Públicas e Cuidado pública apenas com boas propostas em Rede. Entre suas publicações, es- e entre o preconizado e o realizado tão Saúde Mental na Atenção Básica: de fato há uma larga distância”. Por a territorialização do Cuidado (Porto isso defende não só a manutenção do Alegre: Editora Sulina, 2013), Cader- SUS como um todo, mas a ampliação nos HumanizaSUS de Saúde Mental e correções de políticas que compre- (Vitória: EDUFS, 2014) e Nietzsche endem o sistema, especialmente re- Psicólogo: A Clínica à luz da filosofia lacionados à saúde mental. “É preciso trágica (Porto Alegre: Sulina, 2014). ressaltar que temos uma boa legisla- ção”, pondera. No entanto, aponta: Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreen- Simone Mainieri Paulon – O SUS, Autores como Celina Souza1, Soraya der a lógica que inspira o SUS para como mais antiga e estruturada das além das consultas médicas, aten- políticas públicas brasileiras, pode 1 Celina Souza: possui graduação em Di- dimentos de urgência e emergên- ser definido como certo modelo do reito pela Universidade Federal da Bahia, mestrado em Administração Pública pela cia, enquanto política pública de que as ciências políticas e sociais Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro saúde? têm definido por política pública. e doutorado em Ciência Política pela London

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Cortes2, Gilberto Hochman3 susten- ver a saúde nos termos descritos no faz dele processo inconcluso e alvo tam um conceito atual de política artigo 196 de nossa Constituição, de acirradas críticas. Mas neste pública que se aproxima em mui- o movimento sanitarista cravou o ponto é fundamental que se sepa- to do que o movimento sanitário que alguns autores avaliam como re o joio do trigo e se diferencie logrou inscrever na carta magna4 espécie de bandeira socialista ou a crítica construtiva, originada nas para a política pública de saúde “ilha não mercantil” num estado fragilidades reais apontadas por brasileira. neoliberal, pois este capítulo cons- esta “obra aberta” que o SUS de titucional representa uma afirma- fato é, das críticas genéricas des- Tais autores afirmam que política ção política de compromisso do Es- tinadas a qualquer bom efeito pro- pública, para além de uma política tado brasileiro para com os direitos duzido pelo Estado quando veem de Estado, são as transformações dos seus cidadãos. sociais, gestionadas a partir de o argumento do Estado mínimo segmentos estatais, que resultam E não é um dever qualquer e de ameaçado. do jogo de forças que se estabe- prestar serviços de qualquer espé- cie para cidadãos de menor valor, No primeiro grupo, porque de lece no âmbito das relações de como uma lógica hierarquizante tí- críticos para desconstruir qualquer poder dos diversos atores sociais, pica do capitalismo financeiro nos empreendimento público a gran- expressando decisões coletivas. faria supor. É um dever de ofertar de imprensa está cheia, temos um É uma compreensão interessante atendimento integral em saúde, a dos mais reconhecidos sanitaris- que inclui a sociedade civil, os téc- todo cidadão brasileiro, de forma tas brasileiros, Gastão de Wagner nicos e diversos grupos de interes- resolutiva, utilizando as melhores Campos5. Ao levantar o que consi- ses naquilo que de fato resulta das tecnologias e instrumentos a que dera ser os principais impasses na instruções e normativas que ema- se tenha acesso e, ainda (o que implantação do SUS, a obstaculi- nam do Estado. Por isso, é possível zarem seu pleno fortalecimento, afirmar-se que a criação do Siste- Campos aponta a questão dramá- ma Único de Saúde – SUS significa o tica do subfinanciamento, baixa mais importante movimento de in- capacidade de gestão integrada clusão social empreendido pela via constitucional brasileira. Ao inscre- entre instâncias diversas, cobertu- A criação do SUS ra e qualidade de atenção primária School of Economics and Political Science. significa o mais aquém do esperado e, principal- 19 Tem experiência na área de Ciência Política, mente, um certo descrédito por com ênfase em Estado e Governo, atuando importante mo- principalmente nos seguintes temas: federa- parte dos atores da reforma sanitá- lismo, federalismo fiscal, descentralização, vimento de in- ria6 quanto à capacidade para sus- governos subnacionais e políticas públicas. tentação da grandiosidade desta (Nota da IHU On-Line) 2 Soraya Vargas Cortes: possui doutorado clusão social em- política pública. em Social Policy and Administration – Lon- don School of Economics and Political Sci- preendido pela 5 Gastão de Wagner Campos: médico ence, em 1995. Atualmente é professora do pela Universidade de Brasília, com mestrado Departamento e Programa de Pós-Graduação via constitucio- em Medicina Preventiva pela Universidade em Sociologia da Universidade Federal do de São Paulo, doutorado em Saúde Coletiva Rio Grande do Sul – UFRGS, Pesquisadora nal brasileira pela Universidade Estadual de Campinas e do CNPQ, é Diretora do Instituto de Filoso- residência médica pelo Hospital das Forças fia e Ciências Humanas da UFRGS e é Presi- Armadas em Brasília. Atualmente é professor dente da Sociedade Brasileira de Sociologia. não é um detalhe), com partici- titular da Universidade Estadual de Campi- (Nota da IHU On-Line) pação popular. Isto significa uma nas, Membro de corpo editorial da Trabalho, 3 Gilberto Hochman: graduado em Ad- imensa transformação na pers- Educação e Saúde e Membro de corpo edi- ministração Pública pela Fundação Getúlio torial da Revista Ciência & Saúde Coletiva. Vargas, é mestre em Ciência Política pelo Ins- pectiva privatista, mercantilista e Tem experiência na área de Saúde Coletiva, tituto Universitário de Pesquisas do Rio de hospitalocêntrica com que a saú- com ênfase em Saúde Pública. Atuando prin- Janeiro – IUPERJ e doutor em Ciência Polí- de historicamente foi tratada em cipalmente nos seguintes temas: anti-Taylor, tica pela mesma instituição, com estágio dou- nosso país, e por isso o SUS é um democracia em instituições, gestão de insti- toral no Boston College (EUA). É pesquisador tuições. (Nota da IHU On-Line) da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo empreendimento tão arrojado, tão 6 Reforma Sanitária: o movimento da Cruz e professor do Programa de Pós-Gra- desafiador à gestão pública, quan- Reforma Sanitária nasceu no contexto da duação em História das Ciências e da Saúde to atacado por interesses elitistas luta contra a ditadura, no início da década de (COC/Fiocruz). (Nota da IHU On-Line) 1970. A expressão foi usada para se referir ao 4 Carta de 88 – Carta Magna: é a Consti- e corporativos marcantes de uma conjunto de ideias que se tinha em relação às tuição da República Federativa do Brasil de cultura oligárquica. mudanças e transformações necessárias na 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988. área da saúde. Essas mudanças não abarca- É a lei fundamental e suprema do Brasil, ser- vam apenas o sistema, mas todo o setor de vindo de parâmetro a todas as demais norma- O objeto das críticas saúde, em busca da melhoria das condições tivas. Pode ser considerada a sétima ou a oi- de vida da população. As propostas da Refor- tava constituição do Brasil (dependendo de se É justamente esta dimensão pú- ma Sanitária resultaram na universalidade considerar ou não a Emenda Constitucional blica da política, que se expressa do direito à saúde, oficializado com a Cons- nº 1 como um texto constitucional) e a sexta tituição Federal de 1988 e a criação do Sis- ou sétima constituição Brasileira em um sé- e se concretiza no SUS como obra tema Único de Saúde – SUS. (Nota da IHU culo de república. (Nota da IHU On-Line) coletiva, generosa e inclusiva, que On-Line)

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E conclui: “a defesa do SUS e o outra das conquistas significativas Brasil é signatário – é a priorização sucesso do SUS dependem da for- do processo de democratização do do tratamento em meio comunitá- ça com que a sociedade brasileira Estado, desencadeado a partir dos rio, contando com as redes e re- coloque a vida das pessoas acima anos 1980 com a lenta abertura cursos que o sujeito em sofrimento de todas as outras racionalidades, política que levou ao final da dita- psíquico grave possa contar em seu e ainda compreenda que as polí- dura militar no país. Assim como a território, e a extinção progressiva ticas públicas podem se constituir reforma sanitária, movimento em dos grandes hospícios. A Lei Paulo em um meio poderoso para a efe- boa parte paralelo e mutuamente Delgado12, que instituiu a Reforma tiva defesa da vida.” É esta dimen- reforçadores um do outro, origina- Psiquiátrica em âmbito nacional, são abrangente, de produção de -se das lutas de trabalhadores e foi fruto de amplo debate com a um comum, de um capital social usuários por melhorias na atenção sociedade e respondeu e, desta construído e forjado no calor das em saúde mental. Assim, encontra forma, atendeu a demandas his- lutas sociais que o SUS representa. no movimento antimanicomial8 e tóricas de segmentos de trabalha- E é tudo isto que está sob ameaça na psiquiatria democrática italia- dores que vinham lutando contra quando um gestor público coloca na9 alavancas importantes para as violações de direitos praticadas em questão, por exemplo, “o ta- chegar a seu marco principal, com nas instituições manicomiais, as- manho exagerado do SUS”. a aprovação da Lei 10.216 no ano sim como pelo elementar direito de 200110. ao cuidado em liberdade. Reações O principal avanço firmado em Uma rede que se Lei, mas já largamente recomen- O barulho que esta declaração constitui dado em inúmeras instruções e causou, a chacoalhada nos movi- normativas internacionais – incluin- mentos sociais e onda de tags nas Uma ampla rede de serviços para do a carta de Alma Ata11 da qual o redes e passeatas dizendo “#NAO- atender diferentes necessidades MEXACOMOSUS” são um indicativo seus direitos como seus deveres como cida- de diferentes usuários em seus mo- de que há segmentos da população dão. (Nota da IHU On-Line) mentos singulares de vida e sofri- brasileira atenta às conquistas de- 8 Movimento Antimanicomial: tam- mento foi estruturada a partir daí, bém conhecido como Luta Antimanicomial, mocráticas arduamente forjadas compõe as diretrizes da Reforma Psiquiátri- incluindo os Centros de Atenção para que se alcançasse um estado ca. Refere-se a um processo organizado de Psicossociais, Residenciais Tera- 20 de direito e uma reforma sanitária transformação dos Serviços Psiquiátricos, pêuticos, Programas de Geração de derivado de uma série de eventos políticos Renda, de “Volta pra Casa” (auxílio que viabilizou o SUS. As reações nacionais e internacionais. Na sua origem, alarmadas às declarações oficiais esse movimento está ligado à Reforma Sani- financeiro para apoiar os primeiros recentes de que princípios basais tária Brasileira da qual resultou a criação do anos de desospitalização), Consul- do SUS estão sendo questionados Sistema Único de Saúde – SUS; está ligado tórios na Rua, Centros de Convi- também à experiência de desinstitucionaliza- fazem crer que este povo não quer ção da Psiquiatria desenvolvidas em Gorizia e vência e, o que é fundamental e só curar feridas. Quer bons hospi- em Trieste, na Itália, por Franco Basaglia nos um dos mais graves “furos” de nos- tais, bons serviços de saúde, me- anos 60. (Nota a IHU On-Line) sa rede atual, leitos em hospital 9 Psiquiatria democrática italiana: re- geral. Nossa rede, em sua concep- dicação e cobertura de saúde da forma no sistema de saúde mental italiana família, sim, mas quer, também que tem como referência Franco Basaglia ção e mesmo em alguns municípios e principalmente, defender os di- (1924-1980), psiquiatra italiano. Nos anos exemplares, é considerada uma 60, ele dirigiu o hospital psiquiátrico de Go- das mais completas e bem elabo- reitos garantidos na Constituição rizia, onde juntamente com outros psiqui- cidadã que não lhes serão seques- átricas começou a promover uma série de radas do mundo para dar conta do trados sem resistência. mudanças práticas e conceituais, expostas cuidado territorializado tal como no livro “A Instituição Negada” (1968). Em preconizado pelos organismos in- 1973 o Serviço Hospitalar de Trieste, dirigi- ternacionais e inscrito na legisla- IHU On-Line – Qual sua avalia- do por Basaglia, foi considerado pela Orga- ção nacional. ção quanto ao sistema de saúde nização Mundial de Saúde como referência mundial para reformulação da assistência à mental presente no SUS? Quais os saúde mental. A lei nº 180, ano de 1978 (Lei Patinho feio da Saúde avanços e limites desse sistema Basaglia) estabeleceu a abolição dos hospitais posto e como pensar em melhorar psiquiátricos (manicômios) na Itália e está vi- Entretanto, como acontece com a atenção à saúde mental? gente até o presente momento. (Nota da IHU On-Line) o SUS em geral, não se faz políti- Simone Mainieri Paulon – A Re- 10 Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001: ca pública apenas com boas pro- também conhecida como Lei da Reforma 7 forma Psiquiátrica brasileira é Psiquiátrica instituiu um novo modelo de tra- postas, e entre o preconizado e o tamento aos transtornos mentais no Brasil. 7 Reforma Psiquiátrica: tem por objeti- (Nota da IHU On-Line) a todos os povos do mundo. (Nota da IHU vo construir um novo estatuto social para o 11 Declaração de Alma-Ata: foi formula- On-Line) doente mental, que lhe garanta cidadania, o da por ocasião da Conferência Internacional 12 É uma espécie de apelido da Lei da Refor- respeito a seus direitos e sua individualidade, sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida ma Psiquiátrica, que refere o deputado Paulo promovendo sua contratualidade (resgate em Alma-Ata, na República do Cazaquistão Delgado (PT/MG), que propõe a regulamen- da capacidade do indivíduo de participar do (ex-República socialista soviética), entre 6 e tação dos direitos da pessoa com transtornos universo das trocas sociais, de bens, palavras 12 de setembro de 1978, dirigindo-se a todos mentais e a extinção progressiva dos manicô- e afetos) e sua cidadania, inclusos aí não só os governos, na busca da promoção de saúde mios no país. (Nota da IHU On-Line)

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realizado de fato, na maioria dos dão entre outras políticas públi- preparadas para atender o que, municípios brasileiros, há uma lar- cas, além da saúde, em centros não raro, denominam por “pacien- ga distância. E se a saúde no Bra- psicossociais? tes psiquiátricos” (nomenclatura sil já é uma das políticas com pior per si definidora da concepção que Simone Mainieri Paulon – Como investimento (apesar de seu 7º carregam de sofrimento psíquico processo de transformações cultu- Produto Interno Bruto – PIB, Brasil como doença e caso que só um tipo rais, subjetivas, afetivas, além de é 72º no ranking da Organização de expert pode dar conta). Esta- administrativas, jurídicas e organi- Mundial da Saúde – OMS de gasto mos finalizando a terceira pesquisa zacionais, a desinstitucionalização per capita em saúde no mundo), a junto a equipes de saúde da família da loucura requer uma capacidade saúde mental é considerada o “pa- quanto ao modo como lidam com de convívio com a diferença da qual tinho feio” dos segmentos da saúde problemas relativos à saúde mental as sociedades contemporâneas es- para muitos gestores públicos, in- e os trabalhadores vêm apontando tão cada vez mais refratárias. A felizmente. Ainda assim, é preciso constante medo de lidar com este loucura representa a diferença ra- ressaltar que temos uma boa legis- tema, concepções altamente con- dical e, como tal, já foi tratada de lação. Graças a ela, desde 2006 a servadoras da loucura associada à modos muito diversos em períodos pirâmide de investimentos públicos periculosidade, desconhecimento da história da humanidade, como despendidos entre hospitais e ou- da legislação e mesmo dos recursos Foucault14 bem demonstrou em tros serviços da rede foi invertida mínimos que a comunidade pode sua tese. Neste sentido, o avanço e hoje já se utiliza mais, dos par- oferecer em benefício dos usuários necessário para que se aprofunde cos recursos que chegam à saúde e, principalmente, uma compreen- o processo de reforma psiquiátrica mental, para qualificar a rede de são de que são casos que não lhes 13 em curso no Brasil é a “desespecia- atenção psicossocial – RAPS – do dizem respeito já que não são da lização” do trato com o sofrimento que para os custosos e tenebrosos “área psi”. hospícios que dominavam a área no psíquico. É isso que pode permitir século passado. que a atenção primária se corres- Já assisti coordenadores de UBS ponsabilize mais pelo acompanha- encaminharem ao Centro de Apoio Melhorar a atenção em saú- mento também de usuários com Psicossocial – CAPS16 pessoas que de mental hoje no Brasil, eu não estes problemas. chegam ao acolhimento da unida- tenho qualquer dúvida, significa de “porque estão chorando mui- Isto não significa negação da ampliar investimentos nesta inci- to”. Esta é uma expressão entre piente e fundamental Rede que necessidade de que determinados 21 garante o cuidado sem exclusão, casos, em determinados momen- com toda a Rede de Atenção à Saúde. É insta- inserido na comunidade, o cuidado tos da vida das pessoas com trans- lada perto de onde as pessoas moram, traba- tornos mentais, recebam a devida lham, estudam e vivem e, com isso, desempe- em liberdade. Para isto é preciso nha um papel central na garantia de acesso à investimento público, revisão das atenção especializada por técnicos população a uma atenção à saúde de qualida- distribuições orçamentárias em to- com formação específica para isto. de. Na UBS, é possível receber atendimentos das esferas de governo, revisar as Mas o que acontece hoje está mui- básicos e gratuitos em Pediatria, Ginecologia, to distante disso. As Unidades Bási- Clínica Geral, Enfermagem e Odontologia. Os formações de base de várias profis- principais serviços oferecidos são consultas 15 sões da saúde, mas também inves- cas de Saúde – UBS não se sentem médicas, inalações, injeções, curativos, va- timentos na cultura. Afinal, para cinas, coleta de exames laboratoriais, trata- 14 Michel Foucault (1926-1984): filóso- mento odontológico, encaminhamentos para que se aprenda a conviver com a fo francês. Suas obras, desde a História da especialidades e fornecimento de medicação loucura, não basta derrubarmos Loucura até a História da sexualidade (a básica. A atenção primária é constituída pelas muros físicos de hospícios. É preci- qual não pôde completar devido a sua morte) unidades básicas de saúde (UBS) e Equipes so desinstitucionalizar o louco em situam-se dentro de uma filosofia do conhe- de Atenção Básica, enquanto o nível interme- cimento. Foucault trata principalmente do diário de atenção fica a encargo do SAMU 192 cada um de nós e os medos que nos tema do poder, rompendo com as concep- (Serviço de Atendimento Móvel as Urgência), assolam de qualquer evidência de ções clássicas do termo. Em várias edições, das Unidades de Pronto Atendimento (UPA), que ele não esteja tão “encarcera- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a e o atendimento de média e alta complexi- Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo- dade é feito nos hospitais. (Nota da IHU do” quanto muitos gostariam. nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, On-Line) de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ 16 Centros de Atenção Psicossocial – ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in- CAPS: são instituições brasileiras que visam IHU On-Line – A partir dos da- titulada ‘História da loucura’ e o discurso à substituição dos hospitais psiquiátricos – dos revelados em suas pesquisas, racional em debate, disponível em http:// antigos hospícios ou manicômios – e de seus qual a importância de equipes de bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo métodos para cuidar de afecções psiquiátri- atenção básica na área de saú- biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, cas. Os CAPS, instituídos juntamente com os disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi- Núcleos de Assistência Psicossocial – NAPS, de mental? E que conexões se ção 344, Biopolítica, estado de exceção e vida são unidades de saúde locais/regionalizadas nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ que contam com uma população adscrita de- 13 Rede de Atenção Psicossocial – ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos finida pelo nível local e que oferecem atendi- RAPS: prevista na portaria GM/MS nº Cadernos IHU em formação, disponível mento de cuidados intermediários entre o re- 3.088/2011, preconiza o atendimento a pes- em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. gime ambulatorial e a internação hospitalar, soas com sofrimento ou transtorno mental (Nota da IHU On-Line) por equipe multiprofissional, constituindo-se e com necessidades decorrentes do uso de 15 Unidade Básica de Saúde – UBS: é o também em porta de entrada da rede de ser- crack, álcool e outras drogas. (Nota da IHU contato preferencial dos usuários, a principal viços para as ações relativas à saúde mental. On-Line) porta de entrada e centro de comunicação (Nota da IHU On-Line)

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tantas do estigma e rejeição que, estrutura como essa num outro Este segundo modelo de atenção ainda hoje, cercam este tipo de modelo de gestão em saúde, es- não dispensa totalmente eventuais adoecimento. Entendo que a cria- sencialmente saúde mental, que internações, desde que sejam fei- ção dos Núcleos de Apoio à Saúde não fosse público? tas para crises eventuais em hospi- 17 da Família – NASF , através das Simone Mainieri Paulon – Não tais gerais. No entanto, a atenção práticas de matriciamento, da acredito que este seja um modelo psicossocial exclui necessariamen- educação permanente em saúde, possível fora do contexto do SUS, te as clínicas e hospitais especia- está se desenvolvendo e come- não na forma como estão pensa- lizados. Isto porque entende que a ça a modificar este cenário. Isto exclusão é sempre prejudicial, daí pode ajudar a que se avance com a “gritaria” em torno da necessida- os processos de desinstituciona- de de manutenção destas institui- lização da loucura nos territórios ções que são sempre muito lucrati- de vida das pessoas, como dizia vas ao setor privado. acima. O SUS é um em- Nossas pesquisas, que também preendimento IHU On-Line – Deseja acrescen- são sempre intervenção, são um tar algo? indicativo da imensa demanda que tão arrojado, há entre os trabalhadores para que tão desafiador à Simone Mainieri Paulon – Sim. isto avance neste sentido. Quando Preciso acrescentar um ponto con- ofertamos rodas de conversa, mo- tingencial acerca do ocorrido em gestão pública, 19 mentos de formação, qualquer es- Arroio dos Ratos , que está co- paço em que o tema da saúde men- quanto atacado meçando a ser negligenciado pela tal vá ser posto em debate, temos por interesses grande imprensa e que remete a tido uma receptividade impressio- tudo que falamos acima. Fato é que nante dos grupos. Como diz um elitistas e corpo- por se tratar de loucos pobres não título de um filme italiano de que rativos marcan- merece qualquer atenção maior da gosto muito que conta a história de mídia. Gostaria de indicar a leitura uma cooperativa de loucos após a tes de uma cul- da moção que escrevemos no Fó- 22 extinção dos hospícios em seu país, rum Gaúcho de Saúde Mental. Ali, isto é sinal de que “Se puó fare”! tura oligárquica refletimos sobre o terrível ocorrido (Dá pra fazer)18. que a imprensa não está dando a dos os equipamentos da RAPS para menor bola20. IHU On-Line – Como funcionam a população e cultura brasileiras. Mas, o que está na base desta Rede 19 Na madrugada■ de 21 de julho de 2016, 7 os centros psicossociais e as en- pessoas não conseguiram escapar do incên- grenagens que a fazem girar en- em construção é um modelo de dio que tomou conta do Centro Novos Ho- quanto política pública? Como os atenção que está em transição: de rizontes, na cidade de Arroio dos Ratos, na um modelo tutelar – praticado em região metropolitana de Porto Alegre, Rio avalia? É possível conceber uma Grande do Sul, e morreram. Outras 11 fica- instituições totais que não estão ram feridas, duas delas em estado grave. O 17 Núcleos de Apoio à Saúde da Famí- apenas nos manicômios, haja vis- local se anuncia como “centro de tratamento lia – NASF: foram criados pelo Ministério ta a proliferação de Comunidades para dependentes químicos”. No momento da Saúde em 2008 com o objetivo de apoiar Terapêuticas para “tratamento” do incêndio, havia cerca de 40 pessoas no lo- a consolidação da Atenção Básica no Brasil, cal. As 7 vítimas fatais estavam trancafiadas ampliando sua abrangência e resolubilidade. de drogadição baseado no princí- em salas com grades em todas as aberturas São equipes multiprofissionais que devem pio da abstinência e exclusão – a e cadeados na porta, que funcionários não trabalhar de forma integrada às equipes de um modelo psicossocial – orientado conseguiram abrir em meio ao incêndio. Há, Saúde da Família, apoiando-as e comparti- ainda, relatos de que o local tinha poucos fun- lhando saberes. A lógica do trabalho deve ser por projetos terapêuticos singula- cionários para o número de internos. A causa o apoio matricial. (Nota da IHU On-Line) res, feitos em conjunto por equi- do incêndio foi um curto-circuito. A polícia 18 A entrevistada se refere ao filme Se puó pes interdisciplinares e incluindo indiciou 6 pessoas por homicídio qualificado, fare, de 2008, dirigido por Giulio Manfredo- o usuário com familiares, se pos- com dolo eventual. (Nota da IHU On-Line) nia. O filme está disponível no site da Rede 20 A Moção, intitulada “Trancar não é HumanizaSUS, em http://bit.ly/2aLZIJU. sível, pautado pelo cuidado em Tratar”, está disponível em http://bit. (Nota da IHU On-Line) liberdade. ly/2aWpFUz. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— Intermitências no cotidiano: a clínica como resistência inventiva. Artigo de Mário Francis Petry Londero e Simone Mainieri Paulon, publicado em Cadernos IHU ideias, número 9, de 2011, disponível em http://bit.ly/2aM7mAp.

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Quando o Estado não resolve sua equação Cristiani Machado entende que “a dinâmica capitalista é geradora de desigualdades socioeconômicas”, por isso se faz necessária a intervenção do Estado. Quando ela não ocorre, o capitalismo se fortalece na mesma proporção das desigualdades

Por Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

ara a médica sanitarista e doutora em sistema público e universal de saúde estão no Saúde Coletiva Cristiani Vieira Macha- mesmo bojo. “Ao permitir a expansão concreta Pdo, o sistema capitalista é parte de do acesso a ações e serviços de saúde em todo uma equação que precisa ser resolvida. Quan- o país nas últimas décadas, de forma não atre- do o Estado deixa a dinâmica capitalista fluir, lada à capacidade de pagamento, de idade, de ela cresce e acaba pondo o Estado a serviço condição de saúde, o SUS se configurou como dela. Daí a importância de intervenção para um dos maiores sistemas públicos de saúde do regulação dos mercados, assegurando não só mundo”. lucro de uns, mas bem-estar social de muitos. “A dinâmica capitalista é geradora de desigual- Na entrevista a seguir, concedida por e-mail dades socioeconômicas. Assim, mercados não à IHU On-Line, a sanitarista também demons- regulados tendem a aprofundá-las”, completa. tra como a mesma Constituição assegura a Atravessando essa perspectiva para Saúde, é viabilidade de financiamento desse Sistema. O 23 possível entender porque a defesa de uma po- problema é que interesses políticos e econômi- lítica pública como o Sistema Único de Saúde cos empurram o Estado para a permissividade, – SUS pode ser compreendido como uma defe- não resolvem a parte da equação que limita o sa à democracia. “Defender o SUS é defender capital. que a saúde é direito, e não mercadoria. Isso Cristiani Vieira Machado é médica sanitarista, é essencial para uma verdadeira democracia”, dispara. E explica: “o SUS se baseia em uma com doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto concepção ampliada de saúde e em princípios de Medicina Social da Universidade do Estado do de solidariedade social. As noções de direito Rio de Janeiro – IMS/UERJ e pós-doutorado em à saúde, universalidade, atenção integral, são Ciência Política pela University of North Carolina fundamentais em uma sociedade democrática, at Chapel Hill (EUA). É pesquisadora e docente se considerarmos uma noção substantiva de da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação democracia, que não se restringe à dimensão Oswaldo Cruz – ENSP/Fiocruz e atualmente co- formal (eleitoral/representativa)”, analisa. ordena o Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da mesma instituição. Cristiani ainda vai à Constituição Cidadã de 1988 para demonstrar como a democracia e o Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que defender se articulou no contexto da rede- transformação ampla da sociedade o Sistema Único de Saúde – SUS mocratização, em defesa de uma e da forma de atuação do Estado, significa defender a democracia? visando à expansão de direitos po- Cristiani Vieira Machado – Nos mudanças e transformações necessárias na líticos, civis e sociais. A crítica ao área da saúde. Essas mudanças não abarca- 1 sistema de saúde conformado até anos 1980, o movimento sanitário vam apenas o sistema, mas todo o setor saú- de, em busca da melhoria das condições de então – marcado pela fragmenta- 1 Reforma Sanitária: o movimento da Re- vida da população. As propostas da Reforma ção, desigualdades no acesso, favo- forma Sanitária nasceu no contexto da luta Sanitária resultaram na universalidade do di- recimento do setor privado e pouca contra a ditadura, no início da década de reito à saúde, oficializado com a Constituição 1970. A expressão foi usada para se referir ao Federal de 1988 e a criação do Sistema Único efetividade em termos de resulta- conjunto de ideias que se tinha em relação às de Saúde – SUS. (Nota da IHU On-Line) dos sanitários – levou à construção

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mica e social, vis-à-vis o funciona- mento dos mercados. O papel do Estado, ao menos de um ‘Estado Social’, deve ser o de Nos anos Lula, houve avanços frear a ação e os efeitos negativos dos mercados, buscando promo- em políticas redistributivas na ver a redistribuição e o bem-estar área econômica e social. No en- social. Mas a ação do Estado nos diversos contextos expressa a in- tanto, em todo o período proble- teração de diferentes forças polí- ticas, cujo poder – no sentido da mas estruturais do sistema de influência sobre a ação estatal – é saúde não foram equacionados diferenciado. Por isso, não existe ampliação efetiva de direitos sem luta social. de uma agenda progressista, que ção de instâncias de negociação transcendia o setor saúde. O Siste- intergovernamental e de controle A Constituição de 1988 adotou ma Único de Saúde – SUS foi con- social, que ampliaram a partici- uma concepção ampla de Seguri- cebido nesse contexto. Mais do que pação de atores na política, como dade Social, de base universalis- ta, compreendendo as políticas de um arranjo administrativo, era uma uma contribuição adicional para a Previdência, Saúde e Assistência proposta situada em um ‘projeto ci- democratização das políticas pú- Social. Essa arquitetura se aproxi- vilizatório’ mais amplo, como dizia blicas. Esse processo, nas últimas 2 ma da visão de um ‘Estado Social’, Sergio Arouca , em uma aposta em quase três décadas, sofreu per- ou seja, que tem o papel de asse- uma sociedade mais justa. calços e expressou contradições. gurar patamares amplos de cida- Alguns avanços foram lentos e hou- O SUS se baseia em uma concepção dania e bem-estar. Isso porque re- ampliada de saúde e em princípios ve muita luta política para evitar úne sob um princípio universalista de solidariedade social. As noções retrocessos. A construção do SUS políticas historicamente de base de direito à saúde, universalidade, é concomitante à construção da corporativa (Previdência); de cará- atenção integral, são fundamentais nossa democracia pós-1988 e indis- ter focalizado (Assistência) ou seg- 24 em uma sociedade democrática, se sociável dela, em uma relação de mentado (saúde), tanto no sentido considerarmos uma noção substanti- mão dupla. da dualidade institucional entre va de democracia, que não se res- Não por acaso, nesse momento saúde pública e assistência média tringe à dimensão formal (eleitoral/ em que se evidenciam fragilidades individual, como no padrão das re- representativa). Ao permitir a ex- na nossa democracia – expressas lações entre Estado e mercado. pansão concreta do acesso a ações pelo caráter da grande mídia, do e serviços de saúde em todo o país Ademais, a Constituição propôs nosso sistema político-partidário, nas últimas décadas, de forma não um Orçamento da Seguridade So- pela atuação do Judiciário, do Le- atrelada à capacidade de pagamen- cial, que deveria reunir recursos to, de idade, de condição de saúde, gislativo e das elites econômicas, de fontes variadas (contribuições o SUS se configurou como um dos por fim, pelo golpe parlamentar sociais e impostos de diversos ti- maiores sistemas públicos de saúde em curso, a política social e o SUS pos) para financiar as três áreas. do mundo. O alargamento do campo estão sob graves riscos. Defender Essa proposta visava colocar a po- dos direitos sociais no país – entre o SUS é defender que a saúde é lítica social no centro das respon- eles, o direito à saúde – constitui um direito, e não mercadoria. Isso sabilidades do Estado, ao se buscar elemento decisivo para a nossa de- é essencial para uma verdadeira estabilidade para o financiamento mocracia em construção. democracia. da área social, preservando-a de eventuais crises econômicas. Mas esse orçamento nunca foi plena- Avanços e retrocessos IHU On-Line – Qual o papel do mente implantado. Ou seja, o de- Estado na garantia da proteção senho constitucional expressa um O processo de implementação social em saúde? O que a Consti- pacto social amplo, ao enfatizar o do SUS também envolveu a cria- tuição dispõe sobre isso? dever do Estado em garantir a saú- 2 Antônio Sérgio da Silva Arouca (1941- Cristiani Vieira Machado – A di- de como direito de cidadania, im- 2003): foi um médico sanitarista e político nâmica capitalista é geradora de putando-lhe responsabilidades no brasileiro. Como médico, como parlamentar desigualdades socioeconômicas. financiamento, no planejamento e ou como militante partidário, Arouca sempre procurou debater e apresentar propostas as- Assim, mercados não regulados na prestação de serviços de saúde, sociadas, predominantemente em questões tendem a aprofundá-las. Sempre além da regulação de mercados. das áreas da saúde e da ciência e tecnologia. existem diferentes projetos em Foi uma das principais lideranças do movi- mento da Reforma Sanitária. (Nota da IHU disputa sobre o que o Estado deve IHU On-Line – Como a senhora On-Line) ou não deve fazer na área econô- avalia a formulação e implemen-

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tação, em específico nos dias atu- plantação de políticas específicas e sistema público e ampliação do es- ais, das políticas públicas volta- da expansão de cobertura. paço de agentes privados na saúde. das para a saúde? Porém, a implementação do SUS Cristiani Vieira Machado – Bem, sofreu constrangimentos importan- IHU On-Line – Quais os impactos para falar em ‘dias atuais’, em pri- tes. Nos anos Lula, houve avanços de uma política de saúde finan- meiro lugar é necessário separar o em políticas redistributivas na ceirizada, atravessada pela lógica período de vigência democrática área econômica e social, um con- do capital, que insufla planos de – 1988 a 2015 – do momento que texto mais favorável. No entanto, saúde privados? estamos vivendo hoje, que expres- em todo o período problemas es- Cristiani Vieira Machado – Em sa uma ruptura do pacto democrá- truturais do sistema de saúde não uma economia capitalista, Estado tico pós-constitucional. Em segun- foram equacionados. Por exemplo, e mercados atuam de forma im- do lugar, se falamos em ‘políticas no âmbito do financiamento e das bricada e interdependente. His- públicas voltadas para a saúde’, relações público-privadas na saú- toricamente, os Estados Nacionais entendo que não estamos apenas de. Os avanços na saúde foram são importantes na promoção e considerando as políticas setoriais, duramente alcançados mediante sustentação de mercados, e as po- mas o conjunto de políticas que re- luta dos atores defensores do SUS, líticas públicas com frequência são percutem sobre a saúde. Ou seja, a com certa proteção pelo pacto influenciadas pela dinâmica capita- relação entre políticas econômicas constitucional. lista e por interesses de mercado. e sociais, e a inserção da saúde no Assim, a política social expressa sistema de proteção social como Política de saúde no fortemente as contradições estru- um todo. atual momento turais do Estado capitalista que, de um lado, promove os mercados e Políticas de saúde no O que estamos vivendo agora é é sustentado por eles e, de outro, período democrático diferente. Um governo interino, precisa impor limites ao seu funcio- que não foi eleito pelo voto popu- namento. O setor saúde mobiliza Em uma democracia, governos lar, que chegou ao poder mediante fortes interesses privados, não só eleitos pelo voto popular, com base um golpe parlamentar que afastou relativos à prestação de serviços, em um dado programa, são legíti- (por enquanto, temporariamente) mas também à ciência e tecnolo- mos e têm que prestar contas aos uma presidente democraticamen- gia, desenvolvimento, produção e eleitores; na maior parte dos siste- te eleita, está implantando uma comercialização de tecnologias, 25 mas políticos, eles precisam fazer plataforma política de corte neo- insumos e produtos para a saúde. coalizões e pactos para governar liberal e neoconservador, que não Cabe destacar que o setor priva- (o nosso sistema é complexo nes- foi legitimada pelas urnas. E está do já havia se expandido na saú- se sentido). Então de 1990 a 2015, fazendo isso de forma rápida e de desde ao menos a década de nós tivemos governos democratica- agressiva. As propostas relativas à 1960, sob diversos incentivos do mente eleitos, em que pesem suas Administração Pública, às políticas Estado. A Constituição instituiu o diferenças. A análise do contexto sociais e de saúde rompem com SUS com base em princípios e di- de formulação e implementação o pacto constitucional de 1988 e retrizes abrangentes, mas também das políticas de saúde no período destroem avanços alcançados com reafirmou a saúde como ‘livre à ini- democrático pode ser mais bem dificuldades durante 25 anos. É um ciativa privada’ e autorizou a con- compreendida em quatro momen- escândalo. O SUS corre riscos gra- tratação, pelo Estado, de serviços tos: (a) o início dos anos 1990, pe- ves de desmantelamento. privados em caráter complemen- ríodo correspondente aos governos Um exemplo é que pela primeira tar, refletindo os conflitos de pro- Collor e Itamar (1990-1994); (b) os vez, desde 1990, temos um minis- jetos e interesses então presentes governos FHC (1995-2002); (c) os tro da Saúde que faz declarações na sociedade brasileira. governos Lula (2003-2010); (d) o contrárias ao SUS, que defende governo Dilma (2011-2015). Em todo o período de implanta- abertamente propostas sem ne- ção do SUS até o momento, uma Em cada um desses momentos, nhuma consistência técnica do contradição central foi que o sis- houve avanços e percalços. Nos ponto de vista sanitário, que só tema público se expandiu, mas os anos 1990, a implementação das vem atender interesses de grupos segmentos privados também, com políticas de saúde ocorreu sob a privados que querem expandir seus intenso dinamismo, sendo evidente influência de duas agendas: a da mercados. Essa proposta de cria- inclusive uma tendência à financei- reforma sanitária brasileira e a de ção de planos de saúde populares rização e internacionalização. A Lei reforma do Estado, de inspiração com pacotes restritos colide com que altera a Constituição e permi- neoliberal. Apesar disso, o marco a legislação atual e é totalmente te a entrada do capital estrangeiro constitucional representou uma absurda. Está claro que isso não mesmo na prestação de serviços base para a luta política dos atores resolveria os problemas de saúde de saúde exemplifica esse avanço setoriais e foram possíveis avanços da população brasileira, mas é um do privado, uma questão não en- em termos institucionais, da im- projeto de desmantelamento do frentada mesmo pelos governos de

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centro-esquerda de Lula e Dilma. da população sob sua responsa- Enfrentar A Agência Nacional de Saúde não bilidade, ouvir as demandas da desigualdades atuou para restringir esses merca- sociedade e defender, no âmbito dos, ao contrário, sempre houve dos governos, o desenvolvimento Outro desafio é justamente a altos dirigentes da agência ligados de políticas públicas intersetoriais consideração das diversidades e aos segmentos dos planos que de- que contribuam para a melhoria das desigualdades (territoriais, fenderam internamente os inte- das condições de vida e de saúde culturais, entre diversos grupos so- resses desse segmento. A situação da população. ciais), na formulação e implemen- tende a se agravar nesse contexto tação das políticas de saúde. O país adverso do governo (sem voto) de IHU On-Line – Como administrar vem passando por transformações Michel Temer. um projeto como o SUS em um demográficas, epidemiológicas e país continental como o Brasil? sociais muito importantes nas últi- IHU On-Line – Qual a importân- Quais são os principais desafios? mas décadas, que se expressam de cia de pensar as políticas públi- forma heterogênea entre regiões Cristiani Vieira Machado – O Bra- cas, especialmente as da área da e grupos sociais. Por exemplo, a sil é um país continental, federa- saúde, de forma multidisciplinar, mortalidade infantil caiu muito nas tivo, diverso e extremamente de- conectada a diversos programas últimas décadas nacionalmente, sigual. Para implementar políticas de diversas áreas? mas ainda é elevadíssima na po- públicas de saúde em um país com pulação indígena. É necessário ter Cristiani Vieira Machado – A si- essas características, um primeiro políticas que considerem as carac- tuação de saúde de uma população desafio é a coordenação federati- terísticas e necessidades dos povos é influenciada por diferentes fato- va. Ou seja, a coordenação entre indígenas, o que tem relação com res, ou seja, por condições socio- esferas de governo no alcance de questões mais amplas, como a dis- econômicas de vida, de trabalho, objetivos sanitários, o que requer tribuição das terras e o respeito ao questões ambientais, entre outras. a definição de responsabilidades A Constituição de 1988 explicita modo de vida dessas populações. de cada esfera e o desenvolvi- que a saúde deve ser garantida Outro exemplo: as mortes por vio- mento de ações articuladas entre mediante políticas econômicas e lência são muito mais expressivas elas. A descentralização não pode sociais abrangentes. Fazer política entre homens jovens, negros e po- significar desresponsabilização ou de saúde não é somente implan- bres. Então não há como formular redução de atribuições das esferas 26 tar programas setoriais específi- política de saúde sem considerar que descentralizam (federal ou es- cos ou aumentar a cobertura de as determinações sociais desses tadual), mas sim uma redefinição serviços de saúde (em que pese a processos. de suas atribuições no sentido do sua importância). A melhoria das fortalecimento do sistema público A dimensão territorial também condições de saúde do conjunto e da redução das desigualdades. precisaria ser considerada seria- da população e a redução das de- Assim, ainda que o SUS enfatize a sigualdades em saúde dependem mente na formulação e implemen- da articulação das políticas de descentralização da execução de tação das políticas de saúde. As saúde com políticas econômicas ações e serviços, com ênfase nos diferentes dinâmicas e usos dos redistributivas (melhoria da distri- municípios, as esferas federal e territórios importam para as con- buição de renda), de educação, de estadual precisam exercer um pa- dições de saúde e de organização trabalho, de segurança alimentar, pel positivo para assegurar a saú- do sistema de saúde. Por exemplo, de saneamento, de habitação, de de como direito de cidadania na- não dá para formular políticas de transporte público, de segurança cional, havendo responsabilidades saúde da mesma forma nas regi- pública, entre outras. Além disso, próprias dessas esferas. ões metropolitanas, nas regiões de fronteiras e nas regiões de baixa depende de políticas de saúde pú- Por exemplo, cabe à União a concentração populacional, como blica de interesse coletivo (vigilân- defesa dos interesses de saúde determinadas áreas da Amazônia cia sanitária, controle de vetores, pública no plano internacional, a Legal. entre outras) e do acesso a serviços regulação de mercados em saúde, de saúde oportunos e de qualida- a promoção do desenvolvimento A implementação do SUS, diante de nos diversos níveis de atenção, científico e tecnológico em saúde, desses desafios, exige profundo co- diante do complexo quadro demo- o estímulo à produção nacional de nhecimento das distintas realida- gráfico e epidemiológico em nosso insumos relevantes para o SUS, a des sociais, coordenação entre as país. adoção de políticas de financia- políticas setoriais e da saúde com Assim, as autoridades sanitárias mento setorial de caráter redistri- outros setores, e planejamento de nas diversas esferas de governo butivo, a realização de investimen- curto, médio e longo prazo, com a precisam ter essa visão abran- tos para assegurar o acesso a ações finalidade de alcançar condições gente, buscar compreender os e serviços de alta complexidade e de vida mais dignas e a redução das determinantes sociais da saúde, custo no SUS e para reduzir as desi- desigualdades sociais e de saúde no conhecer os problemas de saúde gualdades em saúde. país.

