Coletânea Ciclo

W Alceu Amoroso Lima Coletânea Ciclo

Alceu AmorosoColetânea Lima Ciclo

Organização e conteúdo Guilherme Arduini e Mauricio Trindade da Silva Alceu Amoroso Lima

Organização e conteúdo Guilherme Arduini e Mauricio Trindade da Silva

São paulo, 2017

CEntro de pesquisa e formação Sesc SP

São paulo, 2017

CEntro de pesquisa e formação Sesc SP Coletânea Ciclo

Alceu Amoroso Lima

Alceu e o equilíbrio dos antagonismos Carlos Affonso Ferreira...... 06

Depoimento Alceu Amoroso Lima Filho...... 13

A Correspondência de Tristão de Athayde e a Luta pelos Direitos Humanos Leandro Garcia Rodrigues...... 29 Notas sobre Notas sobre Alceu Amoroso Lima e : liberdade, emancipação e democracia Candido Rodrigues...... 24

Nenhum dia sem escrita: Da experiência do cristão e de seu registro – os casos de Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton Marcelo Timotheo da Costa...... 29 Dois políticos e seus projetos: Alceu Amoroso Lima e Anísio Teixeira em torno da Educação Nacional Agueda Bernardete Bittencourt...... 35

Os escritos jornalísticos de Tristão de Athayde nos anos 1920 como matriz interpretativa de sua conversão ao catolicismo Guilherme Ramalho Arduini...... 44

Dr. Alceu e as muitas faces da modernidade Candido Mendes...... 52

Chesterton e a intelectualidade católica brasileira Alessandro Garcia da Silva ...... 58

Apresentação

Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983), também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde, figura entre os principais intelectuais brasileiros do século XX. Essa afirmação, em que pese seu acento, ainda diz pouco sobre um homem que transitou regularmente entre a ciência e a religião, entre a crítica e a produção artística, entre a política e o ensino – domínios nem sempre tranquilos se vistos a partir dos princípios organizadores internos que os regem, e diante dos quais, ao transitá-los, um indivíduo não passa ileso sem despender uma grande carga emocional e ter que praticar algo como um autocontrole ascético na organização do próprio pensamento.

Em cada um desses domínios Alceu Amoroso Lima deixou marcas, propôs discussões, fez acordos e suscitou rusgas que atraíram – e ainda atraem - pesquisadores de diversas áreas, voltados a estudar e compreender seu pensamento. Aderiu ao movimento modernista e escreveu profusamente sobre os principais poetas do movimento. Foi um grande pensador católico e teve uma das maiores carreiras jornalísticas da imprensa brasileira. Foi um intelectual pleno, ao estilo de Mário de Andrade, no sentido em que, além do trânsito entre áreas distintas, também procurou conhecer-se melhor, a cada idade e a cada contexto, mesmo sob o risco de defender posturas e ideias que o fariam ser incompreendido, e mesmo correndo o risco de errar.

Esse diapasão de atuações só acentua seu rico itinerário como ser humano que não se encontra acima do bem e do mal. Foi simpatizante dos movimentos de esquerda durante a ditadura militar e foi o representante brasileiro do Concílio Vaticano 2º. Participou da fundação da Pontifícia Universidade Católica do ; ocupou assento na Academia Brasileira de Letras; também fez parte do Conselho Nacional de Educação.

Homem complexo, enfim. Homem pleno, com certeza Como notado, sua contribuição está presente nos principais acontecimentos da história brasileira do século XX.

Para homenagear Alceu Amoroso Lima, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc realizou o Ciclo Tristão de Athayde, entre junho e julho de 2015, com curadoria de Guilherme Arduini. As apresentações - que buscaram problematizar, entender e discutir o homem e sua obra - estão aqui reunidas nesta publicação. Com este ato, um duplo entre homenagem e sincero reconhecimento, espera-se poder contribuir para a disseminação do pensamento do autor e para manter viva na memória, e no espaço público, a imagem que merece perpetuar-se: a de um grande intelectual humanista.

Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo Junho 2017

4 Alceu Amoroso Lima – alegria e rigor

Crítico literário, ensaísta, professor: diversas foram as atividades intelectuais exercidas por Alceu Amoroso Lima (1893-1983), cujas obras (mais de oitenta no total) por vezes apareciam assinadas comoTristão de Athayde. Para recompor suas múltiplas facetas e entender sua vida pública, organizamos o Ciclo Tristão de Athayde, que integrou a programação do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo nos meses de junho e julho de 2015. Durante cinco semanas, onze palestrantes tiveram a oportunidade de expor suas ideias. Nove entre eles registraram por escrito suas contribuições, das quais resultou este livro.

As apresentações se deram sob o signo do diálogo aberto e da pesquisa solidamente interdisciplinar, posto que historiadores, sociólogos, cientistas políticos e educadores se propuseram a cobrir um espectro de análise que incluísse as relações sociais no seio das quais Tristão se formou, os traços de subjetividade que moldaram sua leitura de tais relações e o modo como elas aparecem em seus escritos, além do legado de suas ideias para a compreensão do presente.

Esta publicação apresenta uma ordem lógica que se inicia com uma visão familiar de Alceu: Carlos Eduardo Affonso Ferreira (neto de Alceu) e Alceu Amoroso Lima Filho apresentam suas versões do personagem no convívio íntimo, restrito às pessoas mais próximas. Os testemunhos de um filho e um neto ajudaram a compor a intimidade deste personagem que, não obstante seu jeito expansivo e alegre, era bastante reservado no que concerne à vida familiar. Em seguida passamos à figura pública de Alceu, através das suas fortes amizades, nutridas por meio de uma prolífica correspondência, e também pelos enfrentamentos que inevitavelmente marcam a vida pública de grande envergadura.

Para terminar, o remate da obra fica a encargo do decano entre todos os estudiosos de Alceu: Cândido Mendes, a quem também cabe o papel de preservar o arquivo pessoal de Tristão de Athayde e promover atividades sociais através do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade. Em suma, o Ciclo Tristão de Athayde foi, de um modo homólogo ao seu objeto de estudo, dotado de uma alegria e uma erudição impecáveis. Esta oportunidade única de repensar uma das trajetórias pessoais mais importantes do Brasil do século XX só foi possível graças à realização do CPF Sesc.

Por este motivo, somos eternamente gratos a Andréa Nogueira e Maurício Trindade, respectivamente gerente e gerente adjunto do CPF, e especialmente a Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, pela confiança apresentada no trabalho. Através deste livro, a fecundidade de suas pesquisas poderá ser útil a um número muito maior de pessoas. Boa leitura! Guilherme Ramalho Arduini Doutor em Sociologia pela USP Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo

5 à la padrão europeu da cidade, instalada em uns 500 Alceu e o equilíbrio dos antagonismos metros quadrados de fartas vitrines,balcões com tampos de mármore e bons equipamentos para Carlos Affonso Ferreira a época, como fatiadores de frios e máquinas de fazer sucos. Dali, atulhados de bisnagas de pão de qualidade (não disponível no Rio então) e barras de Inicio agradecendo ao Sesc pela realização deste chocolate Sonksen, aquele da vaquinha, Alceu e Maria evento que evoca alguém pouco lembrado Tereza seguiam a pé três quarteirões, ele debaixo de ultimamente, mas que é um escritor de papel indefectível boina, segurando embrulhos, uma pasta fundamental na cultura brasileira segundo a opinião de couro e guarda-chuva. de seus correspondentes, como Mário de Andrade, Carlos Drummond e Dom Luciano de Almeida. Aí pelas 7h da tarde chegavam lá em casa. Alceu Vem a propósito mencionar a biografia de Alceu, que investia pela sala adentro com seu andar rápido e lancei em 2015, da qual me utilizo nas linhas abaixo. decidido. Preparava-se para se instalar na poltrona junto à lareira, no que usaria a hora de sobra a ler É engraçado, associo à biografia um ótimo restaurante os salmos. Estes são os 150 poemas líricos do Antigo italiano em Curitiba, em que se entra pela cozinha. Testamento, entre os salmos há hinos, súplicas e É uma forma do freguês conferir a higiene do local. louvações. São louvações por prodígios realizados por Da mesma maneira, hoje quero primeiro tratar da Deus na natureza, súplicas com pedidos de socorro cozinha da biografia, de como me envolvi com esse ou manifestações de confiança. Há ainda salmos de trabalho, e contar um pouco do que foi o processo ação de graça por um bem qualquer conseguido. de escrevê-lo. Vovô teria um intervalo descontraído, nele ruminaria o mistério que encontrava em cada dia e o faria a Meus avós vinham do Rio a São Paulo a cada dois ou sorver uma dose de uísque em copo alto com gelo três meses visitar as duas filhas e um filho que moravam e água. Senti-me particularmente importante ao ser nessa cidade. O item principal da agenda era passar o escalado seu barman. O neto já tramava cavar-lhe dia com Lia, a filha beneditina enclausurada na Abadia conversa, sem muita noção do valor para ele de uma de Santa Maria. Vamos, daqui para a frente, chamá- oportunidade de contemplação e aterrissagem suave la de Tuca, seu apelido. Tristão chegava ao mosteiro ao cabo dos compromissos cotidianos. cedo e dedicava a manhã no parlatório a pôr em dia assuntos que vinham diariamente tratando por carta. Assim penetrei no mundo de sua infância e Como ele tinha o costume de escrever artigos se juventude, marcadas pelo eixo Rio/Paris, de que ele antecipando ao cronograma dos jornais, para livrar-se tinha relatos sedutores. Seu grupo social assimilara do stress desta dívida, não faltavam assuntos a tratar dos franceses o dom de prosear, das conversas de com a filha – e nisso ocupava o par de horas antes da salão que até acabaram batizando um móvel próprio: chegada de minha avó para o almoço. Neste, dentro causeuse, uma poltrona de dois lugares. Os relatos da realidade da dieta frugal das beneditinas, o que começavam de sua primeira viagem, com seis anos refletia seu orçamento apertado– carne, só comiam de idade, à Europa, em 1900. As estadias estendiam- uma vez por semana –, não faltava um gesto de se meses a fio e o menino foi inscrito num colégio largueza das monjas, que acrescentavam às travessas em Paris. Mas o padrinho de Alceu, Antonio Marinhas, um prato de doce. A tarde no parlatório, com os que acompanhara os Amoroso Lima na viagem, ao velhos instalados em cadeiras de balanço e a filha invés de entregar Alceu ao liceu, seguia com ele para debaixo de seus panos pretos, sentada por detrás das lojas de brinquedos ou para passear no Jardim das grades –a tarde ia-se enquanto os três repassavam Tolherias. Em outra das viagens à França, a bordo com a crônica familiar, como enxergavam a travessia de eles iam famílias argentinas, que mantinham vacas vida de cada um de seus descendentes, por cuja sorte no porão do navio de maneira a garantir-lhes leite invariavelmente interessavam-se. fresco todas as manhãs. Nesse tempo, o transporte refrigerado de carne acabava de ser descoberto e a Quando às 6h da tarde os sinos do convento tocavam, Argentina tornara-se o açougue da Inglaterra. Buenos chamando as 60 freiras para a capela onde diriam Aires era capital da sexta economia do mundo. Vésperas, o casal embarcava num táxi para jantar lá em casa, no Jardim Paulistano. O carro largava-os na Pão Kent, esquina da Av. Europa com a Rua Iguatemi (hoje Faria Lima), talvez a primeira padaria incrementada

6 Outra temporada de Alceu na Europa levou 18 meses, na vanguarda do pensamento esclarecido. Aliás, e só terminou com o estouro da I Guerra. Em Paris ele falando nisso, sintomático foi um episódio com um enturmou-se com um grupo animado de portenhas, amigo meu. Ele, muito boêmio, disse à abadessa com quem manteve agenda social animada incluindo que amaria escutar o canto gregoriano do Laudes, tardes dançantes no Majestic, um hotel sofisticado a às 6:00 da manhã, mas tal horário de soldado não duas quadras do Arco do Triunfo, onde o meteram no lhe convinha. Sabe o que Tuca propôs? Que ele sexto andar sem elevador, junto às pombas, segundo emendasse a noite, que viesse diretamente dos bares. ele contava. No Majestic aprendeu a dançar tango, A sugestão soou blague, incorporou-se ao folclore ritmo argentino ainda visto mais próprio para cabarés familiar, mas a madre não pilheriava. pouco recomendáveis da zona do cais do porto em Buenos Aires. Pois vovô foi talvez o introdutor do Muitas tardes completas, durante vários meses tango nos salões elegantes do Rio de Janeiro. Tudo seguidos, eu gastei nos parlatórios da abadia. À entrada isso era pé de conversa para histórias que seduziam o a porteira entregava ao visitante um papelucho que neto. Pois eu curtia cada detalhe do relato, começando este preenchia se identificando e indicando qual daquele castiço sotaque carioca, sem excesso de silvo madre gostaria de encontrar. O bilhete era posto na nos “s”, mas com “r”s assertivos e de som que sabe roda, um armário giratório dando no outro lado para bem ao ouvido. a clausura, de onde a freirinha a postos levava até a pessoa procurada. E tal era a alegria prelibada do Nesta terceira ida à Europa da belle époque os encontro com minha tia que começamos a avançar Amoroso Lima encostaram na hecatombe universal, fuzarcas nos bilhetes, eventualmente alguma coisa pois estavam em Paris quando as tropas alemãs séria antecipando os assuntos do parlatório. Pois já haviam superado a barreira supostamente num desses papeizinhos volta uma anotação de Tuca indevassável da linha Maginot e avançavam na direção sugerindo que eu escrevesse a vida do pai dela, para da capital francesa. que os bisnetos soubessem quem ele foi.

Andou o tempo, ia eu lá com 19 anos de idade todo A ideia me soou estapafúrdia, como é que um aluno pimpão, certo de triunfar, afinal cursando faculdade de português medíocre, despreparado em literatura cobiçada (FGV), saúde sobrando e na garagem um e treinando para vender trator poderia retratar um automóvel conversível. Foi também quando me autor de 80 livros, crítico literário consagrado, erudito surge uma crise existencial braba precipitada por membro da Academia Brasileira de Letras, que logo um desgosto afetivo dilacerante, foi como se alguém se tornaria seu decano?! A madre não insistiu, de caju retirasse a escada em que eu subira. Machucado, em caju tocava de leve na ideia. aproximei-me do convento beneditino nessa altura meu vizinho em SP, onde hoje funciona o Hotel Corta a cena, avança mais um lustro o calendário. Maksoud e está erguida uma dúzia de arranha-céus. Aos 29, morando no Rio, a Belacap, esta covardia da Ali onde existia apenas a abadia, uma igreja e um natureza que é o cenário de tirar o fôlego, passou a parque espalhado em 47.000 metros quadrados de me cobrar algum registro. Era impressão demais para terreno tocando na Rua Pamplona, vivia enclausurada acumular nos sentidos, as imagens tendiam a criar a Tuca, Irmã. Maria Teresa Amoroso Lima, irmã de umas poças de emoções, que sem serem expressas, minha mãe. Visitar a Abadia de Santa Maria sempre não trabalhadas e não articuladas ficavam sem drenos foi programa atraente, as freiras têm uma enorme para o espírito. Este empoçava, formava lagoas, bolhas. disposição de ouvir, produto escasso em nosso mundo Ora, além do desperdício de energia elas me causavam superdotado de recursos eletrônicos de comunicação insônias devastadoras e grandes ressacas. e nítido déficit de atenção. É uma gente de cotidiano fisicamente afastado do mundo, mas com prática de Foi também quando reencontrei o Padre drenagem do próprio ego e hábitos contemplativos, Charbonneau, meu antigo professor de Lógica no então naturalmente atenta e hospitaleira. colégio Santa Cruz, e mencionei a ele o projeto encalhado. Sua usual assertividade foi contundente: a Era tudo o que eu procurava: acolhida. E ainda por tarefa urgia, o tema merecia registro, era-me o projeto cima Tuca tinha um temperamento delicioso, humor fundante. Seria também minha “escritoterapia”. de plantão, era simples e prática, entusiasmada e Quando no ano seguinte ele visitou a Chapada interessada, sabia ouvir. As cartas do pai a mantinham Diamantina Charbonneau ofereceu-me improvisar ali bem informada, nele colhia uma influência arejada, mesmo uma oficina preparatória. Fomos já naquela

7 noite para a varanda da nossa casa na fazenda, onde o Mas vocês não vieram aqui pra saber das décadas teólogo preparou um esboço da evolução das ideias de gestação de meu livro e sim conhecer Alceu do Iluminismo até o renouveau catholique no séc.XX, Amoroso Lima um pouco mais. Penso que o melhor em seguida à I Guerra, antes de chegar ao Vaticano que eu teria a contar a vocês nasce da ideia de um dos II. Nas anotações rascunhadas nasceram o mapa do meus entrevistados, Riolando Azzi. A ele o que mais meu projeto e da pesquisa. impressiona na biografia de Alceu é a intensidade dos Comentei com o Charbonneau minhas dificuldades, contrastes, as aparentes contradições, o choque de meu medo da página em branco, meu despreparo. O forças antagônicas e o equilíbrio que se forma entre padre canadense era extremamente prático, propôs elas. Esse equilíbrio não se dá pelo afrouxamento das que eu substituísse minhas hesitações por uma serie forças, ambas continuam fortes, enérgicas, intensas. de entrevistas com gente que conhecera Alceu, que com ele travara relações intelectuais. Das entrevistas Vou apresentar esse traço – o equilíbrio de brotariam as chaves de leitura do pensamento de antagonismos- em cinco instâncias ao longo da vida Tristão de Athayde. Podendo invocar parentesco com de Alceu, poderíamos falar de 50 outras. ele foi fácil conseguir entrevistas, logo eu me vi por exemplo no escritório de doutor Sobral Pinto, de e mais outras 50 pessoas. Com Paulo Infância Francis eu também estive, no apartamento em Nova Iorque em que ele morava nos anos 1970, embora Alceu foi educado a domicílio até os nove anos de idade. depois de alguma insistência. Era na Casa Azul, uma chácara verde no Cosme Velho, Hoje olho para a empreitada intrigado. Constato por onde corria a descoberto o Rio Carioca antes a ação ao longo dela de uma força insistente e de desembocar na Praia do Flamengo. Alfabetização, enérgica capaz de vencer minha indisciplina, minhas matemática e noções básicas de botânica, geografia postergações e minha pequena escolaridade na e economia eram dadas pelo professor Kopke, um matéria. Alceu é transparente no que escreve, tem refugiado alemão que vinha à casa dar aula ao menino. muita didática, põe-se nos sapatos do interlocutor O método de ensino empregado destoava do padrão com a genuína e espontânea vocação de professor, pedagógico daqueles tempos mais dados ao Ateneu, sua parte flui bem. Mas foi preciso também ao menos de Raul de Pompeia, feito de decorebas, do professor “mobralizar-me” nas influências por ele recebidas e que pontificando despejava conhecimentos sobre o aí foram aparecendo os obstáculos. Ler Chesterton aluno submisso. Kopke levava o menino a passear é instigante e especialmente divertido, mas digerir pela chácara e quando encontravam uma planta pensadores como Maritain e Mounier, ambos ou pedra paravam para analisar suas características carregando o traço de um pensamento que trata vegetais ou minerais. Também circulavam pelo bairro menos de fatos e mais de conceitos abstratos, algo identificando sua topografia espetacular, a por lado a característico dos intelectuais franceses, é batalha lado granitos colossais despencando sobre o oceano morro acima. e matas floridas crescendo nos intervalos. Naquela pedagogia itinerante iam identificando fenômenos Essa força em contramaré os católicos chamariam sociais, frequentadores daquelas calçadas, consistindo de Espírito Santo. Ela se repete em Guimarães Rosa, em mascates de vassouras, frangos e frutas, fulanos em Grande Sertão quando o texto refere-se ao que giram a manivela do realejo em troca de meio personagem Hermógenes, “que nasceu formado tostão, todos esses personagens do cotidiano da tigre, e assassim !!!” e que se pergunta “Será que a vida capital da República. socorre à gente certos avisos ?”. Este “socorre” alude ao sobrenatural. A mesma força aparece também Música era outro item fundamental na formação em Homero, cuja Pala Atenas, da Odisseia, aguarda de Alceu. Vinha à chácara dar-lhe aula particular de o viajante na estrada para protegê-lo de perigos, piano o cearense Alberto Nepomuceno, autor de defendê-lo de salteadores e de tempestades. peças melódicas eruditas que logo seriam influência importante em Villa Lobos. Afinal aos poucos, ao longo das entrevistas e leituras foram aparecendo as tais chaves de leitura. Caligrafia tentou o prof. Goldsmith ensinar ao menino, sem nenhum sucesso. Este outro refugiado alemão, *** que vinha ao Cosme Velho abraçado a desenhos de sua autoria na vã esperança de empurrar alguns

8 sobre os pais dos alunos para reforço de suas finanças Os primos Amoroso hibernavam na casa à beira do combalidas, tentava configurar o traço rebelde do riacho quatro meses no verão petropolitano e outro garoto a um mínimo de estética, mas fracassou. A tanto no inverno. Deglutiam os autores de destaque ponto daquela escrita irrequieta de Alceu, em estilo na belle époque francesa, portuguesa e brasileira. arame farpado seguido de rabiscos deselegantes, que Anatole France, Eça de Queiroz e , ele próprio tinha dificuldade de entender, uns anos por exemplo. Era uma tertúlia em sessão continuada mais tarde ficou reduzida a uma única intérprete, pelos meses de férias escolares. Tuca e sua paciência beneditina. Com a morte dela, em 2012, tornaram-se órfãs e quase indecifráveis os O traço filosófico identificador desse grupo éo 33 anos de correspondência diária e pontual que o diletantismo e a ironia, eles escolhem não optar, escritor postava à filha. Estamos falando de umas 12 entretêm-se com literatura, acreditam não precisar mil cartas hoje arquivadas na Unesp, campus de Assis. definir-se, vão tocando a vida como o fluxo constante de um rio, eles apenas assistem. *** A questão social no país ainda andava adormecida. Contra-fluxo : E para a geração da belle époque no Universo não havia mais enigmas, o espetacular surto científico Pois é esse menino cercado de atenções - o varão das décadas recentes - nelas se inventou o motor, a rodeado em casa por quatro irmãs e meia dúzia explosão, os automóveis, a navegação transoceânica de tutores — que aos 10 anos de idade o pai dele, movida a caldeiras, à eletricidade, à telegrafia; ela de convicções republicanas, resolve que está na bamburrou fabulosas jazidas de ouro e diamante na hora de ser robustecido, de conhecer a realidade África do Sul. É a Europa ariana levando ao mundo social do país, de sair da estufa profilática da zona seu poder civilizador, as teorias eugênicas prosperam. sul, ter contato com outras classes sociais. Alceu é Não é a toa que a belle époque olhou o cristianismo matriculado no Colégio Pedro II, na Zona Norte, com desprezo; egocêntrica e enfatuada, ela descartou onde convive com meninos socialmente mais toscos. liminarmente o paradigma de um rei crucificado, É fácil imaginar as descontinuidades, o estranhamento corresponderia em linguagem de hoje, como na provocado por alguém que traz de casa “fusains” canção dos Beatles, a “tosing out of tune”. lápis de cera franceses comprados nos magazines de Paris, lancheira preparada pela mãe coruja, etc. Já Respirava-se aversão ao catolicismo, algo tão forte o som da palavra pronunciada em bom francês soa nos intelectuais companheiros de geração de Alceu, afetado, precioso. eles insistiam em guardar para si, reagindo um pouco como o personagem de Primo Basílio: Os bullyings não demoraram. Aos 15, quando Ceceu afirma no recreio ter lido Shakespeare, um dos “Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro, um parrudos sai com ele aos sopapos. estudante de matemática, acredite que há almas que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e Juventude tocando instrumentos?”.

Outra vivência preparatória de novo choque Alceu vive 18 meses baseado em Paris, só volta ao de contrários dá-se em Duas Pontes, bairro em Rio quando em 1914 arrebenta a I Guerra. Aliás Petrópolis onde ficava a casa de campo de seus primos um incidente sintomático do espírito da época dá- abonados, os Amoroso Costa. Repare-se que Manuel se na semana do retorno: com os jornais franceses Amoroso Costa veio a ser matemático notório, noticiando tropas alemãs na fronteira ele consegue professor da Politécnica; morreu tragicamente em passagens para sua família (mãe e quatro irmãs) 1928, na queda de um avião que circundava a Baia num trem para Lisboa, onde tomariam o vapor pro de Guanabara com uma comitiva de notórios para Brasil. Pois dona Camila não esconde o desaponto, saudar o navio que trazia Santos Dumont de volta da “vou perder minha hora na costureira!”. Dom França. Manuel foi genuíno cientista, só a pesquisa e a Timóteo Amoroso Anastácio dizia bem: “belle époque, música o seduziam, a ponto de em viagem à Europa era bocó!” na mocidade ele preferir conhecer a Grécia da matriz mundial do conhecimento humanístico do que os cabarés parisienses.

9 Em 1919 Renato Machado convida Alceu para beneditino em São Paulo. Dizia-se que além das escrever uma coluna de crítica literária em O Jornal. freiras viverem confinadas ao convento, de onde só Essa coluna dá voto de confiança aos Modernistas de tinham licença para sair para o médico, não poderiam 22, que o à época via como não mais do que escrever à família e as cartas recebidas passariam pela um barulhento grupo underground. Observem-se as censura de madre abadessa. A despedida testava os circunstâncias, o Rio de Janeiro era a capital do Brasil, nervos do progenitor, dois anos de separação da filha sua importância relativa no país era destacada, São não bastariam, o afastamento geográfico incorporava- Paulo ainda decolava. Alceu se torna destacado crítico se à vida da família. do Modernismo, troca cartas com os Andrade, Mario, Oswald e Carlos Drummond. A notícia radical feriu minha avó que levou alguns anos a digeri-la.Para Alceu também a vocação da Pois não demorou e o crítico se converte, levado à filha pôs à prova de esforço suas convicções. Tuca era Igreja pelas mãos de um adepto da Ação Francesa, o especialmente ligada ao pai, iam juntos de bonde à movimento reacionário que se opunha à Revolução faculdade, brincavam de imaginar a história dos outros Francesa, Jackson de Figueiredo. Alceu passa a passageiros, como seria a casa e a família do senhor frequentar o Palácio São Joaquim, de onde o cardeal de bengala que acabava de desembarcar ou aquele orienta a condução do Centro Dom Vital, um núcleo outro engravatado, com jeito de tesoureiro de banco. de leigos interessados em divulgar os valores cristãos para a sociedade. Dom Leme espera fazer uma A opção da jovem a tiraria do convívio familiar, presença católica na intelectualidade contagiada de podaria qualquer desejo de conhecer o mundo positivismo cientificista. que tanto ouvira seus pais evocar e a confinaria num mosteiro, onde cumpriria horários rígidos e A reação dos correspondentes de Alceu não alimentação franciscana. Para atenuar o rompimento demorou. Mario de Andrade, Oswald de Andrade, de hábitos Alceu passou a escrever diariamente Carlos Drummond, Sergio Buarque de Holanda e longas cartas à freirinha, a prática varreu 33 anos, Rodrigo Andrade, todos se manifestaram enérgica e até a morte de Alceu em 1983. Um envelope com contrariamente à opção do crítico pela Igreja. Essa 10 páginas de uma caligrafia a desafiar uma equipe gente fez restrições públicas, eles diagnosticaram que de farmacêuticos Alceu despachava diariamente na a critica de Alceu poderia tornar-se sectária. Oswald agência central do Correio em Petrópolis. Há ali um não segurou sua ironia escandalosa, no Rei da Vela corrimão de escada instalado a pedido de Tristão, ele, encaixou Cristiano de Bem Saúde, o retrato de um octogenário, reclamava à agência do perigo de descer Alceu tido como grande censor a mando do clero. a escada. Aí um cunhado meu, Egydio Bianchi, que na Oswald lamentava “Tristão é um dos nossos que década de 90 dirigiu os Correios, quando instalou o agora acredita em anjo...” . corrimão, que teve que ser muito estudado dada a história do prédio tombado. Isso está contado num livro publicado pela ECT. * Anos 1950 * Os Correios e Telégrafos no Brasil, ISBN 85-901137-1-X Nas semanas finais de 49 os Amoroso Lima faziam as malas para embarcar para Washington, Alceu convidado a ser diretor da União Pan-Americana, Velhice: o embrião da OEA. Por culturalmente interessante Episódio Corção: que fosse o posto, havia custos afetivos substanciais agregados, o do isolamento. Os Amoroso Lima Em 1967 o filho mais velho de Alceu, Jorge Alceu, na viajavam de navio, dez dias de mar só para chegar altura com 36 anos, casado e pai de cinco crianças, a NYC. Comunicações só por cartas, semanas de morador de Campinas, matriculara-se num curso de demora. Permaneceriam dois anos ininterruptos extensão na Fundação Getúlio Vargas, pelo que vinha no exterior. a São Paulo todas as noites. Num desses percursos, ao voltar, quase meia noite, com a Anhanguera debaixo Pois é este homo viator que oferece na mesma de chuva pesada, na altura do Frango Assado, km 71, semana um frappé à filha na confeitaria D’Ângelo, eis que os pneus de um veículo passando em sentido em Petrópolis. Ali a jovem despeja sobre a mesa sua contrário disparam um jato d’ água sobre o para- decisão de ingressar em Santa Maria, um convento brisa da Rural Willys. Ela derrapa no asfalto, perde

10 o controle, cruza o canteiro e bate em automóvel Domesticamente vindo do interior. Nesse tempo não se usava cinto de segurança, o choque violento joga meu tio contra o Outro choque de forças em antagonismo na biografia teto da Rural, onde bate a cabeça. dava-se no cotidiano, era intenso e profundo. Refiro- Removida a Campinas em ambulância, a vítima deu me à dinâmica dos temperamentos. Minha avó entrada na emergência do Hospital Vera Cruz em era especialmente polida, mas não propriamente estado de coma. E assim inconsciente permaneceu simpática. Introvertida, ao contrário da exuberância do 40 dias, metade deles sob um cobertor de gelo marido, aquela alegria contagiante. Dou um exemplo: destinado a baixar a temperatura do corpo e evitar sendo minha avó de humor seco, se à mesa de almoço febres que agravassem o trauma no cérebro. Em ela largasse uma brincadeira e as pessoas à volta não matéria de recursos médicos podia-se contar com percebessem o cômico ela deixava passar batida. o máximo disponível na praça reputadamente bem provida, e as conexões familiares locais certamente Era avessa à dramaticidade, a comoção fácil. Por ajudaram. Doutor Roque Balbo não mediu esforços, exemplo, durante os 2 anos finais da correspondência mas o caso era gravíssimo e resultou grave lesão na de Alceu com Jackson, em que o marido viveu a crise cabeça, impondo a Jorge uma sentença perpétua, ele da fé, Maria Thereza tinha sobre aquilo um olhar perdeu o impulso avante da existência. oblíquo, podador das efusões místicas do marido, ela Alertados por telefone na madrugada, Tristão e Maria via naquilo do marido ter insônia e estressar-se algo Thereza desceram de Petrópolis pela Cometa, para dramático, um exagero dispensável. acompanhar o caso. Pouco podiam contribuir além de testemunhar sua solidariedade. Minha avó não O ambiente geral na primeira República, herdeiro do era de demonstrar emoções, mas ficou a ruminar o sec. XIX cientificista, podava a religiosidade. Alberto choque, o risco não pequeno da perda do filho varão de Faria, meu bisavô, teria dito numa mesa de jogo de a quem legara o temperamento fleumático. cartas que antes preferiria saber do genro encontrado O acidente convocou muitas forças na num lupanar do que numa igreja. família, Silvia, minha mãe, fez plantão todas aquelas noites no quarto do hospital, pois o mecanismo do O temperamento reservado foi importante para cobertor térmico requeria um vigilante alerta para a podar a vida social e gregária do casal, eles não necessidade de inserir uma moeda de 10 centavos frequentavam nem recebiam em sua casa, nãolhes de dólar na chave do sistema para corrigi-lo, o que a faltando a pecha de arredios. Não tertv em casa foi todo momento acontecia. outra estímulo importante ao labor intelectual do intelectual católico. Não me esqueço de uma tarde Foi quando Tristão vislumbrou imolar algo pela em 1970 em que meus avós vieram conhecer o intenção, não importando que o sacrifício custasse-lhe apartamento que eu ocupava como estudante em caro. A consciência assoprou-lhe a tarefa mais árdua, Paris, no Marais, então ainda um reduto judeu, nada a exigiu que pusesse de lado antigas mágoas e fosse ver com sua sofisticação atual. Servindo-lhes um café procurar seu grande desafeto e adversário de ideias, narrei um pouco da festa ali havida na noite anterior o homem que havia sido seu principal colaborador para um grupo de amigos, ao que Tristão foi enfático: no Centro Dom Vital mas que há anos movia pelos “não deixe a vida escoar entre gregarismos que a jornais uma campanha de desconstrução da imagem nada levam, procure adensar suas vivências”. de Alceu: Gustavo Corção. Pois a postura mais cerebral de Maria Thereza foi O encontro deu-se no Rio poucas semanas depois. trabalhando o marido, operando um circulo virtuoso Tristão contou a Corção precisamente o que o a partir de algumas adversidades. Sem ela Alceu trazia ali, o antigo companheiro comentou que vinha provavelmente teria seguido adiante o diletante rezando diariamente pelo caso. A visita foi bem curta, divagador, eterno aluno de professores particulares Alceu disse a ele que eram adversários de ideias, mas e colecionador de filigranas. Terminaria a vida como unidos no coração de Cristo. Ao despedirem-se no um grande conhecedor de Proust e apreciador de portão da casa de Corção abraçaram-se, este não Baudelaire, mas sem sair de sua redoma, sem efetivo conteve as lágrimas, Alceu beijou-lhe a mão. envolvimento na realidade social e politica brasileiras, sem interagir com elas em sua coluna de jornal. O robusto cacife do sogro mesmo dividido por oito teria de alguma forma sustentado uma existência

11 de mero apreciador da vida e do mundo que a este base nutricional, a tapioca que foi o único pão de pouco devolveria. Aliás não me esqueço de um breve nossos antepassados que durante a colônia não comentário de Tristão sobre um dos personagens do conheceram pão à base de trigo, ele aguardou grande romance de Maria Alice Barroso, Um Nome a Independência. para Matar. Um dos herdeiros na família do proprietário enfiou-se na biblioteca da casa e fez dela o centro de sua vida. Não fosse o senso de responsabilidade inato, Bahia, 15 jun.15 eis uma opção que teria agradado a Alceu.

