LUZIA DE FATIMA BARBOSA FERNANDES

CENÁRIOS DO ENSINO DE MATEMÁTICA EM ESCOLAS RURAIS DA CIDADE DE , SP

CAMPINAS 2014

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RESUMO

Esta investigação, que utilizou a História Oral como método de pesquisa, conforme proposto por Garnica (2010), teve o objetivo central de estudar práticas de ensinar/aprender Matemática nas séries iniciais do ensino fundamental de escolas rurais de Tanabi-SP, durante a segunda metade do século XX. As práticas de ensino de Matemática são entendidas neste estudo como relacionadas a “um grande conjunto, difícil de delimitar e que, a título provisório, pode ser designado como o dos procedimentos. São esquemas de operações e manipulações técnicas” (CERTEAU, 2004, p.109). Apresentado em quatro capítulos, o estudo contemplou, num primeiro momento, aspectos do surgimento das escolas rurais no município em sua relação com o movimento mais amplo de criação destas escolas no Estado de . Em seguida, discutiu condições de funcionamento das escolas, dando especial atenção à formação dos professores e às práticas escolares. No terceiro capítulo, a atenção foi dedicada às práticas específicas no ensino da Matemática: na escrita de números, nas operações de adição, subtração, multiplicação e divisão, e no trabalho com a tabuada. Nas considerações finais apresentamos algumas reflexões sobre as práticas de ensino de Matemática de nossos colaboradores, considerando, assim como Fiorentini (1995), que “cada professor constrói idiossincraticamente seu ideário pedagógico a partir de pressupostos teóricos e de sua reflexão sobre a prática” (p. 3). Nessas reflexões apontamos para apropriações da Matemática Moderna que se entrecruzam com pressupostos da Escola Nova.

Palavras-chave: Educação Matemática - História; História Oral; Escolas Rurais; Matemática – Estudo e ensino.

ABSTRACT

This research, that used oral History as a research method, as proposed by Garnica (2010), has as its main objective of studying practices of teaching/learning Mathematics in the early grades of elementary schools in Tanabi-SP during the final years of the twentieth century. Teaching practices of Mathematics are understood - in this study - as related to "a large set that is difficult to define and, provisionally, may be designated as the procedures. Schemes are technical operations and manipulations" (CERTEAU, 2004, p.109). Presented in four chapters, the research tried to show, at first, some aspects of the establishment of rural schools in Tanabi, SP and its relationship with the wider movement for the creation of this type of schools in the State of São Paulo. We then discussed how these schools operated, paying special attention to the training of teachers and school practices. In the third chapter,attention was devoted to specific practice math, such as writing number in the four operations (addition, subtraction, multiplication and division), and the work with the multiplication tables. In the “Conclusion”, we present some reflections on the practices of Mathematics teaching of teachers who were interviewed, considering, as Fiorentini (1995), that "each teacher builds idiosyncratically his pedagogical ideas from theoretical assumptions and their reflection on practice" (p.3). These reflections aim to appropriations

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Modern Mathematics assumptions that intersect with the fundamentals of the Brazilian movement called “New School”.

Keywords: Mathematics Education - History; Oral History; Rural Schools; Mathematics – Study and teaching.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 1 Dialogando com autores e delimitando a investigação ...... 4 A escrita da história e a constituição de documentos ...... 7 A escrita da história e a produção de narrativas ...... 10 Apresentando os capítulos ...... 19 CAPÍTULO 1 – O MUNICÍPIO DE TANABI E SUAS ESCOLAS RURAIS ...... 21 Tanabi: Rio das Borboletas? ...... 22 O Município de Tanabi e suas Escolas ...... 30 A escola rural de Tanabi: prédios escolares ...... 39 CAPÍTULO 2 – DA FORMAÇÃO AO COTIDIANO DAS ESCOLAS RURAIS: CONVERSANDO COM OS PROFESSORES ...... 51 Formação de professores de escolas isoladas de Tanabi ...... 53 O início, as dificuldades, o envolvimento...... 62 Escolas rurais de Tanabi: alunos e condições estruturais ...... 65 A organização das aulas e as visitas do Inspetor de Ensino ...... 78 As práticas de ensino nas salas multisseriadas ...... 88 CAPÍTULO 3 – PRÁTICAS DE ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA EM ESCOLAS RURAIS DE TANABI/SP...... 97 Escrevendo palavras e números ...... 98 Ensinando e aprendendo operações aritméticas ...... 111 Ensinando e aprendendo a tabuada ...... 121 CAPÍTULO 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 137 De tudo que foi... O que ficou? ...... 142 REFERÊNCIAS ...... 147 APÊNDICE ...... 153 Textualizações das Entrevistas ...... 155 1. Professora Maria Cecília Soccio Monteiro ...... 157 2. Professora Irma Rosa da Silveira Viana ...... 193 3. Professor Etore Bilia ...... 217 4. Aluna Shirley Fabri Peruca ...... 247 5. Professora Eunice Kannebley Melotti ...... 265 6. Professor Orlando Melotti ...... 277

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7. Professora Maria Feliciana Guimarães Donofre ...... 293 8. Professora Maria Virgínia Mendonça Sabatini ...... 305 9. Professora Mércia Maria Ribeiro Caires ...... 311 10. Professora Zulmira Mattos Miziara ...... 323 11. Professora Maria Terezinha Monteiro Machado ...... 341 12. Professora Lourdes Rita de Paula Sanches Fernandes ...... 355 ANEXOS ...... 369 Questionários utilizados nas entrevistas ...... 371 Cartas Cessão de Direitos ...... 377

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Dedico este trabalho aos meus seis irmãos e, em especial, aos meus pais, Josefa e João, pela determinação, pelas lutas diárias e por permitir que esse sonho pudesse se tornar realidade.

Com carinho à minha irmã Rita, pelas constantes lutas em me manter na escola, para que eu pudesse, com os estudos, conquistar uma profissão.

E à linda família que constituí, com meu esposo, Fernando, e nosso filho André Luís, por me acompanharem nessa trajetória e serem meu porto seguro.

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Agradecimentos

A DEUS, pelo dom da vida e pela sabedoria que me permitiu caminhar por estradas seguras.

Aos meus pais João e Josefa e aos meus irmãos: José Donizete, Rita de Cácia, João Roberto, Maria José, Luiz Homero, Cesar Fernando e a todos os meus cunhados, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas por me permitirem viver nesta família maravilhosa, me ensinando a cada dia o verdadeiro sentido da vida.

Ao meu esposo Fernando, pelo companheirismo e pelo amor que tem orientado nossa vida juntos e o apoio em toda esta caminhada. E também pela leitura atenciosa que fez deste trabalho, contribuindo na escrita e no entendimento desta história.

À minha irmã Rita de Cácia, pelo apoio durante todo o desenvolvimento desta pesquisa, me auxiliando na busca por professores de escolas rurais, na ajuda por informações na cidade de Tanabi/SP, quando eu não pude estar presente, na dedicação em organizar as carteiras da escola rural (local para algumas entrevistas)... E por caminhar neste sonho junto comigo.

À minha irmã Maria José, por me apoiar durante todo o tempo que morei em sua casa na cidade de /SP, sempre me dando forças para trabalhar e me adaptar em um novo lugar, “longe de casa”.

À minha orientadora, a professora Maria Ângela, por me acompanhar nesta árdua caminhada da pesquisa e escrita, me ensinando a escrever História e histórias, me fazendo refletir e me apoiando sempre em todas as etapas deste trabalho.

Ao professor Antonio Miguel, pela participação no Exame de Qualificação, pela leitura atenciosa que fez deste trabalho, me fazendo refletir e ir além, buscando caminhos para a finalização desta pesquisa.

À professora Arlete, pelas contribuições no Exame de Qualificação e na Defesa, me indicando ricas possibilidades para finalizar este trabalho.

À professora Dione, pela participação na Defesa, pela leitura que fez deste trabalho me auxiliando na escrita desta história.

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Aos colegas do Hifem pelo tempo que convivemos nas reuniões, e pelos momentos de ricas discussões, que contribuíram para o meu crescimento como pesquisadora.

Aos professores colaboradores Maria Cecília, Irma, Etore, Orlando, Eunice, Maria Virgínia, Mércia, Lourdes, Zulmira, Maria Terezinha e Maria Feliciana e aluna Shirley pela colaboração riquíssima que deram a este trabalho, possibilitando a escrita de uma história tão rica sobre as escolas da zona rural do município de Tanabi/SP.

Aos funcionários da FE pelo atendimento nos vários momentos em que precisei - secretaria, biblioteca...

Aos funcionários das escolas visitadas na cidade de Tanabi/SP, pela atenção com que me receberam e pelo tempo que se dedicaram a me mostrar arquivos para que eu pudesse compor os documentos da minha pesquisa.

À funcionária da biblioteca municipal de Tanabi/SP pela atenção com que me recebeu e pelos livros que emprestei - foram muito valiosos para a pesquisa.

Aos amigos de Tanabi/SP, que também me auxiliaram na pesquisa, me indicando livros sobre a história da cidade.

A todos os professores que tive durante a minha caminhada pela escola, por me fazerem acreditar que eu poderia ir além...

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Lista de Figuras

Figura 1 – Varanda da Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi, 2010...... 1 Figura 2 - Carteira individual e cadeira, com banco retrátil, que eram utilizadas na “Escola Mista da Fazenda Alferes”, município de Tanabi, 2010...... 2 Figura 3 - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, local onde foram realizadas as quatro primeiras entrevistas, 2010...... 13 Figura 4 - Momento da entrevista com a professora Maria Cecília Soccio Monteiro, na Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi-SP, 2010...... 13 Figura 5 - Turma de alunas da Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi-SP, na qual aparece a aluna Shirley Fabri Peruca no seu primeiro ano, 1949...... 15 Figura 6 - Mapa do Estado de São Paulo, (sd) com Tanabi em destaque ...... 23 Figura 7 – Bandeira da cidade de Tanabi ...... 24 Figura 8 - Quadro - óleo sobre tela do artista Julio Soares Bonfim retratando a capela construída em 1901 em alvenaria, que substituiu a capela anterior, 1967...... 26 Figura 9 - Vista das obras da Igreja Matriz atual em foto de 1938...... 27 Figura 10 - Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição. Outra imagem da Igreja vista da Praça João de Melo, 2011...... 27 Figura 11 - Grupo de jovens na Estação Ferroviária de Tanabi, (sd)...... 29 Figura 12 - Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa, município de Tanabi, 1965. . 39 Figura 13 - Escola rural Teodorico, município de Tanabi/SP, 2011...... 42 Figura 14 - Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010...... 42 Figura 15 - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010...... 42 Figura 16 – Escola Mista de Emergência da Fazenda São Paulo, município de Tanabi/SP, 2010 ...... 43 Figura 17 - Escola Mista de Emergência da Fazenda São Paulo, município de Tanabi/SP, 2010...... 43 Figura 18 - Fotografia do armário na cozinha da Escola rural "Teodorico", município de Tanabi/SP, 2011...... 44 Figura 19 - Fotografia do armário na cozinha da Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010...... 44 Figura 20 - Planta para escola isolada, 1943...... 45

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Figura 21 - Fotografia do sanitário da Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010...... 46 Figura 22 - Fotografia que mostra o prédio da Escola Mista da Goiaba, município de Tanabi/SP, e o sanitário, construído atrás da escola, 2013...... 47 Figura 23 - Interior do sanitário da Escola Mista da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010...... 47 Figura 24- Fotografia dos restos de uma construção encontrada ao lado da Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010...... 48 Figura 25 – Instituto de Educação Padre Fidelis, onde funcionou o curso Normal a partir de 1964, em Tanabi-SP, (sd)...... 54 Figura 26 - Alunos da Escola de Emergência do Bairro do Espraiado - município de Tanabi, 1967...... 66 Figura 27 - Entrega de diplomas aos alunos formandos da Escola do Bairro do Espraiado – município de Tanabi, 1967...... 66 Figura 28 – Alunos da Escola Mista da Fazenda da Grama – município de Monte Aprazível/SP, na qual se encontra a profª entrevistada, turma de 1954...... 68 Figura 29 - Alunos da Escola Mista da Fazenda Barra Mansa – município de Tanabi, 1970 ...... 69 Figura 30 – Alunos da Escola Mista Rural do Bairro das Perobas, município de Tanabi/SP, 1939...... 72 Figura 31 - Escola Rural na Fazenda em Engenheiro Balduíno, município de Monte Aprazível/SP. Turma das meninas, 1947...... 73 Figura 32 - Escola Rural na Fazenda em Engenheiro Balduíno, município de Monte Aprazível/SP. Turma dos meninos, 1947 ...... 73 Figura 33 – Alunos da Professora Maria Cecília Soccio Monteiro em um piquenique, 1975...... 74 Figura 34 - Alunos da Professora Maria Cecília Soccio Monteiro em um piquenique, 1975...... 75 Figura 35 - Jogo de futebol entre os alunos da professora Maria Cecília Soccio Monteiro, durante o piquenique, 1975...... 75 Figura 36 - Alguns alunos da professora Maria Cecília Soccio Monteiro, turma de 1979. . 76

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Figura 37 - Alguns alunos da professora Maria Cecília Soccio Monteiro, turma de 1979. . 77 Figura 38 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no início do ano de 1977 em uma escola rural do município de Tanabi/SP...... 83 Figura 39 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no final do ano de 1977 em uma escola rural do município de Tanabi/SP ...... 84 Figura 40 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no final do ano de 1977 em uma escola rural do município de Tanabi/SP...... 85 Figura 41 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no início do ano de 1966 em uma escola rural do município de Tanabi/SP...... 86 Figura 42 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no início do ano de 1972 em uma escola rural do município de Tanabi/SP...... 87 Figura 43 - Interior da sala de aula da Escola Mista do Bairro da Goiaba - município de Tanabi/SP, 2010...... 91 Figura 44 - Carteira e cadeira utilizadas na Escola Mista da Fazenda Alferes - município de Tanabi, 2010...... 92 Figura 45 - Madeira e metal, origem desconhecida, s.d ...... 93 Figura 46 - Carteira - Carteira dupla com reservatório de tinta ao centro, 1900 ...... 94 Figura 47 - Carteira dupla com tinteiro, 1930...... 94 Figura 48 - Registro entregue pela professora Maria Cecília Soccio Monteiro no dia da entrevista, 2010...... 99 Figura 49 - Modelo apresentado para a escrita dos números, 1949...... 104 Figura 50 - Lousa com explicação do professor, dada durante a entrevista, 2010...... 105 Figura 51 - Quadro Valor de Lugar...... 108 Figura 52 - Ilustrações que mostram o ensino de conjunto, (sd)...... 111 Figura 53 - Explicação colocada na lousa pelo professor Etore Bilia durante a entrevista, 2010. Fonte: Foto tirada pela pesquisadora...... 117 Figura 54 - Atividade sobre o ensino da subtração, (sd)...... 118 Figura 55 - Imagem da lousa, com a explicação dada pela professora durante a entrevista, 2010...... 122 Figura 56 - Imagem da lousa, com a explicação dada pela professora durante a entrevista, 2010...... 122

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Figura 57 - Ilustrações que mostram o ensino da multiplicação, (sd)...... 123 Figura 58 - Atividade sobre o ensino de conjunto, (sd)...... 123 Figura 59 - Atividade sobre o ensino da multiplicação, (sd)...... 124 Figura 60 - “Relógio de tabuada” desenhado na lousa pelo professor Etore Bilia durante a entrevista, 2010...... 126 Figura 61 - Modelo de tabuada em pé...... 127 Figura 62 - Modelo de tabuada deitada ...... 127 Figura 63: Exemplo de atividade com o uso da tabuada deitada...... 128 Figura 64: Exemplo de atividade com o uso da tabuada em pé...... 128 Figura 65- Triângulo de Condorcet, desenhado pelo prof. Orlando Melotti, 2011...... 130 Figura 66: Triângulo de Condorcet...... 131 Figura 67 - Explicação colocada na lousa, demonstrando a atividade citada na entrevista, 2010...... 132 Figura 68 - Registros feitos pela professora Zulmira Mattos Miziara durante a entrevista, 2011...... 134

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INTRODUÇÃO

Para que se possa compreender melhor os meandros e objetivos desta investigação, é importante que se conheçam alguns fatos sobre minha formação escolar. Aos 7 anos de idade iniciei minha caminhada pela escola. Sem ter cursado a pré-escola, entrei na primeira série do 1° grau. Como morava na zona rural, estudei em uma escolinha que era próxima de casa, conhecida como Escola do Bairro do Sapé1. No caminho para a escola, de manhã, lembro-me das vezes que, por conta do nevoeiro, mal dava para enxergar o caminho. Meu irmão mais velho me acompanhava até a casa de uma vizinha para irmos juntas até a escola. Fazíamos todo o percurso a pé, tanto na ida quanto na volta. Demorávamos quase 45 minutos para percorrer os três quilômetros que separavam nossa casa da escola. Lembro-me muito bem da minha primeira professora, a dona Regina, muito querida pelos alunos e da qual guardo, até hoje, boas lembranças. Ela trazia o lanche da cidade, que era diferente para cada dia da semana. Tinha a sopa, mas gostávamos muito quando ela trazia pão com carne e suco. O lanche era servido pela professora em um pequeno balcão localizado na varanda da escola (Figura 1), que tinha duas portas: uma para a cozinha e outra para a sala de aula.

Figura 1 – Varanda da Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Dentro da sala de aula, dividíamos o espaço com alunos de outras séries. Não me recordo como era a separação, mas suponho que fosse por fileiras. Sentávamos em

1 “Escola Mista da Fazenda Alferes”, situada na zona rural da cidade de Tanabi – SP. Quando fui estudante desta escola, nos anos de 1989 e 1990, era denominada Escola Estadual de Primeiro Grau Rural Fazenda Alferes. 1 carteiras2 que eram unidas, ou seja, a mesa do aluno que sentava atrás era unida à cadeira do aluno que sentava à frente. No tampo da carteira, existia um baixo relevo para colocação de caneta ou lápis e uma cavidade redonda na qual se colocava um potinho com tinta. Essa tinta era usada em canetas tinteiros, que já não se usavam mais quando eu estudei. Embora esse tipo de carteira possua pés de ferro que podem ser pregados no chão, evitando assim o seu deslocamento, quando fui aluna, as carteiras ficavam soltas, dependendo do nosso comportamento para se manterem paradas. Por isso, tínhamos que ficar bem comportados, pois qualquer movimento mais brusco podia atrapalhar o colega sentado à frente ou atrás, embora isso poucas vezes ocorria, pois éramos crianças e as carteiras, de madeira e ferro, eram pesadas.

Figura 2 - Carteira individual e cadeira, com banco retrátil, que eram utilizadas na “Escola Mista da Fazenda Alferes”, município de Tanabi, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Durante a semana, várias disciplinas eram estudadas. Lembro-me que a sexta-feira era um dia diferente. Depois do recreio, fazíamos atividades físicas, provavelmente como parte da disciplina de Educação Física. Muitas vezes jogávamos queimada 3. Estudei nesta escola nos anos de 1989 e 1990, depois, quando estava na terceira série, fui estudar em uma escola na cidade de Tanabi/SP. Não senti dificuldade na continuidade dos estudos. Completei o primeiro e o segundo graus em escolas públicas.

2 No site http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o1 podemos encontrar modelos de carteiras individuais bem próximos ao modelo apresentado na Figura 2. Segundo o site, as carteiras datam do início do século XX. Ver capítulo 2 deste trabalho. 3 Queimada é um jogo esportivo. Utiliza-se como material uma bola de tamanho médio e é jogado em um terreno plano, de forma retangular, sendo dividido em dois campos iguais, por uma linha reta. O objetivo do jogo é fazer o maior número possível de prisioneiros em cada campo. Cada time fica situado em um campo e um dos jogadores de cada lado deverá ser colocado atrás da linha de fundo do campo adversário. Assim um jogador do time a quem coube a bola arremessa-a ao campo adversário com o objetivo de atingir, “queimar”, algum jogador adversário. Disponível em: http://www.brasilescola.com/educacao-fisica/jogo-queimada.htm. Acesso em 28/10/2013. 2

Iniciei o curso de Licenciatura em Matemática no ano 2000. A escolha por este curso não ocorreu apenas pelo meu interesse pela disciplina, mas também por questões financeiras. Naquele período, morava em uma chácara na cidade de /SP e não tinha condições para me manter fora de minha cidade. A existência de uma universidade pública em São José do Rio Preto/SP, cidade próxima a Mirassol/SP 4, foi a opção possível naquele momento. Além de não pagar o curso, podia trabalhar e morar na casa de minha família. O IBILCE - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - da UNESP, campus de São José do Rio Preto/SP, oferecia à época apenas dois cursos no período noturno: Licenciatura em Letras e Licenciatura em Matemática. Escolhi, por gostar mais da área de Exatas, a Licenciatura em Matemática, ingressando no curso em 2000. Ao iniciá-lo, minha família e eu retornamos à cidade de Tanabi/SP 5, que embora fosse um pouco mais distante de São José do Rio Preto/SP propiciou-me melhores condições para frequentar a universidade. No segundo ano de curso, reencontrei o professor Pedro Paulo Scandiuzzi, que havia sido meu professor no segundo ano do Ensino Médio. Sob a sua orientação, iniciei um estágio vinculado a uma Bolsa de Apoio oferecida pela universidade. Foi durante essa experiência que entrei em contato com os primeiros textos de História da Matemática e Etnomatemática, e comecei a ver de maneira diferente o curso que estava frequentando e a própria Matemática. Tempos depois, com o curso superior já concluído, comecei a trabalhar no cargo de Assistente de Secretaria, na cidade de Tanabi/SP, exercendo esta função primeiramente na secretaria de uma escola municipal e depois no Fórum da cidade, como Assistente de Escrevente no Cartório Criminal. Em 2006, com a oportunidade de “encarar” a sala de aula, mudei-me para a cidade de Campinas/SP e assumi o cargo de Professor de Educação Básica II, por concurso público estadual. No início da carreira docente, tive muita insegurança e dúvidas sobre a permanência na profissão. Depois de algum tempo, no entanto, renasceu em mim o interesse em continuar os estudos na área da Matemática e, mais fortemente, em Educação Matemática.

4 São José do Rio Preto dista 15 quilômetros da cidade de Mirassol. 5 Tanabi dista 40 quilômetros da cidade de São José do Rio Preto. 3

No ano de 2008, procurei a Unesp, campus de Rio Claro/SP, para tentar o ingresso em um curso de pós-graduação. Escolhi a Unesp, por já ter ouvido do professor Pedro Paulo muitos comentários elogiosos ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática daquele campus. Comecei então a cursar, no primeiro semestre de 2008, a disciplina “Tendências em Educação Matemática”, ministrada pelo professor Antonio Vicente Marafioti Garnica. Encantei-me com a Educação Matemática e decidi participar do processo seletivo para ingressar no mestrado na mesma área e, como naquele ano comecei a frequentar o GdS6 na UNICAMP, resolvi participar do processo seletivo nas duas universidades. Ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP.

Dialogando com autores e delimitando a investigação

Foram diversos os fatores que influenciaram a constituição desta investigação. Sem dúvida, a experiência docente nos Ensinos Fundamental II e Médio foi determinante para nos decidirmos por um estudo que estivesse voltado à Educação Matemática das primeiras séries. Em diferentes situações de sala de aula, devido particularmente às dificuldades de aprendizagem dos alunos, colocavam-se questões acerca do ensino das séries iniciais e especificamente, dos primeiros passos da aprendizagem da Matemática. Assim, com o objetivo de aprofundar nosso estudo sobre a Matemática ensinada nos anos iniciais e do regime de Progressão Continuada7, iniciamos nossas primeiras aproximações com a investigação em Educação Matemática. Outro fator relevante para a constituição de nossa pesquisa foi o contato com investigações em Educação Matemática na perspectiva da História Oral, desenvolvidas pela

6 Grupo de Sábado: Grupo de professores que se reúne quinzenalmente aos sábados na Faculdade de Educação da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas/SP) para discutir, entre outros assuntos, a prática do professor que ensina Matemática. 7 Em 1997, sob a égide da LDBEN nº 9.394/96, que possibilita a organização do ensino em ciclos, a Deliberação CEE nº 9/97 representa um marco para o Sistema de Ensino do Estado de São Paulo, instituindo o regime de progressão continuada no Ensino Fundamental organizado em ciclos. Conforme a Indicação CEE nº 22/97, a progressão continuada “(...) deve ser entendida como um mecanismo inteligente e eficaz de ajustar a realidade do fato pedagógico à realidade dos alunos, e não um meio artificial e automático de se ‘empurrar’ os alunos para as séries, etapas, fases subsequentes”. Disponível em: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/383.pdf. Acesso em 28/10/2013. 4

UNESP- campus de Rio Claro/SP, dentre elas, algumas voltadas a escolas rurais8. Essas leituras levaram-nos a revisitar nossa própria trajetória como aluna de uma escola rural do município de Tanabi/SP. Conhecer mais sobre o ensino de Matemática das séries iniciais dessas escolas, entrevistar seus professores, “olhar” para elas não apenas como ex-aluna, mas como investigadora, colocava-se como uma experiência que poderia não apenas ampliar a nossa prática profissional mas trazer à luz histórias ainda pouco conhecidas sobre a Educação Matemática do Estado de São Paulo. Essas primeiras reflexões, levaram-nos a decidir pelo estudo de escolas rurais da região de Tanabi e pela utilização da História Oral como método de pesquisa. Como nos alerta Garnica (2010), essa opção vale-se “da oralidade para o resgate – ou o levantamento, a escritura, a compreensão, a elaboração, como queiram os que se impacientam com o uso do termo ‘resgate’ histórico”, mas, sobretudo, utiliza “a oralidade segundo alguns procedimentos e princípios muito específicos” (p. 30/31). Um primeiro princípio mencionado por Garnica (2010) diz respeito ao diálogo “com fontes de várias naturezas (escritas, pictóricas, fílmicas etc.)”. No entanto, o autor esclarece que as fontes orais devem ser ressaltadas. Essa opção nega “que a verdade – essa onírica, imaculada e sempre ausente presença que nos assombra – jaz dormente em registros escritos” e “a a-historicidade da fantasia, dos sonhos humanos, da memória (sempre enganadora) que se deixa captar oralmente”. Isso possibilita “exercitar a pluralidade de perspectivas (interpretações) através das quais cada tema ou objeto pode ser realçado”. Nesse sentido, o historiador em História Oral defende o “afastamento da perspectiva historiográfica positivista, o que implica fundamentalmente neutralizar concepções absolutistas que defendem a existência de uma ‘história verdadeira’” (p.33). A opção por uma escrita da História que considera tanto fontes orais como de outras naturezas, segundo Garnica (2010), implica em “abraçar uma proposta de configuração coletiva no que diz respeito aos atores sociais envolvidos na pesquisa, na condição de pesquisadores” ou de entrevistados (p.33).

8 Podemos citar o trabalho de Iniciação Científica de Maria Ednéia Martins, intitulado: “Resgate Histórico da Formação e Atuação de Professores da Escola Rural: um estudo no oeste paulista”, apresentado à Unesp – campus de - no ano de 2003. Disponível em: http://www.ghoem.com/trabalhos/g/relatorio_final_IC_Edneia.pdf. Acesso em 28/10/2013. 5

Os documentos produzidos a partir das falas dos entrevistados, para Meihy (1996), apresentam versões da história9, muitas vezes de pessoas comuns, antes silenciadas pela sociedade. A “certeza de que todos os agentes sociais têm História é básica para a boa definição das fórmulas modernas de História Oral” (MEIHY, 1996, p.39). Com a valorização das falas de pessoas que fizeram parte da sociedade, “Thomson (2000), também aponta que a História Oral tem caráter de denúncia ao trazer, para a história, a contribuição daqueles que sempre estiveram excluídos, contribuindo para com o processo de democratização da memória e da história.” (THOMSON, 2000 apud MARTINS, 2003, p.14) Para tanto, Meihy (1996), aponta algumas diferença entre os trabalhos com História Oral e memória, e afirma que, embora ambos trabalhem com depoimentos, eles não se confundem, pois a memória, “é sempre dinâmica, muda e evolui de época para época, é prudente que seu uso seja relativizado, posto que o objeto de análise, no caso, não é a narrativa objetivamente falando nem sua relação contextual, mas a interpretação do que ficou (ou não) registrado nas cabeças das pessoas. (...). Na história oral busca-se ou o registro da experiência vivencial ou informações. Com elas prepara-se um documento objetivo que, ou vale por si e neste caso dispensa análise, ou é equiparado com outros discursos ou documentos.” (MEIHY, 1996, p.65).

Assim, cremos ter dado voz a nossos entrevistados, sendo suas vozes ouvidas e respeitadas. A História Oral, no entanto, pode ser realizada em diferentes modalidades. Na modalidade “História de Vida, o pesquisador interessa-se pelo que o entrevistado conta de sua vida como uma totalidade”. A narrativa pode tocar em aspectos da “infância, adolescência, juventude, velhice”, de forma que “hábitos, vida profissional e pessoal compõem uma trama na qual se desfiam percepções e construções do espaço e do tempo vividos”. A História Oral Temática, por outro lado, “centra-se mais em um conjunto limitado de temas previamente selecionados pelo pesquisador com a intenção de reconstituir ‘aspectos’ da vida dos entrevistados” (MARTINS-SALANDIM; SOUZA; FERNANDES, 2010, p. 5). O diálogo com os autores da História Oral acima mencionados levou-nos à decisão

9 De acordo com Martins (2003), “A História Oral não deve ser vista apenas como forma de preencher lacunas em trabalhos que utilizaram outras fontes, mas como elemento vital para a constituição de outras versões dessa história, de novas abordagens. (p. 12) 6 de olhar para o ensino de matemática de escolas da região de Tanabi a partir de diferentes documentos, centrando nosso olhar em narrativas de professores que viveram experiências nessas escolas, no período de 1950 a 2000, utilizando a História Oral Temática. Autores da chamada Nova História Cultural, também nos forneceram algumas pistas para a investigação. No diálogo com esses autores, práticas de ensino-aprendizagem de Matemática começaram a se configurar como um centro de nosso interesse. Peter Burke (2005), em seu livro “O que é história cultural?”, reflete sobre desafios e conflitos que pesquisadores enfrentaram, e ainda enfrentam, na escrita de Histórias Culturais. Esses desafios e conflitos associam-se à ampliação do conceito de cultura, que “passou a se referir a uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas (conversar, ler, jogar)” (BURKE, 2005, p. 43). Em nosso trabalho, as práticas de ensino de Matemática em escolas rurais da região de Tanabi serão entendidas como relacionadas a “um grande conjunto, difícil de delimitar e que, a título provisório, pode ser designado como o dos procedimentos. São esquemas de operações e manipulações técnicas” (CERTEAU, 2004, p.109). Esses “estilos” ou “maneiras de fazer” de professores de Matemática, designadas “táticas” por de Certeau (2004), são as formas encontradas para lidar com a realidade das escolas rurais. As “estratégias” para o ensino de Matemática, por outro lado, podem ser entendidas como as orientações de documentos governamentais e/ou de livros didáticos. A decisão pela História Oral e pelo estudo de práticas levou-nos a definir a seguinte questão orientadora para o trabalho: como e quais eram as práticas de se ensinar-aprender Matemática em escolas rurais de Tanabi/SP, no período de 1950 a 2000?

A escrita da história e a constituição de documentos

A decisão de realizar a investigação centrando nosso olhar na produção de narrativas de professores que vivenciaram experiências em escolas rurais de Tanabi, no período de 1950 a 2000, utilizando a História Oral Temática, foi acompanhada pela utilização de outros documentos, que foram sendo constituídos no caminhar da investigação. Paralelamente aos contatos iniciais para a localização de professores para colaborar

7 em nossa investigação, iniciamos um trabalho de busca por documentos escolares que pudessem nos apontar nomes de antigos professores e outros indícios sobre escolas rurais do município, que, segundo Ginzburg (1991) são:

formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que, como já dissemos, suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição (GINZBURG, 1991, p.179, grifo do autor).

Em nossa busca por indícios, visitamos alguns locais 10 voltados à preservação da memória da cidade de Tanabi, em especial a Biblioteca Municipal e três escolas públicas: A Escola Municipal Ganot Chateaubriand, a Escola Estadual João Portugal e a Escola Estadual Padre Fidélis. Na Biblioteca encontramos alguns livros que contavam a história do município de Tanabi; Nas Escolas Estaduais, João Portugal e Padre Fidélis, não conseguimos documentos sobre a escola rural, objetivo da busca pelos documentos. Já na Escola Municipal Ganot Chateaubriand, que foi uma das Sedes das Escolas Isoladas do município de Tanabi, localizamos alguns documentos referentes às escolas isoladas, que listamos a seguir:

1 - Mapas de Movimento das Escolas Isoladas, nos quais estão registrados nomes de professores, denominações das escolas, horários de funcionamento, número de alunos matriculados. 2 - Livro de Termos de Exame e Visitas, no qual se encontra a relação de alunos, com suas respectivas notas, detalhes da aula do professor, condutas de sala de aula e comemorações cívicas. 3 - Mapas - Atas de exames, no qual se encontra o inventário de bens, o rendimento dos alunos por ano e a porcentagem de alunos aprovados.

10 Escolhemos esses locais por entendermos que eles poderiam abrigar documentos importantes para a pesquisa. Na Biblioteca Municipal fomos à busca de literatura que pudesse nos contar sobre a história do município de Tanabi. Nas escolas públicas, fomos buscar informações sobre arquivos de escolas rurais, tendo encontrado, na Escola Municipal Ganot Chateaubriand um grande acervo de documentos referentes a essas escolas. 8

4 - Registro de Compromissos - Escolas Isoladas, no qual são registradas as nomeações de professores, as remoções, as posses.

Alguns11 desses documentos foram utilizados nesta dissertação. A leitura dos documentos nos possibilitou uma visão geral sobre as escolas que existiram na zona rural de Tanabi, bem como a identificação de alguns professores que atuaram nessas escolas. Os registros escritos por Inspetores de Ensino, quando visitavam as escolas isoladas da região, em especial, nos possibilitaram adentrar em muitas particularidades das aulas, dando a conhecer, sob a visão do inspetor, como a sala de aula era organizada e suas impressões sobre a atuação do professor. Além destes documentos localizados na Escola visitada, arquivos encontrados digitalizados também foram de extrema importância para compor o cenário das escolas rurais, tais como os Relatórios da Delegacia Regional de Ensino de Rio Preto, referentes aos anos de 1933, 1934, 1940 e 1943 que foram incorporados ao nosso texto e estão disponíveis no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Porém, vale salientar que as informações colhidas ali foram acrescentadas à nossa dissertação em uma fase posterior da investigação, quando já havia ocorrido o exame de qualificação. Durante a realização das entrevistas, alguns entrevistados mostravam à entrevistadora fotografias, materiais didáticos e outros documentos que haviam selecionado e, após autorização, foram utilizados na elaboração da narrativa histórica desta dissertação. Os documentos fornecidos pelos entrevistados são de natureza diferenciada dos encontrados na antiga sede das escolas isoladas ou no site do Arquivo Público. Eles foram guardados pelo valor afetivo que lhes atribuem os colaboradores. Estão impregnados de lembranças, de sentimentos e de significados. As fotografias foram destacadas pelos entrevistados. Mais do que outros documentos, os iconográficos possibilitam “mostrar” a imagem de pessoas, de lugares, de objetos. Elas aguçam a lembrança, parecem nos aproximar de uma realidade já não existente de forma mais direta. Olhando as fotos, os entrevistados apontavam para alguma parte da imagem e diziam como se estivessem lá: “Olha quanta criança que tinha”; “Aqui já

11 A escolha por alguns arquivos foi feita com o objetivo de responder a questão que estava colocada na investigação e que também nos ajudariam a contar a realidade das escolas rurais e o cotidiano das aulas. 9

é também outra turma”, e demais expressões que demonstram que, ao olhar a foto, o passado retorna forte e direto. As fontes iconográficas, “assim como textos e testemunhos”, são formas importantes de “evidência histórica”, como nos diz Burke (2004). Olhar para imagens de prédios, alunos e professores de escolas rurais que existiram no município de Tanabi-SP, nos possibilitam algumas leituras do cotidiano dessas escolas, uma vez que não podemos voltar a essa realidade passada, pois ela é “fixa, imutável, irreversível”. A fotografia corresponde a uma “segunda realidade, a do documento”, que “também é fixa e imutável, porém sujeita a múltiplas interpretações” (KOSSOY, 2002, p. 47). As interpretações, no entanto, segundo Garnica (2010), constituem apenas um “inventário de possibilidades”, se forem realizadas por pessoas que não tiveram nenhuma relação com “os momentos ou pessoas fotografados”, uma vez que:

o conteúdo latente de cada fotografia, sua descrição menos lacunar, é possível enquanto se encontram, na própria escola ou na comunidade a que a escola serve, pessoas que se recordam dos momentos ou das pessoas fotografadas (GARNICA, 2010, p.91).

Em nosso trabalho, as interpretações das fotografias serão realizadas a partir das informações que temos sobre a sua produção, bem como as que os professores- colaboradores nos passaram acerca das condições de produção das fotografias por eles apresentadas, ou seja, este “texto descritivo” sobre as fotografias, orientarão nossa interpretação da imagem registrada. Dessa forma, seremos conduzidos “por entre os significados da imagem”, desviando-nos de alguns e assimilando outros (BARTHES, 1990, p. 33).

A escrita da história e a produção de narrativas

Em conversas com antigos moradores da cidade de Tanabi e da zona rural da cidade, identificamos alguns professores que exerceram suas atividades em escolas urbanas e isoladas/rurais que existiram no município e na região e, que depois foram identificados nos documentos encontrados. Nessas conversas, também identificamos um professor que exerceu a função de Inspetor de Ensino e uma aluna que vivenciou experiências em uma escola rural.

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O passo seguinte foi entrar em contato com as pessoas mencionadas nas conversas informais com moradores. Nesse primeiro contato, explicamos a intenção de nossa investigação e ressaltamos a importância que as histórias que eles poderiam nos contar teriam para a escrita de nosso trabalho. Todos foram muito receptivos e concordaram em contar suas histórias, embora - num primeiro momento - alguns hesitaram, por entenderem que suas histórias não trariam contribuições para um trabalho acadêmico. Após o primeiro contato, esclarecidas as dúvidas com relação às condições de participação e à forma como seriam realizadas as entrevistas, os primeiros encontros foram agendados, respeitando sempre a disponibilidade dos entrevistados e optando por locais e horários que fossem adequados e confortáveis a eles. Foram, então, agendadas e realizadas dez entrevistadas com professores, um Inspetor de Ensino, que também foi professor, e uma aluna. Alguns dos entrevistados tiveram breves experiências em outros municípios além de Tanabi, experiência essa que também foi contemplada nas entrevistas. Antes da entrevista, entregamos 12 aos colaboradores algumas questões orientadoras, por entendermos que auxiliam o entrevistador no momento da entrevista (a retomar aspectos de interesse para o trabalho) e os colaboradores (a rememorarem os pontos relevantes antes do momento da entrevista). Na elaboração das questões13 orientadoras foram considerados os seguintes eixos norteadores: 1) História de vida; 2) Experiências no magistério; 3) Características das aulas; e 4) Particularidades das aulas de Matemática. No momento da entrevista, pedimos para que o entrevistado falasse sobre os eixos orientadores, sem usar as questões específicas. Durante a conversa fazíamos algumas intervenções com a intenção de retomar o objetivo da investigação14. Para Thompson (2002), a realização de entrevistas exige algumas habilidades especiais do entrevistador, habilidades que são estabelecidas basicamente de relações humanas - é o historiador trabalhando no meio social, com as pessoas. Trata-se de um momento em que o colaborador e o entrevistador partilham suas crenças, emoções, experiências. O historiador entra em um mundo de experiências diferentes das suas, no

12 Entreguei pessoalmente o questionário aos colaboradores, com exceção dos professores Etore, Irma e Maria Cecília que o receberam da minha irmã Rita, que reside em Tanabi. 13 As questões foram elaboradas a partir da leitura de diversos autores e trabalhos de História Oral. Um modelo do questionário está disponível no final desta dissertação, no Anexo. 14 Como esta foi a nossa primeira experiência com entrevistas, acreditamos que, em alguns momentos, perdemos a oportunidade de aprofundar determinados assuntos mencionados pelos colaboradores. 11 mundo social de seus colaboradores, buscando uma compreensão da história, a partir da vivência dessas pessoas. Nesse sentido, afirma Thompson (2002): “as possibilidades mais ricas para a História Oral se encontram no desenvolvimento de uma história mais socialmente consciente e democrática” (p.10). Em nossos diálogos com autores e atores de nosso trabalho, fomos aos poucos percebendo as características específicas da história que buscávamos escrever e das habilidades a que Thompson (2002) se referia. Com o uso da metodologia da História Oral, o contato com os professores, pessoas valorizadas pela comunidade onde trabalharam, levou-nos a um grande envolvimento com suas histórias de vida e suas experiências no meio escolar, o que nos propiciou a possibilidade de escrever uma história única, com particularidades e detalhes que, de outra forma, poderiam não ser revelados. Ao adentrar no universo desses professores, por meio de suas narrativas, conhecer o seu dia a dia, sua rotina de estudos, seu relacionamento com os alunos e outros tantos aspectos que se entrecruzam, a escrita dessa história tomou uma forma e se enriqueceu à medida que pessoas, objetos, dias festivos, datas importantes, aulas que marcaram, reuniões e muitas outras situações cotidianas foram sendo contadas e re-vivenciadas pelos entrevistados. As quatro primeiras entrevistas com os professores Maria Cecília Soccio Monteiro, Irma Rosa da Silveira Viana, Etore Bilia e Shirley Fabri Peruca aconteceram, respectivamente, nos dias 12 de junho, 14 de junho, 12 de julho e 4 de outubro de 2010, e foram realizadas na “Escola Mista da Fazenda Alferes”, localizada a dez quilômetros da área urbana de Tanabi e conhecida popularmente na região por “Escolinha do Bairro do Sapé15”. O local foi escolhido pelo fato de a autora desta investigação ter sido aluna dessa escola e o local estar em bom estado de conservação16.