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Parasitismo do privado no público Carlos Octávio Ocké-Reis entende que o setor privado da Saúde atua como uma espécie de parasita do Estado, pois socializa seus custos, restringe atendimentos e sangra a política pública de saúde universal

Por Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

magine ter um sócio que está governamentais)”. Para Ocké-Reis, o sempre pronto para dividir as que não se pode perder de vista são os Idespesas. No entanto, na hora do avanços na constituição do SUS, estrei- lucro, ele some com os dividendos. De- tamente atrelado a conquistas cidadãs pois, aparece forte e potente enquan- inauguradas com a Constituição de to você está quase falido e exaurido 1988. Segundo ele, do atual momento do trabalho. Para o economista Carlos político e econômico do país emergem Octávio Ocké-Reis, é esse o molde da falsos problemas e soluções. relação entre o estatal e o privado na Carlos Octávio Ocké-Reis é econo- área da Saúde. “Em resumo, o mer- cado parasita o Estado, socializa seus mista, Técnico de Planejamento e Pes- custos”, dispara. Ocké-Reis explica que quisa do Instituto de Pesquisa Econô- o mercado de planos de saúde no Bra- mica Aplicada – IPEA, doutor em Saúde sil tem uma articulação estrutural com Coletiva pela Universidade do Estado o Estado. “No predomínio de relações do Rio de Janeiro – UERJ e pós-doutor 27 capitalistas, o Estado age para favore- pela Yale School of Management (New cer as condições de rentabilidade das Haven, EUA). Ainda é pesquisador visi- ‘operadoras’ por meio do fundo públi- tante nas universidades de York (York, co (subsídios), resolvendo em parte a Inglaterra), Columbia (Nova York, EUA) pressão dos custos e preços crescentes e Mannheim (Mannheim, Alemanha). – comum ao setor de serviços.” Em 2005, foi premiado na área da Economia da Saúde com o trabalho “A Na entrevista, concedida por e-mail à Reforma Institucional do Mercado de IHU On-Line, o economista demonstra Planos de Saúde: Uma Proposta para como o Estado se faz prisioneiro nessa Criação de Benchmarks”, organizado relação, constituindo um dilema: “ou pelo Ministério da Saúde, Ministério do estatiza o sistema (radicalizando seu Planejamento, Orçamento e Gestão, papel intervencionista), ou mantém a IPEA e The Department for Internatio- forma privada de atividades socialmen- nal Development (DFID/UK). te importantes, aplicando mecanis- mos de subvenção estatal (incentivos Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor mal compreendida: o mercado de Importante notar que o estado avalia a relação entre o Sistema planos possui uma articulação es- funciona de tal modo porque se Único de Saúde – SUS e os planos trutural com o Estado. No predomí- trata de socializar o custo de re- privados de saúde? Como um mo- nio de relações capitalistas, o Esta- produção da força de trabalho, delo impacta no outro? do age para favorecer as condições em especial dos trabalhadores do de rentabilidade das “operadoras” mercado formal ligados ao polo di- Carlos Octávio Ocké-Reis – Em por meio do fundo público (subsí- nâmico da economia. Desse modo, resumo, o mercado parasita o Es- dios), resolvendo em parte a pres- por razões políticas de legitimida- tado, socializa seus custos. Existe, são dos custos e preços crescentes de, o Estado seria prisioneiro do entretanto, uma questão teórica – comum ao setor de serviços. seguinte dilema: ou estatiza o sis-

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mais necessário regular o pre- ço, a cobertura e qualidade dos planos empresariais, que são a maioria do mercado, em particu- Tendo como pano de fundo um lar quando assistimos ao processo de concentração, centralização e programa econômico ultrali- internacionalização do mercado beral, pretende-se promover de serviços de saúde. Em outras palavras, junto com a melhoria um ataque à Constituição do SUS, é necessário reduzir o gasto das famílias e dos empre- tema (radicalizando seu papel in- IHU On-Line – Em que medida as gadores com bens e serviços pri- tervencionista) ou mantém a forma limitações do SUS são derivadas vados de saúde, mas para realizar privada de atividades socialmente da gestão? E em que medida de- tal tarefa é necessário fortalecer importantes, aplicando mecanis- correm do subfinanciamento em a capacidade regulatória do Es- mos de subvenção estatal (incenti- saúde pública? tado. Foi um absurdo internacio- vos governamentais). nalizar o mercado hospitalar sem Carlos Octávio Ocké-Reis – antes mesmo definir o seu quadro Como todo povo brasileiro, sou regulatório. IHU On-Line – O atual ministro contra a corrupção e o desperdí- 1 da Saúde, Ricardo Barros , reto- cio, devemos combatê-los. Mas IHU On-Line – Na prática, qual o ma o discurso de aumentar a “efi- boa parte dos problemas de gestão impacto econômico do SUS no or- ciência” do SUS. Mas o que está decorrem do seu estrangulamento çamento da União, principalmen- em jogo nesse discurso? financeiro, em especial no tocan- te comparando-o com os recursos te ao financiamento dos recursos Carlos Octávio Ocké-Reis – Na destinados ao serviço da dívida humanos – dimensão fundamental prática, o desmonte do SUS e a pública? privatização do sistema, onde todo para a melhoria da qualidade da esforço para melhorar as condições atenção à saúde. Isso não significa Carlos Octávio Ocké-Reis – Sem 28 de saúde dos trabalhadores e das desconhecer eventuais problemas contar com os subsídios destina- famílias brasileiras ficará à deriva, relativos ao modelo assistencial, dos ao mercado, que alcançam prejudica os recentes avanços ob- bem como à alocação de recursos. aproximadamente 0,5% do Pro- tidos no combate à desigualdade. Entretanto, eficiência entendida duto Interno Bruto – PIB, o gasto Pior: na atual conjuntura, uma vi- como garantia da eficácia e da público total em saúde atingiu 4% são fiscalista, que prega o fomen- segurança das ações e serviços de do PIB em 2015, menos da meta- to do mercado de planos de saú- saúde exigiria mais recursos finan- de do que o governo atualmente de como solução pragmática para ceiros e organizacionais – e não destina para o pagamento dos en- desonerar as contas públicas, é menos. cargos financeiros da União. Nessa sustentada por setores golpistas e linha, a Proposta de Emenda Cons- economicistas do governo interino IHU On-Line – Como o senhor titucional – PEC 2413 do governo e ilegítimo de Michel Temer. Isso, avalia a atuação da Agência Na- interino é uma verdadeira ameaça na verdade, é uma bobagem, uma cional de Saúde Suplementar – ao SUS. Tendo como pano de fun- vez que boa parte da clientela da ANS? De que forma ela poderia do um programa econômico ultra- medicina privada usa largamente contribuir com o trabalho realiza- liberal, pretende-se promover um o SUS. Darei apenas três exem- do pelo SUS? ataque à Constituição, apoiando- plos: oncologia, transplante e di- -se na ideologia do Estado mínimo: Carlos Octávio Ocké-Reis – álise (para não falar do programa Continua prevalecendo uma espé- de AIDS, do banco de sangue ou da 3 A Proposta de Emenda Constitucio- cie de laissez-faire2 regulatório. nal – PEC 241, de autoria do Executivo, na urgência-emergência). Considerando o envelhecimento gestão do governo interino de Michel Temer, estabelece um limite para os gastos públicos e 1 Ricardo José Magalhães Barros populacional, torna-se cada vez prevê o congelamento de gastos públicos por (1959): é político, engenheiro civil e empresá- 20 anos. Conforme especialistas no setor de rio brasileiro. Foi Deputado Federal e prefei- 2 Laissez-faire é hoje expressão-símbolo Saúde, pode resultar na redução de 12 bilhões to de Maringá, PR, é ministro da Saúde. Foi do liberalismo econômico, na versão mais de reais em repasses para a área, nos próxi- nomeado em 12 de maio de 2016 ministro da pura de capitalismo de que o mercado deve mos dois anos. Para saber mais sobre a PEC Saúde pelo presidente Michel Temer, após o funcionar livremente, sem interferência, ape- 241, acesse a entrevista com Grazielle David, afastamento da presidente nas com regulamentos suficientes para prote- intitulada PEC 241/16: Uma afronta à saúde, em razão do processo de impeachment. Tam- ger os direitos de propriedade. Esta filosofia aos direitos sociais e à Constituição, publica- bém é vice-presidente nacional do Partido tornou-se dominante nos Estados Unidos e da nas Notícias do Dia de 11-07-2016, no sítio Progressista – PP e Presidente do Conselho nos países da Europa durante o final do sé- do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- Nacional dos Secretários de Desenvolvimen- culo XIX até o início do século XX. (Nota da ponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota da to Econômico. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) IHU On-Line)

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o problema é o tamanho do SUS esquema beveridgiano5 e similar gra constitucional (Emenda Consti- e as vinculações constitucionais. ao modelo americano, após o fim tucional 86). Em compensação, não há medi- do Instituto Nacional de Assistên- das para penalizar os mais ricos, cia Médica da Previdência Social IHU On-Line – Como é possível 6 achatar as desonerações fiscais – INAMPS , o sistema brasileiro se superar o paradigma do lucro nos dos empresários ou para reduzir travestiu em um mix paralelo e planos e seguros de saúde priva- os juros. O ajuste fiscal acaba se duplicado, em que o setor privado dos? É possível regular o merca- concentrando nas despesas que estabeleceu, como dissemos ante- do? Como? garantem os direitos sociais como riormente, uma relação parasitária meio de criar superávits primários com o SUS e com o padrão de finan- Carlos Octávio Ocké-Reis – Con- crescentes, visando à diminuição ciamento público. siderando os pesados interesses da dívida pública, um “austericí- econômicos, eu apontaria seis dio”, como disse o professor Del- desafios para reformar as insti- fim Netto4. tuições deste mercado: 1) alte- rar o artigo 199 da Constituição (transitar da livre iniciativa para IHU On-Line – Em seu livro SUS: o regime de concessão); 2) regu- o desafio de ser único (Rio de Ja- Boa parte dos lamentar o preço, cobertura e neiro: Editora Fiocruz, 2012), o problemas de qualidade dos planos coletivos em senhor faz um retrato do Siste- uma perspectiva mutualista (se- ma Único de Saúde desde 1989. gestão [do SUS] guro social); 3) fortalecer a ANS Como ele se caracteriza no Brasil decorrem do seu para superar a “autorregulação” pós-redemocratização? Qual a im- econômico-financeira dos planos portância e a necessidade deste estrangulamen- de saúde, sob pena de macular os serviço ser universal? to financeiro critérios prudenciais exigidos para Carlos Octávio Ocké-Reis – Em o funcionamento do mercado; 4) plena recessão, diante de doenças reduzir ou eliminar a renúncia de Observe os subsídios destinados transmissíveis, não transmissíveis e arrecadação fiscal em prol do fi- ao consumo de planos privados de dos agravos decorrentes de causas nanciamento público do SUS; 5) saúde, que alcançaram 10,5 bi- 29 externas, a miopia neoliberal e seu disciplinar legalmente os limites lhões de Reais em 2013. Isto é, des- terrorismo fiscal acabarão impon- de seu nascimento predominou um da filantropia, do liberalismo e do pesados custos catastróficos às subfinanciamento crônico, quando do empresariamento na prestação famílias. É uma cópia perversa do na verdade precisávamos de mais médico-hospitalar; e 6) planejar a modelo dos Estados Unidos. A Cons- recursos para preencher os pressu- incorporação de tecnologia tendo tituição Federal de 1988 definiu a postos constitucionais do SUS. Na como base a integralidade e as ne- saúde como “dever do Estado” e ordem do dia a aprovação da PEC cessidades da saúde pública. “direito do cidadão”. Pela letra da 01-D/2015, que pode ampliar essa lei, todo cidadão pode utilizá-lo de magnitude no contexto da atual re- IHU On-Line – Como o senhor acordo com suas necessidades so- avalia a relação do Estado com a ciais, independentemente da capa- 5 Princípio baseado na teoria de William classe médica? Os sindicatos mé- cidade de pagamento, inserção no Henry Beveridge (1879 –1963). Ele foi um dicos têm agido mais no sentido mercado de trabalho ou condição economista e reformista social britânico. Elaborou em 1942, durante a Segunda Guer- de colaborar ou de inviabilizar a de saúde. Entretanto, diferente do ra Mundial, o Report on Social Insurance universalidade do SUS? Que ten- and Allied Services, conhecido como Plano 4 Antônio Delfim Netto (1928): econo- Beveridge, visando libertar o homem da ne- sionamentos estão em jogo? mista, professor universitário e político bra- cessidade. Propôs que todas as pessoas em sileiro. Foi ministro da Fazenda nos anos de idade de trabalhar deveriam pagar uma con- Carlos Octávio Ocké-Reis – Não 1967 a 1974 e embaixador do Brasil na Fran- tribuição semanal ao Estado. (Nota da IHU podemos satanizar os médicos. ça entre 1974 e 1978, nomeado ministro da On-Line) Eles e os profissionais de saúde pre- Agricultura em 1979 e do Planejamento de 6 Instituto Nacional de Assistência Mé- 1979 a 1985. Deputado Constituinte por São dica da Previdência Social – INAMPS: cisam receber melhores salários e Paulo de 1987 a 1988 e Deputado Federal por foi uma autarquia federal vinculada ao Minis- condições de trabalho no setor São Paulo desde 1988. Em junho de 2016, foi tério da Previdência e Assistência Social (hoje intimado pela Polícia Federal, pela delegada Ministério da Previdência Social), e foi criado público. A Lei de Responsabilidade da Operação Lava Jato, para prestar escla- pelo regime militar em 1974 pelo desmem- Fiscal foi feita por tecnocratas, não recimentos aos investigadores sobre por que bramento do Instituto Nacional de Previdên- dosaram seus efeitos colaterais na recebeu, segundo seu sobrinho, R$ 240 mil cia Social (INPS), que hoje é o Instituto Na- em dinheiro vivo entregues pelo “departa- cional de Seguridade Social (INSS). O Institu- área social. Em contrapartida, pa- mento de propina” da maior empreiteira do to tinha a finalidade de prestar atendimento rece urgente disciplinar a inserção país em 22 de outubro de 2014 no escritório médico/dentário aos que contribuíam com a dos médicos no interior do mix pú- do advogado e sobrinho do ex-ministro Luiz previdência social, ou seja, somente aos con- Appolonio Neto, na capital paulista. (Nota da tribuintes de toda forma e seus dependentes. blico/privado: a dupla militância, IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) às vezes tripla, resulta em menos

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qualidade e relações predatórias a atenção primária (prevenção), melhorar a qualidade de vida dos com o SUS. reorienta o modelo assistencial brasileiros. Afinal, não há dúvida e a formação profissional (ne- acerca do papel indutor das polí- O médico Aloysio Campos da Paz cessidades de saúde da popula- ticas de saúde sobre o emprego, Júnior7, fundador da Rede Sarah, ção) e democratiza o acesso dos a produção, a renda e a inovação chegou a sugerir que quem traba- serviços SUS às populações mais tecnológica. Veja o alto valor agre- lhasse no setor privado não pode- vulneráveis. Isso fustiga o poder gado do setor de biotecnologia. A ria trabalhar no setor público, por econômico, e por isso mesmo, é natureza redistributiva do SUS pa- exemplo, nos hospitais univer- abertamente combatido pelo mi- rece igualmente evidente (descon- sitários. Agora, observe como o nistro privatista da saúde Ricardo centradora de renda), bem como programa Mais Médicos8 fortalece Barros, que propôs a aberração suas implicações sobre a produti- dos planos “populares” (sic) de vidade do trabalho, o bem-estar 7 Aloysio Campos da Paz Júnior (1934- 2015): médico pela Universidade Federal do saúde. social e o crescimento econômico. Rio de Janeiro – UFRGS, integrou a primeira equipe médica do Hospital Distrital de Bra- Menos claro, entretanto, é com- sília em 1960, implantando a Unidade de IHU On-Line – O SUS é viável preender seu caráter anticíclico Traumato-Ortopedia. Em 1961, assumiu a economicamente? Por quê? Como no atual quadro recessivo da eco- Direção do então Centro de Reabilitação Sa- fazer? rah Kubitschek. Realizou Pós-Graduação em nomia brasileira: seja combatendo Ortopedia e Reabilitação na Oxford Univer- Carlos Octávio Ocké-Reis – É o desemprego, seja melhorando sity – Inglaterra em 1963/1964 e Doutorado as condições de saúde da força de em Ortopedia e Traumatologia na Universi- preciso entender, a um só tempo, dade Federal de Minas Gerais em 1966. Em a saúde como determinante para trabalho, ou ainda, sedimentando 1975, criou o “Plano para desenvolvimento fomentar o mercado interno, para terreno para retomada de um ci- de um programa regional de ortopedia e re- clo de desenvolvimento inclusivo e abilitação” que originou o Instituto Nacional reduzir as desigualdades e para de Medicina do Aparelho Locomotor – SA- sustentado. Como esse “programa RAH. Coordenou também o Comitê de Saú- país e nas periferias das grandes cidades do mínimo” está fora da agenda dos de da Assembleia pré-Constituinte Comissão Brasil. O formato da “importação” de médi- golpistas, fica claro que, se -o im Affonso Arinos. Em 1982, iniciou a expansão cos de outros países foi alvo de duras críticas do Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek de associações representativas da categoria, peachment for aprovado no final com a fundação de uma nova unidade hospi- sociedade civil, estudantes da área da saúde e do mês no senado, sofreremos uma talar em Brasília. (Nota da IHU On-Line) inclusive do Ministério Público do Trabalho. tremenda regressão dos direitos 30 8 Mais Médicos: programa de Estado lan- Confira as publicações do Instituto Humani- çado em 2013, cujo objetivo é suprir a carên- tas Unisinos – IHU acerca do tema em http:// sociais, uma verdadeira tragédia cia de médicos nos municípios do interior do bit.ly/2aVtcTh. (Nota da IHU On-Line) em pleno século XXI.

■ LEIA MAIS... —— Porque o SUS perde com os subsídios na saúde. Artigo de Carlos Octávio Ocké-Reis – Notícias do Dia de 28-10-201, disponível em http://bit.ly/2aPefmS.

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A inanição de um organismo desidratado José Antonio Sestelo analisa um esquema em que agentes econômicos atuam na saúde apenas como mais um de seus negócios. Pleiteiam irrigação pelo Estado enquanto políticas públicas vão secando

Por João Vitor Santos

ara José Antonio Sestelo, vice-pre- deu errado nos Estados Unidos como se fos- sidente da Associação Brasileira de se uma novidade”, alerta. Na entrevista a PSaúde Coletiva – ABRASCO, a ten- seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, são que há entre os sistemas público e pri- ainda evidencia que há mais em jogo. Para vado de assistência à saúde no país é mais ele, a equipe do governo interino de Michel complexa do que parece. Num primeiro Temer trabalha para hidratar o sistema fi- momento, pode-se concluir que o privado nanceiro, enquanto vai matando políticas quer suplantar o público para “herdar” seus públicas por inanição, revogando direitos pacientes. Porém, a realidade é outra. “A sociais inaugurados com a Constituição de expectativa dos agentes econômicos envol- 88. “No Brasil é evidente a caducidade dos vidos com esse esquema de comércio é que protagonistas atuantes na cena política. O o SUS continue existindo como um sistema governo interino cheira à naftalina, mas pobre para pobres e um resseguro para os muitos dos que, em tese, fazem oposição estratos médios de renda”, explica. Assim, a ele, poderiam ser guardados no mesmo o desejo real dos agentes que tratam a saú- sarcófago”, dispara. 31 de como negócio é de que o “governo au- José Antonio de Freitas Sestelo é gra- torize o aumento da base de arrecadação duado em Odontologia, com especialização das empresas a partir de planos individuais em Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo baratos de baixa cobertura”. “Não tem di- Facial, pela Universidade Federal da Bahia nheiro para políticas sociais, mas uma das – UFBA. Possui mestrado em Saúde Comuni- principais rubricas orçamentárias permane- tária pelo Instituto de Saúde Coletiva – ISC ce intocada: despesas financeiras com juros da UFBA e é doutorando em Saúde Coletiva e amortizações da dívida pública interna”, pela Faculdade de Medicina/Instituto de completa. Estudos em Saúde Coletiva da Universidade O caráter universal do SUS não impede Federal do Rio de Janeiro – IESC/UFRJ. Atu- que isso ocorra, pois a intenção é oferecer almente é pesquisador do Grupo de Pesqui- atendimentos a todos e compor a atenção sa e Documentação sobre Empresariamento à saúde de forma sistêmica. O problema é da Saúde – GPDES na UFRJ, onde estuda os que na mesma proporção em que os planos planos de saúde no Brasil dos anos 2000 buscam mais recursos, diminui o orçamento em ambiente de dominância financeira, e também é Vice-presidente da Associação da saúde pública. Para Sestelo, é uma apos- Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. É ta num sistema que já se sabe que não dá Analista Judiciário do Tribunal Regional do certo. “Aqui as empresas têm apresentado Trabalho da 5ª região para área de saúde. uma pauta, integralmente assumida pelo atual ministro, que reatualiza tudo que já Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreen- José Antonio de Freitas Seste- mentação da assistência. São, por- der a lógica do Sistema Único de lo – O SUS pressupõe uma lógica tanto, lógicas distintas. Mas, além Saúde – SUS e em que medida essa sistêmica e integral, enquanto o disso, no caso brasileiro, são tam- lógica se contrapõe aos planos e esquema de comércio de planos e bém dinâmicas concorrenciais e seguros de saúde privados? seguros de saúde promove a seg- não suplementares. Os planos de

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saúde em geral ocupam um espa- um público e outro privado. Na Aqui as empresas têm apresenta- ço residual na maioria dos países verdade, muitos clientes das em- do uma pauta, integralmente assu- e dessa forma estão limitados aos presas sempre utilizaram a assis- mida pelo atual ministro, que rea- segmentos de renda mais elevada tência pública e deverão continuar tualiza tudo que já deu errado nos que querem e podem pagar por es- utilizando depois de deixarem os Estados Unidos como se fosse uma quemas assistenciais particulares e planos. Além disso, outros esque- novidade. Esse é um sintoma típico privativos. No Brasil, entretanto, mas assistenciais financiados por da defasagem das mentes coloniza- cerca de 25% da população utiliza desembolso direto têm florescido das em relação à metrópole. Eles planos de saúde a partir de subsí- na periferia de grandes cidades não se dão conta do sentido das dios à demanda patrocinados pelo com oferta de consultas e exames mudanças em curso e repetem uma Estado. complementares a preços popula- retórica ultrapassada. res, cartões de desconto e bônus A hipertrofia dos esquemas seg- de fidelidade. Trata-se de um fe- mentados constitui a principal Saúde pública nômeno ainda não analisado e de distorção e fonte de tensão per- extensão desconhecida. Não vejo nenhuma possibilidade manente entre as duas lógicas con- de ter uma política pública como o correnciais de funcionamento em Como a maioria dos clientes de SUS financiada por recursos priva- disputa. Na prática, o SUS funciona planos de saúde atualmente tem dos. Ao contrário, o que se propõe como uma estrutura de resseguro seu vínculo estabelecido por meio atualmente é que recursos públicos para as empresas que praticam a da relação de trabalho, é espera- financiem mais empresas privadas intermediação da assistência, fun- do que um aumento no nível de e esquemas assistenciais privati- cionando como pagador de última desemprego tenha impacto sobre vos. Talvez o modelo colombiano instância para despesas catastró- as carteiras de clientes das em- seja uma inspiração para essas pro- ficas e todas as situações que não presas. O que ainda não está claro postas; lá os recursos públicos são sejam economicamente rentáveis, é em que medida esses números quase que inteiramente repassados como atendimento a idosos e do- refletem apenas uma mudança de para uma extensa rede de agencia- entes crônicos. conjuntura macroeconômica ou dores e intermediadores privados. expressam os limites do modelo de Os programas preventivos, a negócios de intermediação assis- Eu diria que a expectativa dos promoção de saúde e a vigilância tencial fomentado pelo Estado. agentes econômicos envolvidos produzem externalidades positivas 32 com esse esquema de comércio é sobre o conjunto da população que que o SUS continue existindo como são capitalizadas pelas empresas IHU On-Line – Em que medi- um sistema pobre para pobres e um de planos de saúde. da essa redução de usuários de planos de saúde faz com que as resseguro para os estratos médios operadoras de saúde privadas de renda. E que o governo autorize IHU On-Line – No primeiro se- avancem sobre o SUS, numa pers- o aumento da base de arrecadação mestre de 2016, 910 mil pessoas pectiva de privatizar a saúde até das empresas a partir de planos deixaram os planos de saúde. O então financiada com recursos individuais baratos de baixa cober- que esse número revela, essen- públicos? E quais os riscos de se tura restaurando a situação que cialmente a planos privados? E o ter uma política pública, como vigorava até 1998. O que não está que representa para o SUS? o SUS, financiada por recursos claro é se os clientes em potencial José Antonio de Freitas Sestelo privados? vão aceitar esse engodo e comprar – Esse tema tem sido veiculado fre- o que eles querem vender. José Antonio de Freitas Sestelo quentemente pela imprensa como – Penso que um esquema de comér- se houvesse uma relação direta en- IHU On-Line – Quando o atual cio de planos e seguros de saúde tre diminuição da clientela de em- ministro da Saúde declara que a só pode ser sustentável se custar presas de planos de saúde e aumen- universalidade do SUS é inviável caro e for reservado para uma par- to da demanda na rede pública. O do ponto de vista de financia- cela pequena da população. Não é ministro interino da Saúde, Ricardo mento, o que está evidenciado? possível tratar esse modelo como Barros, também utiliza esse mes- E o que revela seu discurso sobre uma solução estrutural para ne- mo argumento de forma invertida a eficiência, a necessidade de nhum sistema de saúde. Está aí o ao afirmar que quanto mais pessoas “choque de gestão” no SUS, como exemplo dos Estados Unidos para forem clientes de planos de saúde, forma de fazer frente ao contin- demonstrar empiricamente o que melhor para o SUS. Penso que a genciamento de recursos? digo. Lá eles gastam quase 20% do questão não pode ser analisada de Produto Interno Bruto – PIB com José Antonio de Freitas Sestelo forma assim tão simplificada. saúde e sem resultados efetivos. – A declaração do ministro eviden- O argumento utilizado parte de Não por outro motivo, a reforma cia a existência de uma disputa po- uma premissa falaciosa que define do sistema de saúde foi e continua lítica pelos recursos do orçamento a existência de dois compartimen- a ser tema palpitante na disputa público. Não tem dinheiro para tos estanques no sistema de saúde, eleitoral daquele país. políticas sociais, mas uma das prin-

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cipais rubricas orçamentárias per- Nacional de Saúde – ANS. Como o prindo o princípio constitucional manece intocada: despesas finan- senhor avalia a fiscalização feita e passando a admitir a presença ceiras com juros e amortizações da sobre esses planos? de capital estrangeiro nos hospi- dívida pública interna. tais sem qualquer condicionante, José Antonio de Freitas Seste- se constitui uma ameaça ao SUS? É verdade que não é só aqui no lo – A fiscalização é pouco efetiva. Qual é a questão de fundo na mu- Brasil que esse novo regime global Como mencionei anteriormente, dança dessa Lei? de acumulação controlado pela penso que a principal falha na alta finança determina um -movi fiscalização sobre o comércio de José Antonio de Freitas Sestelo mento regressivo sobre políticas planos de saúde é a ausência de – Não há dúvida de que a mudança sociais. Temos assistido algo se- limites para a abrangência popu- na lei ofende a Constituição, mas melhante na Europa ultimamente. lacional desse esquema de inter- esse é também um caso típico onde Entretanto, no Brasil, diferente mediação. Isso compromete o con- a lei, na prática, era letra morta da Europa, há um déficit históri- junto do sistema e transforma algo sem que ninguém notasse. O capi- co de infraestrutura assistencial que deveria ser suplementar em tal estrangeiro já estava presente que precisa ser compensado e, ao concorrencial. na assistência de forma insuspeita. contrário do que ocorre nos países Além disso, o modelo de fiscali- centrais, no Brasil o nível de remu- A maneira como foi operada a zação praticado pela ANS tem sido neração dos ativos financeiros ul- mudança na lei também chama muito mais no sentido de assegurar trapassa qualquer limite razoável. atenção. Foi uma iniciativa do go- a saúde financeira das empresas e O ministro, portanto, está dizendo verno da época por meio de um de- que a riqueza do país deve ser re- diminuir o risco de quebras do que putado do baixo clero que inseriu servada para compromissos finan- de atuar de forma sinérgica com a um “jabuti” no meio de alterações ceiros nebulosos e nunca auditados lógica sistêmica do SUS. Na sua ori- de outros temas em nada relacio- e sonegada para as necessidades gem, na década de 1990, o modelo nados com a saúde. Não foi fruto reais de saúde da população de tra- fiscalizatório incorporado pela ANS de discussão pelo controle social, balhadores. É inacreditável que um fez uma síntese entre os interesses nem pelas entidades representati- ministro da Saúde não se disponha das grandes seguradoras dotadas vas do movimento da Reforma Sa- sequer a defender o orçamento da de um nível alto de capitalização e nitária Brasileira. Em outras pala- sua pasta. uma lógica atuarial estrita, os inte- vras, foi um “golpe” parlamentar. resses das empresas de medicinas 33 Uma falsa questão de grupo que haviam prosperado à Submissão sanitária à sombra da medicina previdenciária, lucratividade assim como das cooperativas médi- A expressão “choque de gestão” cas, que são um caso atípico sem é infeliz. Qualquer organização Em um ambiente de dominância precedentes conhecidos em outros pública ou privada precisa ter sua financeira, a participação societária países. O resultado foi uma colcha gestão permanentemente melho- de sócios estrangeiros em empresas rada e ajustada aos desafios que se de retalhos repleta de contradições. de assistência se dá por meio de apresentam. O ministro é o gestor Se, por um lado, o marco legal fundos de investimento de compo- federal do SUS e tem se mostrado, representado pela criação da ANS sição variada com investidores na- na minha opinião, um mau gestor. garantiu alguns direitos fundamen- cionais e estrangeiros abrigados sob Acho que gerir o SUS é um desafio tais para os clientes das empresas, a mesma plataforma. O fator mais que está além da sua capacidade também conferiu legitimidade a relevante nessa questão, a meu ver, e da de seus principais assessores. um esquema comercial que até é a submissão da lógica sanitária às expectativas de lucratividade no Essa antinomia entre subfinan- então havia prosperado de forma curto prazo trazidas para dentro do ciamento e má gestão no SUS é predatória sobre a estrutura públi- uma falsa questão. O SUS é histori- ca estabelecida pelo sistema pre- ambiente hospitalar. videnciário. A ANS, que deveria ser camente subfinanciado, não há dú- Exemplo disso tem sido a redu- uma agência enxuta voltada para a vida, e a questão gerencial é tam- ção sistemática de leitos de obste- fiscalização setorial, cresceu junto bém importante como em qualquer trícia verificada em hospitais pri- com a hipertrofia do comércio de organização complexa. O ministro vados com objetivo de assegurar a planos de saúde e foi, em grande deveria se esforçar para ser um manutenção das margens de lucro medida, capturada pelos interesses melhor gestor e reivindicar mais projetadas pelos quotistas contro- das empresas. recursos para suprir as lacunas no ladores. As mulheres precisam dos orçamento do seu ministério. leitos, mas a direção do hospital é IHU On-Line – Em que medida a pressionada para maximizar a utili- 1 IHU On-Line – Os planos de saú- mudança da Lei 8.080 , descum- de privados estão sempre no topo 8.080, que fundou e operacionalizou o SUS. 1 A implantação do SUS foi realizada de for- A mudança referida admite a presença de ca- do ranking de reclamações, seja ma gradual. Um dos últimos passos foi a im- pital estrangeiro nos hospitais sem qualquer no Procon ou na própria Agência plementação da Lei Orgânica da Saúde, nº condicionante. (Nota da IHU On-Line)

