O talento de chapéu na mão: a relação entre a história do jornalismo e a literatura1 Autores Marcelo ROCHA2 (Unipampa/São Borja/RS) Lucas ARISTELO3 (Unipampa/São Borja/RS) RESUMO: O presente artigo pretende apresentar um percurso panorâmico e diacrônico da relação entre literatura e jornalismo, desde a segunda metade do século XIX, até a contemporaneidade, a partir da ocupação do espaço das redações dos jornais pelos escritores e críticos literários. Fundamentada na provocação do crítico mineiro Silviano Santiago, de que houve uma “desliteraturização nos jornais”, discutiremos a existência hodierna de um possível litígio entre literatura e jornalismo, tal como assevera Santiago, bem como suas possíveis relações com o aparato teórico do início do século XX e que pautou boa parte da agenda dos estudos literários. Analisaremos, assim, como delimitação da proposta temática referida a trajetória do escritor gaúcho Aparício Silva Rillo e suas contribuições para o jornal Folha de São Borja, no ano de 1970. A partir dessa metonímia, tentaremos, finalmente, examinar a visão do jornal para os escritores e a representação da sociedade por eles empreendida além da perspectiva do próprio mister do literato que migrou do espaço dos rodapés para as crônicas até chegar aos suplementos especializados.

Palavras-chave: História da Mídia Impressa; Literatura e Sociedade.

Talvez a discussão entre um possível estatuto de um discurso jornalístico e de um texto literário apresente características ou distinções similares às estabelecidas por

1 Trabalho Apresentado no 7 Encontro Nacional de Pesquisadores em História da Mídia, evento da rede Alfredo de Carvalho. (ALCAR)

2 Marcelo Rocha é professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus de São Borja. Com mestrado e doutorado em Letras, participou como colaborador do Dicionário Essencial da Língua Portuguesa (1999), organizado por Volnyr Santos, e é co-autor de Correspondência: comunicação e linguagem na era da informática (2001), ambos pela editora Rígel, além de possuir diversos artigos em periódicos especializados em literatura, sociedade e cultura. Publicou, em 2008, pela editora Publit, o livro No reino da serpente: ideologia, transgressão e leitura em Pedro Juan Gutiérrez. Atualmente, dedica-se a pesquisas em estudos culturais, ideologia e textos de mídia.

3 Acadêmico do 6 semestre do Curso de Comunicação Social- habilitação Jornalismo da Universidade Federal do Pampa-Unipampa- Campus São Borja.

Aristóteles4 entre o historiador e o poeta. Para o filósofo estagirita, diferem o historiador e o poeta não por escreverem em verso ou prosa, mas “um diz as coisas que sucederam e outro diz as que poderiam suceder” (p.14). Nesse sentido, o debate, ainda, não está no referente, mas na representação, ou para usar a expressão Aristotélica, tomada de empréstimo de Platão, na mimese.

A aproximação entre o jornalista, o historiador e o escritor ficcional não é tão descabida quanto possa parecer, sobretudo se pensarmos que fazer jornalismo é, de certo modo, fazer uma história, ou uma história do cotidiano. Dessa forma, é necessário lembrar Françoise Furet que acrescenta a perspectiva de que “fazer história” aproxima-se do ato de “contar uma história”, ação, com efeito, apagada deliberadamente da ótica mais limitada da notícia coadunada à veracidade. Esta, por sua vez, não cabe, muitas vezes, no formato da notícia que se alia, dependendo da intenção, a interesses mercadológicos, invocando histórias com começo, meio e fim, além de espaço e tempo, elementos próprios das narrativas ficcionais.