Pois Alceu chegou a ser espécie de carranca do rio Xikito Affonso Ferreira São Francisco, estas colocadas na proa da embarcação [email protected] que avança destemida. Sua autoridade moral, sua coragem, sua disposição de denunciar arbitrariedades deram-lhe nos anos sombrios da ditadura militar a condição de único brasileiro cuja coluna de jornal não era censurada. A quem mais foi permitido à época escrever em dois dos jornais de maior circulação no Rio e em São Paulo, o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, que o deputado Rubens Paiva fora sequestrado pelos órgãos de segurança do estado e que sumira em suas mãos ?

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Quero terminar evocando um afluente nacional do equilíbrio de antagonismos fundamental na cultura brasileira, Gilberto Freyre. Tal conceito foi amplamente trabalhado por Chesterton, autor que frequentou a mesa de cabeceira do antropólogo pernambucano e também a de Alceu Amoroso Lima. Ambos declararam profunda admiração por Chesterton, à base das convicções de ambos o pensador inglês teve influência, eles o leram no começo da carreira intelectual.

Casa Grande & Senzala é um grande mosaico de antagonismos em equilíbrio. No Brasil do começo do sec. XX o entendimento comum era o de Nina Rodrigues: a miscigenação é a causa de nosso atraso. Ora, nesse ambiente entrou Gilberto Freyre propondo exatamente o contrário: o patrimônio cultural dos africanos enriqueceu aos europeus. Aliás o caso brasileiro não foi o primeiro, pois os berberes já haviam transferido aos portugueses suas técnicas de canalização de agua e a arte dos azulejos. Para o Brasil os negros trouxeram suas plantase seus pratos mais adaptados aos trópicos, sua música sacudida, seus ritmos que animam o espirito e açambarcam. Por mais que Gilberto Freyre possa ter subestimado a violência da condição de escravo ele nos abriu as portas para apreciarmos os chorinhos e a bossa nova, a riqueza dos sabores tropicais, a presença da mandioca na alimentação brasileira, ela que foi nossa

12 Depoimento obrigava a quem saísse do Rio com livros, a ter uma autorização especial, o que ele chamou de “censura Alceu Amoroso Lima Filho prévia”; foi apoiado por uns, por outros, refutado, numa calorosa discussão pública; no dia seguinte os Fui convidado pelo Centro de Pesquisa e Formação jornais noticiavam a “discussão calorosa” entre os do Sesc SP a escrever sobre meu pai, Alceu Amoroso acadêmicos, mas também a revogação pelo DIP da Lima, pseudônimo Tristão de Athayde, o qual, nascido tal portaria! no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1893, morreu em Petrópolis no dia 14 de agosto de 1983, Uma das características da personalidade de Tristão, três meses antes de completar seu nonagésimo ano aliás penso eu que das mais fortes, era o sense of de vida. humour, que a meu ver se identifica com a inteligência Filho que sou, o de número cinco, nascido em 30 de e a naturalidade, esta última, segundo ele, a maior julho de 1935 e batizado Alceu Amoroso Lima Filho, das virtudes! meu tema é contar um pouco de sua vida privada - “A naturalidade é como um bando de crianças sua vida pública já é bem conhecida e comentada por brincando na rua, em frente da Igreja”, disse uma vez. muitos. E começo por dizer que na vida particular Convidado a se candidatar a Senador, recusou, mas nada teve a ver com participação na política partidária, recomendou que fosse convidado seu amigo de seja no Parlamento, seja no Executivo, seja no Poder muitos anos, Hamilton Nogueira, que foi eleito pelo Judiciário, embora muito participante na sociedade Rio de Janeiro. Convidado para Ministro da Educação, civil, especialmente no ambiente de Educação não sei por qual Presidente (teria sido o General Superior e na mídia, seja no campo de educação, Castelo Branco?...), recusou e disse “minha posição como professor de Literatura Brasileira na antiga é na tribuna, onde tenho podido, até hoje, dizer o Universidade do Brasil, hoje UFRJ, e com a mesma que penso...”. cadeira na PUC-RJ, seja nos jornais do Rio e de São Paulo, como cronista, colunista do Jornal do Brasil e Aliás, procurado, por telefone, pelo Presidente Castelo da Folha de São Paulo durante muitos anos. Branco, que lhe disse “ser seu leitor e admirador”, e Muito especialmente, foi ligado à Igreja que se preocupava em explicar que “você, Tristão, Católica no Brasil e no exterior, desde sua está mal informado sobre a revolução...”, etc., etc.; conversão, em 1928, à educação religiosa e ao e que, sentindo Tristão preocupado que pudesse Vaticano (Conselho Mundial de Justiça e Paz). ser “trote”, disse-lhe que poderia, “se quisesse, telefonar de volta para o número “xxx” para Seu Adeus à disponibilidade e outros adeuses, uma conferir quem o estaria chamando ao telefone...”. carta a Sérgio Buarque de Holanda - depois publicada em livro em 1969 -, marcou bem a sua conversão ao O cidadão e professor Alceu Amoroso Lima foi catolicismo, que acontecera em 1928; tive eu a ousadia também escritor, dizia ter mais de cem títulos de, na apresentação do livro Cartas do Pai, lançado publicados entre 1928 e 1978, com temas dos em 2003 pelo Instituto Moreira Salles, falar no seu mais diversos, principalmente nas áreas de filosofia, “retorno à disponibilidade”, alusão à “ressurreição” da sociologia, política e religião, esta devotada a uma vida intimidade de sua alma, que estava se publicando agora, intensa de apóstolo da religião católica, desde que via cartas diárias para a sua filha monja beneditina. deixou uma vida burguesa de laissez faire para trás e, através de contatos com Jackson de Figueiredo, Padre Passou quatro anos em Washington, como Diretor Leonel Franca, S.J., e principalmente o Cardeal Dom Cultural da União Pan-Americana, secretaria da Sebastião Leme, converteu-se ao catolicismo, em 1928. Organização dos Estados Americanos, e dois anos em Nova York, como professor da New York University, Ao invés de “chover no molhado” sobre a vida de meu cadeira de Estudos Brasileiros. pai e suas atividades, assunto que já terá sido e será Membro desde 1935 da Academia Brasileira de por muito tempo ainda contado em prosa e verso Letras, nos últimos anos o “decano”, e da qual o por diversas pessoas, que direta ou indiretamente ouvi dizer que “eu entrei na ABL, mas ela não entrou tiveram contato pessoal com ele, e/ou com suas em mim...”. E lembro um episódio na ABL: Tristão obras e sua pregação, resolvi misturar o “meu pai de protestou com veemência, na sessão semanal da ABL, casa”, da minha autoria, conhecido por mim “ao vivo presente Getúlio Vargas, contra uma determinação do e a cores” de 1935 a 1983, pelo menos dos anos DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que 40 até os anos 80 do século XX, com as pessoas

13 de dentro ou mesmo “de fora de casa” que falaram Nunca, ao que me lembro, fui convidado a “uma e escreveram sobre sua vida, tais como ele próprio, conversa particular... a portas fechadas”, nem Medeiros Lima (Memórias Improvisadas), Francisco tampouco ouvi dele uma palavra menos “de salão”, a Assis Barbosa (Memorando dos 90) e outros. não ser, sinceramente, aquela “m....” que os franceses gostam, pronunciada a propósito de um mau governo, Sua personalidade pública foi narrada por Candido não sem antes se desculpar comigo - “desculpe a má Mendes (Da pessoa à persona) magistralmente; aliás, palavra!...” -; o fato ocorreu aos seus 85 anos de idade ! diga-se de passagem. Candido, escolhido pelo próprio Alceu, próximo de morrer, como seu sucessor nas Que disse Tristão de si próprio ao longo da vida? atividades literárias e sociais, criou na Universidade Como parte do livro Cartas do Pai, foi incluído o Candido Mendes o Centro Alceu Amoroso Lima para trecho “Alceu por Alceu”, contendo algumas coisas a Liberdade, que vem fazendo um trabalho grande que ele disse ao completar 60 anos: de divulgação de suas ideias na sociedade brasileira, especialmente nas relações com a hierarquia da -“ detestei meus tempos de ginásio...” Igreja Católica. -“fui sempre um aluno medíocre...” - “não faço uma afirmação sem sentir logo o protesto Chamemos então para a conversa o personagem abafado das negações que ela implica...” Tristão e os outros seus amigos ou não (“tive - “a virtude que mais admiro é a naturalidade...” amigos e inimigos” – dizia Tristão de Athayde), - “o vício que mais detesto, o farisaísmo...” publicados ou desconhecidos, parentes ou sem - “guiei automóvel na cidade do México; mas hesitei dois parentesco, para se manifestarem sobre a sua meses antes de guiar no Rio de Janeiro...” presença na sociedade, na literatura e na política. - “conversei três horas com Thomas Merton; e dez horas com Maritain...” Quando ele morreu, Zuenir Ventura, então repórter -“atravessei os Andes a cavalo...”, esta afirmação colocada de revista, perguntou-me: “como era seu pai em dúvida por meu cunhado Afrânio... dentro de casa?” - “nadei da Urca ao Morro da Viúva...”, também questionada por Afrânio... Respondi, sem hesitar, “ora, Zuenir, igualzinho ao que -“à medida que nos aproximamos do fim da vida, temos que escolher entre a humildade e a estupidez...” vocês conheciam e conviviam com ele no dia a dia!” -“não há nada que mais enterneça um coração de velho do E confirmo, hoje, a minha afirmação de então: que ser chamado de você por uma criança (Petrópolis, 1981)...” Tristão era o mesmo na Avenida 15 de Novembro, - “a grande e grata surpresa da vida: os homens são em Petrópolis, após a Missa diária nos Franciscanos, melhores do que pensamos...” comprando flores para levar para minha mãe em casa, tanto quanto tomando seu whisky no fim As cartas que Tristão escreveu, diariamente, para da tarde, na Rua Mosela, 289, nossa casa naquela sua filha Lia, minha irmã monja, durante cerca de 20 cidade, hoje a sede do Centro Alceu Amoroso Lima anos, foram publicadas em dois livros (Cartas do Pai para a Liberdade. e Diário de um ano de trevas) pelo Instituto Moreira Salles, o primeiro livro sob a batuta do seu diretor, Ou na Rua Dona Mariana, 149, em Botafogo, ou Antônio Fernando Franceschi, autorizado online pelo passeando após o jantar na Cathedral Avenue em seu presidente, Doutor Walter Moreira Salles, que Washington, para fazer a digestão. disse “isso é história do Brasil, temos que publicar” e, no caso do segundo livro, sob a responsabilidade Um “homem do mundo”, se quiserem assim definir do seu diretor, Flávio Pinheiro, foram produtos de uma pessoa de refinada cultura, de maneiras de leitura de Lia (conhecida em casa como Tuca! E no gentleman, que para nós exercia, através da figura de Mosteiro como Madre Maria Teresa), da digitação minha mãe, a posição de “dono da casa” (“da porta do autor destas linhas, e da revisão de Frei Betto. para fora, mando eu; da porta para dentro é sua mãe que manda!”), sem se pretender amigo ou colega Foi uma autobiografia, segundo Tristão, “se você dos filhos, nem se distanciar de discutir livremente publicá-las algum dia, serão minha autobiografia”, conosco sobre nossas preocupações pessoais e/ou as resultado da leitura de Tuca (a única que, além de dificuldades da sua própria vida, dentro de um clima íntima da cabeça e das opiniões de Tristão, entendia de absoluta liberdade, sem exageros nem badalações a sua caligrafia hieroglífica... além da minha mãe) e intergeracionais. da minha tentativa insistente de participar, intelectual e

14 tecnologicamente, em dueto inesquecível com ela, da Restam, inéditas, cerca de 10 anos de cartas (Tristão reconstrução da figura admirada e amada do nosso pai. faleceu em agosto de 1983), manuscritas ainda, cuja decifração está sendo tentada por pesquisadores/ Estou convencido de que estamos deixando às paleógrafos, para tentar completar a autobiografia, pessoas que, de alguma forma, tiverem interesse em que algum dia ficará pronta, se Deus quiser. conhecer melhor o Tristão, uma leitura original e muito importante que, além de retratar sua personalidade, Chamemos à conversa os biógrafos de Tristão, mostra seus comentários sobre os eventos dos quais Medeiros Lima (Memórias Improvisadas), Francisco participou, direta ou indiretamente, em sua vida, Assis Barbosa (Memorando dos 90), Candido Mendes nesse período. (Da persona à pessoa), Marcelo Timóteo da Costa (Um itinerário no século) e outros que poderão ter As cartas, pessoais por natureza, retratam um viver e se referido a ele circunstancialmente, e procuremos transmitir diário, seja doméstico, seja político, seja de acolher para uma troca de ideias e de opiniões com comentários gerais sobre eventos e/ou pessoas ele mesmo (via Tuca!). ou instituições. Nada acrescentamos ao texto das cartas (salvo correções, a nosso ver, de alguns erros de O tema passou a ser a mudança de Tristão, no português e de repetições a título de ênfase!), se bem modo de ver o mundo e o Brasil, da infância na que tenhamos suprimido algumas poucas passagens burguesia da direita (único homem, três irmãs), não íntimas e/ou domésticas por julgá-las desnecessárias foi ao colégio primário, aprendia em casa com o e/ou desinteressantes para o público leitor. (extraordinário professor) Kopke, muitas incursões pela Europa (belle époque, festas, namoradas, Chegamos a 1968 e resolvemos parar, seja devido ao les argentines en fleur...) – enviesando para a momento crítico da revolução de 1964, a edição do “esquerda”... – ao contrário do normal dos jovens, Ato Institucional número 5, que consolidava a ditadura que começam contestadores e crescem evoluindo da militar, seja pelo tamanho grande, pouco prático, que esquerda para a direita ao longo da vida. o livro alcançaria, até o fim da última carta, de 31 de dezembro de 1968 (texto de 671 páginas, mais fotos). Tristão, como disse a Medeiros Lima, na juventude foi pela disciplina e na velhice pela liberdade, uma O segundo livro, Diário de um ano de trevas (a última trajetória que, não por acaso, foi da naturalidade na carta é de 28 de Fevereiro de 1970, 264 páginas), infância para a autenticidade e, na conversão, para é composto essencialmente por comentários em a liberdade, esta última cada vez mais sua maior torno da atividade política, pois se trata do tempo da convicção, no fim da vida. ditadura com todas as restrições criadas pelo De Affonso Arinos surpreendeu-se ao ouvir: não poder militar. presta para nada, a propósito de um conto passado na França, em francês, que escrevera e o mostrou Aliás, diga-se a bem da verdade, Tristão muito poucas a Arinos; e dele também ouviu um comentário ao vezes foi impedido pela censura de publicar seus informar-lhe que nunca lera nada de Eça de Queirós: artigos nos jornais: livre que conseguiu ficar de que homem feliz! segundas intenções visando ganhos financeiros ou Machado de Assis foi seu vizinho no Cosme Velho, políticos, dizia o que pensava, e, acrescento eu, ideias bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro; passava a e opiniões, no mínimo, são difíceis de aprisionar... mão pela cabeça do menino Alceu, que o espiava Além disso, o segundo livro, da metade para frente, pelas grades da Casa Azul, onde nascera e morava, reflete bastante a melancolia de Tristão, desiludido ao passar pela calçada com a esposa Carolina pelo com a impossibilidade de redemocratização do Brasil, braço; e Alceu foi ao seu enterro, acompanhado pelo e com crescente desilusão, causada pelas mortes dos padrinho Antônio Martins Marinhas. dois “Joões”, como ele dizia (John Kennedy e o Papa João XXIII), vistos por ele com tanta esperança no Manoel Bandeira, grande amigo, escreveu o poema futuro da Igreja Católica e na paz mundial. A velha chácara, celebrando a Casa Azul, “já não existe mais a casa, mas o menino ainda existe!” O segundo livro foi encerrado devido a problemas Carlos Drummond de Andrade sobre Tristão, ao de saúde de Tuca, cuja deficiência visual agravou-se, completar 70 anos: “[...] Tristão e Alceu, a mesma fiel resultado da diabete, e ela passou a não poder mais cristalinidade, no sábio à sombra de Deus!” ler os hieróglifos de Tristão. É do mesmo Carlos Drummond de Andrade,

15 convidado por mim e pelo Zuenir Ventura para que se candidatasse à cadeira de Alceu na Academia Brasileira de Letras, a resposta, curvando a cabeça: não sou digno.

Deixou a crítica “por quê, Tristão?”, pergunta Medeiros Lima, Tristão em resposta “não é da minha natureza”, “[...] jamais consegue o crítico penetrar a essência da criação, ora por excesso de generalização, ora por excesso de análise”.

Preferiu sempre o “e...e” ao “ou...ou”, influenciado por Chesterton.

Medeiros Lima: Augusto Frederico Schmidt me declarou ter sido o senhor um dos homens que maior influência exerceu sobre ele. No entanto, não conheço duas pessoas tão diferentes. Tristão: quem pode desvendar o mistério das influências que recebemos e que exercemos? Só mesmo Deus. Por mais que procuremos analisá-las, sempre nos escapará o essencial: a influência é, como a cultura, por natureza, o que escapa à nossa análise e à nossa memória.

“Sou um homem dominado por uma inquietação enorme em face da procura da verdade. Sinto-me um viajante, um homo viator! Thomas Merton também me pareceu ser um homo viator, ao morrer em pleno Oriente numa reunião de monges orientais de diversas crenças, em companhia dos quais discutia o tema ‘em procura da verdade’”.

“A influência de Merton sobre mim, embora grande, não foi tão grande quanto a de Maritain; uma questão de oportunidade: quando Merton apareceu na minha trajetória, eu já estava no caminho [...]”. “A grave crise do mundo moderno tem sido motivada justamente pelo espírito de isolacionismo e de sectarismo levados ao extremo. Segundo João XXIII, se quisermos ultrapassar a crise, o caminho está na busca da compreensão recíproca, da aproximação dos contrários e dos diferentes”. Francisco Assis Barbosa: e por que “Tristão”? “Houve muitas confusões com os meus pseudônimos”. Tristão de Athayde: “existiu, sim. Coisa que eu ignorava totalmente quando adotei esse nome. Só mais tarde vim a saber que existiu um capitão das conquistas da Índia, chamado Tristão de Athayde, e que era o pior dos chantagistas!”, “mas já era tarde para corrigir.”. “O Prêmio Nobel? Depois que Guimarães Rosa morreu?!...” “Mas com certeza, como poeta, é Carlos Drummond de Andrade, que para mim é o suprassumo da criatividade literária. Para mim, é ele

16 quem merecia o Prêmio Nobel!” o amor sem limites pode levar às paixões loucas; “Já dei um terço de minha biblioteca para a PUC de enfim, o equilíbrio sempre tem que estar presente Petrópolis; não sei onde botar tanto livro...” nas nossas atitudes; o famoso “e...e” em lugar do “ou...ou”, expressão tão do seu agrado. Quem é Deus para Alceu Amoroso Lima? Se nós, sete irmãos, trilhamos os caminhos mais Tristão: “cheguei a Ele por tê-lo procurado em vão diversos na vida, se tivemos erros e acertos como entre as coisas e os valores relativos e por sentir, todo mundo tem, e ele próprio também os teve, se de modo crescente, uma invencível necessidade de fizemos escolhas as mais diversas, boas ou ruins, não encontrar um sentido para a vida. Cheguei a Deus foi por falta de ter em casa um ser humano exemplar, por meio de sua negação. Daí até hoje meu respeito que, sobretudo, sempre procurou nos mostrar a vida pelos ateus...Só se nega aquilo que existe...”. como ela deve ser vivida neste mundo, a caminho do E sobre Gustavo Corção: “, que lugar eterno para onde nos destinamos. nos apresentara, me contou que, ao sairmos do nosso Poucos dias antes de morrer, num intervalo do primeiro encontro a três, Corção lhe dissera: ‘nunca grande sofrimento a que o câncer o submetia, deu nos entenderemos!’ Nos desentendemos, depois nos mais um exemplo que me faz recordar o ser humano entendemos. Sempre o admirei e respeitei até hoje. que era: como discutíssemos, em volta de sua cama Como me disse um Reitor da PUC: ‘mesmo quando no hospital, sobre que horas seriam, ele saiu do seu nos ataca, somos forçados a admirá-lo!’” torpor de doente terminal e disse: “por que vocês Marcelo Timóteo da Costa traz a ideia do Alceu da não ligam para 130?”, reação bem própria do homem “tripla devoção” diária: isto é, ir à Missa, ler o Breviário sereno, em paz com sua consciência, que logo passaria e escrever à filha beneditina. para a outra vida, em trânsito pelas suas últimas horas Queremos comparar as três práticas à trindade: a fé nesse mundo. (a Missa), a esperança (“...os homens são melhores do que pensamos...”) e a caridade (“nada há no mundo Com a naturalidade dos justos do Senhor! de mais terrível do que a morte do amor!”). As monjas beneditinas da Abadia de Santa Maria, Hoje sou muitas vezes surpreendido por pessoas em São Paulo, reuniram várias palavras de Tristão as mais diversas, das mais diferentes origens, idades, de Athayde, e fizeram publicar um pequeno livro classes econômicas etc., que comentam, ao ler meu que teve o título de Palavras de Vida Eterna, o qual nome, que grande homem era o seu pai, e isso me prefaciei, como segue. dá a satisfação de mais uma oportunidade de admirar o homem que, sem ser poderoso financeiramente, “Esse foi o ser humano com que nós, seus sete filhos, politicamente ou de qualquer outra forma grande convivemos toda a nossa vida, sério quando precisava ser, por critérios materialistas, fez bem ao bem comum respeitando e amando a nossa mãe, e ela responsável por das pessoas em geral, trazendo para elas esperança, grande parte da tarefa da educação dos filhos (“da porta solidariedade, e nelas recebendo gratidão, pois sempre da casa para dentro manda sua mãe...”), nunca entrando em foi grande aos olhos de Deus! conversas a “sós” porque elas eram todas transparentes na Sei que a figura do meu pai é enorme, sob muitos família, sempre nos dando todas as chances de acertar e aspectos foi e é ainda muito importante para a Igreja de errar, de ir ou voltar, de crer ou de não crer, a liberdade Católica e para o país, mas para mim, pessoalmente, acima de tudo (“plantei a árvore da liberdade na porta seu exemplo é o que tentei exprimir através dessas da minha casa...”), a responsabilidade e a seriedade como palavras que mais uma vez, espero que possam trazer norma de vida. enriquecimento aos leitores destas “palavras de vida eterna” que estamos entregando ao público. E essa liberdade sempre acompanhada pelo alerta de que “o ser humano não é confiável”: é Alceu Amoroso Lima Filho capaz das atitudes mais nobres e bonitas, como também das menos aceitáveis, justamente porque “Deus nos fez livres... inclusive para negá-lo!”

“O vício é o exagero da virtude”, outra de suas palavras marcantes: a fé levada ao exagero gera o fanatismo; o amor à verdade sem levar em conta a “verdade dos outros” pode levar ao farisaísmo;

17 A Correspondência de Tristão de Athayde e a Luta pelos Direitos Humanos

Leandro Garcia Rodrigues 1

Falar em Direitos Humanos é uma tarefa sempre atual, pertinente e historicamente comprometida e articulada. Numa época de relativismos e também extremismos ideológicos, a luta pelos Direitos Humanos se mostra necessária e emblemática, já que a dignidade humana vem sofrendo toda a sorte de atentados, aumentando ou diminuindo, de acordo com cada realidade histórica e geográfica.

O arquivo pessoal do escritor Alceu Amoroso Lima – o Tristão de Athayde – é um excelente repositório de inúmeros documentos que comprovam o engajamento desse intelectual plural na luta pelos Direitos Humanos. Estamos falando de cartas, relatórios, ensaios, anotações pessoais e manuscritos em geral, onde vemos que Alceu Amoroso Lima – que defendia a liberdade como grande dom da natureza humana – tinha uma real e salutar preocupação com essa temática.

Como corte temporal e temático, ressalto a correspondência que manteve com inúmeros presos políticos e religiosos detidos ao longo do regime civil- militar brasileiro (1964-1985). Deste conjunto, quero ressaltar o complexo diálogo de Tristão de Athayde com o frade dominicano Frei Betto, preso com vários outros religiosos dominicanos na Operação Bandeirantes de São Paulo2 (OBAN), que funcionava no Presídio Tiradentes, organismo de repressão que integrava o DOPS-SP3.

1 Doutor e Pós-doutor em Estudos Literários pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Católica de Petrópolis e especialista na correspondência (epistolografia) de Alceu Amoroso Lima. 2 A Operação Bandeirantes (OBAN) foi um centro organizado de informações, investigações, torturas e assassinatos montado pelo Exército brasileiro, na capital pau- lista, em 1969. Participaram da inauguração da OBAN o governador da época, Roberto Costa de Abreu Sodré, o secretário de Segurança Pública, Hely Lopes Meireles, o general José Canavarro Pereira, comandante do II Exército e os comandantes do VI Distrito Naval (Marinha) e da 3º. Comando Aéreo (Aeronáutica), o que reforça a tese de alguns historiadores da atualidade acerca da existência de um regime civil-militar, dada a colaboração entre ambas as instâncias no sentido de combater as forças contrárias ao mesmo Regime. As ordens para a criação da OBAN foram dadas, no final de 1968, por Luís Antônio da Gama e Silva, então ministro da justiça. O objetivo era reunir elementos das Forças Armadas, da Polícia Estadual (civil e militar) e da Polícia Federal num trabalho integrado de perseguição e desarticulação dos grupos e ideologias hostis ao governo militar. Sua sede foi instalada no número 1030 da rua Tomás Carvalhal, nos fundos do 36° distrito policial, na capital paulista, prédio este cedido e reequipado pelo então prefeito da cidade, Paulo Maluf, em estreita colaboração com o Exército. A OBAN era uma formação paramilitar de ação direta e violenta à margem da lei, o que lhe dava agilidade e brutal eficácia no seu mister, como se percebe no processo de interrogatório e tortura sofrido por Frei Tito de Alencar Lima, além da atual presidenta da República, Dilma Rousseff. O organismo recebia apoio financeiro estatal e também privado, como foi denunciado pelo grupo Tortura Nunca Mais, que denunciou o volumoso envio de dinheiro doado por empresas como o Grupo Ultra, Ford, GM, Grupo Camargo Corrêa, Grupo Objetivo, Grupo Folha, Amador Aguiar (Bradesco), dentre outras. A partir de 1970, a OBAN, embora ainda conhecida como tal, já está mais legalizada, encontra-se subordinada ao Destacamento de Operações Internas/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Funciona ainda como OBAN, mas ao colocá-la sob a

18 É um período conturbado e complexo da história Só para ilustrar a situação em que vivemos: há pouco brasileira, que ainda suscita dúvidas e pede por mais mais de uma semana frei Tito de Alencar Lima foi levado pesquisas e investigações, especialmente por envolver para novos interrogatórios na “Operação Bandeirantes” muitas pessoas e organizações oficiais, bem como (Polícia do Exército). Ontem soubemos que ele foi políticas de Estado. novamente torturado no “pau de arara” com choques elétricos e que havia “tentado o suicídio” cortando os Nesse período, prisões, torturas, desaparecimentos pulsos. Levado ao Hospital Militar recebeu transfusões e mortes tornaram-se a regra, não a exceção. Tais de sangue e já está fora de perigo, levaram-no de volta à práticas faziam parte do nosso cotidiano, atingindo prisão do Exército. Como o Núncio Apostólico tivesse em cheio todos aqueles que se posicionassem vindo visitar-nos ontem (temos recebido todo o apoio ideologicamente contrários a estes mesmos regimes, dele e do episcopado brasileiro), pedimos que fosse ver inclusive religiosos e leigos comprometidos com as como estava frei Tito. Não conseguiu, tendo sido barrado causas da libertação, no mais amplo sentido desta no Exército. Não deixaram que frei Tito receba qualquer palavra. Para ilustrar este clima de terror, cito este visita enquanto não desaparecerem as marcas da tortura. É o costume. Nós que conhecemos bem a ele e à polícia fragmento da carta que Frei Betto enviou a Alceu do Exército, sabemos que frei Tito jamais seria capaz de Amoroso Lima, em 22 de fevereiro de 1970, o texto um gesto desesperado. É jovem, tem grande força física e mais difícil e contundente deste epistolário: moral. Certamente tentaram “suicidá-lo”, como já ocorreu a outros e então bateram nele até arrancar sangue. Este Além dos dominicanos, estão presos aqui um jesuíta e dois é um caso entre centenas. É o retrato do regime em que padres seculares. Todos nós fomos física e psicologicamente vivemos. Nem senhores de idade escapam à tortura. torturados e obrigados a assinar depoimentos forjados pela polícia. Sofremos o diabo: “pau de arara”, choques Nota-se o clima de terror, inclusive político, a ponto elétricos, socos, pontapés, além de vexames morais de impedirem a visita do próprio Núncio Apostólico, como o de ver um delegado trajando paramentos, de isto é, o embaixador do então Papa Paulo VI no metralhadora em punho, ridicularizando a Igreja. A polícia aproveitou para levantar um verdadeiro processo da Igreja Brasil e responsável pela diplomacia da Santa Sé em através de nós. Queria saber quem é quem na Igreja terras brasileiras. A este respeito, Frei Betto, enquanto do Brasil, donde vem o dinheiro da CNBB, quem são as na prisão, utilizou diversas das suas missivas para amantes de D. Hélder etc. problematizar o papel e a devida atuação da Igreja no seio da sociedade brasileira. Às vezes cético, às vezes Vivia-se um momento de terror e barbárie nas empolgado, o dominicano cambiou entre a euforia e cadeias brasileiras, especialmente aquelas reservadas a decepção, especialmente em relação à determinada a interrogatórios e confinamentos dos chamados parcela do episcopado brasileiro ainda renitente em presos políticos, ou terroristas, como os aparelhos da denunciar as agruras cometidas no âmbito do regime repressão costumavam chamá-los, ou ainda “terroristas militar. Numa carta aos seus pais, em 3 de março de da Igreja”, alcunha reservada especificamente àqueles 1970, ele assim declarou: que pertenciam à hierarquia eclesiástica ou eram leigos comprometidos e envolvidos na causa do Evangelho. Nesta mesma carta a Alceu, num outro momento, Frei Betto inicia a narrativa da tortura de Frei Tito de Alencar Lima, também dominicano, preso com os demais religiosos de São Domingos e de outras ordens e/ou dioceses: jurisdição do DOI-CODI, pretendia-se diminuir a sua autonomia repressiva, o que na prática não aconteceu. Com o lento processo de redemocratização e a aber- tura política, este organismo foi perdendo a sua força e a própria razão de existir, fechando os seus portões no início dos anos 80. Parte da sua tenebrosa história foi trazida à lume pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo, e por outras entidades de luta pelos direitos humanos. Convém lembrar que toda esta revisão histórica foi registrada no livro Brasil Nunca Mais, escrito por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo Reverendo Jaime Wright e publicado pela Editora Vozes, em 1985. 3 Em 30 de dezembro de 1924, foi criado o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ligado diretamente ao Ministério da Justiça, cujo principal objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao governo federal. Este órgão foi utilizado principalmente durante o Estado Novo e durante o Regime de 1964. Em alguns estados, o DOPS recebeu outras denominações como DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) e DELOPS (Delegacia de Ordem Política e Social). De 1940 a 1969, o DEOPS paulista abrigou as Delegacias de Ordem Política, de Ordem Social, de Estrangeiros, de Ordem Econômica, de Armas e Explosivos e também o Serviço Secreto. A Delegacia de Ordem Social era responsável por investigar todos os tipos de movimentos sociais, como greves, campanhas contra a carestia, associações de amigos de bairros, bem como fiscalizar a ação dos sindicatos e dos trabalhadores organizados, produzindo inquéritos, relatórios e prontuários de presos e investigar os movimentos nas cidades do interior do estado de São Paulo. As questões políticas ficavam a cargo de uma delegacia especializada. Além de acompanhar comícios e eleições, esse setor ainda fornecia informações sobre a situação política nas cidades do interior, dos partidos políticos, personalidades e cargos. A partir da década de 1960, com a demanda crescente do aparelho repressivo militar, essa delegacia ampliou suas atribuições, passando a investigar as ações dos movimentos estudantis, das organizações clandestinas e das pastorais e movimentos sociais da Igreja Católica. Durante o regime militar, em São Paulo, o seu delegado mais conhecido foi Sérgio Paranhos Fleury, por conta do sadismo e da crueldade com os quais lidava nos seus interrogatórios, tendo torturado e assassinado inúmeros presos políticos. O órgão foi extinto em 4 de março de 1983, já no processo de reabertura política.