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zação do ambiente assistencial por previsto na Constituição de 1988. É IHU On-Line – Em que medida o procedimentos rentáveis como a melancólico registrar o fato de que discurso de déficit da previdência venda de órteses, próteses e ma- na história da previdência social pública alimenta o ideário de pri- teriais especiais e a quimioterapia sempre houve algum nível de com- vatização dos sistemas previden- oncológica ambulatorial. partilhamento entre o pagamento ciário e de saúde? Historicamen- de pensões, a assistência social e de te, quando e como emerge esse saúde nos antigos institutos segmen- IHU On-Line – O que é o Livro discurso e como vem se desenvol- tados por categorias profissionais. Branco e como seus princípios vendo até os dias de hoje? Quando finalmente, na Constituição agem nesse contexto? de 1988, foi criado o Orçamento da José Antonio de Freitas Seste- José Antonio de Freitas Sestelo Seguridade Social como ordenador lo – É uma velha disputa ideológica – O Livro Branco da Saúde foi uma unificado de despesas, vislumbrou- que remonta à criação do antigo iniciativa da Associação Nacional de -se a perspectiva de uma maior se- Instituto de Aposentadoria e Pen- 2 Hospitais Privados – ANAHP, mas ex- gurança nos níveis de financiamento sões dos Industriários – IAPI . Ainda pressa muito do senso comum que das políticas sociais. na década de 1930, esse instituto se estabeleceu como tipo ideal de prevalece no meio empresarial da Porém, justamente a partir da burocracia imune à influência -po assistência. Eles contrataram uma criação do SUS a burocracia previ- lítica dos sindicatos e rigorosa no pequena empresa de consultoria denciária se retirou para o seu iso- cumprimento de metas atuariais espanhola para elaborar um docu- lamento e a saúde nunca recebeu o voltadas para garantia da segu- mento que pretende apontar solu- necessário para cumprir com a sua ções válidas para o conjunto do sis- finalidade estratégica. Os mecanis- rança das despesas futuras com o tema de saúde brasileiro. Trata-se mos de Desvinculação de Receitas pagamento de pensões. O IAPI li- de um trabalho desprovido de ba- (sociais) da União – DRU para pa- mitou as despesas assistenciais de ses teóricas coerentes, mas que ex- gamento de despesas financeiras se seus segurados e dificultou o pa- pressa ideias com ampla penetra- consolidaram, ao que tudo indica, gamento de pensões no limite da ção em diversos setores políticos definitivamente. A proposta recen- responsabilidade. Paradoxalmente inclusive no campo progressista. temente encaminhada de amplia- promoveu um esquema assistencial Justamente por isso o Livro Branco ção da DRU havia sido concebida privativo para os seus funcionários se tornou dispensável. É uma tau- ainda no governo Dilma. (Assistência Patronal, atual GEAP 34 tologia que repisa o que o senso autogestão3) e diferente daquele comum já veicula. Um exemplo é Governo interino espartano oferecido para o operá- a assertiva propalada pelo ministro rio do setor industrial em geral. de que o esquema de comércio de Quanto ao governo interino, Na reforma de 1966, que criou o planos de saúde “alivia” o SUS, en- além de toda a pauta anunciada de Instituto Nacional de Previdência tre outros disparates. terra arrasada para as políticas so- Social – INPS4, os “cardeais do IAPI” ciais, é importante registrar o fato IHU On-Line – Quais os avanços, concreto da maior importância po- 2 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários – IAPI: foi limites e retrocessos do SUS na lítica e institucional registrado até o momento que foi a extinção do criado em 1936, durante o Estado Novo e, gestão de Lula e Dilma Rousseff? após 1945, expandiu suas áreas de atuação, E como observa os primeiros mo- Ministério da Previdência e a in- passando principalmente a financiar projetos vimentos na área da Saúde nesse corporação de sua burocracia ao de habitação popular nas grandes cidades. O staff do Ministério da Fazenda. É IAPI foi fundido com outros cinco institutos governo interino de Michel Temer? de pensões de outras categorias em 1966, digno de nota que esse ato de go- formando o Instituto Nacional de Previdência José Antonio de Freitas Seste- verno passou ao largo de críticas Social – INPS. Atualmente, IAPI tornou-se, lo – Em tempos de vacas gordas, os em quase toda a extensão do es- por extensão, o nome de importantes bairros governos Lula e Dilma promoveram pectro político. É como se o mi- de classe média de várias cidades brasileiras, como Brasília, Salvador, Porto Alegre, Rio de avanços incrementais minimalistas nistro da Fazenda fosse mesmo a Janeiro, Belém do Pará, Campinas, Osasco e no SUS e colheram melhorias im- melhor pessoa para administrar o Guaratinguetá. (Nota da IHU On-Line) portantes em alguns indicadores caixa da previdência. Naturalizou- 3 Geap Autogestão em Saúde: é uma das de saúde/doença que precisam ser operadoras de planos de saúde do Brasil. A -se um “novo normal” onde 80 anos empresa tornou-se referência no mercado da reconhecidos. O que ainda não está de história de políticas sociais vi- saúde suplementar ao investir num modelo claro é em que medida a melhoria raram coisa do passado e partidos assistencial focado na promoção da saúde, nos indicadores guarda uma rela- políticos, sindicatos e instituições prevenção de doenças e na melhoria da qua- lidade de vida dos assistidos. Sem fins lucra- ção direta com o nível da assistên- acadêmicas se calam. tivos, a Geap reverte todos os seus recursos cia ou com as condições gerais de para a assistência integral dos seus mais de Vejo esse fato como a maior vitó- reprodução da vida em sociedade. 600 mil beneficiários. É a operadora que ria ideológica do campo conserva- agrega o maior número de idosos, com 45% Entretanto, ao longo de todo esse dor nos últimos anos. Espero que, da carteira de beneficiários composta por período, nunca houve uma decisão em algum momento, os trabalha- pessoas a partir de 60 anos. (Nota da IHU On-Line) política resoluta a favor do esta- dores percebam a dimensão re- 4 Instituto Nacional de Previdência belecimento daquilo que estava gressiva do que está em curso. Social – INPS: foi um órgão público previ-

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deram as cartas e consolidaram a que se pretende viabilizar uma Apanágio conservador e sua posição avessa a despesas as- política de transferência de renda cheiro de naftalina sistenciais no seio da burocracia regressiva. previdenciária. O déficit da previ- A ideia de que não há alterna- dência passou a ser um risco per- IHU On-Line – O que a desidrata- tiva possível é, entretanto, apa- manente e os guardiões da austeri- ção do SUS, entre outras políticas nágio dos conservadores. Eu não dade orçamentária passaram a ser públicas, revela sobre os limites penso assim. Se os mecanismos também os salvadores da pátria. de um pacto “feito por cima” na habituais de regulação perderam A história se repete como uma redemocratização? E o que emer- sua validade e uma nova configu- farsa grotesca e, hoje, o salvador ge como caminho para assegurar ração se instaurou, as soluções da pátria é um ex-funcionário do conquistas sociais da Constituição também precisam ousar para banco de Boston5 que detém as de 1988? além dos limites das fronteiras chaves do cofre da previdência e nacionais e se constituir a par- José Antonio de Freitas Sestelo direito de vida e morte sobre os tir de uma articulação de escopo – O pacto feito “por cima” no fim trabalhadores brasileiros. bem mais amplo. do regime militar nunca engoliu O modelo restritivo está traçado as políticas sociais desenhadas na Não é só no Brasil que o pacto e consiste fundamentalmente no Constituição de 1988. Uma versão de poder se desmancha. Há sinais estabelecimento de um teto baixo desidratada foi posta em prática ao de tensão cada vez mais intensos para os benefícios de forma a esti- longo desses anos até hoje de tal entre os diversos componentes do mular a compra de planos de pre- forma a manter um nível aceitável condomínio formado pelos países vidência complementar, ou seja, de tensão social. O que se anuncia centrais, ainda liderados pelos Es- entregar para os operadores do agora é a inanição de um organis- tados Unidos, mas com novos pro- mercado financeiro remunerados mo já desidratado. tagonistas se apresentando no ce- por comissão a tarefa de gerenciar nário geopolítico mundial. os recursos dos aposentados que Alguns analistas políticos e a pró- deveriam estar resguardados pela pria presidente afastada têm afir- No Brasil é evidente a caducida- proteção do Estado. É um caso tí- mado que o pacto na Nova Repúbli- de dos protagonistas atuantes na pico de acumulação primitiva de ca se esgotou e agora é chegado o cena política. O governo interino capital baseado na socialização momento de formação de um novo cheira à naftalina, mas muitos dos 35 dos riscos e apropriação privada bloco de poder. Resta saber quem que, em tese, fazem oposição a do lucro. A consequência dessa se apresenta para compor esse ele, poderiam ser guardados no rota é aumento na desigualdade pacto. Que tipo de pacto é possível mesmo sarcófago. A resistência de renda e na insegurança social em uma sociedade dividida em es- dos movimentos sociais progres- em um país já seriamente amea- tratos tão desiguais? sistas precisa estar apoiada nas çado por uma herança histórica questões da vida quotidiana que perversa. O novo padrão global de rique- za representado pela dominância realmente mobilizem corações e As informações de que dispomos financeira tornou obsoletos os me- mentes. apontam que o Orçamento da Se- canismos de regulação extramer- guridade Social, se estivesse em cado desenvolvidos depois da últi- Como avançar? vigor, seria superavitário, ou seja, ma guerra na Europa. O Estado de é com recurso das receitas sociais Bem-Estar Social6, tudo indica, foi Em um país urbanizado, em pro- cesso de desindustrialização, o que denciário federal brasileiro criado em 1966 a um parêntesis que vigorou nos 30 partir da fusão dos Institutos de Aposentado- anos dourados de expansão do ca- se pode prometer para os jovens ria e Pensões existentes na época. No Brasil, pitalismo industrial condicionado da periferia das grandes cidades? hoje, a Previdência Social é administrada por limites agora revogados e ex- Eles não vão voltar ao campo e pelo Ministério da Previdência Social e as po- espero que não aceitem os limites líticas referentes a essa área são executadas pandidos. A barbárie reivindica de pela autarquia federal denominada Instituto volta seu espaço existencial per- estreitos que se delineiam para seu Nacional do Seguro Social – INSS. (Nota da dido. Nos países periféricos, onde futuro. IHU On-Line) 5 O entrevistado refere-se a Henrique Mei- apenas um verniz de políticas so- Penso que é preciso avançar relles, ministro da Fazenda do Brasil e exe- ciais chegou a ser implementado, sem receio de desconstruir o que cutivo do setor financeiro brasileiro e inter- já tomamos conhecimento do que nacional, ex-presidente do Banco Central do já não se sustenta. É preciso tam- Brasil, onde permaneceu no cargo de 2003 a se anuncia. bém reaprender a olhar para a 2011. Preside o Conselho de Administração realidade empírica com a maior da J&F, dona do Banco Original, JBS, Vigor, 6 Welfare State: expressão em inglês que entre outras empresas. É também membro significa “estado de bem-estar” e abrange humildade possível. Reconhecer do Conselho de Administração da Azul Li- as noções de Estado de bem-estar social e que nossa compreensão é limi- nhas Aéreas. Sua carreira se iniciou em 1974 de políticas públicas, ou seja, o conjunto de tada e que o dinamismo da vida no BankBoston, onde trabalhou por 28 anos benefícios socioeconômicos que um governo com atuação nacional e internacional. (Nota proporciona aos seus súditos. (Nota do IHU não tem compromisso com nossos da IHU On-Line) On-Line) preconceitos.

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Quando o público e o universal são sufocados pelo capital Rosa Marques acredita que a desindexação de recursos da saúde vai subnutrir o SUS e insuflar a participação privada na assistência à saúde, na qual a lógica é pouca cobertura e lucro

Por João Vitor Santos

economista Rosa Maria Marques cas, como SUS, para encher outros bolsos. “A estuda o financiamento em saúde consequência será o desmonte das políticas A pública e não hesita em disparar: sociais construídas em decorrência da Cons- o Sistema Único de Saúde – SUS é subfinan- tituição de 1988, mas será também o afasta- ciado, não recebe os recursos que deveria e mento do Estado como indutor de qualquer o que está previsto na Constituição de 1988. outra política”, alerta. A economista ainda E essa situação, que não é nada ideal, ainda analisa que essa lógica se instaura neste mo- pode piorar. Tudo por conta da proposta de mento político e econômico do país, mas já desindexação de recursos que ganhou corpo vinha sendo gestado no governo petista, dito no governo interino de Michel Temer, mate- progressista. “Houve, sem dúvida, avan- rializada numa Proposta de Emenda Consti- ços”, reconhece. Mas pondera: “Em termos tucional que congela os gastos com saúde de financiamento, os avanços foram poucos. por 20 anos. “Imagine o impacto disso para o Isso porque também os governos Lula e Dil- 36 SUS, já tão subfinanciado. Imagine o que sig- ma estavam prisioneiros dos compromissos nifica manter o mesmo nível de gasto para assumidos quando da Carta aos Brasileiros”. uma população crescente e em processo de envelhecimento”, questiona. E completa: Rosa Maria Marques é professora titular “É claro que isso levará ao encolhimento do do Departamento de Economia e do Progra- SUS e ao crescimento do setor privado da ma de Estudos Pós-graduados em Economia área da saúde, seja ele formado por planos Política da Pontifícia Universidade Católica de saúde ou não, diretamente desembolsado de São Paulo – PUC-SP e presidente da Asso- pelas famílias”. ciação Brasileira de Economia da Saúde. Pos- sui graduação em Ciências Econômicas pela Na entrevista a seguir, concedida por e- Universidade Federal do Rio Grande do Sul – -mail à IHU On-Line, Rosa explica que o UFRGS, mestrado em Economia pela PUC–SP pensamento que orienta tal medida é a ló- e doutorado pela Fundação Getúlio Vargas gica do mercado, do sistema financeiro. “A – FGV. Também realizou pós-doutorado na lógica é a do credor que exige o pagamento Faculté de Sciences Économiques da Univer- dos juros sem medir as consequências. Re- sité Pierre Mendès France de Grenoble e na duzir gastos de toda a natureza para gerar Universidad de Buenos Aires. superávit para pagar o serviço da dívida”, explica. Assim, corta-se das políticas públi- Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o ca brasileira tem sido balizada ou dos juros da dívida pública e a ma- mercado, o sistema financeiro tem sido influenciada pela busca nutenção de juros elevados para e toda a sua lógica representam pretensamente manter a inflação pela realização de superávits pri- uma ameaça ao Sistema Único de baixa e sob controle. Ambas as mários para garantir o pagamento Saúde – SUS? medidas atendem os interesses do Rosa Maria Marques – No Brasil, versitário e político brasileiro. Foi o 34º Pre- capital financeiro, seja ele interno desde o governo Fernando Henri- sidente do Brasil, por dois mandatos conse- ou externo. cutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como 1 que Cardoso , a política econômi- FHC, ganhou notoriedade como ministro da Antes do quadro recessivo que Fazenda (1993-1994) com a instauração do 1 Fernando Henrique Cardoso (1931): Plano Real para combate à inflação. (Nota da estamos vivendo, isso significava sociólogo, cientista político, professor uni- IHU On-Line) uma permanente pressão para que

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os recursos para o SUS não aumen- em processo de envelhecimento. monte das políticas sociais construí- tassem de acordo com a necessi- É claro que isso levará ao enco- das em decorrência da Constituição dade de um sistema público uni- lhimento do SUS e ao crescimento de 1988, mas será também o afas- versal. Essa realidade configurou do setor privado da área da saúde, tamento do Estado como indutor de um permanente quadro de subfi- seja ele formado por planos de saú- qualquer outra política. nanciamento no setor. Enquanto de ou não, diretamente desembol- em países com sistemas similares sado pelas famílias. IHU On-Line – Em que medida ao SUS a média do gasto público É claro que com essa proposta, o investimento na manutenção e com saúde é de 8% do PIB (Produ- que implica um novo regime fiscal, ampliação das políticas públicas, to Interno Bruto), no Brasil o SUS em que o orçamento parte sempre como o SUS, por exemplo, pode destinou, em 2014, apenas 3,9%, o do zero, desconsiderando, portan- ser encarado como uma ferramen- que resulta num gasto per capita to, as vinculações criadas na Cons- ta para se buscar a diminuição das bastante baixo. tituição de 1988 e nas leis que lhe desigualdades no Brasil? E quais seguiram, não haverá mais nenhu- as maiores travas para se desen- IHU On-Line – Em que medida ma garantia de recursos para ne- volver políticas que efetivamente a política econômica do governo nhuma área social. diminuam as desigualdades? interino de Michel Temer se con- figura como ameaça a políticas Rosa Maria Marques – Existem públicas? E como o pensamento incontáveis estudos que mostram da equipe econômica pode trans- o impacto das políticas públicas formar, por exemplo, o SUS? sobre a desigualdade. E esses es- tudos não começaram nos últimos Rosa Maria Marques – A expres- A lógica é a do anos. Desde a regulamentação do são maior da política econômica credor que exi- disposto na Constituição de 1988, defendida pela atual equipe do com relação ao piso de um salário governo está consubstanciada na mínimo para os benefícios, tais im- 2 ge o pagamento PEC 241 , enviada em 15 de junho pactos foram avaliados e medidos. de 2016 para ser apreciada pelo dos juros sem De 1999 a 2009, por exemplo, 15% Congresso Nacional. Esse projeto medir as con- da redução da desigualdade obser- simplesmente propõe que os gastos vada deve-se à existência desse 37 federais sejam congelados por 20 sequências piso; já o Bolsa Família foi respon- anos, tendo como base o efetiva- sável por 16% da redução. Ou seja, mente gasto em 2016. Os valores os dois somados contribuíram com IHU On-Line – Quais os riscos dos orçamentos dos anos seguintes 31%, o que não é pouco. seriam somente atualizados pelo que se corre com a desindexação índice da inflação e seus valores de recursos da saúde e a ideia de Entre os entraves, saliento dois. O reais poderiam, a depender dos “orçamento zero”? primeiro tem a ver com um tipo de pensamento presente em parte da resultados obtidos em termos de Rosa Maria Marques – O cresci- população de que a concessão des- equilíbrio fiscal, ser revisados- so mento da participação do setor ses benefícios torna seus beneficiá- mente depois de dez anos. privado na assistência à saúde, rios preguiçosos e/ou que encarece a redução do SUS e o surgimento Evidentemente que essa propos- o custo da mão de obra, posto que de segmentos sem nenhum tipo de ta tem como justificativa o diag- as pessoas não aceitam mais traba- nóstico de que todos os males da cobertura. lhar a qualquer preço. Parte dos que economia brasileira se devem à foram para a rua pedir o impeach- escalada “desenfreada” do gasto IHU On-Line – Como compreen- ment de Dilma Rousseff claramente público e que, portanto, esse deve der a lógica, o que está por trás, manifestaram esse entendimento. ser freado. A exposição de motivos da PEC 241? O segundo entrave está relacionado que acompanha a PEC 241 é cris- Rosa Maria Marques – A lógica é à busca de conter os gastos de qual- talina a esse respeito. Imagine o a do credor que exige o pagamento quer natureza, com o propósito de impacto disso para o SUS, já tão dos juros sem medir as consequên- gerar superávits primários. subfinanciado. Imagine o que signi- cias. Reduzir gastos de toda a natu- fica manter o mesmo nível de gasto reza para gerar superávit para pagar para uma população crescente e IHU On-Line – Gestores da saú- o serviço da dívida. Tal como foi na de, inclusive o atual ministro 3 2 Para saber mais sobre a PEC 241, acesse Grécia . A consequência será o des- a entrevista com Grazielle David, intitula- grego estava ocultando dados macroeconô- da PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos 3 A crise da economia e finanças da micos, entre eles o verdadeiro valor da dívida direitos sociais e à Constituição, publicada Grécia (iniciada em 2010 e em andamento): nacional. O sítio do Instituto Humanitas Uni- nas Notícias do Dia de 11-07-2016, no sítio foi uma crise nacional que se iniciou através sinos – IHU, na sua seção Notícias do Dia, do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- da Crise da dívida pública da Zona Euro, esta vem acompanhando os debates acerca da cri- ponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota da última com origens em 2008. A situação se se. Acesse em http://bit.ly/2aVtcTh. (Nota da IHU On-Line) agravou quando foi descoberto que o governo IHU On-Line)

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Ricardo Barros4, afirmam que o anos de um governo dito progres- foi garantido o pagamento dos financiamento do SUS é um ver- sista, como foi o do PT? credores. dadeiro nó e que é necessário Houve, Em outras palavras, embora os revisar direitos constitucionais. Rosa Maria Marques – sem dúvida, avanços no campo da recursos tenham aumentado para Como observa essa questão? o SUS, mesmo junto ao governo gestão, principalmente. Temos de federal (embora essa esfera te- Rosa Maria Marques – O único nó lembrar o Programa Mais Médicos5, que existe é o do subfinanciamento nha reduzido a participação com que levou a assistência aos grotões do SUS. A sociedade brasileira pre- relação às demais), o subfinan- cisa decidir se quer ou não criar um ciamento não foi superado. Além sistema de saúde público universal, do que, devemos lembrar que foi tal como foi feito em outros países. durante o governo Dilma, em 19 Isso significa que o Estado brasilei- de janeiro de 2015, mediante a Lei 13.097/15, que foram intro- ro tem que parar de financiar o se- O único nó que duzidas novas e amplas exceções tor privado, por exemplo, com re- à vedação constitucional à parti- dução do imposto a pagar daqueles existe é o do cipação direta ou indireta de em- que optam por ter Planos de Saúde subfinancia- presas ou capitais estrangeiros nas ou que procuram assistência médi- atividades de assistência à saúde. ca privada. mento do SUS Até então, o texto constitucional e a lei orgânica da saúde (Lei nº IHU On-Line – Há uma perspec- 8.080, de 1990), previam que a tiva, insuflada nos últimos meses do Brasil, em lugares em que nin- presença do capital estrangeiro na de governo interino, mas com guém formado no país queria ir. assistência à saúde poderia ocor- origem no ajuste fiscal do segun- Mas, em termos de financiamen- rer somente em casos de exceção do mandato de Dilma Rousseff, to, os avanços foram poucos. Isso e não em regra. de que as políticas sociais pesam porque também os governos Lula demais no orçamento da União, e Dilma estavam prisioneiros dos IHU On-Line – A senhora indica que se gasta muito com políticas compromissos assumidos quando que o que está por trás das ações sociais. Por que elas são sempre da Carta aos Brasileiros6, na qual da equipe econômica do governo 38 o primeiro alvo nos chamados de Michel Temer é “extinguir o “ajustes de gastos públicos”? 5 Mais Médicos: programa de Estado lan- funcionamento democrático do çado em 2013, cujo objetivo é suprir a carên- próprio Estado burguês”. Gosta- Rosa Maria Marques – São sempre cia de médicos nos municípios do interior do ria que desenvolvesse essa sua o primeiro alvo, aqui e no resto do país e nas periferias das grandes cidades do Brasil. O formato da “importação” de médi- perspectiva. mundo, porque aqueles que estão cos de outros países foi alvo de duras críticas tendo seus interesses defendidos de associações representativas da categoria, Rosa Maria Marques – Em um (os credores, o capital financei- sociedade civil, estudantes da área da saúde e pequeno artigo7 desenvolvi essa inclusive do Ministério Público do Trabalho. ro) não têm nenhum compromisso Confira as publicações do Instituto Humani- ideia, pois, ao congelar o gasto com o social, com os trabalhado- tas Unisinos – IHU acerca do tema em http:// governamental por 20 anos, fica res, com a maioria da população. bit.ly/2aVtcTh. (Nota da IHU On-Line) excluída a possibilidade de a so- 6 Carta ao Povo Brasileiro: documento ciedade, através de suas lutas, de Isso foi exaustivamente a “bola da que norteou a campanha e antecipava a gui- vez”. Por outro lado, essas investi- nada econômica para o centro que os petistas, seus representantes no Congresso das ocorrem sempre em um quadro no poder, concretizaram. A carta foi assinada Nacional ou de seus presidentes pelo então candidato Lula em junho de 2002, eleitos, alterar as prioridades que recessivo, quando a capacidade de quando a economia brasileira estava pressio- se manifestam ou se concretizam reação ou de resistência por parte nada e falava-se em ameaça de fuga de capi- no orçamento do Estado. Sob uma dos trabalhadores é menor. tais caso o PT ganhasse a eleição. Especialis- tas tomam essa carta como uma forma para pretensa visão técnica, que sem- “acalmar o mercado”. Na época, a iniciativa pre é apresentada como superior IHU On-Line – Quais os avanços gerou discussões dentro do próprio PT, con- forme revela o texto “Carta ao Povo Brasilei- à política, congela-se o status quo e limitações para o SUS nos 13 ro II divide o PT e adia reunião do diretório atual, fruto de uma determinada nacional”, publicada nas Notícias do Dia de correlação de forças existente na 4 Ricardo José Magalhães Barros 02-03-2006, no sítio do Instituto Humani- (1959): é político, engenheiro civil e empresá- tas Unisinos – IHU, disponível em http:// sociedade no momento em que o rio brasileiro. Foi Deputado Federal e prefeito bit.ly/2aZ49k9. Por ocasião do afastamento orçamento de 2016 foi votado. O de Maringá. Atualmente é Ministro da Saúde. da presidente Dilma Rousseff, em 2016, a tempo proposto é simplesmente de Foi nomeado em 12 de maio de 2016 Ministro carta volta a ser interpretada por analistas, uma geração e não há experiência da Saúde pelo presidente Michel Temer após como destaca o texto “Em respeito ao Brasil o afastamento da presidente Dilma Rousseff o PT deveria fazer silêncio”, publicada nas similar no mundo. em razão do processo de impeachment. Tam- Notícias do Dia de 13-07-2016, no sítio do bém é vice-presidente nacional do Partido IHU, disponível em http://bit.ly/2aS4mXh. 7 O artigo referido é “Brasil:■ o segundo golpe”. Progressista – PP e Presidente do Conselho Confira mais textos publicados sobre a Carta Ele é reproduzido pelo Observatório de Aná- Nacional dos Secretários de Desenvolvimen- pelo IHU em http://bit.ly/2beYu9r. (Nota da lise Política em Saúde, disponível em http:// to Econômico. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) bit.ly/2b3mPh6. (Nota da IHU On-Line)

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O capital soberano e as súditas políticas públicas Para compreender o drama do subfinanciamento do SUS, Áquilas Mendes evoca as lógicas das políticas econômicas que põem o capital como rei e, em crises, sacrificam o povo em prol da corte

Por Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

criação do Sistema Único de E o pior, segundo Mendes, é que Saúde – SUS foi um avanço. além da financeirização da saúde, em A Disso não há quem duvide ou momento de crise o ajuste fiscal se dá quem questione. Será? O economista e com mão pesada sobre políticas pú- professor Áquilas Mendes problematiza blicas que operam no sentido oposto. que se, por um lado, o SUS representa “É preciso dizer que a crise capitalista um avanço em termos de política públi- recente deve ser compreendida como ca, o financiamento que coloca de pé decorrente das tendências de longo toda essa rede, por outro lado, patina. “Em nosso país, faz 28 anos (desde a prazo na acumulação capitalista”, ex- criação do SUS) que se vivenciam in- plica. “A solução que o próprio sistema tensos conflitos por recursos financei- capitalista fornece a essa problemáti- 39 ros que assegurem o desenvolvimento ca decorre da própria crise, principal- de uma política pública universal da mente por meio do aumento da taxa de saúde”, aponta. E por que se dão os exploração”, completa, ao demonstrar conflitos? “Esses 28 anos são justamen- como tudo se volta para manutenção te aquele período em que o capital fi- dos interesses desse capital. nanceiro, principalmente na sua forma possui doutorado em mais perversa de capital fictício, man- Áquilas Mendes teve-se soberano entre os diferentes Ciências Econômicas pela Universidade tipos de capital”, responde Mendes. O Estadual de Campinas – Unicamp, livre- resultado, segundo ele, são orçamen- -docência pela Universidade de São tos do fundo público das áreas sociais, Paulo – USP e pós-graduação em Política em geral, e da saúde, em particular, e Relações Internacionais pela Lancas- ameaçados. ter University da Inglaterra. Atualmen- Ao longo da entrevista, concedida te é professor de Economia da Saúde por e-mail à IHU On-Line, o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP elabora a ideia de que a política eco- e do Programa de Pós-Graduação em nômica financeirista inevitavelmente Saúde Pública na mesma instituição. contamina outras áreas, como a saúde. Ainda é professor doutor do Departa- “A manutenção da política econômica mento de Economia e do Programa de fundamentada no tripé – metas de in- Pós-Graduação em Economia Política flação, superávit primário e câmbio flu- da Pontifícia Universidade Católica – tuante –, adotada pelo governo federal PUC-SP. Entre suas publicações, desta- desde o governo de Fernando Henrique que para o livro Tempos Turbulentos na Cardoso até o Governo Dilma Rousse- Saúde Pública Brasileira: os impasses ff, deu origem a constantes dificulda- do financiamento no capitalismo finan- des que impedem o pleno desenvol- ceirizado (São Paulo: Hucitec, 2012). vimento da saúde universal no país”, exemplifica. Confira a entrevista.

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Collor2). Além dos recursos de ori- gem federal, deveriam ser acres- cidas, segundo a Constituição, as receitas provenientes dos Tesouros Precisamos, ainda, deixar cla- Estaduais e Municipais para permi- tir o desenvolvimento do sistema. ro, nessa conjuntura do governo A Constituição de 1988 não definia, entretanto, como seria a participa- atual de retaliar a saúde univer- ção dos entes federados no finan- sal, que a Constituição não pode ciamento da Seguridade Social. ser modificada em seus valores Outras formas de financiamento IHU On-Line – Qual a lógica de tos sociais e incentivar a lógica do um sistema de saúde de acesso mercado. Nove anos depois (em 1997), após universal, no qual o Sistema Úni- problemas decorrentes da disputa co de Saúde – SUS está baseado? por recursos do OSS entre a Previ- IHU On-Line – Como compreen- dência e a Saúde, foi criada, para Áquilas Mendes – É importante der o sistema de financiamento a Saúde, a Contribuição Provisória reconhecer que o artigo 196 da do SUS? sobre a Movimentação Financeira – 1 Constituição , que está em vigor há Áquilas Mendes – Conforme a CPMF, cujos recursos se somaram 28 anos, reza que a saúde é um di- Constituição, em seu artigo 195, àqueles definidos na Constituição. reito de todos e um dever do Esta- está definido que o financiamento Essa contribuição vigorou até 2007, do. Dessa forma, o SUS assegura o da Seguridade Social (previdência, quando foi extinta. direito universal à saúde estabele- saúde e assistência social) será re- No que se refere à participação cido na Constituição, garantindo a alizado mediante recursos prove- integralidade das ações e serviços dos entes federados no financia- nientes da União, dos Estados, do mento do SUS, somente em 2000 públicos de saúde. Vale dizer, tam- Distrito Federal e dos Municípios, bém, que a sociedade brasileira foi aprovada a Emenda Constitucio- e das contribuições sociais dos nal – EC nº 29, que define a forma 40 construiu a garantia fundamental empregadores (incidentes sobre a de que o direito à saúde não pode da inserção da União, dos Estados folha de salários, o faturamento – e dos Municípios em seu financia- ser constrangido por fortalecimen- Contribuição para o Financiamen- to de planos privados e renúncias mento. Essa emenda estabeleceu to da Seguridade Social – Cofins que Estados e Municípios deveriam fiscais aos mesmos, prejudicando a – e o lucro – Contribuição sobre o disponibilidade orçamentária que alocar, das suas receitas de impos- Lucro Líquido), dos trabalhadores tos, compreendidas as transferên- deixará 150 milhões de brasileiros e 50% da receita de concursos e que dependem do SUS sem condi- cias constitucionais, no mínimo, prognósticos (loteria). Diz ainda 12% e 15%, respectivamente. Para ções de prover a sua saúde e, dire- a Constituição que esses recursos ta ou indiretamente, todos os 202 a União, a EC 29 determinava que da Seguridade Social não integra- sua aplicação deveria ser o valor milhões de cidadãos quanto à sua riam o orçamento da União e sim proteção e promoção. da Seguridade Social. Sua proposta 2 Fernando Collor de Mello (1949): po- Precisamos, ainda, deixar claro, de orçamento seria elaborada de lítico, jornalista, economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de Maceió de nessa conjuntura do governo atual forma integrada pelos órgãos res- 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987 de retaliar a saúde universal, que ponsáveis pela saúde, previdência a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, a Constituição não pode ser modi- e assistência social, compondo um 32º presidente do Brasil, de 1990 a 1992, e orçamento específico – o Orçamen- senador por Alagoas de 2007 até a atualida- ficada em seus valores, como o da de. Foi o presidente mais jovem da história dignidade da pessoa, da redução to da Seguridade Social – OSS. do Brasil e o presidente eleito por voto direto das desigualdades, da solidarieda- do povo, após o Regime Militar (1964/1985). Ficou determinado pela Consti- de e justiça social. Por vias trans- Seu governo foi marcado pela implementa- tuição de 1988, em seu Ato Cons- ção do Plano Collor e a abertura do mercado versas não se pode suprimir direi- titucional das Disposições Transitó- nacional às importações e pelo início de um programa nacional de desestatização. Seu 1 Carta de 88 – Carta Magna: é a Consti- rias – ADCT, que pelo menos 30% do Plano, que no início teve uma boa aceitação, tuição da República Federativa do Brasil de total de recursos do OSS deveriam acabou por aprofundar a recessão econômica, 1988, promulgada em 5 de outubro de 1988. ser destinados à área da saúde para corroborada pela extinção, em 1990, de mais É a lei fundamental e suprema do Brasil, ser- de 920 mil postos de trabalho e uma inflação vindo de parâmetro a todas as demais norma- 1989. Para os outros anos, a defi- na casa dos 1200% ao ano; junto a isso, de- tivas. Pode ser considerada a sétima ou a oi- nição desse percentual ficaria para núncias de corrupção política envolvendo o tava constituição do Brasil (dependendo de se a Lei de Diretrizes Orçamentárias tesoureiro de Collor, Paulo César Farias, fei- considerar ou não a Emenda Constitucional – LDO, o que na prática nunca ga- tas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fer- nº 1 como um texto constitucional) e a sexta nando Collor, culminaram com um processo ou sétima constituição Brasileira em um sé- rantiu esses recursos (época do de impugnação de mandato (Impeachment). culo de república. (Nota da IHU On-Line) governo do presidente Fernando (Nota da IHU On-Line)

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apurado no ano anterior, corrigido universal no Brasil. A gestão será que impedem o pleno desenvolvi- pela variação do Produto Interno sempre algo que deve ser melho- mento da saúde universal no país, Bruto – PIB nominal. Essa base de rado. Podemos dizer: “fazer bem dada a situação de subfinancia- cálculo, que não esteve baseada com o pouco de recursos que se mento que impõe ao SUS. O quadro em percentual da receita arreca- tem”. Bem, entendemos ser fun- econômico, que se seguiu à criação dada, levou a que a União deixasse damental aprofundar a ausência de do SUS, é significativamente di- de aplicar cerca de 10 bilhões de recursos no SUS. Neste sentido, há ferente daquele quando os países Reais, no período posterior. A regu- que entender o problema do ponto capitalistas avançados, principal- lamentação dessa EC 29 foi ainda de vista histórico. mente europeus, construíram seus mais tardia, realizada mediante a Em nosso país, faz 28 anos (desde sistemas universais de saúde. Se Lei Complementar nº 141, de 2012. a criação do SUS) que se vivenciam antes era possível verificar grande Ao longo dos anos de existência do intensos conflitos por recursos- fi magnitude de recursos, atualmen- SUS, antes da regulamentação da nanceiros que assegurem o desen- te estes são disputados com o ca- EC nº 29/2000, em 2012, por meio volvimento de uma política pública pital financeiro, cujo interesse é da Lei nº 141, seu financiamento universal da saúde. Isso é explícito manter o pagamento dos juros da foi caracterizado pela insegurança no problema do financiamento do dívida pública. e indefinição, fruto de embates en- SUS, que se manifesta desde sua Apesar do avanço que significou tre as diferentes áreas da Seguri- criação na Constituição de 1988. a criação do SUS, o Brasil está dis- dade Social e, principalmente, dos Esses 28 anos são justamente aque- tante de dedicar a mesma atenção conflitos com as autoridades eco- le período em que o capital finan- à saúde pública que os demais paí- nômicas do governo federal. ceiro, principalmente na sua forma ses que detêm um sistema público Em 2015, o financiamento fede- mais perversa de capital fictício, e universal. Para ilustrar essa afir- ral do SUS foi alterado. Por meio da manteve-se soberano entre os dife- mação, basta dizer que, em 2014, Emenda Constitucional nº 86/2015, rentes tipos de capital, prejudican- enquanto o SUS gastou 3,9% do PIB, foi incluída uma nova regra para do os orçamentos do fundo público o gasto público em saúde na média a aplicação do governo federal das áreas sociais, em geral, e da dos países europeus com sistemas na saúde (art. 2º e 3º), alteran- saúde, em particular. Para se ter universais (Alemanha, Espanha, do a base de cálculo do montante uma ideia, em 2015, o pagamento França, Reino Unido e Suécia) foi aplicado no ano anterior corrigido para juros da dívida correspondeu de cerca de 8,0% do PIB, o que evi- pela variação nominal do PIB para a 8,0% do PIB, enquanto para a saú- dencia a dificuldade de recursos 41 Receita Corrente Líquida – RCL, in- de (Ministério da Saúde) foi aloca- do SUS para realizar suas ações e clusive sendo executada de forma do apenas 1,7%. serviços. escalonada em cinco anos. Isto é, A manutenção da política econô- 13,2% dessa RCL, para o primeiro mica fundamentada no tripé metas Materializando o exercício financeiro subsequen- de inflação, superávit primário e subfinanciamento te ao da promulgação dessa EC câmbio flutuante, adotada pelo go- histórico (2016), até alcançar 15% da mes- verno federal desde o governo de ma, no quinto exercício financeiro, 3 Fernando Henrique Cardoso – FHC Por fim, para se ter uma ideia do respectivamente. Já há vários cál- 4 até o Governo Dilma Rousseff , deu subfinanciamento histórico, pode- culos realizados que indicam uma origem a constantes dificuldades -se refletir que se o artigo 55 das redução dos recursos do SUS. Há Disposições Constitucionais Tran- quem aponte uma perda de cerca 3 Fernando Henrique Cardoso (1931): sitórias da Constituição Federal de R$ 9,2 bilhões para as ações e sociólogo, cientista político, professor uni- versitário e político brasileiro. Foi o 34º Pre- fosse aplicado, 30% dos recursos serviços públicos de saúde já no sidente do Brasil, por dois mandatos conse- da Seguridade Social deveriam primeiro ano de implantação da cutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como ser destinados à saúde, mas isso EC, em 2016. FHC, ganhou notoriedade como ministro da Fazenda (1993-1994) com a instauração do nunca foi feito. Em 2014, o Orça- Plano Real para combate à inflação. (Nota da mento da Seguridade Social foi de IHU On-Line – Qual tem sido o IHU On-Line) 686,1 bilhões de Reais, sendo que impacto dessa história do proble- 4 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira, filiada ao Partido dos Tra- se fossem destinados 30% à saúde, mático financiamento do SUS ao balhadores-PT, presidente do Brasil de 2011 considerando os gastos do governo longo de sua existência? (primeiro mandato) até 2016 (segundo ano federal, corresponderiam a 205,8 de seu segundo mandato). Em 12 de maio de Áquilas Mendes – Não tenha dú- 2016, foi afastada de seu cargo por até 180 bilhões de Reais, mas a dotação foi vida de que o maior problema do dias devido à instauração de um processo de a metade disso. Isso mostra clara- impeachment que fora movido contra ela e SUS diz respeito ao seu subfinan- mente o subfinanciamento históri- que segue tramitando no Congresso Nacio- co do SUS. ciamento. Não há recursos sufi- nal. Durante o governo do ex-presidente Luiz cientes. Por mais que se melhore Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do Mi- a gestão, ela nunca será suficiente nistério de Minas e Energia e posteriormente IHU On-Line – Como analisa o da Casa Civil. Em 2010, foi escolhida pelo PT para a magnitude de recursos ne- para concorrer à eleição presidencial. (Nota financiamento em saúde hoje no cessários para responder à saúde da IHU On-Line) Brasil, em especial a alocação