Se ao historiador cabe, em linhas gerais, uma re-elaboração do passado, a partir do presente, ao jornalista compete, igualmente, essas duas operações conjuntas. A cronologia de acontecimentos, como lembra Sato, constitui fórmula de consumo fácil e que afigura uma espécie de ilusão cuja seleção substitui o real por um “real” representado. Assim, a narrativa da imprensa torna-se, muitas vezes, uma espécie de jogo metanarrativo e o discurso jornalístico aparta-se, paulatinamente e, por vezes, inconscientemente, de sua função estritamente referencial, aproximando-se, por conseguinte, da óptica literária.

A busca por distinções e aproximações entre o discurso jornalístico e ficcional, evidentemente, não é nova e sua problematização não está também longe de se esgotar. Sabe- se, por exemplo, que o bom texto ficcional sugere muito mais do que diz ou, como salienta Barthes5 (2002), instiga uma espécie de strip tease num jogo de ocultação e desvelamento.

4 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.

5 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2002.

Por outro lado, o discurso jornalístico necessita da informação e da prática desse ato, a partir da maior acuidade possível. Nesse ponto, a diferença se acentua. Mesmo assim, à linha que separa o discurso literário do jornalístico já se anunciaram vários réquiens, mas ninguém se atreveu, ainda, a decretar, de maneira categórica, o fim dessa trajetória de repulsa e admiração entre poetas, historiadores e jornalistas.

No entanto, é Baudrillard6, com seu niilismo contumaz e irônico que, em texto não por acaso denominado “Tela total”, avalia:

(...) o espectador só se torna realmente ator quando há estrita separação entre palco e platéia. Tudo, porém, concorre, na atualidade, para a abolição desse corte: a imersão do espectador torna-se convival, interativa. Apogeu ou fim do espectador? Quando todos se convertem em atores, não há mais ação, fim da representação. Morte do espectador (p. 130).

Poder-se-ia, com efeito, ir adiante e inferir que, na conversão dos espectadores em atores, há, igualmente, uma profusão de signos e imagens que marcam não o fim da representação, mas justo o seu contrário. O universo real pode ser compreendido, se aderirmos à perspectiva aduzida pelo teórico francês como subsumido à regra da circularidade. Como na fórmula de McLuhan, o meio não só engoliu a mensagem, mas promoveu o signo como signo, sem remetê-lo nem a objetos nem ao sentido.

Anterior a essas discussões, no Brasil do século XIX, especialmente no que diz respeito à relação entre os escritores e os jornalistas, não só a representação – conceito talvez demasiado abstrato em nossa realidade- configurava-se em problema. A questão era muito mais concreta e dizia respeito à sobrevivência. Num país de poucos leitores, a discussão mais premente relacionava-se ao consumo de textos ficcionais. A literatura tinha de se submeter ao comércio vil, no entender de muitos escritores, das colaborações em jornais.

No início do século XX, conforme informa Brito Broca7, a maioria dos jornais do Rio

6 BAUDRILLARD, Jean. Tela Total: mito-ironias do virtual e da imagem. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina: 2002.

7 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil- 1900. José Olympio: Academia Brasileira de Letras, 2005.

de Janeiro acolhia e pagava por contribuições de escritores. Em 1907, e recebiam mensalmente por suas crônicas publicadas, respectivamente, na Gazeta de Notícias e n´O País. A Gazeta de Notícias inclusive exagerava ao dizer que a colaboração no Rio era mais bem paga que em Paris. Assim, a recepção dos jornais aos escritores, além da subsistência, garantia leitores, uma certa repercussão aos seus escritos e ainda propiciava a muitos autores uma mudança para a metrópole.

Olavo Bilac reconheceu esse papel da imprensa na literatura quando destacou:

Hoje não há jornal que não esteja aberto à atividade dos moços. O talento já não fica á porta de chapéu na mão, triste e encolhido, vexado e em farrapos, como mendigo tímido que nem sabe como haverá de pedir a esmola. A minha geração se não teve outro mérito, teve este que não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da imprensa literária uma profissão remunerada, impôs o trabalho. Antes de nós, Alencar, Macedo e todos os que traziam a literatura para o jornalismo eram apenas tolerados: só o comércio e a política tinham consideração e virtude. (BROCA, 2005,p. 286).