19 Dentro de nossas limitações, tudo fizemos para que do Convento de Sainte Marie de La Tourette. Em 25 a Igreja emitisse uma nota de protesto. É preciso que de março de 1983, o corpo de Frei Tito de Alencar ela tome posição a respeito da gravidade da situação Lima chegou ao Brasil, passando por São Paulo, onde brasileira, antes que seja tarde. Os bispos, porém, estão foi realizada uma celebração litúrgica em sua memória acostumados à posição defensiva. Preferem a omissão e em memória de Alexandre Vannucchi. Cercado por ao risco. Talvez seja mesmo necessário que alguém se bispos e numeroso grupo de sacerdotes, Dom Paulo sacrifique para que eles reajam. Não posso compreender, Evaristo Arns repudiou a tragédia da tortura em missa à luz do Evangelho, como é possível suportar calado de corpo presente acompanhada por mais de quatro declarações como essa que o governo acaba de fazer: que mil pessoas. A cerimônia foi celebrada em trajes no Brasil nunca houve democracia! [...] A Bíblia mostra- vermelhos, usados em celebrações dos mártires. Da nos claramente que Deus fala através dos acontecimentos. capital paulista, seu corpo foi levado à Fortaleza, onde João XXIII lembrava que devemos observar os “sinais dos foi definitivamente sepultado. tempos” para compreender a ação de Deus na história. A respeito da tortura de Frei Tito de Alencar Lima, Creio que Deus fala à Igreja no Brasil e na América Latina assim narrou Frei Betto, em carta a Alceu Amoroso através do que se passa conosco. Daí minha certeza de Lima, em 22 de fevereiro de 1970: que nada temos a perder. O caso do Tito é uma prova cabal disso. (Frei Betto, 1978, p.36) Só para ilustrar a situação em que vivemos: há pouco mais de uma semana frei Tito de Alencar Lima foi levado para Frei Tito de Alencar Lima (1945-1974) nasceu novos interrogatórios na “Operação Bandeirantes” (Polícia em Fortaleza e morreu em Éveux, França. Ainda do Exército). Ontem soubemos que ele foi novamente adolescente, engajou-se nos movimentos de base da torturado no “pau de arara” com choques elétricos e que sua cidade natal, especialmente aqueles de caráter havia “tentado o suicídio” cortando os pulsos . Levado ao estudantil, com ênfase na JEC (Juventude Estudantil Hospital Militar recebeu transfusões de sangue e já está fora Católica). Ingressou no noviciado dominicano, em de perigo, levaram-no de volta à prisão do Exército. Como Belo Horizonte, em 1966, fez a profissão dos votos o Núncio Apostólico tivesse vindo visitar-nos ontem (temos no ano seguinte e mudou-se para São Paulo para recebido todo o apoio dele e do episcopado brasileiro), estudar Filosofia na Universidade de São Paulo (USP). pedimos que fosse ver como estava frei Tito. Não conseguiu, Em outubro de 1968, Frei Tito foi preso por participar tendo sido barrado no Exército. Não deixaram que frei Tito de um congresso clandestino da União Nacional dos recebesse qualquer visita enquanto não desaparecerem as Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), fato esse que marcas da tortura. É o costume. Nós que conhecemos dará início ao seu calvário de sucessivas torturas bem a ele e à Polícia do Exército, sabemos que frei Tito nas dependências da OBAN, sob a ação sádica jamais seria capaz de um gesto desesperado. É jovem, tem do delegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe grande força física e moral. Certamente tentaram “suicidá- do Esquadrão da Morte. Frei Tito foi brutalmente lo”, como já ocorreu a outros e então bateram nele até torturado por vários dias ininterruptos, o que o levou arrancar sangue. Este é um caso entre centenas. É o retrato a tentar o suicídio dentro da própria OBAN. Ainda na do regime em que vivemos. Nem senhores de idade prisão, escreveu sobre a sua tortura e o documento escapam à tortura. Mas o sr. já deve estar a par disto, não correu pelo mundo, transformando-se em símbolo de vou prolongar-me. (Rodrigues, 2015, pp. 34-35) luta pelos direitos humanos. Em 1971 foi deportado para o Chile e, sob a ameaça de novamente ser preso, fugiu para a Itália. Em Roma, não encontrou qualquer tipo de apoio oficial por parte da Igreja, por ser considerado um “frade terrorista”. De Roma, Tito foi a Paris, onde recebeu apoio dos dominicanos da província local, que o enviaram ao convento de Sainte Marie de La Tourette, em Évoux, Lyon. Traumatizado pela tortura física, moral e psicológica, Frei Tito submeteu-se a um tratamento psiquiátrico que surtiu pouco efeito benéfico, os traumas e fantasmas do passado na OBAN marcaram-lhe profundamente a alma e o próprio corpo. No dia 10 de agosto de 1974, um morador dos arredores de Lyon encontrou o corpo de Frei Tito suspenso por uma corda, entre o céu e a terra. Foi enterrado no cemitério dominicano

20 Daí a importância histórica desta correspondência: ela Ou seja, aparentemente existe uma grande é atual, trans-histórica, com um destinatário múltiplo contradição nesse relato e em tudo que envolvia esses – todos aqueles que se escandalizam com este tipo encarcerados: a prisão que também gerava relações de barbárie, de selvageria oficial em nome do Estado, de comunhão e fraternidade, de amor ao próximo e em nome da segurança nacional. Por isso o caráter de fé renovada em Deus e nas suas promessas, na sua até mesmo profético dessas cartas: elas denunciam palavra que nunca falha àqueles que nela creem. São a opressão e a violação dos direitos humanos, mas os chamados “lírios da fé”, na expressão de muitos também anunciam a esperança na libertação, na mártires cristãos ao longo da História, cujos martírios prática da justiça, numa espécie de espera messiânica se renovam nas brutais experiências de tortura e por um novo tempo e uma nova realidade, como se violência aos quais muitos são impelidos e forçados, percebe nessa mesma dramática carta de Frei Betto confirmando a promessa bíblica: Por Ele sofremos a a Alceu: ponto de ser acorrentados como malfeitores. Mas a Palavra de Deus não está presa. (2 Tim 2,9) Apesar de tudo, estamos felizes pela graça de sermos a presença da Igreja nos cárceres. Nosso sofrimento não Pode-se afirmar que essa correspondência entre Frei é inútil. Identificamo-nos com os milhares de prisioneiros Betto e Alceu Amoroso Lima propiciou inúmeros anônimos, imagens vivas de Jesus Cristo. Rezamos os frutos de denúncia com a escrita de vários artigos na salmos diariamente, em conjunto, louvamos ao Senhor imprensa – especialmente por parte de Alceu – bem pela graça de trilhar o mesmo caminho de seu Filho, que como a tradução dessas cartas às mais diferentes foi perseguido, preso, torturado e condenado pela nossa línguas e posterior publicação nos respectivos países. redenção. Aqui aprendemos a “ter humildade diante da E quando lembro de Alceu na imprensa da época, é vida”, como nos diz Diógenes de Arruda Câmara , preso realmente de se enaltecer a sua coragem, determinação aqui também. É a oportunidade que temos de nos preparar e compromisso com a verdade. Percebe-se que para a Igreja dos pobres e oprimidos. Se a tortura nos Alceu fez dos jornais uma espécie de cátedra, sua humilhou, ela também nos dignificou, segundo a ótica da fé voz retumbava aos quatro cantos no sentido de que nos ensina que o caminho da glória é ser o último dos trazer a lume o que se passava nos subterrâneos do homens. Só o mistério do Calvário nos faz compreender regime, não poupando nenhum nome, não criando o que significa, diante de Deus, ser dependurado nu como metáforas para encobrir os devidos responsáveis. porco no matadouro. Desculpe dr. Alceu este desabafo. De sua imensa produção intelectual na imprensa da Eu lhe escrevo apenas para agradecer aquele artigo. Mas época, especialmente no Jornal do Brasil e na Folha de quero lhe prometer que a Igreja descrita pela “Lumen São Paulo, destaco a crônica “Terrorismo Mascarado”, Gentium” , aspirada por cristãos como o sr., está em publicada no Jornal do Brasil, em 25 de maio de 1966: gestação entre essas grades. Não é obra ou mérito nosso. É uma realidade viva que nos impõe severas exigências. A partir de 1º. de abril e, particularmente, do fatídico 9 de Reze pelos que neste país lutam pela justiça, pelos presos abril de 1964, o arbítrio governamental, militar e policial políticos e suas famílias, pelos que morreram nas torturas, institucionalizado, introduziu o terrorismo à brasileira. E pelo frei Tito. Estaremos unidos ao sr. na mesma oração. que representa este tipo de terrorismo? É a guerra de Ela é a garantia dessa liberdade interior que ninguém pode nervos. É a ameaça constante. É a perda de garantias arrancar de nós. legais. É a espada de Dâmocles. É a demissão injusta de

4 Embora terrível, faz-se mister a lembrança do próprio frei Tito, ao relatar as sevícias sofridas nos calabouços da ditadura: “Fui levado do Presídio Tiradentes para a Op- eração Bandeirantes – OBAN (Polícia do Exército) – no dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: ‘Você agora vai conhecer a sucursal do inferno’. Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres. Ao chegar à OBAN, fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu ‘confessasse’. Pouco depois levaram-me para o pau de arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me ‘telefones’ (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do pau de arara. O interrogatório se reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 X 2,5 mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.” (Lima apud Betto, 1991, pp.228-229). 5 Diógenes de Arruda Câmara (1914-1979) foi uma importante liderança do Partido Comunista Brasileiro, conhecido por sua força ideológica a favor desta causa no Brasil e na América Latina. Em 1969, foi barbaramente seviciado nos porões do DOPS e do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). Durante as sessões de tor- tura teve duas paradas cardíacas, perdeu uma das vistas e todos os seus dedos das mãos foram quebrados. Ficou tuberculoso e perdeu mais da metade de sua capacidade pulmonar. Conseguiu liberdade provisória, em 1973, por conta do seu péssimo estado de saúde, quando deixou o Brasil passando por diversos países: Argentina, Cuba, Chile, Portugal, Rússia e outros. Retornou ao Brasil, no início de 1979, por conta da Lei de Anistia, vindo a falecer no final deste mesmo ano. 6 A Constituição Dogmática Lumen Gentium (Luz dos Povos) é um dos mais importantes documentos do Concílio Vaticano II. O seu tema é a natureza e a constituição da Igreja, não só enquanto instituição hierarquizada, mas também enquanto Corpo místico de Cristo, isto é, a noção dinâmica de “Igreja Povo de Deus” que caminha numa constante via de conversão e profetismo. Foi promulgada pelo Papa Paulo VI no dia 21 de novembro de 1964.

21 um cargo, como a recentemente de Paulo Carneiro. São com quem Alceu manteve correspondência por os IPMs. É a desfiguração da Universidade de Brasília. É a muitos anos, sendo que no início da mesma, essa prisão de estudantes sob qualquer pretexto. É a supressão serviu como desabafo e documento de um dos de colações de grau. É a expulsão, no ITA, de alunos como piores momentos da história brasileira – o regime “subversivos”, por escolherem um paraninfo indesejável. civil-militar brasileiro instaurado em 1964. São os julgamentos draconianos. É o não cumprimento dos habeas corpus. É a hipertrofia da justiça militar. É a São cartas importantes, dramáticas, algumas terríveis falta de garantias para a proclamada liberdade de imprensa. de serem lidas. Todavia, esses documentos também É o julgamento iníquo de professores universitários. São serviram como plataforma de profetismo e coragem os processos engavetados de fixação de residência, mas por parte dos seus correspondentes, atravessando capazes, a qualquer momento, de serem desengavetados. os limites físicos da cela, da cadeia, do presídio – Em suma, é um terrorismo encabulado, que não ousa buscando a liberdade, sentimento tão perseguido e confessar-se, mas que também não tem coragem de sonhado nessas missivas. confessar o seu próprio malogro. Esse malogro se traduz na tremenda e crescente impopularidade da Revolução. Revela-se no medo de ir ao povo, no terror das eleições livres, na restrição do voto, na impostura democrática em que vivemos, na tentativa de criar o peleguismo estudantil, pela organização de diretórios acadêmicos fantasmas, por imposição legal e na negação da liberdade sindical aos estudantes. [...] Enquanto não houver anistia, eleições livres, liberdade sindical autêntica, supressão dos IPMs, revogação do enquadramento dos estudantes, abolição da justiça de exceção e da hipertrofia do Poder Institucional dominante, haverá terrorismo cultural. Disfarçado ou mascarado se quiserem. Mas efetivo. (Lima, 1968, p.400)

É o testemunho a serviço legítimo da liberdade, aqui compreendida nas mais diversas possibilidades e manifestações – de imprensa, de organização, de ideologia política, de expressão, de crença, enfim, liberdade de ser, sentimento esse que tem sua fonte na fé e na expressão que esta pode ter nas mais diferentes situações da vida cotidiana, especialmente a busca e a luta pela justiça – um dos grandes dons de Deus que o cristão traz consigo na vivência hodierna da sua história.

Considerações finais

Com a criação do Ciclo Tristão de Athayde, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP deu um importante passo – firme e decisivo – no sentido de preservar a memória e atualização do pensamento de Alceu Amoroso Lima e todo o seu legado. Pode-se dizer que Alceu foi um intelectual plural, polífono e polígrafo. Não apenas pela sua imensa obra (mais de cem livros), mas principalmente pelo alcance do seu pensamento nas diferentes áreas do pensamento humano e cultural, pensando e analisando as mais diversas dinâmicas do pensamento brasileiro. De forma especial, ressaltei nesse texto a sua relação epistolar com o religioso católico Frei Betto,

22 Referências bibliográficas _____. Drummond & Alceu – Correspondência de Carlos Drummond de Andrade & Alceu Amoroso AZZI, Riolando. História da Igreja no Brasil – Terceira Lima. Belo Horizonte: UFMG, 2014. Época 1930-1964. Petrópolis: Vozes, 2008. _____. Uma Leitura do Modernismo – Cartas de CALLIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografías e Mário de Andrade a . Dissertação diários íntimos. [texto eletrônico] Disponível em www. de Mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade fgv.br, 1997. Católica do Rio de Janeiro, 2003. FREI BETTO. Batismo de Sangue. Rio de Janeiro: ROLIM, Francisco Cartaxo. “A greve do ABC e a Igreja”. Rocco, 2006. In: MARASCHIN, Jaci Correia (org.). A vida em meio à _____. Cartas da Prisão – 1969-1973. Rio de Janeiro: morte num país do terceiro mundo. Agir, 2008. São Paulo: Paulinas, 1983. _____. CEBs – Rumo à Nova Sociedade. São Paulo: Paulinas, 1983. _____. Das Catacumbas – cartas da prisão 1969-1971. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. _____. Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. _____. Frei Tito Memória e Esperança. São Paulo: Ordem dos Pregadores, 1999. HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. L’épistolaire. Paris: Hachette, 1995. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. LIMA, Alceu Amoroso. A Experiência Reacionária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968. _____. Cartas do Pai – de Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales, 2003. _____. Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. _____. Memórias Improvisadas – Diálogos com Medeiros Lima. Petrópolis: Vozes, 1973. ______. Tudo é Mistério. Petrópolis: Vozes, 1983. LIMA, Alceu Amoroso & FIGUEIREDO, Jackson de. Correspondência – Harmonia de Contrastes, Tomos I e II. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1991. LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Presença da Igreja no Brasil – História e Problemas 1500-1968. São Paulo: Editora Giro, 1977. MARTINA, Giacomo. História da Igreja – de Lutero a Nossos Dias. São Paulo: Loyola, 1997. MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa História – 500 anos de Presença da Igreja Católica no Brasil, Tomo 3 – Período Republicano e Atualidade. São Paulo: Paulinas, 2003. RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima – Cultura, Religião e Vida Literária. São Paulo: EDUSP, 2012. _____. Cartas de Esperança em Tempos de Ditadura – Frei Betto e Leonardo Boff Escrevem a Alceu Amoroso Lima. Petrópolis: Vozes, 2015.

23 Notas sobre de religião, a maçonaria, o comunismo e a separação Alceu Amoroso Lima e Jacques Maritain: entre a Igreja e o Estado. Ciente das mudanças do liberdade, emancipação e democracia século XX, o Vaticano apoiou o projeto da Igreja Católica no Brasil, então liderada pelo cardeal Dom Candido Rodrigues 1 Leme, cujo objetivo era se reaproximar do Estado. Nesse projeto, os intelectuais foram considerados Neste texto, abordarei alguns aspectos da vetores indispensáveis. Portanto, foi nesse contexto aproximação entre o líder católico Alceu Amoroso que, primeiramente, Jackson de Figueiredo e, em Lima e o filósofo francês Jacques Maritain nas décadas seguida, Amoroso Lima, ocuparam lugares centrais de 1930-1940. A presença da filosofia política na formação de um bloco de intelectuais que de Jacques Maritain na obra de Amoroso Lima atuaram em defesa dos interesses católicos. Cabe nessas décadas é ampla. A meu ver, alguns escritos destacar que o pensamento de Jackson de Figueiredo do filósofo francês tiveram impacto mais decisivo pairará por um longo período sobre Amoroso sobre o crítico brasileiro, especialmente aqueles Lima e entrará em conflito com a presença dos relativos ao comunismo, à emancipação política, à escritos e das reflexões de Jacques Maritain. igualdade de direitos e à democracia. Para além do contato muito próximo entre ambos, registrado em Maritain representou uma nova voz do neotomismo oportunidades diversas, seja pessoalmente, seja por dentro da Igreja Católica no século XX, mais meio das missivas constantes, ou mesmo em razão precisamente a partir da década de 1930, procurando das traduções de livros, resta evidente que algumas romper com a crítica reducionista ao mundo moderno. obras desempenharam um papel de maior relevância: Ele condenou, até 1926, o mundo moderno e esteve Humanisme intégral (1936), Les droits de l’homme et la no círculo de apoiadores de Charles Maurras e loi naturelle (1942), Christianisme et democracie (1943) do movimento Action Française. Conforme bem o e Principes d’une politique humainiste (1944). Merece demonstra o historiador Michel Winock, Charles destaque o fato de que muitas das reflexões presentes Maurras era uma espécie de príncipe do nacionalismo, nessas obras servirão de base tanto a Amoroso Lima da autoridade, da antidemocracia, da xenofobia e quanto a intelectuais latino-americanos para a criação do sentimento de decadência. Por essas posições e de partidos políticos, inspirados na democracia cristã, pelo forte laço de inserção que essas ideias tinham como foi o caso do Partido Democrata Cristão na Europa, sobretudo na França, Maurras e a Action (PDC), fundado em 1947. Française exerceram forte influência sobre grande Jacques Maritain: o percurso rumo à emancipação parte da juventude em todo o mundo, principalmente política e à igualdade de direitos no pós-Primeira Guerra. É o que aponta Michel Winock ao referir-se, por exemplo, ao impacto da Action Française sobre Jacques Maritain: Convém aqui lembrar que Sérgio Miceli demonstra que a Igreja Católica procurou intensificar sua influência A Ação Francesa oferecia aos jovens em busca de ordem sobre a sociedade por meio de uma política estratégica intelectual e moral uma perspectiva de ação de que não de “criação de uma rede de organizações paralelas à há outro exemplo, na França, a não ser sua antípoda, a hierarquia eclesiástica e geridas por intelectuais leigos” organização comunista. Além disso, ela exercia, nas alas (MICELI, 2001, p. 127). Para Miceli (2001, p. 127), “a católicas, o que Jacques Maritain chama de um “principado amplitude desse projeto resultava não apenas das de opinião”, que se estendeu às alas dos eclesiásticos, diretrizes do Vaticano, então preocupado em sustar o satisfeitos de encontrarem na Ação Francesa um braço florescimento dos movimentos operários de esquerda secular contra os leigos, os franco-maçons e todos os na Europa, mas também da tomada de consciência inimigos da Igreja. (WINOCK, 2000, p. 239) por parte do episcopado brasileiro da crise com que se defrontavam os grupos dirigentes oligárquicos”. Ainda acerca da trajetória de Jacques Maritain, cabe notar que, em 1927, o filósofo francês rompeu com No Brasil, esse processo foi definido como uma a Action Française e, a partir de então, passou a “reação católica” condicionada por uma postura considerar válidas as contribuições da modernidade. de maior proximidade com o Vaticano e de Em sua teorização, tais aportes deveriam ser colocados condenação dos “erros da modernidade”, tais como em favor de uma nova sociedade, ao mesmo tempo o racionalismo, a liberdade de imprensa, a liberdade unitária e pluralista. Essa sociedade deveria constituir-

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

24 se por esses dois princípios a fim de comportar uma ditadura varguista no Brasil. Cito diretamente, mais pluralidade de confissões de fé e de posicionamentos uma vez, Jacques Maritain (1967, p. 54 ): políticos – inclusive aqueles não católicos. Bem comum revertido sobre as pessoas; autoridade política É importante assinalar que a ruptura de Jacques dirigindo os homens livres para este bem comum; moralidade Maritain com a Action Française não representou um intrínseca do bem comum e da vida política. Inspiração impacto imediato sobre Amoroso Lima – nem o personalista, comunitária e pluralista da organização social; poderia, visto que o rompimento ocorreu em 1927. ligação orgânica da sociedade civil com a religião, sem Naquele momento, o contato de Amoroso Lima opressão religiosa nem clericalismo, em outros termos, com a obra de Maritain era ainda incipiente. Assim, sociedade realmente, não decorativamente cristã. [...] Obra é possível afirmar que o efeito dessa ruptura sobre inspirada pelo ideal de liberdade e fraternidade, e tendendo Amoroso Lima só pode ser mensurado na média para a instauração de uma sociedade fraternal em que o ser duração e de modo progressivo, com destaque para humano seja libertado da escravidão e da miséria. o período posterior ao lançamento de Humanisme intégral (1936). Avançando um pouco mais sobre os escritos de Jacques Maritain, observo que foi efetivamente no Nesse livro, o filósofo francês define a liberdade livro Christianisme et démocratie (1943) que sua como uma das características centrais para uma nova posição se modificou em relação particularmente cristandade, caracterizada por uma autonomia das ao comunismo, no qual passou a ver claramente a pessoas em oposição à ideia medieval da “força ao possibilidade de conversão. Em sua opinião, era bem serviço de Deus” (MARITAIN, 1942, p. 191-2132). Há provável que um povo pudesse estar sujeito a ser uma passagem análoga em Principes d’une politique desviado do “ateísmo e dos erros espirituais do humaniste (1944), em que Maritain defende a comunismo” por mudanças de ordem interna, por necessidade de emancipação política como fruto da mais difícil e dolorosa que fosse tal “evolução”. Aos prática social e política. A seu ver, ambas deveriam olhos de Maritain, havia esperança na “transformação ser pautadas na conquista da liberdade e na busca de espiritual do povo russo” não em razão do comunismo um ideal histórico efetivo, em cujo seio a educação em si, mas em virtude de seus “profundos recursos e a formação de cidadãos tivesse lugar de destaque religiosos e humanos”. O filósofo francês acreditava (MARITAIN, 1945, p. 223). que uma restauração geral do pensamento e da ação democráticas poderia reintegrar à democracia Avançando nesse ponto, vale observar que, para aqueles que estavam inclinados ao comunismo. Em Maritain, a obra comum da nova cristandade se suas palavras, esta ação poderia reintegrá-los: constitui na realização de uma comunidade fraterna, construída a partir de uma ação prática profana [...] ao respeito das coisas da alma, ao amor da liberdade e cristã com vistas ao bem comum civil. Esclarecendo: ao sentimento da dignidade da pessoa, não seguramente essa ação seria profana e cristã ao mesmo tempo e a ortodoxia marxista e a disciplina do Partido Comunista, comportaria o pluralismo político e religioso. Segundo mas numerosos comunistas de sentimento e muitos Maritain, em Humanisme intégral (1942, p. 198-199), daqueles que a revolta contra as injustiças sociais [inclinava ao comunismo]. (MARITAIN, 1957, p. 94-95) “por isso mesmo que é profana e não sacral, não exige essa obra comum absolutamente de cada qual, No período subsequente a essas publicações de como entrada, a profissão do cristianismo” . Maritain, observamos que as ideias e as posturas

de Amoroso Lima evoluíram gradativamente em Gostaria também de lembrar que na obra Les droits consonância com as do filósofo francês. Nesse de l’homme et la loi naturelle (1942), encontra-se uma percurso, de católico conservador, Amoroso Lima definição semelhante à constituição da comunidade avança ao longo dos anos em direção a posições mais fraterna já proposta por Maritain em Humanisme progressistas. A meu ver, é inequívoco que Jacques intégral. Essa definição compõe-se por oposição aos Maritain está na origem e no caminho dessa profunda regimes de força mundo afora e invoca a defesa da mudança de Tristão de Athayde, agora rumo a um liberdade e da fraternidade, valores caros ao filósofo catolicismo progressista e à defesa da liberdade. francês. Esse livro teve impacto categórico sobre É a isso que me refiro quando trato da “segunda Amoroso Lima, a se considerar ainda o cenário da

2 Humanisme intégral é de 1936, mas aqui faço uso da edição de 1942. 3 Principes d’une politique humaniste é de 1944, mas aqui me refiro à edição de 1945. 4 A obra Les droits de l’homme et la loi naturelle é de 1942, mas utilizo aqui a edição de 1967.

25 conversão” de Amoroso Lima ao catolicismo, visto que a primeira, realizada em 1928 pelas mãos de Leonel Franca, Dom Leme e Jackson de Figueiredo, correspondeu a um inquestionável engajamento às ideias e às posições conservadoras. Estas, àquele tempo, foram tributárias também, em grande medida, de suas leituras de Charles Maurras e, por meio deste, de Joseph de Maistre. Demonstrei isso em minha tese de doutorado, mas aqui não convém avançar sobre esses pontos, dado o objetivo desta exposição.

Amoroso Lima e Jacques Maritain: impactos da inspiração democrática à reconversão

Foi, portanto, progressivamente à luz das leituras de Jacques Maritain que o líder católico Amoroso Lima definiu-se em favor da democracia, de base cristã, visto que manteve sua crítica à democracia de natureza liberal. Esta, por sua vez, era por ele considerada negativamente como o sustentáculo do mundo burguês.

Com o cenário de guerra bem avançado, Amoroso Lima trouxe a público, em janeiro de 1944, o decisivo texto “Adeus à mocidade”. Esse artigo foi o resultado de um pronunciamento feito na sessão comemorativa de seu jubileu, em 13 de dezembro de 1943. Nessa sessão, Amoroso Lima falou de sua trajetória de vida até os cinquenta anos e também sobre as mudanças pelas quais a sociedade brasileira havia passado. Seu pronunciamento teve caráter marcante pois representou um momento em que se despediu de valores já superados e aceitou “um convite à meditação”. Seu grande objetivo naquela ocasião era demonstrar sua mudança em direção ao pensamento progressista:Mas quem pode fugir ao remorso, na hora em que honestamente se volta para o passado e vê o pouco que fez e tudo o que poderia ter feito se fosse realmente fiel ao seu destino? Como deixar de sentir a insignificância de tudo isso, em face do vulto imenso dos acontecimentos que nos cercam? (ATHAYDE, 1944a, p. 1-7).