15 Na cidade de Tanabi, o bairro onde se localiza esta escola é conhecido por Bairro do Sapé. Segundo a aluna Shirley, que é colaboradora nesta pesquisa, o bairro leva este nome porque, antigamente, havia no local, casas cobertas de sapé. 16 Para a realização das entrevistas, a escolinha foi, carinhosamente, limpa pela Shirley, que morava no bairro ao lado da escola, e é colaboradora nesta pesquisa. 12

Figura 3 - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, local onde foram realizadas as quatro primeiras entrevistas, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

A professora Maria Cecília Soccio Monteiro ficou feliz em retornar à escola onde foi professora de 1970 a 1986, e guarda boas lembranças. Formada no ano de 1963 no curso de magistério, por ser uma das únicas opções de profissionalização na região 17, a professora sempre participou de cursos de capacitação e chegou a cursar a graduação em Pedagogia além de curso de Pós-Graduação Lato Sensu.

Figura 4 - Momento da entrevista com a professora Maria Cecília Soccio Monteiro, na Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi-SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

A professora Irma Rosa da Silveira Viana, em nossa conversa, contou muitas situações que vivenciou nas escolas rurais nas quais trabalhou. Ex-aluna de escola rural, a professora lecionou 23 anos em escolas desta natureza na região. Ela também escolheu o magistério, por falta de opção em Tanabi. Formou-se Normalista em 1964, no Instituto de Educação Padre Fidélis, em Tanabi. Em 1965 iniciou o trabalho como professora na Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa, no município de Tanabi. A partir daquele ano,

17 Na época, a cidade só oferecia o curso Normal e o Técnico em Contabilidade. 13 seguiu longos períodos enfrentando diferentes realidades nos sítios onde trabalhou como professora. Depois de formada, realizou outros cursos relacionados à Educação, dentre eles, o curso de Pedagogia. O professor Etore Bilia formou-se Normalista em 1953. Iniciou o curso de Odontologia em Ribeirão Preto, mas por problemas familiares, abandonou a faculdade e tornou-se caminhoneiro. Tempos depois, a convite de um amigo 18, que ocupava as funções de diretor de escola, acabou exercendo a profissão de professor até aposentar-se. Ao longo de sua carreira, realizou muitos cursos, incluindo o de Pedagogia; assumiu aulas no ginásio e cargos administrativos na escola, como o de Diretor e Assistente de Direção. A quarta entrevista foi realizada com a Dona Shirley Fabri Peruca. Ex-aluna de escola rural e moradora próxima da escola19, manteve a conservação da escola até sua mudança em 2012. Ela limpava, pintava e preservava o prédio. Dona Shirley contou sobre o tempo em que estudou na escolinha: em 1949 fez o primeiro ano 20, uma época marcada pelo uso do laço de fita nos cabelos das meninas. Quando adulta, ajudava as professoras no preparo da merenda dos alunos, complementando a refeição com verduras da horta que cultivava.

18 O amigo é o Sr. Orlando Melotti, que também é colaborador nesta pesquisa. 19 Na ocasião da entrevista, a Shirley morava ao lado da Escola e, junto com o marido, tinham uma “Venda” – no mesmo local - na qual comercializavam bebidas, doces, entre outros. Em 2012, no entanto, eles estavam residindo na cidade de Tanabi e não trabalhavam mais com a “Venda”. 20 Segundo a Shirley, ela estudou os três primeiros anos nesta escolinha, mas no quarto ano foi estudar na cidade, pois essa série não era oferecida naquela escola. 14

Figura 5 - Turma de alunas da Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi-SP, na qual aparece a aluna Shirley Fabri Peruca no seu primeiro ano, 1949. Fonte: Acervo pessoal de Shirley Fabri Peruca.

A realização das entrevistas na Escola Mista da Fazenda Alferes, fez ressurgir na investigadora muitas lembranças de seu tempo de escola. Lembranças e emoções que se misturaram com as de ex-alunos e professores. Em alguns momentos foi possível “sentir” o tempo passado. A mesma sala, as mesmas lousas, a mesma carteira... Lembranças dos amigos, das aulas, da professora, a Dona Regina, da qual guarda muitas lembranças boas. As duas entrevistas21 seguintes aconteceram no dia 18 de maio de 2011, na residência de um casal de professores, Eunice Kannebley Melotti e Orlando Melotti. Embora a intenção inicial fosse entrevistar cada um separadamente, como era de se esperar, isso não aconteceu. Em muitos momentos, um interferia na fala do outro, na tentativa de complementar as informações. A professora Eunice sempre teve gosto por crianças. Foi por isso que decidiu ser normalista. Formou-se, em 1949, em um Colégio de -SP. Trabalhou muito em Grupos Escolares e teve uma rápida passagem em uma escola isolada

21 Quanto à gravação, houve um momento, no final da conversa com o professor Orlando, que acabou a bateria do gravador. Imediatamente, iniciei a gravação via celular, ficando assim, o final da gravação em um arquivo de áudio separado. 15 rural. Cursou Pedagogia e Geografia, e foi professora do ginásio. O professor Orlando formou-se, em 1949, na Escola Normal da cidade de Olímpia-SP, e foi professor durante cinco anos. Cursou, além do Normal, Administração Escolar e Pedagogia. Prestou concursos e tornou-se Diretor, Supervisor e Delegado de Ensino. Como Auxiliar de Inspeção, respondia administrativamente pelas escolas isoladas rurais do município de Tanabi, coordenando, inclusive, a abertura de novas escolas, quando isso se fazia necessário. No dia 19 de maio de 2011, entrevistamos as professoras Maria Feliciana Guimarães Donofre e Maria Virgínia Mendonça Sabatini. As duas entrevistas foram realizadas nas residências das professoras. Maria Feliciana formou-se no Curso Normal na Escola Padre Fidélis em Tanabi, no ano de 1970, mas também completou o curso de Técnica de Enfermagem, atuando como enfermeira antes de iniciar seu trabalho no magistério. Sua experiência com Escolas Isoladas Rurais foi de 1988 a 1994. A professora Maria Virgínia, formou-se normalista no ano de 1969, na cidade de São José do Rio Preto- SP e sempre se dedicou à educação. Fez vários cursos de capacitação e também Pedagogia, trabalhando inicialmente como professora, depois como Coordenadora Pedagógica e Diretora. Sua experiência com escolas isoladas rurais ocorreu de 1971 até 199122. No dia 08 de junho de 2011, retornamos à cidade de Tanabi para realizar as quatro últimas entrevistas. Neste dia, conversamos com a professora Mércia Maria Ribeiro Caires, também em sua residência. A professora Mércia havia feito algumas anotações, buscando responder às questões colocadas no questionário. Assim, durante a entrevista, ela recorreu às suas anotações para respondê-las. Mas, como ocorreu nas demais entrevistas, deixamos a entrevistada livre para falar o que considerasse importante e fizemos apenas algumas perguntas para esclarecer alguns aspectos ou para introduzir algum tema que não tivesse sido abordado. A professora Mércia formou-se normalista no ano de 1967, pela Escola Normal Padre Fidélis de Tanabi. Ela também concluiu os cursos de Licenciatura Curta em Ciências e Pedagogia. Iniciou o seu trabalho no magistério no ano seguinte à sua formatura na Escola Normal, em uma escola do município de -SP. Teve experiências no

22 Quando voltei para a leitura e aprovação do texto de transcrição de sua entrevista, a professora Maria Virgínia quis fazer algumas alterações, buscando, segundo ela, deixar as questões mais claras e objetivas. Com essas alterações, o texto ficou simplificado. 16 magistério em escolas isoladas rurais, Escolas Agrupadas 23 e classes do ensino secundário, de 1968 a 1984. Assumiu ainda a função de Assistente de Direção em Escola Agrupada. Por problemas nas cordas vocais foi readaptada24. Depois que saímos da residência da professora Mércia, seguimos para a residência da professora Zulmira Mattos Miziara, que se formou em 1946 na Escola Normal na cidade de Mirassol-SP. Escolhida a profissão por vontade de ser professora, mas também por ser o único curso oferecido na região, a professora Zulmira gostou muito de se dedicar à profissão. Cursou Pedagogia e outros cursos relacionados à área e, depois de muito tempo como professora, chegou a ser Diretora e até Secretária de Educação na cidade de Tanabi. A professora Zulmira lembra com muito gosto do tempo em que trabalhava na zona rural e afirma: “A professora era tudo. Professora era muito importante na zona rural”. Terminada a conversa com a professora Zulmira, seguimos para a residência da professora Maria Terezinha Monteiro Machado. A professora anotou algumas coisas, separou alguns livros didáticos, tudo com muita atenção para usar durante a entrevista. Formada no Curso Normal em Tanabi no ano de 1972, cursou Pedagogia além de outros cursos oferecidos no período de férias. A professora Maria Terezinha trabalhou em escolas isoladas e teve experiências também em Grupos Escolares. Por último, entrevistamos a professora Lourdes Rita de Paula Sanches Fernandes em sua casa. A professora havia anotado tudo o que iria falar na entrevista. Depois de olhar suas anotações, iniciamos a conversa. Formada em 1962, no Instituto de Educação Padre Fidélis em Tanabi, levada pela influência de seu gosto de trabalhar com pessoas e, sendo a única opção de continuar os estudos em Tanabi, formou-se normalista. Depois do curso Normal, realizou outros cursos, sempre buscando se aperfeiçoar em sua prática docente, entre eles a Pedagogia. Foi professora de Escolas Isoladas rurais, Grupos Escolares e Diretora escolar. As conversas com os professores foram momentos muito especiais para eles e para a investigadora. Percebemos que os entrevistados ficaram felizes em compartilhar sua

23 Segundo a professora Mércia, essas escolas agrupadas normalmente tinham um pátio pequeno no meio e uma classe de cada lado. De um lado tinha a cozinha que saía para o pátio; do outro, tinha a secretaria, que também saía para o pátio. De manhã, funcionavam normalmente a terceira e quarta séries, à tarde, a primeira e segunda séries. 24 Neste período como readaptada, trabalhava na secretaria da escola e ajudava na biblioteca entre outras atividades. 17 experiência. As lembranças sempre são permeadas pela emoção. Foi possível observar em vários momentos olhos lacrimejados. Como nos diz Thompson (2002), a entrevista contribui para a quebra de barreira entre o estudante ou a universidade e as pessoas da sociedade, que, certamente, conhecem mais sobre algo que se busca pesquisar. Além disso, é uma demonstração de valorização de pessoas da comunidade e de seus conhecimentos. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio. Isso, segundo Thompson (2002) permite que a história seja registrada por meio de palavras faladas, o que garante “vida na história”. Após a realização das entrevistas, realizamos a transcrição literal de cada uma delas. O passo seguinte foi o da textualização, processo no qual acatamos a posição de Meihy (1996), retirando os vícios de linguagem, fazendo uma “limpeza”, fechando o texto da entrevista. Segundo Martins (2003), “são várias as textualizações (ou vários os momentos de uma textualização) possíveis. Um primeiro momento pode ocorrer apenas com a “limpeza” dos vícios de linguagem e inclusão, no texto, das perguntas do entrevistador.” (p.17). Assim, optamos por fazer apenas esse “primeiro momento” da textualização e manter as perguntas originais, não fazendo uma transcriação, que seria, segundo Garnica (2007), uma forma de textualização mais ousada. Ou seja, fizemos apenas uma textualização inicial que, de acordo com Garnica (2007), é o processo de

excluir do texto da transcrição alguns registros próprios da oralidade (usualmente chamados como “apoios”, “muletas” ou “vícios de linguagem”) e preencher algumas poucas lacunas que tornarão a leitura do depoimento mais fluente. (Garnica, 2007, p. 54)

Após a realização das entrevistas e concluído o processo de transcrição/textualização, encaminhamos os textos para os colaboradores realizarem a conferência e autorizarem o seu uso no trabalho. Os textos revisados foram incluídos no exame de qualificação e avaliados pelos membros da banca examinadora de qualificação. Nessa oportunidade, a banca solicitou que os textos fossem complementados com algumas informações pontuais, tais como: confirmação de algumas datas; nomes de municípios de algumas escolas citadas; cargos exercidos por entrevistados; distâncias de algumas cidades em que os professores trabalharam em relação a Tanabi-SP. Solicitamos aos entrevistados essas informações e as incluímos em notas de rodapé, para não alterar o texto já revisto e

18 autorizado. Com a finalização dessa nova etapa de negociações, os entrevistados assinaram a Carta de Cessão, na qual estão explicitados os compromissos assumidos pelo pesquisador e colaboradores: no CD, que integrará os exemplares finais da dissertação, constarão as transcrições (rubricadas pelos colaboradores) e o áudio das entrevistas. Além disso, as textualizações das entrevistas e as Cartas de Cessão, devidamente assinadas e com firma reconhecida, serão reproduzidas, respectivamente, nos Apêndice e Anexo desses exemplares. Essas decisões foram tomadas em comum acordo com os colaboradores. Os textos das entrevistas apresentam muitas diferenças. Embora realizadas com o mesmo objetivo e tendo o mesmo encaminhamento, cada colaborador decidiu a forma de caminhar em sua narrativa e a investigadora respeitou suas escolhas. Esse respeito com as lembranças do entrevistado, também ocorreu no momento da conferência do texto. Cada um pôde, a seu modo, decidir o que era para ser mantido ou não no texto. Em alguns momentos houve uma negociação sobre a manutenção ou não de alguma parte do texto, porém a decisão final foi sempre do entrevistado, autor principal do texto.

Apresentando os capítulos

A nossa narrativa histórica foi escrita em quatro capítulos. No capítulo 1, intitulado “O município de Tanabi e suas escolas rurais”, apresentamos um cenário do sistema escolar daquele município. Para isso, evidenciamos aspectos históricos dessas escolas, dialogando com relatórios da Delegacia de Ensino, historiadores que se debruçaram sobre a cidade de Tanabi, autores que analisaram a constituição das escolas rurais no Estado de São Paulo e com narrativas de nossos entrevistados. Uma atenção especial foi data aos prédios escolares. Apoiados em Kossoy (2002), Benjamin (1994), dentre outros, apresentamos algumas leituras de documentos iconográficos de prédios escolares da região. No capítulo 2, “Da formação ao cotidiano das escolas rurais: conversando com os professores” discutimos aspectos relacionados a práticas escolares realizadas pelos professores quando de sua atuação em escolas rurais. Para isso, inicialmente centramos nossa atenção em aspectos relacionados à formação desses professores e às dificuldades encontradas nos anos iniciais na profissão para, em seguida, adentrarmos em aspectos específicos de suas práticas escolares em escolas rurais. Além das contribuições das

19 narrativas dos entrevistados na composição deste capítulo, usamos trechos de relatórios de Inspetores de Ensino em visitas a essas escolas. Sobre o ensino, centralizaremos nossa atenção nas práticas desenvolvidas em salas multisseriadas. Nesta temática, dialogamos com o trabalho de Martins (2003). No capítulo 3, intitulado “Práticas de ensinar e aprender Matemática em escolas rurais de Tanabi/SP”, dedicamos atenção especial às práticas relacionadas à Matemática, questão central de nossa investigação. As temáticas abordadas foram as evidenciadas pelas narrativas, que estão agrupadas em três itens: escrita de palavras e números; ensino e aprendizagem de operações aritméticas e ensino e aprendizagem da tabuada. Neste capítulo dialogamos com diversos autores de livros sobre metodologia do ensino da Matemática nas séries iniciais, dentre os quais encontram-se Toledo (1930); D’Ávila (1946); Aguayo (1947); Santos (1958); Castro et. al. (s/d), bem como com alguns textos de orientações elaborados por órgãos oficiais. No capítulo 4, “Considerações Finais”, apresentamos algumas reflexões sobre as práticas de ensino de Matemática de nossos colaboradores, considerando, com Fiorentini (1995), que “cada professor constrói idiossincraticamente seu ideário pedagógico a partir de pressupostos teóricos e de sua reflexão sobre a prática” (p. 3). Em nossas reflexões apontamos para apropriações da Matemática Moderna que se entrecruzam com pressupostos da Escola Nova.

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CAPÍTULO 1 – O MUNICÍPIO DE TANABI E SUAS ESCOLAS RURAIS

“Se me perguntarem: Você foi aluna de escola rural? Respondo, sem dúvida: Sim, com muito orgulho!”

(A autora)

Com a proclamação da República em 1889, o Estado de São Paulo iniciou o funcionamento de escolas graduadas de nível primário: os Grupos Escolares. Símbolo da República, essas escolas modernas, urbanas e de qualidade revelam “uma política educacional de privilegiamento das cidades em detrimento da zona rural; isso em uma época em que cerca de 70% da população do Estado vivia no campo” (SOUZA, 1998, p. 51, apud SILVA, 2012, p. 126). Nas comunidades rurais, as únicas escolas mantidas pelo Estado eram as Escolas Isoladas. Iniciadas ainda no Período Imperial, as Escolas Isoladas existiram em alguns locais até a segunda metade do século XX. Essa denominação caracteriza um tipo de escola que tinha apenas um professor para ensinar, em uma mesma sala, alunos de diferentes níveis de ensino. Eram as chamadas “classes multisseriadas”. Muitas vezes essas classes eram mistas, por atenderem meninos e meninas em um mesmo espaço, o que contrariava os padrões educacionais tradicionais praticados principalmente nos Grupos Escolares, que estabeleciam “como ideal escolar a separação dos alunos por gênero, tanto na formação das turmas como no currículo diferenciado” (SILVA, 2012, p. 111). Durante o século XX, “embora continuassem sendo instaladas nas zonas urbanas, nos bairros populares, nas vilas industriais e nos núcleos de colonização”, as escolas isoladas eram associadas a escolas rurais, uma vez que era na zona rural que esse tipo de escola mista predominava. “Em 1924, por exemplo, funcionaram no estado de São Paulo 1.505 escolas isoladas, sendo que 283 eram urbanas e 1.222 rurais”, as mistas em “número igual a 1.211, enquanto 236 figuravam como masculinas e 58 exclusivamente femininas” (SOUZA, 2009, apud SILVA, 2012, p. 119-120). O funcionamento das Escolas Isoladas rurais, no entanto, não contava com o auxílio financeiro do Governo, que investia mais nos Grupos Escolares. Segundo Demartini 21

(2009), “o Governo mandava o professor para o interior e esse professor ficava “solto”, sem qualquer apoio institucional; na prática, a escola funcionava às custas do mestre e da população” (p. 200). A estrutura das Escolas Isoladas, em particular das rurais, era muito diferenciada da dos Grupos Escolares, símbolos de modernização da educação na República. Na maioria das Escolas Isoladas eram oferecidos apenas três graus de ensino (ou séries), ao contrário das quatro séries dos Grupos Escolares. Além disso, segundo Silva (2012), o estudante não tinha direito a nenhum certificado ou diploma oficial, que comprovasse que havia estudado em uma dessas escolas. Algumas professoras emitiam “de próprio punho e de forma improvisada, um ‘certificado’ de ‘conclusão’ do curso primário” para seus alunos (SILVA, 2012, p. 173). O discurso modernizador da Educação da República colocou “‘embaixo do tapete’” as Escolas Isoladas, “para não serem vistas” (SILVA, 2012, p. 172). Na cidade de Tanabi, fundada em 1882, não havia inicialmente nenhuma escola. Segundo Caprio (2009), naquele período, como ocorria em outras partes do país, as famílias “dos mais abastados”, os fazendeiros ou donos de terra, contratavam professores particulares para os seus filhos. Os trabalhadores rurais não tinham acesso à educação. Segundo esse autor, no ano de 1908, Tanabi recebeu, provavelmente pela primeira vez, a visita de um Inspetor Distrital de Educação, o Prof. Joaquim Cândido da Corte e Brito, que tinha o objetivo de conhecer as necessidades educacionais da região. Tratava-se da visita oficial de um representante da Secretaria do Interior, criada após a República, e que tinha a responsabilidade pelas questões educacionais do Estado. Ao que tudo indica, no entanto, a visita do inspetor não chegou a mudar a situação educacional da região. A primeira Escola Isolada de Tanabi seria criada apenas em 1921.

Tanabi: Rio das Borboletas?

“Rio das divinais borboletas - Diz seu nome em Tupi-Guarani, E, é assim que a decantam seus poetas: Tanabi! Tanabi! Tanabi! (...)”

(Trecho do Hino do Município)

Com uma população aproximada de 24 mil habitantes, a cidade de Tanabi localiza- 22 se a Noroeste do Estado de São Paulo, como mostra a Figura 6. A maior parte de sua população - em torno de 21.000 pessoas - vive na zona urbana. É uma cidade plana, com muitas casas térreas e um prédio. Muitas ruas tranquilas e poucas avenidas. Na praça central encontra-se a matriz de Nossa Senhora da Conceição. Tranquilidade e simplicidade são características de grande parte de sua população que, formada inicialmente por índios que viviam na região, foi sendo habitada por espanhóis, italianos, portugueses, sírios, libaneses, japoneses, negros e índios (CAPRIO, 2009, p. 349). A cidade completou 130 anos em 2012.

Figura 6 - Mapa do Estado de São Paulo, (sd) com Tanabi em destaque Fonte: Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:SaoPaulo_Municip_Tanabi.svg. Acesso em: 01/08/2011.

Tanabi é uma palavra de origem tupi-guarani, que significa “o lugar onde habitam as borboletas” ou “Rio das Borboletas”. “Opananbi” ou “Panambi” refere-se a borboletas, que na língua indígena pode ser traduzida como “orelha que voa” ou “orelhas voadoras”, por ser a borboleta associada a um par de orelhas em movimento. As margens do rio Jatai 25, no município de Tanabi, eram habitadas por grande número de borboletas amarelas onde, ainda hoje, é possível encontrá-las (CAPRIO, 2003, p. 69-70). Uma outra versão para o nome Tanabi é apresentada no Relatório da Delegacia Regional de Rio Preto, de 1933. Segundo ele, Tanabi é uma corruptela de Tanambi, que significa fruta áspera. “Isso em razão de haver nas redondezas do povoado ‘abundancia de

25 A região de Tanabi tem duas grandes bacias hidrográficas: a da Fortaleza, onde nasce o Rio Jataí, e da Cachoeira dos Felícios. A região possui grande número de rios, riachos, regatos e afloramentos de água naturais e está implantada sobre o grande e fantástico Aquífero Guarani. (CAPRIO, 2009, p. 347) 23 frutas asperas’”26 tais como: goiabas, cajus, guabirobas, etc. (RIO PRETO, 1933, p.15). Para o redator, “tan” significa áspero, adstringente, “am”, como mastigo e “mbi”, folha, árvore, planta. Ao que parece, a primeira versão prevaleceu. Na bandeira da cidade (Figura 7), aparece representada a imagem de uma borboleta, sob uma faixa amarela, que simboliza as riquezas do município. Uma faixa azul perpendicular à amarela representa o Rio Jatai (CAPRIO, 2003, p. 70), onde até hoje existem borboletas amarelas. A denominação Tanabi (inicialmente grafada com a letra “y” ao final), para designar a vila que seria criada, foi sugerida pelo então Presidente da Câmara Municipal de São José Rio Preto, Coronel Adolpho Guimarães Corrêa e aprovada pelos demais representantes em 1906. Antes disso, a região era denominada Capela do Jatahy, Povoado do Jatahy ou Vale do Jatahy. A partir de 1940, foi definitivamente adotada a grafia Tanabi (CAPRIO, 2003, p. 69).

Figura 7 – Bandeira da cidade de Tanabi Fonte: Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bandeira_de_Tanabi_SP.jpg. Acesso em: 03/12/2012.

O Hino27 do Município nos fala um pouco da história da cidade, poeticamente cantada em versos. Foi um bom caiapó, batizado com seu nome de timbre cristão, quem, primeiro, deixou desbravado este nosso longínquo rincão.

E ao seu rancho outros mais se juntando,

26 Nas citações de livros antigos, manteremos a ortografia e a acentuação gráfica originais do documento. 27 De autoria de João de Melo Macedo, consagrado poeta bucólico. (OLIVEIRA, 1977, p. 44). 24

na colina de aquém Jataí, foram, logo, um povoado formando onde iria surgir Tanabi...

(...)

Estribilho: - Rio das divinais borboletas - diz seu nome em tupi-guarani. E é assim que a decantam seus poetas: Tanabi! Tanabi! Tanabi!

O caiapó mencionado no Hino, cujo nome cristão era Joaquim Chico28, teria se instalado na região em 1860, às margens do rio Jataí. Neste local, construiu “uma choça de capim e nela vendia rapadura, fumo e cachaça, além de outros artigos de maior necessidade” (OLIVEIRA, 1977, p. 10). Segundo o mesmo autor, o índio caiapó abriu uma “estreita picada”, que ia até “as bandas de Rio Preto”, por onde transportava as mercadorias em cargueiros, trazidos de lugares distantes (ibidem, p. 10). Trinta anos depois, “pelo ano de 1890”, o Governo do Estado autorizou a construção de uma “estrada carroçável, partindo de para terminar nas barrancas do Rio Grande, nas proximidades de sua confluência com o Paranaíba”. O engenheiro responsável pela construção da estrada, Dr. Humel, “aproveitou quasi toda a picada aberta por Joaquim Chico” (RIO PRETO, 1933, p. 16). As matas virgens que cercavam Tanabi, em 1890, registradas em alguns apontamentos locais, causaram estranheza ao relator do Relatório de 1933, que decidiu registrar um dos episódios em seu texto. O relato diz respeito a uma situação vivida pelo “velho Tio Pedro” no pantanal da antiga fazenda Jatahy, que era “um ninho de jacarés e um viveiro de monstruosas sucuris” (RIO PRETO, 1933, p. 17). Tio Pedro gostava de ir até o mangue para ”pescar lambarís e tarrafear – corimbatás”. Em certa ocasião, ele estava cansado e viu um grosso tronco e “sobre ele sentou-se calmamente”. Na verdade, este

28 “Na metade do século XIX, a região do Jatahy já registrava inúmeros posseiros em terras devolutas do Estado, vindos de toda a região, a maioria estrangeiros e descendentes. Francisco de Paula Oliveira – posseiro de terras na região da Cachoeira dos Felícios – alto do Jataí-de-cima, português vindo de e que tinha como companheira uma índia da tribo dos caiapós. Com ela teve dois filhos – Joaquim Francisco de Oliveira (Joaquim Chico) e Manoel Francisco de Oliveira” (CAPRIO, Antonio. Disponível em: http://antoniocaprio-memoriatanabi.blogspot.com/p/resumo-da-historia-de-tanabi.html. Acesso em 09 jan. 2012). 25 tronco era parte de uma monstruosa sucuri, que o Sr. Pedro, depois de uma “luta titanica, de lances emocionantes”, conseguiu vencer (RIO PRETO, 1933, p. 18). Na presença de Joaquim Chico, considerado fundador e primeiro habitante, e de outros moradores do povoado, em 4 de julho de 1882, foi erguida uma cruz, marco simbólico da fundação do Arraial do Jatahy 29. Segundo Oliveira (1977), o cruzeiro de madeira simboliza um “gesto litúrgico que, em todo o Brasil cristão, indica a constituição de uma localidade” (OLIVEIRA, 1977, p. 10). Foi escolhida como padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Foi iniciada, então, a construção da primeira igreja, uma capela de madeira, coberta de sapé, que “foi logo substituída por outra de alvenaria, terminada em 1901 e que foi demolida em 1932/33” (idem, p. 11) (Figura 8). As casas seriam construídas ao redor da igreja. Era assim que as cidades nasciam no Brasil.

Figura 8 - Quadro - óleo sobre tela do artista Julio Soares Bonfim retratando a capela construída em 1901 em alvenaria, que substituiu a capela anterior, 1967. Fonte: Disponível em: http://antoniocaprio-memoriatanabi.blogspot.com.br/p/arte-tanabiense.html. Acesso em 03/12/2012.

A primeira fase do prédio da nova igreja foi concluída em 1933 (Figura 9). Construída em outro local, a nova igreja recebeu a denominação de Matriz Nossa Senhora da Conceição no ano de 1953.

29 “Os movimentos imigratórios externos e depois o migratório interno, especialmente de Minas Gerais e Mato Grosso para a região de Tanabi, acabaram por levar os habitantes-posseiros do Vale do Jatahy a organizar o Arraial, exatamente para proteger as propriedades do avanço de novos imigrantes e migrantes e conseqüentes invasões das áreas já ocupadas por numerosas famílias. A expressão arraial tem conotação militar e objetiva proteger o rei, no caso, os posseiros” (CAPRIO, p. 348, 2009, grifo do autor) 26

Figura 9 - Vista das obras da Igreja Matriz atual em foto de 1938. Fonte: Disponível em: http://antoniocaprio-memoriatanabi.blogspot.com.br/p/social.html. Acesso em 05/08/2013.

Em meados do ano de 1954 foi concluída a construção da torre dessa mesma Igreja (CAPRIO, 2003, p.199). Atualmente, sua aparência corresponde à Figura 10, a seguir.

Figura 10 - Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição. Outra imagem da Igreja vista da Praça João de Melo, 2011. Fonte: Disponível em: http://antoniocaprio-memoriatanabi.blogspot.com.br/p/album-igreja- matriz.html. Acesso em 05/08/2013.

O distrito Policial e o de Paz, foram criados, respectivamente, em 1902 e 1907 (OLIVEIRA, 1977, p. 30-31). O “Distrito de Paz de Tanaby” manteve-se como um distrito de Rio Preto até a criação do município de Tanabi, em 1924. No Relatório de 1933, mencionado anteriormente, o relator registra que ainda existia a primeira Igreja construída, sob a orientação de Joaquim Chico e execução de Bento Peres de Souza. Observa, também, que “outras casas, tais como a ‘casa paroquial’, lembram os primeiros tempos de Tanabi, por isso que conservam o seu primeiro feitío – 27 paredes largas, terra batida, janelas estreitas, rotulas 30, etc.” (RIO PRETO, 1933, p.16 e 17). Em 1933, segundo o Relatório, as cidades da região eram “novas e florescentes” e suas terras eram “prodigiosamente ferteis” embora o clima fosse “excessivamente quente e pouco saudavel”. A região exportava grãos e gado. “Em toda a zona, principalmente na rural, grassa o amarelão e a maleita, em carater endemico”. O tracoma e o tifo eram também bem conhecidos na região. Em 1933, apenas em Rio Preto havia um posto de higiene (RIO PRETO, 1933, p. 31). Nesse período, segundo o mesmo Relatório, o município de Tanabi, composto por 17 povoados, tinha uma população de 30.000 habitantes, sendo 17.000 estrangeiros. Apenas 3.000 moravam na sede do município. Ou seja, a população da zona rural era de 27.000. A população escolar do município, que considerava as pessoas de 7 a 14 anos, era de 3450 alunos. Na segunda metade da década de 1930, os “trilhos da modernidade 31” chegam até Tanabi, sendo que em 1936, a Estação Ferroviária inicia suas atividades, com a estrada de ferro Araraquarense. Segundo Oliveira (1977), o fato de a estação do município estar localizada fora do perímetro urbano, teria sido um elemento dificultador de seu uso pela população da cidade. Para as pessoas que viviam na zona rural, no entanto, esses trilhos possibilitaram encontros, viagens, alegrias. A Shirley, em sua entrevista, mostrou uma fotografia (Figura 11), de jovens na estação, recordando-se com saudade daqueles tempos:

Tinha muito movimento a estação ali. A gente pegava o trem, ia pra Rio Preto 32. De Rio Preto pegava de volta piava 33 aqui. Então era aquele trânsito, sabe, que nem um ônibus, né? Só que era o trem que levava. A maioria das pessoas pegava o trem pra ir pra Rio Preto, Mirassol34, tudo lado pra lá. (SHIRLEY FABRI PERUCA, entrevista em 04/10/2010).

30 Segundo o dicionário Aurélio, é uma grade de madeira de certas janelas e portas que deixa entrar luz e ar pelo intervalo das ripas entrecruzadas de que é feita. 31 Termo utilizado por Maria Silvia Duarte Hadler, em seu trabalho intitulado: Trilhos da modernidade: memórias e educação urbana dos sentidos. Tese de Doutorado, FE-Unicamp/2007. 32 Ela se refere à cidade de São José do Rio Preto, que dista 40 quilômetros de Tanabi. 33 Shirley está usando uma corruptela do verbo “apear”. O seu significado era “descer, pôr no chão”. Ele era usado inicialmente com o significado de descer do cavalo ou da carruagem. Com a chegada dos trens, por analogia, o verbo continuou a ser usado, em especial no meio rural. 34 Mirassol dista 26 quilômetros de Tanabi. 28

Figura 11 - Grupo de jovens na Estação Ferroviária de Tanabi, (sd). Fonte: Acervo pessoal da Sra. Shirley Fabri Peruca.

Durante muitos anos, a zona rural abrigou a maior parte da população de Tanabi. Em 1950, por exemplo, enquanto na zona urbana viviam 4.926 pessoas, a zona rural era habitada por mais de 12.000 pessoas (CAPRIO, 2009, p.350 ). A decisão de se colocar a estação na zona rural, motivada por fatores políticos e econômicos, propiciou aos trabalhadores rurais momentos de lazer e a possibilidade de locomoção para outros espaços, como Shirley Peruca lembrou em sua entrevista. Em seu estudo, Lança (2009) observa que a linha férrea Araraquarense atendeu a cidade de no momento em que a produção cafeeira estava em alta. Já a cidade de Tanabi, foi atendida tempos depois. Diferente de cidades como Araraquara e São José do Rio Preto, Tanabi valia-se da estrada de rodagem para o escoamento de sua produção, como a estrada do Taboado (ou Boiadeira), que interliga Jaboticabal e Cuiabá. Tanabi utiliza a rota de viajantes para o Mato Grosso. Atualmente, o município sobrevive de pequenas indústrias, o comércio local e agriculturas diversas, como por exemplo, a seringueira e, mais recentemente, o plantio de cana em propriedades cedidas. Finalizamos essa breve apresentação histórica sobre o “Rio das Borboletas”, com alguns versos escritos por Dinorath do Valle Kuyumjian, “uma das mais talentosas professoras que lecionaram no Colégio Estadual e Escola Normal ‘Pe. Fidélis’”

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(OLIVEIRA, 1977, p.76), dedicados à cidade de Tanabi. A TANABI

Aqui estou eu, de intrusa, Querendo bem à terra onde não vivo, Onde nem sequer nasci... Para quem racionaliza emoções É surpreendente saber Que o coração cria raízes Como a grama do jardim Na Praça da Matriz, Plantada de propósito Para ser verde Entre as alamedas de pedra... Aqui cheguei para ganhar a vida E ganhei o amor de vossos filhos E o doce afeto de vossa juventude. Mas não foi só: Tenho o remorso de levar ainda A gratidão incompreensível Da velha geração... Grata estou pequena Tanabi, Onde cheguei com o olhar entediado No “Mayflower” de um carro do Salgado, Analisando a pequenez das ruas, Cega ante a grandeza oculta De seu povo simples... Hei de partir um dia Que se aproxima inexorável Como pede a vida, Com os olhos molhados de sentidos. Sem racionalizar a emoção Serei cega à pequenez das ruas E dolorosamente consciente Da grandeza singela deste povo.

(OLIVEIRA, 1977, p. 77).

O Município de Tanabi e suas Escolas

No Relatório da Região de Rio Preto, de 1933, feito pelo Delegado Regional, encontramos a informação de que “a primeira escola que funcionou em Tanabi foi a mista, estadual, regida pela professora Regina de Melo, cuja posse se deu em 18 de julho de 1.921” (RIO PRETO, 1933, p. 17). Em contrapartida, Oliveira (1977) afirma que no ano de 1920, consta a existência de duas “escolas isoladas estaduais com 53 alunos matriculados”, que foram em 1922 transformadas em “Escolas Reunidas” de Tanabi. Neste mesmo ano, chega à cidade, por remoção, o primeiro professor efetivo estadual, e são nomeados um

30 diretor, dois professores e um servente. (p. 46). De acordo com o Relatório, consta a existência, entre os anos de 1932 e 1933, de uma Escolas Reunidas, que teria sido criada apenas em novembro de 1925, com três classes; duas Escolas Isoladas Urbanas e cinco Escolas Isoladas Rurais, todas pela Instrução Pública Estadual. O Relatório também menciona que não existe nenhuma escola de Instrução Pública Municipal e que as escolas particulares “que existem estão competentemente fiscalisadas e orientadas pelo Serviço Especial do Ensino Particular” (RIO PRETO, 1933, p. 41). Em seu Relatório, o Delegado Regional menciona que a carência de escolas era tão insistentemente manifestada por representantes da região que o Sr. Diretor Geral, prof. Sud Menucci, “resolveu visitar a Região e assim verificar, ‘in loco’, todas as suas necessidades” (RIO PRETO, 1933, p. 63). A visita foi realizada nos dias 21 e 22 de abril de 1932. O Diretor Geral concordou com as necessidades e sugeriu a criação de 81 classes na Região de Rio Preto. No entanto, a “irrupção do Movimento Constitucionalista de 9 de julho”, bem como a saída de Sud Menucci do cargo de Diretor impediram que as classes fossem criadas. O professor João Toledo, substituto do professor Sud Menucci, no entanto, conseguiu contemplar apenas parte das vagas. “Autoridades municipais, fazendeiros e sitiantes”, no entanto, voltaram a solicitar as vagas necessárias e foram atendidos pelo então Diretor Fernando de Azevedo (RIO PRETO, 1933, p. 64). Na continuidade de seu Relatório, o relator enfatiza a importância da criação da Delegacia de Ensino da Alta Araraquarence para o acompanhamento e solução dos problemas educacionais da região e apresenta vários gráficos demonstrando a significativa mudança quantitativa ocorrida nos anos de 1932 e 1933, em relação aos anteriores. Diferente da Capital e de outras cidades do Estado, na região as chamadas “Escolas Agrupadas” não possuíam prédios específicos, mas funcionavam em prédios alugados de vários tipos. Apenas o prédio do 1º Grupo da cidade de Rio Preto pertencia ao Estado. Os demais dez estabelecimentos agrupados funcionavam em prédios adaptados e alugados, “às vezes, por preços exorbitantes” (RIO PRETO, 1933, p. 102). Várias escolas criadas continuavam vagas, sem professor. Algumas dessas escolas foram transferidas para outros locais ou mudaram suas denominações. Em novembro de 1933, a cidade de Tanabi, segundo o Relatório de 1933, tinha uma Escolas Reunidas com duas classes e cinco Escolas Isoladas Mistas providas: Vila

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Monteiro, Américo de Campos, Fazenda Nova, Fortaleza e Perobas. As professoras destas escolas eram: Ana Candida de Carvalho Morais, Alda Branca d’Avila, Luzia Antonieta Madela, Maria Vendramini e Natalia Machado. Os funcionários das Escolas Reunidas da Sede eram: Diretor: Professor Francisco Viola, Servente: Sr. José Carneiro de Abreu e Professoras: Julia de Lima Brito e Iria Malvino de Silos. No Relatório de 1934, apresentado pelo Delegado Regional de Rio Preto, Prof. José Clozel, agora em um formato mais “simples e sucinto”, como havia sido recomendado pelo Comunicado nº 43, de 13/11/934, encontramos pequenas mudanças na situação educacional de Tanabi. Na época, a cidade era a única da região que ainda não tinha um Grupo Escolar. O relator, no entanto, informa que havia sido aprovada a criação de um Grupo Escolar na cidade, com quatro classes, aguardando apenas a reforma no prédio que seria alugado, para início de funcionamento em 1935. Tanabi mantinha em sua rede escolar uma Escolas Reunidas com três classes e cinco Escolas Isoladas Estaduais (cinco classes). Além disso, aparecem agora três Escolas Municipais (três classes) e três Escolas Particulares (três classes). Neste Relatório aprecem os dados sobre matrícula e aprovação. Nas classes da Escolas Reunidas, as matrículas realizadas no mês de novembro, nos anos de 1932, 1933 e 1934 foram, respectivamente, 116, 120 e 118. A promoção nos respectivos anos foi de: 43 (37,06%), 65 (54,16%) e 67 (56,77%). Embora o número total de alunos permanecesse praticamente o mesmo, as promoções tiveram um pequeno aumento, representando, no entanto, a aprovação de pouco mais da metade dos alunos. Os dados relativos às escolas isoladas apontam uma maior reprovação. No ano de 1933 foram aprovados apenas 37,74%. Em 1934, o número de promovidos aumentou, mas ficou ainda abaixo de 50%. Neste ano, apenas 42,77% dos alunos foram aprovados. Não existem informações sobre as matrículas e aprovação das escolas municipais e particulares. Em seu Relatório, o Delegado Regional informa sobre as visitas realizadas no ano de 1934 em todas as cidades da região. A cidade de Tanabi recebeu 12 visitas. Em suas observações finais, o Delegado menciona as dificuldades para realizar visitas, devido às condições dos transportes e das estradas, que exigiam um gasto maior dos inspetores. Por isso, solicitava o aumento das verbas destinadas às visitações e a inclusão de mais um inspetor para a Região. Nesse Relatório, encontramos informações sobre a existência de duas Escolas Normais livres na Região: uma em Rio Preto e outra em Mirassol (RIO PRETO, 1934).