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de recursos federais a Estados e a atenção especializada de alto levado a que direcionem seus gas- Municípios? custo, em sua quase totalidade tos para a despesa com serviços de prestada pelos serviços privados terceiros – pessoa jurídica –, isto é, Áquilas Mendes – Quando se ana- contratados, as Organizações So- referente à contratação de Organi- lisa a participação das diferentes ciais, a Empresa Brasileira de Servi- zações Sociais da Saúde. Trata-se esferas de governo no gasto públi- ços Hospitalares – EBSERH. Tais or- de uma grave distorção na apli- co total, é possível constatar que ganizações “administram” parcela cação dos recursos do SUS, sendo o processo de descentralização do usados prioritariamente para finan- SUS e a aprovação da EC 29 provo- importante dos serviços da Rede do ciar essas entidades privadas, a fim caram impactos importantes nesse SUS com a lógica mercantil. de executarem as ações e serviços gasto. Nota-se, de forma significa- de saúde que deveriam ser de res- tiva, a elevação da participação de ponsabilidade dos Municípios. Estados e, principalmente, dos Mu- nicípios no total do gasto público. Incentivos federais à Em 1990, o governo federal par- Diz ainda a saúde privada ticipava com 74,4% dos recursos Constituição que públicos alocados em saúde, sen- Outro aspecto que merece ser do que os Estados respondiam por esses recursos salientado no contexto do subfi- 13,5%, e os Municípios, por 12,1%. da Seguridade nanciamento do SUS refere-se ao Durante esta década, a participa- incentivo concedido pelo governo ção da União foi decrescendo, atin- Social não inte- federal à saúde privada, na forma gindo 43,2% em 2015. Entre 2000 de redução de Imposto de Renda e 2015, destaca-se o crescimento grariam o orça- a pagar da Pessoa Física ou Jurí- significativo da participação dos mento da União dica, o que é aplicada sobre des- Estados, que passou de 18,5% para pesas com Plano de Saúde e/ou 25,9%, enquanto a dos Municípios e sim da Segu- médicas e similares. Além disso, saiu de 21,7% para 30,9%. há que acrescentar as renúncias O aumento da participação dos ridade Social fiscais que experimentam as en- Estados e Municípios no total dos tidades sem fins lucrativos e a in- 42 recursos públicos significou uma Mais, especificamente, é im- dústria farmacêutica, por meio de elevação do gasto per capita das portante lembrar que há 16 anos, seus medicamentos. Nota-se que o três esferas com o SUS, passando desde que a Lei Complementar total desses benefícios tributários de 378,27 Reais, em 2000, para Nº 101/2000, denominada Lei de à saúde privada vem crescendo de 717,70 Reais, em 2010 (valores de Responsabilidade Fiscal – LRF, foi forma considerável. Registre-se: 2010, conforme IPCA médio anu- aprovada, as áreas sociais, em es- 8,6 bilhões de Reais, em 2003, pas- al), indicando um incremento real pecial a saúde, vêm sendo preju- sando para 14,9 bilhões de Reais, de 89,7% no período. Em relação dicadas no tocante à execução das em 2006, 17,25 bilhões de Reais à proporção ao PIB, o gasto públi- suas ações e serviços. De acordo em 2009 e, por fim, 25,4 bilhões de co com saúde passou de 2,9%, em com o princípio maior da Lei, em Reais em 2013 (Dados extraídos da 2000, para 3,9%, em 2015. Por sua que os entes públicos devem gas- Secretaria da Receita Federal do vez, o gasto líquido com ações e tar bem menos do que arrecadam, Brasil – SRF). serviços de saúde, realizado ape- vários limites são determinados ao Não resta dúvida de que o au- nas pelo Ministério da Saúde, como poder Executivo, especificamente, mento desses incentivos fiscais ao proporção PIB, no período entre às despesas de pessoal, que não capital privado vem respondendo à 1995 e 2015, manteve-se pratica- podem ultrapassar 54% da recei- necessidade de valorização desse mente constante (1,7%), indicando ta corrente líquida do município. capital no contexto do capitalismo quase nenhum esforço do Ministé- Caso isto venha a ocorrer, as pena- financeirizado e sua crise e preju- rio da Saúde. lidades são significativas, conforme dicando a capacidade de arrecada- indica a Lei 1.028/2000, que tipifi- ção do Estado e o financiamento do IHU On-Line – Que articulação ca crime em finanças públicas. SUS. entre o público e o privado se dá Assim, tal exigência legal vem hoje no SUS? Como se dá a gestão afetando, especialmente, o com- Capital estrangeiro nos de recursos nessa articulação? prometimento da instância muni- serviços de saúde Áquilas Mendes – Ao longo da cipal com a execução das ações implementação do SUS, a transfe- e serviços públicos de saúde, em Por sua vez, ainda temos que rência de recursos públicos ao se- geral, e com a Estratégia de Saúde considerar a mais recente medi- tor privado tem crescido de forma da Família, em particular. Na rea- da legal aprovada que acaba por sistemática. Parte dos recursos do lidade, o respeito a esse limite da agravar ainda mais o subfinan- SUS vem financiando, por exemplo, LRF, por parte dos Municípios, tem ciamento do SUS. Trata-se da Lei

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13.097/2015, que permite a ex- larmente, nessa presente crise do Crise do SUS e as ações ploração do capital estrangeiro nos capitalismo, estamos assistindo à alinhadas com o capital serviços de saúde, na compra de adoção de políticas austeras por hospitais gerais, inclusive os hospi- parte do Estado, com redução dos É justamente nesse cenário do tais filantrópicos, por meio da per- direitos sociais, inclusive da políti- capitalismo contemporâneo em missão de aquisição das Santas Ca- ca de saúde, intensificando meca- crise, que o financiamento do SUS sas – instituição que basicamente é nismos de mercantilização no seu transcorreu sobre um longo proces- financiada pelo Estado brasileiro. interior, presentes no contexto so de tensões. Como já dissemos Atualmente, a presença do capital dos países capitalistas centrais e anteriormente, no plano interno da externo já existe em outras áreas no Brasil. Além disso, verifica-se, economia brasileira, as decisões de da saúde, a exemplo dos planos e ainda, a permissão do Estado à uma política econômica restritiva/ seguros de saúde, e de farmácias. apropriação do fundo público pelo neoliberal mantiveram-se muito Essa nova Lei altera a Lei Orgâ- capital, como já comentamos. Para firme durante todos os anos 1990 nica da Saúde (8.080/90), que ori- se ter uma ideia, no contexto da e 2000. Acrescente-se a esse qua- ginalmente proíbe os investimen- crise do capitalismo contempo- dro as medidas do governo federal tos estrangeiros no setor, e fere râneo, sob dominância do capital para remanejamentos e cortes no também a Constituição Federal de financeiro, o Estado brasileiro não orçamento da seguridade social e 1988, em seu artigo nº 199. Para parou de conceder incentivo à ini- da saúde, em particular, muitas ve- se ter uma ideia dos reflexos dessa ciativa privada, principalmente à zes justificados pelos problemas de exploração, em novembro de 2015, finança rentista, impondo riscos à caixa ou pelos riscos que as contas a empresa United Health adquiriu saúde universal. gerais do governo sofriam, em ra- o Hospital Filantrópico Samarita- É preciso dizer que a crise capi- zão de problemas para assegurar no, que mesmo assim continuou a talista recente deve ser compreen- uma escala de superávit primário participar do Programa de Apoio dida como decorrente das tendên- condizente com as exigências do de Desenvolvimento Institucional – cias de longo prazo na acumulação mundo da finança e com os inte- PROADI do Ministério da Saúde, de- capitalista, a partir do declínio da resses das classes dominantes em senvolvendo pesquisas e/ou cursos taxa de lucro nas economias após enfrentarem a queda da lucrativi- para o SUS. Trata-se, então, de re- a II Guerra Mundial e que não foi, dade no âmbito da produção. núncias fiscais que experimentam posteriormente, invertida total- as entidades sem fins lucrativos. Enfatizamos que o problema do 43 mente. Por sua vez, a solução que o financiamento do SUS decorreu, Desse modo, o SUS, com seu in- próprio sistema capitalista fornece em larga escala, no plano especí- suficiente financiamento, contribui a essa problemática decorre da pró- fico e interno do país, da decisão, indiretamente com recursos para pria crise, principalmente por meio e não somente de imposição exter- um hospital filantrópico estran- do aumento da taxa de explora- na, da manutenção de uma políti- geiro. Sem dúvida, essa Lei veio ção – obrigando os trabalhadores a ca econômica do governo federal, para dificultar ainda mais a possi- aceitar uma diminuição dos salários durante esses mais de 28 anos e bilidade de ampliarmos a conquista e condições de trabalho precárias, em sintonia com as demandas do do direito à saúde pela sociedade com redução de direitos sociais, em capital financeiro internacional. brasileira e assegurar a insaciabili- geral, e da saúde, em particular. Tal política tem sido sempre des- dade do capital portador de juros Ainda que, a partir da década de tinada ao cumprimento de metas na forma de apropriação do fundo 1980, seja possível verificar uma de inflação e de superávits primá- público. trajetória instável de retomada da rios, resultando em forte redução queda da lucratividade, em decor- de despesas das políticas de direi- IHU On-Line – Em que medida rência das políticas econômicas tos sociais, com montantes insufi- a perspectiva do financiamento ortodoxas neoliberais, sacrifican- cientes e inseguros para a saúde público de saúde coletiva é ame- do os direitos sociais, as econo- pública. açada pela lógica do capitalismo? mias não conseguem alcançar o Que ameaças mais diretas o se- patamar da taxa de lucro do perío- Mais uma vez, a lógica nhor percebe hoje na realidade do anterior. Além desse contexto, da austeridade brasileira? acrescentamos à explicação dessa Áquilas Mendes – Desde 1980 até crise a tendência que decorre do Nesse tenso ambiente, assiste-se o período atual, isto é, nos tempos enfrentamento a esse declínio da a mais um episódio da política de vigência de dominância do capi- lucratividade, isto é, o processo austera estabelecida pelo gover- tal financeiro no movimento do ca- da financeirização, em que o ca- no federal interino em relação ao pital e do neoliberalismo, não foi pital financeiro busca assegurar financiamento da seguridade- so possível identificar a retirada do lucros mais imediatos, passando a cial. Trata-se da renovação e da Estado da economia, mas ao con- desempenhar a dominação na di- potencialização da Desvinculação trário, assistiu-se a uma particular nâmica do capitalismo nos últimos das Receitas da União – DRU. Tal forma de sua “presença”. Particu- 35 anos. mecanismo criado desde 1994,

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renovado a cada quatro anos e, Ricardo Barros5, de que o acesso Áquilas Mendes – A médio pra- ainda, em pleno funcionamento, universal ao SUS é insustentável zo, entende-se que a prioridade ao é bastante conhecido por muitos, e é preciso mudar a Constituição? financiamento do SUS pode ser al- em que 20% das receitas do Orça- cançada por outros percursos, dife- Áquilas Mendes – Não procede mento da Seguridade Social – OSS, rentes de se apoiarem em tributos que o ministro da Saúde promo- formado pela saúde, previdência e que incidem sobre a lógica produti- va o sentido contrário ao direito assistência social, são retiradas e va. Devido à dominância do capital à saúde universal e incentive a destinadas ao pagamento de juros financeiro na fase contemporânea criação de um plano de saúde po- da dívida, em respeito à já históri- do capitalismo, é na sua esfera que ca política do governo federal de novas fontes devem ser pensadas. manutenção do superávit primário, Nessa perspectiva, sugerem-se al- sob as exigências do capital finan- gumas propostas mais amplas. ceiro dominante na fase contempo- Não tenha dú- Para tanto, menciona-se: a) ado- rânea do capitalismo. ção de mecanismos de tributação Ora, é conhecido de todos que o vida de que para a esfera financeira, como por OSS vem demonstrando superávits exemplo, por meio da criação de há vários anos. Mais recentemente, o maior pro- uma Contribuição sobre as Gran- registre-se: em 2010, 53,8 bilhões blema do SUS des Transações Financeiras – CGTF de Reais; em 2011, 75,8 bilhões Re- progressiva, por exemplo, acima de ais; em 2012, 82,7 bilhões de Reais; diz respeito uma renda de 2 milhões de Reais e, em 2013, 76,2 bilhões de Reais ao seu subfi- mensais, sendo essa contribuição (dados da Associação Nacional dos vinculada à Seguridade Social e com Auditores Fiscais da Receita – AN- nanciamento destinação de 50% para a Saúde; b) FIP). Por sua vez, os recursos re- estabelecimento da Contribuição tirados pela DRU foram: em 2010, sobre Grandes Fortunas com desti- pular. Aliás, esse tipo de plano já 45,9 bilhões de Reais; em 2011, nação para a seguridade social, com existe e garante cobertura a pou- 52,4 bilhões de Reais; em 2012, destinação de 50% para a saúde; c) cas consultas e exames, onerando, 58,1 bilhões de Reais; e, em 2013, aprofundamento dos mecanismos ainda mais, o SUS para a média e 63,4 bilhões de Reais (Ibid). Isso de tributação para a remessas de 44 alta complexidade, especialmente. significou uma extração, em mé- lucros e dividendos realizadas pe- Trata-se de incentivar a lógica da dia, de cerca de 55% do saldo supe- las empresas multinacionais, atual- saúde como consumo/mercadoria ravitário do OSS, a partir de 2010. mente isentas na legislação, desti- em detrimento ao seu valor de di- nadas ao Orçamento da Seguridade Entre 1995 e 2013, a perda de re- reito social. Ademais, o fato de os Social (saúde, previdência e assis- cursos para a Seguridade Social cidadãos brasileiros serem incenti- tência social); d) ampliação cons- com a DRU correspondeu a cerca vados a possuírem planos de saúde tante da alíquota da Contribuição de 641 bilhões de Reais. acaba prejudicando o já conhecido Social sobre o Lucro Líquido – CSLL Para agravar esse cenário, a PEC subfinanciamento do SUS, na medi- para instituições financeiras; e) re- 04/2015 foi recentemente vota- da em que a obtenção de um pla- visão da tributação sobre heranças da em segundo turno na Câmara no de saúde abre a possibilidade (Imposto de Transmissão Causa Mor- dos Deputados e foi encaminhada de dedução do Imposto de Renda tis e Doação – ITCMD). para o Senado Federal. Aumenta a Pessoa Física, onerando os recursos Sobre um segundo nível de pro- Desvinculação da Receita da União públicos. postas de fontes alternativas, des- – DRU de 20% para 30% e cria a Des- tacam-se as de caráter mais geral. vinculação da Receita dos Estados IHU On-Line – Que caminho o São elas: a) fim das isenções de e Distrito Federal – DRE e a Desvin- senhor vislumbra para assegurar Imposto de Renda das Pessoas Fí- culação da Receita dos Municípios recursos para financiamento -pú sicas – IRPF com despesas médicas – DRM com a alíquota de 30%. En- blico que garantam e até ampliem e do Imposto de Renda das Pessoas quanto as receitas base de cálculo conquistas do SUS? jurídicas – IRPJ, das empresas que da aplicação mínima federal, es- prestam assistência médica a seus 5 Ricardo José Magalhães Barros tadual e municipal em educação e funcionários; b) estabelecimento saúde não serão atingidas por essas (1959): é político, engenheiro civil e empresá- rio brasileiro. Foi Deputado Federal e prefeito de uma política de renúncia fiscal desvinculações, a PEC 04/2015 não de Maringá. Atualmente é ministro da Saúde. para Entidades sem fins lucrativos garantiu essa mesma proteção para Foi nomeado em 12 de maio de 2016 ministro e para a indústria farmacêutica; c) o conjunto da seguridade social. da Saúde pelo presidente Michel Temer após o afastamento da presidente Dilma Rousseff extinção dos subsídios públicos aos em razão do processo de impeachment. Tam- Planos Privados de Saúde; d) repú- IHU On-Line – O que está por bém é vice-presidente nacional do Partido dio à Lei 13.097/2015 que permite Progressista – PP e Presidente do Conselho trás – ou que se revela através – Nacional dos Secretários de Desenvolvimen- a entrada de capital estrangeiro na da fala do atual ministro da Saúde to Econômico. (Nota da IHU On-Line) saúde pública.

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A saúde como palanque Júlio de Matos entende que o fato de tratar a área da saúde como política de governo inebria a perspectiva de política pública de Estado, atrofiando mecanismos de financiamento e gestão

Por João Vitor Santos

ense num cenário de gen- Na entrevista a seguir, concedida por te doente, sem assistência e e-mail à IHU On-Line, ele fala como Ptampouco acesso a programas gestor de hospitais filantrópicos e san- de prevenção em saúde. Ali chega um tas casas, que respondem por grande cidadão, enche uma van com essas parte dos procedimentos do Sistema pessoas e as leva para um hospital ou Único de Saúde – SUS. “As santas casas posto de saúde. No segundo ato, esse e os hospitais filantrópicos têm a obri- camarada é eleito vereador. A história gação legal de destinar parcela impor- é conhecida, mas mascara uma relação tante de suas estruturas assistenciais que se dá em outro nível da mesma for- para o SUS”, enfatiza. ma. Guardadas as proporções, é o que Júlio Dorneles de Matos é advogado, ocorre quando a área da saúde é assu- especialista em Gestão Empresarial. mida como política de governo e não Atualmente, exerce as funções de Di- como uma política pública de Estado. retor Geral e de Relações Institucionais “A descontinuidade de políticas públi- da Irmandade da Santa Casa de Mise- cas e a desarticulação entre os níveis ricórdia de Porto Alegre. Ainda integra 45 de gestores é muito evidente”, analisa o Conselho de Administração da Confe- Júlio Dorneles de Matos, especialista deração das Santas Casas de Misericór- em Gestão Empresarial com experiên- dia, Hospitais e Entidades Filantrópicas cia como gestor na área da saúde. “É – CMB. Foi presidente da Federação das lamentável, mas não há políticas de Santas Casas dos Hospitais Beneficen- Estado para o setor da saúde, e sim tes, Religiosos e Filantrópicos do Rio políticas de governos, descontinuadas Grande do Sul e do Sindicato dos Hospi- a cada momento, sem qualquer olhar tais Filantrópicos do Rio Grande do Sul. estratégico de médio ou longo prazo”, completa. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os avanços com a extinção da indigência e a mente 42 tipos de imunobiológicos em termos de saúde pública, es- prerrogativa ao acesso para todos, e 25 vacinas, levando à erradica- pecialmente para usuários, que a contribuintes ou não da previdên- ção da poliomielite e varíola e à implantação do Sistema Único de cia social. eliminação da circulação dos vírus Saúde – SUS trouxe? do sarampo e da rubéola, entre Os avanços são inquestionáveis, Júlio Dorneles de Matos – A par- especialmente quando verificamos outros; 96% das vacinas são produ- tir de 1988, com o advento do Sis- números tão grandiosos, como, por zidas no Brasil ou estão em proces- tema Único de Saúde, todo o cida- exemplo, 4,1 bilhões de procedi- so de transferência de tecnologia. dão brasileiro passou a ter direito a mentos ambulatoriais/ano, 11,5 Atualmente são ofertados 810 me- uma assistência universal, integral milhões de internações hospitala- dicamentos pelo SUS, dentre esses e gratuita, sob responsabilidade res/ano, 95% de transplantes rea- para diabéticos e hipertensos. dos três níveis dos gestores públi- lizados pelo SUS, com redução de cos, especialmente a União. Assim, 41,7% das pessoas que estão em fila IHU On-Line – Como o senhor os principais avanços dizem respei- de espera, 300 milhões de doses de avalia a articulação entre o públi- to ao exercício da plena cidadania, vacinas, sendo oferecidos gratuita- co e o privado dentro do SUS? Qual

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recursos existentes, não raras ve- zes, são mal aplicados, como, por exemplo, 104 Unidades de Pronto Atendimento – UPAs construídas, As santas casas e os hospitais fi- equipadas e fechadas em todo o Brasil, ou 80 tomógrafos adqui- lantrópicos têm a obrigação legal ridos há mais de quatro anos e de destinar parcela importante ainda encaixotados por falta de planejamento. A descontinuidade de suas estruturas assistenciais de políticas públicas e a desarti- para o Sistema Único de Saúde culação entre os níveis de gestores é muito evidente, bem como uma absoluta desproporcionalidade de o papel de hospitais filantrópicos IHU On-Line – Por que hospitais custeio entre os prestadores públi- e santas casas dentro do Sistema? e casas de saúde privados creden- cos e privados, em que se verifica ciados ao SUS parecem optar ape- que um hospital público custa para Júlio Dorneles de Matos – Na nas por atendimentos de urgên- o SUS mais de cinco vezes que um realidade, a articulação entre os cia/emergência e procedimentos hospital privado. sistemas público e privado é extre- de alta complexidade, deixando mamente superficial, sem comu- É lamentável, mas não há po- outras perspectivas como a saúde nicação de políticas e iniciativas líticas de Estado para o setor da preventiva? independentes. A Agência Nacional saúde, e sim políticas de governos, de Saúde – ANS, embora órgão do Júlio Dorneles de Matos – Na descontinuadas a cada momento, Ministério da Saúde, pouco se rela- realidade, a área hospitalar bra- sem qualquer olhar estratégico de ciona com a pasta e crescentemen- sileira ainda mantém a cultura do médio ou longo prazo. te está a impor às operadoras pri- tratamento da doença, especial- vadas de saúde obrigações alheias mente pressionada pelos modelos IHU On-Line – Como avalia a aos contratos firmados com os usu- de convênios/contratos mantidos engrenagem que hoje financia 46 ários, gerando impactos importan- com os sistemas de saúde. Hoje, as políticas públicas em saúde no tes em custos e à própria sustenta- em qualquer cenário que se ob- Brasil? O que a Constituição de bilidade do sistema. serve, esta realidade está a exigir 1988 prevê sobre o assunto? E o As santas casas e os hospitais fi- mudanças de posicionamentos em que é cumprido? que a educação e a prevenção em lantrópicos têm a obrigação legal de Júlio Dorneles de Matos – O fi- saúde irão se sobrepor. Aos hospi- destinar parcela importante de suas nanciamento da saúde pública no tais caberá identificar nichos de estruturas assistenciais para o Sis- Brasil hoje está melhor explicitado trabalho em que se caracterize o tema Único de Saúde, preservando pela regulamentação da emenda melhor conceito de que, em vez parte desta também para o Sistema constitucional 29, em que os Esta- de tratar, deve-se evitar a doença. Privado. Assim, são fundamentais dos e Municípios têm obrigações de Neste contexto, as exigências cres- para a funcionalidade do SUS em percentuais mínimos (12% e 15%, centes por serviços de prevenção todo o país, respondendo por mais respectivamente) e a União sem de 50% de toda a assistência, sendo direcionada ao homem, à mulher e uma vinculação definida, porém que na alta complexidade a abran- ao idoso já são uma realidade. com direcionamento de um mínimo gência ainda é maior, como por com base de aplicação em exercí- exemplo, 68% da oncologia e 66% IHU On-Line – Uma das princi- cio real mais a variação do Produto da cardiologia, entre outros. No Rio pais queixas de santas casas e Interno Bruto – PIB. Grande do Sul, a presença das San- hospitais filantrópicos é com rela- Contudo, o que se vê na prática é tas Casas e Hospitais Filantrópicos ção aos repasses da chamada ta- a União cada vez mais transferindo é vital, respondendo com seus 235 bela SUS. Em que medida o atraso responsabilidades para os Estados hospitais por mais de 70% de toda em repasses e o próprio reajuste e os Municípios, declinando do re- a assistência SUS aqui desenvolvida. da tabela passa por um problema passe de recursos nos mesmos ní- essencialmente de gestão em saú- Além disso, na área da forma- veis, senão vejamos: em 1980, de de pública (de todas as instâncias ção médica brasileira e dos demais todos os gastos com saúde no Bra- de governo) e menos por falta de profissionais da saúde, estas ins- sil, a União respondia por 75%, os recursos? tituições são fundamentais, con- Estados por 17,8% e os Municípios tando com 46 hospitais de ensino Júlio Dorneles de Matos – Sem por 7,2%. Hoje, a União responde localizados em diversos estados dúvida que a saúde pública é subfi- por 45%, os Estados por 25% e os brasileiros. nanciada. No entanto, os poucos Municípios por 30%.

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IHU On-Line – Que tipo de in- R$ 21,5 bilhões, notadamente com mento da saúde? Em que medida centivos um hospital que é con- o sistema financeiro. propostas como essas impõem siderado filantrópico recebe do uma lógica financeirizada à -saú De tudo isto, conclui-se que as governo federal e quais passam de pública, transformando-a em santas casas e hospitais filantrópi- a ser suas contrapartidas? Que negócio? cos em verdade estão sendo tam- implicação há – e se há – nos re- bém entes financiadores do SUS, o Júlio Dorneles de Matos – Obser- passes e credenciamentos junto que, absolutamente, em momento vam-se iniciativas do atual governo ao SUS? Há contradições em um algum no arcabouço jurídico bra- com grande preocupação, notada- hospital filantrópico encabeçar a mente a questão da desindexação cobrança de reajustes na tabela de recursos, eis que se hoje com de procedimentos do SUS? obrigações mínimas de alocações Júlio Dorneles de Matos – As o Governo Federal já decresce a santas casas e hospitais filantró- cada ano, impõe-se a lógica do que picos, por suas naturezas jurídi- A descontinui- já é ruim vai ficar pior sem as obri- cas de serem sem fins lucrativos e dade de políticas gações mínimas. cumprirem as disposições do códi- go tributário nacional, são imunes públicas e a de- IHU On-Line – Como equalizar as a impostos. Podem ser também sarticulação en- necessidades de hospitais filan- isentos de contribuições sociais trópicos e santas casas e a manu- se atenderem gratuitamente ou tre os níveis de tenção de um sistema público de destinarem uma parcela das suas gestores é muito saúde como o SUS, radicalizando capacidades assistenciais ao SUS, seu caráter universal, público e conforme normas existentes. evidente, bem gratuito? A relação de prestação de servi- como uma abso- Júlio Dorneles de Matos – Não ços mantidas com o Sistema Úni- há outro caminho a não ser efeti- co de Saúde, em caráter comple- luta despropor- vamente a compreensão dos ges- mentar e conforme os termos da cionalidade de tores, notadamente o Federal, de Lei nº 8080/90, a qual estabelece que é necessário ampliar os inves- 47 obrigações de parte a parte, in- custeio entre os timentos em saúde, melhorar a cluindo a destinação de recursos prestadores pú- gestão pública, organizar políticas suficientes para a garantia da qua- de estado para o setor, adoção de lidade dos serviços e do equilíbrio blicos e privados visão estratégica de longo prazo econômico/financeiro dos contra- etc. Neste contexto os hospitais tos/convênios firmados, é brutal- sileiro, lhes é exigido. Seus patri- filantrópicos e as santas casas são mente deficitária. Contabilmente mônios estão sendo delapidados e a melhor alternativa assistencial se demonstra que para cada R$ seus futuros são incertos. Por isso, para o Brasil, seja em aspectos de 100,00 de custos efetivos na assis- não há contradição em um hospital economia, qualidade assistencial e tência de um paciente SUS, este filantrópico posicionar-se na- co dinamismo operacional. remunera tão somente R$ 60,00. brança de reajustes na tabela de Ou seja, tem-se um déficit médio procedimentos do SUS. IHU On-Line – Que lógica dife- de 66% entre custo e receita, mes- re os hospitais filantrópicos e as mo considerando a integralidade IHU On-Line – Qual a sua avalia- santas casas de instituições estri- dos recursos públicos recebidos e ção sobre propostas que passam tamente privadas? as isenções e imunidades acima a ser ventiladas na gestão interi- referidas. na de Michel Temer, como desin- Júlio Dorneles de Matos – O en- Tal situação, há mais de década dexação de recursos da saúde e tendimento cristalino de diferen- existente e crescente a cada ano, a ideia de “orçamento zero” e ciação é a questão da finalidade 1 impõe nos dias de hoje um déficit mesmo a PEC 241 , para financia- lucrativa ou não. Também, impera anual superior a R$ 10 bilhões no nas instituições sem fins lucrativos 1 A Proposta de Emenda Constitucional – a essência do voluntariado em fa- conjunto brasileiro. Especificamen- PEC 241, de autoria do Executivo, na gestão te no Rio Grande do Sul este déficit do governo interino de Michel Temer, esta- vor de uma causa social. belece um limite para os gastos públicos e é superior a R$ 500 milhões ano. prevê o congelamento de gastos públicos por intitulada PEC 241/16: Uma afronta■ à saúde, Esta realidade de absoluto desequi- 20 anos. Conforme especialistas no setor de aos direitos sociais e à Constituição, publica- líbrio na relação jurídica mantida Saúde, pode resultar na redução de 12 bilhões da nas Notícias do Dia de 11-07-2016, no sítio de reais em repasses para a área, nos próxi- do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- já levou as instituições brasileiras a mos dois anos. Para saber mais sobre a PEC ponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota da constituírem um endividamento de 241, acesse a entrevista com Grazielle David, IHU On-Line)

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IHU em Revista DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Agenda de Eventos Confira os próximos eventos promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Ciclo de Estudos - Modos de existência e a contemporaneidade em debate. Reflexões transdisciplinares à luz de diferentes obras

23/08 Atividade: Apresentação e debate da obra de GIRAUD, Gaël. Ilusão financeira. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Conferencista: Prof. Dr. Róber Iturriet Avila – UNISINOS Horário: 19h30min Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU Saiba mais em: http://bit.ly/2bg2KGD

Ecofeira Unisinos

Atividade: mostra e comercialização de produtos ecológicos Horário: 11h às 19h 50 Local: Corredor central (B 07), em frente ao IHU 24/08

IHU ideias

Atividade: conferência Getúlio Vargas e o positivismo Palestrante: Profa. Dra. Maria Izabel Noll – UFRGS 25/08 Horário: 17h30min Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU Saiba mais em: http://bit.ly/2bw8Ksz

Oficina - Linguagens de Comunicação para a Cidadania

Ministrante: Profa. Dra. Cybeli Almeida Moraes – UNISINOS Horário: 14h30min Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU 30/08 Saiba mais em: http://bit.ly/2biqf1l

Ecofeira Unisinos

31/08 Atividade: mostra e comercialização de produtos ecológicos Horário: 11h às 19h Local: Corredor central (B 07), em frente ao IHU

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Transição ecológica como caminho para estancar a crise econômica

Por Róber Iturriet Avila

trabalho de Giraud (2015) levanta questões cruciais para a economia mundial contemporânea. Por não ser um livro acadêmico, ele traduz “Oconceitos econômicos e financeiros para o público leigo. Traz críticas que merecem elogios acerca da dominância financeira na economia, na política e na sociedade de maneira geral, o que ele chama de ‘voto implícito dos mercados finan- ceiros’. Embora com tons utopistas, levanta a transição ecológica como possível saída para a crise vigente”, analisa Róber Iturriet Avila. E resume: “o livro está centrado em quatro pontos: I) na crise financeira de 2007-08; II) na falsa elevação de preços pre- gressa dos imóveis; III) nos problemas da Zona do Euro; IV) em propostas alternativas ao por vir”. Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, pesqui- sador da Fundação de Economia e Estatística – FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande Do Sul – SEMAPI. O professor apresentará a obra de Gaël Giraud Ilusão financeira: dos subprimes à 51 transição ecológica (São Paulo Loyola, 2015), no próximo dia 23, às 19h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Giraud estará na Unisinos participando do IV Colóquio Internacional IHU. Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica, com proferindo duas conferências, respec- tivamente, nos dias 13 e 14. No dia 12 de setembro, debaterá “O Ensino Social da Igreja à luz do pontificado do Papa Francisco”, às 14h30min, também na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Detalhes dos eventos podem ser conferidos em http://bit.ly/29hSmyT. Gäel Giraud ainda realizará um Curso para os alunos de pós-graduação da Escola de Gestão e Negócios da Unisinos. Ministradas em inglês, as aulas serão abertas ao público em geral. Além do encontro do dia 14 de setembro, dentro da programação do Colóquio, haverá outros dois encontros. Um será no dia 15 de setembro, a partir das 19h15min. O outro no dia dia 16 de setembro com duas sessões. A primeira inicia às 14h e a segunda às 17h15min. Mais informações podem ser obtidas na secretaria da Escola de Gestão e Negócios, telefone 51-3590-8186. Gaël Giraud é diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, membro do Centro de Economia da Sorbonne e da Escola de Economia de Paris e professor associado na ESCP-Europe. Jesuíta, faz parte do conselho científico do La- boratório sobre Regulação Financeira e do Observatório Europeu Finance Watch. Além disso, leciona no Centre Sèvres, dos jesuítas, e é membro do conselho científico da Fundação Nicolas Hulot para a Natureza e o Homem. O trabalho de Gaël Giraud pode ser visto em seu sítio na internet www.gaelgiraud. net. É autor de vários livros, dos quais destacamos Ilusão financeira: dos subprimes à transição ecológica (São Paulo: Edições Loyola, 2015), Le facteur 12. Pourquoi il faut plafonner les revenus (Paris: Carnets Nord-Montparnasse éditions, 2012) e Vingt propo- sitions pour réformer le capitalisme (Paris: Ed. Flammarion, 2009).

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Confira algumas entrevistas e textos de Giraud publicados pelo IHU: • Da dívida ecológica ao débito do sistema financeiro com os pobres. Entrevista com Gaël Giraud, publicada na revista IHU On-Line, número 469, de 03-08-2016, disponí- vel em http://bit.ly/297QKms. • A ecologia econômica como alternativa às desigualdades. Entrevista com Gaël Gi- raud, publicada na revista IHU On-Line, número 449, de 04-08-2014, disponível em http://bit.ly/2bbAwJS. • Uma “transição ecológica” para salvar a Europa. Artigo de Gaël Giraud, publicado nas Notícias do Dia de 13-05-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos- IHU, disponível em http://bit.ly/2bpypWq. • O jesuíta 2.0 que expõe bancos e finanças. Entrevista com Gaël Giraud, publicada nas Notícias do Dia de 11-05-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos- IHU, disponível em http://bit.ly/2bbmGvJ. • “A Europa tornou-se refém dos bancos e da austeridade que alimentam populis- mos”. Entrevista com Gaël Giraud, publicada nas Notícias do Dia de 09-05-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos- IHU, disponível em http://bit.ly/2bwvSLD. • Clima e Europa: agora é a vez dos católicos. Artigo de Gäel Giraud, publicado nas Notícias do Dia de 02-12-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos- IHU, dispo- nível em http://bit.ly/2b9o5Ec. • Gaël Giraud: o jesuíta que enfrenta os bancos. Entrevista com Gaël Giraud, publica- da nas Notícias do Dia de 04-05-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos- IHU, disponível em http://bit.ly/2bJaMHh.

Eis o artigo.

52 I – Ilusão financeira: um resumo Tal pulverização dos ativos ocorria em blocos, atra- vés dos Collateralized Debt Obligation – CDO2. Esses, O livro “Ilusão Financeira: dos subprimes à transição por sua vez, passavam pela avaliação de crédito pelas ecológica”, de Gaël Giraud, está centrado em quatro Agências de Risco, que estipulavam um rating para os pontos: I) na crise financeira de 2007-08; II) na falsa ativos. Os CDOs somavam 470 bilhões de dólares em elevação de preços pregressa dos imóveis; III) nos pro- 2006 e mais do que quintuplicaram no ano seguinte: blemas da Zona do Euro; IV) em propostas alternativas 2,5 bilhões de dólares. ao por vir. O autor trabalhou no sistema financeiro e O risco de inadimplemento poderia ser assegurado traduz os conceitos complexos de forma didática ao mediante o pagamento de um bônus dos Credit De- público leigo em economia. Essa primeira seção trata- fault Swap – CDS3. Tais títulos podiam ser adquiridos rá brevemente desses pontos. inclusive a quem não está envolvido no negócio. Os No primeiro capítulo do livro, ele trata a bolha imo- bancos de investimento vendiam CDS em operações biliária ocorrida nos Estados Unidos como um sistema sem cobertura e sem reservas obrigatórias, através do de pirâmide do tipo ponzi1. As dívidas imobiliárias shadow banking4. Em caso de sinistro, não havia garan- eram quitadas mediante novas dívidas, na expectativa tias de capital suficiente para pagar. de que os imóveis persistissem em se valorizar. Entre 2001 e 2007, o valor dos imóveis dobrou nos EUA e o crédito ampliava-se 15% ao ano para o setor. Os crédi- 2 Collateralized Debt Obligation – CDO [obrigação de dívida tos eram concedidos com carências e as renegociações colateralizada]: é um tipo de estrutura de dívida titularizada, ou seja, partiam da hipoteca da casa mais valorizada. títulos de dívida. Originalmente desenvolvido para os mercados de dí- vida de empresas. (Nota da IHU On-Line) De outro lado, os bancos repassavam esses ativos 3 Credit default swap – CDS: é um acordo financeiro de swap em que o vendedor do CDS vai compensar o comprador (geralmente o cre- no mercado financeiro: o processo de securitização. dor do empréstimo de referência) no caso de um empréstimo padrão (pelo devedor) ou outro evento de crédito. Isso quer dizer que o vende- 1 Esquema Ponzi: é uma sofisticada operação fraudulenta de inves- dor do CDS assegura o comprador contra alguns não cumprimentos de timento do tipo esquema em pirâmide que envolve o pagamento de empréstimo de referência. O comprador do CDS faz uma série de paga- rendimentos anormalmente altos (“lucros”) aos investidores, à custa mentos (CDS “taxa” ou “spread”) para o vendedor e, em troca, recebe do dinheiro pago pelos investidores que chegarem posteriormente, em uma recompensa. Foi inventado por Blythe Mestres do JP Morgan em vez da receita gerada por qualquer negócio real. O nome do esquema 1994. (Nota da IHU On-Line) refere-se ao criminoso financeiro ítalo-americano Charles Ponzi (ou 4 Shadow banking [sistema bancário sombra]: é um termo para o Carlo Ponzi). (Nota da IHU On-Line) recolhimento de intermediários financeiros não bancários que ofere-

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Muitos dos créditos eram concedidos a clientes com “ajustar” a economia. A Irlanda assistiu quase todo risco elevado: o subprime5. As agências de risco não seu sistema bancário falir, sendo o governo obrigado eram tão criteriosas para estipular tais ratings, con- a nacionalizá-lo e, consequentemente, endividar-se. cedendo logo o “AAA”6. Os bancos tampouco estavam Segundo Giraud, a Grécia entrou na zona do Euro preocupados, uma vez que repassavam esses ativos porque havia interesse de outros países em fornecer via CDOs. Caso o cliente assumisse um crédito exces- produtos a ela, como o caso dos equipamentos milita- sivo, havia a possibilidade de conceder o emprésti- res adquiridos da França. Em paralelo ao excesso de mo e apostar contra o cliente no mercado, via CDS, crédito concedido à Grécia, os bancos apostavam con- a descoberto. Com a possibilidade de repassar o ris- tra o país no mercado financeiro, pouco preocupados, co, a alavancagem do sistema financeiro chegou a 62, portanto, com o risco de default. ou seja, os bancos emprestavam 98,4% dos ativos das hipotecas. Os planos de austeridade subsequentes causam re- cessão, elevação do desemprego e redução dos salá- No sistema ponzi, as expectativas de fluxos não são rios reais. Os países do sul europeu foram forçados a suficientes para, sequer, quitar os juros presentes nas diminuir seu padrão de vida para ganhar competitivi- amortizações de crédito. Como era de se esperar, os dade (ajuste). Flexibilização do mercado de trabalho imóveis não se valorizaram indefinidamente. Com dívi- e desmonte do Estado social. À medida que os Estados das elevadas e desaquecimento do mercado, os preços Nacionais salvam os bancos, ampliam seu risco e sua caíram. A elevação das inadimplências ativou o siste- dívida. ma de seguros (CDS). Porém, muitos deles estavam descobertos, levando a maior seguradora do mundo, a AIG, à falência, tendo sido nacionalizada pelo tesouro Ditadura dos investidores estadunidense. Além da Ilusão Financeira do mercado imobiliário, Revelação do sistema viciado os ativos alteram de preços por notícias quaisquer. “Manchas solares” afetam os valores dos ativos no mercado financeiro e ampliam a especulação. Giraud Era um sistema fraudulento e viciado. Os bancos (2015) aponta que os mercados financeiros impõem sabiam que haveria quebradeira, mas repassavam os suas políticas aos governos, tendo mais poder do que ativos com carimbo “AAA”, estipulados pelas agên- o eleitor. É a “ditadura dos investidores”. Os governos cias de crédito também de maneira escusa. O dolo nos diversos países são obrigados a seguir o script do era tamanho que um dos diretores do Goldman Sachs7, 53 mercado. E a despeito dos crashes frequentes, os mer- Greg Smith, pediu demissão no New York Times por cados persistem desregulamentados e com influência não compactuar com a negociação de produtos pouco política. Essa é a força da ilusão financeira. transparentes, disfarçados em siglas. Na crise, as sugestões dos financistas são as mes- A crise estadunidense no mundo mas: redução de salários, redução de direitos sociais e previdenciários, flexibilização do mercado de traba- A crise financeira que iniciou nos EUA se alastrou ra- lho. Isso ao tempo em que cometem fraudes no siste- pidamente para o mundo inteiro. A Espanha tinha uma ma financeiro e restringem informações de suas pés- dívida pública de 40% do PIB. Em quatro anos, che- simas condições de liquidez. De acordo com o autor, gou a quase 80%. Subsequentemente, o governo impôs os bancos comerciais não têm recursos para pagar os austeridade, redução de direitos e de salários para empréstimos contraídos com o Banco Central Europeu – BCE. Ele prevê um período longo de queda de preços cem serviços semelhantes aos tradicionais bancos comerciais, mas fora e estagnação para a Europa. dos regulamentos financeiros. (Nota da IHU On-Line) 5 Subprime (do inglês subprime loan ou subprime mortgage): é um crédito de risco, concedido a um tomador que não oferece garantias Linhas de fuga suficientes para se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa (prime rate). (Nota da IHU On-Line) Já no capítulo 7, o autor faz algumas sugestões após 6 Classificação de crédito (também chamada de nota de risco, ra- ting, classificação de risco, avaliação de risco, notação de risco ou nota- críticas à arbitrariedade na definição da taxa de in- ção financeira de risco): avalia o valor do crédito de emissões da dívida flação “aceitável” (2% a.a). Mesmo com tantas crises de uma empresa ou um governo. É análogo às notações de crédito para periódicas, a desregulamentação persiste, assim como pessoas físicas. Essa classificação é feita através de notas representa- a independência dos Bancos Centrais, herança conser- das sob letras e sinais aritméticos dados a partir de uma avaliação con- 8 cedida pelas principais agências de classificação de risco, como a Fitch vadora de Milton Friedman . É uma aposta na “credibi- Ratings, Moody’s e Standard & Poor’s, e avalia a possibilidade de esta entidade saldar suas dívidas. (Nota da IHU On-Line) 8 Milton Friedman: nascido em Nova Iorque, em 1912, foi professor 7 Goldman Sachs: é um dos maiores bancos de investimento do da Universidad de Chicago de 1946 a 1976, pesquisador do National mundo. Fundado em 1869 por Marcus Goldman, a companhia está Bureau of Economic Research, de 1937 a 1981, e presidente da Ame- sediada atualmente em Nova York e mantém escritórios em muitos rican Economic Association, em 1967. Friedman é o mais conhecido outros principais centros financeiros através do mundo. Goldman Sa- líder da Escola de Chicago e defensor do livre mercado devido, em chs oferece consultivos de fusões e aquisições, serviços de subscrição parte, a seus escritos serem muito fáceis de ler por qualquer pessoa. financeiro e outros produtos financeiros aos seus clientes. É também Monetarista, se opôs ao keynesianismo no momento de seu máximo um revendedor primário no mercado de valores mobiliários do Tesou- apogeu, nos anos 1950 e 1960. Propõe resolver os problemas da infla- ro dos EUA. (Nota da IHU On-Line) ção limitando o crescimento da oferta monetária a uma taxa constante.