Porém, a despeito do panorama idílico apresentado por Broca, sabemos que muitos escritores não se sentiam à vontade nesse segundo métier das redações dos jornais. Não são poucas as narrativas que fazem críticas contundentes as rotinas mercantilistas dos donos de jornais bem como ao público leitor que, para os escritores, ainda não era o ideal para os seus textos. Na obra A conquista, de 1899, já narra a trajetória de um grupo de amigos que tenta viver da literatura. Como essa sobrevivência afigura-se difícil, o trabalho no jornal transforma-se em alternativa viável, mas ainda não reconhecida como mister das personagens.

Mas é em Turbilhão, de 1906, que a crítica aparece mais contundente. A rotina de trabalho no jornal é descrita como o fervilhar de uma colméia e a crepitação das correias e o rolar dos cilindros como a besta mastigando. Dessa forma, o monstro devorador de gênios que era a representação do jornal sempre fora um trabalho penoso para os literatos que, a despeito

da renda que garantia suas subsistências, sonhavam em viver de sua arte.

Para os escritores, portanto, nunca houve um consenso acerca do papel do jornalismo em relação à literatura. Prova disso, é o livro-inquérito de João do Rio8 O momento literário, de 1905, em que, entre outras perguntas, o organizador propunha: “o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a literatura?”. As respostas entre os entrevistados, à parte de algumas omissões e tergiversações, foram bastante divididas. No entanto, talvez Medeiros e Albuquerque tenha feito uma síntese adequada da circunstância em que viviam os escritores no início do século e a relação com imprensa escrita da época:

É certo que a necessidade de ganhar a vida em misteres subalternos de imprensa (sobretudo o que se chama ‘a cozinha dos jornais’; a fabricação rápida de notícias vulgares), misteres que tomam muito tempo, pode impedir que homens de certo valor deixem obras de mérito. Mas isto lhes sucederia se adotassem qualquer outro emprego na administração, no comércio, na indústria... O mal não é do jornalismo: é do tempo que lhes toma um ofício qualquer, que não os deixa livres para a meditação e a produção. (RIO, João do. p.165 )

É evidente que a “culpa” – se pensarmos nos termos utilizados por Medeiros e Albuquerque - não tinha como ser do jornalismo. O problema estava na escassez de leitores o que angustiava autores até com certa repercussão de seus escritos, como no caso de Aluísio Azevedo que, certa feita, não pode conter o desabafo:

Escrever para quê? Para quem? Não temos público. Uma edição de dois mil exemplares leva anos para esgotar-se e o nosso pensamento por mais original e ousado que seja jamais se livrará no espaço amplo: voeja entre as grades desta gaiola estreita, que é a celebrada língua dos nossos maiores (apud Guimarães, Hélio de, p.73).

8 RIO, João do. O momento literário. : Livreiro, 1999.

Isso que Aluísio Azevedo foi lembrado por Valentim Magalhães, em 1896, como o único escritor brasileiro que ganhava o pão exclusivamente à custa de sua pena, embora o crítico tenha feito a ressalva de que as letras no Brasil ainda não davam para a manteiga. O próprio teria ficado decepcionado com a repercussão de Memórias Póstumas de Brás Cubas pelo que é possível deduzir a partir da carta de Miguel de Novais ao cunhado, datada de 21 de julho de 18829:

Parece que não tem razão para desanimar e bom é que continue a escrever sempre (...) Não pense nem se ocupe da opinião pública quando escrever. A justiça mais tarde ou mais cedo se lhe fará esteja certo disso. (apud GUIMARAES, 2004, p. 213).