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Os Relatórios seguintes da Região de Rio Preto, a que tivemos acesso, foram os de 1940 e 1943. O Delegado de Ensino, que assina o Relatório de 1940, era o Professor Calixto de Souza Aranha, que já havia sido Inspetor Escolar da Região. Nessa Região, em 1940, não existia nenhuma escola pré-primária. No município de Tanabi, estavam em funcionamento uma Escolas Reunidas, que já aparece contemplada com a denominação de Grupo Escolar, com sete classes, agora denominadas “unidades de grupo”, dezoito Escolas Isoladas Estaduais, duas Escolas Isoladas Municipais e nenhuma particular (RIO PRETO, 1940, p.18). De acordo com Caprio (2009), a Escolas Reunidas foi transformada no primeiro Grupo Escolar da cidade por decreto, em 1935. (p. 314) O Relatório referente ao ano de 1943 do mesmo Delegado de Ensino é bem mais resumido. O número de Escolas de Tanabi cresceu significativamente em apenas três anos, sendo na ocasião: 1 Grupo Escolar com 10 unidades, cujo prédio próprio se encontrava em construção no ano de 1943, 42 Escolas Isoladas Estaduais, 10 Escolas Isoladas Municipais e 2 Escolas Isoladas Particulares. Esse acréscimo pode ser explicado, ao menos em parte, pela anexação à Região de Rio Preto dos municípios de Olímpia, Palestina, e , alguns deles fazendo divisa com Tanabi. Ao final da década de 1940, Tanabi já possuía em sua rede escolar um Grupo Escolar, Escolas Isoladas e o Ginásio Municipal Fernando Costa. A aspiração de parte da sociedade era a de que Tanabi pudesse ter uma Escola Normal, como já ocorria em outras cidades da Região. Essa Escola possibilitaria que jovens de Tanabi pudessem ter uma formação profissional em sua própria cidade. Segundo Oliveira (1977), “na época, o maior ideal dos jovens era ser professor porquanto os cursos de Direito, Medicina e Engenharia, eram ainda inacessíveis para a maioria” (p. 47). Muitos foram os envolvidos no processo de criação da Escola Normal de Tanabi, mas

merece destaque o trabalho desenvolvido na Assembléia Legislativa pelo ilustre deputado Waldy Rodrigues, autor do projeto pedindo a criação da Escola Normal de Tanabi. Secundado, posteriormente, por outros nobres colegas, (...), acolhida por uns com encómios, rebatida por outros com apôdos, acabou vitoriosa e satisfeita a velha aspiração da cidade e, assim, ao apagar das luzes de 1949, foi finalmente criada a Escola Normal para funcionar anexa ao Ginásio Estadual sob o patrocínio do Interventor35 Fernando Costa aquele mesmo que patrocinou a

35 “Interventor no Brasil é aquele que, em período anormal, assume a presidência de um Estado, como representante do Presidente da República. Neste caso, período autoritário denominado de Estado Novo – 1937 a 1945, iniciado pelo golpe liderado pelo presidente Getúlio Vargas”. (MARTINS-SALANDIM, M. E. 33

criação de nossa comarca (OLIVEIRA, 1977, p. 47).

A Escola Normal de Tanabi foi criada como anexa ao Ginásio da Cidade, que passava a se denominar Ginásio Estadual e Escola Normal de Tanabi, por Lei de janeiro de 1950. Nessa Escola, foram formados muitos professores que trabalharam não só nas escolas urbanas da cidade, como também em escolas isoladas na zona rural. Na cidade, houve ainda, em 1952, a criação da Escola Técnica de Comércio Visconde de Mauá, que oferecia os cursos básico e técnico. Mas e as escolas isoladas da zona rural? Como elas estavam neste período no cenário educacional do município? Caprio (2009) nos conta que na década de 1950 existiam enormes colônias em fazendas na zona rural de Tanabi, onde havia escolas. Fazendeiros da comunidade doavam terrenos para o Estado, que “construía a escola, nomeando para a mesma os professores que atuavam no local por vários anos, através de convênios com o Município” (p. 350). Em sua entrevista, o professor Orlando, comenta que o município de Tanabi chegou a ter 57 escolas isoladas na zona rural. Segundo esse professor, as escolas tinham denominações específicas, de acordo com suas características:

A escola era dividida. Naquela ocasião, existia a escola mista, que era alunos, meninas e meninos. E escola masculina, é uma figura que desapareceu, e escola de difícil acesso, muito ruim e difícil às vezes até para pensão, então a gente colocava como escola masculina 36, só tinha acesso à escola masculina o professor do sexo masculino, só para homem, entende? Naquele tempo tinha, hoje não tem homem mais que leciona, mas naquele tempo tinha. Então escola masculina só era escola de emergência 37. Vamos supor, eu chegava a ter, digamos dessas 57 escolas, digamos que 30 ou 35 ou 40 fossem escolas mistas, as outras eram de emergência. Quando um núcleo...vinha um fazendeiro, um proprietário, vinha comigo naquela ocasião: “Olha, eu tenho lá um grupo, eu tenho mais de 15 alunos”. Então eu ia lá e verificava se realmente existiam esses alunos, eu reunia todos num lugar. Se tivesse sala de aula, que ele me arrumasse uma sala de aula, muito bem, senão eu ia com a prefeitura e construía, eu mesmo que ia lá, orientava o pedreiro a fazer e fazia. Até isso eu fazia: a orientação para a construção de uma sala de aula. Então a escola ficava como emergência enquanto né? um ano, dois anos, três anos como experiência, aí podia ser efetivada; a escola podia se transformar em escola comum ou desaparecer. Aí essa escola ficava comigo, eu botava num lugar, onde tivesse aluno, se tornava emergência ou comum, assim. (ORLANDO MELOTTI,

Escolas Técnicas Agrícolas e Educação Matemática: história, práticas e marginalidade. Dissertação de Mestrado. Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Unesp, Rio Claro, 2007, p. 91) 36 As escolas masculinas eram escolas de difícil acesso. A nomenclatura se dá devido à especificidade do sexo do professor – tinha que ser um homem – porém, estudavam meninos e meninas. 37 Ou de difícil acesso. 34

entrevista em 18/05/2011)

Em suas lembranças, o professor Orlando se recorda que houve um tempo em que as Escolas Rurais tinham características e denominações diferenciadas, mencionando explicitamente as Escolas Mistas, as Masculinas e as de Emergência. Já mencionamos acima algumas características das Escolas Isoladas, Rurais ou Urbanas, e de Escolas Mistas. Vamos agora apresentar outras considerações sobre essas denominações. As Escolas Isoladas, segundo Martins (2003), foram caracterizadas pela Lei 3.303, de 27/12/1955, como “aquelas em que, dentro de uma área de 2 quilômetros de raio, haja 40 crianças em condições de matrícula nas sedes municipais, ou 30 crianças, quando se tratar de sedes de distritos ou zona rural”. Pela legislação, a manutenção dessas escolas dependeria da frequência de seus alunos, que, em especial, na área rural era muito irregular, uma vez que os alunos/crianças trabalhavam nas lavouras ou em outras atividades rurais. Por isso essas escolas isoladas, “seriam mantidas caso a frequência não fosse inferior a 24 durante o ano, em três meses consecutivos ou em três visitas do inspetor” (p. 57). A denominação “Escolas de Emergência” foi estabelecida em 1957. Pelo Decreto nº 37.575, de novembro de 1960, essas escolas seriam criadas “na zona rural, em lugares de acesso manifestadamente difícil e onde a população escolar não ofereça condições de estabilidade” (DEMARTINI, 1979, p. 121 apud MARTINS, 2003, p. 59). Tinham ainda as escolas “Típicas Rurais”, “esse tipo de ensino foi revogado por Decreto no final da década de 1960” (Idem, ibidem p. 61). Nessas escolas, os alunos tinham aulas específicas sobre a vida no campo e os professores, que para atuar nessas escolas precisavam de formação específica, propunham trabalhos escolares vinculados ao trabalho local. As diferentes disposições legais ocorridas nas décadas de 1950 e 1960, com denominações diferenciadas para as escolas, com determinações específicas para o funcionamento de algumas e desativação definitiva de outras, nos apontam para tentativas de organização das escolas rurais e, também, para a existência de diferentes concepções de formação e do fracasso de estudantes do meio rural. Qual seria a melhor formação para esses estudantes? Uma formação igual à do aluno da cidade ou diferenciada? Eles deveriam ser educados para permanecerem no campo? O fracasso escolar registrado em algumas escolas do campo poderia ser justificado pelo tipo de ensino que estava sendo exercitado? 35

Teriam acesso e condições de permanência no sistema escolar? Teriam os moradores do campo desinteresse pela educação? Esta última questão foi uma das motivações da investigadora Zeila de Brito Fabri Demartini para realizar seus estudos sobre a Educação Rural. Ao identificar que vários estudiosos compartilhavam da justificativa de que o desinteresse do “caipira” paulista era o fator principal do fracasso da escola rural, iniciou um projeto de pesquisa para investigar essas escolas e sua clientela desde a década de 60. Em sua tese de Doutorado, a autora relata que:

De modo geral, portanto, no contexto mais global dos processos de urbanização e industrialização e das transformações no meio rural paulista, os dados levavam a supor com relação às condições da década de 60, que não seria mais possível, em São Paulo, desenvolver a grande maioria das atividades agrícolas apenas com um nível mínimo de educação espontânea e que não haveria também “indiferença” do homem rural com relação à escola. Os casos analisados nos levaram ainda a crer que o estudo da educação no meio rural deveria ser feito sempre tendo em vista uma primeira diferenciação básica: o nível de percepção valorativa (modo como os pais viam a educação para os filhos ou para si próprios) e o nível efetivo da escolarização (como se dava o relacionamento de fato com o sistema escolar, apreendido geralmente através da procura e frequência à escola). (DEMARTINI, 1979, p.150)

E não encontrando nessa época (anos 60) motivos que apontasse para o desinteresse do homem do campo no estudo de seus filhos, a pesquisadora volta seu estudo para o passado - século 19 - procurando todo tipo de fonte que pudesse lhe ajudar na busca por uma explicação histórica. Sua busca, no entanto, apenas confirmaria o contrário: o interesse do homem do campo no estudo de seus filhos.

Todos os dados que localizei sobre o Estado de São Paulo referentes ao século XIX revelaram o interesse muito grande, e até, em vários casos, a luta da população rural – desde colonos, pequenos sitiantes e caipiras – pela escola. Essa foi a minha constatação, ao longo de todo o trabalho que realizei, analisando desde o século XIX – o Império, a Primeira República, depois a Segunda República toda, década por década – até chegar novamente aos anos 60, através de depoimentos de professores e outras fontes. Não encontrei nada que confirmasse as teorias do desinteresse escolar no campo. (DEMARTINI, 2009, p.199/200).

Em uma nova investigação realizada posteriormente, a autora confirma o interesse dos agricultores paulistas pela escola e relata “que o conhecimento escolar era sempre visto como elemento que permitia alguma melhoria das condições de vida, ainda que como

36 agricultores” (DEMARTINI, 2009, p. 201). Em sua tese de Doutorado, essa pesquisadora aponta que:

Em síntese durante o período de 1930 a 1960, observou-se, ao nível do sistema educacional, uma ampliação da rede escolar de ensino primário e de cursos de adultos no meio rural, e de escolas de níveis mais elevados voltados para a agricultura, nas cidades. Intensificaram-se as críticas ao sistema educacional dedicado à população do campo, e foram propostas campanhas de alfabetização e de educação rural pelo governo. Em realidade, contudo, a rede educacional continuou atingindo apenas uma parcela da população; a oferta de instrução até o final deste período não abrangia toda a população residente nos sítios e fazendas do Estado e, nos locais em que havia escolas, estas funcionavam somente até o 3º ano primário, unicamente. Desta forma, como já ficou caracterizado anteriormente, o interesse do governo em solucionar os problemas educacionais neste meio permaneceu no plano legal apenas, persistindo a população rural em condições de ensino deficiente, precário e limitado. (DEMARTINI, 1979, p. 447- 448)

Mesmo com o desinteresse do Estado em melhorar o ensino na zona rural, a pesquisa de Demartini (1979), aponta que mais de 99% das escolas rurais, no ano de 1966, eram mantidas pelo poder público, ou seja:

A rede escolar na zona rural constituía-se, portanto, principalmente pelas escolas isoladas, que tinham como entidade mantenedora principal o Estado; este englobava em 1966, 96% das escolas da zona rural, sendo que apenas 3,3% eram mantidas pelo município e 0,7% por entidades particulares. No total, 99,3% da rede era mantida pelo poder público estadual ou municipal. (DEMARTINI, 1979, p. 123)

Verificamos que o homem do campo muito se interessou pelos estudos, mas permaneceu a precariedade no ensino da maioria das escolas rurais. Escolas funcionando sem o mínimo de condições para os alunos e para o professor, falta de materiais e o difícil acesso fizeram parte do cenário da maioria das escolas que funcionaram na zona rural em nosso Estado, assim como as de Tanabi. Acompanhando a fase áurea da formação destas escolas na zona rural do município de Tanabi e o desenvolvimento das cidades, constatamos que esse cenário se modifica com o movimento proporcionado pelo êxodo rural: o número de habitantes da zona rural de Tanabi diminuiu consideravelmente entre os anos de 1950 e 2007. Como já colocado anteriormente, em 1950, a população da zona urbana era de 4.926 habitantes, sendo a da zona rural de 12.390, totalizando 17.316 habitantes. Já em 2007, a população urbana era de 20.201 habitantes e somente 3.204 na zona rural, totalizando 37

23.405 habitantes. Segundo Caprio (2009), fica evidente “o extraordinário êxodo rural em Tanabi, fato que se repete em todo o território brasileiro.” (p. 350). A diminuição da população rural contribuiu diretamente para a redução de escolas situadas na zona rural. Segundo Caprio (2009), na década de 50 existiam enormes colônias na zona rural e as escolas funcionavam nas fazendas, “os professores moravam na sede da fazenda”. (p. 350). Caprio (2003) registra que, “o município, até 1974, adquiriu, por doação, terrenos em todo o território rural para abrigar escolas para atendimento dos estudantes rurais e fez construir os prédios para atendimento da demanda.” (CAPRIO, 2003, p. 193). Em 1975 tem início o processo de desativação das escolas isoladas rurais, até a extinção total, “provocando enormes protestos dos habitantes da zona rural” (Idem, ibidem). Com isso, na década de 1980, a Secretaria da Educação criou os núcleos educacionais em alguns bairros rurais, formados pela reunião de várias escolas isoladas rurais. Essa situação levou muitos alunos a estudarem na sede, na cidade. A partir daí, são criadas “linhas de peruas ou ônibus” (CAPRIO, 2009, p. 350) para o transporte de alunos até a cidade. Segundo o autor:

Num procedimento concentrador, as escolas da zona rural foram fechadas e sediadas nos bairros rurais e na cidade, forçando ainda mais o processo do êxodo rural, estrangulando o sistema educacional e a produção agrícola que, dia-a-dia, desaparece dos pequenos e grandes municípios. (CAPRIO, 2009, p. 350)

Hoje em dia, passando pela zona rural, só encontramos alguns prédios de antigas escolas rurais abandonados, pois muitos deles já foram destruídos pelo tempo. Com isso, os poucos habitantes que ainda residem na zona rural do município, dependem, atualmente, de ônibus disponibilizado pela prefeitura para que seus filhos possam estudar em escolas da cidade. Alguns pais38, ainda hoje, reclamam do fechamento das escolas rurais, pois eles gostariam que seus filhos pudessem estudar mais perto de suas casas.

38 Minha irmã Rita, que ainda hoje reside na zona rural, contou a sua grande luta para tentar impedir o fechamento da escola rural (na década de 1990). Seus filhos, que estudavam na escola perto de casa, tiveram que viajar todos os dias para estudar na escola na cidade. Para ela, foi uma grande perda na zona rural, pois ali seus filhos estudavam com tranquilidade e não dependiam das longas jornadas de idas e vindas até a cidade, expondo-se ao perigo diário na estrada. Na época, segundo ela, chamaram até a mídia para transmitir os protestos da comunidade rural ao defender a permanência da escola. 38

A escola rural de Tanabi: prédios escolares

“Imagens nos permitem‘imaginar’ o passado de forma mais vívida”.

(Burke, 2004, p. 17)

Ao visitarmos os locais onde se encontram, ainda hoje, prédios abandonados onde funcionaram escolas isoladas rurais, somos levados a imaginar o cotidiano dessas escolas. Esses prédios, hoje deixados ao acaso, em meio a plantações ou pastagens, invadidos por animais e desaparecendo pela ação do tempo, nos possibilitam conhecer alguns detalhes dos espaços dessas escolas rurais e nos aproxima da realidade vivida por alunos e professores. Os prédios eram pequenos, sendo que, em vários encontramos uma sala de aula, uma cozinha, uma pequena varanda e o sanitário 39, construído próximo da escola. Os prédios, em sua maioria, tinham uma construção em alvenaria, com espaços pequenos, paredes com pinturas “caiadas”, sem acabamento e com pouco conforto. Na Figura 12 (a seguir) vemos a foto da fachada de uma dessas escolas na década de 1960.

Figura 12 - Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa, município de Tanabi, 1965.

39 Em um dos prédios escolares que visitamos, da Escola Mista do Bairro da Goiaba, encontramos apenas um sanitário. Em outro prédio, da Escola Mista da Fazenda Alferes, os sanitários não existem mais. Mas, segundo informações de moradores da região, nesta escola haviam dois, um masculino e outro feminino, construídos juntos. Ou seja, era uma única construção, com uma parede no meio dividindo os espaços. De cada lado existia uma porta que dava acesso a cada sanitário. Não temos registros de sanitários próprios para os professores. 39

Fonte: Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Ao observarmos esta fotografia, um aspecto da construção nos chama a atenção: a ausência de janelas no lado fotografado. Teria a construção uma janela do outro lado? A porta que aparece seria única e utilizada para a entrada e saída? Ao redor da escola percebemos muito mato. Seria um descaso dos responsáveis por esta escola? Ela estaria em funcionamento ou abandonada? Se estava em funcionamento, como acontecia o acesso das crianças e os momentos de recreação? Por que não aparecem os alunos e nem o professor na imagem? Estariam em período de férias? Qual teria sido a intenção do fotógrafo ao tirar esta foto? Em uma imagem fotográfica, segundo Kossoy (2002), existem componentes de ordem material e imaterial, que correspondem respectivamente aos recursos técnicos necessários para a materialização da fotografia e aos recursos mentais e culturais. Estes componentes completam o processo de criação da fotografia. O autor complementa afirmando que: Seja em função de um desejo individual de expressão de seu autor, seja de comissionamentos específicos que visam uma determinada aplicação (científica, comercial, educacional, policial, jornalística etc.) existe sempre uma motivação interior ou exterior, pessoal ou profissional, para a criação de uma fotografia e aí reside a primeira opção do fotógrafo, quando este seleciona o assunto em função de uma determinada finalidade/intencionalidade. Esta motivação influirá decisivamente na concepção e construção da imagem final (KOSSOY, 2002, p. 27, grifo do autor).

Portanto, é importante conhecermos onde e quando a fotografia foi produzida e quais as intenções do fotógrafo que a produziu, entendendo que na fotografia temos uma realidade registrada, em um dado espaço e tempo (momento em que foi feito o registro), mas que não se pode afirmar ser a “verdade histórica” (KOSSOY, 2002, p. 45), dada à multiplicidade de interpretações. A professora Irma Rosa da Silveira Viana, em nossa conversa, olhando para a fotografia da Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa, esclareceu que foi o supervisor de ensino quem pediu para que a foto fosse tirada, com a intenção de “levar na prefeitura para ver se eles davam uma arrumadinha” na escola. Ela se recorda que ficou “apavorada” ao ver “tudo no mato”, o que motivou o supervisor a solicitar auxílio à prefeitura. Isso aconteceu quando a professora ainda não havia começado a trabalhar, por 40 isso, a ausência de alunos na foto. Apontando para a foto ela disse: “Então, a janela era só de cá.” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010) Podemos observar que a intenção do fotógrafo era de priorizar o que estava ruim. Com o ângulo escolhido para “tirar” a foto, ao se posicionar “de baixo para cima” o mato fica ressaltado. E, com essa ideia, outros lados da escola não foram colocados em evidência, talvez por isso não temos o lado das janelas na foto. Naquele ano de 1965, a professora Irma iniciou sua carreira como professora na escola. Ela não comentou se a prefeitura fez a limpeza e roçou o mato, mas provavelmente isto aconteceu. No entanto, ela disse que não abriram outra janela, que a escola permaneceu com apenas uma janela de madeira, e que apenas depois de dois ou três anos é que foi construída uma cozinha, para que a merenda fosse preparada. É oportuno salientar a importância da explicação da pessoa que disponibilizou a fotografia, para que possamos entender a realidade que foi fotografada. Como nos diz Benjamin (1994), “a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa” (p. 107). Por isso é essencial ouvir diretamente dos personagens que fizeram parte do que foi retratado, sobre o significado daquele momento. As fotografias permitem muitas formas de interpretação; diríamos até ser uma fonte inesgotável. Ao observar uma fotografia, podemos, quer seja pelo objetivo que nos leva a contemplá-la, pelo conhecimento prévio que temos sobre o assunto retratado ou até mesmo sobre o que queremos enxergar, teremos muitas informações sendo transmitidas. No período inicial desta investigação, quando buscávamos localizar professores que pudessem colaborar com nosso trabalho, percorremos algumas áreas rurais de Tanabi com a intenção de encontrar prédios escolares abandonados. Em nossa busca, localizamos alguns desses prédios e produzimos as fotografias – Figuras 13, 14, 15 16 e 17 - que aparecem a seguir. Naquele período inicial do trabalho, as fotos eram para nós apenas um registro da existência de algumas escolas em determinadas localidades. Queríamos apenas registrar sua existência e abandono; não pensávamos naquele período que elas pudessem nos fornecer alguns indícios importantes para nossas análises futuras. Vejamos algumas fotografias recentes de prédios antigos, ou o que restou deles.

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Figura 13 - Escola rural Teodorico, município de Tanabi/SP, 2011. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura 14 - Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura 15 - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

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Figura 16 – Escola Mista de Emergência da Fazenda São Paulo, município de Tanabi/SP, 2010 Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura 17 - Escola Mista de Emergência da Fazenda São Paulo, município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

As fotografias destas quatro escolas mostram uma visão oblíqua ou lateral dos prédios e nos apontam para uma pequena área construída, que podemos estimar em torno de 30 a 40 metros quadrados. O telhado de todas as construções são os denominados “de duas águas” ou “em V”. Este tipo de telhado garante o escoamento de água de chuva, impedindo a formação de umidade no interior do prédio. Podemos observar um pequeno alpendre ou varanda, onde provavelmente ficava a porta principal da escola. As janelas que aparecem nas fotos são diferenciadas em tamanho, modelo e quantidade. Na Figura 13, na primeira imagem, podemos identificar ao menos duas janelas: uma na parede dos fundos do prédio e outra na lateral 40. Com exceção da escola apresentada nas figuras 16 e 17, todas

40 Segundo informações dos moradores da região, este prédio, depois de fechada a escola, foi utilizada como residência cedida aos empregados do sítio onde fica localizado o prédio. Para esse fim foram feitas algumas modificações, tais como aberturas de portas e colocação de janelas. Por isso, não podemos afirmar que as janelas vistas na foto já existiam nos tempos de escola. 43 possuem três janelas grandes de vidro 41. Provavelmente, essas janelas são as que ficam no espaço da sala de aula, que exige mais claridade e ventilação. Junto à varanda das escolas existia um pequeno espaço onde funcionava a cozinha. Isso pôde ser verificado nas visitas que fizemos ao local. Nestas cozinhas, geralmente, tinha um armário, um fogão (em alguns casos, a lenha) e uma pia. Em alguns desses espaços, ainda pudemos encontrar restos desta mobília. Vejamos as fotos que mostram o armário que existia na cozinha de duas escolas rurais do município de Tanabi/SP. Podemos observar que eram construções feitas de tijolos, embutidos. Na figura 18 (a seguir), no canto inferior direito, podemos perceber um pedaço do fogão a lenha, utilizado para cozinhar.

Figura 18 - Fotografia do armário na cozinha da Escola rural "Teodorico", município de Tanabi/SP, 2011. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Figura 19 - Fotografia do armário na cozinha da Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010.

41 Na primeira imagem da figura 15, a porta que aparece foi colocada recentemente. Quando a escola funcionava, esta porta não existia. Segundo informações de moradores locais, depois da desativação do prédio, a comunidade utilizava o espaço como vestiário do campo de futebol que existe próximo do prédio. Com isso, a sala ficou dividida em duas partes, havendo a necessidade da colocação da porta. 44

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Ao observarmos estas fotografias dos prédios escolares, algumas semelhanças podem ser verificadas nas suas construções. No Relatório do ano de 1943, o relator descreve a situação em que se encontravam os prédios escolares, observando que as escolas isoladas rurais eram bem administradas e que, quase todas “funcionam em prédios próprios, construidos sob orientação da Delegacia”, segundo o padrão estabelecido na planta a seguir (RIO PRETO, 1943, p. 2).

Figura 20 - Planta para escola isolada, 1943. Fonte: Relatório da Delegacia Regional do Ensino de Rio Preto, 1943.

Nas observações descritas para a construção da escola isolada, a sala de aula deveria ter 5,40m por 7,60m, com uma porta e três janelas em uma das paredes laterais. Também existe a exigência de que ela fosse construída em uma posição específica com relação ao nascer do sol, tendo em vista questões de maior aproveitamento da luz e aquecimento solar. Dessa forma, com a posição da nascente no canto inferior esquerdo (Leste), e o poente no 45 canto superior direito (Oeste), justifica a colocação de janelas em apenas um dos lados da sala (do esquerdo), do lado direito não era necessário. Só que por outro lado, isso favorecia as aulas no período da manhã, à tarde não podia ter aulas, pois a sala de aula ficaria, neste período, sem a luz solar para iluminá-la. Isso ainda gera outro problema: e se a construção fosse colocada nas mãos de um pedreiro que não conhecesse os pontos cardeais? Esses são questionamentos que devemos levar em consideração ao analisarmos as orientações fornecidas para a construção das escolas isoladas. As paredes deveriam ter pé-direito, altura entre o piso e a laje, de 3 metros de altura e o “peitoril da janela, 1,10 de altura mínima”. O piso devia ser ladrilhado e as janelas envidraçadas, “dispensando-se as madeiras” (RIO PRETO, 1943, p.2). Além disso, existia a exigência de que a escola fosse construída em terreno, com área mínima de 10m x 20m, onde deveriam ser construídos dois sanitários. Nenhuma menção é feita a um espaço destinado à cozinha. Na figura a seguir podemos identificar o sanitário de uma das escolas visitadas. Encontramos no local apenas um sanitário. Não podemos afirmar se, pela ação do tempo, o outro sanitário tenha desaparecido.

Figura 21 - Fotografia do sanitário da Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

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. Figura 22 - Fotografia que mostra o prédio da Escola Mista da Goiaba, município de Tanabi/SP, e o sanitário, construído atrás da escola, 2013. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

No sanitário que encontramos, a construção era simples, com um piso de concreto e apenas uma latrina, ou seja, um “buraco” de acesso à fossa. Essa era a estrutura básica dos sanitários das escolas rurais.

Figura 23 - Interior do sanitário da Escola Mista da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Nesta escola, também encontramos restos de uma construção próxima ao prédio. Ao fundo dá para localizar o sanitário da Figura 21. Pela identificação dos pilares, parece ter sido uma área coberta, como uma varanda, por exemplo. Seria um espaço destinado à merenda dos alunos?

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Figura 24- Fotografia dos restos de uma construção encontrada ao lado da Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Dentre as escolas que aparecem nas Figuras 13, 14, 15, 16 e 17 apenas a da Fazenda São Paulo, parece não aproximar-se das orientações do Relatório de 1943. Nelas podemos constatar a existência das três janelas laterais envidraçadas. Não temos informações sobre outras orientações para construção de escolas rurais e também não temos as datas de construção das escolas fotografadas. A escola em que a professora Irma começou a trabalhar em 1965 (Figura 12) apresenta uma estrutura muito diferente daquela sugerida no Relatório de 1943. A professora Maria Cecília, ao começar a atividades docentes, no ano de 1970, encontrou uma escola rural com apenas duas janelas de madeira, que deixava o ambiente sem claridade. Só após muita luta para conseguir uma reforma, foram colocados três vitrôs na escola. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010). A professora Maria Cecília se referia à “Escola Mista da Fazenda Alferes”, sendo que, na primeira imagem da Figura 15, podemos identificar os três vitrôs que foram colocados. Não temos a data da construção destes prédios, mas de acordo com as informações das professoras Irma e Maria Cecília, as escolas foram encontradas, nas décadas de 1960 e 1970, ainda com as janelas de madeiras, contrariando as determinações descritas no Relatório do ano de 1943. As diferenças entre as orientações do Relatório de 1943 e as escolas rurais fotografadas podem ser justificadas por diferentes argumentos. Podemos conjecturar que algumas dessas escolas surgiram em períodos em que as orientações para a construção eram diferenciadas, ou que não foram construídas pela Delegacia de Ensino, mas por algum dono de terra ou pelo município. Como destacamos anteriormente, o professor Orlando Melotti, colaborador desta pesquisa, nos contou que, em suas atribuições 48 como Inspetor de Ensino, também orientava as construções de algumas escolas de emergência, quando estas lhe eram solicitadas por algum fazendeiro. Ele relata: “eu ia com a prefeitura e construía, eu mesmo que ia lá, orientava o pedreiro a fazer e fazia. Até isso eu fazia: a orientação para a construção de uma sala de aula.” (ORLANDO MELOTTI, entrevista em 18/05/2011).

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CAPÍTULO 2 – DA FORMAÇÃO AO COTIDIANO DAS ESCOLAS RURAIS: CONVERSANDO COM OS PROFESSORES

“Porque, ao mesmo tempo, a gente tinha que fazer merenda, você tinha que dar aula para 1ª série, 2ª série. E, por exemplo, teve uma época que eu (...) dava aula para 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries tudo junto e tinha que fazer a merenda”.

(Prof.ª Maria Cecília Soccio Monteiro)

Escolas para formação específica de professores das séries iniciais foram “estabelecidas, por iniciativa das Províncias”, após a instituição da “reforma constitucional de 12/8/1834”, que atribuiu “às Assembléias Legislativas Provinciais” a responsabilidade pela sua criação (TANURI, 2000, p. 63). Muitas dessas primeiras escolas foram criadas anexas a cursos já existentes “simplesmente pela adição de uma cadeira de Pedagogia ao currículo, aligeirando-se a parte de formação geral e reservando-se a prática profissional para ser exercida junto a alguma escola primária pública” (KULESZA, 1998, p. 65). Essa parece ter sido a forma utilizada pela “Escola Normal masculina”, criada em 1875 na cidade de São Paulo, “para funcionar numa das salas do curso de preparatórios anexa à Faculdade de Direito” (ibidem, p. 65). Como nos diz Tanuri (2000), “em todas as províncias as escolas normais tiveram uma trajetória incerta e atribulada, submetidas a um processo contínuo de criação e extinção”; apenas, a partir de 1870, “lograram algum êxito”, no momento em que “se consolidam as idéias liberais de democratização e obrigatoriedade da instrução primária, bem como de liberdade de ensino” (p.64). A Escola Normal do Estado de São Paulo, criada na capital em 1846, teve alguns períodos de interrupção até 1880, quando as atividades não foram mais interrompidas até o encerramento deste tipo de formação no Brasil. Na década de 1880, o curso tinha a duração de três anos e contava com “duas escolas complementares anexas (uma feminina e outra masculina) para a prática de alunos-mestres” (MARCÍLIO, 2005, p.205-206). As Escolas Complementares eram consideradas como um curso “pré-normal”, “imediatamente superior ao primário e inferior à Escola Normal”. Os formandos destas escolas, a partir de um certo momento, adquiriam a “autorização para lecionar nas escolas rurais ou como substitutos nas escolas primárias” (idem, ibidem, p.206). É o início de uma longa convivência de dois

51 tipos de formação de professores das séries iniciais. No Estado de São Paulo, além da Capital, foram criadas Escolas Complementares nas cidades de Piracicaba, em 1897, de Campinas e Guaratinguetá, em 1903, de , em 1910. Em 1911, uma nova nomenclatura para diferenciar os dois tipos de escolas foi estabelecida oficialmente. As Escolas Complementares passaram a ser denominadas “escolas normais primárias”, enquanto “as de padrão mais elevado” receberam o nome de “’normais secundárias’”, consolidando o dualismo que permaneceu até 1920, “com a unificação de todas as escolas normais, pelo padrão das mais elevadas”, com três anos de formação (TANURI, 2000, p. 69). Outras escolas normais públicas foram sendo instaladas em cidades paulistas naquele período, dentre elas: em 1911, nas cidades de , e São Carlos; em 1913, na cidade de Casa Branca e no bairro do Brás, na Capital paulista. A partir de 1927, uma nova reforma autorizava a criação de Escolas Normais Livres. Essas escolas, diferentemente das públicas mantidas pelos governos estaduais, eram dirigidas e mantidas “pela iniciativa privada ou pelo poder municipal”, com autorização de funcionamento do governo estadual (SANDANO, 2008, p.3). “Na região de , em 1928, estavam autorizadas três escolas normais livres – em Tietê, Piracicaba e Itu” (SÃO PAULO, 1928, p. 221-223 apud SANDANO, 2008, p.4). A região de São José do Rio Preto, criada em janeiro de 1932, com o desdobramento da de Araraquara, era composta por oito municípios: , Ibirá, Inácio Uchôa, José Bonifácio, Mirassol, Monte Aprazível, , São José do Rio Preto e Tanabi. Tanto na sede da Delegacia - São José do Rio Preto - quanto em Mirassol, havia Escola Normal Livre, de nível secundário (RIO PRETO, 1933). A “Escola Normal Livre de Rio Preto”, particular e anexa ao “Colégio Santo André”, era “dirigida por um ramo da muito antiga Congregação das Religiosas de Santo André, com séde em Tornei, na Belgica, e alí já conhecida desde o século XIII” (RIO PRETO, 1933, p. 98). A congregação instalou- se inicialmente em Jaboticabal, em 1914, onde implantou suas primeiras escolas. Em 1920, fundaram um colégio em São José do Rio Preto e uma Escola Normal, que teve a inspeção preliminar em 1932. A Escola Normal Livre de Mirassol, fundada em finais de 1928, era mantida pelo Município e teve a inspeção preliminar em 1929. “A sua primeira turma, de 18 professores, diplomou-se em 1932” e “a segunda, de 10”, em 1933 (RIO PRETO, 1933,

52 p.98). Os relatórios analisados apresentam poucas observações sobre as Escolas Normais existentes bem como sobre as necessidades de professores na região. O Relatório de 1940 afirma que existiam ainda apenas essas duas escolas Normais Livres na Região, afirmando que essas unidades formavam “anualmente, dezenas de professores radicados com a Região”. O que falta para essas escolas, no entender do relator, seria “uma orientação mais eficiente” que poderia ser “resolvida com visitas mais assiduas dos senhores inspetores do Ensino Secundário e Normal”. Um outro item do relatório diz respeito à fixação do professor na região. Para o relator, esse não é um problema que afeta a região, uma vez que “as escolas isoladas são localizadas com o maximo criterio e em nucleos onde a professora possa se fixar” . As solicitações de remoção estariam relacionadas, na maior parte das vezes, à distância da família. Por isso, o relator sugere a realização de concursos regionais. Muitos professores recém- formados escolhiam a região. Isso acarretava, segundo o relator, uma outra dificuldade: “sobra-lhes o entusiasmo; falta-lhes a pratica e a adaptação ao meio”. Eles precisariam de uma maior assistência técnica, que não era possível devido ao tamanho da região (RIO PRETO, 1940, p.19).

Formação de professores de escolas isoladas de Tanabi

Na Escola Normal Pública de Tanabi que, como mencionamos no capítulo 1, foi criada oficialmente em 1950 e, a partir de 1964 funcionou no prédio da figura 25 – a seguir - sete dos onze professores entrevistados nesta investigação receberam o diploma de normalistas, são eles: Etore, Lourdes, Maria Cecília, Irma, Mércia, Maria Feliciana e Maria Terezinha, respectivamente em 1953, 1962, 1963, 1964, 1967, 1970 e 1972. Os demais professores se formaram em outras cidades do Estado de São Paulo. A professora Zulmira se formou na Escola Normal na cidade de Mirassol, no ano de 1946; a professora Eunice, se formou em um Colégio Americano na cidade de Piracicaba, no ano de 1949, mesmo ano em que o professor Orlando se formou em uma Escola Normal na cidade de Olímpia; a professora Maria Virgínia se formou, em 1969, no Colégio Santo André, na cidade de São José do Rio Preto.

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Figura 25 – Instituto de Educação Padre Fidelis, onde funcionou o curso Normal a partir de 1964, em Tanabi-SP, (sd). Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Ao ouvir destes professores sobre a opção de se formarem normalistas, o motivo principal apontado diz respeito às oportunidades que a cidade de Tanabi oferecia à época para essa formação profissional. Ser normalista, principalmente para as mulheres, era uma das únicas opções possíveis. Quando perguntados sobre essa opção, cinco entrevistados afirmaram que a escolha ocorreu pela impossibilidade de realizar um curso fora da cidade, para continuar os estudos em nível superior; pela dificuldade de empregos para mulheres em outras atividades; por gostar de ensinar; e por existirem na cidade apenas duas opções de cursos de nível secundário profissionalizante - o Normal e a Escola de Comércio – sendo que este último era oferecido apenas no período noturno. O oferecimento do Curso de Comércio no período da noite foi apontado como um aspecto positivo por ser possível fazer os dois cursos. Provavelmente, isso interessava apenas aos homens, uma vez que mulheres não eram aceitas em algumas atividades profissionais, como a bancária. Os depoimentos de muitas de nossas entrevistadas confirmam essa “escolha” por falta de opção: É assim: na época, a gente - meu pai - não tinha condições de estudar a gente, estudar fora, então o curso que tinha em Tanabi na época era só o magistério. Mas eu gostava também, sabe, então eu fiz magistério, então assim naquela época a gente, a mulher, não podia nem prestar um curso, um concurso de banco, né, banco não aceitava mulher. O Banespa 42 não aceitava mulher, então você tinha

42 Banco do Estado de São Paulo. Foi extinto no início da década de 2000. A época à qual a professora se 54

que ser professora, ou então sair fora, fazer outra coisa, enfermagem, qualquer coisa. Mas enfermagem, na época, só tinha em Ribeirão Preto, não tinha jeito, aí não tinha condição. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

Foi assim: naquela época, aqui em Tanabi só tinha magistério e Escola de Comércio. Então, as pessoas que queriam continuar estudando, geralmente, faziam até os dois cursos, porque a Escola de Comércio era à noite. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010).

Olha, naquela época, o que tinha mais para a gente estudar era o Normal mesmo, faculdade já era mais difícil, era caro, era longe. Então os pais tinham muitas preocupações de deixar a gente sair de casa também pra estudar fora. Às vezes a gente falava que queria, por exemplo, eu tive uma tia que eu podia morar em São Paulo, eu queria fazer Educação Física, morar na casa dela e fazer Educação Física, mas aí minha vó falou: “Ah, mas é muito perigoso”. E não deixava a gente ir, a gente não ia, então a opção que tinha por aqui era o Curso Normal. Eu acho que mais por isso mesmo, senão eu acho que teria feito Educação Física, mas aí eu teria que desobedecer, né? e aí a gente não fazia isso. (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011).