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lidade”: risível fé ingênua nos mercados. Desta feita, ciais impostos pelos mercados para ampliar a compe- o autor sugere o fim da inútil e destruidora austerida- titividade. Esse custo cai sobre o segundo, visto como de, reestruturação das dívidas, fim da “neutralidade” o “arcaísmo gaulês” em que não se pode confiar, sob da autoridade monetária, renúncia à regra de Taylor9, o ângulo dos “educados”. Esses últimos não visualizam estabelecendo outras metas aos Bancos Centrais e não também que sua poupança não financia a produção e apenas o combate à inflação. está no cassino internacional dos mercados, enxergam apenas a remuneração. Uma lógica financeira mortífe- Giraud recorda das recomendações de Basileia III10 ra que impõe custos ao povo e ganhos a poucos. como provisões suplementares dos bancos em perío- dos de bonança. Ele sugere ainda restrições legais à securitização de letras de crédito e a separação entre Transição produtiva os bancos de crédito e os de investimento, para que os recursos poupados sejam direcionados para a eco- Outro tema central do livro é a transição produtiva nomia real e não para a financeira. Segundo o autor, é para bases mais sustentáveis do ponto de vista eco- falso o discurso que alega que os mercados financiam lógico. O consumo de petróleo levará a um desastre as atividades dos bancos comerciais, eles ficam tão ecológico, na visão do autor. Estima-se que haja uma somente na ciranda financeira. Ele lembra ainda que elevação de até 5°C, distância que nos separa da úl- os principais bancos do mundo têm filiais em paraísos tima era glacial, 40 mil anos atrás. Tal incremento fiscais e que, sem a cumplicidade dos bancos, a evasão levará a crescentes inundações, migrações, quebras fiscal é impossível. agrícolas e outras catástrofes. Para tais questões, são propostas a redução do consumo de carne e de garra- Euro e União Europeia fas descartáveis, maior utilização de transportes co- letivos, como o trem, redução de consumo de energia Com relação ao Euro, Giraud é cético. Ele propõe na construção e utilização de energias descarboni- uma Federação Europeia antes que as regras atuais se- zadas. Para o autor, uma das formas de financiar a pultem o bloco. Cerca de 1% do PIB europeu iria para o transição energética poderia ser por meio da criação orçamento confederado. Um dos principais problemas monetária, que já existe, através da multiplicação do Euro é que ele fixa uma taxa de câmbio entre os bancária, mas que é utilizada para incrementar o cas- seus membros, os quais são heterogêneos em termos sino financeiro. de produtividade e de inflação. Sob a mesma taxa de 54 juros, a do BCE, o juro real é diferente nos países e os II – Considerações críticas ao livro capitais tendem aos países mais deflacionistas, como a Alemanha, por exemplo. Já os países mais inflacionis- Algumas críticas podem ser desferidas ao traba- tas tendem a se endividar para financiar seus déficits. lho de Giraud (2015). O autor constata que durante os anos de maior crescimento econômico o consumo Outro problema é que a concorrência intrabloco de petróleo aumentou persistentemente. Após 1979, ocorre via deflação salarial. Dessa maneira, os países entretanto, o incremento foi menor. O autor sugere que se recusam a reduzir salários perdem competiti- que o consumo de petróleo impulsionou o crescimento vidade e ganham em inflação, sem poder desvalori- econômico. Ele argumenta que com o menor consumo zar suas moedas. A partir desse diagnóstico, o autor de petróleo, a renda per capita no mundo não cresceu propõe que haja mais de uma taxa de juros estabe- mais do que 1% ao ano, em média. lecida pelo BCE, orçamento único que compense as discrepâncias econômicas e até taxas de câmbio dis- Diante dessa suposição, em uma transição ecológi- tintas. Haveria ao menos duas zonas: a Norte e a Sul. ca, a taxa de crescimento seria menor, uma vez que o Ou então uma união fiscal completa, a qual encontra consumo de petróleo também seria menor. Ele chega resistência da Alemanha. a fazer um exercício com uma taxa de crescimento futura de 1%, devido à transição ecológica e o fator Para o autor, há um divórcio entre a elite e o povo energético dado. Ou seja, ele supõe que a variação europeu. O primeiro confia e saúda o mercado de capi- do consumo de combustíveis determina o crescimento. tais desregulamentado, mas não visualiza os custos so- Entretanto, há uma inversão causal patente aqui. O crescimento econômico exige maior consumo de pe- Obteve o Prêmio do Banco da Suécia, em Ciências Econômicas, em memória de Alfred Nobel. (Nota da IHU On-Line) tróleo e não o contrário. 9 Regra de Taylor: é uma regra de política macroeconômica enun- ciada por John B. Taylor em 1993. Trata-se de uma determinação exó- O período de menor crescimento econômico coin- gena da taxa de juros. (Nota da IHU On-Line) cide com o início da égide neoliberal, que, devido ao 10 Acordos de Basileia III ou simplesmente Basileia III: referem- menor crescimento e à elevação dos custos, exigiu -se a um conjunto de propostas de reforma da regulamentação ban- cária, publicadas em 16 de dezembro de 2010. Basileia III faz parte menos petróleo em termos relativos. Pós-1980, o mun- de um conjunto de iniciativas, promovidas pelo Fórum de Estabilida- do cresceu menos, mas a perda não foi para todos. Os de Financeira (em inglês, Financial Stability Board, FSB) e pelo G20, mais ricos elevaram sua riqueza de maneira mais rápi- para reforçar o sistema financeiro após a crise dos subprimes. Trata-se da, levando a uma ascensão abrupta da concentração da primeira revisão de Basileia II (CRD II) e foi realizada ao longo de 2009, com aplicação prevista para 31 de dezembro de 2010. (Nota da de renda e de riqueza (Piketty, 2014). Tais fatos não IHU On-Line) são levados em conta por Giraud (2015).

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Distopias e utopias Rousseau15, David Hume16, Francis Hutcheson17, Jera- my Bentham18 e outros tantos autores que travaram Giraud lamenta uma era de distopias, ou seja, as um belo debate, sem respostas definitivas, mas não utopias foram deixadas de lado. Isso ocorreu princi- tratadas por Giraud (2015). palmente após a década de 1980. Ele define implici- tamente a sua utopia predileta: a transição ecológica. Outras questões Como uma utopia, esta figura em seu trabalho como “a” solução para “todos” os problemas: para o pla- Cabe também levantar outras questões que foram neta, para o meio ambiente, para o conflito do Euro, tratadas no livro, mas não de maneira profunda. A para a financeirização, etc. Há uma forma de salvar a principal delas é a configuração do sistema financeiro todos, uma Terra prometida, um novo Jardim do Éden que está visível em sua ótica. O autor chega a visuali- internacional e a repercussão política desse arranjo. zar uma possibilidade de reindustrializar a Europa com Um olhar histórico, particularmente, traz alguns en- um comércio mais oneroso devido à transição ecológi- sinamentos relevantes. Um deles foi o que ocorreu no ca: improvável! mundo após a crise de 1929, nessa seara, que foi o fim

O autor sugere que as empresas tenham mais res- é frequentemente citada como a origem das concepções modernas de ponsabilidade social, sendo essa sua principal função identidade e do “Eu”. O conceito de identidade pessoal, seus concei- e não a maximização de dividendos. Uma boa utopia. tos e questionamentos figuraram com destaque na obra de filósofos posteriores, como David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Kant. Locke Do ponto de vista teórico, para defender sua argu- foi o primeiro a definir o “si mesmo” através de uma continuidade de consciência. Ele postulou que a mente era uma lousa em branco (tabu- mentação, o autor alega que os humores do público la rasa). Em oposição ao Cartesianismo, ele sustentou que nascemos não afetam o volume de dinheiro em circulação e por sem ideias inatas, e que o conhecimento é determinado apenas pela isso as “manchas solares” devem ser ignoradas. Embo- experiência derivada da percepção sensorial. O pensador escreveu o ra a volatilidade dos “mercados” deva ser criticada, é Ensaio acerca do Entendimento Humano, onde desenvolve sua teoria 11 sobre a origem e a natureza do conhecimento. Suas ideias ajudaram preciso cautela. John Maynard Keynes (1964) tratou a derrubar o absolutismo na Inglaterra. Dizia que todos os homens, com profundidade a capacidade que as expectativas e ao nascer, tinham direitos naturais – direito à vida, à liberdade e à a crença sobre o presente e sobre o futuro têm para propriedade. Para garantir esses direitos naturais, os homens haviam criado governos. Se esses governos, contudo, não respeitassem a vida, afetar variáveis reais como emprego, produto e ren- a liberdade e a propriedade, o povo tinha o direito de se revoltar con- da. Ou seja, as expectativas importam. Não afetam a tra eles. As pessoas podiam contestar um governo injusto e não eram quantidade de moeda em circulação, mas alteram a obrigadas a aceitar suas decisões. Dedicou-se também à filosofia polí- 55 velocidade dessa circulação, que, subsequentemente, tica. No Primeiro Tratado sobre o Governo Civil, critica a tradição que afirmava o direito divino dos reis, declarando que a vida política é uma impacta nas variáveis reais. invenção humana, completamente independente das questões divinas. No Segundo Tratado sobre o Governo Civil, expõe sua teoria do Estado Do ponto de vista de pressupostos filosóficos, o liberal e a propriedade privada. (Nota da IHU On-Line) autor parte da visão de um homem mais cooperati- 15 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): filósofo franco-suíço, escri- vo do que competitivo. Essa discussão filosófica é tor, teórico político e compositor musical autodidata. Uma das figuras ampla e inesgotável, partindo de Thomas Hobbes12, marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precur- sor do romantismo. As ideias iluministas de Rousseau, Montesquieu 13 14 Bernard Mandeville , John Locke , Jean-Jacques e Diderot, que defendiam a igualdade de todos perante a lei, a tole- rância religiosa e a livre expressão do pensamento, influenciaram a 11 John Maynard Keynes (1883-1946): economista e financista bri- Revolução Francesa. Contra a sociedade de ordens e de privilégios do tânico. Sua Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro (1936) é Antigo Regime, os iluministas sugeriam um governo monárquico ou uma das obras mais importantes da economia. Esse livro transformou republicano, constitucional e parlamentar. Sobre esse pensador, con- a teoria e a política econômicas, e ainda hoje serve de base à política fira a edição 415 da IHU On-Line, de 22-04-2013, intitulada Somos econômica da maioria dos países não comunistas. Confira Cadernos condenados a viver em sociedade? As contribuições de Rousseau à IHU ideias n. 37, As concepções teórico-analíticas e as proposições modernidade política, disponível em http://bit.ly/ihuon415. (Nota da de política econômica de Keynes, de Fernando Ferrari Filho, dispo- IHU On-Line) nível em http://bit.ly/ihuid37. Leia, também, a edição 276 da revista 16 David Hume (1711-1776): filósofo e historiador escocês, que com IHU On-Line, de 06-10-2008, intitulada A crise financeira interna- Adam Smith e Thomas Reid, é uma das figuras mais importantes do cional. O retorno de Keynes, disponível para download em http://bit. chamado Iluminismo escocês. É visto, por vezes, como o terceiro e o ly/ihuon276. (Nota da IHU On-Line) mais radical dos chamados empiristas britânicos. A filosofia de Hume 12 Thomas Hobbes (1588–1679): filósofo inglês. Sua obra mais fa- é famosa pelo seu profundo ceticismo. Entre suas obras, merece des- mosa, O Leviatã (1651), trata de teoria política. Neste livro, Hobbes taque o Tratado da natureza humana. Sobre ele, leia a IHU On-Line nega que o homem seja um ser naturalmente social. Afirma, ao con- número 369, de 15-08-2011, intitulada David Hume e os limites da trário, que os homens são impulsionados apenas por considerações razão, disponível para download em http://bit.ly/ihuon369. (Nota da egoístas. Também escreveu sobre física e psicologia. Hobbes estudou IHU On-Line) na Universidade de Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A res- 17 Francis Hutcheson (1694-1746): teólogo presbiteriano e filósofo peito desse filósofo, confira a entrevista O conflito é o motor da vida irlandês. Conhecido pelas suas teses sobre Ética e por ter sido pro- política, concedida pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição 276 fessor e fonte de inspiração de Adam Smith, Francis Hutcheson é um da revista IHU On-Line, de 06-10-2008. O material está disponível exemplo da transição do puritanismo Calvinista para uma teologia em http://bit.ly/ihuon276. (Nota da IHU On-Line) mais tolerante e pró-modernidade. (Nota da IHU On-Line) 13 Bernard de Mandeville (1670-1733): filósofo, físico e escritor 18 Jeremy Bentham (1748-1832): filósofo, jurista e reformador holandês. (Nota da IHU On-Line) social britânico. É reconhecido como o fundador do utilitarismo 14 John Locke (1632-1704): filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, moderno, que prega o desenvolvimento de ações com a máxima sendo considerado o principal representante do empirismo britânico e eficiência para o bem-estar social e a felicidade. Foi também o primeiro um dos principais teóricos do contrato social. Locke rejeitava a doutri- a utilizar o termo deontologia, para se referir ao conjunto de princípios na das ideias inatas e afirmava que todas as nossas ideias tinham ori- éticos a serem aplicados às atividades profissionais. (Nota da IHU gem no que era percebido pelos sentidos. A filosofia da mente de Locke On-Line)

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do Padrão-Ouro – PO19. Uma conjunção de três elemen- Esse processo se deve a um período de instabilida- tos merecem destaque: a fragilidade da Grã-Bretanha de. A dissolução do bloco soviético e a ascensão da (GB) no período pós Primeira Guerra Mundial – PGM, a China como player no comércio internacional com- incapacidade dos EUA de assumirem as responsabili- puseram dois dos principais condicionantes de quase dades que eram da GB e a própria crise da década de trinta anos cunhados por Dooley et al (2005) como 1930. “Bretton Woods II”. De acordo com os autores, o sur- gimento de países periféricos capazes de financiar o Houve nesse período uma dificuldade de estabilizar desequilíbrio norte-americano representa uma evolu- as taxas de câmbio, em paralelo ao crescimento de ção do sistema monetário internacional acertado em especulações contra as moedas e convívio com taxas 1944. elevadas de inflação. A GB, comprometida defensora do PO, optou por retomar a taxa de câmbio pré-PGM, Ainda no centro do sistema, os EUA têm seus de- no intuito de restabelecer a confiança em sua moeda, sequilíbrios financiados pelos asiáticos. Já os países nos bancos ingleses, assegurando, adicionalmente, o europeus foram relegados a um plano de menor im- valor de ativos estrangeiros. Esta escolha, entretanto, portância, dados o pífio crescimento do PIB e as altas envolvia muitos custos, uma vez que requeria políticas taxas de desemprego dos países da zona do Euro. A deflacionistas20. abundância de poupança desequilibra os fluxos de ca- Observar os detalhes do período de fim do PO e da pital para os EUA. Em paralelo, há a codependência transição hegemônica do século XX auxilia a entender com os países asiáticos. o período contemporâneo. Na atualidade, a economia Bibow (2010) salienta que o papel do dólar como a mundial se encontra desequilibrada, com países acu- moeda de troca internacional é um dos principais fato- mulando superávits recorrentes, ao passo que outros res que contribuiu para a crise de 2007-08. O autor ar- acumulam déficits. Em particular, os EUA que acumu- gumenta que o gasto americano financiado pelo públi- lam déficits não apenas na balança comercial, mas co, em vez do débito privado, proveria uma dinâmica também déficits fiscais, advindos das guerras pratica- mais sustentável para o crescimento global. Para ele, das e do custo da crise. Erros esses que a GB incorreu o sistema Bretton Woods II, proposto por Dooley et al. e que a deixaram submissas aos EUA. A história pode (2005), deve tornar-se um sistema Bretton Woods III, ensinar que sem um ajuste do comércio internacional em que a política fiscal e a dívida pública americana e nas contas externas americanas, a mudança de po- administrariam o crescimento dos Estados Unidos e do 56 der entre países pode se repetir. mundo. Desta feita, é conveniente olhar a magnitude E mesmo após os EUA se afirmarem como hegemô- dos mercados financeiros e sua influência política e nicos, houve períodos de instabilidade financeira que social a partir de prismas históricos que trazem ensi- fragilizaram sua posição. Os déficits em transações namentos sobre os períodos de transição global. Adi- correntes em que incorria a economia norte-america- cionalmente, há que levar em conta o papel do dólar na desde o final dos anos 1950 inviabilizaram a manu- e dos EUA para compreender a crise vigente. O próprio tenção da paridade dólar-ouro, levando o governo des- modus operandi do sistema financeiro internacional se país a anunciar, em 1971, o fim da conversibilidade merece um estudo acurado para um entendimento fixa. Foram abandonadas as paridades das demais mo- mais substantivo. edas em relação ao dólar e os controles financeiros dos países europeus, levando à derrocada final do sistema Questões cruciais para economia de Bretton Woods21 em 1973. mundial

19 Padrão-ouro: também chamado de estalão-ouro, foi o sistema O trabalho de Giraud (2015) levanta questões cru- monetário cuja primeira fase vigorou desde o século XIX até a Pri- meira Guerra Mundial. A teoria pioneira do padrão-ouro, chamada de ciais para a economia mundial contemporânea. Por teoria quantitativa da moeda, foi elaborada por David Hume em 1752, não ser um livro acadêmico, ele traduz conceitos eco- sob o nome de modelo de fluxo de moedas metálicas e destacava as nômicos e financeiros para o público leigo. Traz- crí relações entre moeda e níveis de preço (base de fenômenos da inflação e deflação). De acordo com a teoria aplicada ao comércio internacional ticas que merecem elogios acerca da dominância fi- e nos dizeres do economista René Villarreal, “os países superavitários nanceira na economia, na política e na sociedade de sofreriam processos inflacionários, enquanto nos países deficitários os maneira geral, o que ele chama de “voto implícito dos preços se moveriam em sentido inverso, até que se restabelecesse o mercados financeiros”. Embora com tons utopistas, le- equilíbrio”. (Nota da IHU On-Line) 20 Esta escolha pode ser respondida, de um lado, pelo comprometi- vanta a transição ecológica como possível saída para a mento da GB com o PO e, de outro, pela maior representatividade do capital financeiro em relação ao capital industrial no Reino. (Nota do ções, de forma a reparar os prejuízos da guerra e prevenir as depres- autor) sões e o desemprego. Concordaram também em estabilizar as moedas 21 Conferência de Bretton Woods: nome com que ficou conhecida nacionais, de forma que um país sempre soubesse o preço dos bens a Conferência Monetária Internacional, realizada em Bretton Woods, importados. A Conferência de Bretton Woods traçou os planos de dois no estado de New Hampshire, nos EUA, em julho de 1944. Represen- organismos das Nações Unidas – o Fundo Monetário Internacional e tantes de 44 países participaram da conferência. Nela foi planejada o Banco Mundial. O fundo ajuda a manter constantes as taxas de câm- a recuperação do comércio internacional depois da Segunda Guerra bio, além de socorrer países com crises nas suas reservas cambiais, Mundial e a expansão do comércio através da concessão de emprésti- como no caso do Brasil e da Rússia, em 1998. O banco realiza emprés- mos e utilização de fundos. Os representantes dos países participantes timos internacionais a longo prazo e dá garantia aos empréstimos fei- concordaram em simplificar a transferência de dinheiro entre as na- tos através de outros bancos. (Nota da IHU On-Line)

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crise vigente. Há que reforçar, entretanto, que o livro Referências Bibliográficas tem insuficiências, como algumas que foram tratadas acima. BIBOW, J. The Global Crisis and the Future of the Dollar: Toward Bretton Woods III? Working Paper no. 584. New Contudo, a crise que se arrasta desde 2007 pode York: Levy Economics Institute of Bard College, 2010. trazer alterações estruturais para o mundo, tais quais BLOCK, F.L. Las Orígenes Del Desorden Económico In- ocorreram na década de 1930 e na década de 1970. ternacional. Fondo de Cultura, 1980. Ao se assumir a visão de Polanyi (2000)22 de que o ex- cesso liberal trouxe a sua ruína, estaríamos diante de DOOLEY, M. P., FOLKERTS-LANDAU, D., GARBER, P. Inter- um novo cataclisma econômico e social, haja vista o national Financial Stability, Deutsche Bank, 2005. crescimento das finanças internacionais em decorrên- GIRAUD, Gäel. Ilusão financeira: dos subprimes à tran- cia da liberalização pós-1980. As turbulências sociais sição ecológica. São Paulo: Edições Loyola, 2015. e alterações políticas estão em alto relevo na Europa, KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, In- nos EUA e na América Latina, ao menos. Possibilidades terest and Money. New York: HBS, 1964. essas que trazem inúmeras reflexões, principalmen- PIKETTY, Thomas. Capital in the twenty-first century. te quando a crise foi originada no centro econômico Londres: The Belknap press of Harvard University press, mundial. 2014.23 POLANYI, Karl. A grande Transformação – Origens da nos- 22 Karl Polanyi■ (1886-1964): economista austríaco. Sua obra prin- cipal é A Grande Transformação – as origens de nossa época (Rio de sa época. 5.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. Janeiro: Campus, 2000), escrita nos Estados Unidos de 1940 a 1943. Sobre o economista a IHU On-Line 147, de 27-06-2005, dedicou o 23 A obra é originalmente publicada em francês. A referência da tema de capa A grande transformação. As origens da nossa época. Os tradução brasileira é PIKETTY, Thomas. Rio de Janeiro : Intrínseca, 60 anos da obra clássica de Karl Polanyi, disponível para download 2014. A tradução foi feita por Monica Baumgarten de Bolle. (Nota da em http://bit.ly/ihuon147. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

Bibliografia >>Fernando Cardim de Carvalho já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line, disponíveis na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br). 57 —— “Criou-se uma moeda europeia, mas não um estado europeu”. Entrevista publicada na edi- ção 330, de 24-05-2010, disponível em http://migre.me/45AqV —— As controvérsias da política econômica brasileira. Entrevista publicada na edição 338, de 09-08-2010, disponível em http://migre.me/45Aml —— Câmbio continua sendo maior desafio do governo brasileiro. Entrevista publicada na edição 356, de 04-04-2011, disponível em http://bit.ly/i2nIpu —— Crise global: mais do que apenas especulação financeira. Entrevista publicada na edição 372, de 05-09-2011, disponível em http://bit.ly/oU1vsC

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Getúlio e Lula: aproximações, distanciamentos, ganhos e limites de duas Eras Para Maria Izabel Noll, apesar de ambos serem marcados por um perfil de liderança popular, Getulismo e Lulismo são dissonantes quanto às suas lógicas políticas

Por João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves

partir da ideia de populismo, não existem modelos perfeitos. Quan- frequentemente a trajetória do há uma redução nos recursos dispo- A de Getúlio Vargas é recupera- níveis pelo Estado, esses gastos passam da para fazer referência a Luiz Inácio a ser vistos como comprometedores Lula da Silva. Entretanto, de acordo com do desenvolvimento e o outro grupo a historiadora, doutora em Ciência Polí- se legitima com propostas de ‘colocar tica, professora e pesquisadora da área, a casa em ordem’. Leia-se: reduzir os Maria Izabel Noll, “o conceito de popu- gastos sociais”, conclui. lismo perdeu muito de sua capacidade Por ocasião da memória do dia da explicativa ao ser utilizado para perso- morte de Getúlio Vargas, o Instituto nagens e momentos muito diferentes Humanitas Unisinos – IHU, promove a 58 entre si”. Considerando essa questão, conferência e o debate do tema “Ge- todavia, a pesquisadora percebe esse túlio Vargas e o positivismo”, a ser pro- traço e também a preocupação com a ferida pela pesquisadora, no dia 23 de promoção de direitos sociais em ambos agosto, das 17h30min às 19h, na Sala os líderes políticos. Por outro lado, ela Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, entende que “as duas figuras – Getú- campus São Leopoldo da Unisinos. lio e Lula – representam modelos bem diferentes de ‘cultura política’. Apesar Mais informações sobre o evento e de pernambucano, Lula é essencialmen- inscrições estão disponíveis no endere- te paulista. E Getúlio era um gaúcho da ço http://bit.ly/2bw8Ksz. fronteira que sabia perfeitamente o que Maria Izabel Noll é graduada em His- isso significava. O Rio Grande do Sul é tória e mestra em Ciência Política pela brasileiro por opção”, ressalta. Universidade Federal do Rio Grande Ao longo da entrevista, concedida do Sul – UFRGS e doutora em Ciência por e-mail à IHU On-Line, Maria Iza- Política pela École des Hautes Études bel Noll faz uma reflexão a respeito das en Sciences Sociales de Paris, França. Eras Vargas e Lula, tendo em perspecti- Também foi professora visitante no va o momento político que o Brasil está Center for Latin American Studies na vivendo ao interpretar os discursos que Universidade de Stanford, Estados Uni- emergem em momentos de crise como dos, e na École des Hautes Études en o atual. “Há no Brasil uma diferencia- Sciences Sociales, França. É professora ção entre dois discursos, dois grupos no Departamento de Ciência Política e políticos, duas maneiras de pensar a no Programa de Pós-Graduação em Po- líticas Públicas da UFRGS e atualmente própria sociedade. A Era Vargas (ou está na vice-direção do Instituto de Fi- as associações que a ela são feitas) é losofia e Ciências Humanas – IFCH da criticada por gastos sociais excessivos, UFRGS e na direção do Núcleo de Pes- direitos trabalhistas, maior protagonis- quisa e Documentação da Política Rio- mo estatal e acesso mais democrático Grandense – Nupergs. às instâncias de poder. Há problemas com esse modelo? Claro que há, mas Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Como compreen- outros. Eram leitores de Comte4 Saint-Simon7, onde teria buscado de o positivismo? Como ele se faz e, no caso de Castilhos, uma lei- sua visão evolucionista da Histó- presente na política de Getúlio tura particular de Comte que re- ria e a importância do proletaria- Vargas1? passou para a versão de republi- do e dos industriais na sociedade canismo que vigorou dali para a moderna. Maria Izabel Noll – O positivismo frente no RS. A esse conjunto de IHU On-Line – Quais os contex- no Rio Grande do Sul veio, princi- ideias chamou-se “castilhismo”5. tos políticos em que emergem os palmente, através dos alunos que Getúlio, como membro do Parti- governos de Getúlio Vargas? Como frequentaram a Faculdade de Di- do Republicano Rio-Grandense, entender os movimentos de Var- reito de São Paulo. Falo de Júlio bebeu nessas ideias e defendeu gas em cada uma das fases? de Castilhos2 e Assis Brasil3, entre o castilhismo. Mas, ao que indica sua biblioteca e citações em tra- Maria Izabel Noll – Joseph Love8 1 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles balhos e discursos, ele não era um diz em seu livro O regionalismo Vargas] (1882-1954): político gaúcho, nas- admirador de Comte. Aproximava- cido em São Borja. Foi presidente da Repú- gaúcho (São Paulo: Perspectiva, 6 blica nos seguintes períodos: 1930 a 1934 -se mais de Spencer e até de 1975) que a maior capacidade de (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo Getúlio era observar para que lado Constitucional), 1937 a 1945 (Regime de Ex- árabe e no melhoramento do Thoroughbred, iam os acontecimentos e, se colo- ceção) e de 1951 a 1954 (Governo eleito popu- o puro sangue inglês. Juntamente com o Ba- larmente). A IHU On-Line publicou o Dos- rão do Rio Branco, assinou o Tratado de Pe- cando à frente, liderá-los. Creio siê Vargas, por ocasião dos 60 anos da morte trópolis, que assegurou ao Brasil a posse do que é uma verdade. Pelo menos a do ex-presidente, disponível em http://bit. atual Estado do Acre. Neste estado foi criado, partir de 1930, isso é muito claro. ly/1na0ZMX. A IHU On-Line dedicou duas em sua homenagem, o município de Assis edições ao tema Vargas, a 111, de 16-08-2004, Brasil. (Nota da IHU On-Line) Daí ser acusado, muitas vezes, de intitulada A Era Vargas em Questão – 1954- 4 Augusto Comte (1798-1857): filósofo e esconder o jogo, demorar a se de- 2004, disponível em http://bit.ly/ihuon111, pensador social francês. Fundou a escola filo- finir ou fazer duplo papel – caso e a 112, de 23-08-2004, chamada Getúlio, sófica conhecida como positivismo e criou um disponível em http://bit.ly/ihuon112. Na conceito de ciência social a que deu o nome da II Guerra. Podemos ver três con- edição 114, de 06-09-2004, em http://bit.ly/ de sociologia. O positivismo comtiano afirma textos diferenciados na sua traje- ihuon114, Daniel Aarão Reis Filho concedeu que a verdade da ciência é indiscutível e de- tória política. O primeiro contexto a entrevista O desafio da esquerda: articu- monstrável universalmente. (Nota da IHU lar os valores democráticos com a tradição On-Line) importante, ainda no RS, é aque- estatista-desenvolvimentista, que também 5 Castilhismo: nome dado à corrente polí- le que permite sua eleição para o abordou aspectos do político gaúcho. Em tica que tinha por referência Júlio Prates de governo do estado em 1928. Ele 26-08-2004, Juremir Machado da Silva, da Castilhos, surgida em 1882 com a fundação emerge como pacificador, coisa que PUC-RS, apresentou o IHU Ideias Getúlio, do Partido Republicano Rio-Grandense – 59 9 50 anos depois. O evento gerou a publicação PRR. O Castilhismo era uma corrente política Borges de Medeiros não conseguiu do número 30 dos Cadernos IHU Ideias, de forte cunho conservador, ao mesmo tempo chamado Getúlio, romance ou biografia?, em que apostava na modernização econômi- sa mesma maneira, avançando das simples disponível em http://bit.ly/ihuid30. Ainda ca, por ter na burguesia industrial e urbana respostas automáticas dos animais inferiores a primeira edição dos Cadernos IHU em suas bases de apoio. Também sofreu forte aos processos de raciocínio do homem pen- formação, publicada pelo IHU em 2004, era influência do positivismo de Auguste Comte. sante. Escreveu também A classificação das dedicada ao tema, recebendo o título Populis- O castilhismo tinha três princípios básicos: ciências (1864), Os fatores da evolução orgâ- mo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Bri- 1) Escolha dos governantes baseado na sua nica (1887). (Nota da IHU On-Line) zola, disponível em http://bit.ly/ihuem01. pureza moral e não na sua representatividade 7 Conde de Saint-Simon, ou Claude (Nota da IHU On-Line) popular. 2) Na política devem ser eliminadas Henri de Rouvroy (1760-1825): filósofo 2 Júlio de Castilhos (1860-1903): político as disputas político-partidárias e valorizar só e economista francês, teórico do socialismo gaúcho. Em 15 de julho de 1891, foi eleito pre- a virtude. 3) O governante deve regenerar a utópico. (Nota da IHU On-Line) sidente do Estado do Rio Grande do Sul. Com sociedade, e o Estado comandar a transfor- 8 Joseph L. Love: professor emérito do De- a queda de Deodoro da Fonseca, foi deposto mação e modernização da sociedade. Embora partamento de História da Universidade de em 3 de novembro do mesmo ano. Pouco tenha origens ideológicas no pensamento de Illinois, em Urbana-Champaign. Foi diretor mais de um ano depois, Júlio de Castilhos Venâncio Aires, o Castilhismo como alinha- do Centro de Estudos Latino-Americanos e disputou uma eleição (sem concorrentes) e mento político surgiu junto com a ascensão do Caribe e do Instituto Lemann de Estudos voltou a ocupar o antigo posto. Empossado pessoal de Castilhos e do Partido Republica- Brasileiros. Também foi professor visitante em 1893, contém a Revolução Federalista, no Rio-Grandense. Ele foi eleito pela primei- na Pontifícia Universidade Católica do Rio de tendência parlamentarista e liderada por ra vez para o governo estadual em 1891. (Nota de Janeiro – PUC-Rio. Tornou-se conhecido Gaspar Silveira Martins. Sobre Júlio de Cas- da IHU On-Line) do público brasileiro principalmente por seus tilhos, confira a edição 14 dos Cadernos 6 Herbert Spencer (1820-1903): filósofo livros O regionalismo gaúcho e as origens IHU ideias, intitulado Júlio de Castilhos e britânico que ficou conhecido por sua tentati- da Revolução de 30 (São Paulo: Perspectiva, Borges de Medeiros: a prática política no va de elaborar um sistema filosófico baseado 1975), A locomotiva: São Paulo na Federa- RS, de Gunter Axt, ano 2003, e a IHU On- nas descobertas científicas de sua época, que ção brasileira, 1889-1937 (Rio de Janeiro: -Line número 78, de 06-10-2003. (Nota da pudesse ser aplicado a todos os assuntos. Foi Paz e Terra, 1982) e A construção do Terceiro IHU On-Line) o fundador da filosofia evolucionista. Em sua Mundo: teorizando o subdesenvolvimento 3 Joaquim Francisco de Assis Brasil obra principal, Um sistema de filosofia sinté- na Romênia e no Brasil (Rio de Janeiro: Paz (1857-1938): foi um advogado, político, ora- tica (1862-1896), aplicou a ideia da evolução e Terra,1998). (Nota da IHU On-Line) dor, escritor, poeta, prosador, diplomata e à biologia, à psicologia, à sociologia e a outros 9 Borges de Medeiros (1863-1961): polí- estadista brasileiro; propagandista da Repú- campos do conhecimento. Em seu trabalho tico gaúcho. Foi presidente do estado do Rio blica. Foi fundador do Partido Libertador, sobre biologia, Spencer traçou a evolução Grande do Sul, indicado por Júlio de Casti- deputado e governador do Rio Grande do Sul da vida desde sua forma menos reconhecível lhos e procurou dar continuidade ao projeto quando integrou a junta governativa gaúcha até o homem. Acreditava que a grande lei da político do castilhismo, do qual foi um dos entre 12 de novembro de 1891 e 8 de junho natureza era a ação constante de forças que maiores representantes e fiel executor do po- de 1892. Introduziu no Brasil o gado Jersey, tendiam a mudar todas as formas do simples sitivismo. Manteve-se no poder de 1898 até o gado Devon e a ovelha Karakul, tendo par- para o complexo. Spencer explicava que a 1928 e sua única interrupção como gover- ticipação importante na introdução do cavalo mente do homem tinha se desenvolvido des- nante ocorreu no quinquênio de 1908-1913.