A justiça ainda tardou por quase dez anos, pois a circulação de Quincas Borba, de 1891, é recebida com várias resenhas na imprensa e a segunda edição do livro chega em 1896 enquanto que a terceira apenas três anos depois. A boa recepção do texto não significa um quadro consolidado de leitores no país. Em relação a isso, basta lembrar que o primeiro recenseamento geral do império, de 1876, revelou que 84% da população brasileira era analfabeta. A informação caiu como uma bomba no colo dos homens letrados do país. Como viver da literatura nessa realidade que se afigurava?

Machado de Assis, por sua vez, não desanimava e, ao contrário de outros escritores, via no jornal uma literatura comum porque altamente democrática e que deveria ser valorizada bem como o teatro. Essa perspectiva de Machado é ressaltada por Guimarães10 ao pesquisar os leitores do autor de Memórias Póstumas:

(...) Machado nunca se mostra horrorizado diante das exigências materiais da arte ou revela desconforto com as exigências comerciais

9 GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: USP, 2004.

10 Ibidem, p.114.

colocadas à atividade do escritor. Pelo contrário, ele rejubilava-se com a relativa despersonalização da atividade literária e via no jornal veículo por excelência da literatura popular, a vantagem de conferir alguma autonomia ao homem de letras, nos tempos passados subjugado pela existência parasita “em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto” (2004, p. 114). Se de um lado o jornalismo parecia conspurcar a arte literária e por outro a literatura não garantiria modos de vida, em razão do reduzido número de leitores, o escritor parecia estar condenado a viver nessa aporia. Além disso, as céleres transformações históricas e as precipitações bélicas entre as nações no início do século XX aceleraram a separação entre o jornal e a literatura.

No Rio Grande do Sul dos anos 70, ao lado do boom de escritores gaúchos que se apresentavam como novidade no gênero contistico – dentre os quais, podemos citar, com risco de esquecimento de inúmeros outros, Caio Fernando Abreu, Josué Guimarães, e Tânia Failace – a literatura telúrica aparecia, especialmente sob a forma de poesia nos jornais do interior do estado. Na Folha de São Borja, corpus dessa análise inicial, o poeta reconhecido da cidade era Apparício Silva Rillo, nascido em Porto Alegre, mas que, com 28 anos, transferiu-se para o município.

Rillo, que iniciou sua faculdade de Ciências Contábeis na PUCRS, de Porto Alegre, começou a trabalhar em São Borja no início da década de 60. Nos anos 70, começa a escrever crônicas no jornal Folha de São Borja, no intuito de esclarecer a população sobre trâmites burocráticos, em sua “Coluna Fiscal”. No entanto, em outubro de 1970, seus textos já se afiguram como “folhetim-variedades”, para utilizarmos a expressão de BENDER e LAURITO11, tratando de temas cotidianos da província, do país e do mundo, em tom ligeiro, conciso e propositadamente frívolo.

Conhecido em São Borja, as colaborações de Rillo passam a aliar ficção e realidade. Assim, o autor trata de temas tradicionalistas relacionando causos gauchescos a perspectivas

11 BENDER, Flora & LAURITO, Ilka. Crônica: História, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

temáticas nacionais, conforme salienta Márcia Barbosa12:

Tradicionalista, bem como sua participação em festivais de música nativista, como compositor e letrista, aliaram-se o trabalho do pesquisador e prosador, conferindo-lhe grande popularidade. A poesia, por sua vez, foi a principal via de acesso do escritor ao adensamento e ao apuro formal. (p. 26) Da “Coluna Fiscal”, Rillo passa a experimentar temáticas de cunho existencialista e metafísico, investindo na aliança da paisagem regional a planos metafóricos. A seção para qual escrevia passa a denominar-se “De minha janela” e a Folha de São Borja ganha um colaborador de grande vulto na cidade. Assim, os textos de Rillo passam a retratar também os contornos políticos do município, em estilo literário, com forte adensamento formal.