Não, na verdade não sei nem se foi uma escolha, eu acho que houve - assim -uma sintonia, porque eu sempre gostei de lidar com pessoas, então era uma coisa que já vinha comigo, a facilidade de falar, aprendi a ler com 6 anos de idade, então isso tudo acabou influindo. Era sempre uma das primeiras alunas da sala, eu ensinava meus colegas que estavam do lado, eu funcionava como uma espécie de monitora do meu professor de classe, e eu gostava muito, porque é tão bom colaborar, contribuir! E era o único curso também que tinha na minha cidade, era o de professor. Ou então, você teria que fazer o Curso Clássico ou o Científico; eram cursos que tinham três anos, só que a pessoa não saía com diploma, ela tinha que depois fazer a faculdade para obter o diploma universitário. Eu optei, então, por uma carreira que me desse diploma mais rapidamente (...) (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011)

O professor Etore, um dos homens entrevistados, nos explica que cursou o Normal, por ser a única opção na cidade de Tanabi. Mas, quis continuar os estudos e fazer uma faculdade. Para isso, no entanto, quem tinha o diploma de normalista tinha que fazer um exame43, para obter um certificado de equivalência ao Curso Colegial, que dava o direito a se inscrever em um vestibular para continuação de estudos em nível superior. Como ele

refere é meados de 1960. 43 A Lei no 1.821, de 12 de março de 1953, trata do regime de equivalência entre diversos cursos. Em seu Art. 2°, dispõe que: Terá direito à matrícula na primeira série de qualquer curso superior o candidato que, além de atender à exigência comum do exame vestibular e às peculiares a cada caso, houver concluído: (...) IV - o 2º ciclo do ensino normal de acordo com os Arts. 8º e 9º do Decreto-lei nº 8.530, de 2 de janeiro de 1946, ou de nível idêntico, pela legislação dos Estados e do Distrito Federal; (...) Parágrafo único. Sem prejuízo das exceções admitidas em lei, exigir-se-á sempre do candidato, não habilitado no ciclo ginasial, ou no colegial, ou em nenhum dos dois, exame das disciplinas que bastem para completar o curso secundário.

55 queria fazer uma Faculdade, resolveu fazer tal exame em uma cidade próxima, para depois prestar vestibular.

Depois teve uma época em que a Escola Normal, você fazia um exame de adaptação, aí você ficava com o curso de colegial e com esse curso de colegial você podia fazer a faculdade, foi até o que eu fiz. Eu me formei no Normal, aí depois eu fiz esse Curso de Adaptação. O Curso de Adaptação eu fiz até em Mirassol. E aí eu fui para Ribeirão Preto, eu queria ser dentista (...) (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010).

Dos sete professores formados na cidade de Tanabi, alguns se formaram no período de criação do Instituto de Educação Padre Fidélis, uma nova modalidade de escola de formação de professores. Esses Institutos de Educação se expandiram44 para o interior do Estado de São Paulo, chegando a ter, em 1967 um total de 120 unidades oficiais em todo o estado. Segundo Labegalini (2004), no período entre 1961 e 1965 foram criados 51 novos institutos, dentre eles o que se encontra situado na cidade de Tanabi45. (p. 6). O curso para formação de professores primários no Brasil passou por várias mudanças. Segundo Labegalini (2004), o primeiro Instituto de Educação no Estado de São Paulo foi criado no ano de 1933, “pelo Decreto estadual n° 5846, de 21 de fevereiro de 1933, promulgado na ‘Reforma Fernando de Azevedo’, sintetizada no Decreto estadual n° 5884, de 21 de abril de 1933, o Código de Educação do Estado de São Paulo.” (p. 1, grifos do autor). A criação dos institutos de Educação do Estado de São Paulo, pode ser entendida, segundo a autora, como “parte da concretização das propostas do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932 (LABEGALINI, 2004, p. 2, grifo do autor). Tudo o que era proposto pelo Código acima citado, visava à melhoria dos cursos de formação de professores do Estado e fornecia “propostas de mudanças que deveriam se efetivar imediatamente e estavam envolvidas idéias da Escola Nova na reconstrução educacional que estava ocorrendo” (LABEGALINI, 2004, p. 2, grifos do autor). Em seu artigo 629, o Código de Educação do estado de São Paulo, define que os Institutos de Educação terão como fins: a) formar professores primarios e secundarios e diretores e inspetores de

44 Segundo Labegalini (2004), “a expansão ocorreu através de Decretos e Leis estaduais: Escolas Normais, Colégios Estaduais e Escolas Normais ou ainda Ginásios Estaduais e Escolas Normais de cidades do Estado de São Paulo foram transformadas em IEs. (p. 5) 45 Segundo Labegalini (2009), o Instituto de Educação de Tanabi foi criado em 23/10/1962. ( p. 79). 56

escolas; b) manter cursos de aperfeiçoamento e de divulgação para os membros do magistério; c) ministrar ensino primario e secundario a alunos de ambos os sexos, em estabelecimentos que permitam a observação, a experimentação e a pratica de ensino, por parte dos candidatos ao professorado.(SÃO PAULO, 1933, p. 396 apud LABEGALINI, 2004, p. 2)

No artigo 630, do mesmo Código, se define a constituição de um Instituto de Educação, devendo fazer parte dele as seguintes escolas e anexos: “a) Escola de Professores; b) Escola Secundaria; c) Escola Primaria; d) Jardim da Infancia e Biblioteca” (SÃO PAULO, 1933, p. 396 apud LABEGALINI, 2004, p. 2) Segundo a autora, na Escola de Professores, existiam: cursos para formação de professores primários; cursos para formação de diretores e inspetores escolares e cursos de aperfeiçoamento. Este último tinha seus programas “organizados pelos professores respectivos e aprovados pelo Diretor; visavam à exposição e à demonstração sucinta das então modernas aquisições teóricas, relativas às matérias da Escola de Professores”. (LABEGALINI, 2004, p. 3) Por alguns anos, nos cursos de formação de professores de Tanabi, era oferecido um “Curso de Aperfeiçoamento”, que era uma complementação aos estudos dos professores recém-formados e tinha duração de um ano. As professoras Maria Cecília e Lourdes falam sobre as características deste curso e o quanto ele foi importante para a prática de sala de aula.

Fiz Escola Normal durante três anos; depois, ao me formar, em 1963, tinha um Curso de Aperfeiçoamento 46, que foi muito bom, foi excelente. Foi durante um ano, em 1964, eu substituía pela manhã, no Ganot Chateaubriand47, como substituta efetiva 48, e à tarde fazia esse Curso de Aperfeiçoamento, que eu acho que valeu até mais do que a Escola Normal que eu fiz, foi muito bom. (...) Era Ensino de Didática da Língua Portuguesa e Didática da Matemática, do Ensino da Matemática. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Eu fiz um Curso de Aperfeiçoamento no Instituto de Educação Padre Fidélis, aqui de Tanabi, um ano, revendo todos os conteúdos do estudo do Normal, com ampliação de conteúdos também, acrescentados a eles. E aprendemos um monte

46 O Curso de Aperfeiçoamento, segundo a professora, foi criado em 1962 ou 1963, não durou muito tempo e o sistema de ingresso era pela aprovação em vestibular. 47 É uma escola na cidade de Tanabi/SP. Hoje é a Escola Municipal Ganot Chateaubriand. 48 Substituto efetivo era o professor nomeado por uma comissão e conservado no cargo enquanto fosse considerado eficiente (SÃO PAULO, 1933 apud LABEGALINI, 2009, p. 75). Segundo a professora entrevistada, a substituta efetiva ficava na escola de plantão. Quando não tinha aulas, ajudava em trabalhos administrativos. Ganhava o dia que dava aula. Isso foi nos anos de 1964, 1965, 1966, 1967. 57

de coisas, como trabalhar em sala de aula, os estágios que deveriam ser feitos, o contato com professores que davam aula num Curso Anexo ao Instituto de Educação. Então a gente fazia estágio nesse Curso Anexo, que tinha todas as séries, de primeira a quarta série. A gente estagiava na classe, tinha que dar aulas com a presença do professor (nosso) de prática de ensino, mais o professor da classe. E nós éramos avaliadas por isso. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES entrevista em 08/06/2011)

A professora Lourdes fez esse curso no ano de 1965, no período da tarde. Segundo a professora, no Curso de Aperfeiçoamento teve aulas de Filosofia, Sociologia, Psicologia e Didática. Quando perguntei a ela se esse Curso de Aperfeiçoamento era obrigatório, ela respondeu:

Olha, na época nós fazíamos porque saíamos dali já com a prática escolar, inclusive com atestado de estágio feito, isso tudo era considerado como atividades relevantes. Para aperfeiçoar mais, é claro que eu fiz. Tudo que houvesse, e que fosse em benefício próprio para melhorar minha atividade profissional, eu nunca deixei de fazer, claro que nem todos os colegas de classe fizeram, mas eu sempre fiz. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011)

Segundo Labegalini (2009), o Curso de Aperfeiçoamento49 era “destinado ao aperfeiçoamento profissional dos professores primários” (p.74) que, de acordo com o Decreto Estadual 35.100, de 17 junho de 1959, esclarecia que,

o ensino normal deveria ser ministrado nos Cursos de Formação, de Aperfeiçoamento e de Especialização, sendo o Curso de Formação destinado à formação de professores para o ensino primário comum, o Curso de Aperfeiçoamento destinado ao aperfeiçoamento profissional dos professores primários e, em seu artigo 5º, esclarecia que os Cursos de Especialização eram destinados à especialização de professores primários tanto para a administração escolar como para o ensino. (p. 74)

O Curso de Aperfeiçoamento tinha as suas disciplinas voltadas para a prática de sala de aula. De acordo com a Lei estadual n. 3739, de 22 de janeiro de 1957, o currículo deste curso, oferecido em Institutos de Educação que foram sendo criados a partir de 1951 tinha a seguinte composição:

Art. 8º - O Curso de Aperfeiçoamento dos Institutos de Educação terá a duração de 1 (um) ano e currículo constituído das seguintes disciplinas: 1- Metodologia das Matérias do Ensino Primário; 2- Metodologia da Leitura e da Escrita;

49 Segundo Labegalini (2009), o Curso de Aperfeiçoamento, assim como os de Administradores Escolares e de Especialização eram denominados de Cursos post-graduados e eram oferecidos para portadores de diploma do Curso Normal. (p. 74) 58

3- Metodologia da Aritmética; 4- Prática de Ensino; 5- Psicologia de Aprendizagem e 6- Administração Escolar. (...) (LABEGALINI, 2009, p. 72)

A autora completa seu texto com a informação que o Curso de Aperfeiçoamento “era o que dava maior atenção ao ensino da leitura e da escrita, por meio das disciplinas Metodologia das Matérias do Ensino Primário, Metodologia da Leitura e da Escrita e Prática de Ensino” (p. 73). Esses conteúdos constam no Diploma do Curso de Aperfeiçoamento que a professora Maria Cecília realizou no ano de 1964, no Instituto de Educação Padre Fidélis de Tanabi/SP. As disciplinas são as seguintes: Metodologia das Matérias do Ensino Primário; Metodologia da Leitura e da Escrita; Metodologia da Aritmética; Psicologia da Aprendizagem; Prática do Ensino e Administração Escolar. Já a professora Lourdes, comenta sobre outras disciplinas, tais como: Filosofia e a Sociologia, mas, mesmo assim, relatando ter sido um curso que permitiu fazer o estágio e sair com a prática de sala de aula. Além da participação no Curso de Aperfeiçoamento, a professora Lourdes cita a existência de um “Curso Anexo” que oferecia as séries primárias, onde os estudantes do Curso Normal já cumpriam as horas exigidas como estágio docente. Segundo Labegalini (2009), o ensino na Escola de Professores (do Instituto de Educação Caetano de Campos na cidade de São Paulo) era dividido em cinco seções. Uma das seções era a Prática de Ensino, que “visando ao ‘treino profissional’ dos alunos, utilizando a observação, a experimentação e a participação em aulas, utilizava a Escola de Aplicação (escola primária anexa ao IE)”. (LABEGALINI, 2009, p. 56). A escola primária do Instituto de Educação “Caetano de Campos”,

tinha por finalidade ministrar ensino primário a alunos maiores de sete anos de ambos os sexos e favorecer, para os alunos do curso de formação de professores primários da escola de professores, a observação, a experimentação e a prática de métodos e processos de ensino; nela os professorandos ministravam suas aulas práticas de Prática de Ensino. Era dirigida pelo professor da seção de Prática de Ensino da Escola de Professores, auxiliado por um de seus assistentes. (LABEGALINI, 2004, p. 4/5)

Assim, fica claro que a mesma experiência vivida no Instituto de Educação Caetano de Campos pôde ser observada na fala da professora Lourdes, ao afirmar que as aulas de Prática de Ensino eram estagiadas nas salas do Curso Anexo. 59

A professora Maria Cecília conta que, quando aluna do ensino primário, estudou em um Curso Primário Anexo, na época, ainda ao Ginásio Estadual e Escola Normal de Tanabi50. Depois, quando cursava o Normal (início da década de 1960), chegou a atuar como professora substituta neste curso, ela conta:

Porque eu estudei no Padre Fidélis 51, e o Padre Fidélis tinha um curso chamado Anexo, é, ao Instituto de Educação Padre Fidélis. Que, assim, as professoras poderiam fazer estágio e ter aula ali, então quando a professora faltava, chamava a gente, a gente fazia Escola Normal, naquela época era Escola Normal. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

A professora Irma também comenta que as aulas práticas do curso de formação eram feitas na escola primária anexa. Ela relata: “nesse Curso Normal, a gente tinha as aulas práticas, a gente fazia a parte prática do curso, fazia lá. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010). Em contrapartida, a professora Maria Feliciana, em sua entrevista, conta que na época em que cursou o Normal (ela se formou em 1970), os estágios eram realizados nas escolas isoladas. Neste período, a formação ainda era fornecida pelo Instituto de Educação Padre Fidélis, pois, os institutos de educação só deixaram de existir após a Lei 5692 de 1971. Labegalini (2004), relata que os últimos institutos criados no estado datam de 1967, e,

todos os institutos de educação do nosso estado deixaram de sê-los por determinação da Lei 5692/71; porém, apesar de essa lei ser de 1971, a denominação “instituto de educação” persistiu até 1975, pois em 20 de janeiro de 1976 foi promulgado o Decreto Estadual 7510, que reorganizou a Secretaria de Estado da Educação, transformando todas as escolas públicas, inclusive os institutos de educação estaduais, em Escola Estadual de 2º grau, ou ainda em Escola Estadual de 1º e 2º graus. (LABEGALINI, 2004, p. 6/7)

Além da formação no Curso Normal, a maior parte dos professores colaboradores também cursou Pedagogia. Alguns deles relatam que isto ocorreu para obter equiparação salarial com os professores do nível ginasial. Os professores Mércia e Etore nos explicam que isso ocorreu por uma decisão governamental, que contribuiu para que alguns permanecessem neste nível de ensino.

Então, depois que eu comecei a dar aula, que eu já estava mais ou menos, acho que com uns 5, 6 anos dando aula, aí abriu a faculdade em , de Pedagogia.

50 Segundo Labegalini (2009), “as escolas anexas não foram uma criação dos IEs, nem mesmo do movimento da Escola Nova; elas já existiam anteriormente.” (p. 55) 51 Hoje na cidade de Tanabi é a Escola Estadual Padre Fidélis. 60

Aí o governo disse o seguinte: quem tivesse Pedagogia ia ganhar “x” a mais. Aí foi aquela correria, todo mundo foi fazer Pedagogia. Então a cidade inteira ia fazer Pedagogia em Jales52. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Depois saiu uma lei que quem tivesse Pedagogia − foi até por isso que eu fiz Pedagogia, eu tinha feito Ciências − e aí saiu uma lei que quem tivesse Pedagogia ia ganhar, ia receber como professor de ginásio, porque o seu diploma era igual, entendeu? Era superior, aí saiu essa lei. Como eu gostava de primeira série, de pré, eu abandonei de vez o ginásio, porque o ordenado era o mesmo. (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011)

A professora Mércia complementa que “depois eles cortaram a lei, depois parou simplesmente de pagar um direito adquirido que a gente tinha, se eu não me engano chama Progressão Funcional, pararam de pagar (...)” (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011). Os professores Etore e Mércia, ao falarem sobre as motivações que os levaram a cursar Pedagogia, relacionam o título aos benefícios salariais destinados aos professores com essa formação. Essa remuneração pode estar relacionada às disposições da Lei 5.692/71 que, em seu Artigo 39, dispõe:

Os sistemas de ensino devem fixar a remuneração dos professores e especialistas de ensino de 1º e 2º graus, tendo em vista a maior qualificação em cursos e estágios de formação, aperfeiçoamento ou especialização, sem distinção de graus escolares em que atuem. (BRASIL, LDB n° 5.692/71)

O professor Orlando também comenta a Lei de 1971:

Depois aí veio a 5692, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1971. Essa lei quase que obrigou todo mundo a ter formação superior 53, então passei para faculdade de Pedagogia também, foi onde todos os professores tiveram que fazer uma formação superior, porque senão no vencimento vinha a diferença do professor primário. E aí criou o ensino de 1° e 2° graus. Então as escolas ficaram com o 1° grau, né? De 1ª a 8ª série. E 2° grau, era o antigo colegial, foi assim. (ORLANDO MELOTTI, entrevista em 18/05/2011)

Outros professores, no entanto, cursaram também licenciaturas, tais como Geografia, História e Estudos Sociais, pois tinham a intenção de lecionar também no ginásio. E aí então surgiu, que ia desaparecer História e Geografia, só ia ter Estudos Sociais54 nas escolas. Nessas alturas eu já estava fazendo é, eu tinha acabado de

52 O professor se formou em Pedagogia na cidade de Jales/SP no ano de 1977. Jales/SP dista 108 quilômetros de Tanabi/SP. 53 Na verdade, ela tinha a profissionalização compulsória para os alunos do Ensino Médio e criava um plano de carreiras, dando vantagens econômicas a quem tivesse o curso de Pedagogia. 54 A disciplina Estudos Sociais foi inserida no currículo escolar pela Resolução 8 de 1º de dezembro de 1971, através do qual o ensino de História foi suprimido para dar lugar aos Estudos Sociais, e Organização Social e 61

fazer Administração Escolar e tinha terminado Pedagogia. Aí eu entrei novamente na faculdade para fazer Estudos Sociais. (...) Antes de acabar Estudos Sociais, no primeiro ano eu já peguei aula no ginásio, já aproveitei dar aula no ginásio. Peguei muita aula no ginásio, sobrava aula porque era Estudos Sociais que apareceu e eu tinha o curso, então tinha aula pra tudo quanto é lado. (ETORE BILIA entrevista em 12/07/2010)

Além do professor Etore, outros professores comentam que fizeram o curso de Administradores Escolares, como relata a professora Zulmira:

Fiz um curso em Rio Preto, que chamava “Administradores Escolares”, que foi financiado pelo governo militar. Nós fizemos o curso ganhando porque nós já éramos formadas. Ele deu uma bolsa para 30 pessoas, e nós fizemos no Monsenhor Gonçalves em Rio Preto, dois anos, no período da Ditadura55. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011)

Dos onze professores entrevistados, dez fizeram o curso de Pedagogia. Alguns deles, depois de exercerem o cargo de professor, acabaram assumindo outras funções na escola, como por exemplo, o de diretor. Com esses relatos, percebemos que a maioria dos professores normalistas buscou continuar os estudos. Com as mudanças que acompanharam, tiveram, muitas vezes, de se adaptarem às novas diretrizes da carreira para que pudessem ter novas oportunidades.

O início, as dificuldades, o envolvimento.

Para os professores que iniciavam sua carreira no magistério em escolas rurais, várias eram as dificuldades de adaptação em um espaço sócio-cultural-educacional diferente daquele em que estavam inseridos (GARNICA, 2005). Essa experiência, para muitos, era uma “terra de passagem”, como nos diz Martins (2003), um tempo de espera por uma colocação em Grupos Escolares da região urbana. Moradores da cidade e desconhecedores das características das regiões onde iniciavam suas atividades, nossos entrevistados apontam diversas dificuldades encontradas. Uma delas relaciona-se diretamente à dificuldade de locomoção. As escolas eram situadas, muitas vezes, longe do centro urbano e, devido à precariedade do transporte na época,

Política do Brasil (OSPB), justificando que essas disciplinas poderiam dar “uma visão mais global da vida.” Na verdade, era uma tentativa do Governo militar de influenciar, desde cedo, a educação para a formação de cidadãos mais passivos, menos politizados. 55 Realizado na década de 1960. 62 muitos deles se hospedavam em casas de fazendas onde a escola estava situada, muitas vezes com precárias condições, ou mesmo na própria sala de aula.

a casa também era de pau a pique, e aí a gente passava o barro na parede, porque caía, né, tinha um professor e duas professoras. O professor dormia na escolinha, levava uma caminha de armar e dormia na escolinha, o Sr. Etore Bilia 56, ele mora do lado do Ganot. E eu e a Mafalda, a gente dormia na casa da mulher, mas era de pau a pique também, a escolinha era de pau a pique. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010).

Os professores permaneciam na zona rural de segunda a sábado, quando retornavam para suas residências. Alguns eram bem jovens e inexperientes, como a professora Lourdes que foi para a zona rural aos 18 anos.

Eu tinha 18 anos e não parei mais: trabalhei quatro anos com escolas isoladas rurais57. E eu tinha que morar no bairro, na casa de uma família, normalmente de um aluno, e só vinha para casa no sábado no final do dia, porque naquela época tinha aula de segunda a sábado. Era seguido e como não havia meio de transportes, inclusive a grande maioria das estradas era de terra, não tinha linha de ônibus e tudo o mais, eu tinha que morar na fazenda, ficava em casa com a família só no domingo. Aí, na segunda-feira bem cedo, eu ia novamente para a zona rural. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011)

As dificuldades de locomoção variavam de acordo com a região escolhida e a distância. Em alguns casos, o tempo para se chegar era maior, algumas paradas eram necessárias, como também mudanças no tipo de transporte.

Lecionei numa escola que pertencia a Monte Aprazível 58. Eu morava nesse tempo em Mirassol59, então eu vinha de trem até Balduíno60. Em Balduíno tinha um menino me esperando com um cavalo; aí ele ia na garupa, me levava até a casa onde eu ficava. Eu fiquei mais de um ano, acho que um ano e meio nessa escola, dando aula. Passava a semana toda, só voltava no sábado. Às vezes eu ficava até

56 Por meio desta entrevista, fui procurar o prof. Etore Bilia, que depois torna-se também um professor colaborador nesta pesquisa. 57 Em 1963 na Escola de Emergência do Bairro Malhador; em 1964 na Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa; em 1965 na Escola de Emergência do Sítio Canela, todas no município de Tanabi. E em 1966 em uma Escola Típica Rural do município de Américo de Campos, que dista 59 quilômetros de Tanabi. Nessa escola do município de Américo de Campos, tinha o zelador que cuidava da horta e sua esposa cuidava da limpeza da escola e da merenda. Na escola tinha a sala de aula, refeitório (varanda) e ali estudavam crianças de 1ª e 2ª séries de manhã e 3ª e 4ª séries no período da tarde. Em 1968 se efetivou, por concurso, em uma Escola isolada no município de Cosmorama, que dista 24 quilômetros de Tanabi. 58 Monte Aprazível dista 18 quilômetros de Tanabi/SP. 59 Mirassol dista 26 quilômetros de Tanabi/SP. 60 Engenheiro Balduíno é distrito de Monte Aprazível e dista 8 quilômetros de Tanabi/SP. Isso no ano de 1948. 63

no fim de semana porque era andar bastante de trem, de Mirassol até Balduíno. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011)

As dificuldades vivenciadas por professores no início de suas carreiras em escolas rurais não diziam respeito apenas à moradia e locomoção. Ser professor de escola rural exigia uma atuação diferente da dos Grupos Escolares. Nessas escolas, o professor assumia diferentes funções. Nelas não existia nenhum outro funcionário. Não havia diretor, secretário ou merendeira. Muitas vezes os professores “corriam” atrás de alunos para que viessem fazer a matrícula. Se não houvesse um número mínimo de alunos, a escola não funcionava. Por isso, como diz a professora: “se não tivesse o tanto suficiente você tinha que correr atrás, né? você tinha que ir atrás de aluno” (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011). A professora Maria Feliciana complementa: “e quando os pais não iam, a gente ia na roça procurar os pais, na terra tombada, para poder achar os pais.” (MARIA FELICIANA GUIMARÃES DONOFRE, entrevista em 19/05/2011). Essa convivência direta com pais, alunos e moradores da região, aproximava os professores das pessoas e das famílias. Eles acabavam participando da vida social daqueles indivíduos, assumindo um papel muito importante para os membros da comunidade. Por isso, a professora Zulmira afirma que “A professora era tudo. Professora era muito importante na zona rural.” (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011). O professor Etore, que tinha um jipe, lembra-se de várias situações nas quais ajudou as pessoas, em diferentes horários. Normalmente, pediam a ele para fazer alguma viagem, transportar alguém ou alguma coisa. Ele se recorda, particularmente, de uma noite, mais ou menos às duas horas da madrugada, quando alguém batia em sua porta gritando:

“Oh professor, professor, pelo amor de Deus, professor...” Falei gente, o que que é isso? Eu dormindo nesse quartinho, eu o Galeano. Acordei: “O que que é?” Nem conhecia direito, baixinho, magrinho... “Pelo amor de Deus professor, minha muié tá morrendo, o senhor me ajuda, professor?” “Mas o que é que aconteceu?” “Minha muié teve criança, doutor... professor e tá lá morrendo, tá morrendo esgotada lá”. Falei: “Meu Deus do céu o que é que eu vou fazer agora?” Aí peguei esse jipe e fomos lá na casa da mulher. Era uma casinha de pau a pique, foi até difícil pra encostar o jipe lá. A mulher tinha tido criança e tinha uma hemorragia muito forte, e a parteira estava lá junto e a parteira não conseguiu, não sei como é que foi a criança, não limpou, não tirou a placenta, uma coisa 64

assim, e a mulher estava morrendo esgotada.(...) (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

O professor complementou dizendo que, naquela ocasião, levou a mulher para o hospital na cidade de Tanabi e que tudo terminou bem. Esses e outros episódios que os professores compartilharam, evidenciam o quanto eram importantes na zona rural. O professor, tido como aquela pessoa estudada, que tinha muito conhecimento, auxiliava em muitas situações de conflito e de necessidade. Diante das condições precárias, principalmente de empregados das fazendas/sítios, alguns moradores da zona rural encontravam, nestes profissionais, a ajuda de que tanto precisavam. Inclusive a ajuda em casa, em troca da hospedagem e alimentação que ofereciam aos professores. A professora Irma, por exemplo, comenta que usava materiais simples com os alunos, porque não tinha condições de comprar muita coisa, uma vez que seu salário era utilizado para ajudar nas despesas com sua família.

eu pagava pensão, aí você pagava para viajar, né? a casa que a gente ficava, pagava pensão, a gente pagava... Sabe, era casa pobre... igual: quando eu estava lá no Espraiado 61, a mulher falava: “Gente, eu não posso dar pensão, eu não tenho uma geladeira, eu não tenho nada”. Não tinha luz elétrica lá. Então ela falava: “Você trazem manteiga?” Então eu levava manteiga. Nem existia margarina, nem conhecia margarina, a gente comprava manteiga mesmo, levava. Ela colocava em cima, sabe? antigamente a gente falava pote, que nem existia filtro, aquele potes de barro branco, ela colocava manteiga lá em cima para ficar fresquinha, sabe? num prato... Então a gente levava, ajudava levar essas coisas, de mistura, a gente ajudava. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA entrevista em 14/06/2010)

Escolas rurais de Tanabi: alunos e condições estruturais

Era uma escolinha de pau a pique. (a professora mostra a foto do local) Só que aqui, na hora de bater (a foto), não bateu a escola, pegou só um ranchinho que tinha aqui do lado e uma árvore bem grande que tinha, isso aqui foi no ano de 1967. (...) Lá a gente tinha três turmas, de três horas, porque era muito aluno, uma escolinha de pau a pique. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

61 É um bairro rural no município de Tanabi. 65

Figura 26 - Alunos da Escola de Emergência do Bairro do Espraiado - município de Tanabi, 1967. Fonte: Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

No mesmo ano (1967), os alunos ganharam novo prédio, agora de tijolos, onde passou a funcionar a escola. Na figura seguinte, podemos observar a escola. Segundo a professora Irma, neste dia ocorreu a entrega de diplomas aos alunos da escola.

Figura 27 - Entrega de diplomas aos alunos formandos da Escola do Bairro do Espraiado – município de Tanabi, 1967. Fonte: Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

66

No capítulo anterior, quando abordamos as condições dos prédios escolares, comentamos sobre escolas já construídas de alvenaria. Nas escolas apresentadas, observamos algumas semelhanças entre elas, como por exemplo, a cozinha construída junto à escola. Na figura anterior, podemos perceber que na escola existia uma cozinha, pois podemos observar a chaminé, o que nos dá indícios de que deveria haver um fogão a lenha. Nestas condições, os professores tinham que cozinhar na escola para os alunos. À frente dos alunos, à esquerda, temos o poço, que era utilizado para retirar água para o consumo das crianças na escola. A professora Irma, ao mostrar a foto, comenta sobre a quantidade de alunos que estudavam na escola. Com turmas numerosas e em salas multisseriadas, acabavam dividindo a turma em três62 períodos de aulas por dia. Ainda quando aluna de escola rural, a professora Irma comenta as condições que enfrentou, no ano de 1954, na Escola Mista da Fazenda da Grama. Ao mostrar a fotografia (figura 28) da turma, perguntei se todos os alunos estudavam no mesmo período, a professora Irma respondeu:

É, estudava no mesmo período. Nossa, era numerosa, era carteira dupla. A gente sentava de três, porque – nossa - não cabia, não tinha água na escola, não tinha... como se diz, não tinha privada, né? naquele tempo... Quando apertava, tinha um matinho perto. A gente tinha que levar a garrafinha de água de casa, para tomar no recreio. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

62 Eram três horas seguidas de aula, sem intervalo (das 8h às 11h, das 11h15min às 14h15min e das 14h30min às 17h30min). 67

Figura 28 – Alunos da Escola Mista da Fazenda da Grama – município de Monte Aprazível/SP, na qual se encontra a profª entrevistada, turma de 1954. Fonte: Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Apesar das dificuldades que enfrentavam pela falta de água e banheiros nessa escola rural, os alunos eram todos uniformizados. Podemos perceber que as alunas usam laços nos cabelos e saias e todos os alunos, meninos e meninas, usam camisas de cor clara. Depois, a professora Irma contou como era a primeira escola onde lecionou, no ano de 1965 (Figura 12 do capítulo anterior). Como já foi exposto anteriormente, a escola possuía pouca luminosidade e estava abandonada, com muito mato em volta. Nesta época, a professora relatou que não tinha merenda na escola e, por isso as crianças tinham que levar o lanche de casa. E até mesmo a água para beber tinha que ser levada de casa. Todas essas más condições também podem ser evidenciadas pela fala da colaboradora Shirley. Ela conta qual era a situação no final da década de 1940, quando ela era aluna de escola rural. Cada um trazia sua marmita de casa para comer, as mães mandavam as marmitas. Aí eu mesma, quanta marmita que eu trazia, eu repartia com as minhas coleguinhas; às vezes a mãe não trouxe e elas não trouxeram lanche, então a gente repartia. Trazia comida, e quando eu não trazia, minha mãe mandava, trazia comida pra mim na hora da merenda. (SHIRLEY FABRI PERUCA, entrevista em 04/10/2010)

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Essas condições das escolas rurais foram se modificando ao longo do tempo. A mesma escola sobre a qual a professora Irma comenta que no ano de 1965 não tinha cozinha, em 1970 já apresentava melhorias. No ano de 1970, como revelou a professora, a merenda tinha que ser feita na escola, pela professora. Ela comenta: “Depois aqui foi em 1970, eu trabalhei na Barra Mansa, onde foi esta daqui, esta foto, só que já estava assim, tinha melhorado bem, tinha construído uma cozinha aqui no fundo, mas aí o professor fazia merenda, foi quando começou a merenda na escola.” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

Figura 29 - Alunos da Escola Mista da Fazenda Barra Mansa – município de Tanabi, 1970 Fonte: Acervo pessoal da professora Irma Rosa da Silveira Viana.

Nesta escola, a professora contou que, para fazer a merenda, usava um fogão a lenha. Para dar conta de tudo, as mães dos alunos colaboravam, mandando legumes e verduras picadas. Às vezes, algumas mães iam até a escola para auxiliar na merenda. Por isso, ser professor nestes locais exigia dos profissionais muito mais que uma boa prática de ensino. Era preciso também dar conta de serviços gerais, como cozinheiros, faxineiros, entre outros. A professora Maria Cecília falou sobre isso:

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Porque, ao mesmo tempo, a gente tinha que fazer merenda, você tinha que dar aula para 1ª série, 2ª série. E, por exemplo, teve uma época que eu dei aula na Goiaba63, eu dava aula para 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries tudo junto e tinha que fazer a merenda. Então você tinha que passar bastante coisa na lousa. E nessa época (que) eles reformaram aqui, eles fizeram a cozinha, aqui não tinha, eles fizeram a cozinha e a varanda, senão teria que cozinhar aqui dentro mesmo. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

A professora contou que durante todos os anos em que ela trabalhou nas escolas da zona rural, ela fez a merenda na escola. Ela complementa que: É, toda a época que eu dei aula, foi na própria escola 64. E inclusive quando eu vim pra cá, aí tinha um fogãozinho a lenha, mas era ruim cozinhar no fogão a lenha. Então, fizemos... Tinha a APM e eram eleitos os pais das crianças, e a gente fazia muitas campanhas, nós fazíamos muitas quermesses, e fazíamos rifas, e nossa quermesse era tão boa aqui, o pessoal colaborava tanto, que essa escola foi a primeira escola a ter fogão a gás65. Depois, na década de 1990, aí, não sei se foi o município ou se foi o Estado, já começou dar fogão a gás, mas aqui nesta escola quem comprou fomos nós, professores e pais. Compramos fogão a gás com uma cota de dois bujões, olha, e as crianças tinham a merenda. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

O empenho da professora Maria Cecília em conseguir um fogão a gás para a escola evidencia o quanto o professor buscava melhores condições de trabalho e estrutura para a unidade escolar. Com as condições vividas em algumas escolas, eles tinham que desempenhar funções que iam além do conteúdo escolar. A professora ainda conta que, para completar a alimentação das crianças, eles cultivavam uma horta. No caso desta escolinha localizada no bairro do Sapé (a escolinha onde foram feitas as primeiras entrevistas), ela contava com a ajuda de Shirley (também colaboradora neste trabalho) e seu esposo para cuidar da horta. Além disso, Shirley ajudava na merenda, ela conta que

era a minha merendeira, não o tempo todo, os 16 anos que eu estive aqui, mas grande parte desses 16 anos a Shirley foi a merendeira. Houve outras, mas ela foi há mais tempo, era merendeira, ela limpava a escola, e eu me lembro que as crianças plantavam muita coisa (...). (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Neste último trecho, referente à entrevista da professora Maria Cecília, ela se refere

63 A professora trabalhou na Escola da Goiaba, município de Tanabi/SP, nos anos de 1983, 1984 e 1985, no período da tarde. Em outro período, dava aulas na Escola do Sapé. 64Teve início em 1968 na Escola Mista da Fazenda Carrilho, município de Cosmorama/SP. Até 1986 era feita na escola. Na Escola do Sapé, município de Tanabi/SP, tinha a Shirley (também colaboradora desta pesquisa) que colaborava e ganhava pela APM (com fundos arrecadados em quermesses), e assinava recibo. 65 O fogão da Escola do Sapé foi comprado em 1970 ou 1971. A professora Maria Cecília trabalhou lá até o ano de 1986. 70

à Shirley e seu marido que ajudavam na horta e na merenda. Quando questionei Shirley sobre isso, ela relatou: Ah, eu fiz, mais ou menos, uns cinco anos. Já vinha pra fazer, né? Aí fazia uma sopa, fazia... depende o que tinha pra fazer, a gente fazia. Mas eu tinha uma hortinha, fazia, plantava as coisas, fazia uma saladinha de alface pras crianças, tudo da hortinha que eu plantava. (SHIRLEY FABRI PERUCA, entrevista em 04/10/2010).

Esta aluna que participou da pesquisa, tem uma história de vida muito ligada à esta escola do Bairro do Sapé, pois ela morou muitos anos no sítio próximo à escola. Tendo sido aluna e depois, permanecendo na região, as filhas também estudaram na mesma escola e ela pôde, junto com o marido, ajudar as professoras com a merenda, a horta e outros afazeres durante muitos anos. Por isso, Shirley teve uma participação muito especial nesta pesquisa, pois ela nos mostrou histórias locais muito interessantes sobre o bairro rural onde se localizava a escola. Sobre essa ajuda que as professoras recebiam em algumas escolas, um caso em particular nos pareceu muito interessante. A professora Maria Terezinha comenta que quando precisou de ajuda nos serviços de cozinheira, contratou uma ajudante. Ela relata:

Mas ali você não tinha intervalo, você não tinha nada, né? além de você trabalhar dentro da sala de aula, você era cozinheira, merendeira, faxineira. Depois que eu vi que os alunos precisavam mais da gente, foi quando eu consegui uma ajudante 66. Aí eu consegui, então dava aula direto, assim na hora do intervalo, saía, brincava um pouquinho, aí já voltava quem tinha mais dificuldade, e além do horário. (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista no dia 08/06/2011)

Quando a professora falou da ajudante, perguntei se ela era voluntária ou funcionária da escola. A professora Maria Terezinha disse que ela era particular e que ela mesma a havia contratado, pois era necessário “para ajudar, senão não dava conta. Menina, quatro séries, merenda, você não podia parar de mexer, né? naquela época.” (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011) Todas essas condições eram enfrentadas pelos professores na zona rural. Os prédios escolares ofereciam poucos recursos e com salas lotadas de alunos, que vinham de sítios próximos à escola e que, muitas vezes, não tinham recursos para compra de materiais, roupas e calçados adequados.

66 No final na década de 1980. 71

Em uma foto de 1938, podemos perceber a forma como os alunos iam para a escola:

Figura 30 – Alunos da Escola Mista Rural do Bairro das Perobas, município de Tanabi/SP, 1939.67 Fonte: http://antoniocaprio-memoriatanabi.blogspot.com.br/p/social.html. Acesso em 16/08/2013.

Na foto que Shirley nos apresentou e que consta na introdução deste trabalho (Figura 5), do ano de 1949 e na foto apresentada pela professora Irma (Figura 28), do ano de 1954, percebemos algumas semelhanças no tipo de roupa que os alunos vestiam. As camisas, em sua maioria eram claras. Os meninos vestem bermudas68 de cor escura. As meninas com blusas também na cor clara vestiam saias de cor escura. Quase todos os alunos estão usando suspensórios, que estima ser um acessório comum na época, mesmo comparando fotos de três décadas diferentes. A professora Zulmira comenta sobre essa realidade. Ela trabalhou em uma escola rural no ano de 1947. Dada a realidade da comunidade que a escola atendia os alunos, muitas vezes, tinham que ir descalços para a escola. Ela comenta, mostrando a foto das alunas: “As menininhas, você repara que algumas estão descalças, né? E ninguém tinha bolsa, era só uma sacolinha, eles falavam embornalzinho. Olha que gracinha, olha que coisinha mais linda!” (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011)

67 Legenda da foto no site: Grupo de alunos da escola mista rural do bairro das Perobas no ano de 1939. Ao fundo a professora Jacyra Paes Marão. 68 Bermudas ou calças curtas, como provavelmente, se dizia na época. As calças curtas eram comuns no início do século XX. 72

Figura 31 - Escola Rural na Fazenda em Engenheiro Balduíno, município de Monte Aprazível/SP. Turma das meninas, 1947. Fonte: Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Mostrando a fotos dos meninos, ela comenta que os alunos não usavam uniformes.