Se se considera que o “adeus à disponibilidade” dado por Amoroso Lima em 1928 teve o caráter de um adeus do “ceticismo, da ironia, do oportunismo ideológico” (LIMA, 2001, p. 171), percebe-se a dimensão do texto de 1944 já citado acima. Neste último, o líder católico deixa evidente seu engajamento em favor de uma “nova disponibilidade”, agora rumo à liberdade e à democracia. É o que se observa em outro texto de 1944, intitulado “Bernanos”, onde Amoroso Lima defende a construção de uma nova ordem mundial, que exigiria dos indivíduos ações claras e distintas:

26 É a disponibilidade à experiência, ao ensinamento dos fatos, A rede de intelectuais liderada por Amoroso Lima às lições dos acontecimentos desses últimos vinte anos, foi marcadamente guiada por um sentimento de desde que as duas revoluções fascista e comunista tentaram missão civilizadora. Seu objetivo era promover o que dividir o mundo em dois blocos irredutíveis. Devemos se considerava ser a recristianização do Brasil. Em seu voltar à disponibilidade, para saber aproveitar o trágico conjunto, os intelectuais próximos a Amoroso Lima depoimento da agonia, não pela morte, mas pela vida, não tiveram relativo sucesso, em especial em virtude de pelo apego a posições insustentáveis e anacrônicas, mas sua “ação católica” nos campos político, cultural e por uma sadia participação na construção de um mundo educacional. novo. (ATHAYDE, 1944b, p. 507, grifos meus) Finalizo este texto com as palavras de Amoroso Lima Apontamentos finais em 1945, cuja intensidade e densidade expressam categoricamente sua relação com o mestre francês, Essa nova disponibilidade por parte de Amoroso Jacques Maritain: Lima diante de uma nova ordem mundial deve- se, inquestionavelmente e em grande medida, ao Há vinte anos que quase outra coisa não faço senão traduzir impacto de sua relação com Jacques Maritain e seus em português o que posso aprender do pensamento desse escritos. É dessa relação que ele retira ensinamentos homem admirável dos nossos tempos. Há vinte anos que e mudanças acerca, por exemplo, do comunismo, da acompanho de perto, pelo coração e pelo entendimento, a emancipação política, da igualdade de direitos e da marcha acidentada desse espírito pelo arquipélago agitado democracia. Registre-se que foi igualmente a partir dos tempos modernos e nunca me arrependi senão do de Jacques Maritain que tanto Amoroso Lima quanto que não tenho sabido aproveitar dos seus ensinamentos. a rede de intelectuais católicos que gravitavam em [...] O partido de o amar, de o defender, de o seguir, está torno dele investiram esforços na criação do Partido tomado há muito tempo, espero para sempre; [...] Como Democrata Cristão no Brasil. todo pensador realmente cristão, é no Cristo, fonte de O conjunto de reflexões presentes nas obras de toda ciência e de toda sabedoria, e não em si próprio, que Jacques Maritain contribuiu inequivocamente para o ele vai buscar o melhor que nos dá. [...] O que sempre que classifiquei em minha tese como uma “segunda mais me prendeu a Maritain foi justamente essa humildade conversão” de Amoroso Lima, desta feita rumo a um espontânea e profunda, tão diversa do falso publicanismo catolicismo com características progressistas e mais e tão adequada a esse sentido autêntico do cristianismo, próximo à liberdade e aos valores democráticos. que nos salva dos “Fuhren” segundo o mundo, para nos É oportuno destacar que, além da influência ou levar ao único Salvador, que não é “deste mundo”. [...] O da apropriação dos escritos de Jacques Maritain, que sentimos é a mais íntima ligação entre inteligência e Amoroso Lima passou por um processo de experiência, entre a Fé rigorosamente intelectualista, uma autocrítica e de distanciamento em relação à visão profundamente mística das relações do homem com herança conservadora de Jackson de Figueiredo. Seus a Verdade, e uma observação muito objetiva dos nossos incontáveis escritos presentes na revista A Ordem, tempos. (ATHAYDE, 1945a, p. 98-104) suas entrevistas e suas obras, todas do período em Referências estudo, demonstram cabalmente essa assertiva. É igualmente oportuno evocar como fatores . A Ordem, contribuintes a sua nova conversão as perturbações, ATHAYDE, Tristão. Adeus à mocidade Rio nacionais e internacionais, decorrentes do contexto de Janeiro, n. 1-2, p. 1-8, jan. 1944a. A Ordem de guerra, da ditadura varguista e do nazi-fascismo. ______. “Bernanos”. , Rio de Janeiro, s/n, p. Resumidamente, a meu ver, restou evidenciado que 505-516, nov./dez. essa segunda conversão de Amoroso Lima operou-se 1944b. A Ordem (tal qual a primeira, de 1928) de forma progressiva, ______. Maritain. , Rio de Janeiro, s/n, p. 91- reflexiva e não sem conflitos interiores e divergências 115, fev. 1945a. com alguns dos quadros importantes da Igreja Católica LIMA, Alceu Amoroso. Adeus à disponibilidade. In: Notas para a história do Centro e do Centro Dom Vital. Por último, chama a atenção AZZI, Riolando (Org.). Dom Vital. a necessidade do avanço das pesquisas voltadas à Rio de Janeiro: Educam/Paulinas, 2001. p. compreensão do impacto, pelo menos nos anos 1930 169-174. Humanismo integral: uma visão e 1940, seja dos escritos de Jacques Maritain, seja da MARITAIN, Jacques. da nova ordem cristã. ação de Amoroso Lima na Liga Eleitoral Católica, no São Paulo: Cia. Editora Nacional, movimento de Ação Católica, no Instituto Católico 1942. de Estudos Superiores e mesmo na Editora Agir.

27 ______. Principes d’une politique humaniste. 2. ed. Paris: Paul Hartmann Éditeur, 1945. ______. Cristianismo e democracia. Rio de Janeiro: Agir, 1957. ______. Os direitos do homem e a lei natural. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. ______. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Bibliografia consultada

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28 Nenhum dia sem escrita: a forma como Amoroso Lima e Merton buscaram Da experiência do cristão e de seu vivê-los – que tratam as linhas seguintes. 2 registro – os casos de Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton **** Marcelo Timotheo da Costa Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton foram Nulla dies sine línea autores prolíficos. O brasileiro, segundo seus Plínio, o Velho biógrafos, teria escrito entre 80 e 100 livros (aliás, a própria indefinição quanto à extensão exata da As trajetórias de Alceu Amoroso Lima (†1983) bibliografia amorosiana é por si só reveladora). Já o e Thomas Merton (†1968) apresentam notável monge trapista teve publicadas mais de 60 obras em confluência a despeito de existirem diferenças vida, deixando ainda material suficiente para mais biográficas não negligenciáveis entre eles. alguns títulos editados após sua morte prematura, Em primeiro lugar, a diversidade: geográfica, cultural aos 53 anos. Isso posto, deseja-se frisar particular e geracional. Amoroso Lima era carioca, do ano ponto de contato entre os dois intelectuais e ativistas de 1893; já Merton, filho de neozelandês e norte- católicos. Propõe-se, aqui, que eles modelaram a si americana e que adulto optaria pela mesma cidadania mesmos pela escrita, atividade por intermédio da qual a da Mãe, nasceu no Sul da França, mais de duas dupla logrou organizar e dirigir suas trajetórias. Direção décadas depois, em 1915. Quanto às semelhanças necessária porque ambos, como dito acima, passaram em seus itinerários, ressaltem-se as mais relevantes por significativas modificações relativas às suas visões da para o presente texto: originários de famílias abastadas, fé cristã e das implicações políticas e sociais da mesma. foram educados com esmero e, após passarem infância e juventude sem qualquer preocupação metafísica Convertidos ao catolicismo tridentino, aquele forjado duradoura, converteram-se ao catolicismo romano em para reagir à Reforma, modelo de igreja reativo ao idade adulta. Amoroso Lima, aos 35 anos incompletos; século e à modernidade, tomados por condenados Merton, aos 23 anos de idade. e condenáveis, Amoroso Lima e Merton, nos anos que se seguiram suas respectivas profissões de fé, Outra confluência a ser notada: essas conversões, buscaram encarnar com afinco a eclesiologia então fenômeno em princípio de esfera privada, foram vigente nas hostes católicas.3 Eclesiologia essa que levadas à praça pública pela dupla, sobretudo por produziu o chamado projeto romanizador ou de meio de intensa atividade literária. Assim, a ambos foi neocristandade. A idéia subjacente a tal projeto, no associada dada militância intelectual católica típica do Brasil e fora dele, era realizar dupla réplica em relação século XX, tempo de tensão e redefinição nas relações à sociedade contemporânea. Replicar: responder aos da Igreja com a sociedade moderna. Engajamento tempos correntes, seus desafios, questionamentos, que, nos dois casos, com o passar do tempo e de contestando especialmente às crescentes críticas forma não-linear, muda substancialmente: tanto o que a chamada “razão moderna” impunha à fé (à fé brasileiro como o norte-americano, mantendo-se cristã, em geral, e à fé católica, em particular). E, em rigorosamente fiéis a sua Igreja, cambiam quanto à sentido complementar, por intermédio do projeto maneira de pensar a fé e também suas implicações romanizador, a Igreja tencionou replicar a sociedade, no mundo da experiência. Assim, convertidos em ao reproduzir importantes características deste registro de fé reacionário, Amoroso Lima e Merton corpo social (todavia, sob a clave cristã): se havia se tornam defensores do cristianismo progressista, escolas e hospitais, deveriam existir escolas e hospitais transformação que, por um lado, ampliou a difusão de católicos; o mesmo valia para partidos políticos, seus escritos para além dos muros católicos, por outro imprensa, sindicatos, intelectualidade, associações lado, fez com que a dupla necessitasse desenvolver variadas (de jovens, moças, universitários, etc). Numa especial e sofisticado controle de suas ações. É de tais frase: tencionava-se marcar o século laicizado com a permanências e câmbios – e principalmente sobre Cruz romana. 4

1 Historiador e economista. Doutor em História pela PUC-Rio. Membro do Grupo de Trabalho Alceu Amoroso Lima, do Centro Alceu Amoroso Lima para a Defesa da Lierdade/ Universidade Cândido Mendes. No primeiro semestre de 2015, foi Visiting Fellow do Departament of Catholic Studies, da DePaul University. Autor do livro Um itinerário no século: mudança, disciplina e ação em Alceu Amoroso Lima (Loyola/Editora da PUC-Rio, 2006). 2 Antes de seguir adiante, cabe assinalar uma frustração. Não me foi possível acessar toda a correspondência trocada entre os autores. Por isso, optei por desenvolver comparação que prescindisse desta documentação. 3 Para as tensas relações entre catolicismo e tempos modernos, ver LIBÂNIO, João Batista. Igreja Contemporânea: encontro com a modernidade. SP: Loyola, 2000. 4 Plano de neocristandade que, de país para país, teve suas especificidades. Essas não poderão ser tratadas aqui. Apenas a título de ilustração: no Brasil, tratava-se então de “recatolicizar”, de acordo com a ortodoxia romana, país formalmente, e em sua imensa maioria, católico. Nos EUA, a “réplica” à cultura moderna devia levar em consideração características particulares da Igreja Católica local, minoritária diante das múltiplas confissões protestantes.

29 E, paradoxalmente, se a reação católica em relação ao E, como anunciado, passadas cerca de duas décadas século mostrava-se dinâmica, a contenda pelo futuro de suas respectivas conversões, Amoroso Lima da sociedade contemporânea tinha por bandeira o e Merton vivenciam significativos câmbios em elogio a tempos pretéritos. De acordo com William seus registros eclesiais, adotando leitura católica Shannon, biógrafo de Merton, menos beligerante e mais dialogal face ao mundo contemporâneo. Renovação que foi sintetizada pelo “A Igreja anterior ao [Concílio] Vaticano II [1962-65] na brasileiro (sendo, no entanto, aplicável à dupla de qual Merton foi batizado era uma Igreja ainda em reação intelectuais cristãos) nos seguintes termos: – mesmo passados três séculos – à reforma protestante do século dezesseis. Caracterizada por uma mentalidade “Costumamos considerar demais a Fé como sendo de cerco, cerrava fileiras em torno de suas certezas uma âncora, segundo a sua simbolização tradicional. doutrinais e morais, ele grudava-se a seu passado com Mas, se realmente quiséssemos modernizar um grande tenacidade […] A Igreja gabava-se da estabilidade pouco mais essa representação simbólica, acredito e do caráter imutável de seu magistério em meio a um que seríamos ainda mais fiéis à realidade, se mundo em movimento.” 5 representássemos a Fé por uma hélice [...] a Fé, mais que permanência ou imobilidade, é movimento, é Apesar da Igreja Católica no Brasil viver questão marcha, é viagem, é caminhada, é ascensão.” 6 muito particular – a adaptação à República laica proclamada em fins do século XIX –a Ao frisar, mesmo antes do aggiornamento proposto observação de Shannon é igualmente válida pelo Vaticano II, a necessidade de “modernizar” para o caso de Alceu Amoroso Lima, convertido o catolicismo do século XX, Amoroso Lima exatos dez anos antes de Thomas Merton. opta pela aproximação com sociedade e cultura contemporâneas, alinhando-se entre católicos Pouco tempo decorrido de suas admissões na Igreja, renovadores, notadamente aqueles vindos da Igreja Amoroso Lima e Merton, por caminhos diversos francesa, leigos e sacerdotes como Jacques Maritain, e com a benção de seus superiores hierárquicos, Emmanuel Mounier, Yves-Marie Congar, Teilhard de constroem e consolidam a imagem de convertidos Chardin.7 Interessante notar que tal antecipação ao e fiéis modelares. O brasileiro alcança tal posição – aggiornamento católico também foi empreendida espécie de campeão nacional das causas católicas e por Thomas Merton, outro que sempre cultivou da neocristandade – por intensa e quase onipresente laços com a reflexão teológica do Velho Continente, atividade apologética. Ele atuou em variados círculos: notadamente aquela proveniente da França (a na Universidade, na Academia Brasileira de Letras, na propósito, os dois foram alfabetizados em francês, na imprensa. Consolidou aliança com o governo federal, França, durante a infância). que tinha os mesmos inimigos da Igreja (como o anarquismo e o pensamento de esquerda); instruiu Quanto à postura mais pluralista frente ao os fiéis católicos em pleitos e pelejas públicas. Merton pensamento moderno, é o próprio Merton que torna-se figura exemplar pela própria conversão: assinala em seu diário, no dia 31 de julho de 1961: de origem protestante, ainda que de família não “Ser verdadeiramente ‘católico’ é ser capaz de se praticante, formado em cultura secularizada e espécie importar com os problemas e alegrias de todos de enfant terrible avant la lettre, ele não apenas e ser todas as coisas para todos os homens.”8 assume a fé católica. Merton a adota de forma O monge, a seu modo, adianta-se ao célebre proêmio radical, fazendo-se sacerdote e monge, em sociedade do documento conciliar “Gaudium et Spes sobre a materialista e onde o apelo de Roma é minoritário. Igreja no mundo de hoje”, proclamado pelos padres Opção descrita em precoce autobiografia, conciliares do Vaticano II, em dezembro de 1965: “As A montanha dos sete patamares (1948), que, alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias comparada a Confissões de Santo Agostinho, dos homens e mulheres de hoje [...] são também as tornou-se best seller norte-americano e, posteriormente, ganhou projeção internacional.

5 SHANNON, William, “nota ao leitor” in MERTON, Thomas. The seven storey mountain. Nova York: Harcourt Brace, 1998, p. XX. Grifo meu. As traduções aqui citadas são de minha responsabilidade. 6 Cf. “Adeus à Praça Quinze”, in AMOROSO LIMA, Alceu. Adeus à disponibilidade e outros adeuses. Rio de Janeiro: Agir, 1969, p. 102. O texto é, originalmente, de 1952, data na qual a transformação amorosiana em pauta já era bem visível. 7 Maritain, principalmente a partir dos anos 1960, dará guinada conservadora em seu pensamento, fazendo com que Amoroso Lima dele se afaste. 8 No original, “To be truly ‘Catholic’ is to be able to enter into everybody’s problem and joys and be all things to all men.” In MERTON, Thomas. Turning toward the world: the pivotal years. Nova York: HarperCollins, 1996, p. 147, mensagem de 31 de julho de 1961.

30 alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos fosse colocado na ilegalidade. Graças a tal postura discípulos de Cristo.”9 liberal, Amoroso Lima foi acusado de sabotar os reais interesses da Igreja no país. 12 Cumpre frisar ponto de grande importância para o presente texto: cambiar envolve riscos. Amoroso Já, de seu turno, Merton, enfrentou problemas mais Lima e Merton bem sabiam disso e cuidaram de graves com a supervisão de seus superiores. Ele controlar seu itinerário entre os fiéis. Afinal, Merton, esteve submetido a controles doutrinário, moral e monge e presbítero, pertencia à Ordem religiosa também o relativo ao chamado “decoro monástico” conhecida pelo conservadorismo e circunspecção. (sobre o que seria oportuno a um monge falar e E, ademais, estava submetido a voto de obediência a quanto à forma e conteúdo de sua mensagem). seus superiores. Já Amoroso Lima, ainda que fiel leigo, Controle que se transforma em censura, nos anos tinha as responsabilidades da liderança do laicato 1950, quando Merton escreve textos sobre a ameaça brasileiro. Ele havia sido alçado a tal condição por de guerra nuclear. Interdito que também é imposto Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, quando o trapista defende maior aproximação com então Distrito Federal, após a morte de Jackson de o budismo e outras tradições orientais. No primeiro Figueiredo. Este fora pivô no processo conversional caso, em tempo de acelerada corrida armamentista amorosiano e falecera meses depois da admissão e Guerra Fria, a pregação pacifista era vista por de Alceu ao catolicismo. Morto Figueiredo, coube a alguns setores da sociedade norte-americana como Amoroso Lima a direção do Centro Dom Vital e da fraqueza diante da ameaça comunista. Posicionamento revista A Ordem, espécie de “cabeças de ponte” do esse que perderá a força com a célebre encíclica projeto de neocristandade católico. Pacem in Terris, do papa João XXIII (1958-1963), vinda a lume em seus últimos anos do pontificado. **** Já a aproximação com o misticismo oriental e a E, conforme assinalado antes, Amoroso Lima e valorização do diálogo ecumênico encontrava, em Thomas Merton alteram a forma de ver seu credo e tempos anteriores ao Vaticano II, notáveis resistências repensam as implicações sociais e políticas dele. entre clérigos católicos, ciosos da manutenção Quer-se destacar aqui a ligação entre transformação e (de certa leitura) da ortodoxia. 13 risco. Cambiar é incorrer em riscos, perigo majorado Cabe ainda notar que, na década de 1950, época na qual para aqueles que, como Amoroso Lima e Merton, Amoroso Lima e Thomas Merton vão consolidando estiveram vinculados a modelos de pensamento suas transformações eclesiológicas, recrudescem e ação muito rígidos. Perigo para o qual ambos as disputas internas no seio da Igreja. Era o final do estiveram atentos. Para ilustrar esse ponto, abordando longo pontificado de Pio XII (1939-1958), marcado a transformação eclesiológica de Amoroso Lima, diz por visível fechamento teológico-pastoral, movimento Candido Mendes de Almeida: “Repetindo Erasmo, Dr. que atinge importantes experiências de abertura no Alceu sabia da tentação dos hereges”. 10 orbe católico – como foi o caso da Nouvelle Théologie Católicos proeminentes em seus países, Alceu e dos padres operários, ambas de origem francesa. Amoroso Lima e Thomas Merton foram vigiados em Neste mesmo país, ao qual Amoroso Lima e Merton seus itinerários (e mudanças) pela hierarquia eclesial estavam ligados sentimental e intelectualmente, a mais conservadora. Aquele, por exemplo, a partir da Cúria romana impõe sanções à Ordem dominicana, segunda metade dos anos 1940, teve seus textos importante pólo de inovação eclesial. 14 examinados por censor escolhido pelo então cardeal Desta forma, em dias infensos às mudanças e do Rio de Janeiro, Dom Jaime Câmara (sucessor de inovações, Amoroso Lima e Merton, por caminhos Dom Leme), que via com preocupação a influência independentes, porém em boa medida semelhantes, “modernizante” de Jacques Maritain sobre Amoroso vão reconstruindo sua identidade católica. Lima. 11 Este igualmente causara mal-estar entre certos círculos de crentes mais conservadores, em 1946, ao defender que o Partido Comunista Brasileiro não

9 GS 1,1. Consultei o compêndio Vaticano II: mensagens, discursos, documentos, publicado pela Paulinas (São Paulo, 1998). Para a citação, ir à p. 470 do citado volume. 10 In BINGEMER, Maria Clara L. & BARTHOLO JR., Roberto dos S. (orgs.). Exemplaridade Ética e Santidade. São Paulo: Loyola, 1997, pp. 129-149, citação da p. 147. 11 Não ocorreu cerceamento maior à atividade amorosiana graças à intercessão de outro Câmara, o Pe. Hélder (futuro arcebispo de Olinda e Recife), amigo comum do novo cardeal e do líder leigo. Cf. in PILETTI, Nelson & PRAXEDES, Walter. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia. Rio de Janeiro: Ática, 1997, p. 161. 12 Para o episódio, ver Um itinerário no século ..., pp. 37-38. 13 Para resumido inventário dos problemas enfrentados por Merton quanto à liberação de seus escritos, ver SHANNON, William et al.. The Thomas Merton Encyclopedia. Maryknoll: Orbis Books, 2002, pp. 47-49, verbete “Censorship”. Vale acrescentar que tal obra foi traduzida para o espanhol, em 2015, com o título Diccionario de Thomas Merton. Bilbao: Ediciones Mensajero, 2015. Nesta, o verbete “Censura” é encontrado às pp. 87-90. 14 Para a mencionada retração teológico-pastoral, ver Um itinerário no século ..., capítulo 2. Ir especialmente às pp. 108-131.

31 *** Vivenciando tais transformações, era necessário aos intelectuais em pauta organizar seus movimentos. Controle que exigiu acurada meditação sobre o caminho a seguir. Meditação que se traduziu em cálculo cotidiano de ações, projeção de cenários, aproximação com aliados, resposta (muitas vezes moderada) aos críticos, avaliação de riscos. Isso posto, atente-se para a palavra citada acima: meditação. Meditação, seja frisado, conjugada de maneira muito particular pela dupla de intelectuais católicos. Tanto Amoroso Lima como Merton eram tributários da espiritualidade beneditina. O trapista norte- americano pertencia à Ordem que deita raízes na tradição monacal de São Bento. Formalmente, os trapistas – ou Cistercienses da Estrita Observância – são uma reforma da Ordem Cisterciense, sendo esta última fruto de reforma anterior da própria Ordem de São Bento. E a “estrita observância” a que se refere a nomeação oficial trapista é relativa à Regra de São Bento. Quanto a Amoroso Lima, desde os primeiros dias após sua conversão, passou a freqüentar o Mosteiro de São Bento carioca, estabelecendo fortes laços com a comunidade local. Proximidade ratificada quando Amoroso Lima se fez oblato da mesma Ordem, nos anos 1950, época na qual, sintomaticamente, o intelectual leigo consolidava sua transformação eclesiológica, desvinculando-se dos ideais de neocristandade. Naquele tempo, aliás, os beneditinos do Rio de Janeiro constituíam núcleo renovador no cenário eclesial do Brasil, sobretudo quanto à Liturgia. E retome-se a palavra citada anteriormente: meditação. Para analisar como Amoroso Lima e Merton meditaram sobre suas convicções interiores e ações exteriores – intra-muros católicos e na praça pública – é preciso lançar luz sobre especial característica do beneditinismo. Na Regra de São Bento, o uso do verbo “meditar” permite interpretação importante para o presente argumento. Ali, meditar (meditent, em latim) significa exercitar-se e também experimentar.15 Acredito que a dupla ora analisada, cambiando de eclesiologia e na forma de atuar no mundo da experiência, meditou e experimentou caminhos a partir da escrita. Da escrita de si. Exercício cotidiano, prolongado no tempo, que permitiu a Amoroso Lima e Merton movimentarem-se com segurança entre os membros de sua Igreja. Desta forma, eles se transformaram substancialmente e de maneira rigorosamente ortodoxa.

15 Cf. in HERWEGEN, Ildefonso. Sentido e Espírito da Regra de São Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1953, pp. 329-30.

32 Observe-se, em primeiro lugar, o caso de Merton. Em Alceu Amoroso Lima escreveu diariamente à filha maio de 1939, poucos meses após sua profissão de fé Maria Teresa (nome religioso, Lia era seu nome católica, ele inicia a redação de diários (journals). Sua de batismo), por mais de 30 anos, isto é, do início intenção era disciplinar a caminhada espiritual, posto da década de 1950, quando ela optou pela vida que tomava a conversão como apenas o início de sua monacal internando-se na Abadia beneditina jornada. Intenção disciplinadora essa que será mantida paulistana de Santa Maria, até 1983, ano da morte do através do tempo, até o dia de sua morte, em 10 pensador brasileiro. de dezembro de 1968, data do último registro nos diários. São quase três décadas de contínuo meditar Claro está que tal epistolário é, primariamente, diálogo (em papel e tinta) sobre o cotidiano. 16 entre pai e filha. Quer-se, no entanto, olhar para além disso. Propõe-se, então, que, tal qual Merton em seus Na verdade, Merton iniciara a escrita de diários journals, Amoroso Lima exercitou-se (no sentido na juventude, anos antes de se tornar religioso. Ao beneditino do termo) ao escrever à monja Maria converter-se, ele reinicia a escrituração de si mesmo (e, Teresa. Alceu constituiu Maria Teresa sua confidente. tudo indica, queima seus diários anteriores). Reforça- Tratava-se de manobra prudencial. Os tempos se, pois, a interpretação aqui proposta: sentindo- pareciam exigir-lhe isso. Afinal, na década de 1950, se “renascido” com o batismo, Merton buscou o intelectual católico acelerava e consolidava seu já reestruturar sua vida, apagando inclusive o passado tantas vezes aludido câmbio eclesiológico. Dialogando 17 pré-conversão, tomado por pecaminoso. Se o risco com a Irmã Maria Teresa, ele buscava controlar os era perder-se no novo caminho, comprometendo a riscos desta transformação, disciplinar-se para seguir conversão, convinha ter uma espécie de diário de adiante. Diálogo epistolar: atividade comparável a bordo. E, para tanto, ele recomeçou seus journals em uma confissão laica, como o próprio Alceu admitiu: outras bases. Bases cristãs. 18 “Você [Maria Teresa] que qualifique como quiser, o que Dada a natureza deste texto, não poderei me alongar sinto por dentro e me alivio, consideravelmente, confiando mais na análise dos journals mertonianos. Destaco seu apenas a você (pois poderia fazê-lo a uma pessoa que propósito primário, citando as palavras do monge. Ele deveria ser meu confessor, e cheguei mesmo a pedir-lhe disse estar, por meio dos diários, buscando “encontrar que o fosse quando morresse o padre Franca, naturalmente [s]eu caminho para onde supostamente est[ava] D. Timóteo [Amoroso Anastácio, monge beneditino e viajando.”19 Antes deste trecho, datado de março primo do intelectual em questão], mas por vários motivos de 1951, o monge anotara, em fins de 1949: “Cada não consigo nunca confessar-me com ele, de modo que coisa que escrevo aqui é somente para a orientação me confesso com você, já que não se trata propriamente [...].” 20 E, à mesma época, na década de 1950, tempo do sacramento, mas de confiar o tumulto do que vai cá em que sua transformação eclesiológica ganha força, dentro e com isso ... tranqüilizar as águas [....].” 23 Merton registra em livro: “minha máquina de escrever é fator essencial em meu ascetismo”.21 Unem-se, Portanto, a correspondência familiar amorosiana, portanto, mística e escrita; meditação que é exercício de pai para filha, deve ser entendida nessa clave e experimento de controle (de itinerário) pessoal. confessional e de orientação. Alceu, escrevendo Processo semelhante de registro e de disciplinarização diariamente para a religiosa beneditina, e ele próprio de si ocorre com Alceu Amoroso Lima, que não redigiu tributário da espiritualidade de São Bento, exercitou- diários (nem autobiografia, como Merton fez em A se, provou caminhos. Ele que, desde meados dos Montanha dos Sete Patamares). 22 Contudo, o brasileiro anos 1940, tempos antes da ida de Maria Teresa construiu algo comparável (na extensão temporal, para o claustro, e também durante os anos 1950, ia freqüência e propósito) dos journals mertonianos. remodelando seu registro de catolicismo, adotando

16 A publicação dos journals de Merton foi realizada pela editora Harper, de São Francisco, a partir de 1993, respeitando-se a espera de 25 anos após a morte do autor, conforme era seu desejo expresso. A coleção completa dos diários soma quase três mil páginas, em sete volumes. Em língua portuguesa, foi traduzido um livro-resumo desta documentação. Ver HART, Patrick & MONTALDO, Jonathan (org.). Merton na intimidade: sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, 2001. 17 O passado anterior à conversão será tratado, à luz da fé adquirida, em A montanha dos sete patamares. 18 Tratava-se de proceder comum entre religiosos, convertidos ou não. Lembre-se de Angelo Giuseppe Roncalli, futuro papa João XXIII. Quando interno no Seminário de Bérgamo, no final de 1895, aos 14 anos, Roncalli iniciou a redação de anotações espirituais, mantendo o costume por seis décadas. A partir de 1902, um título foi incorporado ao texto: Giornale dell’anima. “Diário da alma” onde as notas do cotidiano de Roncalli visavam auxiliar sua progressão na fé e a ortodoxa formação católica. 19 In Entering the silence: becoming a monk & writer, São Francisco: Harper, p. 453, Anotação de 04 de março de 1951. 20 Op. cit., p. 383. 21 In O Signo de Jonas. São Paulo/Rio de Janeiro: Mérito, 1954, p. 52. A edição original norte-americana desta obra é de1953. 22 Amoroso Lima planejou redigir autobiografia. Não o fez, apesar de acalentar o plano por muitos anos. 23 In Cartas do Pai, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2003, p. 334, grifo no original. Mensagem de 22 de fevereiro de 1964.

33 eclesiologia (e atuação política) mais progressista. Lima meditam sobre a conjuntura eclesial e política, Em suma: ao se lançar por caminhos ainda não exercitam-se, traçam planos. E lapidam a si mesmos. percorridos, Alceu Amoroso Lima (como Thomas A escrita de si, tecida pelo fio da fé, tem, portanto, Merton) procurou não se perder no trajeto. efeito de ladrilhamento interior. Processo que, no tenso e conflituoso século XX, guia a dupla entre os *** crentes, ratificando sua identidade católica romana e, simultaneamente, alterando sua forma de atuar entre A consulta aos diários e ao epistolário de nossos os homens, ação sempre vista como imperativo autores, documentação que não poderá ser detalhada e consequência da fé professada. Assim, Amoroso ao longo destas linhas, é conclusiva. Pela escrita de Lima e Merton, tributários de modelo eclesial si cotidiana, em journals e cartas, Merton e Amoroso reativo e triunfalista, ao se converterem, passam a adotar, em seus respectivos países, linha de ação diversa, pluralista.

Thomas Merton, por exemplo, envolveu-se em questões candentes da sociedade norte-americana: defendeu com vigor os direitos civis, condenando, com igual ênfase, a segregação racial. Manifestou-se pela não-violência, envolveu-se com a causa pacifista, denunciando o risco de uma hecatombe nuclear planetária e a guerra do Vietnã24. Manifestou-se em favor do diálogo ecumênico, do aggionamento resultante do Vaticano II e da aproximação entre culturas Ocidental e Oriental. Foi interlocutor do jovem Dalai Lama, a quem encontrou em seu exílio, na Índia.

Também Alceu Amoroso Lima, como Thomas Merton e outros católicos liberais o fizeram, apoiou as inovações do Concílio Vaticano II e causas pacifistas mundiais. Quanto ao cenário interno brasileiro, ele atuou na denúncia da última ditadura civil-militar nacional. Em suas colunas de jornal, veiculados pelo Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, o intelectual católico pediu a volta das eleições livres e a redemocratização do país. E reivindicou a concessão de anistia política ampla e o retorno de todos os exilados. Questionou igualmente as autoridades do país sobre o destino de desaparecidos políticos.

Atuações públicas, da parte de Merton e Amoroso Lima, sempre motivadas por seus credos. Fé duplamente remodelada, que faz os dois estabelecerem admiradores, interlocutores e aliados fora dos muros católicos. Ambos, desta forma, valorizando a diversidade e o diálogo, firmaram sentido mais amplo – e, ao mesmo tempo, estritamente canônico – do termo católico: universal.

24 A dura oposição mertoniana à intervenção dos EUA no Vietnã motivou versão que atribuía à CIA a morte inesperada do monge (segundo os relatos oficiais, tratou-se de óbito acidental, causado por choque elétrico). Todos os biógrafos de Merton consultados corroboram a versão oficial.