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realizar, e permite voz à oposição, são do nazi-fascismo12, crescimen- muitos chefes de Estado, mas não mostrando uma nova capacidade to da influência comunista, Segun- viajou. Não por restrições idiomá- negociadora ao grupo republicano. da Guerra Mundial13, dominação ticas. Falava correntemente espa- nhol e francês. Para o inglês tinha O segundo contexto é decorrên- americana no hemisfério ocidental uma tradutora de toda confiança: cia do primeiro. Pela primeira vez e guerra fria14. Tudo isso impac- sua filha Alzira. com um Estado unificado, o RS tou internamente. Getúlio foi um 15 pode indicar um candidato à Pre- governante que praticamente não Com relação a Mussolini , creio sidência da República. Não apenas viajou para o exterior. Recebeu que além da admiração que na o rompimento entre Minas e São época o fascismo italiano desper- Paulo permite essa decisão, mas a de ações na bolsa de valores de Nova Iorque, tou em muita gente (caso de João apresentação de uma candidatu- a New York Stock Exchange, caíram dras- Neves da Fontoura16 e Lindolfo ticamente, desencadeando a Quinta-Feira Collor17, por exemplo) pode lhe ra viável e apoiada por todos (ou Negra. Assim, milhares de acionistas perde- grande maioria) leva Getúlio à li- ram, literalmente da noite para o dia, gran- ter interessado mais a organização derança da Aliança Liberal10. des somas em dinheiro. Muitos perderam tudo o que tinham. Essa quebra na bolsa de 15 Benito Mussolini (1883-1945): jor- Finalmente, o terceiro e mais valores de Nova Iorque piorou drasticamente nalista e político italiano, governou a Itália diferenciado contexto é o da volta os efeitos da recessão já existente, causando com poderes ditatoriais entre 1922 e 1943, grande deflação e queda nas taxas de venda autodenominando-se Il Duce, que significa ao poder “nos braços do povo”. Le- de produtos, que por sua vez obrigaram o fe- em italiano “o condutor”. Baseando-se numa vado ao governo devido ao capital chamento de inúmeras empresas comerciais filosofia política teoricamente socialista, con- político acumulado nos anos 1930 e industriais, elevando assim drasticamente seguiu a adesão dos militares descontentes as taxas de desemprego. O colapso continuou e de grande parte da população, alargou os e 1940, este momento apresenta- na segunda-feira negra (o dia 28 de outubro) quadros e a dimensão do partido. Após um rá desafios imensos cujo desfecho e terça-feira negra (o dia 29). (Nota da IHU período de grandes perturbações políticas e será o suicídio em 1954. On-Line) sociais, quando alcançou grande popularida- 12 Nazismo: conhecido oficialmente na de, guindou-se a chefe do partido, e em 1922 Alemanha como Nacional-Socialismo (em organizou a famosa marcha sobre Roma, um IHU On-Line – Como compreen- alemão: Nationalsozialismus), é a ideologia golpe de propaganda. Usando as suas milícias der os movimentos políticos in- praticada pelo Partido Nazista da Alemanha, para instigar o terror e combater abertamen- formulada por Adolf Hitler e adotada pelo te os socialistas, conseguiu que os poderes in- ternacionais de Vargas? governo da Alemanha de 1933 a 1945. Esse vestidos o nomeassem para formar governo. período ficou conhecido como Alemanha Na- Foi nomeado Primeiro Ministro pelo rei Vítor Maria Izabel Noll – Os movimen- zista ou Terceiro Reich. É considerado um Manuel III, alcançando a maioria parlamen- 60 tos internacionais só podem ser movimento essencialmente de extrema-direi- tar e, consequentemente, poderes absolutos. compreendidos se nos reportarmos ta. Os nazistas foram um dos vários grupos (Nota da IHU On-Line) a um período marcado por grandes históricos que utilizaram o termo “nacional- 16 João Neves da Fontoura (1887-1963): -socialismo” para descrever a si mesmos e, na um advogado, diplomata, jornalista, político 11 mudanças: Crise de 1929 , ascen- década de 1920, tornaram-se o maior grupo e escritor brasileiro, nascido em Cachoeira do da Alemanha. Os ideais do Partido Nacional Sul, estado do Rio Grande do Sul. Além disso, Sobre Borges de Medeiros, confira a edição 14 Socialista dos Trabalhadores Alemães (Parti- foi deputado federal, ministro das Relações dos Cadernos IHU ideias, intitulado Júlio do Nazista) são expressos no seu “Programa Exteriores durante os governos de Getúlio de Castilhos e Borges de Medeiros: a práti- de 25 Pontos”, proclamado em 1920. Entre os Vargas e Eurico Gaspar Dutra, embaixador ca política no RS, de Gunter Axt, ano 2003. elementos-chave do nazismo, há o antiparla- do Brasil em Portugal entre 1943 e 1945, (Nota da IHU On-Line) mentarismo, o pangermanismo, o racismo, membro da Academia Brasileira de Letras e 10 Aliança Liberal: Coligação oposicionis- o coletivismo, a eugenia, o antissemitismo/ membro correspondente da Academia das Ci- ta de âmbito nacional formada no início de antijudaísmo, o anticomunismo, o totalitaris- ências de Lisboa. Recebeu o título de Doutor agosto de 1929 por iniciativa de líderes políti- mo e a oposição ao liberalismo econômico e Honoris Causa da Universidade de Columbia cos de Minas Gerais e Rio Grande do Sul com político. (Nota da IHU On-Line) e a Ordem do Congresso Nacional. Faleceu o objetivo de apoiar as candidaturas de Ge- 13 Segunda Guerra Mundial: conflito ini- em 1963 no Rio de Janeiro, aos 75 anos de túlio Vargas e João Pessoa, respectivamente, ciado em 1939 e encerrado em 1945. Mais de idade. (Nota da IHU On-Line) à presidência e vice-presidência da República 100 milhões de pessoas, entre militares e ci- 17 Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor nas eleições de 1º de março de 1930. (Nota da vis, morreram em decorrência de seus desdo- (1890-1942): jornalista e político brasileiro, IHU On-Line) bramentos. Opôs os Aliados (Grã-Bretanha, nascido em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. 11 Crise de 1929 ou Grande Depressão: Estados Unidos, China, França e União Sovi- Seu neto, Fernando Collor de Mello, foi pre- grande depressão econômica que teve início ética) às Potências do Eixo (Alemanha, Itália sidente do Brasil, de 1990 a 1992. Sua estreia em 1929, e que persistiu ao longo da década e Japão). O líder alemão Adolf Hitler preten- na política se daria em 1921, quando foi eleito de 1930, terminando apenas com a Segun- dia criar uma “nova ordem” na Europa, base- deputado estadual, ao lado de João Neves da da Guerra Mundial. A Grande Depressão é ada nos princípios nazistas da superioridade Fontoura e Getúlio Dorneles Vargas integrou considerada o pior e o mais longo período alemã, na exclusão – eliminação física incluí- a Assembleia Legislativa gaúcha, onde foi re- de recessão econômica do século XX. Este da – de minorias étnicas e religiosas, como os lator da Comissão de Orçamento. A passagem período de depressão econômica causou al- judeus, ciganos e homossexuais, na supressão de Collor pelo Ministério do Trabalho durou tas taxas de desemprego, quedas drásticas das liberdades e dos direitos individuais e na apenas 15 meses, de dezembro de 1930 a mar- do produto interno bruto de diversos países, perseguição de ideologias liberais, socialistas ço de 1932, durante os quais redigiu toda a bem como quedas drásticas na produção in- e comunistas. Essa ideologia culminou com o estrutura da nossa legislação social. Norteado dustrial, preços de ações, e em praticamente Holocausto. (Nota da IHU On-Line) por algumas das legislações trabalhistas eu- todo medidor de atividade econômica, em 14 Guerra Fria: nome dado a um período ropeias e, dentro de um esclarecido ecume- diversos países no mundo. O dia 24 de ou- histórico de disputas estratégicas e confli- nismo, pela Encíclica Rerum Novarum, de tubro de 1929 é considerado popularmente o tos entre Estados Unidos e União Soviética, Leão XIII. Collor elaborou 12 decretos-leis início da Grande Depressão, mas a produção que gerou um clima de tensão que envolveu acompanhados de Exposições de Motivos industrial americana já havia começado a cair países de todo o mundo. Estendeu-se entre que apontam a sua oportunidade em face da a partir de julho do mesmo ano, causando um o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e evolução do pensamento de proteção ao ope- período de leve recessão econômica que se a queda da União Soviética (1991). (Nota da rariado em todos os países mais adiantados estendeu até 24 de outubro, quando valores IHU On-Line) do mundo. (Nota da IHU On-Line)

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do corporativismo do que a figura mo em tudo. Claro que os gover- consumo, mas principalmente ao do “duce”. Já no que diz respeito nos de Brasil e Argentina traziam mercado de direitos sociais. aos Aliados18, fica muito patente uma base popular que permitia a Não, porque são processos dife- em seu diário a simpatia por Roo- associação. rentes em sua dimensão e durabi- 19 sevelt em sua visita ao Brasil e, lidade. O período que vai de 1935 mesmo nos momentos dos discur- IHU On-Line – Faz sentido asso- a 1960 é de expansão constante sos mais “autoritários” ou quase- ciar a Era Vargas ao Lulismo? Por em todos os sentidos. Em 25 anos -fascistas, ele está mais afirmando quê? o país muda radicalmente. É difí- que o momento é para “governos cil de comparar, pois, nesse lapso Maria Izabel Noll – Sim e não. fortes” ou os “limites do libera- de tempo, temos vários regimes lismo” para sanar a crise, do que Sim porque em seus governos o políticos, vamos da ditadura à de- um posicionamento antiamericano país passou por grandes mudan- mocracia; num quadro econômico e pró-Eixo20. Com Perón21, já nos ças no que se refere a processos internacional altamente promissor, anos 1950, foi construída uma as- de inclusão social e incorporação tanto na Europa como nos Estados sociação com base na vinculação ao mercado de camadas antes não Unidos. A chamada Era Lula, já sa- dos sindicatos ao Estado, orques- participantes. No caso de Vargas, bemos agora, está situada entre trada pela UDN22, que via comunis- a urbanização e industrialização, os anos de 2004 e 2010, um pou- juntamente com a legislação tra- co mais, provocou mudanças radi- 18 Aliados: termo utilizado comumente, in- balhista (salário mínimo, férias, cais, mas mostrou limites. Apesar clusive por historiadores, para se referir aos países que se aliaram com os Estados Unidos aposentadoria...) mudaram as ba- de suas marcas serem evidentes e Reino Unido, na Primeira e Segunda Guer- ses das relações de trabalho e cria- e algumas delas muito difíceis de ra Mundial, contra a Alemanha e os países ram um processo de expansão que serem revertidas por uma eventual que a ela haviam se aliado. (Nota da IHU On-Line) oposição ao modelo. 19 Franklin Delano Roosevelt (1882- Além do mais, as duas figuras 1945): 32º presidente dos Estados Unidos. Realizou quatro mandatos e morreu durante – Getúlio e Lula – representam o último. Durante sua estadia na Casa Branca modelos bem diferentes de “cultu- enfrentou o período da Grande Depressão e ra política”. Apesar de pernambu- a Segunda Guerra Mundial. (Nota da IHU A maior capaci- On-Line) cano, Lula é essencialmente pau- 20 Eixo: também conhecidas como Aliança dade de Getúlio lista. E Getúlio era um gaúcho da 61 do Eixo, Nações do Eixo ou apenas Eixo, fo- fronteira que sabia perfeitamente ram um dos adversários da Segunda Guerra era observar o que isso significava. O Rio Grande Mundial. Seus inimigos eram as forças Alia- das. O Eixo dizia-se parte de um processo para que lado do Sul é brasileiro por opção. revolucionário que visava quebrar a hege- monia plutocrática-capitalista do Ocidente e defender a civilização do comunismo. (Nota iam os acon- IHU On-Line – Que associações da IHU On-Line) tecimentos e, são possíveis de se fazer entre o 21 Juan Domingo Perón (1895-1974): populismo e a emergência das fi- militar e político argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. Foi se colocando à guras de Getúlio Vargas e Lula? líder do Movimento Nacional Justicialista. Maria Izabel Noll – O conceito de Genericamente, esse Movimento é chamado frente, liderá-los peronismo. Os ideais são baseados no pensa- populismo perdeu muito de sua ca- mento de Perón. O Movimento Justicialista pacidade explicativa ao ser utiliza- transformou-se, mais tarde em Partido Jus- durou até o final dos anos 1970. A do para personagens e momentos ticialista, que é a força política majoritária na Era Lula resgatou a chamada “dí- Argentina. Os ideais do peronismo se encon- muito diferentes entre si. Getúlio tram nos diversos escritos de Perón como “La vida social histórica” do Brasil ao se tornou, ao longo do tempo, um Comunidad Organizada”, “Conducción Po- instituir políticas de distribuição líder popular, de massas. Lula tem lítica”, “Modelo Argentino para un Proyecto de renda e de combate à fome que essa dimensão e seu discurso, as- Nacional”, entre outros, onde estão expressos 23 a filosofia e doutrina política que continuam acabaram por incluir no mercado sim como o era o de Brizola , pode orientando o pensamento acadêmico e a vida milhões de consumidores, o que política da segunda maior nação sul-america- garantiu, também, crescimento 23 Leonel de Moura Brizola (1922-2004): na. (Nota da IHU On-Line) político brasileiro, nascido em Carazinho, 22 União Democrática Nacional – econômico. São, portanto, pro- no Rio Grande do Sul. Foi prefeito de Porto UDN: partido político brasileiro fundado cessos similares no sentido de que Alegre, governador do Rio Grande do Sul, em 7 de abril de 1945, frontalmente oposi- incluíram parcelas relevantes da deputado federal pelo extinto estado da tor às políticas e à figura de Getúlio Vargas Guanabara e duas vezes governador do Rio e de orientação conservadora. O “udenismo” população ao mercado de bens de de Janeiro. Sua influência política no Brasil caracterizou-se pela defesa do liberalismo durou aproximadamente 50 anos, inclusive clássico e da moralidade, e pela forte oposi- denciais de 1945, 1950, e de 1955 postulando enquanto exilado pelo Golpe de 1964, contra ção ao populismo. Além disso, algumas de o brigadeiro Eduardo Gomes nas duas pri- o qual foi um dos líderes da resistência. Por suas bandeiras eram a abertura econômica meiras e o general Juarez Távora na última, várias vezes foi candidato a presidente do para o capital estrangeiro e a valorização da perdendo nas três ocasiões. Em 1960, apoiou Brasil, sem sucesso, e fundou um partido educação pública. O partido detinha forte Jânio Quadros (que não era filiado à UDN), político, o PDT. Sobre Brizola, confira a apoio das classes médias urbanas e de alguns obtendo assim uma vitória histórica. (Nota da primeira edição dos Cadernos IHU em setores da elite. Concorreu às eleições presi- IHU On-Line) formação intitulado Populismo e trabalho.

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articular movimentos políticos e de Michel Temer, pelo ministro da veja-se o número de escândalos no massas com muito êxito. Casa Civil Eliseu Padilha? governo estadual de São Paulo. Maria Izabel Noll – A preocupa- Há no Brasil uma diferenciação IHU On-Line – Quais as seme- ção em acabar com a Era Vargas entre dois discursos, dois grupos lhanças e distinções entre o me parece uma coisa tipicamente políticos, duas maneiras de pensar nacional-desenvolvimentismo, paulista. No fundo há uma incon- a própria sociedade. A Era Vargas presente na Era Vargas, e o neo- gruência, pois a região que mais se (ou as associações que a ela são desenvolvimentismo, marca dos beneficiou com o modelo desen- feitas) é criticada por gastos sociais governos petistas? excessivos, direitos trabalhistas, maior protagonismo estatal e aces- Maria Izabel Noll – O nacional- so mais democrático às instâncias -desenvolvimentismo que caracte- de poder. Há problemas com esse rizou o pós-guerra e os anos 1950 e modelo? Claro que há, mas não 1960 estava atrelado a uma teoria, As travas que existem modelos perfeitos. Quan- 24 o modelo cepalino , que se dispu- em geral têm do há uma redução nos recursos nha a pensar projetos centrados no disponíveis pelo Estado, esses gas- desenvolvimento industrial para impedido mu- tos passam a ser vistos como com- os países latino-americanos com danças no Brasil prometedores do desenvolvimento alta participação do Estado como e o outro grupo se legitima com agente indutor. Foi fundamental dizem respeito propostas de “colocar a casa em para a transformação do Brasil em ordem”. Leia-se: reduzir os gastos uma grande economia. O chama- aos limites que a sociais. Lembra um pouco a velha do neodesenvolvimentismo da Era sociedade possui história do Delfim Netto25 durante Lula ainda está em teste. Foi uma a ditadura: primeiro tem que fazer resposta às políticas neoliberais de aceitar mu- o bolo para depois repartir. Só que implementadas nos anos 1990 pelo danças ou perda o bolo nunca era repartido. Ou era PSDB, principalmente, e mostrou repartido entre alguns escolhidos. que em economias como a brasilei- de privilégios 62 ra o Estado ainda é um ator fun- IHU On-Line – Existem, de fato, damental e que apenas o mercado herdeiros do projeto político de volvido durante a Era Vargas foi não alavanca os processos de de- Getúlio Vargas? São Paulo. No fundo eles querem senvolvimento econômico. dizer que São Paulo é moderno, Maria Izabel Noll – Não. A políti- se regra pela lógica do mercado e ca mudou muito. IHU On-Line – Como compre- que o setor privado é o grande mo- ender o que está por trás da fala tor do desenvolvimento. Até acho IHU On-Line – As travas que im- do ex-presidente Fernando Hen- que São Paulo é o que de mais pediram as profundas mudanças rique Cardoso, em 1994, quando moderno nós produzimos, mas as disse que “a Era Vargas acabou”? evidências de que não precisam 25 Antônio Delfim Netto (1928): eco- E o que está por trás dessa mesma nomista, professor universitário e político do Estado (governo federal) não brasileiro. Foi membro da Equipe de Plane- frase repetida agora, no governo se sustentam quando olhamos a jamento do Governo Paulista de Carlos Al- realidade. berto de Carvalho Pinto em 1959, Membro Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível do Conselho Consultivo de Planejamento em http://bit.ly/ihuem01. Leia também a O capitalismo brasileiro vive dos (CONSPLAN), órgão de assessoria à Política IHU On-Line intitulada Leonel de Moura recursos do Estado, todos os es- Econômica do Governo Castelo Branco em Brizola 1922-2004, disponível em http://bit. 1965 e do Conselho Nacional de Economia ly/ihuon107. (Nota da IHU On-Line) cândalos que temos presenciado no mesmo ano. Foi secretário de Fazenda do 24 Cepal – Comissão Econômica para a ultimamente não evidenciam ou- Governo Paulista de Laudo Natel nos anos de América Latina e o Caribe (português brasi- tra coisa. Não interessa qual par- 1966 e 1967, nomeado Ministro da Fazenda leiro) ou Comissão Económica para a Amé- nos anos de 1967 a 1974 e Embaixador do rica Latina e Caraíbas (português europeu): tido está no poder. O empresariado Brasil na França entre 1974 e 1978, nomeado criada em 1948 pelo Conselho Econômico e negocia e corrompe para pratica- Ministro da Agricultura em 1979 e do Planeja- Social das Nações Unidas com o objetivo de mente zerar a competição. Então, mento de 1979 a 1985. Deputado Constituinte incentivar a cooperação econômica entre os por São Paulo de 1987 a 1988 e Deputado Fe- seus membros. Ela é uma das cinco comis- o discurso fica bastante hipócrita, deral por São Paulo desde 1988. Em junho de sões econômicas da Organização das Nações pois dizer que vai acabar com a Era 2016, foi intimado pela Polícia Federal, pela Unidas (ONU) e possui 44 estados e oito ter- Vargas insinua que esse modelo de delegada da Operação Lava Jato, para prestar ritórios não independentes como membros. fazer política é intrinsecamente esclarecimentos aos investigadores sobre por Além dos países da América Latina e Caribe, que recebeu, segundo seu sobrinho, R$ 240 fazem parte da CEPAL o Canadá, França, Ja- corrupto e que um novo modelo mil em dinheiro vivo entregues pelo “depar- pão, Países Baixos, Portugal, Espanha, Reino será “limpo”, isento e o mercado tamento de propina” da maior empreiteira do Unido, Itália e Estados Unidos da América. A regulará tudo. Só que quando os país em 22 de outubro de 2014 no escritório atual secretária-executiva da CEPAL é a eco- do advogado e sobrinho do ex-ministro Luiz nomista mexicana Alicia Bárcena. (Nota da portadores desse discurso chegam Appolonio Neto, na capital paulista. (Nota da IHU On-Line) ao poder, a mesma coisa acontece, IHU On-Line)

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sociais no Brasil de Vargas são as melhor compreende movimentos a ocupação das escolas27, ainda é mesmas que impediram a conti- sociais, como junho de 2013 e prematura e carece de dados. Há nuidade do governo petista, dito mesmo a ocupação de escolas por fatores de comunicação entre es- como progressista? E que travas estudantes secundaristas? ses grupos que envolvem novas são essas? Maria Izabel Noll – Qualquer lei- mídias, interesses imediatos e vi- Maria Izabel Noll – As travas que tura sobre as últimas mudanças, são da política fora da mediação em geral têm impedido mudanças seja sobre junho de 201326 ou sobre dos partidos que torna difícil uma no Brasil dizem respeito aos limites analise mais séria. Há uma mudan- 26 Junho de 2013: os protestos no ça em processo. Até agora os par- que a sociedade possui de aceitar Brasil em 2013, também conhecidos mudanças ou perda de privilégios. como Manifestações dos 20 centavos, tidos, o governo – o que saiu e Se pensarmos que o Brasil foi o úl- Manifestações de Junho ou Jornadas de o que aí está – não entenderam Junho, foram várias manifestações populares nada. O que sairá de tudo isso só o timo país a abolir a escravidão e, por todo o país que inicialmente surgiram quando o fez, abandonou a popu- para contestar os aumentos nas tarifas de futuro nos dirá. lação negra à sua sorte, dá para transporte público, sobretudo nas principais capitais. São as maiores mobilizações no país como os gastos públicos■ em grandes eventos entender. Não adianta um gover- desde as manifestações pelo impeachment do esportivos internacionais, a má qualidade no ser progressista se a sociedade então presidente Fernando Collor de Mello dos serviços públicos e a indignação com a não o é. Numa democracia fica em 1992, e chegaram a contar com até 84% de corrupção política em geral. Os protestos mais difícil acusar. Os deputados simpatia da população. Inicialmente restrito geraram grande repercussão nacional e a pouco milhares de participantes, os atos internacional. Sobre o tema, confira a edição e senadores que votaram o afasta- pela redução das passagens nos transportes 193 dos Cadernos IHU ideias, intitulada mento da presidente Dilma foram públicos ganharam grande apoio popular em #VEMpraRUA: Outono Brasileiro? Leituras, eleitos, não chegaram lá sozinhos. meados de junho, em especial após a forte disponíveis em http://bit.ly/2aVdHxw. (Nota repressão policial contra os manifestantes, da IHU On-Line) Podemos questionar as regras elei- cujo ápice se deu no protesto do dia 13 em São 27 O sítio do IHU vem publicando diversos torais, mas isso explica detalhes e Paulo. Quatro dias depois, um grande número materiais que refletem sobre as ocupações nas não a totalidade. de populares tomou parte das manifestações escolas. Entre esses, destacamos “Ocupações nas ruas em novos diversos protestos por das escolas no RS: da criminalização várias cidades brasileiras e até do exterior. à constituição de novos movimentos”. IHU On-Line – Como a senhora Em seu ápice, milhões de brasileiros estavam Entrevista especial com José Carlos Sturza nas ruas protestando não apenas pela de Moraes, publicada nas Notícias do Dia lê a esquerda no Brasil de hoje? redução das tarifas e a violência policial, mas de 04-08-2016, disponível em http://bit. Qual a identidade partidária que também por uma grande variedade de temas ly/2bA2L98. (Nota da IHU On-Line) 63

LEIA MAIS... —— Dilma é eleita a primeira presidenta do Brasil. Entrevista especial com Maria Izabel Noll publicada nas Notícias do Dia, de 01-11-2010, disponível em http://bit.ly/2aAkHwE. —— As eleições municipais no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Um novo desafio para a esquerda brasileira. Entrevista especial com Maria Izabel Noll e Ivo Lesbaupin publicada nas Notícias do Dia, de 11-10-2008, disponível em http://bit.ly/2aOtwXf. —— “Somos mais iguais aos nossos concidadãos do que pensávamos”. Entrevista especial com Maria Izabel Noll publicada na revista IHU On-Line, nº 264, de 30-06-2008, disponível em http://bit.ly/2aAjQMA. —— Os cem dias do governo Yeda. Uma análise. Entrevista especial com Maria Izabel Noll publi- cada nas Notícias do Dia, de 30-04-2007, disponível em http://bit.ly/2aOsL0z.

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Católicos em rede: de ouvintes a produtores da palavra de fé Moisés Sbardelotto analisa o “ser católico” em um tempo de ressignificação de locais de fala constituídos a partir da experiência das relações em redes sociais

Por João Vitor Santos

Igreja Católica nunca quis fi- relação entre a tradição católica – e da car atrás em termos de apa- Igreja como um todo – e a mudança, a A ratos comunicacionais. Tão atualização para esse outro momento. logo o rádio se faz veículo, em 1931 é “O catolicismo, na era digital, continua fundada a Rádio Vaticana. Antes, ainda se manifestando como historicamente em 1896, um papa já tinha sua imagem enraizado e institucionalmente estru- registrada em filme. Televisão e inter- turado, mas também como simbolica- net também foram sendo “dominados” mente fluido e comunicacionalmente pela Santa Sé com o objetivo de espa- ressignificado”, aponta. lhar os princípios do Evangelho pelas mais diversas formas. Porém, como fez Moisés Sbardelotto, graduado em 64 em outros lugares, a chegada das re- Comunicação Social – Jornalismo pela des sociais como meio comunicacional Universidade Federal do Rio Grande do reorganiza relações sociais e políticas. Sul – UFRGS, mestre e doutor em Ciên- Assim, na Igreja, proporciona uma es- cias da Comunicação pela Universidade pécie de realinhamento nesse ofício de do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, com “anúncio da palavra”. “Nos processos estágio doutoral na Università di Roma midiáticos em rede, surge um novo “La Sapienza”, na Itália. Autor de E o posicionamento dos fiéis, dos ‘leigos’, Verbo se fez bit: A comunicação e a não apenas como meros ‘ouvintes da experiência religiosas na internet (São Palavra’, mas também como possíveis Paulo: Santuário, 2012). ‘produtores de uma palavra’ sobre a fé”, explica o doutor em Comunicação Foi membro da Comissão Especial Moisés Sbardelotto. para o Diretório de Comunicação para a Igreja no Brasil, da Conferência Na- Na entrevista a seguir, concedida por cional dos Bispos do Brasil – CNBB. En- e-mail à IHU On-Line, Sbardelotto ana- tre 2008 e 2012, trabalhou no Instituto lisa como essa experiência das redes Humanitas Unisinos – IHU. sociais vai não só mudando a relação entre Igreja e seus fiéis, mas vai tam- No próximo dia 1º de setembro pro- bém constituindo outro modo de “ser ferirá a conferência “E o Verbo se fez católico”. “Para além de uma prática rede”: religiosidades em reconstru- ritual de fé, emergem práticas comu- ção no ambiente digital, na Sala Igna- nicacionais midiáticas sobre a religião, cio Ellacuría e Companheiros – IHU, às que produzem (micro)transformações 17h30min. no próprio catolicismo, cuja construção Saiba mais em ihu.unisinos.br/ comum é reivindicada pelos diversos eventos interagentes em rede”, analisa. O pes- quisador também reflete como se dá a Confira a entrevista.

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digital que, entretanto, para nós, adultos [e também para a Igreja, portanto] muitas vezes parece es- tranho” (2009). Embora guardiã de uma tradi- Reforma digital ção multissecular, a Igreja tam- Assim, com o avanço da midia- bém conseguia falar as novas lin- tização em suas especificidades guagens e ‘traduzir a tradição’. digitais, vemos que a instituição Igreja se defronta com uma “Refor- ma digital”, como afirma a teóloga IHU On-Line – Quais as diferen- leiro, voltados à vivência, à prática estadunidense Elisabeth Drescher4. ças nas experiências religiosas e à experienciação da fé. Trata-se de um processo que envol- em ambiente digital na época de Com o passar dos anos, pas- ve ações de acesso, criação, arma- sua primeira pesquisa, “E o Verbo zenamento, gestão, distribuição e samos a perceber outros “sinais se fez bit: uma análise da experi- consumo de informações sobre o dos tempos” desse processo de ência religiosa na internet”1, e na sagrado voltadas à experiência re- midiatização digital da religião, sua recente pesquisa “E o Verbo ligiosa, não mais realizadas apenas que apontavam para as diferen- se fez rede: uma análise da circu- pelo clero e por peritos teológicos, ças mencionadas na pergunta. De lação do ‘católico’ em redes co- mas também por fiéis comuns, co- um lado, o então Papa Bento XVI3, municacionais online”2? municacionalmente autonomizados eleito em 2005, primeiro pontífice e conectados, que se apropriam Moisés Sbardelotto – A pesquisa de uma era marcadamente digital, das mídias digitais para ressignifi- “E o Verbo se fez bit”, foi realizada mostrava, em suas mensagens anu- car publicamente os mais diversos ais para o Dia Mundial das Comu- em um momento em que as cha- aspectos da vida de fé. madas “redes sociais digitais” ain- nicações Sociais, estar disposto a da não tinham a dimensão que têm configurar uma nova presença da Diante dessa “Reforma digital” hoje. Na época, percebíamos que, Igreja Católica no contexto midiá- vivida no âmbito sociocultural, a com o desenvolvimento cada vez tico digital. Os títulos de algumas Igreja, especialmente nas refle- 65 mais acelerado das mídias digitais, dessas mensagens já nos dão uma xões papais, se posicionou com o a internet passava a ser um am- ideia disso: “Novas tecnologias, apelo a uma espécie de “Contrar- biente para as mais diversas prá- novas relações. Promover uma cul- reforma digital”. Alguns exemplos. ticas religiosas. Inúmeros sites vin- tura de respeito, de diálogo, de Na mensagem de 2009, o papa fez culados ao catolicismo ofereciam amizade” (2009); “O sacerdote e a um chamado direto aos “jovens diversas possibilidades de experi- pastoral no mundo digital: os no- católicos”, pedindo-lhes para se ência religiosa via internet, fora do vos media ao serviço da Palavra” sentirem “comprometidos”: “A vo- âmbito tradicional do templo, me- (2010); “Verdade, anúncio e au- cês, jovens, (...) compete de modo diante serviços e rituais religiosos tenticidade de vida, na era digital” particular a tarefa da evangeliza- ção desse ‘continente digital’”. disponibilizados nas chamadas “ca- (2011); “Redes Sociais: portais de No ano seguinte, Bento XVI concla- pelas virtuais”. Nesses ambientes, verdade e de fé; novos espaços de mou especificamente o clero: “Aos além de mera “informação” sobre evangelização” (2013). presbíteros é pedida a capacidade a religião, também se promovia e A conclusão do papa era, ao mes- de estarem presentes no mundo se incentivava uma “relação pes- mo tempo, de uma mudança cultu- digital”, especialmente diante das soal” com o sagrado no contexto ral e de uma defasagem eclesial. suas “perspectivas sempre novas digital, em um novo ambiente de Dizia ele: “A profunda transforma- e, pastoralmente, ilimitadas” para culto. Assim, tentamos compreen- ção operada no campo das comuni- a missão da Igreja. Assim, o então der como se dá essa “encarnação cações guia o fluxo de grandes mu- pontífice católico reconhecia os em bits e pixels” da experiência do danças culturais e sociais” (2011), desafios que a comunicação con- sagrado, analisando as interações das quais os jovens são sinais e por- temporânea levantava diante da comunicacionais em rituais online tadores ao habitarem “um mundo Igreja e convocava seus “quadros” do ambiente digital católico brasi- internos (o clero) e também as suas 3 Bento XVI, nascido Joseph Aloisius “bases” (os jovens) a um posiciona- 1 A dissertação de mestrado está disponível Ratzinger (1927): foi papa da Igreja Católica em http://bit.ly/2bz70yW. Com o mesmo e bispo de Roma de 19 de abril de 2005 a 28 mento e a uma resposta concreta. título, o autor também publicou artigo de fevereiro de 2013, quando oficializou sua no Cadernos IHU, número 35, disponível abdicação. Desde sua renúncia é Bispo eméri- 4 Elizabeth Drescher: PhD em religião, em http://bit.ly/2bA4ewh (Nota da IHU to da Diocese de Roma, foi eleito, no conclave trabalha com a temática religião na vida co- On-Line) de 2005, o 265º Papa, com a idade de 78 anos tidiana, professora no Departamento de Es- 2 A tese de doutorado está disponível em e três dias, sendo o sucessor de João Paulo tudos Religiosos da Universidade de Santa http://bit.ly/2bHxP7p. (Nota da IHU II e sendo sucedido por Francisco. (Nota da Clara, nos Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) On-Line)

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Isso passou a se concretizar em com Pio XII9; ou ainda ao primeiro ciedade em conexão, em um pro- práticas comunicacionais específi- e-mail enviado por um papa, João cesso em que as pessoas também cas, como em 2011, quando o Papa Paulo II10, com uma mensagem in- vão moldando os protocolos de Bento XVI lançou mundialmente o ternet aos bispos da Oceania, em suas interações (como uma espé- portal News.va, uma iniciativa da 1995. cie de “etiqueta comunicacional” própria de cada plataforma). A Santa Sé para buscar uma maior A ideia parecia ser a de mostrar Igreja Católica, portanto, adentra inserção da Igreja nas plataformas que, embora guardiã de uma tradi- aos poucos, como “forasteira”, em sociodigitais, como Facebook e ção multissecular, a Igreja também um “território midiático” que não Twitter. No evento de lançamen- conseguia falar as novas lingua- é mais o próprio, mas possui suas to, em uma Sala Paulo VI lotada, gens e “traduzir a tradição”, como próprias regularidades, que, ao o pontífice sentou-se na frente afirma o teólogo italiano Andrea emergirem de modo complexo, vão de um táblete, tocou na sua tela Grillo11, nas modalidades comuni- além da possibilidade institucional e enviou o primeiro “tuíte papal” cacionais contemporâneas. E assim da história5, que, ao mesmo tem- eclesial de geri-las de acordo com chegamos a 2016, com a inaugu- seus interesses. po, inaugurou o serviço News.va. O ração da primeira conta pontifícia momento foi registrado em vídeo6, no Instagram, @Franciscus, em que O sagrado em e, nas imagens registradas, fica um pontífice adentra um ambiente clara a curiosidade papal diante da cujo lema é construir “um mundo circulação “novidade” da comunicação midiá- mais conectado através das fotos”. tica digital, assim como a dificulda- Essa missão “externa”, portanto, é Nesse contexto, vão surgindo de de manuseio da tecnologia para assumida pelo pontífice nesse ges- também inúmeras outras expres- sões públicas sobre o catolicismo o envio da mensagem – o seu dedo, to comunicacional. quase trêmulo, ao pressionar a tela nas plataformas sociodigitais, seja do táblete, não ativa o software na A forasteira mediante tuítes, postagens, co- primeira tentativa. mentários e compartilhamentos; seja ainda pela criação de grupos e Contudo, em tais ambientes “se- páginas públicas em tais platafor- O tuíte papal culares”, sem qualquer vínculo di- mas dedicadas ao catolicismo, sem reto com o contexto religioso, isso vinculação institucional, por parte Esse tuíte papal, marcado pelo significa, para a instituição e sua de pessoas comuns, a partir dos 66 ineditismo e contemporaneidade hierarquia, abrir mão do seu po- mais variados pontos de vista, sem da modalidade comunicacional, der de controle sobre a construção qualquer vinculação oficial com a de sentido sobre o papa e o cato- detinha um relevante caráter his- instituição-Igreja. Assim, criam-se licismo, pois, agora, é necessário tórico entre os principais gestos ambientes públicos de circulação comunicacionais da Igreja Católica obedecer a protocolos outros, in- de sentidos sobre o catolicismo ao longo da história – talvez com- dicados por instituições outras (as (potencialmente sem limites de al- parável à primeira imagem regis- empresas Facebook, Twitter, Insta- cance social “massivo”), em que as trada em filme de um papa, Leão gram) e pela complexidade da so- pessoas “dizem” o catolicismo mi- XIII7, em 1896; ou à primeira trans- 9 Papa Pio XII (1876-1958): nascido Eu- diaticamente à sociedade, postan- missão da voz papal no rádio, em genio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, foi do conteúdos diversos (textos, ima- 1931, quando foi fundada a Rádio eleito Papa em 2 de março de 1939. Foi o pri- gens, vídeos) vinculados à tradição Vaticano por Pio XI8; ou mesmo à meiro Papa nascido na cidade de Roma desde e à doutrina da Igreja Católica, primeira transmissão de imagens 1724. (Nota da IHU On-Line) 10 Papa João Paulo II (1920-2005): Sumo indo muito além da mediação tra- papais na televisão, em 1949, Pontífice da Igreja Católica Apostólica Roma- dicional da “grande mídia” (enten- na e soberano da Cidade do Vaticano de 16 dida como as corporações midiáti- 5 Disponível em: http://bit.ly/2b6fFdM. de Outubro de 1978 até à sua morte. Teve o cas) também da mediação eclesial (Nota do entrevistado) terceiro maior pontificado documentado da 6 Disponível em: http://bit.ly/2bzalOe. (Nota história, reinando por 26 anos, depois dos tradicional voltada à comunicação. do entrevistado) papas São Pedro, que reinou por cerca de 37 O “sagrado” passa a circular, fluir, 7 Leão XIII (1810-1903): nascido Vincenzo anos, e Pio IX, que reinou por 31 anos. Foi o deslocar-se nos meandros da in- Gioacchino Raffaele Luigi Pecci. Foi Papa único Papa eslavo e polaco até a sua morte, e de 20 de fevereiro de 1878 até a data da sua o primeiro Papa não italiano desde o neerlan- ternet por meio de uma ação não morte. Notabilizou-se primeiramente como dês Papa Adriano VI em 1522. Nota da IHU apenas do âmbito da “produção” popular e bem sucedido Arcebispo de Per- On-Line) eclesial nem só industrial-midiá- guia, o que conduziu a sua nomeação como 11 Andrea Grillo: é teólogo italiano, leigo, tica, mas também mediante uma Cardeal em 1853. Ficou famoso como o “papa casado, especialista em liturgia e pastoral. das encíclicas”. A mais conhecida de todas, a Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia ação comunicacional dos inúmeros Rerum Novarum, de 1891, sobre os direitos Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício interagentes conectados. e deveres do capital e trabalho, introduziu a Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Institu- ideia da subsidiariedade no pensamento so- to Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Assim, o sentido do “ser reli- cial católico. (Nota da IHU On-Line) Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de gioso” e do “ser católico” em so- 8 Papa Pio XI (1857-1939): nascido Ambro- Santa Giustina, de Pádua. Também é mem- ciedade, mediante essas novas gio Damiano Achille Ratti, foi Papa entre 6 de bro da Associação Teológica Italiana e da As- fevereiro de 1922 e a data da sua morte. (Nota sociação dos Professores de Liturgia da Itália. mediações sociais e comunicacio- da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) nais, encontra “pontos de fuga”