Figura 32 - Escola Rural na Fazenda em Engenheiro Balduíno, município de Monte Aprazível/SP. Turma dos meninos, 1947 73

Fonte: Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Nas duas fotos anteriores já não há muita regularidade nas roupas das crianças, que, em sua maioria, apesar de serem de cor clara, não seguiam os padrões encontrados nas fotos anteriores. Todos os casos analisados são de escolas rurais. Apesar dessa precariedade com que os alunos iam à escola, os professores, de uma maneira geral, declararam que os alunos das escolas rurais eram muito educados e interessados pelos estudos. Não podemos deixar de mencionar também as atividades que os professores proporcionavam aos alunos, como o piquenique que a professora Maria Cecília promoveu em meados do ano de 1975. Então tinha ali, atravessando a linha férrea, tinha bastante árvores, então eu levei eles para lá, para fazermos um piquenique. Eu comprava, olha só como a gente ganhava bem, eu comprava pão, mortadela e refrigerante para todos com meu dinheiro, eles adoravam, sei lá, e olha quanta criança que tinha. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Figura 33 – Alunos da Professora Maria Cecília Soccio Monteiro em um piquenique, 1975. Fonte: Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

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Figura 34 - Alunos da Professora Maria Cecília Soccio Monteiro em um piquenique, 1975. Fonte: Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Na figura a seguir, podemos ver os alunos jogando futebol em um momento de recreação durante o piquenique.

Figura 35 - Jogo de futebol entre os alunos da professora Maria Cecília Soccio Monteiro, durante o piquenique, 1975. Fonte: Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Nestas fotos da década de 1970, já percebemos algumas mudanças no modo de as crianças se vestirem, em comparação com as fotografias mostradas das décadas de 1930, 75

1940 e 1950. Mesmo tendo em vista que era um dia de recreação e esse pudesse ser o um motivo para colocarem roupas diferentes, a professora Maria Cecília comenta que houve mudanças até a década de 1980, ela afirma: “na década de 1960 os alunos se vestiam diferente, na década de 1980, começou a mudar.” (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010) Vamos observar outras fotografias apresentadas pela professora Maria Cecília, do ano de 1979, quando lecionava na Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP. Na foto a seguir, podemos observar ao fundo, do lado direito, o poço.

Figura 36 - Alguns alunos da professora Maria Cecília Soccio Monteiro, turma de 1979. Fonte: Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Na próxima foto, podemos perceber ao fundo, do lado direito, o sanitário.

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Figura 37 - Alguns alunos da professora Maria Cecília Soccio Monteiro, turma de 1979. Fonte: Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Segundo a professora Maria Cecília, essas fotos foram tiradas no final do ano de 1979, quando suas filhas foram passear na escola, por isso, nas duas fotografias anteriores (figuras 36 e 37), as filhas da professora também aparecem 69. Como era um dia atípico de aula, tendo a visita de suas filhas, podemos perceber que os alunos estão vestidos de modos diferentes, não há em evidência um modo de se vestir, ou um padrão a ser seguido, como pôde ser observado em fotos de períodos anteriores. Outras inúmeras possibilidades de análise poderiam ser exploradas nas imagens mostradas neste tópico, sobre os alunos e as condições estruturais das escolas rurais, como por exemplo, as intenções do autor de cada foto poderiam servir para fornecer muitos dados sobre as especificidades das escolas rurais. No próximo tópico, vamos relatar as condições de trabalho em sala de aula e a organização para o trabalho em salas multisseriadas, identificando as práticas dos professores para cumprir os conteúdos, tendo em vista a avaliação final, que os alunos das escolas rurais tinham que enfrentar para sua aprovação, e as visitas do Inspetor de Ensino.

69 Embora em algumas fotos apresentadas, a professora Maria Cecília tenha mencionado o nome de alguns alunos, optamos por deixá-los sem identificação. 77

A organização das aulas e as visitas do Inspetor de Ensino

O trabalho de magistério na zona rural, para alguns, serviu como um passo necessário a ser dado no início da carreira para adquirir os primeiros pontos na carreira docente. A fala da professora Lourdes evidencia: “Eu tinha 18 anos e não parei mais: trabalhei quatro anos com escolas isoladas rurais70” (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011). Outros tipos de experiência foram relatados, como o caso da professora Eunice, que trabalhou apenas 15 dias em uma escola da zona rural: “eu fiquei apenas 15 dias nesta escola, e já saiu minha aposentadoria. A única experiência que eu tive de escola isolada foi essa.” (EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, entrevista em 18/05/2011). Por outro lado, temos a declaração da professora Irma: “Trabalhei 26 anos. Eu fiquei 23 anos em escola isolada.” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010). Com todas essas particularidades, não há como os relatos dos professores serem uniformes. Cada um, com a sua história, tem algo diferente para compartilhar. Isso fica claro também nas entrevistas, quando os professores foram questionados sobre estas questões de ensino, inclusive pelo trabalho que era realizado em salas multisseriadas. A professora Maria Cecília comenta sobre a organização das suas aulas. Para ela, depois do recreio eram trabalhadas as disciplinas de História, Geografia, Ciências e Artes. E, nos primeiros horários, priorizava a Língua Portuguesa e a Matemática. Ela afirma que era preciso ter um horário fechado e, ainda, fazer um diário constando todas as aulas do dia. E completa:

você tinha que dar diariamente Língua Portuguesa, e todo dia Matemática. Aí, geralmente, a gente não dava assim, completamente de acordo com o horário, antes do recreio, a gente dava Português e Matemática, principalmente Matemática porque a criança estava mais descansada, então a gente achava que era melhor (...). (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010).

70 Em 1963 na Escola de Emergência do Bairro Malhador; em 1964 na Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa; em 1965 na Escola de Emergência do Sítio Canela, todas no município de Tanabi/SP. E em 1966 em uma Escola Típica Rural do município de Américo de Campos/SP, que dista 59 quilômetros de Tanabi. Nessa escola do município de Américo de Campos, tinha o zelador que cuidava da horta e sua esposa cuidava da limpeza da escola e da merenda. Na escola tinha a sala de aula, refeitório (varanda) e ali estudavam crianças de 1ª e 2ª séries de manhã e 3ª e 4ª séries no período da tarde. Em 1968 se efetivou, por concurso, em uma Escola isolada no município de Cosmorama, que dista 24 quilômetros de Tanabi. 78

A professora Maria Terezinha, conta que era o professor quem administrava o tempo na sala de aula, de acordo com as atividades que estavam preparadas. Ela afirma que ia trabalhando cada série com disciplinas diferentes, de acordo com as dificuldades que cada turma apresentava.

Então dava Língua Portuguesa para uma, Matemática para outra, Língua Portuguesa para outra. Você tinha que ter jogo de cintura, né? Eu achava que os que tinham mais dificuldade, então, por exemplo, eu dava Ciências que eles gostavam mais. Aí eu trabalhava mais com a outra série a Matemática. A outra estava mais com dificuldade de Português, então dava mais. Matemática: só de você dar uma explicação, eles deslanchavam. Tinha que ir jogando. (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011)

Entre as falas das professoras Maria Cecília e Maria Terezinha, podemos observar algumas diferenças. A professora Maria Cecília dava prioridade ao trabalho de Matemática e Português antes do intervalo, porque as crianças estavam descansadas. A professora Maria Terezinha trabalhava de acordo com as turmas, dando prioridade ao conteúdo no qual cada turma apresentava mais dificuldades. O professor Etore conta que, para que o professor administrasse bem suas aulas e pudesse dar conta de tudo, ele tinha que saber o que ia fazer em sala. Assim como a professora Maria Cecília, o professor Etore também comenta sobre o uso de diário de classe, e relata: “tinha o diário de classe que você tinha que obedecer; e esse diário de classe era um tipo de caderneta e ali você sabia o que você ia dar durante aquele dia, você preparava em casa.” (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010). Para trabalhar com a Matemática, por exemplo, o professor comenta como fazia a divisão das turmas: “o que que eu vou dar de Matemática hoje? Eu vou dar dois problemas - por exemplo - para a quarta série. Eu vou dar dois problemas pra terceira série. E vou dar um probleminha pro primeiro ano.” (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010). Ele conta que, às vezes, chegava antes da aula e colocava o conteúdo de todas as turmas na lousa, assim, quando os alunos entravam, cada um já sabia o que deveria copiar. Ele afirma: “Menino de quarto ano, são esses dois problemas, menino de terceiro ano, esses dois problemas. E enquanto o quarto ano e o terceiro iam resolvendo os problemas, você dava uma outra atividade para o segundo e para o primeiro.” (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010). Para o segundo ano, o professor comenta que geralmente dava um texto para que os

79 alunos fizessem a cópia. Assim, teria mais tempo para se dedicar ao primeiro ano, pois segundo o professor: “o primeiro ano não tem jeito, o primeiro ano você tem que trabalhar com ele quase que individual”.

Então você às vezes sentava na mesa, na carteira, em qualquer lugar e você passava as atividades no caderno deles, no caderno. Então logo nos primeiros dias você só passa exercício, são praticamente quase que dois meses de primeiro ano, que são só exercícios. Exercícios para ele aprender a pegar no lápis, usar o lápis, usar a borracha, usar o caderno, é porque é aquilo que eu falei pra você: a criança no sítio ela entrava no primeiro sem saber absolutamente nada, mas é nada de nada! não sabia nem pegar no lápis. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Ainda segundo esse mesmo professor, as crianças de primeiro ano quebravam muito a ponta do lápis e tinham dificuldades para apontarem esse lápis. Por isso, o professor já deixava vários lápis apontados, para facilitar o trabalho com os alunos e completa: “conforme quebrava, eles já corriam lá e pegavam outro, que depois em outra hora eu apontava os lápis... então, você tinha que ir fazendo todo esse esquema para poder dar conta, se não você não dava conta de jeito nenhum. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010 ) Com esses relatos, identificamos o quando o professor levava a sua aula organizada para dar conta de atender às séries diferentes e, ainda, lidar com os diferentes níveis de aprendizagens dos alunos; por isso, sem dúvida, o planejamento do professor era obrigatório e necessário. Outro ponto importante é observar as condições com que os alunos chegavam às escolas, ou seja, como iniciavam seus estudos na primeira série. Como já relatou o professor Etore, a maioria começava a frequentar as escolas não conhecendo nem lápis, nem caderno, nada. Os professores tinham que iniciar o trabalho com os alunos, de modo a permitir que eles começassem a ter uma coordenação motora necessária para a aprendizagem da escrita. Com relação a isso, a professora Irma conta que uma vez, em uma das escolas rurais que lecionou, chegaram cinco irmãos que nunca haviam frequentado a escola antes, e, por isso, não tinham nem a noção de caderno. Ela relata que a irmã mais nova, ao terminar de completar uma linha do caderno, falava: “ô professora, eu já varei a rua, já terminei a rua, pode fazer outra rua?” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010). Segundo a professora, a aluna usava um vocabulário específico da vida rural, da

80 roça, onde os espaços abertos entre as plantações recebe o nome de “rua”: a rua de café, a rua de algodão, e, por isso, para a aluna, era como terminar a rua. A professora completa: “para ela era a rua, porque ela viu reto, demorou para ela entender que o caderno chamava linha, para ela era “rua”.” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010). Com essas situações, era preciso ter um trabalho inicial voltado ao aprendizado da coordenação motora. A professora Irma coloca que era preciso pegar na mãozinha do aluno para ajudá-lo a escrever. Como visto anteriormente na fala do professor Etore, os alunos quebravam muito as pontas dos lápis, por não terem ainda uma coordenação adequada. Para o aluno, era um novo espaço com novas convenções e regras. Essas e outras observações mostraram que ensinar nesses espaços escolares, era de fato um desafio para o professor. Além de todas as questões já levantadas, eles tinham que cumprir o conteúdo programado e manter a boa organização da sala de aula. E como meio de manter esse trabalho em uniformidade, de modo disciplinado, as escolas da zona rural recebiam a visita do Inspetor de Ensino71. O professor Etore conta que às vezes o inspetor de Ensino fazia visita na escola 72, mas ele relata que dificilmente ele orientava ou auxiliava o professor; ele apenas vinha ver o que você estava fazendo, se você estava na escola, se você não estava, se você estava faltando ou não, se você estava trabalhando. Aí ele fazia um tipo de teste para os alunos na lousa, ia chamando os alunos pra ver como é que os alunos estavam. E aí eles colocavam um, como é que chama... um relatório e esse relatório constava lá tudo, até o jeito que o professor dava aula. Mas não ensinava nada à gente não, naquela época a gente aprendia era sozinho mesmo, através de experiência com outros colegas, através de livros, e você tinha que pesquisar, você tinha que ir atrás e o que mais assim é, que te deixava mais a vontade, dentro da sala de aula, é a experiência do dia a dia. Cada dia de aula você aprende uma coisa diferente. É com aluno diferente, é com outra colega, uma série de coisas. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

A professora Maria Terezinha relata que os inspetores chegavam de surpresa e que, com essas visitas, era possível avaliar o seu trabalho e saber se o professor estava trabalhando corretamente com os alunos. Ela relata: “eu sempre agradecia. Porque talvez

71 O papel desempenhado pelos inspetores de ensino consta da LDB 4.024, art. 28: “a administração do ensino nos Estados, Distrito Federal e Territórios deverá promover anualmente o levantamento do registro das crianças em idade escolar e incentivar a fiscalização da frequência às aulas” (GARNICA, 2006, p.50). 72 Segundo o professor, o inspetor visitava as escolas duas vezes por ano. Fazia um relatório da visita que era enviado à Delegacia de Ensino. 81 você pensava que estava fazendo um trabalho de um jeito e não era para fazer assim. E outra, era tudo conhecido. Mas era muito bom, menina! era legal à beça, eles iam sempre.” (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011). Quando a questionei se eles levavam contribuições, ela respondeu:

Levavam! sempre tinham aqueles mais – assim - mas na maioria, graças a Deus, eu até agradecia quando eles iam. Eu agradecia sim, porque talvez você pensava que estava fazendo de um jeito, porque eu pedia orientação, né? Falava: “Olha, eu estou fazendo assim, assim. Está certo?” “Não, está ótimo! Não, continua assim. Não, e se você fizesse assim?” Eu gostava de opinião, eu gostava, para ver se eu estava certa, né? Ainda mais em começo de carreira, a gente apanha. Nossa! era excelente! eu gostava sim. (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO entrevista em 08/06/2011).

Diferente do professor Etore, a professora Maria Terezinha comenta que os inspetores sempre iam na escola onde ela lecionava. Essa diferença pode estar relacionada à localização da escola e até mesmo à época em que cada um trabalhou. As professoras Irma e Lourdes contam que essas visitas eram feitas poucas vezes durante o ano. Como o professor Etore, a professora Irma também relata que, geralmente, as visitas aconteciam duas vezes no ano, distribuídas uma em cada semestre e afirma: quando era uma escola mais perto, eles até iam mais vezes, mas quando eram escolas mais longe como o Espraiado, na Barra Mansa 73, eles iam duas vezes, a não ser que tivesse problema que eles tinham que resolver. Assim... mas eles iam duas vezes. E tinha reunião todo mês, sabe, então quando você tinha alguma dúvida, tinha reunião que era na cidade. Então aquele dia não tinha aula, era o dia da reunião, uma vez por mês. Aí você tinha que levar o diário de classe, eles davam visto no diário de classe, para ver se estava organizado, se tinha que levar a caderneta de chamada, para ver como é que estava. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

A professora Lourdes aponta que as visitas aconteciam a cada dois, três meses e, por isso, a escola isolada ficava sem um acompanhamento constante, e afirma:

Em geral a escola isolada não tinha inspetor de ensino, tinha assim um ou outro que era escalado, pra ir lá numa ocasião esporádica fazer uma visita, mas não era uma coisa constante e que houvesse por parte dele um apoio pedagógico ao trabalho da gente. Eles, em geral, até se manifestavam assim: “Você sabe muito mais do que eu, do que deve ser feito em sala de aula”. “Eu não tenho como lhe orientar”. Eu cansei de ouvir isso. Mas por quê? Porque ele era esporádico, ele passava às vezes na escola a cada dois, três meses... isso não é inspeção escolar. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em

73 Espraiado e Barra Mansa eram fazendas onde estavam localizadas as escolas. Ambas pertencem ao município de Tanabi/SP. 82

08/06/2011)

Com as contribuições dos professores Etore, Maria Terezinha, Irma e Lourdes, percebemos que a atuação do Inspetor de Ensino e a forma com que os professores encaravam este trabalho era muito variada. Cada escola recebia um tratamento diferenciado. Como a professora Irma colocou, em escolas mais distantes da cidade, essas visitas ocorriam apenas duas vezes no ano, sendo mais frequentes nas centrais. Nas visitas registradas nos “Livro de Termos de Exame e Visitas”, encontrados na Escola Municipal Ganot Chateaubriand, em Tanabi, pudemos conhecer um pouco do caráter destas visitas. Ressaltando que, os nomes das escolas visitadas, professores que lecionavam na sala, bem como o nome do Inspetor e a data em que a visita foi realizada não serão mencionados, como forma de manter a privacidade das pessoas envolvidas. Cabe nestes trechos analisados, apenas conhecer a forma como as visitas eram feitas e quais os itens que eram importantes de serem verificados. Em um termo de Visita, datado do início do ano de 1977 a uma escola isolada rural do município de Tanabi, podemos observar algumas características da sala.

Figura 38 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no início do ano de 1977 em uma 83

escola rural do município de Tanabi/SP. Fonte: Acervo da Escola Municipal Ganot Chateaubriand, Tanabi/SP.

Neste início de ano, segundo as observações do inspetor, a sala contava com 20 alunos distribuídos entre a 1ª, 2ª e 3ª séries. É interessante observar que o trabalho da professora é elogiado, dando atenção aos cadernos dos alunos onde ele pôde verificar as letras bonitas, isso nos revela a valorização pedagógica de se ter letra bonita ou feia. A seguir, vamos acompanhar uma visita realizada nesta mesma escola, no final do mesmo ano. Neste termo de visita, datado de outubro do ano de 1977, observamos alguns itens que foram inspecionados nesta sala de aula: Rendimento Escolar; Escrituração; Dias Letivos; Semana das Crianças; Avaliação; Semanários de Lições. Destes tópicos abordados nesta visita, vamos analisar uma observação feita no item “Rendimento Escolar”, ao se referir aos alunos de 3ª série que contava no mês de outubro com apenas sete alunos no total. Vejamos:

Figura 39 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no final do ano de 1977 em uma escola rural do município de Tanabi/SP Fonte: Acervo da Escola Municipal Ganot Chateaubriand, Tanabi/SP.

Podemos observar que a turma da 3ª série, que contava no final do ano de 1977, com apenas sete alunos, quatro apresentavam dificuldades com a divisão74. Embora este número represente a maioria da turma de 3ª série, o texto apresenta uma tranquilidade por

74 Uma discussão sobre a divisão será tratada no tópico “Ensinando e aprendendo operações aritméticas” do Capítulo 3 deste trabalho. 84 parte da professora em trabalhar com esses alunos ao afirmar que, “com um pouco de recuperação”, as dificuldades seriam sanadas. Sobre o item “Avaliação”, podemos observar:

Figura 40 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no final do ano de 1977 em uma escola rural do município de Tanabi/SP. Fonte: Acervo da Escola Municipal Ganot Chateaubriand, Tanabi/SP.

Ao terminar este termo de visita, o inspetor ressalta novamente o trabalho desempenhado pela professora. No próximo trecho apresentado, temos uma visita realizada no mês de março do ano de 1966, também a uma escola rural do município de Tanabi. Neste “Termo de visita”, podemos observar o rendimento da sala até o mês de março, bem como o método de trabalho adotado pela professora. Outra vez, é possível observar que o capricho da professora em conduzir a sala é ressaltado no texto.

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Figura 41 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no início do ano de 1966 em uma escola rural do município de Tanabi/SP. Fonte: Acervo da Escola Municipal Ganot Chateaubriand, Tanabi/SP.

Podemos perceber que o número de alunos matriculados variava muito de escola para escola. No primeiro termo de visita apresentado, datado do início do ano de 1977, a escola contava com 20 alunos matriculados, distribuídos na 1ª, 2ª e 3ª séries. Já no segundo Termo apresentado, da mesma escola, já verificamos um número reduzido de alunos, que contabilizava no final do mesmo ano apenas 11 alunos. Na outra escola analisada, temos uma sala com 30 alunos matriculados, especificados no texto como sendo de 1° e 2° graus. O que chama a atenção neste relatório anterior (Figura 41) é que o inspetor registra a sua opinião contrária sobre a escolha da Cartilha Sodré pela professora; no entanto, admite os bons resultados obtidos por ela. Isso mostra o reconhecimento do trabalho

86 realizado com as crianças. No próximo trecho, é verificado o bom trabalho da professora, não pelos cadernos dos alunos, mas pela postura que estes apresentaram em sala de aula. Esta foi uma visita a outra escola do município, realizada no mês de abril do ano de 1972.

Figura 42 - Trecho retirado de um Termo de Visita realizado no início do ano de 1972 em uma escola rural do município de Tanabi/SP. Fonte: Acervo da Escola Municipal Ganot Chateaubriand, Tanabi/SP.

Dos termos de visita que foram analisados, pudemos verificar que o andamento das aulas, o rendimento dos alunos, bem como a postura da professora, eram sempre ressaltados nos registros apresentados. A aprendizagem dos alunos, principalmente em Língua Portuguesa e Matemática, eram descritos. Contudo, não podemos deixar de pensar nas condições e intenções que estes registros foram feitos, pois

o documento não é um documento em si, mas um diálogo claro entre o presente e o documento. Resgatar o passado é transformá-lo pela simples evocação. Em decorrência da ideia anterior, todo documento histórico é uma construção permanente. Não bastassem as especificidades do valor oscilante de um texto, variam também os agentes que o lêem.” (KARNAL E TATSCH, 2009, p. 12)

Desta forma, não só as razões que motivaram a constituição destes registros, mas a forma como nós, hoje, analisamos estes documentos, também devem ser levados em

87 consideração. Pois as motivações, embora sobre um mesmo documento, são compostas por diferentes objetivos.

As práticas de ensino nas salas multisseriadas

Mas, como era o ensino nas escolas rurais? Existiam diferenças em relação às escolas da área urbana? Para Martins (2003), pelo menos na teoria “a grade de disciplinas e tópicos da escola rural era o mesmo das escolas urbanas” (MARTINS, 2003, p. 91). Para trabalhar todas as disciplinas, os professores tinham que planejar bem as suas aulas, uma vez que se tratavam de espaços escolares com características diferenciadas. A proposta de uma grade curricular idêntica à da escola da cidade, por parte das políticas públicas, nos leva a alguns questionamentos. A formação de alunos de realidades culturais distintas deve ser igual ou diferente? Quais seriam as justificativas para argumentar a favor ou contra um padrão geral de formação? Se existiam ou não adaptações, é um aspecto que pretendemos problematizar em nossa investigação. Sabemos que os conteúdos propostos eram cobrados dos professores, uma vez que os alunos eram avaliados, ao final do ano, pelo inspetor de ensino, diretor ou professor de outra sala. A aprovação nessa avaliação garantia ao aluno o ingresso na série seguinte. O professor Etore lembra:

Eles cobravam. Teve uma época que você ganhava até ponto de acordo com o número de alunos aprovados, era terrível! Então chegava no final do ano, era aquela correria, as provas vinham da Secretaria da Educação, lacradas, fechadas, e quem fazia a prova dentro da sua classe não era você, era um outro professor 75. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

A professora Lourdes aponta um episódio interessante ligado à aplicação da avaliação. Ela conta que, apesar de gostar da ideia de ser alguém de fora para fazer a avaliação, ela se entristeceu com duas ocasiões, em que o inspetor de ensino e uma professora convidada para aplicar a prova em sua sala, segundo a opinião da professora, acabaram agindo de forma discriminatória. No primeiro caso, “o aluno usou uma linguagem que era própria da região onde ele morava, coisa que um inspetor escolar

75 As provas vinham da Delegacia de Ensino, lacradas. Isso por volta da década de 1980. 88 desconhecia; então, ao invés de ele perguntar ao aluno o que ele queria dizer com aquilo, ele colocou errado.” (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011). No segundo caso, a professora relata que o aluno tinha que escrever sobre uma boa ação que ele praticara; o menino (aluno) sendo muito simples, da roça, colocou em sua prova que “às vezes ele caçava codorna e pássaros, que levava para casa para fazer e comer.” Segundo a professora, o inspetor reprovou o aluno por causa disso, justificando que ele estava destruindo a natureza. A professora não achou certa essa atitude do inspetor, pois, segundo a professora, a realidade do inspetor era diferente da realidade do aluno e,

Porque uma criança que mora na zona rural, que às vezes tem falta de alimento em casa, que pode acontecer, né? de ter o arroz, de não ter o feijão, de não ter uma carne, se ele conseguir pegar uma codorna, uma perdiz, ou um tatu, como ele citava lá no texto, a intenção não era de acabar com a natureza, a intenção dele era de ajudar no sustento da casa. Eu não acho que ele errava de caçar uma codorna. Por quê? Porque ia alimentar ele, os irmãos e os pais. Agora, destruir a natureza, eu acho que é aquele que não obedece o que a lei determina e acaba depredando o ambiente, e tudo por ganância, por dinheiro, por facilidade, porque não ama a natureza. Agora o pessoal da zona rural, eles amavam a natureza, eles mesmos construíam as represas, colocavam os peixes para procriar, tratavam deles. As árvores, eles não podavam, deixavam crescer, dar frutos. Eu nunca soube de algum que cortasse uma árvore, quer dizer, eles amavam a natureza. O fato de caçar pássaros ou uma perdiz, ou o que seja, eu acho que era por necessidade de alimentação, como o fruto também. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011)

Nos dois trechos anteriores, um apresentado pelo professor Etore e outro apresentado pela professora Lourdes, podemos observar duas características dessas avaliações finais. Primeiro, o professor Etore coloca a situação de favorecimento ao professor, cujo número de alunos aprovados fosse alto. Essa situação acabava gerando no professor uma cobrança muito grande, pois, além de influenciar na sua carreira, tinha que assistir seus alunos serem avaliados (e muitas vezes reprovados) por outra pessoa. No segundo trecho, que foi descrito pela professora Lourdes, o inspetor, por não conhecer o contexto do aluno, acaba prejudicando-o, evidenciando o quanto essas avaliações poderiam ser, em muitos casos, desapropriadas aos alunos da zona rural, não só porque essas avaliações determinavam a aprovação ou não do aluno, mas também porque havia a preocupação de que esses alunos continuassem seus estudos na cidade. A professora Zulmira relata que o ensino nas escolas rurais deveria ser igual ao ensino das escolas da cidade, pois, segundo essa professora, se a criança fosse continuar os estudos, não deveria

89 estar em desvantagens das outras que tinham estudado na cidade. A professora Mércia diz: “Nossa! eu fiz minha turma da quarta série estudar tanto, tanto, tanto, porque tinha que vir pro ginásio e tinha que acompanhar, sabe?” (...) “Então, eu acho assim: a gente tinha essa preocupação, os alunos vinham para a cidade e tinham que saber76.” (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011). Nossa investigação, portanto, aponta que os mesmos alunos que iniciavam a primeira série sem conhecer o lápis eram levados, ao final do terceiro ou quarto ano, dependia do local, a saber exatamente tudo o que havia sido trabalhado nas escolas da zona urbana. É claro que não podemos deixar de observar que esta preocupação dos professores era importante, vista como oportunidade para aqueles que continuariam seus estudos na cidade. Esse seria o principal motivo para que o ensino nas escolas isoladas rurais estivesse sempre pautado pelas regras estabelecidas às escolas da cidade. O fato dos alunos realizarem a mesma avaliação no final do ano obrigava os professores a cumprirem com o mesmo conteúdo, mesmo com a realidade diferenciada. Contudo, a realidade acabava interferindo em alguns casos, pois, diferentes dos alunos da cidade, muitos alunos da zona rural tinham que ajudar os pais na roça e, por isso, não tinham tempo para se dedicarem aos estudos. Sem contar que, com essa realidade, os alunos – como foi dito - entravam na escola sem ao menos conhecerem um lápis, dificultando ainda mais a atuação do professor. As escolas isoladas da zona rural ofereciam, na maioria dos casos, até a 3ª série. Como eram compostas por apenas uma sala de aula, estas séries dividiam o mesmo espaço, o que é chamada de salas multisseriadas. Martins (2003) em sua pesquisa com as escolas rurais evidencia essa dificuldade com a multisseriação: Na maioria das escolas rurais eram oferecidas apenas as três séries iniciais. Como em geral a escola era constituída por uma única sala, as três séries (ou “anos”, como se falava à época) eram atendidas pelo mesmo professor, simultaneamente. Essa estrutura teve influências imediatas na forma de condução das atividades com os alunos. Devido à estrutura física da escola, os professores acabavam por utilizar várias estratégias para tentar superar o problema de se ter mais de uma série na mesma sala. Para tanto, buscava-se dividir a sala em fileiras por séries, a lousa era também divida em uma parte para cada turma e, durante o tempo em que uma turma estava junto com o professor na lousa, as outras turmas estavam fazendo atividades já encaminhadas e não necessitavam muito do apoio do professor.

76 Quando iam cursar a 1ª série do curso ginasial. Isso nas décadas de 1960 e 1970. 90

(MARTINS, 2003, p. 45)

As características das salas multisseriadas apontadas por Martins, são também encontradas na realidade das escolas onde os professores colaboradores desta pesquisa trabalharam. Eles também comentaram a respeito da organização das séries na sala de aula. A professora Irma relata: Dividia por fileiras, fazia o que dava ali, e o trabalho rendia, sabe, porque as crianças se interessavam. Rendia, sim, o trabalho. Indisciplina também não tinha, eu não tinha problema com indisciplina na escola rural, não tinha indisciplina, eles acostumavam, tinha um pedaço da lousa, repartia no quadro a parte da primeira, da segunda, da terceira. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

A próxima fotografia mostra o interior de uma sala de aula de uma escola isolada. As duas lousas serviam para dividir os conteúdos que seriam trabalhados em todas as séries ao mesmo tempo. Como relatou o professor Etore, às vezes ele entrava antes do início da aula e já escrevia as atividades na lousa para que, quando os alunos entrassem, as atividades de cada série já estivessem prontas.

Figura 43 - Interior da sala de aula da Escola Mista do Bairro da Goiaba - município de Tanabi/SP, 2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Cabe ressaltar aqui, que os professores não relacionaram esta estrutura de sala de aula com a dificuldade de ensinar. Muitos relatam que essa convivência dos alunos mais novos com os mais velhos proporcionava um ambiente de colaboração entre eles. Ao perguntar para a professora Maria Cecília se em algum momento da aula essas diferentes turmas tinham atividades comuns, ela responde: Muitas atividades comuns, tipo: 1ª e 2ª séries já era mais difícil, mas a parte de Estudos Sociais, de História e Geografia, Ciências, Artes, isso aí era tudo junto, 91

isso já dava aula para todo mundo, mas na hora de fazer a avaliação, era mais profundo para as séries mais avançadas. Agora, Português e Matemática, na 3ª série e 4ª série, eu dava junto, podia ser a mesma coisa, porque era a mesma matéria, só que mais profundo na 4ª série, mas era a mesma coisa. Então esses alunos da 3ª série eram privilegiados, porque quando eles faziam a 4ª série, eles eram excelentes alunos, porque já tinham visto, eles eram bem adiantados. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Para completar o cenário escolar de salas multisseriadas, além da disposição das lousas, tínhamos também diferentes modelos de carteiras. Carvalho (2003) destaca a multiplicidade de objetos que povoam o ambiente escolar. Cadernos, livros, mobílias, regulamentos, revistas, entre outros, marcando sua importância de significação e o quanto podem interferir na interpretação da realidade que se busca, considerando os aspectos da prática, dos objetos, de seus usos e completa: “A materialidade desses objetos passa a constituí-los como suporte do questionário que orienta o investigador no estudo das práticas que se formalizam nos usos escolares desses objetos.” (CARVALHO, 2003, p. 262). Ao observar o estilo das carteiras e cadeiras utilizadas nas classes multisseriadas, podemos intuir como funcionavam essas escolas isoladas rurais e de que forma os alunos eram organizados em sala.

Figura 44 - Carteira e cadeira utilizadas na Escola Mista da Fazenda Alferes - município de Tanabi, 92

2010. Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora.

Ao observar imagens deste cenário percebemos o quanto a mobília ressalta a importância da disciplina dos alunos. Pelo modelo de carteira, observamos que o aluno se sentava em uma cadeira que completava a carteira do aluno sentado atrás. Portanto, era preciso que os alunos ficassem quietos para que os colegas não fossem prejudicados ao escreverem, ou seja, o quanto era importante o espírito colaborativo entre os alunos, para que ninguém saísse com prejuízos das aulas. Esse modelo é parecido com um modelo encontrado no Acervo FDE - Fundação para o Desenvolvimento da Educação - São Paulo, SP, como mostra a foto seguinte.

Figura 45 - Madeira e metal, origem desconhecida, s.d Fonte: Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o1. Acesso em 28/10/2013.

O site faz referência a outros dois modelos de carteira dupla. Um dos modelos data de 1900 e era construído em madeira e ferro fundido e possuía ao centro um reservatório de tinta77.

77 Móvel escolar fabricado na cidade de São Paulo, por Eduardo Waller & C., estabelecido em 1896 à Rua Maria Antonia, próximo à Escola Americana (atual Universidade Mackenzie), onde Eduardo Waller era professor de trabalhos manuais. Até pelo menos 1911, Brasil se grafava com Z, daí tal inscrição na carteira, cuja data podemos afirmar que é anterior a essa época. Madeira e ferro fundido, Ed. Waller & C., c. 1900. Coleção: Escola Rural de Cunha, SP. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o1. Acesso em 28/10/2013.

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Figura 46 - Carteira Brazil - Carteira dupla com reservatório de tinta ao centro, 1900 Fonte: Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o1. Acesso em 28/10/2013.

O outro modelo apresentado também se aproxima do modelo usado na Escola Mista da Fazenda Alferes, em Tanabi/SP.

Figura 47 - Carteira dupla com tinteiro, 1930. Fonte: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o1. Acesso em 28/10/2013.

Segundo a descrição no site, a carteira tinha pés de ferro que eram pregados no chão78. Essas duas últimas carteiras descritas, segundo o site, foram usadas em escolas rurais. Esses modelos, usados no início do século XX, são bem próximos do modelo que a pesquisadora usou na escola rural no final da década de 1980, que possuíam reservatório para tinta, embora não utilizassem caneta tinteiro. O contato com esses objetos fotografados, nos permitiram rever algumas cenas que fizeram parte deste passado que foi vivido pelos professores e alunos. Os professores e a

78 Madeira e ferro fundido, Almoxarifado, c. 1930. Coleção: Escola Rural de Cunha, SP. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=0o1. Acesso em 28/10/2013. 94 aluna que foram entrevistados nesta pesquisa guardam boas lembranças daquela época. Embora rodeado de muitos sacrifícios, o exercício do magistério em escolas rurais é vista pela maioria dos professores como uma realidade que deixou saudades: do local, do tempo, da própria escola, mas – principalmente - saudade dos alunos, que - segundo alguns professores - eram muito educados, os respeitavam e tinham muito interesse em aprender, e aprendiam com facilidade. Ao analisar as práticas de ensino da Matemática, além de considerarmos a estrutura física da sala de aula, devemos nos aproximar do que e de quem determinava o que deveria ser ensinado aos alunos dessas escolas. Salvo os casos das Escolas Típicas Rurais que, além do conteúdo das outras escolas de ensino comum, tinha parte do seu ensino voltado às questões do campo, como a agricultura, por exemplo, as escolas rurais seguiam um modelo de planejamento das escolas urbanas. Garnica e Martins (2006) relatam, por meio das entrevistas que Martins realizou em sua pesquisa com os professores que atuaram em escolas rurais, que os Programas de Ensino: Traziam os conteúdos que, mês a mês, deveriam ser tratados pelos professores. Deixava-se a critério do docente as táticas que julgasse melhor utilizar (ainda que essas fossem constantemente disciplinadas e avaliadas, por exemplo, nos momentos de inspeção). De posse dos programas, os professores planejavam suas aulas em Diário ou Semanário, de acordo com a exigência do inspetor ou diretor, ou segundo a preferência do próprio professor. Esses planejamentos, segundo os depoimentos, favoreciam a condução das aulas, em especial nas salas multisseriadas nas quais o tempo devia ser bem controlado. (GARNICA E MARTINS, 2006, p. 48)

Assim como na pesquisa de Martins, nesta investigação, as entrevistas também evidenciaram a autonomia que o professor tinha, em sala de aula, para o ensino dos conteúdos; no entanto, o conteúdo já vinha no planejamento que recebiam, cabendo ao professor a organização da forma como os conteúdos iam ser trabalhados. Isso acontecia nas reuniões pedagógicas, que geralmente, ocorriam na escola Sede. Essa organização para o trabalho em sala de aula, criada pelos professores, evidenciam as práticas que eram por eles executadas. Essas práticas, embora autônomas, tinham que cumprir o conteúdo estabelecido a todas as escolas, pois como visto anteriormente, além das avaliações de final de ano, os alunos das escolas rurais, caso fossem continuar os estudos, dependiam de escolas da cidade e, por esse motivo,

95 precisavam estar com o mesmo conhecimento. Deste modo, como seria a constituição de táticas praticadas por esses professores? Certeau (2004) nos diz que estas posturas assumidas pelos consumidores de uma sociedade são formas de reinventar os usos das coisas; nesse sentido, seria uma antidisciplina. Será que os professores das escolas rurais também reinventavam as determinações que lhes eram impostas? Neste contexto de “reinvenção das coisas”, Certeau (2004), denomina de estratégias, as determinações produzidas por quem tem o poder nas mãos e de táticas, as ações que não têm lugar fixo e são produzidas pela necessidade. Essas táticas seriam, portanto, a forma como cada professor conduziu suas aulas nestes espaços rurais. E, com este cenário das salas de aulas rurais, no próximo capítulo apresentaremos as práticas de ensino da Matemática.

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CAPÍTULO 3 – PRÁTICAS DE ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA EM ESCOLAS RURAIS DE TANABI/SP.

“Na alfabetização a gente já começava a contar, contar no palitinho, contar o lápis, contar o que eles tinham, assim na época tinha muita, eles tinham muita plantação de arroz, então aquele cano, sabe? do arroz... aí já pedia para o pai cortar, aquele talinho do arroz era o palitinho, então eles cortavam e mandavam, então eu tinha uma caixa com bastante talinho daqueles para contar.”

(Prof.ª Irma Rosa da Silveira Viana)

A Lei de 15 de Outubro de 1827 foi a primeira tentativa de se organizar o ensino das séries inicias no Brasil, por meio da criação de escolas “de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio”. No texto da lei estava prevista a leitura e a escrita das “quatro operações”, a “pratica de quebrados, decimaes e proporções”, além de “noções mais geraes de geometria pratica” (BRASIL, 1827). Alguns anos depois, um Ato Adicional transferiu para as Províncias a responsabilidade pelas escolas de nível primário e secundário. Mais de cem anos depois, já no período republicano, o governo federal toma novamente para si a incumbência de emitir algumas diretrizes gerais para o ensino primário, com a promulgação da “Lei Orgânica do Ensino Primário (Decreto-lei n. 8.529 de 02/01/1946)”, que “entra em vigor num momento de crise política, com o fim do Estado Novo e o retorno à democracia” (ZOTTI, 2006, p. 11). Acatando princípios escolanovistas, a legislação propõe “a formação e desenvolvimento integral da criança, e não apenas a redução da escola primária ao ler e escrever”. Os conhecimentos, segundo a lei, deveriam ser “úteis para a vida em sociedade” e, também, preparar “para o mundo do trabalho, que se tornava mais complexo” (ZOTTI, 2006, p. 12). A lei previa uma iniciação à Matemática, bem como o ensino de Aritmética e Geometria, cujas diretrizes gerais dos programas eram elaboradas pelo ministério e os estados os executariam segundo suas particularidades. Nos Programas aprovados pela Secretaria de Estado dos Negócios da Educação do Estado de São Paulo, em 1949, para os quatro anos primários, estavam previstos estudos de Aritmética e Geometria. No 1º ano, a aritmética seria estudada até as dezenas, incluindo as quatro operações fundamentais, com estudos concretos e aplicações ao calendário, às horas

97 e moedas correntes. Os números pares e ímpares e algarismos romanos também eram estudados até as dezenas e números ordinais até 10. Na Geometria estava previsto o “estudo da esfera, do cubo e do cilindro”, comparados “entre si e com objetos usuais” (SÃO PAULO, 1949a, p.60). No 2º ano, a Aritmética tinha como centro o estudo da centena e do milhar, nas operações, nos problemas, nos algarismos romanos, nos números pares e ímpares. Os ordinais seriam estudados até o 20. A Prova Real e unidades de medidas eram introduzidas. Na Geometria estava previsto o estudo de “superfícies planas e curvas, por observação de corpos de forma esférica, cilíndrica e cúbica” (SÃO PAULO, 1949b, p.73), além de faces do cubo e paralelepípedo e linhas retas e curvas, sempre a partir do estudo de objetos concretos. No 3º ano, o programa previa o estudo de números, problemas, operações, agora com Prova Real e dos nove, e números ordinais até o centésimo, frações ordinárias e decimais, e suas operações. Na Geometria, estudos de sólidos, figuras e linhas, com uso de régua, compasso e esquadro. Além da revisão de tópicos estudados em anos anteriores, o quarto ano enfatizava problemas e questões práticas. O mesmo ocorria com a Geometria. Nas conversas com os colaboradores desta investigação, aspectos variados das práticas de ensinar e aprender Matemática em escolas rurais da região de Tanabi emergiram. Ensinar em uma sala de aula multisseriada, na qual um único professor é responsável pelas aulas de diferentes séries, além de exercer outras atividades, tais como, preparar a merenda e arrumar a sala impõem algumas práticas de ensino diferenciadas de outras escolas. O ensino de diferentes disciplinas a séries distintas se entrelaçam e se misturam a outras atividades.