34 Dois políticos e seus projetos: Alceu Amoroso Lima e Anísio Teixeira em torno da Educação Nacional1

Agueda Bernardete Bittencourt2

A Ação Católica por sua natureza é estranha à política partidária. Mas não é estranha à política superior, que visa o bem comum. Pois bem, com a nossa organização, espalhada por todo o Brasil, com o nosso empenho em favorecer a educação do povo, em velar e praticar a paz social, em defender a dignidade da pessoa humana, em todos os seus aspectos - estamos certos de poder retribuir fartamente ao Estado os benefícios que este fizer à Igreja, não por favores ou privilégios, mas pela prática efetiva de suas funções na garantia dos direitos individuais e da justiça social. Alceu Amoroso Lima (Carta a Gustavo Capanema, 16 de junho de1935)

Embates em torno da educação marcaram o cenário nacional durante todo o século XX. Entre os mais estudados estão os que confrontaram católicos e lai- cos, seja nas Conferências Brasileiras de Educação, no Conselho Federal de Educação ou mesmo no Con- gresso Nacional, quando das Constituintes de 1934 e 1946, e depois, por ocasião do debate sobre a Lei Alceu Amoroso Lima nasceu na cidade de de Diretrizes e Bases, por 12 anos tramitando nas Petrópolis, a 11 de dezembro de 1893. Filho de Camila da Silva Amoroso Lima e do indus- Casas legislativas. trial Manuel José Amoroso Lima. Foi educado por John Köpke, o pedagogo poeta, precursor Está estabelecido certo consenso sobre os grupos do escolanovismo no Brasil. Depois foi aluno do Colégio Pedro II, tendo-se formado na Facul- envolvidos na contenda, durante os anos 1930. Os dade de Direito do Rio de Janeiro em 1913. Fil- defensores da escola laica são liderados por Anísio ho de mãe católica, não teve, porém, formação Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, além religiosa na infância, tendo frequentado colé- gio público e laico. Convertido ao catolicismo dos demais signatários do Manifesto dos Pioneiros. por influência de Jackson de Figueiredo, Alceu Do outro lado estão os aliados de Alceu Amoro- tornou-se um dos mais respeitados paladinos so Lima, padre Leonel Franca e Gustavo Capanema. da Igreja Católica no Brasil. Foi Conde Roma- no pela Santa Sé. Fundou e dirigiu a revista A Pesquisas recentes, com base no estudo de trajetóri- Ordem, em que manteve intensa colaboração, as, começam a matizar esses grupos e questionar a presidiu o Centro Dom Vital, que congregava laicidade dos defensores da escola laica e a simplifi- os líderes do catolicismo no Rio de Janeiro. Cronista, ensaísta e crítico literário, publicou cação do debate sobre os católicos. Estes, um grupo por mais de seis décadas nos principais jornais de militantes políticos organizados dentro do catoli- da capital federal e de São Paulo. Foi membro cismo (CARVALHO, 1998, 2004; PINHEIRO, 2015). da Academia Brasileira de Letras. Catedrático de Literatura Brasileira na Faculdade Nacional de Filosofia e um dos fundadores da Pontifícia Neste artigo buscamos compreender as disputas e Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi os acordos construídos pelas grandes personalidades Diretor de Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos (1951) e membro que lideraram os dois grupos – Anísio Teixeira e Al- do Conselho Federal de Educação por várias ceu Amoroso Lima –, em campos opostos na déca- décadas. da de 1930 e na mesma trincheira nos anos 1960.

1 Este artigo é tributário do “Projeto Temático//Fapesp nº. 11/51829-0: Congregações Católicas, Educação e Estado Nacional” e da Bolsa de Produtividade/CNPq. Meus agradecimentos às duas instituições. Agradecimento também a Guilherme Arduini pelo convite para participar do Ciclo de Estudos Tristão de Athayde e ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SPESC/SP, pelo acolhimento. 2 Professora Delart/FE/Unicamp e; líder do grupo de pesquisa Pesquisadora do Focus/CNPq/Fapesp.

35 O estudo das biografias dos intelectuais, como o de suas redes sociais, oferece pistas para a compreensão dos embates, cujo aprofundamento será realizado, aqui, pelo estudo do pensamento de cada um deles, expresso em suas obras.

Filhos das elites, em uma sociedade oligárquica, nasci- dos no final do Império e início da República, estes dois homens trilharam os mesmos caminhos, frequentan- do as mesmas escolas. Não por acaso receberam educação cosmopolita, viajaram desde muito cedo pelos centros internacionais da cultura, na Europa e nos Estados Unidos da América. A Igreja Católica foi o ponto de união e de distanciamento entre ambos.

Não apenas a Igreja, mas também as próprias redes sociais dos dois homens se cruzaram em vários mo- mentos de suas trajetórias. Uma figura emblemática a ser destacada neste percurso é a de Afrânio Peix- oto, médico e escritor, cunhado de Alceu, amigo e colaborador de Anísio, cuja mãe, D. Anna, era sua madrinha. Outra personalidade importante em mo- Anísio Spínola Teixeira nasceu em mentos distintos para os dois foi Jackson de Figue- Caitité, no sertão baiano. Filho do médico e político Deocleciano Pires Teixeira e de iredo, sergipano, cuja trajetória intelectual se iniciou Dona Anna Spinola Teixeira filha de família em Salvador, onde inspirou um grupo de pensadores de políticos baianos. Estudou em colégios conservadores (que viria a influenciar o jovem Anísio) jesuítas. Formou-se em direito no Rio de Janeiro, em 1922. Manteve durante toda a e que, mais tarde, desempenhou importante papel na sua juventude formação e aspiração pela conversão de Amoroso Lima ao catolicismo. carreira eclesiástica junto aos jesuítas. Na Bahia, ocupou o cargo de Diretor Geral da Instituição Pública de 1924 a 1929. Fez Como tem mostrado a sociologia, as relações se esta- três viagens internacionais nesse mesmo belecem dentro dos grupos sociais que circulam nas período, quando visitou os principais cen- mesmas escolas, igrejas, clubes, partidos e associações. tros de estudos sobre educação na Europa e nos EUA. Anísio Teixeira reformou o sis- São essas relações de infância e juventude que mar- tema escolar baiano. Estudou no Teacher’s cam as cooperações e as alianças da vida adulta. Assim College da Universidade de Columbia, nos como os habitus formados nos mesmos círculos defi- Estados Unidos, onde conheceu seu me- stre e inspirador de toda sua obra, John nem opções políticas e culturais futuras (BOURDIEU, Dewey. Foi funcionário do Ministério da 2011; CARVALHO, 1996). Educação e Diretor de Educação do Dis- trito Federal, onde criou a Universidade do Distrito Federal. Foi signatário do Man- Temos duas personalidades saídas de setores distin- ifesto dos Pioneiros da Escola Nova, que tos da vida nacional: um, filho de industrial do ramo propunha uma escola laica, obrigatória e têxtil, do estado do Rio de Janeiro, criado na capi- gratuita. Foi um incansável debatedor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. tal da República, vizinho de Machado de Assis; e o Escreveu vasta obra, analisando os desafi- outro, de uma família de políticos ligados à extração os e os percalços da educação nacional. e à comercialização de minérios do sertão da Ba- Tem seu nome associado às principais criações do campo da educação, no século hia. É na capital federal, no coração do estado na- XX. Depois de uma breve passagem pela cional que se travará o primeiro embate entre os Unesco, atuou no Ministério da Educação, dois intelectuais, embate atravessado pelo projeto na Campanha de Aperfeiçoamento do En- sino Superior (Capes), no Centro Brasilei- católico de nação e de sociedade a ser desenvolvi- ro de Pesquisa em Educação (CBPE), na do com base na educação. Ou seja, é no campo de Sociedade Brasileira para o Progresso da poder por excelência que se trava a disputa, uma Ciência SBPC), no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), no Conselho vez que, todos os campos remetem para o campo Federal de Educação. Fundador e Reitor central que é o estado nacional (BOURDIEU, 2011). da Universidade de Brasília. Morreu no Rio de Janeiro, em 1971.

36 As disputas no âmbito do poder central se desen- logo convidado por Pedro Ernesto Batista, interventor volvem com base nas propriedades e nos capitais de do Distrito Federal, para substituir Fernando de Azeve- que dispõem os agentes envolvidos. No caso de Alceu do na pasta da Educação da capital da República. Amoroso Lima, como seu quadro biográfico deixa ver, tratava-se de um intelectual de formação cosmopoli- Nesse momento, três polos de atuação reúnem os ta, com cursos realizados na França, com domínio de educadores brasileiros, envolvidos pela bandeira da línguas modernas e antigas, com capital econômico, reconstrução nacional: a Secretaria de Educação do relações sociais e familiares capazes de facilitar acesso Estado de São Paulo, sob a liderança de Fernando aos locais de prestígio social e aos homens de poder de Azevedo; o Ministério de Educação, já sob a di- político. A esses capitais sociais e simbólicos soma-se, reção de Gustavo Capanema; e a Diretoria de Edu- após sua conversão, o poder da Igreja Católica. Aní- cação do Distrito Federal, com Anísio Teixeira. Para sio Teixeira, por sua vez, reúne o capital econômico esses espaços convergem as lutas da intelectualidade trazido da família ao capital escolar expresso pela for- nacional e os projetos elaborados no Centro Dom mação nas melhores escolas brasileiras e nas viagens Vital pelos católicos e na Associação Brasileira de internacionais, em elegante vagabundagem, garantido- Educação, que formulou o Manifesto dos Pioneiros pela ras do acesso ao cosmopolitismo que o conhecimen- Educação Nova.3 to de línguas estrangeiras, o contato com as artes e a história asseguram. Acrescenta a essas propriedades o O Manifesto dos Pioneiros, considerado o marco in- título de mestre pela Universidade de Columbia, com augural do projeto de renovação educacional do país, a chancela de John Dewey. Essas são as cartas jogadas denuncia a desorganização do sistema escolar e a ne- na mesa pelos dois políticos nos primeiros anos após cessidade de que o Estado organize um plano geral a revolução de 1930, quando o estado nacional bra- de educação, com base em uma escola única, pública, sileiro se estrutura. laica, obrigatória e gratuita. Com essa bandeira, a ABE vai enfrentar a crítica dos setores conservadores Anísio Teixeira chega ao Rio de Janeiro apresenta- da Igreja Católica, cujos interesses são ligados: à ma- do como inteligência brilhante– capaz de liderar a nutenção das escolas privadas, na maioria de pro- esperada reconstrução nacional– pela célebre carta priedade de congregações religiosas, e à formação de Monteiro Lobato dirigida ao Diretor da Instrução espiritual dos brasileiros dentro dos princípios do Pública do Distrito Federal, Fernando de Azevedo catolicismo, nas escolas públicas, contenda que culmi- (VIANNA; FRAIZ, 1986). nará na retirada dos grupos católicos da Associação.

O momento político é de reorganização dos grupos no poder nacional, dado que o modelo da repúbli- ca velha havia se esgotado. A recomposição no poder, promovida pela revolução de 1930, trouxe novas alianças. As elites paulistas são alijadas do poder. Gaúchos e mineiros lideram o processo apoiados por políticos de estados periféricos. É nesse contexto que um forte grupo de jovens baianos se desloca para a cap- ital. Entre eles estão Hermes Lima, Vianna Filho e Anísio Teixeira, até então candidato a uma vaga de deputado.

No Rio de Janeiro, Anísio começa suas atividades como professor na Escola Normal e logo consegue um posto no recém-criado Ministério da Educação e Saúde, comandado por Francisco Campos, para tra- balhar sobre o ensino secundário. Ele acabara de pub- licar o livro: Aspectos Americanos de Educação (TEIX- EIRA, 1928), em que apresenta o sistema educacional dos Estados Unidos. Não permanece no Ministério, é

3 O “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” consolidava a visão de um segmento da elite intelectual que, embora com diferentes posições ideológicas, vislum- brava a possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira do ponto de vista da educação. Redigido por Fernando de Azevedo, o texto foi assinado por 26 intelectuais, entre os quais Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles. Disponível em: http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm.

37 Os polos mais ativos do movimento de intelectuais, ascencional para uma maior largueza e uma maior altura. escritores e artistas herdeiros da Semana de Arte Vida mais rica, mais alta, mais ampla e mais livre. Desta Moderna e dos Congressos da ABE, e Academia Bra- sorte, a democracia americana presuppõe tres factos fun- sileira de Ciências encontram guarida na Secretaria damentaes: a) que todos os homens têm completo direito de Educação do Estado de São Paulo e na Diretoria a uma perfeita participação nas formas mais altas de vida de Educação do Distrito Federal, tornados espaços social, o que envolve direito, a egual opportunidade eco- privilegiados de atuação da intelligentsia do Brasil, na nomica e egual opportunidade educativa; b) que a vida década de 1930 (MARTINS, 1987). Ficam os católicos neste planeta está sujeita ás leis ordinarias de evolução, mais próximos do Governo de Vargas e do então min- sendo a progressiva libertação do homem, dentro das suas istro da Educação Gustavo Capanema, amigo pessoal condições naturaes de vida, uma questão de esforço, de ex- da grande liderança católica, Alceu Amoroso Lima. periencia e de ascencional ajustamento; c) que o homem, pela largueza do seu coefficiente de educabilidade e pelo Assim, após a regulamentação do funcionamento de seu poder de controle sobre as causas naturaes que lhe dá universidades estaduais e livres, o governo do estado o conhecimento, vae-se tornando, cada vez mais, senhor e juiz do seu destino na terra. (TEIXEIRA, 1934, p.14) de São Paulo cria sua Universidade Pública – USP –, capaz de marcar a posição distinta daquele esta- Durante quatro anos a educação no Distrito Feder- do, liderado por Armando Salles de Oliveira e pelo al se volta para a criação de um sistema integrado grupo do jornal O Estado de São Paulo, em relação de escolarização em todos os níveis e modalidades ao restante do País e ao governo federal em especial. 4 de ensino, até então pontual e fragmentado, com especial atenção ao ensino secundário. A criação de No Distrito Federal, Pedro Ernesto e Anísio Teixeira, sólidas estruturas institucionais estava no centro do que acreditavam nas possibilidades da ciência para a projeto, como anunciou Anísio Teixeira em carta a solução dos problemas políticos e sociais, buscam am- Monteiro Lobato: plo acordo entre as classes populares, cientistas e in- telectuais em torno de seu projeto educacional. Foi o “Preparem-se os homens. Criem-se os técni- pensamento de Anísio Teixeira, reconvertido durante cos. Eles organizarão. Da organização virá a ri- seus estudos na Universidade de Columbia – quando queza. E tudo mais – política sã, liberdades etc. etc. elaborou a crítica à filosofia católica e ao que chama- – virá de acréscimo” (VIANNA; FRAIZ, 1986, p. 56). va de pensamento político europeu –, que fundamen- tou tal projeto político e provocou a ira dos católicos, A educação como campo profissional e a eficiên- organizados pelo Centro Dom Vital. cia da técnica no trato das questões públicas são Escreveu Anísio, no seu pouco conhecido Rumo ao ideias que vão se estabelecendo no discurso do desenvolvimento à margem dos Estados Unidos: educador baiano. As cartas trocadas com Fernando de Azevedo testemunham essa crença. Ele entende E tudo que se tem estudado e se tem investigado tem que é imprescindível, além de realizar obras públicas vindo reforçar as suas bases, e estabelecer uma confiança e planos de governo, dotar o País de uma legislação maior no homem. Em vez da creatura decahida que imag- capaz de inserir os avanços da política educacional inava a philosophia anterior, é, antes um animal em longa e laboriosa evolução. Completa ou apparentemente com- de forma duradoura como argumenta a propósito Código de Educação de São Paulo 5 pleta a evolução biologica, a sua evolução social está ainda do . em pleno processo. A atormentada historia do homem nesse evoluir voluntario, dá-lhe direito a credito por todas “Julgo que se pode afirmar, que ainda mais do que as suas realizações, nenhuma dellas lhe tendo sido passada certa deficiência administrativa sensível nos setores directamente do céo á terra.(TEIXEIRA, 1934, p.13) do ensino, tem prejudicado a educação em nos- so país, a falta de legislação adequada, uniforme Tudo pode mudar e está a mudar. As instituições foram e completa sobre a matéria” (VITAL, 2000, p. 17). criadas pelo homem para o servirem e não para o dom- inarem. E o criterio para esse permanente evoluir que Assim, de posse das credenciais adquiridas na sóli- é um permanente experimentar, é o da vida do homem da formação nos colégios de elite e numa universi- no mundo, entendida como o processo ininterruptamente dade de excelência e ainda portador dos conheci-

4 O Decreto de nº 25 579, de 27 de março de 1933, regulamentou o funcionamento das universidades estaduais e livres que eram previstas além das federais (PAIM,1982, p. 60) 5 Fernando de Azevedo, então Secretário de Educação do Estado de São Paulo, produziu e fez aprovar no estado um documento legal chamado Código de Educação, onde inseriu todas as leis dispersas sobre o assunto. E o fez distribuir como um manual a todos os professores do estado. Ver mais sobre o assunto em Azevedo (1971).

38 mentos sobre a política adquiridos na família, e com Por outro lado, também um desafio posto para os a certeza de poder interferir na política nacional, reformadores da educação dos anos 30 são a for- Anísio Teixeira escolhe os espaços de maior visibili- mação de professores e a pesquisa em educação, dade e relevância para seus investimentos políticos. problema de que se ocupou Anísio Teixeira em seus Dessa forma se mostrará um dos mais dedicados estudos na Universidade de Columbia. Sem universi- debatedores do capítulo da educação na Constitu- dades, o grande gargalo é a preparação de professores ição de 1934, defendendo a reconstrução nacional para o ensino secundário, até então exercido por pela educação e enfrentando notáveis confron- profissionais liberais, como ocupação secundária, ou tos políticos, especialmente com os representantes pelos religiosos das congregações católicas. da Liga Eleitoral Católica – LEC, presidida então por Alceu Amoroso Lima. Este, por sua vez, estava O Distrito Federal adianta-se em relação ao convencido de que a educação não é sinônimo de Ministério da Educação e organiza o Instituto de salvação, ou mesmo reconstrução nacional, como Educação, projetado para ser uma Escola Normal expressou em sua dura crítica ao escolanovismo, modelo, onde funcionem, como laboratório, um Jar- Introdução ao ao analisar o livro de Lourenço Filho dim de Infância, uma Escola Primária e uma Escola estudo da Escola Nova (LOURENÇO FILHO, 1930). Secundária. Funda também o Instituto de Pesquisas

Educacionais, com a função, entre outras, de recolher Sua crítica é simplesmente demolidora. Revela um dados sobre a realidade educacional que sirvam de debatedor pleno de certezas, que está postado no subsídio às ações educacionais. O Instituto de Edu- caminho dos reformadores, ligados à Escola Nova. cação, depois Escola de Professores, passa a ofere- Em suas palavras: cer, pela primeira vez, a formação de professores em O superficialismo do pensamento moderno, quando se nível superior e será incorporado à Universidade ocupa com problemas filosóficos e sociais, contrasta com do Distrito Federal (MARIANI, 1982). Interessado, a estrema especialização em profundidade quando se porém, no progresso e na industrialização do País, ocupa com problemas de ciência experimental. Não ouso o Diretor de Educação daria especial tratamento repetir a aventura do autor, que manobra displicente- às escolas técnicas, frequentadas pelas classes pop- mente em todas essas águas como se fosse piloto matric- ulares, promovendo-as através de um processo de ulado em todas elas. Limito-me a tomar um bote para ver equiparação às escolas secundárias propedêuti- e anotar algumas impressões pessoais, deixando a outros cas reservadas aos filhos da elite da época, - espe mais competentes a tarefa de destruir, como merece, todo cialmente ofertadas pelas congregações religiosas. o castelo de cartas que se apresenta com a arrogância de um castelo roqueiro (CURY, 2010, p.50/51). A culminância dessa reforma é a criação da Univer- Alceu contrapunha à educação pela experiência e aos sidade do Distrito Federal – UDF–, parte fundamen- princípios científicos anunciados pelos escolanovistas a tal do projeto de transformação social, baseada na fé, a moralidade e a liberdade que deveriam constituir crença de que a Universidade “poderia efetivamente a base das reformas a serem feitas. colaborar para uma coordenação intelectual que ir- Na Constituição de 1934, os dois grupos ganharam radiasse o conhecimento humano entre diferentes e perderam. Os reformadores lograram garantir na camadas da sociedade” (MENUCCI, 2006, p. 117). Lei, não apenas a afirmação da educação como dire- ito de todos, ministrada pela família e pelos poderes Como se pode ver, as ações do grupo liderado por públicos, como também a existência de um Plano Anísio Teixeira, sob influência do pragmatismo ameri- cano, estão comprometidas com a transformação so- Nacional de Educação, amarrado aos princípios da 6 gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário e cial a partir do Estado. Eles se atribuem a tarefa de à liberdade de ensino em todos os graus e ramos. retirar o país da ignorância e implantar a modernidade. Coube aos católicos a preservação da família ao lado Para isso elaboram uma proposta de universidade, do Estado como instância responsável pela educação com cursos de graduação e extensão em áreas distin- e a oferta do ensino religioso, facultativo aos alunos, tas daquelas tradicionalmente oferecidas no ensino su- porém, garantido como matéria nos horários das perior brasileiro, encarregado de formar profissionais escolas públicas primárias, secundárias, profissionais liberais. A ordem passa a ser formar quadros para um e normais. Estado eficiente e desenvolver a pesquisa. São cinco as escolas projetadas: Ciências, Educação, Economia e

5 Fernando de Azevedo, então Secretário de Educação do Estado de São Paulo, produziu e fez aprovar no estado um documento legal chamado Código de Educação, onde inseriu todas as leis dispersas sobre o assunto. E o fez distribuir como um manual a todos os professores do estado. Ver mais sobre o assunto em Azevedo (1971). 6 Para uma análise detalhada desse projeto de modernização, ver Luciano Martins (1987).

39 Direito, Filosofia e Instituto de Artes. Os cursos pre- vistos eram os de administração e orientação escolar, diplomacia, estatística, serviço social, biblioteconomia, jornalismo, publicidade, arquivo e artes cinematográfi- cas, entre outros.7

Apoiado sobre contratações de intelectuais brasilei- ros e professores estrangeiros, escolhidos por Afrâ- nio Peixoto, o projeto ganha visibilidade e expressa o poder político de seus idealizadores. O grupo de estrangeiros escolhido é formado por: Brehier, da Sorbonne, que viria para a cadeira de História da Filosofia; Charles Blondel, de Strasburgo, para a de Psicologia e Filosofia; Hauser, da Sorbonne, para o ensino da História Moderna e Economia; Desfon- taines, de Lille, para Geografia Humana; Garric (ou Paul Hazard), para Literatura Francesa; Perret, de Montpellier, para Língua e Literatura Greco-Romana; Bourciez, para Filosofia das Línguas Romanas; Tro- chon, para Literatura Comparada; Albertini, do Colé- gio de França, para História da Civilização Romana. Na lista de professores brasileiros destacam-se: Can- dido Portinari, Carlos Delgado de Carvalho, Gilberto de Mello Freyre, Heitor Villa-Lobos, Heloísa Alberto Torres, Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda.

Ora, este projeto de Anísio Teixeira e Pedro Ernesto entra em choque não apenas com os interesses de Gustavo Capanema e do Ministério da Educação e Saúde, mas especialmente com o grupo católico, or- ganizado em torno do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, que projeta uma república católica e que concebe a universidade como o espaço por excelên- cia de fomento da filosofia e do pensamento moral, capaz de dar suporte a tal projeto. Alceu Amoroso Lima, Padre Leonel Franca e Dom Sebastião Leme acalentam o sonho de uma Universidade Católi- ca no Rio de Janeiro, com o apoio do ministro da Educação, Gustavo Capanema (BITTENCOURT, 2009; LIMA,1978; MENUCCI, 2006; SCHWARTZMAN, 1982).

A guerra de posições que se trava na capital da Repú- blica não está restrita aos corredores palacianos;povoa a grande imprensa, as editoras, as conferências de ed- ucação, além dos gabinetes dos Constituintes (AR- DUINI, 2015;CURY, 1988; SCHWARTZMAN, 1982). O desfecho dessa história está fartamente docu- mentado na correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Gustavo Capanema, e entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Tem sua culminância na carta de

7 “A instituição se propunha a alcançar estes objetivos: a) promover e estimular a cultura de modo a concorrer para o aperfeiçoamento da comunidade brasileira; b) encorajar a pesquisa científica, literária e artística; c) propagar aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular; d) formar profissionais e técnicos nos vários ramos de atividade que as suas escolas e institutos comportarem; e) prover a formação do magistério em todos os seus graus”(PAIM, 1982, p. 69).

40 Alceu a Capanema, exigindo o imediato afastamento Para evitar constrangimentos e mais pressões sobre do educador baiano do Departamento de Educação Pedro Ernesto, Anísio Teixeira – que como seu chefe do DF, como se pode ver no fragmento abaixo: também colabora escrevendo artigos para o jornal da Aliança Nacional Libertadora e, portanto,é acu- Expurgar pois o exército e a marinha (como se com- sado de comunista e perseguido pela polícia política preende a permanência do Comandante Cascardo à de Filinto Miller – deixa o cargo e vai assistir desde o testa de um partido político?) de elementos políticos sertão baiano à reconversão de seu projeto na de- revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindicatos pois conhecida Universidade do Brasil. e dos quadros do Ministério do Trabalho elementos ag- itadores, organizar a educação e entregar os postos de Atendido em sua aspiração, o grupo do Centro Dom responsabilidade, nesse setor importantíssimo, a homem Vital assume a reitoria da UDF antes mesmo da chega- de toda confiança moral e capacidade técnica (e não a da, ao Rio de Janeiro, da missão estrangeira escolhida sectários, como o Diretor do Departamento Municipal por Afrânio Peixoto na Europa. Alceu Amoroso de Educação) - tudo são tarefas que o governo deve levar Lima foi, sem dúvida, a peça chave nesse processo. avante imediata e infatigavelmente, pois dela dependem De posse de amplo reconhecimento público angaria- a catolicidade das instituições e a paz social. (LIMA 1935) do pela presença constante na imprensa como cron- ista e crítico literário, pela já bem-sucedida ampliação da revista A Ordem (na quantidade de publicações e no público leitor) e pela extensa rede social da qual fazem parte a elite eclesiástica, os imortais da Academia Brasileira de Letras, além das relações fa- miliares entre a elite econômica do estado do Rio de Janeiro, e por suas viagens internacionais, o in- telectual não se depara jamais com portas fechadas. É ainda respaldado pela já significativa bibliografia publicada, que o qualifica como militante de um modelo social para o Brasil, baseado nos princípios do catolicismo. Destaquem-se: Introdução à Econo- mia Moderna (1930); Preparação à Sociologia (1931); Debates Pedagógicos (1931).

É tomando-o como portador de tais propriedades que se pode entender a facilidade com que Alceu transita pelo centro do poder nacional, fazendo in- dicação e vetando nomes para cargos públicos. Sugerindo e criticando projetos de governo, como bem o demonstra sua correspondência.8 Exerceu ainda um papel de intermediário entre as deman- das da Igreja Católica e o governo Vargas, passando, em geral, por Gustavo Capanema, seu amigo pessoal.

Anísio é assim afastado do poder nacional, em 1935, pela mão pesada da Igreja Católica, operada de for- ma competente por Amoroso Lima. Seu retorno só se daria depois de mais de uma década, período em que acumulou novas experiências na Secretaria de Educação da Bahia e como consultor da Unesco. Em 1951, Getúlio Vargas volta ao poder nacion- al, através de eleições democráticas, com base em novas alianças, com vistas a realizar um processo de conciliação nacional e continuar o desenvolvimento.

8 Ver a correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Gustavo Capanema, especialmente as cartas, os bilhetes e os telegramas de 1933 a 1944, no Arquivo do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, em Petrópolis.

41 Traz para o governo um grupo de políticos baiano, para resistir ao afastamento e encontrar, para si, um que assume o Ministério de Educação sob a liderança outro lugar. Entretanto, jamais deixou de pensar den- de Ernesto Simões Filho e a Assessoria Econômica tro do quadro cristão: pensando em uma sociedade da Presidência da República, que, sob o comando de que pela educação evoluiria para o progresso, para a Rômulo de Almeida, é encarregada de desenhar o justiça social e para a paz. Em nenhum momento o ed- projeto de desenvolvimento nacional.9 ucador pensou em revolução, em luta armada ou em Anísio Teixeira é convidado por seus ex-colegas perturbação da ordem instituída ou em luta de classe. no governo da Bahia: Rômulo de Almeida e Ernes- Seu pensamento foi sempre na direção da con- to Simões Filho e assim chega ao cenário nacional ciliação. A carta que escreve a Gustavo Corção propriamente dito. Assume a Secretaria Geral da em 1958, comentando um artigo seu, ilustra essa Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível minha hipótese. Superior –Capes –; no ano seguinte passa a presidir o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP Defendo posição essencialmente idêntica à sua. A edu- –, então transformado em órgão executor das políti- cação - não só a privada, como a pública - não deve ser cas da Capes; e em 1955 cria o Centro Brasileiro de sujeita ao Estado, mas, à Sociedade. Por isto defendo um Pesquisas Educacionais -– CBPE que serão, ao lado governo independente para a educação: conselhos locais, do CNPq, os organismos responsáveis pelo projeto de composição popular. No fundo, conselho de pais. A que irá dotar o País da infraestrutura de pesquisa e política educacional seria fixada por esses conselhos, aju- formação superior encarregada de alavancar a mod- dados pelos profissionais da educação, isto é, os profes- ernização do Estado e da sociedade brasileira. Tal sores. O senhor deseja, ao que parece, a mesma coisa. projeto é elaborado com forte participação de Aní- Como, porém, não defende a tese com uma plausibili- sio Teixeira e seus aliados nacionais e internacionais. dade imparcial, para a solução da educação dada pelo Alceu Amoroso Lima, nessa década e meia, assiste Estado e, ainda assim, independente, mas simplesmente à criação da PUC/Rio se tornar realidade, mas as- como recurso de transferir o poder de educar à Igreja, siste também aos horrores e desmandos da ditadu- toda sua argumentação soa falso. Não quer acompanhar ra Vargas, além de despedir-se para sempre de seus a idéia até o fim. A educação pertence aos pais. Muito grandes interlocutores em torno do projeto católi- bem. Como vão eles organizá-la? Entregando à Igreja. Ótimo. Mas há várias igrejas... (TEIXEIRA, 1958) co para o Brasil: o cardeal Dom Sebastião Leme e o jesuíta padre Leonel Franca. Assim, o católico dos Se o educador baiano não abandonou jamais seu anos 1950 será um homem com ideias distintas das pensamento conciliador, Alceu considerou mudanças que expressou nos anos 1930. Mais próximo dos importantes em seu pensamento. Narrava sua vida grupos progressistas da Igreja Católica, apoia Anísio em três etapas, sendo as duas primeiras de um catol- Teixeira quando os setores mais conservadores, em icismo ultraconservador, inspirado por Jackson de 1958, voltam a pedir o seu afastamento, agora do Figueiredo e, a terceira, de um catolicismo progressis- INEP, e quando é mais tarde exonerado de seus car- ta, inspirado por João XXIII. Assim passou do ataque gos pela ditadura militar. radical ao abraço fraterno dos últimos tempos ao À guisa de conclusão seu interlocutor excepcional. Por ocasião da morte de Anísio, em 1971, escreveu Os dois intelectuais viveram as contradições do LIMA, 1971): catolicismo brasileiro durante o século XX. Ambos permaneceram na fé, defendendo posições distintas ... Quando em maio de 1964 denunciei o “ter- e semelhantes em épocas diferentes. Anísio Teixei- rorismo cultural”, que começava de cima para baixo o ra sonhou ser jesuíta, foi um forte candidato à elite caminho vitorioso do terrorismo entre nós, protestei eclesiástica. Apadrinhado pelo primaz do Brasil, visi- contra a demissão de Anísio Teixeira. O presidente tou os países católicos europeus e foi recebido pelo Castelo Branco que era um homem superior às paix- papa aos 25 anos, quando ainda não havia sequer ões mesquinhas deu-me a honra insólita de um tele- entrado para um seminário católico de formação fonema em que explicava a demissão de Anísio, educa- eclesiástica. Tendo sido proibido de realizar esse dor a quem tanto ele admirava, por “injunções políticas”. projeto, assumiu uma posição radicalmente oposta

9 Alguns parágrafos deste texto foram extraídos de Bittencourt (2009) 10 Vale lembrar que Alceu foi não só um amigo de Gustavo Corção, mas cuidou de apresentá-lo ao público em um artigo altamente laudatório, escrito em dezembro de 1944, quando comenta seu livro A descoberta do outro, Rio de Janeiro: Agir, 1944.