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no processo de circulação social, uma prática ritual de fé, emergem ticano15 ou do site Vatican.va, en- indo muito além (ou ficando muito práticas comunicacionais midiáti- fim, das mídias vaticanas. aquém) dos interesses eclesiais. A cas sobre a religião, que produzem Contudo, o avanço do processo instituição eclesial se defronta com (micro)transformações no próprio de midiatização digital levou a uma uma construção social de sentidos catolicismo, cuja construção co- grande complexificação desse fenô- emergentes, em que as pessoas, mum é reivindicada pelos diversos meno, que encontrou um dos seus nos diversos âmbitos da rede, tam- interagentes em rede. marcos no ingresso de Bento XVI bém podem reconstruir sentidos no Twitter, com uma conta pessoal publicamente sobre o catolicismo em grande alcance e velocidade, IHU On-Line – Em que medida própria. Ou seja, não se tratava da em nível global, potencialmente. é possível afirmar que o velho, a conta de um meio de comunicação Nos mais diversos âmbitos da inter- tradição, em específico no caso vaticano (porta-voz, jornal, rádio, net, portanto, a instituição eclesial da Igreja Católica, se atualiza TV ou site), mas sim da presença da própria instância máxima do ca- e a sociedade em geral falam so- através da perspectiva e da lógi- tolicismo – o pontífice– no Twitter. bre o catolicismo, retrabalhando, ca de pensamentos e relações em Emerge, assim, o primeiro “papa- ressignificando, ressemantizando a rede? Como se dá esse processo? experiência, a identidade, o ima- -mídia”: a conta @Pontifex aponta, ginário, as crenças, as práticas, Moisés Sbardelotto – Podemos ao mesmo tempo, para uma mídia a doutrina, a tradição religiosa, ter uma ideia da dimensão dessa personificada na pessoa de Bento atualizando-os a novos interagen- “atualização” resgatando alguns XVI, e para um papa pessoalmen- tes sociais e a públicos ainda maio- casos recentes desse processo de te midiatizado em uma plataforma res, em uma trama complexa de “Contrarreforma digital”. Desde sociodigital. No Twitter, portanto, sentidos. Leão XIII12, em 1896, com a primei- a mediação comunicacional Igreja- mundo não se dava mais apenas ra imagem filmada de um papa, pelas mídias vaticanas ou externas. O católico em rede passamos a contar com “papas Agora, o próprio papa passava a ser midiáticos”, que encontraram o uma mídia em pessoa, podendo O catolicismo em rede, dessa seu auge em João Paulo II. Em tais “criar e compartilhar ideias e in- forma, se manifesta mediante uma casos, a construção de sentido so- diversificada e difusa rede de re- formações instantaneamente, sem cial sobre a persona pontifícia era lações entre símbolos, crenças e qualquer barreira”, como promete agenciada pelas operações midiáti- 67 práticas vinculados à experiência a plataforma. religiosa católica, à tradição histó- cas do porta-voz papal, do jornal L’Osservatore Romano13, da Rádio Outro caso extremamente rico, rica do catolicismo ou à instituição do ponto de vista comunicacio- Vaticano14, do Centro Televisivo Va- Igreja Católica, aquilo que chama- nal, é a reconstrução digital de um mos de “católico”. Como produto 12 Leão XIII (1810-1903): nascido Vincenzo evento único na história da Igreja, da interação e da comunicação Gioacchino Raffaele Luigi Pecci. Foi Papa como a renúncia do próprio Bento entre os interagentes sobre o ca- de 20 de fevereiro de 1878 até a data da sua XVI. Se “traduzir a tradição” papal morte. Notabilizou-se primeiramente como tolicismo, é o “católico” que pos- ao Twitter já foi uma tarefa árdua, sibilita tal processo de interação e popular e bem sucedido Arcebispo de Per- guia, o que conduziu a sua nomeação como imagine-se a complexidade de tra- comunicação em rede. Cardeal em 1853. Ficou famoso como o “papa duzir digitalmente uma novidade das encíclicas”. A mais conhecida de todas, a Ou seja, no contexto da nova Rerum Novarum, de 1891, sobre os direitos radical na tradição do papado. É pesquisa, foi possível perceber que e deveres do capital e trabalho, introduziu a bom lembrar que o mundo ficou o “Verbo”, além de se “fazer bit”, ideia da subsidiariedade no pensamento so- sabendo da notícia de antemão via cial católico. (Nota da IHU On-Line) Twitter, porque a jornalista italiana também flui, desloca-se, circula 13 L’Osservatore Romano (em português 16 pelos meandros da internet me- O Observador Romano): é o periódico semio- Giovanna Chirri , da agência Ansa, diante infindáveis ações de -cons ficial da Santa Sé. Faz a cobertura de todas trução de sentido por parte de inú- as atividades públicas do Papa, publica edi- 15 Centro Televisivo do Vaticano (sigla toriais escritos por membros importantes do CTV): é um canal de televisão instituído em meros interagentes em conexão. clero da Igreja Católica e imprime documen- 1983 e que tornou-se, desde Novembro de Portanto, para além do caráter tos oficiais depois de autorizados. Seus lemas 1996, num organismo ligado à Santa Sé. O privado da fé online analisada an- são: unicuique suum (a cada um o seu) e no objetivo principal do CTV é contribuir para teriormente nas chamadas “cape- praevalebunt (“Os portões do Inferno” não dar a conhecer universalmente o Evangelho, prevalecerão) os quais estão impressos sob o documentando com imagens televisivas o mi- las virtuais”, desponta hoje, com título na primeira página. O endereço da pá- nistério pastoral do Sumo Pontífice e as ativi- mais força, o aspecto público do gina em português é osservatoreromano.va/ dades da Santa Sé Apostólica (Estatuto de 1 fenômeno religioso em circulação pt. (Nota da IHU On-Line) de Junho de 1998). O endereço do sítio é ctv. 14 Rádio Vaticano: é a emissora de rádio va e o Canal em português no You Tube por comunicacional na internet. Para da Santa Sé que tem por finalidade anunciar ser acessado em http://bit.ly/2b6t7vq. (Nota além da experiência religiosa espe- a mensagem cristã católica e proporcionar da IHU On-Line) cífica fomentada pelos sites cató- uma união do Vaticano com as demais co- 16 Giovanna Chirri: correspondente do licos, manifesta-se agora a experi- munidades cristãs espalhadas pelo mun- Vaticano da agência de notícias ANSA, é o do. O endereço da página em português é jornalista que primeiro deu ao mundo a notí- mentação religiosa diversa e difusa http://br.radiovaticana.va/. (Nota da IHU cia da renúncia do Papa. A partir do escritório nas mídias digitais. Para além de On-Line) de imprensa do Vaticano, ouviu as palavras

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acompanhando a transmissão do circulação sociocomunicacional no re Sanchis19. No entanto, é preciso consistório daquele 11 de feverei- Twitter, constantemente reatuali- atentar aqui para o propriamente ro de 2013 ao vivo e entendendo o zava a imago de Bento XVI median- comunicacional na construção des- que o papa estava lendo em latim, te os rastros de seus tuítes ainda ses mecanismos no processo de imediatamente disparou o tuíte em fluxo nas interações em rede midiatização digital da religião. que provocaria um abalo em todas e mediante referências dos diver- Mais do que perceber mudanças ou as redações do mundo: “B16 renun- sos usuários à conta @Pontifex. rupturas entre um “antes” e um cia. Deixa o pontificado a partir do Nos dias em que ficou desativada, “depois”, é mais produtivo atentar dia 28 de fevereiro”17. para o processo comunicacional, Com isso, o Twitter se tornou mediante mecanismos de “fagoci- palco de um debate social de ní- tose da fagocitose” da identidade vel mundial sobre o acontecimen- católica por parte da sociedade em rede. to, em rede. Marcadores nas mais O sentido do diversas línguas (como #elpapa- Nesse processo, o “católico” só é dimite, #pope, #dimissioniPapa, ‘ser religioso’ e enquanto está sendo, e só perma- #Joseph Ratzinger, #Habemus Pa- nece porque muda: e essa tensão pam, #Pontificado), relacionados do ‘ser católico’ de uma “estabilidade dinâmica” ou à renúncia, logo subiram aos pri- em sociedade, de uma “dinâmica estável” é prin- meiros lugares da lista dos tópicos cipalmente comunicacional. Isto é, mais comentados pelas pessoas no mediante essas na fluidez de símbolos, crenças e Twitter em todo o mundo, os cha- práticas católicas em rede, o “ca- mados Assuntos do Momento (Tren- novas media- tólico” se manifesta não apenas ding Topics). ções sociais e como ortodoxia (opinião elevada, direita, correta), mas também Sede Vacante digital e comunicacio- como heterodoxia (opinião hete- em rede rogênea, diversa), como um “es- nais, encontra tar sendo” do catolicismo, sempre Depois da saída do papa, coube ‘pontos de fuga’ em circulação. Isso leva à própria à Santa Sé reconstruir simbolica- reconstrução do “católico”, como 68 mente na plataforma Twitter a no processo de invenção/produção de algo “novo” “sé vacante digital” do papa. Os circulação social (construção) e também como expe- tuítes de Bento XVI, então, foram rimentação/transformação de algo deletados de todas as contas @Pon- a conta papal, paradoxalmente, já existente (desconstrução). tifex e repassados para um arqui- permaneceu “ativa” e “ativada” vo da página News.va, disponível pelos diversos usuários na circula- IHU On-Line – Como se dá a in- ainda hoje18. Por sua vez, a Santa ção comunicacional, continuando teração entre Igreja e fiéis e en- Sé modificou a interface da con- tre fiéis e Igreja nos ambientes ta, alterando a foto do perfil (não a agregar seguidores e a congregar de redes sociais? Em que medida mais uma foto de Bento XVI, mas circuitos de produção de sentido. é possível se falar em abertura o brasão da sé vacante) e também O papa não falaria mais no Twit- da Igreja a partir das experiên- o nome do perfil (não mais “Bento ter, mas as pessoas o faziam falar cias de interações em rede com XVI”, mas “Sede Vacante”). Assim, retomando seus tuítes. Assim, em- os fiéis? uma configuração interna da Igreja bora já “papa emérito”, retirado e (a renúncia de um papa e o trono aposentado, Bento XVI continuava Moisés Sbardelotto – Para enten- vazio) foi ressignificada no ambien- sendo “@Pontifex”: não havia mais der tais interações, é importante te digital: a “sé digital” da Igreja tuítes oficiais dessa conta, mas sim partir do horizonte reflexivo da também passava a estar vaga. a partir dessa conta e sobre ela, própria Igreja. Ainda na mensagem em que os diversos usuários recons- ao Dia Mundial das Comunicações Contudo, mesmo com a renúncia truíam os sentidos já “arquivados” de 2013, Bento XVI reconhecia que do papa, a sociedade em geral, na pela Igreja e reforçavam os proces- as mídias digitais “tornam-se cada de Josef Ratzinger, enquanto seguia o Consis- sos circulatórios na comunicação vez mais parte do próprio tecido tório dedicado aos mártires de Otranto a ser digital. contado entre santos 12 de Maio. O sítio do 19 Pierre Sanchis: antropólogo francês, dou- IHU tem publicado alguns textos da jornalis- Trata-se de apenas alguns casos tor em Sociologia pela Universidade de Paris, ta. Entre eles “Bento XVI melhorou sensivel- de um processo muito mais com- e especialista em antropologia da religião, é mente sua imagem”, publicada nas Notícias professor emérito da UFMG. Confira no site do Dia de 02-05-2012, disponível em http:// plexo, que reforçam um fenômeno do Instituto Humanitas Unisinos, a entre- bit.ly/2b42jSh. (Nota da IHU On-Line) histórico do catolicismo, marcado vista exclusiva concedida por Sanchis à IHU 17 O tuíte original está disponível aqui: http:// por “mecanismos de fagocitose On-Line: “O campo religioso será ainda hoje bit.ly/2b6j2l8. (Nota do entrevistado) o campo das religiões?”, publicada em 01-12- 18 Disponível em http://bit.ly/2bHD6vw. que parecem ser parte da identi- 2006, disponível em http://bit.ly/kxQIxJ. (Nota do entrevistado). dade católica”, como aponta Pier- (Nota da IHU On-Line)

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da sociedade” e percebia nelas “a Fechamento e Sem dúvida, para toda comu- aparição de uma nova ágora, de excomunicação nicação há uma excomunicação, uma praça pública e aberta onde as e esta também pode se dar me- diante uma “não comunicação”, pessoas partilham ideias, informa- De certa forma, isso leva àquilo ções, opiniões e podem ainda ga- como o silêncio. No caso católico, que Alexander R. Galloway22, Eu- nhar vida novas relações e formas mesmo havendo a possibilidade gene Thacker23 e McKenzie Wark24 de comunidade”. de responderem a um tuíte e de chamaram de excommunication, participarem de uma conversa no O problema desse processo, se- ou seja, “excomunicação”: a co- Twitter, as contas @Pontifex nun- gundo o Papa Francisco, em sua municação de que outra comuni- ca estabelecem tais diálogos com mensagem de 2014, é “fechar-se cação deve cessar, ou não deveria outros interagentes em rede, nem em uma esfera de informações que nem existir, ou ainda de que outra mesmo quando a reflexão papal é correspondem apenas às nossas ex- comunicação é necessária. Isto é, reconstruída socialmente median- pectativas e às nossas ideias”. Por as páginas institucionais católicas te sentidos fortemente desviantes isso, em termos eclesiais, Bento realizam uma “excomunicação” e em relação àquilo que podia ser XVI defendia em 2011 um esforço se fecham a qualquer “perturba- esperado pela Igreja. Faz-se valer para dar a conhecer a verdade do o silêncio pontifício, a escolha im- Evangelho “na sua integridade” em prevista e desviante em relação às vez de “torná-la aceitável, talvez práticas comunicacionais e socio- ‘mitigando-a’”. Mas como a insti- técnicas nesse ambiente online, a tuição eclesial pode promover essa excomunicação. “não mitigação da fé”, em meio às O ‘sagrado’ pas- diversas e difusas interações comu- sa a circular, Escapes ao silêncio nicacionais em rede? eclesial No seu site institucional20, a San- fluir, deslocar-se ta Sé encontrou uma saída a esse nos meandros Entretanto, as pessoas também desafio ao não oferecer nenhuma encontram “brechas” e “escapes” modalidade de intercâmbio pesso- da internet às excomunicações eclesiais. Em al por parte dos visitantes do site, suas postagens, tuítes, comentários nem qualquer participação pública ção” externa, impedindo outras e retuítes, elas podem manifestar 69 dos usuários nos conteúdos da pá- comunicações em seu interior. Em- suas opiniões pessoais publicamen- gina, como comentários ou outras bora o Twitter sugira que a “ver- te, muitas vezes com conteúdos formas de contato online. Nessas dadeira magia” da plataforma está desviantes ou até mesmo contrá- páginas, talvez justamente para em seguir outros usuários, ao segui- rios àquilo que foi proposto pela conservar a sua “integridade”, só rem apenas as suas demais versões própria instituição. O fluxo comu- nicacional da circulação, portanto, estão presentes as versões oficiais idiomáticas, as contas @Pontifex não se deixa deter ou delimitar por e autorizadas da tradição e da também “excomunicam” outros doutrina católicas, sem interfe- estruturas ou impedimentos quais- possíveis “seguidos”, desviando-se rências externas. Na página oficial quer e, mesmo diante de obstácu- dos usos propostos pela plataforma do Vaticano no YouTube21, a Igreja los, encontra outros circuitos para e consolidados pelos usuários. Católica também desativou o cam- a construção de sentido. po de comentários de cada vídeo. 22 Alexander R. Galloway (1974): pro- Em conexão, a sociedade se en- Tal postura também se repete nas fessor e associado do Departamento de Mídia, contra cada vez mais exposta en- páginas do News.va, que não ofe- Cultura e Comunicação na Universidade de Nova York. É bacharel em cultura moderna e tre si, cada vez mais em relação, rece qualquer modalidade de par- mídia pela Universidade Brown, Ph.D. em Li- com maior frequência e maior ticipação pública dos leitores. No teratura da Universidade de Duke. Galloway intimidade, confrontando opções Twitter, desde o primeiro dia da é conhecido por seus escritos sobre filosofia, locais e colocando em debate presença pontifícia, continua ha- teoria da mídia, arte contemporânea, cinema e jogos de vídeo. (Nota da IHU On-Line) pontos de vista específicos, me- vendo, mesmo com Francisco, so- 23 Eugene Thacker: professor na The New diante a pluralização de opções. mente oito “seguidos” por parte School em Nova York. Seu trabalho é associa- Percebe-se aí uma tendência à do papa, ou seja, outros usuários do com a filosofia do niilismo e pessimismo. relativização Ele recebeu seu diploma de bacharel da Uni- , em sentido comu- de quem o pontífice recebe as atu- versidade de Washington, e doutorado em nicacional e eclesial. A visão de alizações: apenas as oito demais Literatura Comparada da Universidade Rut- mundo do “outro” conectado a personas linguísticas das próprias gers. (Nota da IHU On-Line) mim é mais facilmente reconhe- contas @Pontifex. Isto é, o papa só 24 McKenzie Wark (1961): escritor, é co- nhecido por seus escritos sobre teoria da mí- cida, para ser compartilhada ou segue a ele mesmo. dia , teoria crítica, novos meios de comuni- rejeitada. Em sentido religioso, cação. Seus trabalhos mais conhecidos são o trata-se da reconstrução do “ca- 20 Disponível em: www.vatican.va. (Nota do Manifesto Hacker e Teoria Gamer. Ele é pro- tólico” não de forma “ab-soluta”, entrevistado). fessor de Mídia e Estudos Culturais na The 21 Disponível em: https://www.youtube.com/ New School em Nova York. (Nota da IHU isto é, desvinculada, desconecta- user/vatican. (Nota do entrevistado) On-Line) da, mas encarnada em relações,

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em rede e para além delas. Desse dade Católica25 no Facebook. Ela festa a relevância da comunicabili- modo, o “católico” emerge como se apresenta como “um grupo de dade do “católico” em rede: para relativo e relacional, para além leigos católicos que compreende que a diversidade sociocultural de qualquer “abertura” ou “fe- ser possível viver duas identida- em suas múltiplas facetas possa chamento” eclesial institucional. des aparentemente antagônicas: ser eclesialmente levada em con- ser católico e ser gay, numa ampla ta e assumida, é necessário que IHU On-Line – Quais os pontos acepção deste termo, incluindo ela seja reconhecida por toda a 26 que mais lhe chamaram atenção toda diversidade sexual (LGBT)” . Igreja (não no sentido de aceitar/ na sua observação da ação de gru- aprovar/“canonizar”, mas de to- pos católicos em redes sociais? mar contato/ver/perceber/saber que existe/ser considerado). Caso Em que medida reproduzem e em contrário, o risco seria o de uma que medida se afastam do com- “guetização” não apenas por parte portamento de outros grupos atu- das minorias periféricas do catoli- antes em redes sociais? Para além da cismo, mas principalmente da pró- Moisés Sbardelotto – Nossa pes- experiência reli- pria Igreja institucional, na rede e quisa envolveu, dentre outras coi- giosa específica fora dela. sas, um estudo de casos múltiplos (a conta @Pontifex no Twitter; e as fomentada pelos Leigos-amadores páginas Rádio Vaticano – Programa Brasileiro, Jovens Conectados e Di- sites católicos, Emergem, assim, “leigos-ama- versidade Católica no Facebook), manifesta-se dores”, que exponenciam no am- na busca das especificidades de biente digital seus vínculos e suas cada caso e das transversalidades agora a experi- competências sociorreligiosas entre eles. Portanto, mais do que preexistentes (ou constituindo-os uma “comparação” entre os grupos mentação reli- precisamente de modo online). O católicos ou não em rede, podemos giosa diversa e leigo-amador, portanto, é um in- levantar aqui algumas inferências teragente comunicacional não re- interpretativas que podem ser ge- difusa nas mí- vestido pela oficialidade religiosa 70 neralizadas teoricamente a outras dias digitais nem pela institucionalidade midiá- situações, sempre levando-se em tico-corporativa – ou, se investido conta as particularidades próprias de tais competências, é alguém de cada contexto. Trata-se de um caso de autonomi- que age em rede propositalmente zação e publicização midiáticas de desprovido de tais qualificações, Dito isso, o que percebemos em um “sujeito socioeclesial” especí- sem a necessidade de ostentar nossas análises é que, nos proces- fico (o “gay assumidamente cató- publicamente o seu saber-fazer sos midiáticos em rede, surge um lico”), mediante um esforço comu- reconhecido pela autoridade. O novo posicionamento dos fiéis, dos nicacional de explicitação pública “católico” em rede passa, assim, “leigos”, não apenas como meros da existência dessa “comunidade” por uma “inovação ascendente”, “ouvintes da Palavra”, mas tam- (como indica a categoria da pági- proveniente não apenas da cúpula bém como possíveis “produtores na no Facebook) de católicos gays de uma palavra” sobre a fé, que é brasileiros, superando o isolamen- tes na América Latina sobre a pós-moderna. comunicada em rede, deixando de Além de professor na Colômbia e no Méxi- to e a invisibilização socioeclesial. co, tem atuado como professor visitante nas ser “palavra pessoal” para ser “pa- Universidades Complutense de Madrid, Au- lavra social”, ao entrar no fluxo da A relevância da tonoma de Barcelona, da Universidade de Stanford, gratuito Berlim, Faculdade Londres circulação comunicacional midiáti- comunicabilidade do ca. Possibilita-se um maior acesso do rei, Puerto Rico, Buenos Aires, São Pau- católico lo, Lima , entre outros. Em 1975 ele fundou comunicacional à expertise religio- a Escola de Comunicação da Universidad sa e uma multiplicação das zonas del Valle e em 2003 obteve a nacionalidade de contato entre a instituição e a Surge, aí, a possibilidade de pas- colombiana. Sua análise da cultura como me- diações, o estudo da globalização a partir da sociedade. A sociedade ressignifica sar “da conexão ao encontro, e do encontro à ação”, como aponta semiótica, a relação da mídia com seu público as plataformas sociodigitais como e, especialmente, as formas deste jogo deles, 27 um espaço alternativo para agen- Jesús Martín-Barbero . Aí se mani- que estudou especificamente para o caso de telenovelas na América Latina, são alguns de tes sociorreligiosos ativos, criativos 25 Disponível em: http://bit.ly/2brthCP. (Nota suas contribuições. Tem sido uma das figuras e inventivos, como as minorias e do entrevistado) centrais da intelectualidade crítica contem- grupos periféricos na Igreja Católi- 26 Disponível em: http://bit.ly/2b59zY5. (Nota porânea do continente com autores como ca, por exemplo. do entrevistado) Néstor García Canclini, Ángel Rama, Carlos 27 Jesús Martín-Barbero (1937): vive em Monsivais, Thomas Moulián ou Beatriz Sarlo. Um dos casos analisados em nos- Colômbia desde 2002. Doutor em filosofia, Uma das suas obras mais importantes é “Dos estudos de antropologia e semiótica, é um meios às mediações : comunicação, cultura sa pesquisa, nesse sentido, foi, especialista em cultura e meios de comunica- e hegemonia” (Rio de Janeiro : Ed. UFRJ, como dissemos, a página Diversi- ção que produziu sínteses teóricas importan- 2009). (Nota da IHU On-Line)

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eclesial, nem somente da cúpula em rede evidencia ainda mais que que desencadeou uma revolução midiático-corporativa, mas sim de o catolicismo, como universo so- sociocultural, como explicou Le- bases socioeclesiais conectadas, ciossimbólico, envolve uma longa onardo Boff29, podemos dizer que formadoras e reformadoras do “sabedoria” histórica em torno da a “Reforma digital” se manifesta catolicismo, que propagam suas gestão de antagonismos, negocia- como uma revolução sociocultu- invenções religiosas a redes mais ção de divergências, estabilização ral que está desencadeando uma amplas mediante gestos de coope- de tensões, solução de conflitos, revolução religiosa. Não estaría- ração comunicacional. harmonização de diferenças, como mos simplesmente diante de um aponta Brenda Carranza28. E isso período entre a extinção de um Isto é, no fenômeno da midiati- tem implicações relevantes para modelo “oficial” de catolicismo, zação digital, existe uma “produ- pontos-chave do catolicismo, que ção comunicacional ubíqua”, que mas estaríamos perante o “nasci- vão além do âmbito digital, como se faz notar não apenas pelas suas mento de uma nova forma social maneiras de empregar o que já identidade, comunidade, auto- da religião” católica, nas pala- 30 está “produzido” midiaticamen- ridade, ritualidade, que, em um vras de Thomas Luckmann , com te, mas também pelas suas pro- contexto de midiatização digital, o surgimento de novas formas de duções próprias, que circulam em são tensionadas por um trabalho percepção, experiência e expres- rede. Assim, é possível dizer que, sociocomunicacional inventivo e são contemporâneas do religioso nas práticas religiosas em rede, a criativo. católico – um “novo” catolicismo marcadamente midiatizado. possibilidade de “dizer o católico” O que a análise da circulação do publicamente, nos ambientes digi- “católico” em rede permite afir- tais, por parte dos leigos-amado- mar é que a irrupção do novum IHU On-Line – No que as experi- res, é também uma ação propria- católico ocorre em condições so- ências anteriores da Igreja com as mente teopolítica de publicização, cioeclesiais específicas, como algo, mídias, como o rádio, a TV, os ve- visibilização, reconhecimento e muitas vezes, marginal, clandesti- ículos impressos, se assemelham legitimação de minorias eclesiais no, desviante, pequeno, modesto, e distinguem desse momento de ou de crenças e práticas católicas invisível, disperso. Mas a sua trans- “reconstrução da religiosidade periféricas. E é teopolítica em dois formação, mediante ações comuni- em ambiente digital”, com base níveis: primeiro, por inscrever a cacionais de reinvenção e experi- nas experiências em rede? percepção social do “católico” em mentação religiosas, por sua vez, Moisés Sbardelotto – A Igreja um espaço midiático mais amplo e 71 potencialmente, pode também sempre despontou, historicamen- público do que a prática religiosa transformar essas mesmas con- te, como um meio comunicacional ou a reflexão teológica formais, dições socioeclesiais. Por ser um complexo, e a aposta e os inves- envolvendo a sociedade em geral; processo em rede, o que aconte- timentos feitos naquele que hoje segundo, por possibilitar a cons- ce aqui e agora pode desencadear é o seu gigantesco aparato comu- trução de processos que ainda não outros processos, indetermináveis, nicacional são uma prova disso. estão plenamente estabelecidos em outros “aquis” e “agoras”. nas relações entre sociedade e re- 29 Leonardo Boff (1938): teólogo brasilei- ligião, nem são plenamente reco- Reforma digital: ro, autor de mais de 60 livros nas áreas de nhecidos institucionalmente. teologia, espiritualidade, filosofia, antropo- revolução sociocultural logia e mística. Boff escreveu um depoimen- to sobre as razões que ainda lhe motivam a IHU On-Line – A partir dessas ex- Em suma, se a Reforma Protes- ser cristão, publicado na edição especial de periências de exercício da religio- Natal da IHU On-Line, número 209, de 18- tante foi uma revolução religiosa 12-2006, disponível em http://bit.ly/iBjvZq, sidade midiatizada, é possível se e concedeu uma entrevista sobre a Teologia falar em nova forma de professar 28 Brenda Carranza: nascida na Guate- da Libertação na IHU On-Line número 214, a fé? Por quê? mala, residente no Brasil desde 1990, forma- de 02-04-2007, disponível em http://bit.ly/ da Teologia/PUC-Campinas e em Ciências kaibZx. Na edição 238, de 01-10-2007, inti- Moisés Sbardelotto – Tais práti- Sociais/ UNICAMP, mestre em sociologia e tulada Francisco. O santo, concedeu a entre- doutora Ciências Sociais/UNICAMP. É pro- vista A ecologia exterior e a ecologia interior. cas parecem estar gerando o des- fessora da Pontifícia Universidade Católica Francisco, uma síntese feliz, disponível em vio e a modificação das relações de de Campinas. A IHU On-Line já publicou http://bit.ly/km44R2. Sua entrevista mais sentido religioso, impulsionando algumas entrevistas com Brenda. Entre elas recente à IHU On-Line intitula-se Ecologia a evolução do próprio catolicismo “Papa Francisco: continuidades essenciais integral. A grande novidade da Laudato e rupturas simbólicas”, publicad ana revista Si’. “Nem a ONU produziu um texto desta – o que não pressupõe necessaria- IHU ON-Line, número 465, de 18-05-2015, natureza’’ e está disponível em http://bit. mente um salto de “qualidade” disponível em http://bit.ly/2bfBEOt ; “A ly/1lk6J6U (Nota da IHU On-Line) teológica, mas sim um processo incompatibilidade entre felicidade mate- 30 Thomas Luckmann (1927-2016): foi rial e espiritual”, publicada na revista IHU um professor de Sociologia na Universidade de transformação progressiva e On-Line número 404, de 05-10-2012, dis- de Constança na Alemanha. Desde 1994 era gradual de sua percepção, experi- ponível em http://bit.ly/2bwHsXc; e “A professor emérito. Luckmann tornou-se co- ência e expressão do catolicismo, fraternidade cristã diante do abismo da de- nhecido por seus livros A construção social mediante a difusão e a ampliação sigualdade social”, publicada na revista IHU da realidade, editado em 1966 com Peter L. On-Line número 366, de 26-06-2011, dis- Berger, A religião invisível (1967) e Estrutu- dos saberes-fazeres a ele relacio- ponível em http://bit.ly/2bpRjw9. (Nota da ras do mundo da vida (1982, junto com Alfred nados. A circulação do “católico” IHU On-Line) Schütz). (Nota da IHU On-Line)

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Porém, o avanço da midiatização estar diante da emergência de um tar os fiéis, em alguns casos, no revela que o período histórico da “sensus fidelium digitalis”, median- sentido de perguntar a opinião ou “cristandade”, que desautorizava te gestos comunicacionais em rede. julgamento deles” (n. 121), como e desvalorizava – “excomunica- Segundo o texto vaticano, o sensus uma condescendência da hierar- va” – o diferente, falando sempre fidei fidelium é justamente uma quia em relação aos fiéis. Como o o mesmo para os mesmos, vai aos “realidade comunitária e eclesial” documento vaticano deixa entre- poucos perdendo espaço cultural. para “discernir a verdade da fé” ver, na própria história da Igreja, Diante da expansão das opções de (n. 2-3), é a “sabedoria católica do “muitas vezes não foi a maioria, escolha inerentes à midiatização, a mas uma minoria que realmente sociedade passa a não se conten- viveu a fé e a testemunhou [...] tar mais com sentidos absolutos: Por isso, é particularmente impor- tenta-se continuamente ressignifi- tante discernir e escutar as vozes cá-los a partir das culturas locais. dos ‘pequeninos que creem’” (n. Não uma única “aldeia global ca- O ‘católico’ só é 118). E, como vimos, há diversos tólica”, parafraseando Marshall “pequeninos” que vão se autono- McLuhan31, mas sim diversas e di- enquanto está mizando mediante práticas comu- fusas “aldeias globais católicas”, sendo, e só per- nicacionais digitais, gerando outras hoje conectadas. formas de expandir a sua voz no manece porque contexto eclesial e também social Nesse processo, o “católico” vai mais amplo. se constituindo não apenas como muda: e essa aquilo que é “enunciado” pela Nessas novas formas de consti- Igreja-instituição e seus represen- tensão de uma tuição e organização do “católico” tantes autorizados, mas principal- ‘estabilidade di- como sensus fidelium digitalis, mente por aquilo que é “anuncia- emergeria um saber-fazer e um do” pela Igreja em geral, em seus nâmica’ ou de poder-fazer simbólico-religioso diversos níveis, em suas variadas uma ‘dinâmica compartilhado em redes comuni- interações sociais, sendo, portan- cacionais online, mediante experi- to, diversa e difusamente posto estável’ é prin- mentação e reinvenção religiosas. em circulação, reconhecido e re- Tais processos deslocariam o papel 72 construído. O catolicismo, na era cipalmente co- central não apenas das instituições digital, continua se manifestando municacional midiáticas corporativas na constru- como historicamente enraizado e ção social de sentido, mas também institucionalmente estruturado, povo” (n. 108) que, precisamente das próprias instituições eclesiais mas também como simbolicamen- pelo fato de os fiéis estarem “sem- na promoção de experiências, no te fluido e comunicacionalmente pre em relação uns com os outros” estabelecimento de crenças e na ressignificado. (n. 65), se constitui como processo configuração de práticas religiosas Assim, atualmente, quando os comunicacional. Se, hoje, a “rela- nas sociedades contemporâneas. sentidos católicos são cada vez mais ção” se dá também e principalmen- A própria teologia, nesse sentido, poderia ser vista não como “razão reconstruídos e postos em circula- te em rede, é possível inferir que, pura” sobre a fé, mas como “teo- ção em redes comunicacionais on- embora ínfimos, “microbianos”, os logia colaborativa”, explorativa, line por uma ação dos diversos fiéis gestos comunicacionais em rede aberta, uma “atividade comu- e interagentes que ali interagem, não se restringem a um nível “sim- nitária que se desenvolve dina- podemos retomar um conceito mui- bólico” etéreo sobre o catolicismo, micamente dentro de contextos to relevante na tradição da Igreja pois trazem consigo repercussões e que voltou à tona recentemente históricos precisos”, como aponta desdobramentos nos mais diversos 32 com um documento da Comissão Antonio Spadaro . Nessa ação, que níveis da vida eclesial, a começar também é comunicacional, hierar- Teológica Internacional, intitulado pela própria prática religiosa em “O sensus fidei na vida da Igreja” quia eclesiástica e leigos-amadores rede, para além de uma divisão cla- compartilham um “senso comum” (2014). Isto é, com o avanço da mi- ra entre “conteúdo” e “forma”, ins- diatização digital, podemos ques- tituição e indivíduo, fiel e não fiel. 32 Antonio Spadaro (1966): é um padre tionar se o catolicismo não pode jesuíta , escritor e teólogo, italiano, editor da revista it: La Civiltà Cattolica. O sitio do IHU 31 Marshall McLuhan (1911-1980) profes- O comum entre tem uma série de textos publicados de Spada- sor canadense que declarou, no final dos anos hierarquia eclesiástica ro, os quais destacamos A misericórdia como 60, que o meio é a mensagem e que todos vi- centro da geopolítica de Francisco. Entrevista vemos em uma aldeia global. A IHU On-Line e leigos-amadores com Antonio Spadaro, disponível em http:// publicou uma edição sobre a obra do autor, bit.ly/1VBvwT1; A Igreja na era das mídias intulada “100 anos de McLuhan: um teórico Por isso, o “sensus fidelium digi- digitais, disponível em http://bit.ly/24mpaas de vanguarda”, edição 357, de 11-04-2011, e Antonio Spadaro e a inteligência da fé no disponível em http://bit.ly/2bwISkE (Nota talis” não significaria apenas uma tempo da Rede, disponível em http://bit. do IHU On-Line) possibilidade a mais para “consul- ly/1UANEdp. (Nota da IHU On-Line)

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católico que possibilita uma “ação cebido como um universo de sen- desse encontro, surgiriam – me- comum” em um “lugar comum” tidos que muda e permanece em diante ajustes, conflitos, negocia- como a internet – na profundida- comunicação, ou seja, na “organi- ções – lógicas conjuntas e plurais de daquilo que esses conceitos de zação radical do comum”, segundo entre mídia e religião, que não são “comum” tentam expressar. Muniz Sodré34, em meio à circula- especificamente de “proprieda- ção das mais variadas diversidades de” de nenhum dos polos. Nessas Diante disso, o desafio, perante a religiosas. inter-relações, o midiático não é Igreja, mas também diante de toda acessório nem indispensável, e o a sociedade, é assumir um pensa- IHU On-Line – Deseja acrescen- religioso também não é mero epi- mento conexial, que saiba conectar tar algo? fenômeno: ambos se articulam de e reconectar aquilo que se encon- modo complexo. tra separado e desconectado. Um Moisés Sbardelotto – Gostaria pensamento que permita à Igreja apenas de destacar que, com o Nesse sentido, o “religioso”, de “incluir e integrar em si mesma avanço da midiatização, as mídias modo geral, seria a manifestação [...] tudo o que de autenticamente e as religiões – dois grandes siste- inferencial de que a existência so- humano oferecem as demais fontes mas sociais simbólicos – passam a cial das religiões hoje, no ambien- te digital, é ainda mais fortemente de sentido, presentes na atual so- encontrar novos desdobramentos, o resultado da interação comuni- ciedade pluralista”, como aponta o como vimos. Por serem meios de cacional. Entrevê-se, na multipli- teólogo Mario de França Miranda33. expressão social, mídias e religi- cidade e na imprevisibilidade dos Assim, o catolicismo pode ser per- ões, ao existirem em um ambien- te social marcado por novos pro- interagentes e de suas interações, 33 Mário de França Miranda (1936): je- cessos midiáticos, passam a fazer a construção e a reconstrução de suíta, doutor em Teologia formado pela Pon- um “trabalho” cultural diferente um universo simbólico estável, tifícia Universidade Gregoriana, em Roma. mas não estático nem monolítico, Atualmente é professor da PUC-Rio. No do que vinham fazendo histori- número 71 do Cadernos de Teologia Pública camente. Poderíamos dizer que a a partir das diversidades religio- o IHU publica artigo de Miranda, intitulado própria ruptura de uma distinção sas. A articulação entre práticas “Rumo a uma nova configuração eclesial”, sociais sobre a religião e platafor- disponível em http://bit.ly/2bbEpmF. O IHU clara e evidente entre “mídias” e tem publicou diversas entrevistas com o au- “religiões” seria, justamente, um mas tecnológicas de acesso público tor. Entre elas “‘A Igreja será sinal pelo que fa- dos efeitos da midiatização. Ou e alcance ubíquo, desencadeia um lar e pelo modo de viver’’. Entrevista especial seja, a lógica midiática não se so- processo de liberação de uma gran- 73 com Mário França Miranda, publicada nas de energia social de reconstrução Notícias do Dia de 06-10-2012, disponível em breporia à religiosa, ou vice-versa: http://bit.ly/2bbyIUh, e “Karl Rahner e os comunicacional dos sentidos (tam- desafios do cristianismo na época modern”, 34 Muniz Sodré de Araújo Cabral bém religiosos), que, em termos entrevista com Mário de França Miranda, (1942): é um jornalista, sociólogo e tradutor eclesiais, é um dos principais “si- publicada na revista IHU On-Line, número brasileiro, professor da Universidade Federal 446, de 16-06-2014, disponível em http://bit. do Rio de Janeiro – UFRJ, na Escola de nais dos tempos” a ser discernido ly/2bA9lfI. (Nota da IHU On-Line) Comunicação. (Nota da IHU On-Line) hoje.

■ LEIA MAIS... —— “O ‘virtual’ é real”. Cultura digital e evangelização. Entrevista com Moisés Sbardelotto, publicada nas Notícias do Dia de 07-08-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bz6p0d. —— Igreja e internet: uma relação de amor e ódio. Entrevista com Moisés Sbardelotto, publi- cada nas Notícias do Dia de 26-06-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bD25y2. —— Deus digital, religiosidade online, fiel conectado: Estudos sobre religião e internet, artigo de Moisés Sbardelotto, publicado em Cadernos Teologia Pública, número 70, disponível em http://bit.ly/2bIIxI0. —— A comunicação do Papa Francisco e a ‘’cultura do encontro’’: das palavras aos gestos. artigo de Moisés Sbardelotto, publicado nas Notícias do Dia de 10-11-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2bAaST3. —— @Franciscus, o papa no Instagram. Uma breve análise comunicacional. Artigo de Moisés Sbardelotto, publicado na revista IHU On-Line número 482, de 04-04-2016, disponível em http://bit.ly/2bbHGCG.