Escrevendo palavras e números

A introdução dos números e das operações aritméticas foram temas privilegiados nas entrevistas. Neles centraremos, inicialmente, o nosso olhar. Muitos foram os aspectos colocados pelos professores, quando questionados a respeito de como era introduzida a noção do número e trabalhados os cálculos. No meio rural, nas escolas multisseriadas, as crianças iniciavam seus estudos, muitas vezes, sem ter tido experiência alguma com um lápis ou com os termos próprios

98 utilizados em Matemática. A linguagem que utilizavam era aquela habitual no cotidiano rural. Alguns, por exemplo, diziam “varei a rua”, para comunicar à professora que haviam terminado uma linha. As mãozinhas, muitas vezes prejudicadas pelo trabalho na enxada, encontravam dificuldades na escrita dos números e das letras, que exigia o exercício de atividades de coordenação motora fina. Inicialmente, a falta desse tipo de exercício, levava, como relata a professora Maria Cecília, algumas crianças a “rasgarem o caderno”. No entanto, essa dificuldade era sanada no prazo de 15 dias de realização de exercícios motores, como previsto pela Legislação, simultaneamente ao processo de alfabetização. Bom, então, naquela época foi muito importante, foi muito criticada aquela coordenação motora, mas foi bom, foi muito válido, porque essa letra bonita das crianças é por causa da coordenação motora, porque então, coitadinhos, eles tinham uma coordenação fina 79, né? (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010).

Ao explicar a forma como trabalhava a introdução dos números, a professora Maria Cecília comentou que utilizava o que aprendeu em um curso de aperfeiçoamento. Para ensinar os números de 1 a 9, ela demorava “uns dois meses”. O trabalho era iniciado pelo concreto: Então (...): “vamos supor, mostra uma bola, quantas bolas tem? Uma. Então ele tinha que falar que era uma”. Pegar um lápis e você tinha que relacionar com o desenho do número, com a grafia do número e eu ensinava a grafia correta e exigia a grafia correta dos números, por exemplo: olha... sobe, escorrega (a professora, neste momento, faz no papel a escrita do número 1). Não aceitava que fizesse de baixo para cima, tinha que fazer certinho, assim como as letras, grudadinhas uma na outra. Então aí eu demorava uns dois meses para ensinar até o 9, eu não tinha pressa; não tinha pressa de jeito nenhum. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010).

Durante a entrevista, para exemplificar a forma como a escrita dos números era ensinada, a professora Maria Cecília nos trouxe em uma folha de papel os números com sinalizações do movimento de escrita, como aparece na figura 48.

Figura 48 - Registro entregue pela professora Maria Cecília Soccio Monteiro no dia da entrevista,

79 Segundo a professora, os exercícios de coordenação motora estavam previstos em Lei. Os alunos tinham que ter dois meses para a preparação (15 dias de exercícios motores), sendo que o início da alfabetização poderia vir junto com exercícios motores. 99

2010. Fonte: Foto feita pela pesquisadora.

Neste relato, observamos a paciência da professora Maria Cecília em aguardar um tempo, sem pressa, para que as crianças aprendessem os números até o 9. A dificuldade das crianças em pegar no lápis não era empecilho para que desenvolvessem uma coordenação motora fina que, segundo a professora, era necessária para se ter uma letra bonita. Além disso, notamos muita preocupação com uma escrita específica dos números, tendo, para isso, que seguir uma ordem dos movimentos realizados pela mão para essa escrita. Cabe ressaltar também, a relação que a professora estabelece entre “um objeto” e o “número”, quando relata que o aluno tinha que associar uma bola com a quantidade representada, a professora comenta: “vamos supor, mostra uma bola, quantas bolas tem? Uma. Então ele tinha que falar que era uma” e completa: “o primeiro número a ser ensinado era o 1, tudo no concreto” (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010). Para a professora, de acordo com o que ela aprendeu no Curso de Aperfeiçoamento, em 1964, os números tinham que ser ensinados começando pelo concreto, que, de acordo com a professora, era mostrar e/ou desenhar objetos na lousa para que os alunos falassem a quantidade de objetos representados e, depois relacionar com o “desenho” do número e, por fim, aprender a escrever corretamente a grafia desse número, seguindo o modelo apresentado. Já a professora Maria Feliciana comenta sobre um outro recurso para o ensino e a aprendizagem da escrita dos números. Ela se recorda que, para ensinar a escrita dos números, fazia uma associação entre o formato do número com algum objeto ou animal que tinha alguma semelhança. Isso era um artifício para os alunos memorizarem os símbolos. Esta forma de trabalhar com os símbolos numéricos era iniciada logo na primeira série: Eles já iam vendo a segunda trabalhar, a terceira trabalhar, a quarta trabalhar, então eles não precisavam de muitos rodeios, não. Eu já começava a ensinar o 1. Só que tinha uns desenhinhos, que agora eu não lembro. Eu só sei que o 1 é..., o 6 era a bengala de cabeça para baixo, o 9 era a bengala, o 3 era o ratinho em pé, o 4 era a cadeirinha em pé. Então tinha todos os desenhinhos.(...) É, tinha um que era uma borboleta, o 8 que era o gatinho ou o coelhinho, depende do que a criança quisesse fazer dele, e o resto eles iam associando ali com as figuras e com a terceira já. (MARIA FELICIANA GUIMARÃES DONOFRE, entrevista em 19/05/2011).

Segundo a professora Maria Feliciana, os alunos aprendiam facilmente associando 100 os desenhos aos números. E o fato de estudarem junto com as outras séries, facilitava o aprendizado, pois os alunos já iam acompanhando as atividades das séries mais avançadas e as escritas dos números. Ao dizer que “eles não precisavam de muitos rodeios, não”, podemos observar que, a iniciação aos números é vista pela professora como algo descomplicado, dada a realidade das salas multisseriadas. A professora Mércia também nos conta que ensinava a escrita dos números por meio de associação: “Números, a gente ensinava com desenhos. O dois era o patinho. O oito, acho que era o gatinho.” (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011) A exigência da grafia correta dos números, vista anteriormente pela prática da professora Maria Cecília, é datada da década de 1960. Segundo a professora, ela aprendeu a ensinar dessa maneira em um Curso de Aperfeiçoamento que realizou no ano de 1964. Essa prática também pode ser observada em livros anteriores à época em que a professora lecionava. No livro “Didáctica (Nas Escolas Primárias)”, de 1930, podemos notar a exaustiva preocupação do autor com a linguagem escrita, no qual a caligrafia era essencial para levar o aluno a ter uma letra “bem legível, bem simples, bem igual, e, se possível, bonita (TOLEDO, 1930, p. 132) e tudo com rapidez. O momento do ensino da escrita deveria ser acompanhado com o máximo de atenção da professora, iniciada pela observação da postura das crianças, que deviam estar:

assentadas, com o busto aprumado, cabeça levemente inclinada para a frente, ante-braço esquerdo apoiado na carteira, firmando com a mão o papel; este poderá ficar um pouco inclinado para a esquerda; a mão direita segura o lápis, desde o início, com os dedos estendidos, para evitar o vêso mau de apinhá-los junto á ponta, e, mais tarde, junto á penna. Estes cuidados devem ser vigiados infatigavelmente em começo, para criar o hábito de bôa posição (TOLEDO, 1930, p. 134).

Para esse autor, a escrita “bonita” depende, além de outros fatores, da postura no momento da escrita. Essa preocupação com a postura não foi mencionada pelos nossos colaboradores, mas cabe ressaltar que a preocupação com a escrita foi observada, tanto por professores quanto pelos inspetores de ensino, que em seus relatórios de visitas às escolas rurais, escrevem que: “Os cadernos são todos feitos com capricho e a letra de quase todos é

101 muito bonita80”. Para Toledo (1930), o primeiro modelo que o aluno deveria copiar era o próprio nome, o que intensificaria seu esforço numa boa escrita. Nada de risquinhos ou letras que eram repetidas várias vezes. Depois, poderia ser o nome da escola. Tudo isso, com uma escrita correta das letras, sempre acompanhada pela orientação da professora. A professora Zulmira relata uma experiência que teve, em 1948, no início de sua carreira docente, seguindo uma orientação parecida com a de Toledo (1930). E foi minha primeira experiência de dar aula. Foi até assim, às vezes quando eu me lembro, eu penso: quanto que a gente errava com as crianças, por exemplo, exigindo que eles copiassem logo de cara o nome da escola, aquele nome enorme, “Escola Mista da Fazenda...” e tal. Lembro da carinha das crianças, assim, meio abobalhadas na hora, mas no fim deu certo, consegui alfabetizar todas as crianças. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA entrevista em 08/06/2011).

O livro “Práticas Escolares”, de 1946, também enfatiza a importância do treinamento e da aprendizagem de uma letra bem feita. Deste modo, o livro ressalta que,

A máquina de escrever nunca poderá tomar o lugar do manuscrito e a letra que se pretende como “cunho de individualidade”, deve ser aprendida como técnica que é, através de exercícios metódicos e regulares, sob o controle de direções adequadas e à vista de modelos tradicionais. (D’ÁVILA, 1946, p. 296)

Neste texto, é relevante a discussão sobre a inclinação dos traços, nos quais os caracteres verticais apareceram no tempo da invenção da imprensa e foram usadas nas escolas cristãs até o século XIX, depois disso, acentuou-se o uso da letra inclinada (p. 298) Na mesma obra, notamos ainda a presença de modelos de exercícios que devem ser praticados, a fim de se obter letra legível e bonita. Esse “controle de direções adequadas” parece ter acontecido na prática da professora Maria Cecília, quando exigia que os alunos escrevessem os símbolos numéricos de acordo com sentidos únicos, pré-estabelecidos por ela. No livro “Didática da Escola Nova”, de 1947, ao tratar do ensino da escrita, o autor comenta que alguns pedagogistas recomendam que, “quando os alunos começam a escrever com o lapis e com a pena, tenham sempre em vista modelos de letras, não para copiá-las, mas para manter a uniformidade e legibilidade da escrita” (AGUAYO, 1947, p. 337).

80Trecho retirado de um Termo de Visita a uma escola rural do município de Tanabi/SP no início do ano de 1977. (TANABI, 1977).

102

Depois de algum tempo, quando aprenderem a escrever, escolherão o seu próprio tipo de letra. Um outro tipo de escrita, denominada ornamental ou artística, foi muito cultivada em propostas da Escola Nova. Essa escrita, muito diferente dos exercícios de caligrafia, tinha o objetivo de: contribuir para a educação artística da criança mediante o traçado de letras de fantasia, escolhidas ou imaginadas pelo próprio aluno. Com esta ornamentação se embelezarão as composições escritas, as capas dos livros e cadernos, as faixas e cintas usadas como distintivos, os cartazes da escola, etc. O estilo e a forma da escrita ornamental serão fruto da originalidade e poder criador dos alunos (AGUAYO, 1947, p. 342).

Fazendo uma reflexão futurística Aguayo (1947), conclui que a máquina de escrever “eliminará da escrita boa parte das dificuldades (...)” (p. 331). Naquele período, em que a ciência da computação estava dando os seus primeiros passos, o autor não podia imaginar que no início do século XXI, máquinas que cabem na palma da mão poderiam escrever letras de todos os tipos: retas, inclinadas ou ornamentadas. Mas, retornando ao século XX, o professor Etore nos conta sobre as primeiras experiências de seus alunos com a escrita, quando iniciavam o primeiro ano.

Então logo nos primeiros dias você só passa exercício, são praticamente quase que dois meses de primeiro ano, que são só exercícios. Exercícios para ele aprender a pegar no lápis, usar o lápis, usar a borracha, usar o caderno, é porque é aquilo que eu falei pra você: a criança no sítio ela entrava no primeiro sem saber absolutamente nada, mas é nada de nada! não sabia nem pegar no lápis. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Ao comentar sobre os exercícios de escrita que passava aos seus alunos, o professor Etore relembrou alguns momentos de sua relação pessoal com a escrita. Embora sempre tivesse tido “facilidade para escrever”, a sua letra não era muito legível, ao menos na leitura de seu pai, que um dia, quando Etore tinha 12 ou 13 anos, ao pegar o caderno do filho comentou: “é um absurdo, não dá pra entender o que você escreve. Você tem que fazer alguma coisa pra melhorar essa letra, como é que você vai entender isso?”. Eu, de fato, escrevia e às vezes eu não sabia nem o que eu estava escrevendo, de tão rabiscado que era. Aí eu fiz um curso de caligrafia, Caligrafia De Franco 81, e

81 As escolas de caligrafia eram comuns até meados do século XX. Inicialmente, ensinavam pessoas a escreverem em uma letra mais bonita, necessária muitas vezes a algumas profissões, como a de escrivão, ou para a escrita de cartas ou de outras atividades pessoais. Algumas dessas escolas sobreviveram até hoje, como é o caso da Escola de Franco. Confira no site: http://www.profdefranco.com.br/escola.html. Acesso em: 103

aquilo me ajudou demais da conta, mas demais mesmo. Então aqueles exercícios que eu aprendia quando eu era jovem, eu comecei a passar para os meninos desde o primeiro ano. Então acontecia uma coisa gozada: hora que chegava no quarto ano, todos eles escreviam igual a mim, mesma caligrafia, igualzinha, era desenhada a caligrafia. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Nas orientações do “Programa para o Ensino Primário Fundamental (1° ano)”, de 1949, as orientações sugerem que o ensino da escrita seja realizado com exercícios rítmicos, acompanhados por cantos, e que o tipo de letra deve ser vertical ou levemente inclinada (SÃO PAULO, 1949a, p.39). No Programa para o 2° ano, é exemplificado o formato dos exercícios que devem ser executados pelas crianças, para a aprendizagem das letras e dos números, executadas em 2 ou 3 tempos, conforme apresentado a seguir, na figura 49.

Figura 49 - Modelo apresentado para a escrita dos números, 1949. Fonte: Programa para o Ensino Primário Fundamental, 2° ano, p. 29, 1949.

Os tempos que aparecem nas orientações para o 2° ano apresentam semelhanças com o modelo apresentado pela professora Maria Cecília (figura 48). A ordem dos movimentos e o formato dos números seguem a mesma estrutura. No ensino e aprendizagem da escrita, as letras e os números eram trabalhados simultaneamente. No caso dos números, o processo era realizado com objetos concretos presentes no cotidiano das crianças.

Na alfabetização a gente já começava a contar, contar no palitinho, contar o lápis, contar o que eles tinham, assim na época tinha muita, eles tinham muita plantação de arroz, então aquele cano, sabe? do arroz... aí já pedia para o pai cortar, aquele talinho do arroz era o palitinho, então eles cortavam e mandavam, então eu tinha uma caixa com bastante talinho daqueles para contar. A gente fazia os grupinhos, com tampinhas, porque tampinhas mesmo de bebidas, quando eu estava no

22/11/2013. 104

Espraiado tinha a venda 82, então eles juntavam na porta da venda, sabe, mas tinha escola que não tinha, era mais difícil, aí eu levava palitinho de sorvete, tudo com... é para eles contarem. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010)

A associação das quantidades numéricas com objetos, muitas vezes, era realizada na lousa. O professor Etore, por exemplo, não utilizava objetos concretos para ensinar os números, mas desenhos. Ao escrever a sequência dos números, ele ia desenhando uma sequência de laranjinhas. O professor Etore, utilizou a lousa para exemplificar a forma como realizava a associação. A cada número, ele desenhava a quantidade correspondente de laranjinhas, para que as crianças pudessem associar o número com a quantidade representada, como mostram o seguinte fragmento de sua entrevista e a correspondente foto do registro na lousa de números e laranjinhas.

Agora tem uma coisa que eu achava muito bacana: é na hora que você vai aprender numeração, então você põe lá o número um. Aí você coloca uma laranjinha aqui debaixo, no comecinho...Você vai ensinar vários números de uma vez, número dois, aí você punha duas laranjinhas aqui debaixo, certo? Aí você ia, número três, número quatro, número cinco... (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Figura 50 - Lousa com explicação do professor, dada durante a entrevista, 2010. Fonte: Foto tirada pela pesquisadora.

Aí a meninada, sentadinha lá bonitinha, pega uma régua, um pauzinho, qualquer coisa para mostrar, então aquele silêncio na classe. Assim, você não pode deixar ninguém conversar nem nada, eles ficam tudo assim... aí você bate a régua aqui, eu não converso, eu não falo, é a régua que fala. Aí eu falo: “a hora que eu apontar, vocês falam o número.” Um... todo mundo fala um. Dois, todo mundo fala. Três, todo mundo fala...Aí, ao invés de você passar pelo quatro, você aponta no cinco, você pula o quatro, aquele que está meio distraído, ele grita quatro, aí é aquela gozação em cima dele, certo? (...).

82 Venda é um comércio que fornece bebidas, doces, salgadinhos e alguns itens alimentícios. Antigamente, em algumas Vendas da zona rural, tinha um telefone, que frequentemente era usado pelos moradores. Este era um local bem frequentado da zona rural, era um lugar de socialização. 105

A partir daí, você vai e volta, você pula, você...“Que número que é esse?” “E esse aqui...”. Ele falam assim na hora, dois, cinco. E a hora que um erra, você ouve perfeitamente e a classe todinha ouve, aí eles pegam no pé. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010).

Outros professores nos contaram que preferiam fazer uso de materiais concretos, que os alunos pudessem manipular, para introduzir os números. Os materiais mencionados foram: lápis, palito de sorvete, talinhos de arroz, tampinha de garrafas, sementes de determinadas plantas e outros. A professora Mércia nos contou que “se você falasse ‘dois’, você mostrava duas coisas, para eles ligarem com o número, porque eles não conheciam o número direito, então você tinha que firmar bem aquilo, e tudo bem concreto.” (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011). Esse uso do concreto para introduzir os números eram denominados “exercícios preparatórios” no “Programa para o Ensino Primário Fundamental (1° ano)”, de 1949, que apresentavam as seguintes orientações para as primeiras aulas de aritmética,

Podem girar em tôrno das noções de forma e quantidade, tamanho, pêso, distâncias, por meio de palestras, exercícios de comparação, etc. Antes de iniciar o ensino pròpriamente dito, o professor fará uma série de exercícios preparatórios para facilitar o desenvolvimento do programa. Êstes exercícios, que serão sempre concretos, consistirão em contar, reunir, separar e repartir objetos (SÃO PAULO, 1949a, p. 59).

O ensino concreto para o número 2, por exemplo, é proposto pelo Programa da seguinte forma: Ensino concreto de reunião de objetos: Obter o número dois ajuntando, concreta e gràficamente (desenho) uma unidade à outra unidade. Reunir objetos em grupo de dois. Exercícios diversos: Observar quantos vidros têm os óculos; quantos grãos tem o fruto do cafeeiro; (...) (SÃO PAULO, 1949a, p. 67)

Após essa fase inicial com materiais concretos, os alunos estariam preparados para aprender a representação dos símbolos numéricos, tendo o professor que “orientar seus alunos para que êles façam, desde o início, os números, de uma maneira certa e racional, evitando a aquisição de vícios no traçado” (SÃO PAULO, 1949a, p. 66). A sequência proposta para o estudo dos números nas orientações oficiais apresentadas nos Programas para o Ensino Primário é iniciada pelo uso do material 106 concreto, depois pelo desenho da quantidade, a escrita do número e ainda a relação da referida quantidade com situações diversas do cotidiano do aluno. Assim, era preciso não somente escrever corretamente o número 2, mas também entender o que essa quantidade significava. E ainda: associar os sinais de “‘mais’” e “‘igual’” com a representação gráfica (+ =), realizar exercícios combinando os números 1 e 2; usar representação gráfica com diferentes formas geométricas e o número em sua forma ordinal (SÃO PAULO, 1949a, p. 67-68). O uso de objetos concretos para o ensino e aprendizagem dos números mencionados pelos professores e propostos pelos Programas vincula-se à intuição sensorial do número proposta por Pestalozzi. Dessa forma, “o número deve ser ensinado com meios objetivos (os dedos da mão, ervilhas, pedrinhas, contas, linhas, etc), e que o melhor processo que conduz a êsse fim é a operação de contar” (AGUAYO, 1947, p. 282-283). Segundo Nacarato (2005), a proposta de Pestalozzi era a de que o ensino deveria começar pela percepção de objetos concretos. Produzidos nas primeiras décadas do século XIX, os estudos de Pestalozzi orientaram as propostas pedagógicas do ensino das séries iniciais, no Brasil, em particular, a partir da década de 1920, na tendência empírico-ativista dos escolanovistas (NACARATO, 2005, p. 1, grifo do autor). Além de objetos concretos para auxiliar na contagem e representação dos números, nossos colaboradores mencionaram o uso de outros materiais, que eram muitas vezes produzidos pelo próprio professor. Dentre estes materiais, estão o Quadro Valor de Lugar e o Flanelógrafo, como nos conta a professora Mércia.

a gente tinha um flanelógrafo 83, que era uma placa assim de flanela, punha em pé − isso que eles vendiam, a gente comprava, outras vezes a gente confeccionava − e era para conjunto para somar, para tirar. Então tinha ali, a gente usava, cortava tudo em papel cartão, pregava uma lixinha atrás. E a gente pegava (neste momento a professora está dobrando a folha) aquele papel pardo e fazia assim um monte de pregas 84. Aí você repartia em unidades, dezenas e centena, três partes. Mas era grande lá e aí tinha aquele monte, aí esses palitinhos desses papéis. Tinha dia que tinha palito de sorvete, a maioria era papel cartão que é duro, mas não precisava ter nada atrás. Então eles faziam, na parte - assim - concreta, aprendeu até o nove, fica nas unidades. Quando você passa pro dez, que são dois algarismos, então você junta esses daqui quando der dez, você passa um para cá. Depois a centena, então usava muito isso para ajudar, ficavam até dentro da

83 A professora não se lembra quando começou a usá-lo. O Flanelógrafo é um quadro forrado com flanela, no qual são anexadas figuras, números, sinais de operação, etc previamente preparados com lixas ou pedacinhos de flanela colados no verso, que aderem ao quadro. 84 A professora faz um Cartaz de Pregas ou Cartaz Valor de Lugar (vide figura 51, abaixo). 107

classe essas pregas. Estava repartida entre unidade, dezena e centena, aí punha lá, era tudo dividido, então ia pondo unidade aqui, conforme aqui deu dez, pode pôr? Não pode pôr dois algarismos aqui, aí então você passa um para cá, e aqui ficou o quê? Ficou zero. Então que número que formou? O dez. E assim seguiu, e quando você chegava bem lá pra frente eles já iam sozinhos. Quando ele entendia o que você tinha juntado para passar, esse aqui foi, ficou zero e ficou dez. Então, não é que um só que é dez, aí dali vai. Chega no 99, não pode pôr, vai usar três casinhas. Depois os números... eles vão embora. (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011)

Na figura a seguir encontra-se uma imagem de um Quadro Valor de Lugar, como exemplificado pela professora Mércia.

Figura 51 - Quadro Valor de Lugar. Fonte: Disponível em: http://turmadobarulhopi.blogspot.com.br/2008/09/uso-de-qvl-quadro-valor- de-lugar.html. Acesso em 10/10/2013.

Santos (1958), em seu livro “Metodologia do Ensino Primário”, menciona alguns materiais que podem ser utilizados para o ensino da Aritmética, com o objetivo de superar as dificuldades iniciais dos alunos. Para o autor, é necessário o uso de materiais concretos simples ou “aparelhos de aritmética”:

A utilização de um material que concretize os números e as operações da aritmética facilita consideràvelmente a aprendizagem dessa disciplina. Êsse material pode ser simples e natural, como os dedos da mão, feijão, palitos, pedrinhas, etc., ou artificial como cartazes, gravuras, desenhos recortados, fichas, bolinhas de vidro ou de massa, etc. Há ainda os aparelhos de aritmética como o ábaco ou contador, os tabuleiros de unidades e de frações (...) o relógio escolar, os jogos aritméticos, etc. (SANTOS, 1958, p. 199)

A professora Maria Feliciana, em sua entrevista, comenta que em meados da década 108 de 1990, nas escolas localizadas na área urbana, o ábaco era utilizado nas aulas de Aritmética, mas eles não estavam disponíveis nas escolas rurais. Por isso, o material utilizado para o sistema de numeração e a introdução de operações era o Quadro Valor de Lugar ou Cartaz de Pregas, mencionado pela professora Mércia. A descrição de ambas é muito parecida. Ambas tomaram uma folha de papel para exemplificar e detalharam o processo de funcionamento do Cartaz. Em sua entrevista, a professora Maria Feliciana, no entanto, esclarece que além de um quadro grande que estava afixado na lousa ou na parede da sala de aula, sobre o qual o professor ia fazendo as manipulações necessárias, cada aluno realizava as mesmas ações em um pequeno quadro individual: Fazia um para cada um na sua carteira, cada um tinha o seu. Quando eu trabalhava na lousa, eles trabalhavam no deles, então assim eles iam aprendendo, que nem dezena, unidade, dezena e centena, ensinava tudo por isso daí. E aqui ensinava também eles a tirar. Tirava uma dezena, tirava duas dezenas, e contava quanto é que ficava.(...) Então, quando a criança fazia a primeira e chegava na quarta, já sabia tudo isso, porque eles tinham visto ensinar no segundo, no terceiro e no quarto. (MARIA FELICIANA GUIMARÃES DONOFRE, entrevista em 19/05/2011).

O Quadro Valor de Lugar também foi mencionado pelas professoras Maria Terezinha e Irma. A professora Maria Terezinha comenta que ela confeccionava um exemplar grande para ela, e “um de sulfite” para cada aluno e “comprava palitinhos de sorvete”, que eram separados em “saquinhos”. “Cada um tinha o seu saquinho de palito de sorvete”, para realizar as atividades. (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011). A professora Irma, em sua entrevista, relatou que utilizava “talinhos”, quando “formava dez, amarrava, passava para dezena, eles amarravam.” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010). A professora Zulmira relembra que utilizava uma metodologia inspirada na de sua professora do ensino primário para a introdução dos números, que se construía de uma encenação com “soldadinhos de chumbo”. Zulmira lembra-se de ver a sua professora “com uns soldadinhos em cima da mesa, soldadinhos de chumbo, como eles falavam, ensinando os números e as operações.”. E também passou a ensinar “desse jeito, com tampinhas”. Ela colocava “a tampinha, o menino fazia uma bolinha para representar uma quantia, e eu punha a bolinha na lousa e punha o número 1.” (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011). Além da encenação, a professora Zulmira, utilizava música e brincadeiras em suas aulas: 109

E ensinava também através de pequenas canções, né? “A galinha do vizinho bota ovo amarelinho, você conhece?” (a professora sorri ao lembrar-se da música) “Bota um, bota dois...”. E amarelinha também, a gente riscava no chão, escrevia, né? (...) Tinham brincadeiras, e sempre trabalhando assim com tampinhas, sempre com o concreto. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011).

A professora Lourdes, por outro lado, tinha a preocupação de relacionar os objetos concretos que os alunos traziam para as aulas de Aritmética, a pedido da professora, com outras disciplinas. Os objetos eram: sementes, conchinhas, frutinhas, etc. Eu tentava assim, dar um ensino de maneira entrosada, aproveitando aquele material, e partindo em outros ramos também, para buscar a curiosidade do aluno. E ele mesmo passava a estabelecer comparações, por exemplo, ele dizia assim: “Ah, dona Lurdinha, a semente da pinha é diferente da semente de laranja”. Aí eu perguntava: “Por que você acha isso?” “Olha, pelo tamanho, pela cor, a semente de laranja vai dar um pezinho de laranja, a semente da pinha vai dar um pezinho de pinha.” Falava do tamanho que a planta poderia ter, até dar novos frutos. Então eram coisas assim, que aos poucos, dependendo do que se conversava em sala de aula, nós tínhamos que ser criativas a ponto de partir para outras minúcias, para buscar curiosidades do aluno, inclusive para estabelecer comparações, isso é muito importante. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011)

Além de utilizar objetos, a professora Maria Cecília também utilizava desenhos de patinhos, em um contexto de conjuntos. Ou seja, faz uso de propostas da Matemática Moderna para a introdução dos números, que era acompanhada por operações. O conjunto vazio, como ela nos contou, era interpretado como um lago que ficou sem patinho e era representado pelo número zero. Além disso, mencionou trabalhar a ordem crescente e decrescente.

“quantos patinhos têm aqui?” “Um.” “Se eu colocar mais um? Ah, mais um, quantos patinhos têm? Vamos contar, ah, um, dois. Ah, então, um patinho mais um patinho, dois”. Automaticamente, já (ia) ensinando a adição e a subtração, está entendendo? “Aí se você tirar? Fica 1.” Então já ensinava o número 2, aí ia... Aí fomos até o 9, aprendemos até o 9, quando nós chegávamos no 9, era conjunto, conjunto de nove elementos. Aí, usava muito assim, patinho na lagoa, peixinho. “Ah está, veio um menininho e tirou um patinho da lagoa, quantos ficaram?” Então era a ordem decrescente, então automaticamente já ensinava. Quando chegava no 9, eles já sabiam a ordem crescente e depois já aprendiam a ordem decrescente. “Ah, então vamos tirar hoje: tem 9, tira 1 fica 8”. Aí, no outro dia, tira mais 1, quanto fica? Aí era mais rápido, quase todo mundo aprendia, tirávamos todos os elementos do conjunto, ele ficava vazio. “Ah, como é que nós vamos saber por que ele está vazio, como?” Então aí que surgiu o zero, o zero era o elemento vazio, como elemento não, como um conjunto vazio, aí que era ensinado o zero, depois do 9. Então, automaticamente, zero mais 1, 10, aí vamos para a dezena. Aí já estudava como dezena e unidade. Fazia aqueles desenhos na lousa. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

110

A forma utilizada pela professora Maria Cecília para introduzir os números e as operações foi inspirada na proposta de um livro didático que ela nos mostrou no dia da entrevista. Destacamos, na figura 52, um fragmento deste livro de Matemática Moderna, destacando a introdução dos números, na qual aparecem os patinhos e peixinhos.

Figura 52 - Ilustrações que mostram o ensino de conjunto, (sd). Fonte: Livro85 do acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Ensinar os números, reconhecer as quantidades, memorizar e exercitar a grafia correta dos números, agrupar, separar, ordenar, compreender a formação do sistema de numeração decimal, eram atividades que faziam parte das primeiras aulas de Aritmética. A etapa seguinte era o estudo das operações.

Ensinando e aprendendo operações aritméticas

No estudo das operações aritméticas, os professores colaboradores também utilizavam diferentes recursos, objetivando a compreensão das operações e de seus algoritmos, não enfatizando apenas sua memorização. A lousa era um recurso sempre comentado pelos professores. Nela, muitos conceitos eram introduzidos e exercícios eram propostos e resolvidos. A prática de cópia de um texto

85 Livro sem a capa. Editora Ática, (sd). 111 da lousa, “passar na lousa”, era muito recorrente, uma vez que não havia apostilas ou livros didáticos disponíveis aos alunos. No entanto, várias atividades eram realizadas com materiais, em outros espaços da sala de aula. Uma dessas atividades, mencionada por alguns professores foi a montagem de uma “vendinha” 86 ao fundo da sala. A professora Zulmira relata que “punha uma tábua com os saquinhos com mantimentos, o preço embaixo” e elaborava problemas bem concretos para que os alunos tentassem resolvê-los. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011). As professoras Eunice e Maria Terezinha também faziam atividades com uma “vendinha” colocada no fundo da sala. Em sua entrevista, a professora Eunice comenta que essa atividade87 “não era assim uma Matemática, bem, com se diria, muito elevada, era um ensino bem simples”. Ela colocava “saquinhos de açúcar, de feijão, aquela coisa do cotidiano da criança. O desenhinho do sorvete, uma tacinha pequenininha cheia de material que dizia que era sorvete e eles faziam a conta”. O objetivo era que os alunos aprendessem a mexer com dinheiro e com os cálculos e:

Aí eles aprendiam comprando isso. Porque estavam multiplicando por dois, porque às vezes a gente ensina, mas ele não tem noção porque está multiplicando por dois, porque eu comprei duas coisinhas, que custava dois reais, então 2x2. (EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, entrevista em 18/05/2011)

As atividades concretas, para a professora Eunice, tanto na atividade da vendinha como com outros materiais, são importantes para que a criança aprenda as operações aritméticas, pois ela “vê”, o que está fazendo.

grão de feijão, sementes, palitinhos de fósforo, eles aprendiam a contar, aprendiam a fazer continhas; quer dizer que é alguma coisa palpável, está vendo. Para depois poder transferir para.... Porque senão depois fica mais difícil, né? porque ele não vê. A mesma coisa a tal da vendinha, então eles compravam o arroz, o feijão, tudo já e fazendo pra usar no futuro eliminar aquilo lá. (EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, entrevista em 18/05/2011).

A professora Maria Terezinha realizava uma atividade que denominava “feirinha”. Ela trabalhava de forma diferenciada com as quatro séries, com dinheiro e compras.

86 Era muito comum na zona rural denominar de “Venda” os locais que vendiam mercadorias variadas à população, como alimentos, materiais de limpeza, roupas, ferramentas, etc. 87 Atividade realizada quando trabalhou nas escolas Ganot Chateaubriand e João Portugal (ambas localizadas na cidade de Tanabi), na década de 1960. 112

Depois,

quando eles já pegavam bem, eles já formavam o probleminha, por exemplo: se eu tenho duas abóboras mais dois chuchus? Certo? Então falava: “Se eu tirar tanto, quanto é que vai ficar?” (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 8/06/2011).

Nos trabalhos com operações e problemas, a professora Lourdes enfatizava a importância de se trabalhar com o raciocínio. Para isso, inicialmente, elaborava problemas “mais simples” e o aluno “raciocinava e respondia na hora, oralmente”, para depois passar “para um escrito.”. Algumas vezes, os alunos “cooperavam na elaboração” de problemas. Para a resolução, a professora Lourdes dava uma orientação: a folha devia ser separada, talvez por um traço vertical. “Do lado esquerdo”, eram indicadas quais “contas deveriam ser feitas para solucionar o problema”, enquanto o lado direito era reservado à solução, “que era a forma como o aluno usava para chegar naquele resultado”. Esta maneira de resolver os problemas, segundo a professora, era um elemento incentivador do raciocínio dos alunos.

Por quê? Porque um coleguinha poderia usar uma inversão de conta e chegar no mesmo resultado que o outro chegou. Então, é a partir daí que você desenvolve o raciocínio do aluno e ele passa a comparar: “Nossa, eu fiz essa conta e deu 17. Do meu colega Pedrinho, ele fez de uma outra maneira e também deu 17”. Porque aí é que está o nó do raciocínio: você pode procurar caminhos diferentes, alternativas e chegar ao mesmo resultado. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011).

A professora Lourdes aponta que os alunos acabavam participando ativamente da formulação e resolução de problemas. Para a resolução, os alunos tinham que apresentar todo o raciocínio utilizado, pois conforme aponta a professora “nós éramos, assim, tendentes mais para ensinar o aluno a raciocinar.” A importância que a professora Lourdes atribui ao raciocínio e a forma como desenvolve problemas com os alunos, estão muito próximas das sugestões da nova metodologia apresentadas no livro “Didática da Escola Nova”, de 1947. Neste livro, o autor sugere que o raciocínio seja feito pelos próprios alunos, assim, o professor “não deve tomar a iniciativa e explicar o problema senão quando nenhum aluno o possa fazer” (AGUAYO, p. 292/293). O autor recomenda ainda que sejam elaborados problemas que façam sentido aos alunos, ou seja, que tenham relação com situações de sua realidade. Além disso, sugere

113 que:

os problemas que as crianças devem resolver são os que estimulam o pensamento reflexivo, interessam o aluno e procuram obter resultados valiosos em muitas situações da vida de todo o dia. A nova metodologia procura também fazer que, quanto possível, seja do aluno a iniciativa do problema; e para isso o professor dá-lhe liberdade para formular problemas que êle próprio ou os companheiros da classe devem resolver ou se limita a apresentar-lhes dados com que dar expressão ao problema aritmético (problemas sem número). (AGUAYO, 1947, p. 300)

Com a metodologia que era aplicada pela professora Lourdes, percebemos a participação ativa dos alunos na elaboração de problemas e de outras atividades da aula.

Às vezes o próprio aluno participava da história, a gente ia anotando na lousa a frase e eles lá da carteira já complementavam, sabe. “Ah, vamos colocar isso daqui?” Aí eu concordava: “Vamos!”. Dali a pouco outro dava outra sugestão. “Então vamos acrescentar...”. Eles cooperavam e colaboravam com os textos, era uma maravilha, aprendiam muito, muito mesmo, porque quando o aluno cria, ele gosta mais e ele não esquece. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011).

O livro “Didática da Escola Nova”, também faz algumas observações sobre a preparação de aulas e a realização de tarefas, apontando como a tarefa deve ser conduzida, bem como a forma com que os alunos podem contribuir para sua execução, sugerindo que “às vezes, é muito aconselhável levar os alunos a que façam, de colaboração com o professor, um plano ou esbôço das particularidades, aspectos ou detalhes em que se decompõe a tarefa” (AGUAYO, 1947, p. 83). O autor complementa suas orientações sobre as tarefas observando que o plano deve ficar visível para que os alunos o acompanhem e acrescentem suas sugestões. Para isso, sugere o uso de “quadros negros” (AGUAYO, 1947, p. 83). A professora Lourdes, seguia esta orientação. Em seu relato, ela afirma que o quadro negro, ou lousa, como ela prefere, era usada para anotar as sugestões que os alunos apontavam como de interesse para os trabalhos. A confecção de materiais que seriam utilizados nas aulas, segundo a professora Lourdes, tinha também a contribuição dos alunos. Nesses momentos de preparação de materiais, ela aproveitava para ensinar cores. Ela se recorda que, quando frequentava o “Curso de Aperfeiçoamento, já estava dando aula em escola isolada”. Nas aulas de prática

114 de ensino do curso, preparava os materiais que usaria na aula. Ela “fazia o molde e levava, mas na sala de aula quem fazia era o aluno”. Era ele que:

pegava o molde, fazia o traçado, ele recortava, era bom porque atividade manual é muito importante, inclusive para manusear lápis, para escrever. Já aproveitava para dar a diferença entre as cores, qual cor combinava com qual cor, ensinava também as cores do arco-íris, de como uma cor combinando com outra, dava uma secundária, isso tudo eles aprendiam, mas assim, na prática, fazendo o desenho, usando a cor. Ele até escolhia as cores que ele queria, ele falava: “O cabelinho desse menininho eu vou fazer pretinho, o do outro eu vou fazer um pouquinho mais claro, cabelo enroladinho, o do outro eu vou fazer loirinho”. Quer dizer, ele mesmo distinguia que cores ele gostaria de utilizar. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011).

As práticas descritas pela Professora Lourdes, realizadas no ano de 1965, e que eram discutidas no curso de Aperfeiçoamento do qual ela estava participando no mesmo período, apontam vestígios de práticas da denominada Escola Nova, como as apresentadas no livro de Aguayo (1947). Isso mostra a longa permanências dessas práticas tanto em cursos como na prática das escolas. A sequência do ensino das operações básicas mencionadas por alguns colaboradores, embora com uso de materiais diferenciados, parece ser a mesma que ainda hoje é seguida na maior parte das escolas. Ou seja: normalmente se inicia pela

adição e subtração simples, tudo simples, nem vai, nem empresta nada. Depois entrava a divisão e multiplicação, também bem simples. Aí, depois, começava o “vai um, empresta um”, aí, eu acho, já era na segunda série. Eu acho que na primeira série aprendia as quatro operações simples; agora, na segunda, começava sempre assim, primeiro adição e subtração e depois a multiplicação e divisão. (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011)

A professora Maria Cecília comentou que algumas orientações sugeriam o trabalho com a adição e a multiplicação ao mesmo tempo 88. A tradição de trabalhar na sequência acima mencionada, no entanto, parece ter sido a preferida.