Com efeito, a escolha da temática tradicionalista não é por acaso, se levarmos em consideração a época em que vivíamos e os rumos editoriais do jornal. É sabido que o Movimento Tradicionalista Gaúcho conseguiu, especialmente no início dos anos 60 e 70, legitimar-se como mediador do processo de construção de identidade gentílica, inserindo-se nas esferas burocráticas governamentais e na sociedade civil. Incorporando esse ideário, Rillo adere à imagem do gaúcho reverberada até os dias de hoje. A tradição simbólica torna-se, na época, então, hegemônica e conveniente para a política militar, conforme traduz Golin13:

Em 1954, o tradicionalismo alojou-se (e impôs-se) como um dos tentáculos culturais do poder com a criação do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, profissionalizando muitos dos seus mentores; em 1961, elaborou uma Carta de Princípios; e, em 1968, na contramão das inquietações libertárias e embevecido nas tertúlias do Palácio Piratini, baixou como norma o Manual Tradicionalista, para onde foi transferido todo o espírito da caserna da ditadura militar. Ao Rio Grande do Sul multicultural e rebelde foi “imposto” um dogma saneador. (p. 93)

12 BARBOSA, Maria Helena. In: ZILBERMAN, Regina, MOREIRA, Maria Eunice e ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Pequeno Dicionário da Literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Novo Século, 1999.

13 GOLIN, Tau. Tradicionalismo e modernidade conservadora no “estado-marca”. In: BOEIRA, Nelson. Rio Grande em debate: conservadismo e mudança. Porto Alegre: Sulina, 2008.

Ora, se a ideologia se afigura, na concepção de Thompson14, como sentido (formas simbólicas) a serviço do poder e um de seus modos operacionais é a narrativa. O Tradicionalismo, revisto pela “janela” de Rillo corroborava as relações assimétricas de dominação do regime militar pela óptica do homem do pampa.

O “capital simbólico” da identidade gentílica nas poesias e crônicas de Rillo ajudaram na criação de um espaço ideal. Esse capital sustentou-se na mídia da região, articulando-se a uma política regional e de Estado. O sulino teve com o movimento tradicionalista, então, transformado os seus hábitos, como tomar chimarrão (herança guarani), a bombacha para o trabalho e a milonga, uma ressignificação passada por um processo de cultuação ideológica e acrítica.

Essa estratégia ainda tem seus desdobramentos na literatura e na crítica, como lembra Zilberman15:

Falta-nos um crítico de dimensão nacional, como foi Augusto Meyer, um romancista lido e acatado no país e no exterior, papel exercido por Erico Veríssimo, um intelectual alinhado às correntes mais consistentes do pensamento brasileiro e militante da causa da liberdade, a exemplo de Raymundo Faoro (p.85). O Brasil sulino, multiétnico, anda para frente arrastando a tradição de um entulho retrógrado, unificado de maneira imaginária, cujas pontas foram urdidas na pena de escritores talentosos como Rillo. As dissidências dessas perspectivas ainda não conseguiram espaço na mídia impressa, nem na sociedade civil para transpor forças de uma invenção que reproduz o que Golin16 chama de “revir”, isto é, uma sociedade voltada para o passado.

Nesse sentido, literatura e jornalismo passaram por um alinhamento em que a ficção tornou-se real e subsumiu diferenças de identidade. Com efeito, toda construção tem suas

14 THOMPSON, John. B. Ideologia e cultura moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

15 ZILBERMAN, Regina. “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra?”In: BOEIRA, Nelson. Rio Grande em debate: conservadismo e mudança. Porto Alegre: Sulina, 2008.

16 Op. Cit. p. 100.

sobras. Assim, o projeto de definição do gaúcho vem acompanhado mais de exclusões do que inclusões. Dessa forma, se não somos brasileiros -como o discurso mais fundamentalista salienta- nem platinos, como muitos gostariam, habitamos um entre-lugar ou um espaço em que nossas raízes viraram rotas, repetindo o jogo de palavras do teórico Stuart Hall17. Outra vez, a ficção toma o real e o reconfigura com processos que se desdobram, a partir dos meios que subsumiram a mensagem.