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Comunicação cidadã: de fonte à mídia Cybeli Moraes entende que é preciso conhecer os veículos de comunicação tradicionais para então subvertê-los à lógica da comunicação cidadã

Por João Vitor Santos

á quem acredite que o primeiro cação na construção de uma cidadania plena”. passo para se resolver um proble- Ou seja, se antes era preciso muito tempo e Hma, um desafio, é encará-lo de conhecimento de processos midiáticos para frente. Somente quando se sabe exatamente colocar uma informação em circulação, hoje o tamanho, as artimanhas e as potencialida- isso se dá de forma muito mais rápida através des da fera é que se é capaz de levá-la à lona. do que ela chama de “redes sociais digitais”. É mais ou menos nessa perspectiva que a dou- “Tendo a crer que certos usos da tecnologia tora em Comunicação Social Cybeli Moraes vêm empoderando pessoas e coletivos que an- tece sua reflexão acerca da comunicação para tes não se enxergavam e não eram vistos. É o cidadania. Para ela, os veículos tradicionais que é próprio da tecnologia atual”, formula. de comunicação, a dita mídia hegemônica, podem ser postos a serviço do comum, e não Cybeli Moraes é jornalista, mestra e douto- apenas servir as lógicas do mercado da infor- ra em Comunicação Social pela Universidade mação. “É por meio do profundo conhecimen- do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, professo- to de como os veículos de comunicação he- ra de assessoria de comunicação e de impren- gemônicos costumam fazer comunicação, que sa no curso de Jornalismo da mesma institui- é possível detectar como não queremos nos ção. Ainda ministra atividades de produção de comunicar”, aponta. “Essa percepção acaba produtos para a comunicação digital. Há 13 74 levando a uma atitude concreta: passar para anos, atua como assessora de imprensa, com o patamar de fonte a mídia, com a liberdade passagem por órgãos da iniciativa pública e de construir veículos de comunicação os mais privada na área cultural. variados e plurais possíveis”, completa. Na terça-feira, 30 de agosto, Cybeli minis- Na entrevista a seguir, concedida por e-mail tra a oficina Linguagens de Comunicação para à IHU On-Line, Cybeli ainda reflete sobre o a Cidadania, a partir das 14h30min, na Sala papel da tecnologia nessa inserção social no Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Saiba mundo da comunicação e informação. “A tec- mais em http://bit.ly/2biqf1l. nologia, felizmente, está apressando proces- sos de reconhecimento e de força da comuni- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pensar a IHU On-Line – Qual o papel de Or- buscar quando quer compreender comunicação numa perspectiva ganizações Não Governamentais – determinados assuntos. para a formação cidadã? ONGs, associações e grupos de for- mação na construção de uma ideia Cybeli Moraes – Mais do que um IHU On-Line – Como, ao traba- de comunicação para cidadania? instrumento que pode ser usado lhador com grupos, associações e para a formação, a comunicação Cybeli Moraes – Um destes pa- ONGs, incentivar iniciativas que precisa ser pensada como o próprio péis a ser desempenhados é o de de fato articulem a comunicação espaço, ainda que virtual, onde se ampliar o espectro comunicativo como instância de formação, não dá a cidadania. Sou cidadão quan- que possuímos hoje, das ONGs, apenas repetindo modelos e pa- do tenho acesso e também porque associações e grupos se colocarem drões estabelecidos por veículos posso fazer circular informações como fontes relevantes e primá- de comunicação hegemônicos? que percebo relevantes a uma rias, capazes de traduzir e mediar Cybeli Moraes – Os veículos ditos determinada comunidade. Então, com competência sobre temas que hegemônicos têm um papel cru- pensar uma comunicação a serviço ela conhece com propriedade e cial em nossa sociedade: mais do da cidadania é possibilitar manei- entende serem relevantes social- que nos informar sobre aquilo que ras de apropriação e adaptação de mente. Mais do que saber se co- consideram relevante, nos ensi- veículos, de formatos, de códigos municar para ocupar um lugar de nam a determinar o próprio senso úteis para que se possa empoderar fonte oficial, o desafio está em ser de relevância, muitas vezes pelo ideias a fim de realizá-las de algu- a fonte emissora de informações tratamento dado a certa notícia – o ma maneira. que qualquer cidadão pode e vai espaço que ela ocupa, o formato,

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as vozes aptas a falar, os elementos Há uma série de ferramentas que IHU On-Line – Como compreen- ilustrativos utilizados... Todos estes podem ser utilizadas, desde publi- de o papel da tecnologia dentro detalhes nos dizem e nos ensinam, cações customizadas até agentes dessa perspectiva de comunica- de certa forma, o que é ou não é multiplicadores, passando pelas ção para a cidadania? importante, e como deve ser trata- redes sociais digitais – instrumen- Cybeli Moraes – A tecnologia, fe- do um tema menos ou mais relevan- tos não faltam para fazer circular lizmente, está apressando proces- te. Se as organizações – as fontes a informação. O que falta é usá-los sos de reconhecimento e de força – perceberem este modus operandi a partir de uma estratégia delimi- da comunicação na construção de e se comprometerem em criar es- tada, que precisa ser revista perio- uma cidadania plena. As redes so- tratégias para alterá-lo, ainda que dicamente. Por exemplo, uma ouvi- ciais digitais são barulhentas, apa- em pequenas doses, no sentido de doria: ela surge para ser um canal rentemente desconexas, os apli- gerar tensões e estranhamentos de melhoramento, por onde se dão cativos são muito úteis, mas ainda entre tradicionais e novos padrões, processos de inovação, mas os pú- são realidades distantes de muitas acredito que esta é uma forma de blicos internos e externos a enten- populações. O entendimento de mudar o que não nos serve mais. dem, muitas vezes, como um balcão uma economia da colaboração é de reclamações. No começo é natu- crescente, embora ainda visto com Ou seja, é por meio do profundo certo ceticismo por setores mais ral que ocorra essa confusão, mas é conhecimento de como os veículos conservadores. Mas, tendo a crer necessário paciência e tutoramento de comunicação hegemônicos cos- que certos usos da tecnologia vêm tumam fazer comunicação, que é para fazer o processo funcionar da empoderando pessoas e coletivos possível detectar como não quere- maneira que foi desenhado – e esse que antes não se enxergavam e não mos nos comunicar. Essa percepção desenho também precisa ser cali- eram vistos. E o que é próprio da acaba levando a uma atitude con- brado de tempos em tempos. tecnologia atual: este processo é creta: passar para o patamar de muito mais veloz hoje. O reconhe- fonte a mídia, com a liberdade de IHU On-Line – Como traduzir os cimento da diferença, com todo o construir veículos de comunicação resultados de pesquisas sobre de- ruído que tal processo acarreta, já os mais variados e plurais possíveis, terminados públicos para os pró- me parece um ganho social inesti- com o auxílio de toda a tecnologia prios públicos? mável que precisa ser potencializa- que está aí hoje. do por cada cidadão. Cybeli Moraes – Compreendendo o repertório, os interesses, os có- IHU On-Line – Qual é o papel da IHU On-Line – Em que medida as 75 digos e os sentimentos do público redes sociais podem ser um dos comunicação na intermediação para o qual se quer falar. É o que da relação entre o poder público caminhos para estreitar os laços faz, por exemplo, ser mais eficaz entre os aparelhos estatais e a po- estatal e a população? Como fazer transformar resultados de pesqui- pulação? Como elas se constituem a informação circular dos gabine- sas em um post do BuzzFedd2, ou enquanto caminho de mão dupla? tes para as ruas e das ruas para os em um jogo de palavras cruzadas, gabinetes? Cybeli Moraes – As redes sociais do que propriamente conquistar digitais encurtaram, de certa for- Cybeli Moraes – Uma conhecida duas páginas inteiras de matéria ma, o processo de circulação de pesquisa citada nas obras do profes- em um jornal de grande circulação. uma mensagem e ampliaram a lupa 1 sor Jorge Duarte revela que as pes- É preciso deixar para trás certos que é colocada sobre uma informa- soas não acessam políticas públicas preconceitos em relação às tradu- ção. Se antes um cidadão tinha que pelo simples fato de não saberem ções: ao traduzir, sempre se perde ter acesso a um programa de rádio que elas existem. Essa falta de co- algo, mas o objetivo é nobríssimo – muito ouvido para denunciar algo nhecimento tem sim um componen- fazer chegar o que realmente inte- que daí chegaria ao governo, pas- te de desinteresse e descrédito da ressa, atualizar mensagens perenes sando pelas traduções do jornalis- população por todo nosso sistema para diferentes públicos. ta, do veículo, e das assessorias de político atual. No entanto, ocorre imprensa, agora ele publica uma principalmente pela falta de desejo 2 BuzzFeed: é uma empresa norte-ameri- foto e um depoimento e, depen- e reconhecimento da força da comu- cana de mídia de notícias. Foi fundada em dendo de sua rede e do termôme- 2006 na cidade de Nova Iorque, como um nicação como vetor de mudanças. laboratório viral por Jonah Peretti, a empre- tro social do dia, o assunto pode sa cresceu mundialmente. A empresa cobria ser compartilhado de forma local 1 Jorge Antonio Menna Duarte: possui uma variedade de tópicos, incluindo a políti- e global. Mas é preciso salientar: graduação em Jornalismo e em Relações Pú- ca, DIY, animais e negócios. No final de 2011, tal processo não garante, por si blicas pela Universidade Católica de Pelotas, o jornalista Ben Smith, do jornal Politico, foi só, uma real mão dupla. Volta-se mestrado em Comunicação Social e doutora- contratado como editor chefe, visando expan- do em Comunicação Social pela Universida- dir o site, passando do jornalismo sério, com ao exemplo da ouvidoria: se não de Metodista de São Paulo. É coordenador reportagens longas, com linguagens e con- existir o entendimento de que as de Comunicação em Ciência e Tecnologia teúdos mais leves, como na forma de listas, pessoas precisam ser ouvidas e de da Embrapa, professor de pós-graduação do seguindo a forma de produção de conteúdo que suas considerações interessam Instituto de Ensino Superior de Brasília – de entretenimento e diversão para internet. Iesb, do Centro Universitário de Brasília e da No Brasil, o site foi inaugurado em português para alterar processos, não esta- Escola Nacional de Administração Pública – no dia 18 de outubro de 2013. (Nota da IHU mos usando estas ferramentas para Enap. (Nota da IHU On-Line) On-Line) o fim criado.

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A Governança global do poder realmente existente

Por Bruno Lima Rocha

uito poucos são o que têm capacidade de interpretação efetiva dos processos de captura das instituições públicas, das realiza- “Mções incompletas de promessas da democracia em sua forma liberal e capitalista. Para piorar, estes que podem compreender a captura dos recursos coletivos por instituições privadas e seus grupos de pressão, ou estão em posição inferior de poder, ou então são cúmplices desta mesma captura”, escreve Bruno Lima Rocha. Bruno Lima Rocha tem doutorado e mestrado em ciência política pela UFRGS, possui graduação em jornalismo pela UFRJ e é professor de relações internacio- nais da Unisinos. Confira o artigo.

76 Avaliar a crise brasileira e o golpe semiparlamenta- séria como o ceticismo hoje vivido pelas maiorias nas rista em andamento só é possível se pensarmos o nível sociedades “ocidentais”. doméstico – nacional – conectado e também subor- Para exemplificar a contundência destas informa- dinado, às esferas de poder de fato. A concentração ções e a evidente censura corporativa pelo poder dos de recursos, compromissos e obrigações contratuais transferindo renda e poder para o controle de pou- anunciantes, no projeto Corporate Research Project quíssimos agentes financeiros é uma realidade global. (corp-research.org), na seção Dossiês (corporaterap- Não é nova esta interpretação, embora seja marginal e sheets), há resumos de supostos crimes corporativos paralela sua disseminação, mesmo no ensino superior. cometidos por conglomerados econômicos divididos No Brasil, as análises relacionando a escala nacional em setores de atuação. Assim, dentro da indústria da com o Sistema Internacional, especificamente as pro- comida e do agronegócio, vemos supostos crimes de duzidas pelos professores da PUC-SP, Reginaldo Nas- Cargill, Coca-Cola Company, ConAgra, Darden Restau- ser e Ladislau Dowbor, já trazem conteúdo suficiente rants, McDonald’s, Monsanto, Nestlé e Yum Brands. Na para uma crise de paradigma. O problema de fundo, seção de crimes financeiros, as instituições acusadas além da pouca difusão destes excelentes analistas e são: Bank of America, Barclays, Citigroup, Credit Su- pesquisadores, é a sua difusão limitada e de pequeno isse, Deutsche Bank, Goldman Sachs, HSBC, JPMorgan alcance. Chase, Morgan Stanley, Royal Bank of Scotland, UBS e Wells Fargo. Já a lista de supostos crimes da indústria O fenômeno se repete em escala mundial. Muito poucos são o que têm capacidade de interpretação automobilística é composta por: Daimler, Ford, Gene- efetiva dos processos de captura das instituições pú- ral Motors, Honda, Nissan, Toyota e Volkswagen. Na blicas, das realizações incompletas de promessas da indústria farmacêutica, as empresas gigantes da alo- democracia em sua forma liberal e capitalista. Para patia e da saúde supostamente acusadas são: Aetna, piorar, estes que podem compreender a captura dos Anthem (formerly WellPoint), AstraZeneca, Eli Lilly, recursos coletivos por instituições privadas e seus gru- GlaxoSmithKline, Humana, Johnson & Johnson, Merck, pos de pressão, ou estão em posição inferior de poder, Novartis, Pfizer e United Health Group. Temos, ainda, ou então são cúmplices desta mesma captura. Bastaria supostas acusações com dossiês resumidos contra as uma descrição pormenorizada dos lobbies profissionais líderes do setor da mineração; contratos militares e de empresas e oligopólios dentro do Congresso dos EUA aeroespaciais; serviços de fornecimento e logística; e do Parlamento Europeu (antes do Brexit) para, ape- petróleo, óleo e gás; tabaco e fumo; grandes atacadis- nas com a narrativa, gerar uma indignação coletiva tão tas; conglomerados mistos; e mídia e entretenimento.

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O faturamento dos gigantes do capital fictício é pro- porcional ao tamanho da dívida pública mundial

Tais acusações de supostos crimes e a relação de- gemônica. Na mídia especializada, há o complemento sigual entre eleitores e representantes ocorrem em desta versão, visto que a crítica da economia política países de capitalismo desenvolvido e democracia é pauta excluída ou secundária das publicações espe- institucionalizada, como EUA, Canadá e União Euro- cializadas em “economia”. Por fim, como o tema abor- peia. Entende-se que se tais corporações são capazes da o poder de fato, os governos de turno, mesmo em de operar como força decisiva em sua política “do- democracias ditas consolidadas – como as europeias méstica”, as mesmas podem exercer através destes – evitam ao máximo o conflito com as instituições fi- Estados líderes e instituições multilaterais internacio- nanceiras privadas. nais, tanto de tipo direito público como de regulação Através desta cumplicidade e complementaridade e fomento, sua vontade e determinação estratégica observamos o óbvio. Há uma política permanente de praticamente sem freios. Logo, a instância tomadora portas giratórias, quando o presidente de um banco de decisões, as instâncias legítimas – ou legitimadas com presença em importantes países pode vir a ser mi- – no jogo liberal e democrático representativo, ficam nistro de Estado em pasta afim, e na sequência ocupar secundarizadas pelo poder da tomada de decisões de cargo de diretoria no FMI ou Banco Mundial. Há o cami- conselhos de administração e mesa diretora composta nho inverso, quando servidores de carreira no Estado, de presidentes, vice-presidentes corporativos e dire- após ocuparem cargos importantes com dotação or- tores mundiais de empresas transnacionais. çamentária, “migram” para postos semelhantes den- Como a base do faturamento e acumulação privada tro de empresas privadas, desde conglomerados eco- dos conglomerados é sua relação de acessos desiguais, nômicos líderes de oligopólios em escala continental criando leis ou passando por cima da legislação exis- ou mundial, passando por bancos de “investimentos”. 77 tente, as posições de privilégio dentro do aparelho de Como medida do tamanho desta enorme “porta gira- Estado e dos governos supranacionais é evidente. Se tória”, podemos observar a trajetória de Henry Paul- levarmos em conta o modus operandi dos 28 maiores son em 2008. Este deixou de ser o diretor-presidente conglomerados financeiros do planeta, vamos encon- mundial da Goldman Sachs para assumir a crise que ele trar uma evidência. O faturamento dos gigantes do próprio ajudara a criar, sendo indicado para secretário capital fictício é proporcional ao tamanho da dívida do Tesouro dos EUA. O mesmo se dera na Europa, assim pública mundial. Assim, em último caso, a capacida- como no Brasil. de de gerar legislação de expansão do endividamento O funcionamento dos lobbies, instituições dirigidas público, e a complementar necessidade – por parte de por elites dirigentes em constante revezamento e o bancos e instituições afins – de pregar o “austericídio” discurso oficial que torna invisível as falas opositoras, e a autorregulação do capital é um discurso emitido de ocultam da maior parte dos cidadãos os verdadeiros forma sistemática. Nas escolas de ciências econômicas processos decisórios. Esta é a captura das instituições e sociais, esta fala é como um mantra, se não de forma públicas sob controle estatal e a democracia subordi- totalitária, ao menos e perigosamente de forma he- nada ao poder realmente existente.

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Um olhar infantil sobre o diferente Diana Corso observa como as crianças apreendem a ideia de diferente, em uma perspectiva que não exclui e que busca um crescimento emocional e cultural para absorver a “variabilidade de modos de ser, viver e pensar”

Por João Vitor Santos

uando nos associamos tanto aceitando qualquer moldura para para brincar ou criar, ver o outro. Para Diana, muito mais “Qas diferenças entre nós interessante é oferecer para crianças são úteis, interessantes, diversificam o o acesso a um crescimento emocional que estamos fazendo. Já quando somos através do contato com os diferentes. passivos, como os alunos de uma esco- Isso permitirá que ela desenvolva um la tradicional, ou só ficamos brincando verdadeiro olhar sobre o outro para sozinhos e observando os outros, tor- além dos preconceitos forjados nos es- namo-nos competitivos e não suporta- tereótipos e convenções sociais. mos as diferenças”. A elaboração é da psicanalista Diana Lichtenstein Corso Diana Lichtenstein Corso é psicana- acerca da relação tolerância/intole- lista membro da Associação Psicanalí- rância sobre o diferente, o que não é tica de Porto Alegre – APPOA. Formada igual a mim. Ela observa essa relação em Psicologia pela Universidade Fede- 78 a partir das experiências infantis. “As ral do Rio Grande do Sul – UFRGS, é co- crianças não notam diferenças de for- lunista do jornal Zero Hora e da Revista ma estereotipada, elas observam o que Vida Simples. Publicou o livro Fadas no a cultura as treina para ver”, aponta. Divã: psicanálise nas histórias infantis Assim, a ideia do diferente para os pe- (Porto Alegre: Artmed, 2009) e Psicaná- quenos é algo muito volátil em meio ao lise na Terra do Nunca: ensaios sobre a seu mundo de descobertas e transfor- fantasia (Porto Alegre: Artmed, 2011), mações. “As diferenças que estereoti- escritos em parceria com seu marido pamos em nossa sociedade, de gênero, Mário Corso, finalistas do Prêmio Jabu- cor da pele, status social, são variáveis ti. Recentemente, em 2014, publicou mínimas em relação a essa polissemia Tomo conta do mundo: conficções de da infância”, explica Diana, ao lembrar uma psicanalista (Porto Alegre: Arqui- que as crianças se atêm tanto a essas pélago, 2014), composto de crônicas e diferenças quanto às de tamanho, de ensaios, vencedor dos prêmios de Livro altura, por exemplo. do Ano e Crônica de 2015 da Associa- ção Gaúcha de Escritores – AGES e do Na entrevista a seguir, concedida por prêmio Açorianos na categoria Crônica e-mail à IHU On-Line, a psicanalista de 2015. analisa como a criança pode ser toma- da como uma terra sem formas, por- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida que conseguem brincar perto uns ção simbólica, já conseguem “pa- a intolerância é inerente ao ser dos outros. Veja bem, não estou par” [alimentar-se] e dormir de humano e em que medida surge me referindo a crianças que brin- brincadeira, esconder-se do olhar na relação com o meio em que se cam juntas, mas apenas por per- do outro e reaparecer com júbilo, vive? to, reparando no que o outro faz por exemplo, mas não bolar em Diana Lichtenstein Corso – Va- e por vezes trocando, oferecendo conjunto com outra criança uma mos situar o aparecimento da e disputando objetos. São criaturi- trama para partilhar, criar uma agressividade entre os bebês, nhas ainda em fase de construção fantasia em conjunto, contracenar aqueles um pouco maiorzinhos, da sua capacidade de representa- com personagens, ou mesmo seguir

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Nesse sentido, as diferenças que estereotipamos em nossa socieda- de, de gênero, cor da pele, status social, são variáveis mínimas em relação a essa polissemia da infân- Crianças, como povos, quanto cia. Se não for instruída para isso, uma criança não observará a cor da mais acesso tiverem a um cresci- pele do amigo, mas sim sua altu- ra, seu jeito de falar ou de calar, mento emocional e cultural, menos enfim, ela escolherá os critérios simplórios serão seus raciocínios do que é mais importante para ela. Ater-se aos nossos padrões de preconceito adulto é para as crian- regras grupais de uma brincadeira. ou que desempenha determinada ças um treinamento recebido dos Estamos falando, então, de rudi- tarefa prática conjuntamente de adultos. mentos de sociabilidade. modo eficiente e colaborativo. Quando nos associamos para brin- Nesse contexto, surgem as maio- Associações e car ou criar, as diferenças entre res disputas, por brinquedos, pela exclusões: sofrimentos nós são úteis, interessantes, di- atenção dos adultos, por entrar versificam o que estamos fazendo. normais em certo lugar. Onde o outro está, Já quando somos passivos, como o que a outra criança estiver fa- os alunos de uma escola tradi- Situações radicais de exclusão e zendo, torna-se objeto de cobiça. cional, ou só ficamos brincando bullying na infância ocorrerão prin- Quanto menores, mais as crianças sozinhos e observando os outros, cipalmente se elas se organizarem funcionam em espelho, pois ain- tornamo-nos competitivos e não em grupos passivos, com padrões da estão definindo seus próprios suportamos as diferenças, pois restritos e pouco colaborativos. Aí contornos, como se houvesse um precisamos do outro como espelho vale a lógica dos pequenos, dos que só lugar, aquele que acabam de e contraponto. têm poucos recursos simbólicos. Por descobrir observando o outro e ali outro lado, entre as crianças temos querem estar. alguns dramas de associação: as IHU On-Line – Como o senti- Bom, conto essa história de be- panelinhas, os grupos de três, orga- 79 mento de intolerância aparece nizados para deixar um de fora, os bês porque a agressividade, a into- na infância? Como é elaborado lerância em nossa sociedade tem clichês que organizam uma turma pelos pequenos e como perceber de colégio entre populares, nerds, justamente a ver com a solidez da a necessidade de intervenção? De imagem que cada um tem de si. Por gays, e tantas outras categorias. que forma as crianças veem o di- Esses são recursos de trocas amo- exemplo, se alguém vale somente ferente? O quanto podem ter essa por ter um smartphone, por ter um rosas, em geral do homoerotismo perspectiva alterada pela ação básico que aparece muito forte na carro, uma roupa com etiqueta tal, dos adultos que a cercam? não vai suportar que todo mundo pré-puberdade, quando as ques- possa ter. É preciso dividir o mundo Diana Lichtenstein Corso – As tões de quem vale o que para ser entre os que, para usar o código das crianças não notam diferenças de desejado ou admirado pelos outros crianças pequenas, estão no balan- forma estereotipada, elas obser- tornam-se muito importantes. ço e os outros que ficam olhando vam o que a cultura as treina para São sofrimentos normais, que, de fora. É diferente quando numa ver. Até é interessante ressaltar se o “sucesso social” não for uma sociedade consegue-se trocas mais que a infância é muito variada em obsessão para a família, serão en- simbólicas, que passem pela pa- termos de formatos, tamanhos e carados com mais leveza e até um lavra, por um olhar capaz de per- capacidades. O ritmo de cresci- certo humor pelas crianças. Po- ceber a beleza ou de despertar a mento é muito, muito variado. Há rém, se a criança estiver inserida curiosidade de forma mais comple- crianças de três a dez anos de todo em um contexto em que o prestígio xa do que códigos rudimentares de tipo de tamanho, há os que têm no grupo e a capacidade de lide- ter ou não ter um número restrito complexão física mais encorpada rança, que tomam como prova do de objetos que vão dizer quem é e os quebradiços, os que crescem potencial para o exercício do po- alguém – está no balanço – e quem como pipoca estourando e os que der, forem um grande valor, acima não – ficará olhando. demoram muito, passam a infância dos de solidariedade, tolerância e inteira estilo mignon, os atléticos, Essa possibilidade de associar-se companheirismo, esses jogos gru- os capazes de concentrar-se, os lí- pais serão fonte de grandes dra- para criar, que é a brincadeira in- deres, os tímidos, eles são variados fantil propriamente dita, está no mas e péssimos para a construção entre si e também em relação a de uma identidade mais definida. coração de tudo o que fazemos de si próprios. É comum o amiguinho criativo, desde a arte propriamen- A criança tenderá a diluir-se na voltar das férias todo diferente, massa, obedecendo às regras mais te dita, até uma equipe científica cresceu ou mudou de jeito.

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rudimentares de comportamento várias gerações, guardam ape- das ao público adulto impressas, e formas de ser, estabelecidas por nas um núcleo da trama idêntico recompiladas e recontadas por um senso comum que nunca deixa uma geração após outra. Alguns, vários autores. A ficção, quanto de ser pobre de espírito. como é o caso da Rapunzel após mais atrás pudermos encontrar Enrolados2, da Bela Adormeci- alguns traços de constância em 3 IHU On-Line – Há um limite en- da após Malévola , da Branca de determinada história, mais ela tre a intolerância e a violência? Neve após Branca de Neve e o irá contando das nossas transfor- 4 Quando a intolerância se perfaz Caçador , ou mesmo João e Maria mações históricas. caçadores de bruxas5, estão tão em força e violência, essencial- Histórias são verdadeiros docu- recheadas de novas referências mente na infância? mentos de história social, revela- de gênero que estão se tornando doras da subjetividade dos habi- Diana Lichtenstein Corso – A muito diversos de suas versões tantes de cada tempo e lugar e do intolerância será tanto mais forte mais consagradas no passado. que eles partilhavam de comum e, portanto, violenta, quanto mais Mas, se formos olhar, essas mes- naquelas coordenadas específicas. restritas forem as possibilidades de mas versões que tomamos como Essas questões da multiplicidade criar, cooperar e dialogar. Quanto clássicos já são radicalmente de identidades possíveis, princi- maior a pobreza de espírito de um modificadas das suas fontes da palmente no que diz respeito a grupo social, tanto menores seus tradição oral, que por sua vez gênero, onde masculinidade e fe- recursos simbólicos, portanto, vai passaram por várias modifica- minilidade, antes drasticamente ter que utilizar-se de uma gramá- ções antes de chegar às crian- diferenciadas agora se embara- tica binária para se descrever: eu, ças, como as versões picarescas lham, assim como da diluição das bom, não eu, ruim. ou cheias de maneirismos volta- hierarquias familiares, que tendem à horizontalidade, estão fortemen- IHU On-Line – Qual o papel das 2 Tangled (Enrolados, no título brasileiro): te representadas na ficção infantil. fábulas e dos clássicos infantis no é um longa-metragem de animação produ- zido pela Walt Disney Animation Studios. O O cinema é o modo de expressão desenvolvimento das crianças? filme é a 50ª animação do estúdio, e é base- artística que mais rapidamente ab- Em que medida essas histórias ado no conto de fadas alemão Rapunzel, dos sorve e difunde essas novidades, solidificam convenções sociais e Irmãos Grimm. Estreou nos cinemas e em ele visa grandes públicos, então fecham perspectivas e em que cinemas 3D americanos em 24 de novembro de 2010. É um dos filmes de animação mais tenta traduzir-lhe os desejos. Não medida abrem um horizonte 80 caro da história, com um orçamento de 260 podemos dizer que ele cria uma para o novo e aceitação para o milhões de dólares. (Nota da IHU On-Line) tendência cultural, ele é criado diferente? 3 Maleficent (Malévola, no título brasi- leiro): é um filme de aventura e fantasia de por ela e, por sua vez, ajuda a Diana Lichtenstein Corso – As 2014, dirigido por Robert Stromberg e produ- consolidá-la. histórias que a infância de cada zido pela Walt Disney Pictures, com roteiro de Linda Woolverton. Estrelado por Angelina época adota para si não cria o Jolie como a personagem vilã da Disney de IHU On-Line – Hoje, é comum modo de ser das crianças, é esse mesmo nome, o filme é uma releitura, espécie perceber que crianças não têm modo que edita a ficção de cada de re-imaginado, do clássico da Walt Disney Pictures, A Bela Adormecida de 1959. A ideia mais medo e aceitam criaturas época. Por isso, em nossos livros é recontar a história a partir da perspecti- como bruxas, lobos e monstros escritos sobre o assunto, com o va da antagonista, Malévola. (Nota da IHU não como manifestações do mal. 1 Mário Corso , tomamos as histórias On-Line) Ao mesmo tempo, veem-se prin- como reveladoras de um modo de 4 Snow White and the Huntsman (no Brasil, Branca de Neve e o Caçador): é um fil- cesas, príncipes, reis e rainhas ser, de estar no mundo, dos gêne- me de fantasia e ação estadunidense de 2012 não mais como figuras tão -cân ros se definirem, das famílias se dirigido por Rupert Sanders e escrito por didas e bondosas. Como observa organizarem, dos valores, enfim do Evan Daugherty, Martin Solibakke, John Lee Hancock, e Hossein Amini. É uma releitura esses movimentos? Quais as ques- tecido social que nos organiza. do conto de fadas alemão “Branca de Neve”, tões de fundo que suscitam? Os contos ditos tradicionais, compilado pelos Irmãos Grimm. Estrelado por Charlize Theron, Kristen Stewart, Chris Diana Lichtenstein Corso – O ou seja, que vêm acompanhando Hemsworth, Sam Claflin, e Bob Hoskins (em medo é importante na infância, seu último papel antes de se aposentar da ele ajuda a delimitar os lugares e atuação). O filme é o primeiro longa-metra- 1 Mário Corso: é psicanalista, formado em gem de uma planejada trilogia. (Nota da IHU as pessoas seguras: se meu quarto psicologia pela Universidade Federal do Rio On-Line) não é a floresta, o papai não éo Grande do Sul – UFRGS. Corso foi entrevis- 5 Hansel and Gretel: Witch Hunters (no lobo mau e a mamãe não é a bruxa, tado da secção IHU Repórter da revista IHU Brasil: João e Maria: Caçadores de Bruxas): portanto, posso dormir em paz. Só On-Line 333, de 14-06-2010, disponível em é um filme de ação e fantasia, misturando ter- http://bit.ly/2alvnD5. Ele também concedeu ror durante o longa-metragem, lançado em que para que haja todas essas ex- outras entrevistas à IHU On-Line, entre elas 25 de janeiro de 2013 nos Estados Unidos. clusões, a floresta, o lobo e a bruxa Geração Y e as novas formas de lidar com Entre os dias 26 e 27 de janeiro o filme arre- têm que estar rondando do lado de o saber, publicada na edição 361, de 16-05- cadou cerca de 8,5 milhões de Reais. Baseado 2011, disponível em http://bit.ly/2aYf256; e no clássico conto de fadas dos Irmãos Grimm fora, para garantir o aconchego do O flerte dos adolescentes e jovens com a mor- Hänsel und Gretel (João e Maria na versão interior. te, publicada na edição 312, de 26-10-2009, brasileira), o filme é dirigido por Tommy Wi- disponível em http://bit.ly/2axr5DX. (Nota rkola e estrelado por Jeremy Renner e Gem- Além disso, como todos temos da IHU On-Line) ma Arterton. (Nota da IHU On-Line) dentro de nós fantasias que são

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representadas pela maldade e pe- pois do Shrek6, de Valente7, Frozen8 e tantas recriações dos contos de los perigos desses cenários e per- fadas, temos claro que as crianças sonagens aterrorizantes, deixá-los 6 Shrek: filme estadunidense de 2001 de maiorzinhas não querem ser trata- de fora, mas de certa forma aces- animação computadorizada dos gêneros fan- tasia e comédia produzido pela PDI/Drea- das como bobas com personagens síveis, garante que nossas coisas mWorks, lançado pela DreamWorks Pictures simplórios. Ainda gostam de um fi- ruins e pensamentos assustadores e dirigido por Andrew Adamson e Vicky Jen- nal feliz, mas adoram as nuances, fiquem depositados neles. Outro- son. É livremente inspirado pelo livro Shrek!, como a transformação da prince- escrito por William Steig e lançado em 1990, ra, outros temores, de um mundo e de alguma forma também serve como uma sa do Shrek em ogra, o oposto da mais mágico, pelas crendices e paródia, alvejando outros filmes baseados em tradição. pela religião rivalizavam com a fic- fantasias infantis, grande parte da Disney. Na ção. Hoje, isso empalideceu e por trama, um ogro se apaixonada por uma prin- Já os bem pequenos ainda pre- cesa que, mais tarde, se revela vítima de uma cisam lidar com menos variáveis, isso, embora as crianças e adoles- maldição que a transforma também em ogro. centes não “acreditem” na veraci- Ambos têm de lutar contra a ganância de por isso gostam de personagens um dade dessas histórias, eles morrem um príncipe e sua mãe, uma fada madrinha. pouco mais planas, mas apreciam de medo igual, ou seja, mantêm (Nota da IHU On-Line) que elas tenham seus perrengues e 7 Brave (no Brasil, Valente): é um filme es- esse hábito de outorgar seus me- tadunidense de 2012 dirigido por Mark An- suas inquietudes. Crianças, como dos e fantasias a personagens que drews e Brenda Chapman e produzido pela povos, quanto mais acesso tiverem os encarnem e ajudem a dar conta Pixar Animation Studios. Conta com roteiro a um crescimento emocional e cul- de Brenda Chapman, e é caracterizado por ser deles. a primeira animação da Pixar protagonizada tural, menos simplórios serão seus raciocínios e, portanto, melhor po- A arte dá conta dos nossos con- por uma mulher, Merida. Na trama, uma jo- vem princesa medieval quer lutar como os derão absorver nossa maravilhosa teúdos mais difíceis de elaborar, e procolos da corte e se tornar uma guerreira, variabilidade de modos de ser, vi- isso vale igual para o que é ofere- tendo sua própria mãe como principal opo- ver e pensar. cido às crianças, pela literatura, sitora desse desejo. (Nota da IHU On-Line) 8 Frozen (Frozen – Uma Aventura Conge- televisão, quadrinhos, cinema, te- lante, com título no Brasil): filme de anima- princesa Anna, parte■ em uma jornada com atro, games. Nesse sentido, como ção musical estadunidense, produzido pela um homem da montanha, sua leal rena de dizia antes, agora as personagens Walt Disney Animation Studios e distribuído estimação e um boneco de neve que sonha não são tão estereotipadas: gêne- pela Walt Disney Pictures. Inspirado pelo em experimentar o verão, para encontrar sua conto de fadas A Rainha da Neve, de Hans irmã a Rainha Elsa, cujos poderes congelan- ros, padrões de beleza e compor- Christian Andersen, narra as desventuras tes transformaram o reino onde vive em um tamento, vêm se modificando. De- das irmãs reais de Arendelle. A mais jovem, inverno eterno. (Nota da IHU On-Line) 81

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PUBLICAÇÕES Diagnóstico Socioterritorial entre o chão e a gestão

Cadernos IHU ideias, em seu número 243, publica o artigo de Dirce Koga, graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, realizou mestrado e doutorado em Serviço Social pela Pontifí- cia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Atualmente é pes- quisadora e professora da Pontifí- cia Universidade Católica de São Paulo do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social. A autora parte do dilema evi- 82 denciado na gestão das políticas sociais brasileiras na forma de descompassos entre planejamen- to, execução e avaliação da qua- lidade dos seus serviços, progra- mas e benefícios. Tomando como foco de análise a política de as- sistência social, cuja trajetória histórica é envolvida pelas tramas societárias brasileiras, marcadas pela hierarquização das relações sociais, forte conservadorismo e frágil democracia, coloca-se em debate o modo de operar os tra- dicionais instrumentos de gestão. Neste contexto, corre-se o risco de reproduzir, mais do que des- compassos no interior do ciclo da gestão, distanciamentos em rela- ção à dinâmica da realidade vivenciada pelos cidadãos. É nessa direção que se debate o lugar do território na gestão e da perspectiva territorial na composição do diagnós- tico social. O artigo completo em PDF está disponível em http://bit.ly/2bi0yOr Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço [email protected] Informações pelo telefone 55 (51) 3590-8213

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Retrovisor Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Sistema Único de Saúde. Uma conquista brasileira

Edição 376 – Ano XI – 17.10.2011 Disponível em http://bit.ly/1LD3d1u Criado na Constituição Federal de 1988, o Sistema Único de Saúde – SUS há mais de 20 anos consegue atender praticamente 90% de todos aqueles que o procuram. Mesmo assim, ainda enfrenta muitos desafios, sendo que os principais são de or- dem financeira, política e de gestão. Para refletir sobre os rumos do SUS, a IHU On-Line convidou alguns pesquisadores e especialistas no tema, que contribuem com suas ideias sobre o que é o SUS, quais seus avanços e desafios.

SUS: 20 anos de curas e batalhas

Edição 260 – Ano VIII – 02.06.2008 Disponível em http://bit.ly/2bvLzyz 83 Em 2008, a IHU On-Line lembrava os 20 anos da implantação no Brasil do Siste- ma Único de Saúde (SUS), oferecendo a todos os brasileiros e brasileiras, sem ex- ceção, o acesso integral à saúde em todos os seus âmbitos, tendo como princípios básicos a universalidade, a integralidade, a equidade, a participação da comuni- dade, a descentralização político-administrativa e a hierarquização e regionali- zação. Passadas duas décadas de funcionamento, muitos ainda não se dão conta da importância do SUS e do quanto seus serviços estão inseridos no cotidiano da população, não apenas por meio dos tratamentos e consultas. Para discutir a si- tuação atual do SUS à época, a IHU On-Line conversou com alguns especialistas e profissionais da área da saúde.

Saúde Coletiva. Uma proposta integral e transdisciplinar de cuidado

Edição 233 – Ano VII – 27.08.2007 Disponível em http://bit.ly/2b1NFoD “‘Ter saúde’, de fato, não tem a ver com ‘não adoecer’, mas com as nossas con- dições de enfrentamento do próprio adoecimento, se e quando ele ocorrer”, afir- ma Victor Valla, na entrevista publicada nesta edição da IHU On-Line. O número busca entender melhor a Saúde Coletiva como proposta integral e transdisciplinar de cuidado. O tema foi proposto precisamente no momento em que hospitais do País, especialmente no Nordeste, vivem semanas de caos. Cenas que se repetem até os dias de hoje.

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IV Colóquio Internacional IHU Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica

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