Então, eles sempre falavam para a gente ensinar adição e já a multiplicação junto, mas eu não sei, eu não. Eu gostava de dar adição, subtração, depois a multiplicação, aí depois... Porque a multiplicação tem muito a ver com a adição, é a mesma coisa, a multiplicação é a soma de parcelas iguais. Mas não sei, eu tinha essa dificuldade, eu gostava de dar depois. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

88 Ver figura 57 sobre o ensino da adição e multiplicação. 115

Como já mencionado anteriormente, vários materiais didáticos eram empregados no estudo inicial dos números, que já contemplava alguns aspectos das operações aritméticas. Esses materiais continuavam a ser utilizados no estudo das operações. A professora Irma, no entanto, relata uma experiência original, com a horta da escola, que era feita e mantida por professores e alunos, dentro de um projeto do Ruralismo Pedagógico89. a gente plantava coisas que precisavam de menos água. Então, igual cenoura, assim... Contar, quantos pezinhos de cenoura que tem nessa carreirinha aqui, sabe? usava assim... é, contagem, repartir, porque na Alegria 90 não fazia merenda, naquele tempo a gente não fazia merenda, mas tinha a horta, que já fazia parte deste plano do Ruralismo... veio junto 91. Então, a gente repartia com as crianças: tem tantas cenouras, tantos alunos, aí tinha gente que tinha horta em casa que nem queria levar, então nós vamos repartir, contar para fazer a conta, aproveitava assim para repartir. (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010).

Não só a horta era motivo para ensinar operações aritméticas nas aulas da professora Irma. Ela também usava, desde o início de sua carreira, “talinhos, tampinhas, palitinhos, que eu levava palitinhos de sorvete, todas essas coisas simples mesmo” (IRMA ROSA DA SILVEIRA VIANA, entrevista em 14/06/2010). A professora Maria Cecília, além de utilizar desenhos, utilizava outros materiais concretos. Ela relata que pedia para os pais cortarem pedaços de sabugo e colocarem em um arame, amarrando e formando uma espécie de colar, que os alunos levavam para a escola e que eram utilizados na contagem e nos cálculos. Além do uso dos pedaços de sabugo, os dedos eram também muito utilizados pela professora Maria Cecília, que relata:

eu falava para eles contarem muito na mão, viu? eles contavam nos dedos, acho que não tem problema, mas nunca assim, contar os dedos dos pés assim, sabe. Por exemplo, vamos supor 6 + 7, eu falava assim ó “na tua cabecinha tem 6 ó, você já tem o seis, mais quanto você quer, sete, então mais sete. Bom eu tenho seis na minha cabeça, então mais sete. Sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze” está entendendo? (...) É, às vezes eu punha até uma cabecinha, para lembrar que estava na cabeça.(...)Tinha palitos, palitos de fósforo de casa... as crianças podiam trazer palitos de sorvete lavadinho, pedrinhas, semente de tamarindo. (MARIA

89 O Ruralismo Pedagógico, cujos pioneiros podem ser situados na década de 1930, tem como proposta “combater o êxodo rural, fixando o homem no campo”. Para isso, apresenta projetos específicos para o ensino de escolas rurais, que buscam atender interesses do público da zona rural (VAZ, G. K. T.; SOUZA, M. A. Escola do Campo, Trabalho Pedagógico e Relação com a Comunidade. In: IX Congresso Nacional de Educaçao – Educere e III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia. 24 a 29 de outubro de 2009. Curitiba- PR. Disponível em: www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/1986_982.pdf. Acesso em: 10 out. 2013). 90 Trata-se do bairro da Alegria, que pertence ao município de Tanabi. Isso no ano de 1966. 91 O ano a que a professora se refere é 1965. 116

CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

O professor Etore lembra-se de sua prática e da forma como conduzia as atividades de contagem e de cálculo, brincando com os alunos, contando nos dedos e usando sementes:

Então aí quando começava a contagem, por exemplo, de números era muito divertido porque a gente aprende números brincando, né? A criança, a gente aprende brincando, então desde joguinhos assim na lousa, na mão. Então você passa na carteira com três bolinhas na mão, por exemplo, menino de primeiro ano, não pode passar de três, quatro pedrinhas... assim. Põe na mão: “Quantos têm aqui?” Às vezes ele nem sabe contar. “Tem um, dois, três. Tem três? Três. Tem três, né? Três”. Aí você põe a mão pra trás e traz só dois, deixa um lá atrás. Aí você fala: “Quantos têm aqui? Dois”. “E quantos que ficaram lá atrás?” Aí eles têm que ir mentalmente fazendo o cálculo. Aí tem... então, tem uns que são mais sabidos do que os outros, lógico, então quando... você vai crescendo devagar, vai crescendo devagarzinho. Aí você passa a contar com os dedos e essa coisa toda, você vai contando devagar. Aí eles começam a trazer do sítio, sementes, coisinhas assim pra eles mexerem. Eu lembro que eu gostava que eles trouxessem a semente de jatobá. Porque a semente do jatobá ela é redonda e grande, então é fácil de usar na contagem, então cada aluno na carteira tinha, pelo menos, uma dúzia de sementes de jatobá. E com aquilo ali nós trabalhávamos a matemática, era em cima daquilo e eles aprenderam com uma facilidade danada. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

O uso de brincadeiras, segundo o professor, tornava suas aulas mais leves, levando os alunos a aprenderem com facilidade. Nesta prática, ele chegava a introduzir os números desconhecidos, ou incógnitas, usando a lousa.

E nós começamos a fazer aquilo que hoje em dia nós chamamos de incógnita, quando o número não aparece. Então desde novinho eles já aprendem isso daí. Então é feito assim na lousa, na lousa é feito desse jeito assim. (Neste momento o professor vai até a lousa e demonstra como fazia com seus alunos). Então você coloca: 2 +... . Aí aparece a incógnita, certo? Aqui: 2 + não sei quanto, é igual a 3. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

.

Figura 53 - Explicação colocada na lousa pelo professor Etore Bilia durante a entrevista, 2010. Fonte: Foto tirada pela pesquisadora.

117

Então eles têm que achar um número que vai aqui dentro que fique aqui. Então ele vai aprendendo duas operações, uma de mais e depois eu inverto, eu inverto. Então se você vier: 3 menos... o que está aqui. Vai dar esse daqui, certo? Então, e aí você vai aumentando, vai aumentando até você chegar nas tabuadas, né. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

O uso de uma figura geométrica para representar valores numéricos desconhecidos, as incógnitas, como mostrado pelo professor Etore, era um artifício muito utilizado em propostas da Matemática Moderna. No “Manual Pedagógico para a Escola Moderna”, por exemplo, o ensino da operação de subtração, inclui a descoberta de valores desconhecidos, escritos como quadradinhos, via operação inversa da adição. Uma dessas atividades é apresentada na figura 54, apresentada a seguir.

Figura 54 - Atividade sobre o ensino da subtração, (sd). Fonte: Manual Pedagógico para a Escola Moderna, técnicas de ensino - 1° grau, p. 197, (sd)92.

O professor Etore utilizava também para o ensino de operações aritméticas os “probleminhas de quebra-cabeça”. Segundo ele, esses eram os que os alunos mais gostavam. Para exemplificar, o professor menciona o seguinte problema: “Em um viveiro havia três frangos e um macaco, dois perus. Quantas aves havia no viveiro?”.

Ah, eles somam na hora e põem o macaco junto, certo? Então aí eles têm que saber que o macaco não é ave. Então é um quebra-cabeça. E eles falam: “Professor, tem pegadinha?” Falei: “Não sei, você lê o problema, se tiver pegadinha você tem que descobrir”. Quando ele percebe, ele vibra: “Ah, já sei, já sei...” Então, geralmente as classes têm esse costume, os primeiros que fazem, eles fazem correndo e geralmente o que faz correndo, geralmente erra. Aí ele tem que voltar. Nossa! ele fica louco da vida, porque ele foi o primeiro, como é que ele está errado? Mas logo eles pegam, logo eles pegam. Então é uma série de

92 CASTRO, N. de; et. al., Manual Pedagógico para a Escola Moderna, 1° grau, São Paulo: Editora Pedagógica Brasileira Ltda, (sd) a. 118

coisas que a gente vai aprendendo no dia a dia, a gente vai desenvolvendo dentro da sala de aula. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

A operação de divisão foi a que alguns colaboradores apontaram como a que apresentava maior dificuldade para os alunos e professores. Os professores nem sempre sabiam operar com divisores com dois ou mais números. A professora Eunice, que trabalhou apenas 15 dias em uma escola isolada rural, mas tem uma longa experiência em classes de Grupo Escolar, nos conta que, na segunda série, ela:

dava primeiro a divisão por um algarismo, mas um número, um número só na chave. Já depois, no segundo período do ano, você entrava com a divisão com dois algarismos e tinha os passos, primeiro passo, segundo... acho que eram nove ou dez passos.

(Neste momento, seu esposo (ORLANDO MELOTTI) completa: eram dez passos a divisão por dois, sabe por que? Porque no segundo ano, (...) condição “sine qua non”, para passar para o terceiro, o aluno tinha que saber a divisão por dois algarismos, coisa que hoje no colegial não sabe, nenhum aluno do colegial faz a conta, e o aluno tinha que aprender com 8 anos de idade; e aprendiam! o bom é que aprendiam! Então pra... uma das técnicas era essa dos passos da divisão, você começava dividindo, por exemplo, por 10, 100 e 1000, era o primeiro passo, porque dividir por 10 é bem fácil. Depois por 11, 12 e vai indo.)

Sempre o primeiro número maior que... a dezena maior que a unidade, porque é mais fácil de o aluno encontrar, porque se puser um, tem que ficar experimentando, né? dois não dá também, três não dá, quatro não dá... E também já aproveitava e ensinava o Português na hora da Matemática. “Vai um”. Tá certo. “Vai dois, não, é: vão dois”. Então você já ia aproveitando e ensinar a maneira correta. (EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, entrevista em 18/05/2011)

No decorrer da entrevista, os professores Eunice e Orlando, comentaram sobre as dificuldades que enfrentaram quando tiveram que ensinar divisão com dois algarismos na chave, em particular, por não terem facilidade de realizar este tipo de operação. O professor Orlando conta que pediu auxílio para o diretor da escola:

Então eu me lembro quando eu era substituto, em 1949, 1950, falando com ele, falei: “Senhor Silvio, gostaria que o senhor me explicasse um pouquinho de divisão por dois algarismos, tenho que começar agora, faz parte do programa...”. “Eu vou dar a primeira aula pra você”. “Ótimo, então vamos lá”. Ele sentou na cadeira, “sapecou” um dividendo lá, um divisor com seis ou sete algarismos. “Quem quer fazer?” Mas como, quem quer fazer? Os alunos de segundo ano não têm nem noção. Aí eu falei: “Nossa, agora que estou perdido, o que eu faço com essa..., não tenho nem noção”. (...) Tinha saído do Normal sem saber nem como começar isso, e aí apanhamos até aprender. (ORLANDO MELOTTI, durante a entrevista com sua esposa, EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, em 18/05/2011)

119

A professora Eunice complementa a fala do professor Orlando dizendo que pedia ajuda ao pai para ensinar a divisão por dois algarismos. E utilizando as dicas de seu pai e com o uso de um Manual que eles tinham na época, descobriu o método longo e o método breve. Segundo a professora Eunice, no método longo o aluno utiliza as quatro operações “mais, menos, vezes e dividir”. E o professor Orlando completa: “o longo é mais fácil de os alunos entenderem, mas depois você tinha que deixar de usar aquilo, tinha que raciocinar”. (ORLANDO MELOTTI, durante a entrevista com EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, em 18/05/2011) Para o professor, o fato de registrar os cálculos no método longo, não era necessário raciocinar, como se esse raciocínio estivesse ligado à prática de “fazer os cálculos de cabeça” sem a necessidade de registros. A professora Mércia completa que os alunos: depois que entendiam, que a gente ia por aquele processo longo, e fazia a continha de diminuir ali, abaixa o outro, eu falava: “Agora não precisa mais fazer isso, agora já pode só falar e escrever o resultado aí embaixo”. Mas eles tinham dificuldades. Mas não era uma coisa não, porque, da hora que eles entendiam bem entendido, se ele estivesse com dificuldades, ele fazia o processo longo, quer dizer, aprendia a se virar (...). (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011).

A professora Mércia ainda comenta que, na ordem em que trabalhava, adição e subtração vinham primeiro, multiplicação e divisão eram as últimas. As professoras Maria Feliciana e Zulmira, até contam que trabalhavam as operações de divisão e multiplicação juntas, o que facilitava a compreensão das mesmas. Embora o trecho93 do Termo de Visita apresentado anteriormente, relate a tranquilidade por parte da professora em trabalhar com alunos que apresentavam dificuldades com a divisão, desenvolver este conteúdo não era tão simples assim. Os alunos e até mesmo os professores encontravam dificuldades para se trabalhar tal conteúdo, principalmente na divisão por dois algarismos. Para realizar as operações, em particular multiplicações e divisões, era necessário o conhecimento da tabuada, conhecimento esse muito valorizado pelos professores colaboradores desta pesquisa.

93 Figura 39 do Capítulo 2. 120

Ensinando e aprendendo a tabuada

A professora Maria Cecília nos conta que desde o início de sua carreira, em 1964, ela introduzia a tabuada “desde a primeira série”, no momento em que “estava ensinando números”, por meio de agrupamentos e reagrupamentos. Ela se recorda que, por essa opção, “demorava uns dois meses” para introduzir os números do “um até o nove”. Neste trabalho, a professora mostrava aos alunos todas as possíveis combinações dos números:

Uma bolinha mais uma bolinha é igual a... duas bolinhas. Uma bolinha é para formar o número um. É uma bolinha mais uma bolinha. Ou então, duas bolinhas menos uma bolinha é igual a uma bolinha. Para formar o número dois, ou o número três, vamos supor, é uma bolinha, mais duas bolinhas, que é igual a 1 + 2. Então, fazia assim, lá no caderno: eu punha uma bolinha mais duas bolinhas, e aqui eu colocava assim, uma flechinha, e punha assim, 1+ 2 = 3 (...) eu punha 1 + 1 + 1, 1 + 2 e 2 + 1, todas essas possibilidades 94. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Para introduzir a tabuada, após esses exercícios preliminares, a professora Maria Cecília utilizava conjuntos. Durante a entrevista, enquanto ia contando a forma como explicava aos alunos, fazia os desenhos e os símbolos correspondentes na lousa. Para a Tabuada do 1, a professora Maria Cecília fazia o seguinte diálogo com seus alunos (complementados pelos registro na lousa apresentados na figura 55):

Eu tenho um conjunto aqui, esse conjunto é um. Eu vou colocar um patinho aqui - que fica mais fácil desenhar na lousa - então tem esse aqui, esse daqui é um lago, e nesse lago tem um patinho. Quantos lagos eu tenho aqui? Um. Quantos patinhos eu tenho aqui? Um. Quantas vezes, quantos lagos eu tenho aqui de um patinho? Um. Então quantas vezes eu tenho um patinho? Um. Pesquisadora: Um lago vezes um patinho... É igual a um patinho. 1x1=1. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

94 Segundo a professora, esta técnica era usada para iniciar a multiplicação, explicar o que é o “vezes”. 121

Figura 55 - Imagem da lousa, com a explicação dada pela professora durante a entrevista, 2010. Fonte: Foto feita pela pesquisadora.

Para fazer a tabuada do dois, a professora Maria Cecília acrescentava outra lagoa e outro patinho, representando na lousa como mostra a figura 56, a seguir.

É, eu sempre gostava de pôr o lago por causa disso, então eu contava historinhas do patinho... aqui já falava de cor, de tamanho, ah, uma “coisarada”. Então quantos patinhos eu tenho? Um. Então quantas vezes um patinho? Uma, vezes um patinho, é igual a um patinho. Aí chegou mais um patinho, quantos patinhos eu tenho? Dois. Quantas vezes eu tenho? Continua sendo uma vez, uma vez dois patinhos é igual a dois. Mas eu fazia assim também, quer ver? Eu fazia assim, vários lagos, e conforme iam aumentando os números, quantos... Quando tem um patinho, quantos conjuntos tem? Um. Um conjunto de patinhos é igual a um. Depois eu fazia o seguinte: uma, vezes dois patinhos, é igual a dois. E se eu fizer aqui, duas vezes dois patinhos? (não, agora eu não estou sabendo falar). Pesquisadora: Dois lagos significava a tabuada do dois? É. Dois lagos vezes um patinho, duas vezes um patinho, duas vezes... Quantas vezes eu tenho um patinho? 2x1, dois. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Figura 56 - Imagem da lousa, com a explicação dada pela professora durante a entrevista, 2010. Fonte: Foto feita pela pesquisadora.

Em um livro publicado pela editora Ática (sd), observamos algo semelhante com o uso de conjuntos para ensinar a multiplicação. A professora Maria Cecília ao explicar que “Dois lagos vezes um patinho, duas vezes um patinho”, está trabalhando a representação da quantidade de lagos (2) com a multiplicação por 2. Na figura 57 a seguir, temos o número 122 de conjuntos (4) representando a multiplicação por 4. Os conjuntos, neste exemplo, são simbolizados de modo semelhante ao citado pela professora Maria Cecília.

Figura 57 - Ilustrações que mostram o ensino da multiplicação, (sd). Fonte: Livro95 do acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

A prática da professora Maria Cecília para chegar à tabuada era muito comum em textos do período da matemática Moderna. No “Manual pedagógico para a escola moderna”, já mencionado anteriormente, lançado na década de 196096, também encontramos atividades de multiplicação muito próximas às mencionadas pela professora Maria Cecília, com imagens de patinhos em um conjunto, ou lago, como o apresentado na figura 58.

Figura 58 - Atividade sobre o ensino de conjunto, (sd). Fonte: Manual Pedagógico para a Escola Moderna, técnicas de ensino - 1° grau, p. 142, (sd) a.

Para introduzir a multiplicação por 3, o livro apresenta um diálogo entre o professor

95 Livro sem a capa. Editora Ática, (sd). 96 No exemplar que utilizamos deste livro, não há registro do ano de publicação. Como no prefácio é feita uma menção à Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (4024/61), consideramos que ele deve ter sido publicado na década de 1960, logo após a promulgação da referida Lei. 123 e alunos, com todos os passos considerados necessários para que a operação se realizasse. Neste diálogo é possível perceber a introdução de uma linguagem moderna da tabuada, que faz uso de conjuntos. Parte deste diálogo aparece na figura 59.

Figura 59 - Atividade sobre o ensino da multiplicação, (sd). Fonte: Manual Pedagógico para a Escola Moderna, técnicas de ensino - 1° grau, p. 201, (sd).

Alguns professores consideram fundamental, ainda hoje, o aluno saber a tabuada. A existência da calculadora, para eles, não seria uma justificativa para a desvalorização da memorização de fatos aritméticos para a realização de operações. A professora Lourdes, considera, “em alguns aspectos”, “condenável” o uso de máquinas na sala de aula. Porque acaba tirando do aluno a capacidade de memorizar: “Ah, eu não vou aprender tabuada não, eu pego a calculadora e faço a conta”. Mas você não pode usar a calculadora a vida inteira, então eu acho que a memorização é importante. Porque vai chegar um momento em que essa pessoa, às vezes, vai ter que exercer uma profissão, trabalhar em um setor que requer raciocínio, requer rapidez, então a memorização ajuda muito. Eu sou a favor de que o aluno deve saber a tabuada, para facilitar o cálculo, a tarefa, porque senão fica toda a vida ali com calculadora. (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011)

O professor Etore acredita que o conhecimento da tabuada é necessário para o aluno “ir bem em Matemática”, complementando que não concorda, mesmo com a existência da calculadora, que a tabuada seja desnecessária. Em sua entrevista, o professor Etore recorda-

124 se de ter utilizado, durante toda a sua carreira 97, um material chamado “relógio de tabuada” ou “tabuadas com relógio”98, para trabalhar a memorização de tabuadas. Em sua explicação sobre o material, que foi acompanhada por um desenho feito na lousa, apresentado na figura 60, o professor explica que ele era composto por círculo com números e resultados. Os quadradinhos maiores, que ficavam atrás, na extremidade do círculo, continham os resultados da multiplicação. Os quadradinhos menores, que ficavam na frente, continham os números que deveriam ser multiplicados pelo valor que era colocado no quadradinho do centro do relógio. O ponteiro maior indicava o resultado da multiplicação e o ponteiro menor um dos fatores. O professor conta que, com o uso desse “relógio”, ele realizava diversas atividades com os alunos. Ele explica que, por exemplo, se um aluno posicionar o ponteiro menor no número cinco, e o ponteiro maior indicar o valor vinte, o aluno “tem que descobrir cinco vezes quanto que vai dar aquele lá” (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010). Em outros casos, poderia ser indicada a multiplicação e o aluno tinha que encontrar o resultado posicionando o ponteiro maior. Quando essas atividades eram realizadas entre os alunos, criava uma competição entre eles.

O gostoso é quando você manda um fazer pro outro, ele tem o prazer enorme de ir lá rodar a roda só pra ver o outro, a tabuada que o outro vai falar. Então tem todas as tabuadas lá, de um a dez tem todas lá. Aí ele vai lá e risca e fica torcendo para ter um número ruim pro outro não responder, porque a vibração dele é do outro não responder, então o outro responde e aí vai. (...) Você passa qualquer probleminha na lousa, a criança que sabe a tabuada num “instantinho” ela resolve. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

97 O professor iniciou sua carreira na década de 1960. 98 Segundo o professor, ele fazia esse relógio de madeira para usar em sala de aula. No Manual Pedagógico para a Escola Moderna, 1° grau, mencionado anteriormente, encontramos um material semelhante ao relógio de tabuada mencionado pelo professor Etore, que é denominado “Circulo da Multiplicação”, que possuía apenas um ponteiro móvel. (CASTRO, sd. a, p. 205). 125

Figura 60 - “Relógio de tabuada” desenhado na lousa pelo professor Etore Bilia durante a entrevista, 2010. Fonte: Foto tirada pela pesquisadora.

A professora Maria Feliciana verbalizou sua opinião de que as dificuldades atuais dos alunos com a Matemática podem estar relacionadas à falta de conhecimento da tabuada. Para ela, “Se não souber tabuada não aprende nada de Matemática. É a base. Nós dávamos a tabuada do relógio, a tabuada em pé e a tabuada deitada. Três tipos de tabuada.” (MARIA FELICIANA GUIMARÃES DONOFRE, entrevista em 19/05/2011). A importância atribuída à aprendizagem da tabuada, como esclarece a professora Maria Feliciana, impunha a realização de variados exercícios de memorização. Para isso, ela menciona que utilizava “a tabuada do relógio”, “a tabuada em pé” e a “tabuada deitada”. De acordo com a professora Maria Feliciana, a “tabuada do relógio” era semelhante ao relógio apresentado pelo professor Etore (Figura 60). Segundo a professora, os alunos tinham o relógio desenhado no papel, e afirma: “nós passávamos em folha mimeografada a tabuada e eles colocavam os resultados. Outra hora, a gente colocava os resultados para eles riscarem e achar.” (MARIA FELICIANA GUIMARÃES DONOFRE, entrevista em 19/05/2011). Os modelos de tabuada em pé e tabuada deitada citados pela professora eram assim:

126

Figura 61 - Modelo de tabuada em pé. Fonte: Arquivo da pesquisadora.

.

Figura 62 - Modelo99 de tabuada deitada Fonte: Arquivo da pesquisadora.

A professora relata que trabalhou com este método desde o início de sua carreira como professora, no ano de 1988. Ela afirma que, ao trabalhar com a multiplicação ela já trabalhava com a divisão também usando a mesma estrutura que a tabuada, “a de dividir do mesmo jeito, seria aqui de dividir. Dois dividido por 1... Entendeu? De dividir. Então era: o vezes e o dividir assim, a deitada e a em pé.” (MARIA FELICIANA GUIMARÃES DONOFRE, entrevista em 19/05/2011). No modelo de tabuada deitada, podemos verificar que os valores formam uma 0 sequência de frações equivalentes, começando com a fração que é indeterminada. 0 Acreditamos que a professora não tivesse essa preocupação por se tratar de turmas que talvez ainda não conhecessem as frações. Mas não podemos deixar de observar essas possíveis interpretações, geradas a partir da representação usada pela professora para o ensino da tabuada. A professora completa que essa estrutura “deitada” era usada também no ensino da divisão, embora ela não tenha desenhado a ordem de como estruturar os números nesta

99 Esse modelo apresentado foi feito a partir do registro que a professora Maria Feliciana fez durante a entrevista. 127 operação, ela indicou que, no lugar no símbolo da multiplicação (×) seria utilizado o símbolo da divisão (÷). Esse modelo de tabuada deitada foi encontrado em um caderno de uma aluna 100 da professora Maria Cecília, do ano de 1983, de uma escola isolada rural. No caderno não há registro do nome “tabuada deitada”, mas o modelo era semelhante ao apresentado pela professora Maria Feliciana. Neste modelo, a tabuada era sempre repetida pela aluna três vezes. Veja a seguir:

Figura 63: Exemplo de atividade com o uso da tabuada deitada. Fonte: Arquivo da pesquisadora.

Neste mesmo caderno, quando é trabalhada a tabuada em pé, elas são escritas duas vezes, trocando a ordem dos fatores. Neste caso, é desenvolvida também a divisão.

Figura 64: Exemplo de atividade com o uso da tabuada em pé. Fonte: Arquivo da pesquisadora.

100 Essa aluna é minha irmã Maria, que foi aluna da professora Maria Cecília na Escola da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP. 128

Podemos observar que, na operação de divisão, só há uma forma de representação. Com isso, a professora evitou casos como a divisão por zero e divisões que resultem em decimal exato ou dízima periódica. Isso pode ser explicado por se tratar de uma 3ª série primária que ainda não havia estudado tais divisões. O professor Orlando e a professora Mércia, citam um recurso para se escrever a tabuada de uma forma mais prática, que motiva e ajuda a memorização. Trata-se do denominado Triângulo de Condorcet101:

se eu não me engano chama Triângulo de Condorcet, eles adoravam aquilo. Porque eu falava: “Se você aprender bem a do dois, na do três fica menor, a do quatro vai ficar menor, quando você chegar na do nove, você só vai ter que aprender....”. Sabe, pra motivar. Era difícil a multiplicação, até eles entenderem o que você estava fazendo. Depois que entendeu, tem que decorar, não adianta, se fala 3x5, ele não vai pegar cinco, e cinco e cinco, três vezes, pra depois juntar, porque senão ele não vai fazer nada o dia inteiro, ele vai fazer duas ou três continhas, se ele for ficar fazendo isso. E aí não tinha muito como não decorar, a gente tinha que pegar firme. Fazia o Relógio da Tabuada, o joguinho, você tinha que, depois que entendeu, depois que está sabendo o que está fazendo, eu falava: “Se você não souber, então pega e faz, se você for fazer 3x5, põe 3x5 aí, e junta que vai dar”. Mas depois que entendeu é que tinha que decorar, e aí fazia decorar, porque se não você ficava a aula inteira para dar duas coisas. (MÉRCIA MARIA RIBEIRO CAIRES, entrevista em 08/06/2011)

O professor Orlando comenta que conheceu o Triângulo de Condorcet quando era estudante das séries inicias e foi por meio deste recurso que aprendeu a tabuada. Para ele, trabalhar com o triângulo era muito produtivo, pois na “Matemática era assim, não tinha que pensar para responder a tabuada, era assim, pá pá. Era na bucha e era uma beleza que eles aprendiam de fato. Eles saíam dali sabendo Matemática mesmo (...)”. O triângulo de Condorcet é, para o professor Orlando, “a coisa mais lógica, mais Matemática, mais simples que tem”. (ORLANDO MELOTTI, entrevista em 18/05/2011) Escrevendo em uma folha de papel, que se encontra na Figura 65, a seguir, o professor Orlando ia explicando a construção desse triângulo.

Você pega para o aluno e faz o seguinte... (riscando na folha). Então aqui, vamos

101 Condorcet (1743-1794) é referido, na historiografia da filosofia, como o último dos filósofos iluministas, contribuiu muito com a Educação Matemática. “É o autor de uma obra essencial para a instrução pública: além de um plano geral para a mesma, em diferentes níveis de ensino em todo o pais, Condorcet escreveu um manual de aritmética para a escola primária da França Revolucionária.” (GOMES, M.L.M. Os Conhecimentos Matemáticos e a Experiência dos Sentidos. In: MIORIM M. A. e VILELA, D. S. (Orgs)., História, Filosofia e Educação Matemática – Práticas de Pesquisa, Campinas:Alínea, 2009, p. 150-151). 129

supor, eu pego a tabuada do dois, certo? Então eu quero saber, 2x2, quanto é que dá? Quatro. 2x3, quanto dá? Seis. 2x4, quanto dá? Oito. E vou até o final. Aqui 2x9, 18. Eu não dou 2x0, e explicava porque 2x0, sabe que é zero. E 2x1 é dois e também 2x10 não punha aqui, porque dez sabe que, dava separado, dez, vinte. 2x10, 3x10... Bom, agora a do três. O que eu faço com a do três, eu preciso pôr aqui 2x3 ou 3x2? Não, porque eu já tenho 2x3, eu tenho 2x3, aqui começou 2x2, né? Eu já tenho 2x3, então eu não preciso pôr, porque eu já tenho aqui o... Então eu começo aqui com qual? Começo com o três, 3x3, nove, certo? 3x4, 12. 3x5, 15. E assim vai... Quando chegar na do quatro, veja que vai formando um triângulo, aqui se vai até o nove aqui você vai até? Começando a do três você vai acabar aqui ó, o nove vai cair aqui, 9x3, 3x9, 27, aqui do quatro vai sair aqui ó... (...) 4x9, 36 vai cair aqui, então forma assim... (ORLANDO MELOTTI, entrevista em 18/05/2011).

Figura 65- Triângulo de Condorcet, desenhado102 pelo prof. Orlando Melotti, 2011. Fonte: Foto feita pela pesquisadora.

O Triângulo de Condorcet parece ter tido uma longa utilização no ensino das séries inicias no Brasil. Encontramos referências ao seu uso no “Programa para o Ensino Primário Fundamental” (2° ano), de 1949, p. 92 e no “Manual Pedagógico para a Escola Moderna”,

102 O modelo que o professor desenhou durante a entrevista ficou incompleto. No dia da leitura do texto de sua entrevista, o professor me entregou esse desenho feito por ele para exemplificar como era o Triângulo de Condorcet. Isso mostra que, de fato, o professor foi um colaborador na pesquisa.

130 da década de 1960. O Manual registra que o uso do Triângulo de Condorcet “mostra como se simplifica a , ensinando-se cada fato fundamental com seu reverso” (CASTRO, sd. b, p. 180). Neste Manual, o Triângulo de Condorcet é apresentado da seguinte forma:

Figura 66: Triângulo de Condorcet. Fonte: Manual Pedagógico para a Escola Moderna, técnicas de ensino - 2° grau, p. 180, (sd)103

Podemos notar que, diferente do Triângulo apresentado pelo professor Orlando, o desenho apresentado pelo Manual, traz os resultados da multiplicação por 1 e por 10. Essas multiplicações, segundo o professor, não eram necessárias no triângulo. Ele afirma que: “Eu não dou 2x0, e explicava porque 2x0, sabe que é zero. E 2x1 é dois e também 2x10 não punha aqui, porque dez sabe que, dava separado, dez, vinte. 2x10, 3x10...” (ORLANDO MELOTTI, entrevista em 18/05/2011). Para que a memorização das tabuadas ocorra com mais eficácia, o professor Etore considera que ela deveria ser realizada de forma não sequencial. Considerando a sua prática, o professor entende que isso evita que o aluno aprenda a decorar a sequência e não os valores de cada multiplicação, e sugere uma forma para encontrar os valores usando apenas o raciocínio, que foi sendo registrada por ele na lousa, como mostra a figura 67. A tabuada geralmente: 5 x quanto que dá trinta? Ele tem que voltar lá na tabuada, aquela coisa toda, porque na tabuada você nunca ensina tabuada desse jeito que está aqui, ó... nunca faça isso, nunca faça isso aqui, é 3x2 e vai... nunca faça isso,

103 Castro, N. de; et. al., Manual Pedagógico para a Escola Moderna, 2° grau, São Paulo: Editora Pedagógica Brasileira Ltda, (sd) b. 131

porque ele decora, às vezes ele decora quase que só a sequência, mas se você perguntar um número no meio ele não sabe, certo? Então você tem que aprender a ensinar tabuada. Você coloca um número aqui na ponta, tabuada do três. Três vezes quanto que dá... aí você vai fazendo os números de baixo. E números salteados: 3x3, 3x8, 3x4... Ele tem que raciocinar exatamente essa conta aqui, ele não tem que decorar, então... aí ele sabe que vai dar 9, 24, e assim é que ele vai fazendo as operações. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Figura 67 - Explicação colocada na lousa, demonstrando a atividade citada na entrevista, 2010. Fonte: foto tirada pela pesquisadora.

Nesta proposta, o professor Etore vai montando as multiplicações por 3 em formato semelhante ao da “Tabuada deitada” (Figura 62). No exemplo colocado na lousa pelo professor, os resultados ficam na “parte de cima”. Por isso, na sequência, temos: 3 x 3 = 9; 3 x 8 = 24. Sem seguir a multiplicação por fatores na ordem crescente, ou seja, 3 x 1, 3 x 2, 3 x 3, 3 x 4... O professor Etore comenta ainda sobre uma estratégia, que hoje podemos considerar como pouco convencional, que utilizava para incentivar os alunos a saberem a tabuada “de cor”. Antes da saída para o intervalo, ele ia perguntando a tabuada para cada aluno. Aqueles que respondessem corretamente podiam sair, enquanto os demais permaneciam na sala até darem uma resposta correta.

Saída de classe. Está na hora do recreio. Eles já sabem já, é a tabuada... É a tabuada do dois, hoje. Enquanto não souber a tabuada do dois certinho, não vai. Então eu falava: “Quanto que é 2x8?” O primeiro que levantava a mão, 16. “Sai pro recreio.” “2x9?” “18”. “Sai pro recreio”. Os que não sabem, vão ficando vão ficando. E aquilo você percebe que vão ficando num estado de nervos, porque está saindo o pessoal e ele está ficando, ele está ficando, até que ele fica quase pro fim. Não cobro nada dele. Só o fato de ele ficar por último é uma cobrança que você não calcula o tanto que no outro dia ele volta queimado com aquilo. Então às vezes, o que errou hoje, dali dois, três dias ele te cobra: “O senhor não vai pedir a tabuada? O senhor não vai pedir a tabuada, professor?” Porque ele estudou, ele quer falar logo de cara o número que tem lá ou então quando na saída da classe: “Que tarefa que vai ter?” Falei: “A tabuada”. Todo mundo já sabe, aí eu vou falando, vou pedindo a tabuada e vou falando o que eu fiz dentro da tabuada. O que não souber, recebe uma folha, essa folha com 132

as tabuadas daquele jeito lá, certo? Ele tem que fazer, então dar uma folha pra aquele que não fez a tabuada e ele tem que trazer de casa, aquela folha completinha. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Segundo o professor, os alunos se dedicavam aos estudos porque “ninguém quer receber aquela folha”, não era preciso “mandar” eles estudarem. Essa cobrança, castigo, é vista pelo professor como algo positivo ao aprendizado dos alunos. A professora Eunice, assim como os professores Etore, Maria Feliciana e Mércia, também utilizava o relógio de Tabuada, além de outros materiais. Em sua entrevista, essa professora esclarece que ensinava sempre de maneira lúdica. Não podia ser muito profunda, mas eles já iam para segunda série com um pouquinho de noção de conjunto, de tabuada, que hoje não ensina mais. E a gente já exigia e ensinava sempre brincando, né? porque tudo aquilo que você exige, a criança não aceita muito, nem o adulto, né? Então a gente ensinava brincando. (EUNICE KANNEBLEY MELOTTI, entrevista em 18/05/2011)

Já a professora Maria Virgínia, quando questionada se existiam práticas diferenciadas para o ensino da tabuada, comenta que “Não, era bem tradicional... os alunos decoravam. Só lá pelos anos 1997 é que começamos a dar atividades diferenciadas (jogos).” (MARIA VIRGÍNIA MENDONÇA SABATINI, entrevista em 19/05/2011). Uma outra forma de ensinar tabuada, denominada por “unidades”, foi mencionada pela professora Zulmira em sua entrevista. Ela aprendeu essa forma e outras em cursos de aperfeiçoamento que realizou. A tabuada por “unidades” parte de um resultado, utiliza a operação inversa e a propriedade comutativa, e era sempre acompanhado por situações problema e desenhos. Então, por exemplo, a unidade do 12. Três vezes o quatro. Quatro vezes o três. Três vezes quanto que dá 12? Quatro vezes quanto que dá 12? Então a criança já via o oposto, a tabuada ficava bem diminuída, e ele já começava a ver a divisão. Eu achei muito bom, depois comecei a dar a tabuada desse jeito e facilitou, facilitava muito para a divisão. (...)Ia devagar, tomando 104 todo dia, cada dois, três dias estava uma unidade lá, fazia na lousa o desenho.(a professora pega o papel para desenhar). Por exemplo, eu fazia assim: um prédio de apartamentos. Então aqui tem 12 pessoas. Aqui tem três quartos. Quantas pessoas tem em cada quarto? Você entendeu? Aqui tem quatro quartos, sempre o doze. Quantas pessoas têm em cada quarto? E assim vai, eu me lembro desses desenhinhos. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011)

104 Era muito usual utilizar o verbo “tomar” com o significado de verificar se o aluno “conseguiu” decorar. O professor chamava o aluno e pedia, por exemplo, para ele falar a tabuada do cinco. Também era usual falar que o aluno “pegou” quando conseguia recitar a tabuada correta.

133

Figura 68 - Registros feitos pela professora Zulmira Mattos Miziara durante a entrevista, 2011. Fonte: Foto feita pela pesquisadora.

Na prática de ensinar a tabuada relatada pela professora Zulmira, “a tabuada ficava bem diminuída”. Esse mesmo efeito, o de “diminuir” a tabuada, também acontecia com o uso do Triângulo do Condorcet. A professora Mércia afirma que, para motivar os alunos, ela falava: “Se você aprender bem a do dois, na do três fica menor, a do quatro vai ficar menor, quando você chegar na do nove, você só vai ter que aprender....”. O professor Orlando explica que “Quando chegar na do quatro, veja que vai formando um triângulo (...)”. Com isso, essas práticas possibilitam que os alunos decorem uma quantidade menor de resultados, ou seja, “reduzem a tabuada” não precisando passar por todas as multiplicações. Além disso, já iam aprendendo a comutativa, no qual ter 2x3 é o mesmo que ter 3x2. Nenhum de nossos entrevistados mencionou o uso de ábacos. Assim como o Flanelógrafo e o Cartaz Valor do Lugar, o Ábaco também era citado no “Manual Pedagógico para a Escola Moderna”. Como todos os professores disseram que não utilizaram, pois não o tinham disponível, podemos conjecturar que as escolas rurais onde os professores colaboradores desta pesquisa trabalharam, dispunham apenas de materiais que podiam ser confeccionados pelo próprio professor, como por exemplo, o Flanelógrafo e o Cartaz Valor do Lugar. No entanto, esse argumento não parece muito consistente, uma vez que existem versões do ábaco que podem ser construídas com materiais simples. Não seria difícil montar um ábaco. Talvez, o não uso do ábaco possa ser justificado pela opção pelo uso de outros materiais, como o “Cartaz Valor”, que nada mais é do que um ábaco diferente. Esse argumento não foi utilizado por nenhum professor. A professora Maria Virgínia esclarece que na década de 1990 “o Estado forneceu o Ábaco105 e nos livros

105 Segundo a professora, os alunos tinham esses materiais desde 1996. Na década de 1990, as escolas 134 didáticos já existiam disponíveis atividades de recortes e encaixe. No final da década de 1970, o Estado já começou a mandar outros tipos de materiais”. (MARIA VIRGÍNIA MENDONÇA SABATINI, entrevista em 19/05/2011). A professora Maria Terezinha, que lecionou nas escolas rurais em meados dos anos de 1980, comenta que, além de sementes e outros materiais que os alunos traziam, ela comprava e utilizava em suas aulas alguns joguinhos.

Que naquela época não tinha muito, como agora, que tem bastante material. Aí eu mesma comprava joguinho e levava. (...) Eu procurava sempre ter um pouco de cada série. Aí depois com os anos, né? que a gente foi vindo para a cidade, foi mudando um pouco, não tinha quase nada em escola isolada. Então eu gostava de pegar o que tinha mais em contato com eles: pauzinhos, sementes, principalmente sementes106. (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011).