No entanto, a perspectiva do leitor também mudou. Para Silviano Santiago (2004)18, o cosmopolitismo modernista e trepidante tem no jornal seu meio de comunicação por excelência gerando um leitor mais voltado para questões da realidade social. Desse modo, o folhetim literário coadunar-se-ia muito mais a um universo onírico de contemplação e desinteressante em relação aos grandes movimentos históricos.

Se até o início do século XX, os grupos de escritores formavam-se nas redações de jornais, com a relativa popularização do livro, como objeto, o escritor passa a prescindir dessa trajetória. Á parte disso, a criação de suplementos nos grandes jornais obedece a uma lógica de união do útil ao rentável. Dessa forma, cria-se um espaço para a acomodação do escritor e da literatura, sem comprometer o local de ocupação de matérias consideradas mais relevantes para o leitor diário dos jornais.

Veiculado, com freqüência, nos finais de semana, o suplemento, como lembra Santiago, diferente do complemento, é algo que se acrescenta ao todo, ou seja, “preenche de maneira inteligente o lazer do weekend” (p. 163) no calendário burguês. Além disso, para compensar essa característica de especialização do suplemento, a literatura ocupou também o espaço de um segundo caderno nos jornais (ou Caderno B, conforme distintas designações, próprias de cada jornal), aproximando-se de formas artísticas diversas relacionadas ao cinema, teatro, televisão, música entre outras.

17 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

18 SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

A ocupação dos suplementos e dos cadernos de variedades do jornal pela literatura não implica, no entanto, em maior visibilidade ao texto narrativo ficcional. Por outro lado, essa mudança representa uma alteração no próprio texto, em função da transformação dos suportes e do discurso das mídias. Há, ainda, segundo Santiago, uma razão para a separação litigiosa entre o escritor e o jornal: a especialização exigida na discussão do texto ficcional. Para ele, as grandes teorias e metodologias do século XX (como o formalismo, a estilística, o new criticism, o estruturalismo entre outras) fizeram com que os professores universitários inconformados com o impressionismo (ou superficialidade, como ele acrescenta) do ensaio ou da crítica literária nos jornais desprezassem esse importante espaço de discussão.

Santiago não esconde o desconforto com o papel exorbitante da Teoria da Literatura na formação dos especialistas. Á parte de sua contumaz veia polemista, o crítico expõe alguns pontos fulcrais para a reflexão e entre eles está a perda do espaço do debate literário em jornais e revistas que poderiam oferecer um local privilegiado para o pensamento criterioso e opinativo. Além disso, talvez seja o momento do escritor e do crítico romperem com lindes tradicionais e conservadores e revisarem sua função na esfera pública.

Dessa forma, a literatura e a crítica fugindo do conforto encastelado e do aporte teórico sufocante poderiam repensar seu compromisso em uma realidade de simulacros, simulações, hiper-realidades e misérias nada virtuais que convivem conflituosamente em um universo de complexidades. Nessa realidade, a condição do profissional das letras, antes do refúgio, seja a de comprometer-se ao que Augusto Silva denomina de três pilares da condição intelectual: o da diferença, o da independência e o da crítica. A diferença diz respeito aos valores de liberdade e alteridade inerentes ao sistema da literatura e das artes e que intervém no espaço público em nome de causas que extravasam os limites específicos da esfera política. A independência refere-se ao dever de ofício do intelectual de estabelecer um distanciamento em relação aos agentes políticos para redefinir temas que o discurso político tende a aviltar. Finalmente, a crítica como um dos princípios da atividade do intelectual consiste na problematização de comportamentos e da linguagem sob o ponto de vista das artes e da cultura interrogando sempre como fundamento a valorização do conhecimento, sem

esquecer, evidentemente, da interpelação da própria postura.