42 Nosso convívio, lado a lado, no Conselho Federal de Ed- LIMA, A. A./Tristão de Athayde. Destinos cruzados. Jornal do ucação, me aproximou então definitivamente de Anísio Brasil, Rio de Janeiro, 15/04/1971 Anísio Teixeira: estadista da educação Teixeira. Não há nada como a presença para dissipar, ou LIMA, H. . Rio de Janeiro: Civi- lização Brasileira, 1978, 212 p. aumentar, as prevenções. Pude então apreciar, de perto, sua MARIANI, M. C. Educação e ciências sociais: O Instituto Nacional personalidade excepcional. Não era só o brilho extraor- de Estudos e Pesquisas Educacionais. In: SCHWARTZMAN, S. dinário de sua inteligência, que a propósito de qualquer (Dir.). Universidade e instituições científicas no Brasil. Rio de pequeno debate alçava voos aquilinos, com supremo de- Janeiro: CNPq, 1982. sprezo por aquelas intermináveis discussões em torno de MARTINS, L. A gênese de uma Intelligentsia – os intelectuais e minúcias regimentais ou mesmo legais, que para ele rep- a política no Brasil, 1920 a 1940. Revista Brasileira de Ciências Sociais,v. 2,n.4, jun. 1987. resentavam a negação do território humano da formação MENUCCI, S.– Gilberto Freyre e a sociologia no Brasil: da sistem- cultural, domínio da verdadeira tarefa educativa. Eram igual- atização à constituição do campo científico, Tese (Doutorado em mente a sua cultura, a sua bondade, a sua despretensão, o Sociologia) –Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, seu alto teor moral, sua extrema sensibilidade. Compreen- 2006.349 p. di que pertencia, e nunca deixara de pertencer, ao núme- PAIM, A. Por uma universidade no Rio de Janeiro. In: Universidade e instituições científicas ro dos membros invisíveis do Corpo Místico de Cristo. SCHWARTZMAN, S. (Dir.). no Brasil. Rio de Janeiro: CNPq, 1982. p.17-96. Mas as revoluções, que devoram os revoltosos, também PINHEIRO, Ana Regina. Instrução do povo sob a proteção do não toleram os revoltados. Quando nossos mandatos ter- catolicismo – militância docente e a expansão da escolarização minaram não foram naturalmente renovados... E cessou, em São Paulo. In: Revista Brasileira de História da Educação, de novo, para mim, a invencível sedução de sua presença. Maringá-PR, v. 15, n. 2 (38), p. 193-219, maio/ago. 2015. Dis- Mas ficou, para sempre, a imagem viva de uma chama ponível em: http://www.rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/arti- ardente e angustiada, que mal cabia na estreiteza de um cor- cle/view/792. Acesso em: 05 jul.2015. SCHWARTZMAN, S. (Dir.).Universidade e instituições científicas po de asceta e que animou um dos maiores e mais desap- no Brasil. Rio de Janeiro: CNPq, 1982. roveitados valores do Brasil contemporâneo. SCHWARTZMAN, S.; BOMENY, H.M.B.; COSTA,V.M.R. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Editora FGV, 2000. Encerram-se aqui os encontros e desencontros entre es- TEIXEIRA, A. Em marcha para a democracia à margem dos sas duas lideranças cujas maneiras de fazer política não se Estados Unidos. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1934 (Data distanciavam no essencial. Nenhum dos dois pensava em presumida). TEIXEIRA, A. Carta a Gustavo Corção. Rio de Janeiro, 23 fev. transformar o modelo de sociedade. Foram liberais, em 1958. Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/ tempos diferentes. Seus distanciamentos devem-se aos CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 58.02.23. grupos que integraram. VIANNA, A.; FRAIZ, P. (Org.).Conversas entre amigos: corre- spondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Referências Bibliográficas Rio de Janeiro: CPDOC; Fundação Cultural da Bahia, 1986. VIDAL, D. (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio Teixeira e Fernando Azevedo (1929-1971). São ARDUINI, G. R. Em busca da idade nova. Alceu Amoroso Lima e Paulo: IEB; CDAPH-IFAN; USF, 2000. os projetos católicos de organização social. 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43 Os escritos jornalísticos de Tristão de do período e seus principais temas de interesse. Athayde nos anos 1920 como matriz interpretativa de sua conversão ao Quando Amoroso Lima estreou sua coluna catolicismo 1 “Bibliografia”, elegeu como um dos problemas centrais a formação de uma cultura nacional. Em seu primeiro Guilherme Ramalho Arduini2 texto, de 17 de junho de 19193, definiu sua atividade jornalística semanal como uma modesta contribuição “O mistério é o grande adversário do para acelerar a formação de uma cultura brasileira homem na natureza.” superior. Em virtude de nosso atraso cultural, seria (Tristão de Athayde, 1923) necessário que um exército de críticos, jornalistas e professores agissem por gerações em um trabalho “Nossa civilização só pode nascer da aliança íntima lento para atingir os seguintes objetivos: e harmoniosa de um espírito científico positivo e um espírito religioso positivo.” Distinguir o que de eterno deixaram os clássicos, (Tristão de Athayde, 1930) admirar sem submissão antigos e modernos, descobrir virtudes e belezas acima das fronteiras Nacionalismo e identidade nacional e nacionalidades, manter o contato com as ideias e preocupações contemporâneas, isolar o fio da As duas epígrafes formam parte de uma série de tradição, sempre de olhos presos na cultura, para artigos de jornal de autoria de Tristão de Athayde e a formação de uma individualidade nacional. E aqui demonstram a alteração no seu modo de enxergar nesta coluna de jornal, ansiosos por trazer a nossa as relações entre ciência e fé. A primeira faz parte pedra ao formoso edifício da nossa cultura, guia-nos de uma argumentação para demonstrar que não a esperança de que nos compreenderão, relevando existe transcendência, apenas fatos desconhecidos a ousadia do empreendimento pela grandeza do pela ciência. A segunda epígrafe foi escrita sete anos objetivo, todos aqueles que amam esta terra e depois da primeira e revela uma visão diametralmente confiam neste povo. (LIMA, 1966, 63) oposta. Ele ainda reconhece a importância do progresso científico, com a diferença de que sua Seu programa de crítica literária exibiu desde o início capacidade estaria restrita ao aspecto material da a marca de um nacionalismo que encontraria, poucos existência. Mesmo quando houvesse a satisfação anos depois, companhia nos escritos dos modernistas, plena das necessidades físicas, a transcendência seria também eles preocupados com a valorização de um fato inelutável da existência humana e a resposta uma cultura que pudesse elevar o Brasil no teatro a ela só poderia advir da doutrina da Igreja. O uso de nações. Existe aqui um claro diálogo com as do termo “positivo” para designar tanto o espírito preocupações sobre a educação expressas ao longo científico quanto o religioso mostra que para Tristão da década de 1920 por livros como À Margem da não haveria contradição entre os dois termos. História da República, conforme já comentado em O desafio deste texto será compreender como trecho anterior deste texto. Sendo a educação o se deu a passagem de uma epígrafe à outra, isto instrumento por excelência de formação de uma é, como ele transita entre os extremos na relação nova elite, era necessário pensar no que deveria ser entre ciência e fé e como tal mudança ajuda a ensinado. Para isso é que se voltavam os olhos de compreender sua conversão ao catolicismo. Será Alceu, que quis fazer de seu trabalho uma espécie de possível também relacioná-la à trajetória de Jackson pauta da cultura nacional. de Figueiredo, matriz a partir da qual Tristão de Athayde e outros membros do Centro Dom O problema de definir nossa identidade se traduziu Vital pensaram seu “caminho para Damasco”. também por uma leitura estética a respeito do tipo A crítica literária de ambos foi uma atividade de poesia produzida no país durante o período. desenvolvida cotidianamente durante um largo Ainda um crítico literário em busca de projeção, tempo e permite compreender o posicionamento Tristão adotou a estratégia de escolher nomes destes autores frente aos outros críticos literários consagrados do parnasianismo como adversários.

1 Este texto é uma versão alterada de parte de minha tese de doutoramento, defendida em setembro de 2014 junto ao Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. 2 Guilherme Ramalho Arduini é doutor em Sociologia pela USP e mestre em História pela Unicamp. Autor de: Em busca da idade nova. Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social. São Paulo: Editora da Universidade de S. Paulo, 2015. [email protected] 3 LIMA, 1966.

44 Sobre Coelho Neto4, Tristão é bastante severo, a espírito de toda uma época” (LIMA, 1966, p. 904). despeito de ser este autor um dos mais vendidos e Escolhendo um conjunto de citações de estudiosos da aclamados no período. Seus escritos são comparados Idade Antiga e da Medieval, Alceu constrói uma imagem a “um brocado suntuoso vestindo uma imagem tosca” idílica da vida social nesses dois períodos ao enfatizar (LIMA, 1966, 79). Seu trabalho exagerado com a os princípios da Ordem e do senso de comunidade linguagem faz perder a naturalidade de estilo, defeito como determinantes para uma boa sociedade. Ao presente tanto em sua produção literária quanto nos contrário de tal imagem, as novidades trazidas pela discursos políticos. Para Tristão, poderia filosofia e pelas artes a partir da modernidade ser um grande poeta se voltasse a escrever sem tanta consagraram a prerrogativa dos indivíduos como afetação e sem a carga excessiva de referências à seres autônomos no direito, na arte ou na religião. cultura grega. Em relação a , o julgamento Alceu se pergunta qual poderia ser a garantia de é mais positivo. Seu livro de poemas Tarde é visto por estabilidade política, de justiça ou de beleza em uma Lima (1966) como o resultado de um bom equilíbrio situação como esta, na qual tudo depende de vontades entre a pesquisa estética e a espiritualização da instáveis por natureza. Haveria segundo ele duas linguagem, capaz de transmitir os sentimentos mais tendências igualmente importantes em seu tempo, sublimes, e o trabalho com a forma. ainda que opostas: a primeira é a de homogeneização, a da construção de uma unanimidade sempre perigosa Nacionalidade, natureza humana e e provavelmente ditada pela força; a segunda é a de vanguardas artísticas desagregação dos laços sociais, pois se cada indivíduo é uma entidade fechada em si mesma, não havia Não foram apenas as correntes consagradas na espaço para a formação de solidariedades. literatura de seu tempo que receberam reprovação, Os defeitos do surrealismo não se resumiriam, nem mesmo as mais duras. A leitura de André entretanto, a seu conceito de sociedade, Breton (Manifeste du surréalisme, que Alceu traduz incluindo sua definição de natureza humana. A como “supra-realismo”) desperta a ira em razão das ideia do subconsciente como aquele que rege o premissas sobre a natureza humana presentes neste comportamento humano consiste para Alceu em texto, para o qual reserva suas piores palavras em um equívoco de consequências altamente nocivas à duas crônicas, publicadas nos dias 14 e 21 de junho expressão artística, entendida como a busca racional de 1925. Elas revelam um tipo de raciocínio sobre pelo belo. A psicanálise havia proporcionado uma a arte e, em grau mais profundo, sobre a existência importante contribuição ao demonstrar a existência humana, que ajudam a compreender as razões que do subconsciente, mas essa descoberta não se levaram Alceu a se aproximar da religião católica e encerrava em si mesma; era preciso seguir adiante a se afastar de Sergio Buarque de Holanda, o crítico e desenvolver um instrumental teórico capaz de literário responsável por levar ao Rio a ideia de um confirmar o domínio da racionalidade na natureza modernismo mais aberto às vanguardas europeias, humana. O texto também apresenta uma visão e em especial ao surrealismo. O afastamento foi negativa sobre o presente, a partir da ideia de uma recíproco, em parte também porque o autor de crise de valores a ser enfrentada em todos os âmbitos. Raízes do Brasil formulava em termos negativos a Tristão toca pela primeira vez no tema e define o contribuição da Igreja Católica na história nacional, problema em termos de desequilíbrio da força do como uma instituição que dificultou ao máximo a poder financeiro sobre as democracias modernas: criação de uma esfera pública autônoma. Para ele, era necessário impor limites aos Revelar uma riqueza não é, de forma alguma, concluir experimentalismos, pois a natureza humana seria pelo seu predomínio. O dinheiro, a abundância de em sua essência racional, e isso era o que deveria dinheiro verdadeiro é uma riqueza, não há dúvida. Mas ser expresso pela arte. Por tais motivos, apresentar o predomínio exclusivo do dinheiro é a plutocracia que uma estética que propusesse libertar o ser humano submerge e desmoraliza as democracias modernas. (LIMA, do domínio da razão parecia a Alceu “uma infecção 1966, p. 909) literária natural, que correspond[ia] ao estado de

4 Coelho Neto (1864-1934) completou seus estudos secundários no Rio de Janeiro, onde destacou-se primeiramente como um abolicionista que escrevia fre- quentemente para os jornais a partir de 1886. Conviveu com o grupo da boemia literária (os parnasianos como Olavo Bilac e Paula Ney) até 1890, quando se transferiu para Campinas. Em 1893, voltaria ao Rio de Janeiro, onde viveu até o final da vida, deixando uma obra monumental de 112 volumes publicados, 5 obras inéditas, 4 não-terminadas e 9 consideradas perdidas. Conforme: COELHO NETO. In: DICIONÁRIO literário brasileiro, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 364-365. - Nas palavras de Antonio Candido, Coelho Neto foi um “escritor probo e laborioso, de uma espantosa fecundidade, capaz de construir romances interessantes, quando não ficavam sufocados pela exuberância da sua prosa, na qual se infiltram elementos ‘decadentes’ finisseculares” (CANDIDO, 1999).

45 O texto revela uma crítica à ordem liberal a partir O espanto que Tristão demonstra na passagem se de um paradigma conservador, de quem lamenta a desdobra em diversas perguntas: como poderia um substituição da hierarquia social determinada pelo membro tão típico da aristocracia cafeeira, que se prestígio pela força do dinheiro. As antigas regras pretendia cosmopolita, querer deixar sua condição eram calcadas em características das personalidades social de lado no momento de fazer poesia? Por que de seus portadores, enquanto as riquezas podem ser afirmar uma barreira completa entre a “autêntica formadas e perdidas em pouco tempo; elas podem literatura nacional” e a tradição já estabelecida, ser reais ou fruto de uma bolha especulativa. Tudo isso como se uma pudesse viver sem a outra? Athayde torna a ordem social algo completamente irracional. enxerga uma contradição gritante entre o convívio Pelo mesmo motivo que critica o surrealismo, Tristão social de Oswald e a postura radical de negação reprova o movimento pau-brasil e especialmente da cultura estrangeira. Esta primeira contradição um de seus próceres, Oswald de Andrade. Lamenta convive com uma segunda, a da afirmação de que um dos melhores talentos da nova geração uma literatura nacional a partir da importação se deixe perder na ilusão de que sua estética de vanguardas europeias. Da mesma forma que representa uma imaginada essência brasileira, quando a cultura nativa precisaria se reconhecer em seu não passa de uma cópia das vanguardas europeias. passado para modificar seu presente, o estilo de vida Alceu condiciona o sucesso do modernismo à aristocrático adotado por Oswald estaria em evidente sua capacidade de dialogar efetivamente com seu contradição com sua postura de ícone da “cultura esforço “de procurar o sangue da terra, o pulso da brasileira”, tanto em sua vertente mais popular raça, o segredo da paisagem” (LIMA, 1966, p. 997) (os caipiras do Cariri) ou erudita (a famosa livraria ao invés de reproduzir fórmulas do Velho Mundo. Garnier, ícone de cosmopolitismo na época).

No bojo das disputas entre os dois, o questionamento Tristão e os vitalistas: primeiras aproximações das ideias literárias se confunde ao do estilo de vida, pois ambos se acusam em momentos distintos de Se o modernismo literário feito por Oswald não serem fiéis na vida ao que pregam em seus de Andrade, com suas inovações indesejáveis, escritos. Os primeiros escritos não prenunciavam não serviria de exemplo, onde ele poderia ser esse desdobramento: ainda em 1922, Alceu fez uma encontrado? Anos antes de assumir a liderança do crítica bastante positiva à Semana de Arte Moderna Centro Dom Vital (1928), Tristão já enxergava em e incluiu o nome de Oswald como um dos talentos seus nomes alternativas promissoras. Neste sentido, promissores. Os Condenados, romance social publicado é necessário relativizar a ideia de rompimento por Oswald em 1922 e comentado por Alceu em estabelecida pelo “Adeus à disponibilidade”, texto 21 de Janeiro de 1923, recebeu elogios de Alceu por paradigmático no qual Tristão anuncia publicamente abrir uma nova vertente de realismo social dentro do sua conversão. É mister perceber que as condições modernismo. para o papel que Athayde exerceria após 1928 Como se torna então possível explicar as foram se estabelecendo no período anterior, em diferenças entre as opiniões do início de 1923 e as uma resposta crítica tanto ao modernismo literário expressas pouco mais de dois anos depois? A resposta paulista quanto à situação política da Primeira a esta indagação pode estar em um comentário República, em franco processo de deterioração. extremamente irônico de Alceu sobre os hábitos Em ambos os casos, o grupo do Centro Dom Vital de Oswald, a respeito do cotidiano daquele que apresentaria uma resposta em afinidade com as pretendeu ser “o descobridor do Brasil”: opiniões de Alceu e seu julgamento cético em relação ao que considerava um excesso de individualismo. Entre as almofadas do seu Cadillac, depois das trufas do Automóvel Club, entre uma partida de mah-jong e a última Em termos políticos, seria este liberalismo exacerbado teoria de Epstein, entre uma carta do Comte Etienne de o responsável pela emergência da questão social. Em Beaumont e o exame dos planos do novo sky-scraper do crônica de 28 de fevereiro de 1921, Alceu (LIMA, Triângulo, o Sr. Oswald de Andrade senta-se à sua secretária 1966) teceu comentários a essa questão a partir do do Ruhlmann, acende o seu cachimbo de Old Bond-Street, livro Penso e Creio. O primeiro comentário de Tristão toma da sua Watermann, invoca os manes de Apollinaire e é sobre o autor, Perillo Gomes, representante de uma do citoyen Vaché e põe-se a ensinar poesia brasileira aos nova geração de pensadores isentos de compromissos caipiras do Cariri e do Garnier! (LIMA, 1966, p. 999). com os grupos favorecidos socialmente. Em uma volta retórica, isto vira justificativa para julgá-lo mais

46 capacitado para fazer a defesa do status quo. O mesmo poderia ser dito de Figueiredo. O raciocínio apresentado acima pode ser lido a contrapelo como uma revelação das origens sociais de Figueiredo e Gomes, distante da elite carioca. O artigo saúda Figueiredo e Gomes como artífices de uma nova era no pensamento social, na qual a resposta à crise social começava espiritualmente, discutindo as bases filosóficas que sustentam o modo de pensar do homem moderno, isto é, através da crítica ao individualismo e ao materialismo. Ela conheceria seu final quando os empresários deixassem de considerar o lucro como a finalidade da economia, ou quando os trabalhadores enxergassem a importância social de sua produção, e, dessa forma, entendessem como a realização de greves era algo nocivo para eles e para toda a sociedade. A exigência de uma mudança de comportamento e valores como um elemento para a solução da crise econômica é um fator importante para entender como, posteriormente, a conversão de Athayde se torna possível. Já em 1921 existem registros em sua produção da busca por uma solução no terreno dos princípios filosóficos para a organização do trabalho, tema que o ocuparia por toda a década de 1930. Portanto, a atração de Alceu pela obra de Perillo Gomes nasce da decisão deste autor de também tratar da questão social como um problema de fé, ou melhor, de falta dela, pois o abandono da crença no Evangelho teria conduzido os proprietários a se deixarem levar por um materialismo que enxergava com frieza o sofrimento provocado em seus trabalhadores. A respeito deste assunto, Perillo declara:

Nós vemos na impiedade a causa do infortúnio de todas as classes e principalmente dos desprotegidos da fortuna. As classes ricas e poderosas libertas do temor de Deus pela ação de um materialismo dissolvente, não cuidam de mais que tirar da vida presente o máximo proveito, a despeito do sofrimento que encontram e que muitas vezes espalham pelo caminho. Assim, o capitalismo, sem o único freio capaz de o dominar e conter nos seus apetites – a religião – explora o trabalho do pobre com frieza e com desdém (GOMES, 1921, p. 64).

O trecho acima reverbera as críticas tecidas na encíclica Rerum Novarum, de 1891, inclusive no que diz respeito ao papel dos empresários de serem igualmente os responsáveis pela crise e os únicos capazes de resolvê-la. Aos trabalhadores restaria um papel diminuído, mesmo que Perillo Gomes e Tristão considerem justas as reclamações deste grupo. Se na parte política os dois se aproximam, a leitura se torna mais seletiva quando se trata das relações entre fé e

47 razão, ou entre a religião e a ciência. A este respeito, que precisa ser melhor esclarecida. Ela pode ajudar Tristão não concorda com o raciocínio de Perillo a compreender o público ao qual se destinava a Gomes, o qual separa a realidade em duas instâncias obra: distante das discussões sobre a filosofia católica hierarquicamente sobrepostas: a ordem natural, da francesa do período e próxima da herança cartesiana. alçada das “ciências humanas” e a ordem sobrenatural, Outros nomes fundamentais da doutrina católica, responsabilidade das “ciências divinas”. Ainda segundo como Santo Agostinho ou Santo Tomás, não teriam ele, da mesma forma como as ordens se sobreporiam, o mesmo impacto de falar a um público escolado as ciências das quais tratam também, e a verdadeira em uma tradição de dúvida metódica. Com isso, ciência empírica adquiriria sua validade a partir do Figueiredo permanece inscrito nos cânones filosóficos momento em que admitisse seus limites, isto é, em já estabelecidos, mas aberto a uma interpretação última análise, o mistério sobre a existência humana. favorável ao projeto de tornar a Igreja Católica a Alceu, pelo contrário, ainda exibe uma visão otimista legitimadora de todas as esferas sociais no Brasil dos sobre o progresso da ciência na dominação da anos 1920. Pascal é considerado como o filósofo que natureza e na expulsão do campo do desconhecido respondia à angústia do homem moderno: para territórios cada vez mais distantes: Pascal e a angústia são o elemento que mais vivamente agita A natureza é a evidência como é o mistério; entre os dois a consciência contemporânea, sendo causa de primeira polos estão colocados os segredos de que, à custa de um ordem, não só da reação espiritualista que vai estrangulando longo e inaudito esforço, vai o homem lentamente o materialismo moderno, mas também da já tão notada se apoderando. A ordem sobrenatural, portanto, é a renascença, senão católica de um a outro extremo, pelo incapacidade do homem em determinar os limites da menos, cristã, entre as camadas intelectuais superiores, em ordem natural. É mais lógico, portanto, atribuir essa ordem todo o Ocidente (FIGUEIREDO, 1922, p. 159). sobrenatural aparente à ignorância fundamental do Homem do que à existência de Deus. O mistério é o grande Tristão e Figueiredo compartilham do juízo de que o adversário do homem na natureza (LIMA, 1966, p. 322). excesso de valor conferido à riqueza material estaria levando o Ocidente a uma crise, da qual já se notavam Alceu admite um contrapeso ao papel declinante os primeiros sinais de resposta a partir de uma nova do mistério: a necessidade de ordem moral e social corrente espiritual. Figueiredo enxerga em Pascal conduziria os seres humanos a buscarem o consolo uma resposta possível para suas próprias indagações. da religião. Portanto, se o Alceu de 1921 é ainda um Tristão reconhece no filósofo o modelo mais sublime homem que acredita plenamente no progresso da de adoção do catolicismo (LIMA, 1966) – que ele ciência, demonstra em contraponto uma abertura próprio viria a reproduzir alguns anos depois de fazer para o diálogo com os portadores de alguma crença esse comentário. no sobrenatural, como é o caso de sua resenha de 09 Outro dos fundadores do Centro cuja obra merece de junho de 1922, sobre Jackson de Figueiredo e seu o olhar atento de Alceu é o de Tasso da Silveira e livro Pascal e a inquietação moderna. Nela desenha- seu livro A Igreja Silenciosa, objeto da análise do se a imagem do filósofo francês5 como alguém que dia 12 de novembro de 1922. Em seu comentário poderia pautar o debate brasileiro de seu período sobre a obra, Alceu demonstra o mesmo movimento e, dessa forma, trazê-lo para um terreno favorável a pendular que estabelece no caso de Perillo Gomes, de Figueiredo. Visto de outra forma, Jackson descreve a aproximação e distanciamento. De um lado, o elogio si próprio ao definir a imagem de Pascal como um à importância de se pensar nas questões religiosas, tal filósofo que pecou por alguns excessos, como o como expresso abaixo: jansenismo6, mas que nunca deixou de acreditar na Igreja Católica como a realidade última do homem. E A um século de dúvida intelectual parece suceder uma era que tal característica se tornou o legado deste filósofo. de fé, dentro ou fora dos limites da natureza. Para nós, que, embora iniciando a era nova, ainda trazemos ou trazíamos A escolha por escrever uma obra sobre Pascal, o espírito impregnado da era anterior, pareciam-nos a quando outros autores eram os temas mais comuns nos escritos sobre doutrina católica, é uma aposta

5 Blaise Pascal foi um filósofo matemático e inventor que viveu na França entre 1623 e 1662. Entre outras coisas, escreveu sobre a conveniência de se valer da crença da existência de Deus e assumiu posturas teológicas que o aproximou do jansenismo (ver próxima nota). 6 “Doutrina teológica e filosófica baseada no Augustinus, obra de publicação póstuma (1640) do bispo holandês Cornélio Jansênio (1585-1638), que negava o livre-ar- bítrio e afirmava que a graça era um privilégio inato concedido a poucas pessoas. O jansenismo floresceu principalmente na França nos séculos XVII e XVIII, tendo corno centro o convento dec Port Royal, em Paris, onde se instalaram os seus defensores mais acirrados. entre os quais Antoine Arnauld, Pierre Nicole e Blaise Pascal. Os jansenistas, que além de tudo adotavam uma moral rigorosa, foram combatidos pelos jesuítas e condenados corno heréticos em várias bulas papais” Japiassú, 2006, p. 113.

48 ironia e o desdém pela ação a inteligência suprema de após a I Guerra Mundial, mas não se restringe ao viver. Vemos hoje, ou pressentimos, que uma certa covardia Velho Continente. Alceu enxerga na oposição entre intelectual é que nos levava a esse ceticismo integral (LIMA, o grupo da revista Esprit (recém lançada na França) 1966, p. 739). e a mais conhecida obra de Bernanos, Sob o sol de Satã, uma tensão a ser resolvida também pela cultura Seis anos antes da conversão de 1928, Tristão sentia brasileira, em formação. De um lado, Esprit enxerga na a necessidade de crer em algo. Mas em quê? Ainda própria relação de forças sociais nascida do final da sem localizar-se no interior da fé católica, Tristão guerra condições para a solução dos problemas do reconhece na aurora de uma geração preocupada capitalismo, a partir de um plano de revolução social com a religião, junto com a nobreza do trabalho e a que também não se identifica ao comunismo. Noves inteligência da ação, a capacidade de salvar o país da fora a indefinição do que seria tal revolução social, sua situação atual de “preguiça intelectual”. Há, porém, persiste o problema de se repensar a sociedade o distanciamento de quem enxerga na religião a francesa (ou, para Alceu, a brasileira) apenas a partir satisfação de uma necessidade humana, sem que isso de um rearranjo das forças já atuantes no presente. signifique crer em algo para além do visível: Em oposição a essa cena, Sob o sol de Satã proporia segundo Alceu “uma transcendência ao tempo e às Não duvido que as religiões possuam a “utilidade” superfícies [...] expressões do novo sentimento trágico fundamental de apoio à moral social, como argumenta o da vida” (LIMA, 1928, p. 144). Sr. Tasso da Silveira em outro fragmento da parte final do Em 1926, Alceu acompanhou com interesse o debate seu livro, mas tudo isso o que indica é que as religiões são no interior do catolicismo francês e reconheceu a obra fundamental do homem sobre a terra, fundamental em Maritain um de seus principais interlocutores. mas humana (LIMA, 1966, p. 742). Naquele momento, a tensão em torno do radicalismo de Charles Maurras e de seu grupo, a Action Française, A religião seria apenas o resultado do desejo dos era o tema central na discussão dos católicos do seres humanos por interagir com seus semelhantes, hexágono. Ao encampar explicitamente a opinião de uma necessidade de sociabilidade, saudável em si Maritain, ele sinalizou que tampouco considerava a mesmo, mas de nenhuma maneira transcendental, primazia do político – o “politique d’abord” de Maurras como desejava comprovar Tasso da Silveira. – como a melhor alternativa do período. Sobre este autor, Alceu ainda comentaria outro Além disso, destinou maior espaço aos escritos livro seu de poesia (Alegorias do homem novo) para dos membros de A Ordem e à maneira como eles identificar no tratamento que ele confere à religião buscavam reinserir a religião católica e a presença da um modo de comparação com o continentalismo Igreja no seio da discussão social. Quando Hamilton americano de Ronald de Carvalho, a busca de uma Nogueira publica A Doutrina da Ordem (Rio de nova linguagem brasileira de Mário de Andrade ou Janeiro, A Ordem, 1925), Tristão dedica-lhe espaço a sedução das coisas do dia-a-dia na obra de Manuel em sua coluna ao promover um diálogo entre este Bandeira. Todas essas seriam temáticas importantes de e o livro de Júlio de Mesquita Filho, A Crise Nacional inspiração dos poetas, mas não constituiriam o cerne (São Paulo, Editora d’O Estado de São Paulo, 1925). de sua atividade. Para tais autores, a religião poderia O cerne da comparação está nas críticas que ambos servir até de musa inspiradora, mas não como seu autores realizam ao sistema político da Primeira elemento definidor. República, com avaliações diametralmente opostas A religião assumiu maior relevância na visão de no que concerne às soluções apresentadas. Mesquita mundo de Amoroso Lima a partir da primeira série pensa que o sistema seria corrigido pela instalação de Estudos, reunindo textos publicados entre 1926 de eleições secretas, as quais contribuiriam para o e 1927. Em meio a uma digressão sobre o tema da aperfeiçoamento de um sistema liberal-democrático, disponibilidade, emprestado de Gide, Alceu afirma: tido por ele como positivo em sua essência. Contra esta opinião, Alceu mobiliza Nogueira e sua A conservação do espírito sempre livre de toda ligação capacidade de apresentar diretamente o cerne da para estar pronto a receber qualquer ideia nova que questão: a substituição das eleições individuais por chegue – essa noção criou uma literatura de artifício e representantes escolhidos conforme sua profissão, la partie de diletantismo que faz os artistas perderem “ fazendo parte de uma estrutura de Estado centralizada éternelle d’eux mêmes ” (LIMA, 1928, p. 141). e forte (LIMA, 1928, p. 316). A alternativa apresentada em 1926 é expandida nas considerações sobre o O comentário acima aparece em meio a uma tema na década seguinte, quando o corporativismo discussão sobre as mudanças no espírito europeu

49 foi apresentado como a última solução possível Há de se levar também em conta uma alteração no para enfrentar uma revolução comunista que, caso perfil dos livros comentados durante o período, com contrário, talvez se anunciasse como inevitável. a diminuição na quantidade de romances e obras Alceu elogia a coragem de Hamilton Nogueira em de poesia produzidas em relação a um aumento no se amparar nos ditames da doutrina da Igreja, sua número de colunas sobre os problemas sociais do guia, para se dirigir às consciências “com uma fé que país. O tipo de obra poderia ser um ensaio social ou não recua mesmo diante de evocações arriscadas e um livro de apologia do catolicismo como o de Leonel uma categoricidade que é a força das ideias-ação, tão Franca, mobilizado para defender a tese de que todo necessárias, por vezes, em nosso meio de inação das o clero deveria compreender que sua missão religiosa ideias” (LIMA, 1928, p. 318-9). Essa é outra inovação incluiria tomar parte na discussão política, educativa e entre os comentários de Alceu no período, uma intelectual do país. A obra de Franca seria a união de vez que ele enxerga como um fato positivo que a uma justa preocupação apologética com um caráter convicção religiosa deste autor seja uma motivação científico, em uma amostra do rumo que a produção importante para sua atuação política. intelectual deveria tomar dali em diante: Esta, no entanto, ainda peca por falta de um senso prático em suas escolhas, pois permaneceria no plano Nossa civilização só pode nascer da aliança íntima e das “afirmações gerais, sem quase descer ao fato, harmoniosa de um espírito científico positivo a um espírito ao exemplo concreto”. A religião de Nogueira é religioso positivo. Um resolvendo os nossos problemas positiva quando oferece uma razão para envolver-se materiais básicos, o outro resolvendo os próprios na solução dos problemas mais urgentes e concretos fundamentos dos nossos problemas do espírito. do Brasil no período, mas não para escapar deles E por isso mesmo é que obras como esta do P. Leonel, sendo como em uma fuga. A solução que Alceu prefigura um tributo admirável pela Verdade em si, são ao mesmo para Nogueira é aceitar a inevitabilidade do regime tempo um esforço necessário, de inteligência e bom senso, democrático no continente americano, mas lutar para pela nossa verdade nacional (LIMA, 1930, p. 30). atenuar seus defeitos a partir da perspectiva aberta pela religião. A conjugação entre a descoberta do que deveria ser essencialmente o país e a preocupação religiosa reaparece então constantemente, como é o caso Os Estudos e a inflexão ao catolicismo da análise do livro de Paulo Prado, Retratos do Brasil, no qual Alceu enxerga o acerto em ver que nossa O tema das soluções religiosas para enfrentar os característica mais marcante como nação é a de problemas do presente ganha força nas séries possuir uma personalidade excessivamente romântica, seguintes de Estudos, como podem demonstrar as desinteressada em preparar o futuro e de uma 8 colunas escritas durante o ano de 19287. Elas chegam imprevidência sem rival . Mas onde Prado enxerga ao ponto de transformar aquilo que Alceu enxerga um problema sem solução e, portanto, o futuro do como crítica literária. Seu esforço deixa de ser a país na sua dissolução em repúblicas menores, Alceu apreciação estética do livro e se transforma em uma acredita que a unidade nacional poderia ser mantida discussão sobre os princípios (explícitos ou não) a partir da intervenção na cena pública da única apresentados pela obra. A partir deste critério, as instituição presente em todos os lugares e aspectos análises de Alceu constituem dois grupos de obras: da vida brasileira desde sua fundação: as capazes de apontar para a natureza espiritualista da sociedade brasileira e para a necessidade de De modo que temos de corrigir pela estrutura exterior os recuperá-la e as demais, que merecem ser descartadas. perigos de dissolução a que nos levaria esse romantismo Sua compreensão do que seria o catolicismo íntimo. E o remédio que vejo para resolver esse paradoxo, determina a apreciação dos autores, estabelecendo é – a volta à Igreja Católica. A solução religiosa, a solução moldes rígidos para a leitura das obras. espiritual, aquela que respeita integralmente os direitos de nossa personalidade ao romantismo e os deveres de nossa nacionalidade ao realismo (LIMA, 1930, p. 187).