A contemporaneidade, no entanto, vê o ocaso de algumas das teorias aqui referidas, sintetizadas no sarcasmo de Eagleton19 logo no início de seu Depois da Teoria, segundo o britânico:

O destino empurrou Roland Barthes para debaixo da caminhonete de uma lavanderia parisiense e vitimou Michel Foucault com a AIDS. Despachou Lacan, Williams e Bourdieu e baniu Louis Althusser para um hospital psiquiátrico pelo assassinato de sua esposa. Parecia que Deus não era um estruturalista. (2005, 13).

Contraditoriamente – e Eagleton, em certo momento reconhece isto – nunca podemos estar depois da teoria ou prescindirmos dela, pelo simples fato de que sem ela não há existência humana reflexiva. Contudo, sem aderir completamente à queixa de Santiago em relação à postura nefelibata de muitos professores de Letras o fato é que a própria corrente culturalista, nascida da necessidade de politizar a teoria e do debate da New left inglesa20, hoje se preocupa muito mais em estudar seriados como Friends, ou com corpos fetichizados do que com os corpos esfomeados.

Logo, o ato crítico empenhado na vida e na sobrevivência da arte afasta-se do espaço dos jornais e das revistas. De outro lado e ironicamente, o discurso das mídias afigura-se cada vez mais a partir de roteiros dramatizantes, como defende o francês Patrick Charaudeau21. Assim, o discurso ficcional aproxima-se do imperativo comercial de atração de leitores. Isso significa que a veracidade da informação é tomada por uma opacidade própria da literatura e, assim, a mídia revela um mundo que se apresenta ao espectador como objeto de fascinação.

No período de 1951 a 1961, por exemplo, o escritor Nelson Rodrigues escreveu,

19 EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005.

20 Ver mais em: CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre os estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.

21 CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007.

diariamente, quase duas mil histórias, segundo informa Ruy Castro22 em apresentação da compilação de contos do dramaturgo fluminense, denominadas a A vida como ela é.... Esses textos, não por caso, eram publicados no Jornal Última Hora, ao lado da seção de crimes, aproximando, incestuosamente, ficção e realidade. Mais uma vez, desde o título dos textos rodrigueanos, nada seria mais ficcional que as notícias dos crimes e nada seria mais real do que a ficção. Repete-se, portanto, a pergunta de Baudrillard, ou seja, nesse caso, ocorre o fim ou o apogeu total da representação?

No final das contas, se a imprensa ajudou os escritores brasileiros, facultando-lhes um ofício em tempos de leitura rarefeita, o tributo parece, hoje, mais do que pago, na medida em que a construção do imaginário midiático fundamentou-se – e fundamenta-se- na linguagem emprestada da ficção. Se boa parte dos escritores debandou dos jornais, os traços deixados de suas narrativas, no entanto, permanecem, atualmente, na função de produção de catarse social. Para isso nem precisamos forçar muito a memória, é só lembrarmo-nos dos roteiros dramatizantes da mídia nas histórias de Isabelas, Eloás e nas epidemias de gripe e de sensacionalismos, de telefones grampeados e de escândalos de suínos senadores que se transformam, muitas vezes, em superficiais narrativas no discurso midiático brasileiro.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.

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BENDER, Flora & LAURITO, Ilka. Crônica: História, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

BARBOSA, Maria Helena. In: ZILBERMAN, Regina, MOREIRA, Maria Eunice e ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Pequeno Dicionário da Literatura do Rio Grande do Sul. Porto

22 CASTRO, Ruy. A vida como ela é...São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Alegre: Novo Século, 1999.

BAUDRILLARD, Jean. Tela Total: mito-ironias do virtual e da imagem. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina: 2002.

BROCA, Brito. A vida literária no Brasil- 1900. José Olympio: Academia Brasileira de Letras, 2005.

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