7 Esse conjunto foi agrupado em dois volumes e publicado pela editora da revista “A Ordem”. A obra consultada é a original do período e nela não há introdução nem referência explicativa sobre a data e local de publicação, do livro em si e dos artigos. Deste modo, utilizou-se como referência para a data o livro Alceu Amoroso Lima (1893-1983): bibliografia e estudos críticos, do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro. A data de publicação informada pelo livro (1930) é a mesma das obras de Riolando Azzi (Os Pioneiros do Centro Dom Vital), Antonio Carlos Villaça (O Pensamento Católico no Brasil) e Leandro Garcia (Alceu Amoroso Lima – cultura, religião e vida literária). 8 Sua apresentação da personalidade brasileira guarda em certa medida semelhança ao conceito de “homem cordial” tal como formulado por Sergio Buarque de Holanda na medida em que ambos consideram o brasileiro como avesso às coisas do intelecto e irracional em sua forma de administrar as relações sociais.

50 Nesta passagem há uma mudança no próprio conceito E a argumentação de Alceu prossegue no sentido de religião. Ela é de ora em diante identificada de tentar provar como toda a filosofia moderna intrinsecamente com a instituição eclesial católica e estaria amparada no equívoco de considerar o dotada de uma plasticidade capaz de conformar de espírito humano como o centro de tudo o que um lado o perfil da “alma” brasileira, em sua intimidade, existe, erro iniciado com o cogito de Descartes e e por outro, as agruras de construir um país. Alceu perenizado por Kant. Na tentativa de fazer do próprio passa a considerar que os melhores leitores da ser humano a garantia de resposta para as dúvidas realidade brasileira têm o perfil próximo ao de existenciais e morais, a cultura ocidental estaria não Sebastião Leme ou Leonel Franca. Ele deixa em apenas se afastando da religião mas criando situações segundo plano o intenso trabalho de reinterpretação do país feito pelos modernistas, sobre os quais já desumanizadoras. Apenas ao aceitar sua incompletude escrevera suas críticas ao longo da década. e desaguar sua busca na religião é que a humanidade Athayde travou novo embate com Sergio Buarque de poderia devolver a dignidade ao ser humano. Holanda poucos meses antes de ingressar no seio da Igreja, em artigo no qual lhe atribui a vontade de tomar Considerações finais o papel de líder do modernismo, privilégio que Tristão afirmou nunca ter desejado possuir (LIMA, 1928). Em “Adeus à Disponibilidade” foi adotado por Alceu meio a estes ataques pessoais, existe uma disputa como o marco inicial de sua conversão. Após haver sobre os critérios de autenticidade da arte. Sergio percorrido o caudaloso conjunto de escritos no período, é possível enxergar que essa data, assumida se ampara no surrealismo para dizer que a produção simbolicamente por Alceu como sua volta à Igreja, artística deve ser livre de todo empecilho – inclusive poderia ser mais precisamente descrita como o das consciências pessoais – e acusa seu oponente final de um processo que durou alguns anos, a ser de trazer ideias nocivas para o desenvolvimento observado em seus momentos cruciais a partir das da arte ao invocar a necessidade de disciplina na crônicas analisadas. Elas também permitem enxergar produção artística. O embate nacional se espelha algumas das representações de Alceu em meio naquele ocorrido na França, com Sergio evocando o a este processo, isto é, fornece pistas de como ele nome de André Breton e Tristão, os de Julien Benda, enxergava sua trajetória de anunciador do movimento modernista rumo à defesa dos interesses de uma Charles Maurras ou Jacques Maritain, unidos na visão de mundo católica, mas muito distintos em seus instituição tão tradicional como a Igreja. posicionamentos políticos. As críticas literárias de Tristão se enveredam para Bibliografia a filosofia na medida em que a fé religiosa ascende em importância e atinge seu ápice no “Adeus à CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. Disponibilidade”, cujo título antecipa a resposta São Paulo: Humanitas, 1999. de Alceu à escolha entre as duas posturas que FIGUEIREDO, Jackson. Pascal e a inquietação moderna. ele entende serem as possíveis para qualquer ser Rio de Janeiro/Lisboa. Centro D. Vital/Anuário do humano: 1) manter-se sempre na busca de um Brasil/Renascença Portuguesa, 1922. sistema filosófico capaz de explicar a totalidade da GOMES, Perillo. Penso e creio. Rio de Janeiro/Lisboa: realidade ou, pelo contrário, 2) desistir da busca, Anuario do Brasil/Renascença, 1921. tendo em vista a incapacidade de qualquer sistema JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário filosófico de cobrir todas as dúvidas existenciais. O básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, tratamento endereçado a Sergio também se altera 2006. para uma tentativa de conciliação, de demonstrar que LIMA, Alceu Amoroso. Estudos. Rio de Janeiro: Edição a busca é vã. Tristão utiliza sua história pessoal de quem convivera Terra de Sol, 1928 (1 Série). Estudos com a dor e a angústia existenciais para lembrar a ______. . Rio de Janeiro, A Ordem, 1930 (3ª Sergio que a instabilidade onipresente no mundo Série – 2º Volume). também poderia se traduzir em problemas pessoais: ______. Adeus à disponibilidade e outros adeuses. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1969. O necessário, porém, creio eu, é compreender que o mal é ______. Estudos literários. Rio de Janeiro: Companhia esperar por algum sistema. O erro é pensar que a realidade Aguilar Editora, v.1, 1966. se prende em qualquer sistema humano apenas, ou em DICIONÁRIO literário brasileiro, v. 2. São Paulo: Saraiva, qualquer ausência sistemática de um sistema qualquer. E V., que possui, no fundo, o verdadeiro sentido cristão 1969. da vida, precisaria apenas, creio eu, um pouco menos de desespero do homem, para alcançar também o senso católico que outra coisa não é senão a plenitude cristã (LIMA, 1969, p. 17).

51 Dr. Alceu e as muitas faces da modernidade

Candido Mendes*

Não serão muitas as dúvidas de que se possa falar do século XX como o de Dr. Alceu no Brasil, assim como o XVIII foi do Dr. Johnson na Inglaterra. No percurso enorme no tempo, o referencial desmesurado deixa- nos, todos, à sua vista. Dá-nos a trajetória, a riqueza em que o universo da cultura ganha o volume de toda a sua articulação. Implica no volteio primário da relação homem-obra. Sugere a grande metamorfose, em que a pulsação do espírito dita as suas vigências, já como perenidade, à flor da vida. E, em Dr. Alceu, a mais solar dessas escrituras. Sobretudo, permite- nos o fenômeno raro e opulento que repta, pela consciência do seu gesto, a nova densidade do mundo à sua volta. Cumpre a conversão, feita com a lucidez que se impõe até o abandono da angústia. Não é a busca pascaliana da verdade, engémissant. E ganha no excesso de sua conquista: a plena doação da vontade do homem novo tem, como prêmio da entrega sem resto, a reemergência do homem velho. Alceu canônico, libertário da última grande imagem, é o do remate da peregrinação interior, sem fraturas. Do propósito radicalmente cometido. Por isso mesmo, circunavegação. Volta inteira do horizonte vital, que só se logra pela força de gravidade das asceses: “Comecei velho e acabo moço.” Lavrada a liberdade, purgada como só pode fazer a conversão, fruía do desaguar da primeira disponibilidade, mal à vontade, contrafeita. Marcada pela aplicação de um dever de época. Das lições de dança, ao lado de Themistocles Graça Aranha, dos plastrons janotas para a saída com as argentinas, ao “ler, ler, ler”, sorvedouro inútil diante da tentação de suicídio e da água podre divisada da janela do Hotel Danielli, na Veneza de 1913. Na obra, mais o fato que a fatura. Não há que repetir as estatísticas de suas dimensões. Sobretudo porque mal se começa a recensear todo o subsolo da correspondência, a que se somará o dia a dia beneditino das cartas a Madre Maria Tereza. Não é o texto o recado acabado. Mas o vestígio da passagem. A marca operária da presença no evento múltiplo, tantas vezes repetida a conotação da contemporaneidade, a mostrar o passo certo, desafogado, de quem calca o chão mais largo da aventura do situar-se, do testemunhar.

*Membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, da Academia Brasileira de Letras e da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

52 Nesse mesmo limite, o livro não se completa, mas Palco todo, essa biografia sem quebras, para ser o homem se manifesta, com as roupas folgadas de possuída pela liberdade radical. A matéria-prima, sua predileção, à vontade, na palavra que vai adiante. de têmpera certa, aí estava no noviciado da O itinerário da pauta clara nele, tão bem entrevisto disponibilidade. Não o prendia a reminiscência de por ; das marcas, só em breves, da um apego religioso, singularmente rarefeito na prática grandeza. Não se encontra, no que Francisco de Assis caseira. Nem o condicionamento dos reencontros, Barbosa chamou, à argúcia, de um memorandum, malha nem a iluminação de um momento antológico da esquiva às autobiografias ou aos depoimentos para a Igreja, a dar conta de sua mensagem. Ao contrário, posteridade, momentos fortes ou fracos. Tal como é estudando no Collège de France, vai defrontar a face difícil editar-se a trajetória monumental. Nosso não é autoritária do cristianismo transvazado à ordem de o Dr. Alceu dos anos 1980. Nem o que, para alguns, Maurras. Ou, como sua contrapartida, o misticismo teria morrido uma década antes. Deparamos, sim, intimista da poesia de Francis Jammes, da obra de essa vida fluida, sem nenhum interdito e, sobretudo, Joseph Malègue ou do pan-humanitarismo de Daniel sem nenhuma nostalgia. Percurso exuberantemente Rops. Ficava sem vestígio na sua biografia intelectual ostensivo, onde o luxo está na falta de hiatos. Tão a vertente que então já o poderia imantar. A pequeno, também, o anedotário, diante do largo França da primeira década é, também, a da riqueza livro de horas. Nem o noturno, brotável no próprio da especulação de Loisy e Tirrel, contrapartidas Jackson. Nem a angústia de Mauriac. Nem o exílio confessionais chegadas à condenação, mas a dizer de Bernanos. A biografia do prumo sem acidentes, do imperativo sólido, concreto, da ideia de mudança para que a inquirição se desprendesse ampla, sem que Alceu admiraria na construção bergsoniana. Mas, álibis. Toda domesticação e espanto da vida, como saindo da tentação modernista, faltar-lhe-ia, também, liberdade, na mão. o sinal do movimento de Marc Saulnier e do Sillon, Não está mais aí a Casa Azul, mas guardamos a que, na esteira de Albert de Mun e, sobretudo, de camisa do batizado. O pai, um liberal, administrador Ozanam, depararia a ruptura com os modelos da surpreendente das franquias à educação moderna, grande sociedade capitalista de então e os primeiros na outra entrada do século. A mãe, significativamente anúncios de uma “civilização do trabalho” que pouco sentimental, fora da religiosidade de plantão. emergiria finalmente nos nossos dias de Laborem Ambos a lhe permitir o aprendizado flexível e Exercens. inovador: o impromptu humanístico – as aulas Evaristo de Morais salientou claramente o interesse particulares com João Kopke – ao lado da trilha de Alceu pelo distributivismochestertoniano. Mas do establishment. O Ginásio Nacional, hoje Colégio como fórmula, mais que como “andante” de um novo Pedro II, a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais referencial de perspectiva histórica. Se conhecesse, à do Rio de Janeiro, Fausto Barreto, Said Ali, Sílvio época, aquela meditação tão diretamente cavável nos Romero, sem concessões, na fase de dar aula com veios do seu espírito, ter-se-ia, sem dúvida, volatizado o olhar fixado para fora da janela. Também Osório a disponibilidade diante de um pensamento já Duque-Estrada e, em literatura brasileira, Henrique cunhado ao estilo das intelligentsias e da ânsia por Coelho Neto. uma visão global de mundo. Diante dos vinte anos O casamento em uníssono e, nos dois últimos anos, do pseudodiletante então surgido, seria a cunha a comoriência deferida. “Eu agora não vivo, apenas para romper a “ética do descompromisso”. É toda sobrevivo, depois que Maria Tereza me deixou só.” essa latência que vai jorrar mais tarde no Alceu do E as viagens! Difícil para o padrão mesmo da belle segundo após-guerra, a cada vez mais se aproximar époque emular a volta reiterada à sua Paris, guardada do grupo Esprit, no rumo que lhe empresta Mounier, como cenário de fundo contra os espetáculos da Beguin, vindo da Âme Romantique et Le Rêve para alma: Siena e Oxford. O encaminhamento perfeito a denúncia do triunfalismo residual do catolicismo à profissão. O Direito, classicamente vivido como francês, que vencera os Camelots du Roi. E, sobretudo, a crisálida da cidadania da nossa persona pública Jean-Marie Domenach, talvez o melhor intérprete e de logo transposta ao lugar social do nosso do que seja o genuíno pluralismo cristão do meio protagonismo de ideias: essa especial militância século, reconhecível pelo rigor das opções, mais que de nossa cultura no jornalismo, sua e de seus pelo debate dos modelos de ação, cujas distinções imediatos companheiros de geração na ABL, tenderiam, dentro da doutrina social da Igreja, a Austregésilo de Athayde ou . desbordar para uma nova “questão dos universais”. A aula, a tertúlia, a conversa, mais que a polêmica, fincavam em Alceu o grande horizonte, e nãoa

53 viseira para o combate das ideias. E é como o instigar nacionalista dos textos de 22 que encontra Tristão de da inteligência que Alceu verá, já, no convite e no Athayde a maior afinidade para chegar à exclamação, repto de Graça Aranha, o papel a cumprir na volta quando a busca depara uma resistência nova de ao comprometimento intelectual. Esta aconteceria mundo. Romancista ao norte! Anúncio da descoberta ao fim da etapa em que a nossa atual sociologia de José Américo, na bateia daquela realidade em que do conhecimento reconheceria a mais perfeita começa a se mover o Brasil de fato sobre toda a funcionalidade da estrutura econômico-social do construção em que o reverberava a primeira trintena país; a perda de todo o chão para que se assente o do século. trabalho de uma vanguarda social; a época em que Não há o “cinquièmepilier” à gauche da Notre Afrânio Peixoto poderia, tranquilamente, referir-se à Dame claudeliana, no Alceu que confessa e recebe literatura como o sorriso da sociedade. a comunhão a 15 de agosto de 1928. A démarche Tinham-se, então, absorvido as primeiras fissuras a exaustiva de quatro anos fez-se por carta, como se o permitir a emergência, exatamente no seio da luta roteiro da descoberta do cristianismo, mais do que a entre a Igreja e o Estado, de uma primeira geração volta, reflexa, viesse da vera viagem da alma só e não confessional e questionadora entre nós: a dos quisesse se perturbar da imediação vital da presença católicos ultramontanos, nos anos 70 do século XIX. de Jackson de Figueiredo. A trama dessa interpelação A Questão Religiosa surgia à margem de qualquer em crescendo ficará na nossa história das ideias ruptura intrínseca da noção de “ordem social”. também como o contraste perfeito de famílias do Desbordava-se por regularidade maior. E, no seu espírito. Do extremo cuidado da interlocução de um conflito com o Império, fugia das pautas tradicionais à imposição dos fiats do outro. Do percurso portado das intelligentsias católicas, suas contemporâneas no pelo distinguo das críticas ao das assunções pletóricas. século XIX. Não surgiam das questões mistas; da Do debate ex-post. A decisão final não se pressente licitação de autonomia religiosa, no campo do ensino como um clímax argumentativo. Mas, pela evidência ou do casamento, ou da procura de justiça no regime do convite ao compromisso, que o reacionarismo de trabalho. Mas na luta contra as contradições limites e a violência do catolicismo jacksoniano, provando em que o padroado levara o poder do imperador a sua coerência a cada instante, levavam a raias de a ver indisciplina episcopal em matéria de estrita uma superdeterminação. administração dos sacramentos, no próprio imo da É a resistência desse enlace que poderia municiar, estrita e plena vida da Igreja. única, a descarga da disponibilidade de Alceu. Colhia-a Ficaria no tempo o grande dissenso de Zacarias de como ação para ser exatamente o suporte do seu Góes, Candido Mendes ou Ferreira Vianna, na defesa sentido de liberdade. Não é a quebra da vida pela de Dom Vital, levado ao cárcere na Fortaleza de imposição da disciplina, mas a fome do desempenho São João. No pleno fastígio republicano, refazia-se brotada do aprofundamento da ascese que marca a força do expletivo: católicos e monarquistas. Por o rigor desapaixonado e quase protestante da ida isso mesmo, de logo, no cânone de , a Leonel Franca para a entrega profunda. E para o a palavra necessariamente panfletária, a defesa de que lhe virá, daí, “por acréscimo”. Faz-se a conversão brilho e desassombro, já que prescindível, nesse “ver de Alceu dessas aventuras do espírito que aceitam o o mundo”, toda a análise crítica ou interpretação. Daí, repto, até mesmo com o risco contra a natureza da por certo também, e em contracorrente, a sedução pulsão, do estilo e da trajetória vital. de Alceu por Eduardo Prado. Tão clara como o que A exemplaridade do gesto – pelo auto despojamento dizem os projetos de estudos de premonição, perfeitos – abria o largo limiar para a volta do homem velho no porque finalmente abandonados – perfilamento cristão novo; para o desatamento final, no defluir de in petto –, como tão sutilmente nos sugeriu tantas décadas do espírito libertário, sobre a tranquila Josué Montello. e radical “aceitação da ordem”, que vira, através de Conduzirá a conversão o amadurecimento da náusea Jackson, como o crivo do destaque da mouvance da disponibilidade, por sobre toda revelação súbita real da alma. Surgia para o novo combatente como ou por sobre todo impacto fulgurante. A exigência do um silogismo a perda do vínculo entre a Igreja e o compromisso vinha ainda leiga, na batalha literária a conservadorismo. Seu sequitur impunha os deveres eclodir da Semana de Arte Moderna. A receptividade de uma militância, levada à responsabilidade exaustiva imediata não trava, em Alceu, a valoração crítica: o de um proscênio. Da liderança indivisa, que lhe quanto rompia, finalmente, a mirada desengastada; e o requeria Dom Leme. Da imagem ostensiva da Igreja, quanto o modo, ainda prosélito, de 1922 ganhava um assediada pelo fascismo entre as duas guerras, e do metassentido e mensagem. É dentro da componente feito corporativo em que, naturalmente, viria à luz da

54 Ação Católica. Não se furta o convertido ao risco Integral e, a seguir, do vieuxlaïc que escreve o Paysan de nenhuma trajetória esperada. Da morte do crítico, de la Garonne. que pressagiara Mário de Andrade, à saudação como Nos seus últimos anos, o autor dos Degrés du Savoir “soldado de Dom Vital”, que lhe endereça Jackson. revisita todo o percurso da sua Igreja e, após o Porta todas as marcas da ordem o arranco do leigo concílio, interroga-se, já, dubitativamente, do que possa primordial – Alceu Amoroso Lima. realizar uma atividade política, autêntica e vitalmente As conversões, na verdade, têm as suas portas menores cristã, nos movimentos concretos da história. Seria e a grande via. É o que vê tão bem Arnold Toynbee, o Alceu da mocidade das suas últimas décadas que ao discutir os grandes movimentos de “retirada e iria, cada vez mais, na esteira da Gaudium et Spes, retorno”, em que as trajetórias pessoais fertilizaram fazer da busca incessante dos “sinais dos tempos” momentos históricos pela radical translação de a lição incitadora à permanência e a certeza dessa sua vida interior. Mas, um é o enriquecimento que encarnação. E do laço que só entrega o compromisso vem da pauta nova de registros, em que se verte no que é, para o cristão, o engaste de cada hora: a a nova liberdade conquistada pela purgação, pela que só sabe e porta essa presença, como penhor da reinvestidura da vida a um resgate integral de liberdade. transcendência. Idêntica à de Maritain, desenvolvia-se, Mais raro é o adensamento chegado à retorsão. À no plano nacional, a trajetória antológica de Gustavo lenta volta desse homem velho que se apossa do Corção, que terminaria no mesmo movimento novo e que pode até permitir-se, pela provação da contrário ao de Alceu. Contrapunham-se esses grande coerência de Alceu – pelo profundo, alegre e percursos, afinal, simetricamente opostos, diante irrecorrigível mergulho nos deveres da mais generosa da mesma força de uma entrega interior. Corção militância católica dos 30 –, resgatar o impulso viveria a vocação pluralista dentro da Igreja, de início, primordial pela perene e aberta confrontação com como um membro da Resistência Democrática, de o oposto que revestia o seu papel. É essa a aura e a onde provinha, para abraçar, afinal, o espírito radica paz de festa da última trintena de Alceu, prenunciada da “cruzada”. Tal como Alceu se filiara à Igreja da desde o colapso do Estado Novo; pressentida na Ordem, para trocá-la pelas liberações amplíssimas negativa final ao endosso do integralismo, pela Liga já prenunciadas na luta contra a queda de Vargas. Eleitoral Católica, que chefia em 1938, e na conversa Nessa imersão no mundo, trocava a perspectiva de agônica entre Plínio Salgado, Tristão e Leonel Franca. uma instauração na ordem pela presença no seio do E trabalhada na descoberta do Humanismo Integral e evento. Mas as idas e vindas de seu empenho não da Democracia Cristã, de Maritain. Deixada, já, numa fogem ao primeiro registro da conversão; dão-lhe anotação de itinerário, proclamada no vigésimo dimensão plenária contra o arroubo do dissenso. aniversário da morte de Jackson, ao referir-se às Ao invés da transfiguração radical do mundo pela conotações do modelo político que propugnava para entrega franciscana, a tarefa, sim, de ajudar e proteger o nosso tempo, na sua tríade, de “República”, “católica” a vida e a florescência das estruturas da Cidade dos e “democrática”. Mais e mais o terceiro termo Homens. Divisava-se nos dois rumos, como tão bem dominaria a articulação, a fazer do confessionalismo sublinharia Monsenhor Lalande, assessor da Comissão muito mais do que uma determinação de regra, na Pontifícia Justiça e Paz, a diversidade de riscos em que Cidade dos Homens, a inspiração do que pedem incorre o compromisso político do cristão. E, diante da o tempo e a Igreja peregrina à ordem do verbo. É aceleração história dos nossos dias, seriam maiores as essa a trajetória sem falha em que a disponibilidade perspectivas de que se bloqueasse a palavra inserida se aperfeiçoa em liberdade. Cria-se como um fio pedida ao laicato pela Gaudium et Spes, do lado do interior entre o abandono de toda instalação, no integrismo, que do espírito libertário. A perda da que fosse a eficácia opulenta de um testemunho, em escala da mudança exigiria mais – intuiu-o Alceu – favor da voz da premonição e depois da denúncia. da disciplina do compromisso social do cristão. Mas Ao mesmo tempo, de dessolidarização e trilha segura compensava-se por esse quase sacramental em que de caminho. Operado o salto, caucionava-se o longo se constituía ad gentios o desenho largo no tempo de recuperar do primeiro libertarismo, a se repor em uma Igreja encarnada. Toda a instalação no temporal tempo e a absorver na mirada cada vez mais ávida seria reptada pelo apelo a todos os homens, para a de futuro todo o conteúdo dissonante, portador da construção das dimensões da paz e da prática social provação de base. Nessa coerência de fundo, que, trazida à tarefa do laicato. Alceu penetra-a de sua inclusive, não vem à consciência de Alceu de 1930, presença na Comissão Pontifícia Justiça e Paz, à escala dá-se o encontro e também o destaque de itinerários do seu espírito libertário, desatado. Alceu, o patrício entre nosso pensador e Maritain do Humanismo da suavidade do convívio, mas também da sua secreta

55 etiqueta, pôde, como ninguém, trazer para a sua que o levou, inclusive, ao mutismo dos seus últimos Igreja o grande sentido das hierarquias e das naturais cinco anos. distâncias sociais, nas quais o laicato encontraria não Alceu foi aluno de Sílvio Romero, a quem vai dever só o seu lugar, mas também, da mesma forma ciosa e a noção da “consciência epocal”, autor da primeira nítida, a sua defesa. É o que lhe daria inserção única história da literatura brasileira a desmontar o mito para compreender a autonomia desse mesmo leigo apressado de Machado de Assis e a proclamar a na Igreja. Nada adjutório da sacristia. Nem manu longa pobreza da crítica brasileira, a de Araripe Júnior e de da tarefa especificamente episcopal ou clerical. Esse o José Veríssimo, objeto da investida do sergipano, nas Alceu da exemplar colaboração com Dom Leme e suas “zeverissimizações”. também suscetível de sustentar a toma, sua, da palavra, No advento da nossa modernidade, Alceu avança um na matéria em que lhe reconhecia o munus próprio caveat básico, enquanto entende que o movimento à Doutrina Social, e viria a proclamar João Paulo II, dos anos 1920 era essencialmente paroquial e como específica e naturalmente leigos, o exercício do paulistano. Dizia: “Todo paulista é um regionalista; é compromisso político do cristão. muito difícil ter um paulista nacional.” Surge, desse Cosmopolita, o Alceu do currículo perfeito da viagem horizonte, a ideia de um modernismo no Rio de desde a França anatoliana, do Hotel Montalembert Janeiro, na cooperação de Alceu com Tasso da Silveira do após-guerra, como do Majestic do primeiro e Cecília Meireles, na criação da revista Estética. conflito; da União Panamericana; do Prêmio Maria Mas Alceu vai à visão prospectiva da nossa cultura MoorsCabot; de Van Istendal, de Vitorino Veronese, pelo impacto de Graça Aranha, na sua conferência de de Thomas Merton. Filtra-o, entretanto, cada vez 1922, “O Espírito Moderno”, quando rompe com o mais, no grande universalismo. Paulo VI proclama-o convencionalismo da ABL e proclama: “Isto é a casa como modelo de católico para o nosso tempo, fora das múmias; é o túmulo dos medíocres; é a casa do dos quadrantes ou, inclusive, da prisão, dentro de um não-ser literário.” A frase vai à balbúrdia, levando os meridiano de latinidade. Esse cânon, ao mesmo tempo conservadores Coelho Neto aos ombros. E Alceu é referido ou universal, seria a tônica permanentemente um dos que erguem Graça Aranha. E todo confronto buscada por Alceu, no reconhecer, nesse seu profundo – salientaram os protagonistas – passou-se diante da enraizamento da Igreja na história, o quanto ficava absoluta imperturbabilidade do presidente da ABL de a dever a uma determinação ainda ocidentalizante então, . do cristianismo. O depoimento, nas Memórias Improvisadas, assentaria A interrogação fundamental da conversão de Alceu toda a envergadura da conversão de Alceu, sem dúvida, é de sabermos como conciliará o compromisso do única, no quadro da nossa cultura. Entendeu-o, quase católico aos reptos do crítico, no contexto de sua profeticamente, Jackson, convencido do seu impacto época. É essa a do rigor extremo da confessionalidade, antológico, no quadro da recristianização da nossa quando Dom Pedro Sinzig interdita aos crentes 2.345 intelligentsia de então. E Alceu já entendido, então, obras, num verdadeiro novo Syllabus, e num momento como primus inter pares. Mas faltava a autenticação do antológico do rigorismo católico. Na ocasião, Mário e percurso crítico de Alceu. É o momento da aparição Oswald de Andrade arguiam como seria possível a um de Leonel Franca, “o padre que me faltava”, no auge pensador manter-se católico e garantir a neutralidade da sua produção intelectual, no grande confronto da sua crítica. com José Oiticica, no debate do socialismo, após a É não se dar conta de que Alceu nutria-se da visão dogmática marxista do século XIX. de mundo de Bergson, tanto no impulso do élan É um Alceu que transpõe para a fé a sua militância e vital, na trama da modernidade, quanto, inclusive, a sua disciplina, na cega obediência a Dom Leme e a na exposição a situações limites, que levou o nosso toda a sua visão de um catolicismo restaurador. As pensador a seduzir-se com a viabilidade do suicídio, Memórias marcarão esse meã culpa único de nosso em Veneza. crítico, ao aceitar a Universidade do Distrito Federal Nesse telão de fundo, Alceu depara, em plena e aí dispensar, a partir de Anísio Teixeira, todos os Semana da Arte Moderna, o repto, numa condição grandes educadores da Escola Nova. de mudança, entre a ruptura radical e a mantença A contemporaneidade de Alceu, na sequência desses da continuidade dos referenciais críticos. Ecoava a mesmos anos 1930, nos dá o seu contraponto com convocação de Oswald de Andrade segundo a qual,se Plínio Salgado, na defesa da noção de totalidade ser um maníaco da parcialidade é preciso, que a gente histórica contra o pecado fundamentalista, e na crítica tenha a coragem de ser parcial para poder romper. antológica ao chamado “Movimento da Anta”, como Oswald, nessa sequência, iria à ética do excesso, bordão literário do credo integralista.

56 A situação limite da consciência crítica de Alceu vai à do espírito para o Brasil de entre as duas guerras. É decepção com Gustavo Corção. O resíduo beletrista o que permitia ao confessionalismo cristão penetrar ou os humanismos fáceis da belle époque levariam no nosso patriciado e propor-se, como alternativa, Alceu à busca corretiva, no fascínio inicial, com um uma sofisticação agnóstica de tantos grandes pensador vindo das matemáticas, da física, e da regra espíritos abertos à reflexão já sistemática sobre a de pensar de um engenheiro, que vinha à intelligentsia nossa realidade. a partir da “Esquerda Democrática”. Corção põe em Ao lado da Ação Católica surge a Ação Universitária causa, inclusive, a nossa epistemologia tão precária da Católica, portada por essa nova paixão de enlace nossa maturidade cultural nascente. entre a crença e a vida, a levar ao convento a A analítica de Corção tornar-se-á impenetrável primeira grande leva de discípulos do Dr. Alceu, Dom à contextualização da mensagem, no contraste Clemente Isnard, Dom Basílio Penido e Dom Marcos, flagrante de Alceu, e ao imperativo pluralista de trazendo a fertilização beneditina a tantas formas de leitura dos “sinais dos tempos”. Corção, ao contrário, renovação pastoral ad extra, do trabalho diocesano vai à polarização, ao “perigo comunista” e ao apoio ao ao plantão da palavra e da poesia, na grande mídia. governo militar, inclusive, com a delação de católicos Esse monaquismo, a que viria se reunir Madre Maria levados à tortura. Tereza, transformava-se na parusia secreta da entrega E não é outro esse contraponto com Alceu, na de 1928. Nessa pulsão, cada vez mais desatada de mesma época, condenando o regime e avançando uma militância que se interroga e interpela, Alceu na reflexão do compromisso inevitável da Igreja com depara a pergunta: a Dieuest-il à droite? É essa a época a democracia, o que, para além da sua performance em que os sucessos do franquismo levariam Tristão política, representa a sua garantia com os direitos a dessolidarizar-se de todo triunfalismo da afirmação humanos, e, por aí mesmo, sua marca-chave frente temporal da fé. Descerrava-se o caminho claro dos aos novos “gentios” de nosso tempo, dos regimes pontífices pós-conciliares e da promoção, no tempo, de seclusão social, senão– tal como demonstra o do homem todo e de todos os homens. Liberava-se, aí, Estado Islâmico, Isis –do literal abate dos “gentios” do de saída, do espírito da cruzada, tão suscetível nos anos nosso tempo. 1930, de impedir a inteligência confessional a tomar Ao lado do manifesto e da inteligência combatente, já partido na polarização entre o marxismo e as direitas começava, à mesma época, a porejar o homem velho restauradoras. E, dentro de um horizonte pastoral nos rumos ganhos pelo Centro Dom Vital, à busca surgido em reação às perdas sucessivas de classes e do exercício do grande questionamento cristão, à luz nações no seio da sociedade moderna, naturalmente do nosso tempo. E exatamente na linha que viria a se se levantam os toques de reunir em torno da defesa transformar em rotina da nossa aventura do espírito de uma exigência de cristandade. Entender-se-á o seu após a Gaudium et Spes. Era o que representava a impacto e a sua sedução num país que já se aprestava exposição no nosso catolicismo às vigências de sua à gratificação de maior nação católica do nosso época, ao trazer Alceu ao Brasil, entre tantas vozes tempo. Definiam-se aí todas as condições para o da contemporaneidade, Robert Garric, das Equipes conforto das coisas e da tranquilidade da consciência. Sociales, Maritain, ao fim dos anos 1940, e Padre Lebret E mais avançam esses anos 1930, mais a ação de Alceu e o seu movimento Economia e Humanismo, capaz passa a discrepar do que seriam os formulários e os de sintetizar as antigas propostas chestertonianas à sucessos dessa sideração do cristianismo. Combate escala da análise que queria lhe emprestar o mais e impede, com Dom Leme, a criação de um partido ambicioso marxismo de então. católico. Demoraria o entendimento do impacto O Centro Dom Vital crescia no contributo dos dominantemente negativo da Liga Eleitoral Católica, a intelectuais conscritos por Jackson, a construir, se manifestar pelo poder de veto, diante da presença por sobre o seu específico comprometimento, da Igreja no mundo dos homens, ungida pelo espírito a aura da grande temática do tempo, trabalhada, de promoção. sobretudo, através das profundas vivências literárias: O remate de todo esse profetismo vai aos escritos a de Hamilton Nogueira, com Joseph Conrad; a do dos últimos dias; ao sorriso só da alegria dos justos e contínuo exercício machadiano de Barreto Filho; às mãos do cuidado invisível; à voz certeira do tempo a de Mauriac, por Augusto Frederico Schmidt. em que nascem as bem-aventuranças. No que pôde Configurava-se como pano de fundo das reuniões Alceu nos dar, como ninguém, justamente no que do Casarão da Praça XV a ideia de um “Centro sabe e cumpre a vida, se a corta, toda, o gume mesmo Fabiano”, em que a reciprocidade das perspectivas da liberdade. trazidas ao debate e a exposição do pensamento confessional às mais rigorosas correntes de reflexão de seu tempo cunhavam um novo e inesperado lugar

57 Chesterton e a intelectualidade O catolicismo vivia no século XIX situações muito católica brasileira diferentes na França e na Inglaterra. A primeira era marcada pelas consequências da Revolução Alessandro Garcia da Silva Francesa, do positivismo e do secularismo. A França era o país onde os ideais iluministas mais avançavam O objetivo deste artigo é tornar perceptível e o catolicismo, outrora hegemônico, perdia a importância da obra do autor Gilbert Keith progressivamente boa parte de sua influência. Já na Chesterton para o pensamento católico desenvolvido Inglaterra, a situação era um tanto quanto diferente. no Brasil, de maneira especial aquele formulado pelo Desde a reforma anglicana, os católicos sempre foram intelectual e líder católico Alceu Amoroso Lima. minoria na sociedade inglesa, com uma influência Como bem advertiu o historiador Quentin Skinner1 muito pequena no cenário cultural. Apenas no século , estudos sobre influência são por demais difíceis e, XIX, com uma grande migração de irlandeses, o quando não são bem conduzidos, podem fazer com número de católicos aumentou e a cena religiosa que atribuamos uma relação causal onde ela não sofreu uma mudança. Ou seja, apesar de tudo, a Igreja existe. Além disso, há que tomar o cuidado de não vivia na Inglaterra um momento de expansão. tratar o ator que supostamente recebeu a influência Estes contextos sociais distintos levaram a reflexões como um mero repetidor. Em toda recepção de ideias teóricas distintas. Na França, o conservadorismo há uma reelaboração delas em virtude do contexto político e a crítica à revolução francesa marcaram intelectual e social onde aquele que é “influenciado” muito as reflexões dos católicos no século XIX. Nas está localizado. As questões disputadas podem ser questões de cunho mais filosófico, as grandes disputas outras e outro é o horizonte de expectativas. Dado se davam em torno do materialismo, do positivismo o escopo deste trabalho, muitas destas questões e do liberalismo. metodológicas não serão desenvolvidas. Isso não No caso inglês, a cena é outra. O grande intelectual significa, no entanto, que estão esquecidas. São católico do século XIX na Inglaterra foi John Henry colocadas logo no início justamente como que Newman. Newman não discute primeiramente com um sinalizador com função de lembrar os limites positivistas ou com o materialismo da modernidade, das ideias aqui expostas e do caráter exploratório mas com a tradição anglicana. Suas principais questões destas páginas. giram em torno do tema da evolução do dogma e do Com as limitações apresentadas, cabe agora ressaltar a assentimento humano a uma crença religiosa. O fato relevância de um estudo sobre Chesterton e o Brasil, de ser um converso oriundo do anglicanismo explica ou sobre Chesterton e Amoroso Lima. A importância muito suas prioridades. de um estudo, ainda a ser feito, sobre a recepção Uma característica distintiva da tradição intelectual ampla de Chesterton no Brasil é grande na medida cristã (e não apenas católica) inglesa é a ênfase em que tem condições de lançar luzes inéditas sobre no elemento imaginativo. Os cristãos ingleses, em a produção intelectual dos católicos brasileiros. Em sua crítica à razão moderna, não buscaram apenas grande parte dos estudos sobre autores brasileiros demonstrar outra concepção de razão tida com mais ligados à Igreja Católica nas primeiras décadas do ampla como fizeram os neotomistas franceses. Sua século XX, normalmente dá-se grande ênfase aos estratégia foi apresentar a imaginação como um outro diálogos com a tradição católica francesa. Essa postura instrumento fundamental de percepção da realidade. não é arbitrária e decorre da França ter sido durante muito tempo a maior referência para a intelligentsia 1 – Chesterton e a intelectualidade brasileira. Some-se a isso o fato de que no fim do século católica brasileira XIX e nas primeiras décadas do século XX, ocorreu um grande movimento intelectual no catolicismo Dos autores católicos ingleses, Chesterton foi o que francês. Tal movimento foi mesmo denominado por mais fez sucesso no Brasil. Esse sucesso, contudo, alguns como renascimento literário católico. acaba por não ser tão perceptível quando se observa Apesar de sua importância, a intelectualidade católica o cenário atual. Boa parte das principais obras de francesa não foi a única fonte mobilizada pelos Chesterton não era traduzida até bem pouco tempo2, católicos brasileiros. Uma das mais importantes foi a poucas referências a ela são encontradas na literatura tradição católica inglesa. contemporânea, praticamente nenhum trabalho

1 SKINNER, Quentin . Visões da política: sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005. 2 Para tratar a situação com justiça, cabe dizer que nos últimos anos muitas das obras de Chesterton têm sido traduzidas para o português pela editora Ecclesiae. Isso, no entanto, não altera o fato de que o autor permanece, em grande medida, pouco lido e comentado aqui no Brasil.

58 acadêmico o tem como objeto e, mesmo entre os e é tido por este como a pessoa responsável por escritores católicos, ele é muito pouco citado. sua volta ao catolicismo e como aquele que marcou Apesar desta situação, Chesterton durante anos seu posicionamento ideológico. Quando foi referência fundamental para aqueles que, a gratidão tributada a Chesterton é igualada àquela provavelmente, foram os intelectuais católicos mais que tem para com o amigo brasileiro, Amoroso Lima influentes do século XX no Brasil: Alceu Amoroso demonstra sua dívida intelectual e existencial para Lima e Gustavo Corção. Estes dois autores foram com o autor inglês e assume a importância deste para presidentes do Centro Dom Vital e durante anos a visão de catolicismo que cultiva em seu retorno à cultivaram uma forte amizade. No período que Igreja Católica. se seguiu ao Concílio Vaticano II e ao golpe de 64, A partir do contato com declarações tão os dois escritores romperam relações e, embora entusiasmadas de intelectuais consagrados e ao saber ambos continuassem católicos, adotaram posturas que ambos tributam suas conversões à obra de G.K. políticas totalmente diferentes. Apesar das diferenças Chesterton, quase que espontaneamente surge a ideológicas e na forma com que se relacionaram com seguinte indagação: o que esse autor trazia de tão a Igreja, tanto Corção quanto Amoroso Lima dizem persuasivo e encantador? Ou, em outras palavras: ser Chesterton uma figura fundamental no processo o que havia de tão atrativo no catolicismo tal qual que os levou a aderir à fé e à militância católica. difundido por G.K. Chesterton? Em “A Descoberta do Outro3”, autobiografia Essas são perguntas difíceis de responder, afinal publicada em 1944, Gustavo Corção diz o seguinte demandam um levantamento amplo do contexto sobre Chesterton: intelectual e religioso da primeira metade do século XX, tanto no Brasil quando na Inglaterra. Dentro dos Chesterton trouxe-me uma libertação, uma recuperação limites deste artigo, apontamos alguns elementos para da infância, encheu-me da confiança que mais tarde, pela uma resposta mais ampla. Para pensar tais elementos misericórdia de Deus, seria vestida de Esperança; Maritain cabe um rápido olhar tanto para a forma quanto para trouxe-me a retificação da inteligência e encheu-me da o conteúdo do pensamento chestertoniano. outra confiança que se revestiria de fé. O primeiro, creio Para uma melhor compreensão da estrutura formal que foi mais decisivo porque atingiu o nervo mais ferido dos textos de Chesterton, é preciso lembrar que ele e sensível, tocando-me o senso lúdico: com ele brinquei não foi um poeta ou romancista por profissão, mas as horas mais felizes de meus quarenta anos, quando um jornalista. Escreveu artigos sobre o que ocorria aparentemente, pela força dos acontecimentos, eu no momento, escreveu resenhas sobre os livros de deveria estar acabrunhado de tristeza. Ninguém conhecia sucesso de seu tempo e participou ativamente das meu júbilo, ninguém suspeitava a felicidade que eu polêmicas públicas. Sua primeira grande contenda escondia com medo e avareza. E, muitas vezes, entrava deu-se durante a Guerra dos Boers (1899-1902) pela noite adentro, lendo até não poder mais, e amanhecia quando se colocou contra a posição do governo abraçado ao livro. inglês. Também é sugestivo que seu primeiro livro tenha por nome “O Defensor” e que tenha capítulos No caso de Alceu Amoroso Lima, o peso da obra do com os seguintes títulos: “Em defesa do absurdo”, autor inglês pode ser desprendido do seguinte trecho 4 “Em defesa das coisas feias”, “Em defesa da veneração de uma carta endereçada a Jackson de Figueiredo pelos bebês”, “Em defesa do patriotismo”. em 1927: Essas suas defesas andam lado a lado com suas acusações. Desde o início de sua carreira, Chesterton “É toda uma revolução em meu espírito. E que devo tanto a foi um polemista e não há como negar que a polêmica você, meu querido e corajoso amigo, depois de Deus. Você marca sua forma de escrever. Sempre está em e Chesterton foram os meus dois inquietadores. Ontem combate, seja defendendo ou atacando. Defendendo escrevi um artigo Ser e Vir a Ser, pensando que nunca o aquilo que julga ser o senso comum e atacando a teria escrito se não tivesse encontrado a Chesterton e a modernidade, que pensar estar afastada de tal senso. você e se Deus não tivesse querido me iluminar”. Somado a esse caráter combativo, o bom humor é outra característica do pensamento chestertoniano. Quando Alceu Amoroso Lima aproxima Chesterton Chesterton parece voltar contra a modernidade a de Jackson de Figueiredo não faz algo trivial. Jackson ferramenta que muito foi utilizada contra o cristianismo: travou com Alceu um diálogo epistolar durante anos o riso. Suas páginas trazem sempre gracejos e mesmo

3 CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. Rio de Janeiro: Agir, 2000. P. 113. 4 CORRESPONDÊNCIA entre Alceu Amoroso Lima e Jackson de Figueiredo. Tomos I. Rio de Janeiro: ABL, 1995, p. 114.

59 quando condena o mundo moderno, faz com que conversão ao catolicismo em 1923. E, além disso, a sua condenação torne-se uma espécie de exposição intelectualidade católica não é um bloco monolítico ao ridículo. Seu humor é em grande parte das vezes onde todos cultivam exatamente as mesmas ideias. construído a partir de paradoxos. A obra de Chesterton é enorme. A coleção de suas Tanto o uso do riso (humor) quanto a polêmica obras em inglês chega a 37 volumes, sendo que grande estão presentes em praticamente todos os livros de parte do que escreveu ainda não foi compilado em Chesterton. Como exemplo, basta citar o primeiro livros. Não é exagero dizer que ele participou da parágrafo de sua mais famosa obra, “Ortodoxi5”: grande maioria das polêmicas de seu tempo. Isso para não mencionar que publicou diversos livros A única desculpa para este livro é o fato de ser ele a de poemas e obras de ficção. Essa situação torna resposta a um desafio. Um atirador, por pior que seja, difícil a sistematização do conteúdo do pensamento torna-se digno de respeito quando aceita um duelo. chestertoniano. Como nosso interesse, no entanto, Quando, há algum tempo, publiquei, sob o título de não é uma catalogação de todos os assuntos sobre os “Heretics”, uma série de ensaios, escritos apressadamente, quais ele escreveu, mas a identificação das temáticas porém com sinceridade, alguns críticos, cuja inteligência desenvolvidas por ele que exerceram fascínio sobre a admiro (refiro-me ao senhor G.S.Street), declararam que intelectualidade católica brasileira, a estratégia adotada eu incitava a todos a tornarem públicas suas teorias sobre será dar voz a Gustavo Corção, autor da única obra os problemas cósmicos, mas evitava, cautelosamente, brasileira que, embora não pretendesse, realizou uma apoiar meus preceitos com o exemplo. “Começarei a me ordenação dos temas desenvolvidos por Chesterton. inquietar com minha filosofia” – disse, nessa ocasião, o “Três Alqueires e uma Vaca7” foi publicado em 1946, e senhor Street – “quando o senhor Chesterton nos tiver é o segundo livro de Gustavo Corção, lançado apenas apresentado a sua”. Era, talvez, uma imprudente sugestão dois anos depois de “A Descoberta do Outro”, seu feita a quem está sempre preparado para escrever um ensaio autobiográfico. Cabe fazer a ressalva de que livro à mais breve provocação. este livro, mais do que uma introdução a Chesterton, é um ensaio no qual Corção, ao mesmo tempo em Em um contexto no qual o catolicismo era que apresenta as ideias do escritor inglês, declara- constantemente visto como sobrevivência de um se seu discípulo e afirma construir seu pensamento passado sombrio e triste, como herança de uma sobre as bases lançadas pelo autor ao qual está idade das trevas, Chesterton é, para os católicos e declarando sua admiração. para muitos setores da opinião pública de seu tempo, A abordagem de Gustavo Corção à obra de uma espécie de contraprova a essa crítica. É tido ao Chesterton defende uma forte unidade interna ao mesmo tempo como um cavaleiro e um palhaço, pensamento deste autor8. Embora abordasse uma ou melhor, um cavaleiro cuja espada é o riso. Sua infinidade de temas a partir de uma grande variedade obra parece querer mostrar que a sisudez está do de formas, para Corção, Chesterton possuía um outro lado e que é na ortodoxia que se encontra a núcleo de ideias que se deixava perceber em todas verdadeira festa. as suas obras. São três as ideias centrais de Chesterton, segundo Do ponto de vista da forma, Chesterton trouxe um a visão de Corção. Ou, para ser mais fiel ao autor, molde, se não novo, ao menos raro, para a defesa dos em Chesterton existem “três núcleos planetários ideais católicos no âmbito da imprensa. Esse molde de ideias”9 . Em torno de três centros gravitacionais foi por demais atrativo, tanto para aliados quanto orbita o pensamento chestertoniano. Gustavo para adversários6. E quanto ao conteúdo? O que Corção lê esses três núcleos como três antídotos para defendia G.K. Chesterton? Não basta dizer que fazia dramas humanos. São estes dramas que dão nome às uma defesa da religião católica, afinal boa parte de últimas partes do livro: “Para não ser doido”, “Para seus livros mais famosos foram escritos antes de sua não ser bárbaro”, “Para não ser escravo”.O primeiro

5 CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. São Paulo: LTr, 2001. Página 23. 6 Um grande exemplo do fascínio exercido por Chesterton sobre aqueles que dele discordavam foi seu grande adversário no cenário intelectual inglês, Bernard Shaw. Shaw nutria grande admiração pelo autor de Ortodoxia e não foram poucos os elogios que lhe dirigiu. 7 Todas as referências a esta obra foram retiradas de CORÇÃO, Gustavo. Três Alqueires e Uma Vaca. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1955 8 Quando aborda a diversidade literária de Chesterton, Corção diz o seguinte: “Quanto aos gêneros literários, Chesterton escreveu poemas, ensaios, biografias, romances, hagiografias e contos policiais; quanto aos assuntos abordou a religião, a filosofia, a história, a etnologia, a pedagogia, e a literatura. Toda essa variedade forma em sua obra um bloco, porque justamente o que ele sempre procurou foi a uni- dade. Por uma extraordinária faculdade de se interessar raramente igualada, escreveu sobre Chaucer, Browning e Dickens; e depois sobre Santo Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. E o mesmo ardor se encontra nas páginas que trata de poesia e nas páginas que tratam da santidade; não porque fosse um borbulhante e inquieto investigador de contrastes, que pula de coisa em coisa com gritos entusiásticos, sem se deter em nenhuma, mas porque descobria sempre a mesma inesgotável coisa, a mesma unidade, a mesma humanidade comum no poeta excepcional e no Doutor Comum. (CORÇÃO, Gustavo. Três Alqueires e Uma Vaca. P.41) 9 CORÇÃO, Gustavo. Três Alqueires e Uma Vaca. P. 90)

60 núcleo de ideias, “Para não ser doido”, está ligado à Por fim, o terceiro núcleo de ideias de Chesterton, discussão que Chesterton empreende em relação à “para não ser escravo”, está ligado à sua proposta razão moderna e à defesa que faz do mistério como econômica e social, o distributismo. O ideário algo fundamental ao pensamento humano. Em sua distributista consistiu principalmente numa crítica argumentação, por exemplo, Chesterton afirma que ao capitalismo monopolista e na proposta de uma a negação do mistério em prol da razão termina alternativa a ele baseada na pequena propriedade. pela negação da própria razão, uma vez que esta não Para o distributismo, o que importa não é a produção pode fundamentar a si mesma. Além disso, ele julga de riqueza, mas a criação de condições nas quais o que a negação do mistério leva a uma percepção homem possa desenvolver-se. Isso significa dizer que equivocada da própria realidade, uma vez que reduz as necessidades humanas, e não o lucro crescente das esta às categorias do indivíduo e não faz com que empresas, devem ser o centro de toda a economia. o indivíduo se abra a um real que é maior que ele. No centro desta proposta está a ideia de que A razão moderna “fagocitou-se”, ou seja, ao ser realização humana só é possível em um contexto de levada ao extremo, retirou as bases sobre as quais liberdade. A liberdade, no distributismo, é considerada se fundamentava. um valor tão alto que não pode ser trocada nem por A imaginação é, na concepção chestertoniana, uma melhorias sociais. Para Chesterton, tanto o socialismo saída para essa tragédia da razão, uma vez que quanto o capitalismo podem propiciar certos avanços abre novamente as portas para o mistério. É nesse e garantir algumas melhorias sociais. O que nenhum contexto que Chesterton cunha sua famosa oposição dos sistemas tem a oferecer ao homem é o ser livre11. entre o louco e o poeta10: De acordo com o ideário distributista, a liberdade é tida como a condição e salvaguarda da liberdade A imaginação não produz a loucura: o que produz a individual. No distributismo, a própria noção de loucura é exatamente a razão. Os poetas não democracia é tida como um contrassenso se não enlouquecem, os jogadores de xadrez sim. (...) Como se há estiver baseada na distribuição da propriedade, de observar no decorrer deste livro, não é meu propósito pois, de acordo com essa corrente de pensamento, atacar a lógica; quero apenas frisar que o perigo está na um homem sem posses é um homem em estado lógica e não na imaginação. (...) O fato geral é simples. de dependência e desprovido de autonomia, seja A poesia é sã porque flutua, facilmente, num mar em relação ao Estado, seja em relação aos grandes infinito; a razão procura cruzar o mar infinito para, assim, detentores de capital. torná-lo finito. (...). Aceitar todas as coisas é um exercício, De maneira resumida, Chesterton defendeu uma entender todas as coisas é um esforço. O poeta procura epistemologia que salvaguardava o mistério e o dogma; apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um uma ética na qual defendia, a partir de um valor caro mundo no qual ele possa se expandir. O poeta pretende aos homens de seu tempo, a moral católica tradicional; apenas meter a cabeça no céu, enquanto que o lógico uma proposta econômica e social que criticava tanto se esforça por meter o céu na cabeça. E é a cabeça que o socialismo quanto o capitalismo. E tudo isso em uma acaba por estourar. linguagem cheia de paradoxos e bom humor. Outro dado importante é que Chesterton não era um Se o primeiro núcleo de ideias de Chesterton faz acadêmico nem escrevia apenas para católicos, mas referência à teoria do conhecimento, o segundo, um jornalista que trabalhava na grande imprensa. Em “para não ser bárbaro”, diz respeito a uma ética das diversos aspectos, ele apresentava um tipo diferente relações sociais. Para Corção, no centro de tal ética, e atrativo de intelectual católico. Chesterton colocou o juramento, e este é tido como a vitória da fidelidade sobre a astúcia, da palavra dada 2. Chesterton e Alceu Amoroso Lima sobre as vicissitudes da vida e da sociedade. Essa defesa do juramento como algo Como já mencionado, Chesterton foi um autor fundamental para as relações humanas é o ponto fundamental na conversão de Alceu Amoroso Lima. de apoio sobre o qual Chesterton se coloca para Que o catolicismo sob a ótica chestertoniana exerceu defender valores tradicionais do catolicismo, como o grande fascínio sobre o jovem Alceu é algo atestado casamento indissolúvel, sem recorrer diretamente a pelo próprio. Cabe agora perguntar que elementos uma retórica religiosa. do pensamento de Chesterton estiveram presentes na obra do intelectual brasileiro.

10 CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. P. 34. 11 Para uma melhor compreensão do distributismo, recomenda-se CASTAÑO, Daniel Sada. Gilbert Keith Chesterton y el Distributismo Inglês en el Primer Tercio del Siglo XX. Madri: Fundación Universitaria Española, 2005.

61 Se levarmos em conta a tripartição do pensamento Mais tarde, muito influenciado pelas ideias de Chesterton, de Chesterton feita por Gustavo Corção, o que mais e com o idealismo de moço, pensei em escrever-lhe, aparece na obra amorosiana é o remédio para a pois queria saber como poderia conciliar as minhas escravidão, ou seja, o distributismo. Claro que a defesa convicções distributistas com a responsabilidade de do mistério como fundamental à experiência humana direção de uma empresa industrial. Como era sabido que do mundo é algo que perpassa a reflexão de Alceu Chesterton não respondia a carta nenhuma, escrevi a seu Amoroso Lima, sendo forte sinal disso o título de seu companheiro Belloc. 15 último livro, “Tudo é Mistério”. Esta coincidência, no entanto, não é forte o suficiente para permitir uma O liberalismo de Chesterton foi um dos aspectos correlação entre as obras dos dois escritores, afinal mais ressaltados por Amoroso Lima, no balanço é um ponto relativamente comum entre autores que fez da sua vida na entrevista dada a Medeiros católicos e traços que denotem uma referência Lima. Alceu encarava Chesterton como um defensor direta às formulações chestertonianas não são visíveis da liberdade, contrário a soluções autoritárias. E nas obras de Alceu. Algo parecido pode ser dito da contrastava a influência recebida dele com aquelas elaboração de Chesterton acerca do juramento. recebidas de Bernanos e Jackson de Figueiredo, mais Com o distributismo, a situação é diferente, alinhados com tendências de cunho autoritário. O já há fartas referências, tanto no jovem convertido ao idoso Alceu julgava ser Chesterton o mais próximo catolicismo no fim da década de 1920, quando no de sua posição afeita à liberdade, da qual se afastou intelectual consagrado da década de 1970. Sabe- nos primeiros anos pós-conversão. As influências se que as referências teóricas de Alceu mudaram do autor de Ortodoxia foram, retrospectivamente, bastante durante sua vida. Apesar disso, cabe destacar consideradas como um dos recursos intelectuais que que, mesmo de maneira menos intensa, Chesterton permitiram também sua segunda conversão, ou seja, não deixou de estar presente na reflexão amorosiana. a vivência de um catolicismo afastado de posições Sobre ele, Alceu diz o seguinte já no final de sua vida: políticas autoritárias. Segundo Alceu16 :

Chesterton era um católico recém-convertido. Lembro-me Foi sua [de Chesterton] vivacidade de espírito, a sua de ter lido seu livro Evolução da História da Humanidade, extraordinária fertilidade inventiva e, sobretudo, o seu escrito em resposta a H.G. Wells. Embora cientificamente liberalismo que me impressionaram. Eu era profundamente fraco, era um livro muito interessante e pitoresco. Foi por liberal, visceralmente liberal. O meu liberalismo atual, que esse tempo que ele desenvolveu uma teoria econômico chamo de libertarianismo, foi uma volta a essa vocação de sociológica, à qual hoje me conservo mais ou menos fiel. liberdade na mocidade, que se obscureceu durante algum Entusiasmado, cheguei a fazer uma conferência na Escola tempo através de minha conversão ao catolicismo e da Politécnica, a convite de seu diretor, Tobias Moscoso. Essa convicção de que a autoridade era superior à liberdade, teoria, que iria mais tarde redescobrir em Alberto Torres, como sustentava Jackson de Figueiredo. chamava-se distributismo. 12 Se recordarmos a, já citada, carta dirigida por Alceu Alceu julgava que o distributismo conciliava o que a Jackson de Figueiredo em 1928 e pensarmos que de melhor havia nos dois sistemas antagônicos, o o livro “Memórias Improvisadas” teve sua primeira socialismo e o capitalismo. Utilizando um linguajar mais edição em 1973, torna-se fácil perceber a presença contemporâneo podemos dizer que ele julgava que de Chesterton em toda a reflexão de Alceu Amoroso na proposta distributista tanto os valores da igualdade Lima. E mais: confiando nas palavras do autor, há que quanto os da liberdade estavam assegurados. Estas se reconhecer que tal presença traduziu-se numa ideias são tão importantes para o ideário de Amoroso adesão, ainda que parcial, ao ideal distributista. Este Lima que duas de suas primeiras obras são redigidas dado torna-se ainda mais surpreendente quando é em diálogo com elas. Trata-se de “Preparação à 13 14 pensado a partir das diversas mudanças de postura Sociologia ” e “Introdução à Economia Moderna ”. política e ideológica pelas quais passou Amoroso Lima Além da reflexão com as obras, houve também o em toda a sua trajetória. Não é exagero dizer que a desejo de um diálogo epistolar: obra de Chesterton, ainda que lida de modos diversos, foi um dos elementos que permitiram que Alceu, apesar de ter passado por diversas transformações, continuasse a perceber-se como fiel a si mesmo e aos ideais abraçados na sua conversão. 12 AMOROSO LIMA, Alceu. Memórias Improvisadas: Diálogos com Medeiros Lima. 2.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. P. 18. 13 AMOROSO LIMA, Alceu. Preparação à Sociologia. 2.ed. Rio de Janeiro: GetúlioCosta, 1942. 14 AMOROSO LIMA, Alceu. Introdução à Economia Moderna. 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1956. 15 AMOROSO LIMA, Alceu. Memórias Improvisadas: Diálogos com Medeiros Lima. P.230 16 Idem, p. 8.

62 SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional do Estado de São Paulo

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