As práticas narradas pelos professores colaboradores desta investigação apontam semelhanças em relação a conteúdos e materiais do ensino de Matemática de escolas rurais. Entretanto, “o modo de fazer” sempre traz algo pessoal, particular, individual. Além disso, as narrativas mostram que as práticas não são estáticas, elas vão se modificando em função de vários fatores, dentre os quais podemos destacar as experiências pessoais do professor e dos alunos, as orientações oficiais e as condições de trabalho. Mas como as mudanças acontecem? Em sua narrativa, a professora Maria Terezinha reflete sobre esta questão: Muda? Muda o jeito de dar? Não sei, porque eu acho que, pode ser alguma, uma experiência que você tem, você aplica uma. Que nem: para a subtração - se você fizer assim é melhor que assim, entre a gente, mas depois você pega aquele ritmo e vai embora. Porque talvez o que você deu na sua classe não vai servir para minha classe. Tem umas que deslancham mais, outras já têm mais dificuldades. E como sempre sobravam (crianças com) mais dificuldade para mim, eu tinha que ficar mais... Mas é isso aí. Mas era bom demais. (MARIA TEREZINHA MONTEIRO MACHADO, entrevista em 08/06/2011).

confeccionavam, por exemplo, o Tangram. 106 Segundo a professora, essa metodologia do uso de sementes e palitos ocorria mais nas décadas de 1970 e 1980. Depois, já no final da década de 1980, existiam alguns jogos. 135

CAPÍTULO 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Primeiro dia de aula (...) chegou um aluno, tão bem vestidinho, camisa branca, calça azul-marinho, sapatinho, meia e um buquê de flores na mão para a professora.”

(Prof.ª Zulmira Mattos Miziara)

Esta investigação, que utilizou a História Oral como metodologia, teve o objetivo central de estudar práticas de ensinar/aprender Matemática nas séries iniciais do ensino fundamental de escolas rurais de Tanabi-SP, durante a segunda metade do século XX. O estudo contemplou, num primeiro momento, aspectos do surgimento das escolas rurais no município em sua relação com o movimento mais amplo de criação destas escolas no Estado de São Paulo. Em seguida, discutiu condições de funcionamento das escolas, dando especial atenção à formação dos professores e às práticas escolares. No próximo capítulo, a atenção foi dedicada às práticas específicas do ensino da Matemática na escrita de números, nas operações de adição, subtração, multiplicação e divisão, e no trabalho com a tabuada. Considerando, com Fiorentini (1995), que os professores, cada qual na sua realidade, constroem práticas em sala de aula que, na sua visão, são as mais adequadas, em nossos estudos não buscamos enquadrar os professores numa tendência A ou B. Essa hipótese nem se coloca, pois, segundo nossa concepção, cada professor constrói idiossincraticamente seu ideário pedagógico a partir de pressupostos teóricos e de sua reflexão sobre a prática. Nessa construção, podem aparecer elementos de duas ou mais tendências (...). (FIORENTINI, 1995, p. 3).

Nas lembranças de nossos entrevistados identificamos rastros de algumas das tendências mencionadas por Fiorentini (1995), em especial da empírico-ativista, que é a denominação atribuída a propostas de renovação do ensino que começaram a surgir na Europa e nos Estados Unidos no século XIX e que, a partir da década de 1920, foram implantadas em escolas primárias de vários estados brasileiros. Essas propostas, englobadas sob a denominação de Escola Nova ou Escola Renovada, consideram as características biológicas e psicológicas das crianças, e defendem que “o conhecimento matemático emerge do mundo físico e é extraído pelo homem através dos sentidos” (FIORENTINI, 1995, p.9). 137

No Brasil, a tendência empírico-ativista no ensino da Matemática teve dentre seus representantes, na década de 1930, os professores Euclides Roxo e Everardo Backheuser. Nas décadas seguintes, “surgiriam outros professores de matemática seguidores dessa corrente”, dentre os quais: Júlio Cesar de Mello e Souza, ”Irene Albuquerque, Manoel Jairo Bezerra e Munhoz Maheder” (FIORENTINI, 1995, p.10). Apesar de “englobar uma variedade de correntes pedagógicas modernas”, as propostas da Escola Nova tinham em comum alguns pressupostos, dentre os quais estavam o “‘princípio da atividade’” (MIORIM, 1998, p.90). Esse princípio diz respeito ao papel do aluno em relação ao conhecimento, que passa de uma postura passiva, de quem apenas repete e reproduz o que é dito pelo professor ou pelo livro didático, para uma postura ativa, com participação efetiva em seu processo de aprendizagem. Para isso: “A criança deve ter liberdade, deve participar da vida da escola, em todos os seus aspectos, deve ter a sua personalidade respeitada, deve trabalhar em grupo, deve ter vida social, sim” (FONTOURA,1955, p.108). Além da participação efetiva da criança na vida escolar, as correntes modernas defendem que a escola deve trazer “a vida” para a escola e não fazer da escola “apenas uma espécie de antecâmara da vida”. O ensino, nesse sentido, deve acontecer sempre em “uma atmosfera de vida, tudo de acordo com o lema sintético e expressivo de Decroly: escola da vida, para a vida, pela vida” (BACKHEUSER, 1933, p.98-99). O papel do professor, por outro lado, não será mais o de detentor do saber, que apenas transmite o conhecimento, nem aquele que “cria nos alunos destrezas ou habilidades que êles não possuiam antes”. A sua responsabilidade agora é a de criar situações de aprendizagem e “guiar e estimular o trabalho do aluno” (AGUAYO, 1947, p. 64). Para o ensino de Matemática, os autores sugerem que os professores criem situações didáticas com a introdução de vários objetos “alguns deles naturais e simples como os dedos da mão, feijões e grãos de bico, pedrinhas, etc.; outros são artificiais, como os cartazes, as imagens numéricas, etc” (AGUAYO, 1947, p. 307). A necessidade de objetos concretos é justificada pela dificuldade de abstração inicial da criança, uma vez que “seu pensamento ainda não saiu do plano das realidades concretas” (SANTOS, 1958, p.177). A valorização da observação, pela criança, de objetos e formas antes do ensino de definições na Matemática, está contemplada no livro “Para aprender Matemática”, de

138

Sergio Lorenzato, de 2010. Neste livro, o autor expõe a importância do “fazer” para ensinar algum assunto novo às pessoas. Nesta aprendizagem, “a fala” deve ser uma aliada e estar junto com a apresentação de objetos que retratem o tema que se está falando. Com esta análise, o autor exprime a importância do “‘ver com as mãos’” (p.18), mostrando a valorização dada pelas pessoas no dia a dia, para o “tocar”, na busca do “sentir e conhecer” qualquer objeto. Assim, o autor diz que: “na verdade, assim como é preciso abrir mão do rigor para se conseguir o rigor, para se alcançar a abstração é preciso começar pelo concreto. Este é o caminho para a formação de conceitos”. (LORENZATO, 2010, p. 20). A função do professor, de responsável pela criação de situações de aprendizagem dos alunos, com o uso de materiais diversos, foi muito valorizada por nossos colaboradores. A professora Irma, por exemplo, nos contou que pedia para os pais dos alunos, que tinham uma plantação de arroz, para cortarem os talos de arroz em “palitinhos”. Esses palitinhos eram colocados em uma caixa e usados em atividades de contar. As vendinhas escolares, as hortas, foram outras situações de aprendizagem mencionadas pelos professores. Na maior parte das vezes, essa função do professor de criador de situações didáticas foi associada a argumentos defendidos por propostas da Escola Nova, embora também tenham sido usados argumentos de um movimento desencadeado após a Segunda Guerra Mundial. O Movimento da Matemática Moderna foi alicerçado no estruturalismo matemático, como elemento organizador dos conteúdos matemáticos, e na teoria psicológica de Jean Piaget, que orientava várias experiências escolares. Embora os materiais manipulativos fossem considerados importantes, suas características e propostas de utilização partiam de princípios diferentes daqueles da tendência empírico-ativista. Na tendência construtivista piagetiana, a interação do aluno com os objetos era um auxiliar para a construção das estruturas mentais do pensamento. O marco para o surgimento da Matemática Moderna foi normalmente colocado pelos colaboradores como o momento em que apareceram os conjuntos. A forma de ensinar os novos temas, no entanto, variaram de acordo com as experiências do professor. Em algumas conversas com nossos colaboradores pudemos perceber apropriações da Matemática Moderna que se entrecruzam com pressupostos da Escola Nova. Etore, por exemplo, ao ser perguntado sobre a Matemática Moderna respondeu que o termo dizia

139 respeito aos conjuntos e, rapidamente, complementou: “todo mundo não se conformava com o conjunto vazio”. Em seguida, nos contou sobre algumas dificuldades que encontrou para ensinar o tema:

Eu lembro direitinho o que era um conjunto vazio. Então era difícil você ensinar para a criança o conjunto vazio. Se é um conjunto, tem alguma coisa. Então a gente explicava assim: você pega uma caixa de fósforo, uma caixa de fósforo é um conjunto, desde que ela tenha dentro os palitos, se ela não tiver os palitos lá dentro, ela é um conjunto vazio. Mas o aluno ficava meio assim: “Mas a caixa de fósforo não é uma coisa, como é que é um conjunto vazio, certo?” Porque a gente costumava fazer os conjuntos com aquelas coisas, né?... aquelas coisas, como é que chama? Costumava fazer o conjunto aqui, aí mandava o aluno, esse daqui você tem que fazer o conjunto vazio, mas como é que ele vai pôr uma caixa de fósforo aqui, aí ele: “não é mais conjunto vazio! tem uma caixa aqui, embora ela esteja vazia.” Então era difícil ensinar isso, Nossa Senhora! Então nós acabamos fazendo assim: “Que que é isso daqui?” “É um conjunto vazio.” “Mas não tem nada aí dentro, como é que pode ser conjunto vazio?” Então criou uma polêmica “desgramada” em cima disso aí. Até hoje, ainda, às vezes eu falo: “gente, como era difícil de ensinar o conjunto vazio para a meninada, porque se você pensar bem, é difícil.” (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

A Matemática Moderna não trouxe muitas recordações para a maior parte dos colaboradores desta investigação. As lembranças, na maior parte das vezes, como ocorreu com o professor Etore, se resumiram à afirmação de que foi o período de introdução dos conjuntos. Os que tentaram apontar mudanças ocorridas enfatizaram a representação de conjuntos, associada a situações concretas. Como a caixa de fósforo vazia que o professor Etore usou para discutir um conjunto vazio ou o lago de patinhos representado pela professora Maria Cecília para realizar operações aritméticas. A ausência de lembranças pode ser um indício de que esse momento não foi muito diferente dos anteriores. Ou seja, que a Matemática Moderna não chegou a alterar significativamente as práticas escolares de algumas escolas, como muitas vezes acreditamos. Ou, como considera Souza (2011), que “não há, em essência, um Movimento da Escola Nova ou um Movimento de Matemática Moderna, mas diversas apropriações de diretrizes que, circulando no cenário escolar, são caracterizadas como discursos possíveis sobre os ideários Escola Nova e Matemática Moderna” (p.368). A professora Maria Cecília, que lecionou na escola rural do Bairro do Sapé, de 1970 a 1986, ao ser perguntada se a Matemática Moderna foi tratada em um curso de aperfeiçoamento que realizou, respondeu:

140

Matemática Moderna foi depois, foi aí que vieram os conjuntos, certo? Agora eu não me lembro, eu gravei muito da dona Maria Helena, sabe que foi, foram as operações, operações, ah... como ensinar os números e outra coisa que eu não sei falar direito, número ou numeral, que sei que tem diferença do número e do numeral, mas foi um número, esses vários números, ah... eu sei que eu gravei muito tabuada e os problemas, isso aí. Agora, os conjuntos, eu não me lembro se ela citou, vou ser sincera, porque eu joguei meus cadernos; se ela deu aula sobre conjunto, foi uma coisa que não me interessou muito. (MARIA CECÍLIA SOCCIO MONTEIRO, entrevista em 12/06/2010)

Ao ser perguntada se tinha lembranças sobre o ensino de conjuntos, a professora Lourdes, nos respondeu: “Olha, conjuntos, nós não ensinávamos 107 da forma como se fala hoje com, por exemplo, usando algum tipo de letra, que vai simbolizar o conjunto zero, ou unitário, e coisas assim”. Com relação ao conjunto vazio, a professora afirma que era dado de maneira prática, “que na verdade um conjunto vazio nem era bem um conjunto, porque ele não tinha nada dentro. E um conjunto unitário era aquele que tinha um elemento”. O aluno “fazia sempre em forma de desenho, com recortes, partia sempre do concreto, para depois abstrair”. E complementa: “nós trabalhávamos conjuntos, mas da maneira como eu lhe falei, sem muita minúcia, letrinhas, detalhezinhos, a gente batia mais no concreto, para que o aluno compreendesse exatamente o que a gente estava falando” (LOURDES RITA DE PAULA SANCHES FERNANDES, entrevista em 08/06/2011). O professor Etore comenta que o “conjunto é bom na numeração”. E relata um pouco da sua prática para trabalhar tal assunto:

Como nós colocamos ali, três laranjinhas, ali é um conjunto, certo? Então aquelas três laranjinhas equivalem a um conjunto de três unidades lá dentro. Aí você trabalha com unidade, aí depois vem dezena, vem centena e o conjunto é bom pra essa parte aí, certo? E a formação do conjunto também, né? conjunto igual, conjunto diferente, aqueles sinais de igual, diferente, aquilo a gente usava muito, maior, menor. É que foi nessa época aqui também que apareceu, e até hoje quase que não se usa aquilo, né? (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010)

Nas entrevistas com nossos onze professores colaboradores, foi possível perceber que o Movimento da Matemática Moderna no município de Tanabi não chegou a alterar práticas anteriores. Os professores afirmam que não tiveram nenhuma formação específica para essas mudanças ou não se lembraram. O professor Etore foi o único a afirmar que existia um jornalzinho, provavelmente distribuído pela Secretaria de Educação, que dava

107 Na década de 1960. 141 algumas orientações sobre a Matemática Moderna, e que nos mostrou uma coleção: “Manual pedagógico para a Escola Moderna 108”. Alguns professores mencionaram o livro de Déborah Pádua Mello Neves, intitulado “Matemática Moderna”, sem, no entanto, detalharem aspectos de seu uso em sala de aula.

De tudo que foi... O que ficou?

A investigação apresentada teve seu foco voltado para as práticas do ensino de Matemática nas escolas isoladas rurais do município de Tanabi, interior do Estado de São Paulo. Por meio das entrevistas, percorremos muitos caminhos trilhados pelos professores, podendo conhecer muitas experiências vivenciadas por eles nestas escolas. A resposta à questão que foi colocada nesta pesquisa, “Como e quais eram as práticas de se ensinar-aprender matemática em escolas rurais de Tanabi, no período de 1950 a 2000?” ficou entrelaçada com as diferentes práticas desenvolvidas pelos professores em concordância com os materiais disponíveis na época e os recursos didáticos, muitas vezes produzidos pelos próprios professores para o ensino da Matemática. Após as entrevistas com os professores que fizeram parte do cenário escolhido para a pesquisa, transcrição, interpretação e análise dos textos produzidos por essas entrevistas, pudemos contemplar os objetivos colocados na investigação. Alguns aspectos sobre as aulas podem ser considerados, como por exemplo, a prática exercida pelo professor Etore. Esse professor comenta o quanto era divertido, para ele, as aulas para aprender a contagem de números. Ao mesmo tempo nos mostra um episódio de castigo (não sair para o lanche) que era aplicado aos alunos que não soubessem responder às questões que envolviam a tabuada. Para esse professor, naquela época, aplicar um tipo de castigo ao aluno que não respondesse corretamente à pergunta feita pelo professor, era uma forma “saudável” de cobrar do aluno que ele estudasse mais, para saber as respostas “na ponta da língua” e, assim, não ser mais castigado. Essa interpretação do professor em achar “divertido” ensinar e, em alguns momentos, aplicar essas estratégias, não são vistas por ele como contrárias

108 Castro, N. de; et. al., Manual Pedagógico para a Escola Moderna, 1° grau, São Paulo: Editora Pedagógica Brasileira Ltda, (sd) a. O professor Etore apresentou um Manual Pedagógico para a Escola Moderna – técnicas de ensino – do 1° grau, um do 2° grau e outro referente ao 4° grau-Nível II. 142 mas, como atividades que favoreciam o desenvolvimento da responsabilidade no aluno. O professor afirma: “Não cobro nada dele. Só o fato de ele ficar por último é uma cobrança que você não calcula (...)”. (ETORE BILIA, entrevista em 12/07/2010). Essa prática do professor, que não era divertida, indica uma cultura de época. O professor se considerava um “bom professor” por fazer isso, por cobrar, deixar de castigo. E esse método era eficaz, porque os alunos estudavam para o dia seguinte. Souza (2011), em sua pesquisa de doutorado sobre um Grupo Escolar, também identifica esse tipo de prática, e completa: os castigos físicos, o chamamento moral e as filas – são vistas como naturais e necessárias à manutenção da disciplina no Grupo. Entretanto, não são apenas naturais e necessárias: surgem nos discursos como um diferenciador positivo, mobilizado em defesa do Grupo Escolar “daquele tempo” em contraposição a um certo caos próprio ao ensino primário de hoje. (SOUZA, 2011, p. 365)

As práticas de ensino da escola rural, normalmente, eram as mesmas da escola urbana. Os professores tinham disponíveis os mesmos materiais (Flanelógrafo, Cartaz Valor de Lugar,...), apenas contavam com alguns recursos que eram próprios do meio rural, tais como, o uso de sementes e o cultivo de hortas. Não existia um modelo para a escola rural, as práticas se caracterizavam com o uso de diversas situações que eram contextualizadas pelos professores, tendo em vista as diferenças nas condições de trabalho entre a escola urbana e a rural. A experiência de trabalhar com a metodologia da História Oral, abriu portas para esse universo que ficou no passado e que revisitamos por meio da memória desses professores e de uma aluna que, gentilmente, concederam as entrevistas. Muitas particularidades da vida nas escolas rurais foram verificadas por meio das falas dos professores. Histórias e mais histórias, contadas com orgulho, por pessoas que passaram por essa experiência de lecionar na zona rural, muitas vezes sem outra escolha no início da carreira, e que nas entrevistas puderam relembrar e reestruturar muito de suas práticas pedagógicas. A realidade da zona rural, embora escassa de recursos pedagógicos foram lembradas com carinho pelos professores, como uma realidade que deixou saudade, pois segundo eles, era muito bom trabalhar com aqueles alunos que eram disciplinados, respeitavam muito o professor e eram interessados em aprender. Além disso, podemos entender que, para a maioria dos professores, as dificuldades quanto à estrutura das escolas, a precariedade das instalações, a rotina cheia de atividades pois, além das aulas, tinham que 143 cuidar da cozinha, preparar a merenda e limpar a sala de aula, não foram fatores que os impediram de guardar boas e agradáveis lembranças. Em alguns momentos eles acabam fazendo comparações com os alunos de hoje, sobre o que se ensina hoje e o que se ensinava naquela época, e tudo isso pode influenciá- los por dizerem que, no passado, o ensino era mais “puxado”, os alunos eram mais interessados e educados. Mas acreditamos que, passar a semana toda fora de casa, longe da família e enfrentar longas viagens até as escolas rurais não era tarefa fácil, por isso que, para alguns, como nos diz Martins (2003), trabalhar nas escolas rurais era uma “terra de passagem”, visto que muitos enfrentaram essa situação apenas em início de carreira. Para outros, essa rotina fez parte por longos anos. Contudo, concordamos com Martins (2003), ao afirmar que, Devido a uma conhecida e divulgada tendência de “queda nos padrões de ensino”, o que se ensinou e se aprendeu na escola rural, parece ter ficado como um mito de qualidade (de boa qualidade) na memória daqueles que vivenciaram o ensino no campo (...). (MARTINS, 2003, p. 138)

Não esgotamos todas as fantásticas histórias e práticas nesta investigação, já que o tema é vasto e, pela sua importância, exigiria um tempo maior de investigação. O que fizemos, foi apresentar alguns recortes das falas dos professores, que evidenciavam a prática para a introdução dos números, desde a preocupação com a correta e bonita escrita até o ensino das quatro operações básicas (adição, subtração, multiplicação e divisão) e da tabuada. Muitas ainda são as possibilidades de análise. Fotos que foram apresentadas, episódios que foram retratados, tantas outras realidades que poderiam ser exploradas, mas que não foram contempladas nesta pesquisa. Portanto, essas possibilidades ficam em aberto, para que, no futuro, ainda possam ser exploradas, para que continuemos a traçar o cenário da História da Educação Matemática no interior paulista. Para encerrar este texto, colocamos um pequeno trecho da entrevista com a professora Zulmira Mattos Miziara, ao relatar a sua emoção em um episódio vivido em uma escola rural:

Eu fiz uma vez um artigo, escrevi um artigo no jornal falando do primeiro dia de aula. Que chegou um aluno, tão bem vestidinho, camisa branca, calça azul- marinho, sapatinho, meia e um buquê de flores na mão para a professora. Então aquilo me tocou muito porque eu fiquei pensando quanto que essa mãe falou para 144 esse menino, quanto que ela estimulou esse menino para vir numa escola, que ela achava maravilhosa, para deixar, fazer ele tão bonito e com as flores para a professora no primeiro dia, achei lindo. (ZULMIRA MATTOS MIZIARA, entrevista em 08/06/2011)

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151

APÊNDICE

153

Textualizações das Entrevistas

155

1. Professora Maria Cecília Soccio Monteiro

Profª Maria Cecília Soccio Monteiro, 2010. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 12 de junho de 2010, na escola do bairro do Sapé, com a professora Dona Cecília.

Então, neste primeiro momento, vou pedir para que se apresente: nome, idade, cidade. Meu nome completo é Maria Cecília Soccio Monteiro. Tenho 66 anos, sou casada, mãe de cinco filhos e agora nove netos. Sou professora, formada desde 1963, trabalhei até dia 1° de março deste ano de 2010 e sou aposentada duas vezes: em 1990 pelo Estado e agora, em 2010, pela prefeitura de São José do Rio Preto. Lecionei nesta escola de 1970 até 1986.

Nesta escola aqui do bairro do Sapé?

Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

É, nesta escola109. E antes de me formar, por exemplo, me formei em 1963 (mas em)

109 A professora se refere à Escola onde estávamos realizando a entrevista. Na época, lá funcionavam a 1ª 157

1960 e 1961 eu já substituía. Porque eu estudei no Padre Fidélis 110, e o Padre Fidélis tinha um curso chamado Anexo111, é, ao Instituto de Educação Padre Fidélis. Que, assim, as professoras poderiam fazer estágio e ter aula ali, então quando a professora faltava, chamava a gente, a gente fazia Escola Normal, naquela época era Escola Normal.

A Escola Normal, que depois veio a ser o magistério? Isso.

E antes da formação no magistério, na Escola Normal no Padre Fidélis, em quais outras escolas a senhora estudou? Do pré, naquela época eu fiz o pré na Escola Ganot Chateaubriand112, minha professora foi Dona Nice Bilia, e ela vive até hoje. Eu fiz do pré à segunda série, fiz na escola Ganot Chateaubriand. Aí, como meu pai trabalhava no Padre Fidélis, não chamava Padre Fidélis, chamava Ginásio Estadual de Tanabi, acho que era isso, Estadual e Escola Normal de Tanabi, papai era inspetor de alunos. Então eu fui estudar lá. Quando abriu esse curso chamado Anexo, então eu fui estudar lá, e fiz o resto lá nessa escola.

Então estudou o primário lá, na mesma escola onde depois foi fazer o curso de magistério... É, mais é da terceira série pra frente; naquela época a gente falava “terceiro ano”. Então, do terceiro ano pra frente foi lá no Padre Fidélis.

Era ensino primário? Na época... Era ensino primário. Curso Primário Anexo.

E a influência do ser professora? Foi uma escolha própria, influência da família, dos pais... Não. Foi assim: naquela época, aqui em Tanabi só tinha magistério e Escola de Comércio. Então, as pessoas que queriam continuar estudando, geralmente, faziam até os dois cursos, porque a Escola de Comércio era à noite.

Essa Escola de Comércio eram cursos técnicos? É. Era técnico de Contabilidade, e eu optei por fazer só magistério. Só que, quando eu estudei, eu prestei vestibular, desses vestibulinhos pra tudo: para entrar da quarta série (quarto ano), para o primeiro ano ginasial (primeira série colegial, ginasial), tinha que prestar prova de Admissão 113, era um vestibular. Depois, pra eu entrar na Escola Normal,

Escola Mista da Fazenda Alferes e a 2ª Escola Mista da Fazenda Alferes (dados do ano de 1966). A professora trabalhou inicialmente com a 2ª Escola. Essa divisão era feita por período. O bairro rural onde a escola se localiza é conhecido na cidade de Tanabi por Bairro do Sapé. 110 Hoje na cidade de Tanabi é a Escola Estadual Padre Fidélis. 111 Na época em que a professora fez o Curso Normal, funcionava o Curso Primário Anexo junto ao Instituto de Educação Padre Fidélis, na cidade de Tanabi. 112 Hoje na cidade de Tanabi é a Escola Municipal Ganot Chateaubriand. 113 Prova de admissão – Era uma prova de acesso do curso primário ao ginasial instituída pela Reforma Francisco Campos (Decreto 19890 de 18 de abril de 1931). Era uma prova composta por perguntas de Português, Aritmética e Conhecimentos Gerais. No mês de agosto, estando no quarto ano, o aluno já tinha a opção de fazer o Curso Preparatório Particular ou então cursava o Quinto Ano, para se preparar para a Prova de Admissão. Isso a professora conta que acontecia na década de 1950. Depois tinha o vestibular para ir do 158 tive que prestar outro vestibular.

Mas isso devido ao número de vagas? Que era limitado? É, porque começou antigamente, tinha poucas pessoas que queriam estudar; aí, depois, houve mais procura, então tinha que fazer isso. E cada vez que eu tinha que prestar um vestibular, eu empacava. Eu não queria continuar, eu achava maçante ter que estudar. Mas o meu pai sempre quis que eu estudasse, e ele exigia, não me batia nem nada, mas ele fazia e minha família inteira - meus tios de São Paulo - vinham conversar comigo, todo mundo. Aí eu aceitava: “Tá bom, vou continuar estudando, mas só que eu não vou estudar pra prestar vestibular”. Só que eu sempre tive muita sorte, eu prestava e passava. Então aí eu continuava estudando. Fiz Escola Normal durante três anos; depois, ao me formar, em 1963, tinha um Curso de Aperfeiçoamento114, que foi muito bom, foi excelente. Foi durante um ano, em 1964, eu substituía pela manhã, no Ganot Chateaubriand, como substituta efetiva115, e à tarde fazia esse Curso de Aperfeiçoamento, que eu acho que valeu até mais do que a Escola Normal que eu fiz, foi muito bom.

Era um curso bem voltado para a prática de sala de aula? Era Ensino de Didática da Língua Portuguesa e Didática da Matemática, do Ensino da Matemática.

Lembra de algum professor da época? Nossa, lembro demais de uma professora.

Eram professores que vinham de fora, da capital? Essa professora, que ministrou esse curso, ela fez Unicamp, ela era excelente, era maravilhosa.

Então os professores vinham de outras cidades, e esse curso era montado na cidade de Tanabi? É. A professora era a dona Maria Helena de Matos 116. Até uns cinco anos atrás ela ainda dava aula, só que em faculdade, aqui em Rio Preto. Ela era uma professora tão boa que o que ela me ensinou na época, me ensinou não, que ela nos ensinou, é atualidade até hoje, é incrível, mas é verdade!

Teve outro tipo de trabalho antes da sala de aula? Esse foi o único, o primeiro trabalho que a senhora exerceu na vida, não trabalhou em outro campo...

Ginásio ao Curso Normal. 114 O Curso de Aperfeiçoamento, segundo a professora, foi criado em 1962 ou 1963, não durou muito. Tinha vestibular. 115 Substituta Efetiva ficava na escola de plantão. Quando não tinha aulas, ajudava em trabalhos administrativos. Ganhava o dia que dava aula. Isso foi nos anos de 1964, 1965, 1966, 1967. Ingressou como efetiva em 1968 e, durante os anos de 1968 e 1969 ficou em uma escola no bairro Carrilho, no município de Cosmorama. 116 Segundo a professora Maria Cecília, a dona Maria Helena de Matos era efetiva na Escola Normal de Tanabi e dava aulas de Didática no Curso de Aperfeiçoamento. Também lecionou na Faculdade e Colégio Dom Bosco, na cidade de Monte Aprazível e na UNORP - Centro Universitário do Norte Paulista, na cidade de São José do Rio Preto/SP. 159

Não...antes disso, o meu pai, além de inspetor de aluno, ele tinha uma cantina na escola. Então eu morava perto, eu ajudava na cantina, vendia, fazia salgadinho, depois eu só trabalhei como professora.

Antes do casamento ou depois, a renda do trabalho como professora era importante para a família? Olha, vou ser sincera, eu me casei antes de me formar. Como meu pai adquiriu uma cantina num clube e meu noivo começou a implicar, então ele falou: vamos nos casar, porque assim você não precisa ajudar seu pai nesses bailes aí. Então eu casei, seis meses antes de me formar. Me casei em 9 de julho de 1963, e me formei dia 19 de dezembro do mesmo ano. Nessas alturas, quando eu me formei, eu já estava grávida, no comecinho, mas estava. Aí fiz o Aperfeiçoamento. Bom, na época o dinheiro, para mim, não era tão importante, o professor ganhava super bem, mas na época eu não tinha filho. Então o que eu recebia foi só para o supérfluo, por exemplo, não tinha carro, aí ia juntando dinheiro para comprar carro - você vê - em 1963, 1964, 1965 quase ninguém tinha carro, então isso era supérfluo, agora isso é uma necessidade, mas na época não era. E comprar roupa, porque, inclusive eu demorei para ter filhos, quando eu tive essa criança que eu encomendei, que nasceu quando eu estava fazendo Aperfeiçoamento, faleceu, então fui ter filhos só três anos depois; então aí é que começa a ter os gastos maiores.

Esse foi o primeiro Curso de Aperfeiçoamento, existiram outros? Olha, eu fiz muitos cursos, fiz outro Curso de Aperfeiçoamento, eu tenho até aqui o certificado de capacitação, muitos de capacitação eu tenho117.

Que eram oferecidos pela Secretaria de Educação? Pelo MEC, e agora eu tenho vários oferecidos pela prefeitura de São José do Rio Preto, prefeitura de Tanabi, prefeitura de Mirassol, porque aí o ensino começou a ser, nessa segunda parte, municipalizado, e eu fiz especialização. Depois já veio a educação infantil: fiz pós-graduação e esses cursos de capacitação.

E esses cursos em algum momento, de 1970 a 1980, eles traziam novidade? Falando em Matemática ou Língua Portuguesa. É, novidade, assim, sempre tem, viu? Eu acho que nenhum curso tem coisas que não são importantes, tudo é importante, e sempre alguma coisinha você aprende, mas acho que é muito importante você estar assim, como fala, acho que tem um termo novo, eu esqueci... reciclando, é isso. Tem que tentar, porque a gente sempre aprende coisa nova ou então revive, você está entendendo? Um curso que eu fiz, mas foi atualmente, faz dois anos, chama Pró-Letramento 118, é de Matemática, mas olha é aquilo lá do Pró-Letramento foi o que a dona Maria Helena me ensinou em 1964, que a maioria dos professores não sabe essas coisas, foi um bicho de sete cabeças para minhas colegas que fizeram, porque elas ensinam Matemática tudo errado, do meu ponto de vista, eu, como eu sou “dona da verdade” (a professora sorri dessa situação), foi um choque de tratamento para os professores, pra mim não, era tudo aquilo lá que a professora Maria Helena de Matos

117 A professora me mostrou alguns certificados dos cursos que ela realizou. 118 O Pró-letramento foi um programa de atualização docente, ofertado pelo MEC em parceria com 21 Universidades públicas participantes, ocorrido nos anos de 2008, 2009. 160 ensinou.

E a dona Maria Helena de Matos em algum momento citou Matemática Moderna, por exemplo? Essa palavra lembra alguma coisa? Matemática Moderna foi depois, foi aí que vieram os conjuntos, certo? Agora eu não me lembro, eu gravei muito da dona Maria Helena, sabe que foi, foram as operações, operações, ah... como ensinar os números e outra coisa que eu não sei falar direito, número ou numeral, que sei que tem diferença do número e do numeral, mas foi um número, esses vários números, ah... eu sei que eu gravei muito tabuada e os problemas, isso aí. Agora, os conjuntos, eu não me lembro se ela citou, vou ser sincera, porque eu joguei meus cadernos; se ela deu aula sobre conjunto, foi uma coisa que não me interessou muito. Eu dei conjunto para os meus alunos, agora é capaz que ela deu, sim, porque como que eu sabia que era o conjunto vazio, sem..., deu sim conjunto, ela deu a noção de conjunto, sim.

E ela citava algum autor de livros? Não me lembro, naquela época, não me lembro, não me lembro...

Osvaldo Sangiorgi, lembra alguém? Era, como é que ele chama? Como era o apelido dele? Meus livros eram do Osvaldo Sangiorgi, mas ele tem um apelido, era um escritor, não é apelido, é um... Como é que é, quando é escritor?

Um pseudônimo? Não sei dele... Sim, Osvaldo Sangiorgi, inclusive o papai fazia... naquela época ele fez uns cursos de Recursos Humanos, porque ele era inspetor de alunos, foi com Osvaldo Sangiorgi, ele deu Matemática nesse curso. E os nossos livros eram todos de Osvaldo Sangiorgi.

Mas porque seu pai foi fazer curso com Osvaldo Sangiorgi, ele também era da área de educação? Ele era inspetor de alunos.

Malba Tahan é o pseudônimo que você tá pensando? Malba Tahan, é ele... Osvaldo Sangiorgi. É o homen que pensa...

O homem que calculava? É o homem que calculava.

Mas Malba Tahan é Júlio César de Mello e Souza. Não é o Osvaldo Sangiorgi?

Não. É o Mello e Souza. Eu não acredito.

É porque os dois foram muito fortes na Matemática, pode ser por isso. Mas Malba Tahan, você o conheceu? Olha, eu conheci por fotografia o Osvaldo Sangiorgi, porque papai tem a fotografia com ele, não sei se está na minha casa, se está na casa do meu irmão. 161

Mas a vida no magistério, a escola aqui do bairro do Sapé, por exemplo, foi uma das escolas isoladas. Existiam outras? E em quais a senhora lecionou? Eu só lecionei, quando eu ingressei. Assim, efetiva, ingressei no município de Cosmorama119, Escola Mista da Fazenda Carrilho, lá lecionava para 2ª e 3ª séries, tudo na mesma sala. Porque a professora anterior, que ao mesmo tempo dava aula comigo, ela preferia pegar 1ª e 4ª séries, porque os alunos da 4ª série ajudavam a tomar leitura das crianças da 1ª série, essas coisas, sabe. Então, eu dava aula para a 2ª e a 3ª séries. Eu dei aula lá em 1968 e 1969.

E Cosmorama pertencia ao município de Tanabi? Não120. Antes, desde 1964, eu dei aula no Ganot Chateaubriand, lá eu era substituta efetiva. Substituto efetivo era assim: a gente dava o nome lá na escola, por ordem de chegada, então quando precisava chamava a gente e a gente ia, só que já efetiva, do Estado, mas não era assim, como concurso, não era concurso. A gente ganhava só o dia que trabalhava, assim com aluno, ou seja, os professores faltavam, então a gente dava aula, e aí a gente ganhava aquele dia, não era por hora, eles falavam que era pelo dia, certo? E naquela época, por exemplo, um dia que não tinha falta de professor, você tinha que ficar lá na escola, você tinha que marcar o ponto e não ganhava nada por isso. Assim, a gente ajudava na escrituração da escola, porque era tudo manuscrito e não podia ter erros, e ajudava também a fazer aquelas folhas de pagamento. Naquela época, a gente trabalhava bastante como substituta porque os professores tinham direito a três faltas abonadas por mês. Então, tinha muitos que moravam aqui em Tanabi e tinha muitos que moravam em Piracicaba, então eles resolviam faltar assim, nos três últimos dias de um mês e os três primeiros do outro mês. Ou intercalavam com feriado que às vezes tinha; intercalavam com domingo, e naquela época tinha aulas aos sábados também, dei aula aqui aos sábados, eram seis dias letivos normais na semana e eram quatro horas de aula por dia, das oito ao meio- dia.

E as escolas isoladas, necessariamente eram escolas rurais somente? Sim. Além das escolas isoladas, tinha as Típicas Rurais. As Típicas Rurais eram assim: tinha uma escola e esta era constituída de uma casa, onde morava um caseiro, daí tinha uma varanda, que ligava a uma escolinha como essa.

E aí era o fazendeiro que, de certa forma, tomava conta? Não.

Eram também, como as escolas isoladas, administradas por uma escola da cidade? É...

Só tinha um nome diferenciado que era por conta do espaço? Eu não sei, naquela época, eu acho que tinha. Eu acho que quem escolhia essas

119 O município de Cosmorama/SP dista 24 quilômetros de Tanabi/SP. 120 Cosmorama era distrito do município de Tanabi e foi elevada à categoria de município com a denominação de Cosmorama, pela Lei Estadual nº 233, de 24 de dezembro de 1948, desmembrado de Tanabi. Disponível em: http://www.cosmorama.sp.gov.br/historico.html. Acesso em 20/10/2011. 162 escolas Típicas Rurais, eu não sei se já tinham feito um curso específico com esse pessoal que veio de Piracicaba, eu acho que como lá tem a ESALQ devia ter algum curso, sabe?

Então existia um grande número de professores, que se formaram lá em Piracicaba. Era faculdade na época? Ou também Curso Normal? É, então, só tinha Curso Normal121, mas eu também estou achando, estou imaginando, que na Universidade veio a aparecer algum curso assim, tipo rural, para os professores que lecionassem na zona rural, seria um título, uma especialização. Então tinha aqui, lá no Córrego do Meio, perto de Ecatu tem uma, no Malhador tem outra e deve ter mais alguma outra, não tinha muitas122.

Será que elas existem ainda?

Escola Mista do Bairro da Goiaba, município de Tanabi/SP, 2010. Foto do acervo pessoal da pesquisadora.

Eu acho que sim, principalmente a do Isamu Fugiahara123, que é aqui em Ecatu, acho que tem. E tinha essas escolas isoladas e eram várias. Aqui pertinho assim, tinha a Goiaba 124 (foto acima). Aqui que era a Alferes, essa escolinha aqui chamava Fazenda Alferes. Tinha no Coqueiral125 que era aqui da casa da professora Regina. Tinha no Joaquim Alves 126. Tinha lá no Durval Vargas 127. Aqui tinha um monte de escolas, porque o município de Tanabi é muito grande, é um dos maiores do Estado, então tinha muitas Escolas Rurais.

Quando essas escolas começaram a ser instaladas aqui na zona rural, as escolas isoladas? Olha, não me lembro128. Porque quando eu fiz Escola Normal, 1960, por aí, já

121 Escola Normal Típica Rural de Piracicaba oferecia formação específica para trabalhar em Escolas Típicas Rurais. A professora Maria Cecília não cursou. 122 Ecatu é um bairro do município de Tanabi; sua localização é distante da cidade. Malhador pertence ao município de Tanabi. 123 Era o nome do Fazendeiro. 124 A professora se refere a uma outra escola que se localiza próximo da escola onde estamos realizando a entrevista. Era a Escola Mista do bairro da Goiaba. Pertencia ao município de Tanabi. Dados do ano de 1966. 125 Escola Mista da Fazenda Coqueiral, município de Tanabi. Dados de 1966. 126 Município de Tanabi. 127 Município de Tanabi. 128 De acordo com os documentos que pesquisei na Escola Municipal Ganot Chateaubriand, há registro de 163 existiam. Agora, antes disso, eu acho que já existiam também, só que eu não sei precisar. Mas também não é muito antes, porque eu tenho parentes que se formaram na década de 1950, e foram dar aula super longe, num município super longe. Que eu não sei falar, se é na Mogiana, no Vale da Ribeira, Vale do Paraíba, porque por aqui não tinha escolas para eles darem aula. Eu estou achando que mais antigamente só tinha essas Típicas Rurais, depois que foram formando as isoladas.

Em meados de 1950, 1960, deve ter sido assim... Depois da formação da cidade, as Escolas de Comércio, e as primeiras escolas começaram a ser instaladas... eu tenho até uma foto da escola Padre Fidélis... Você tem mesmo, essa foto é recente. Porque eu estudei nela também, mas em 1964, quando ela foi inaugurada. Foi no meu aperfeiçoamento que ela foi inaugurada...

Ela foi inaugurada tal como está na foto?

Instituto de Educação Padre Fidelis, onde funcionou o curso Normal a partir de 1964, em Tanabi/SP, (sd). Foto do acervo pessoal da pesquisadora.

É isso. Porque a outra em que eu estudava chamava Padre Fidélis também, mas era onde é a Fundação hoje129, começou lá e era Escola Normal, depois passou para Padre Fidélis.

Falando um pouco das escolas isoladas, qual era a estrutura da escola, a organização da classe, das séries. Quando eu vim para essa escolinha aqui, por exemplo, só tinha duas janelas de madeira, pequenas, era super escuro. Eu achava um absurdo, porque a escola anterior em que eu estive, no Carrilho 130, era tudo vitrô e bem clara. Então eu lutei, eu sempre fui uma pessoa assim, muito idealista. Eu lutei muito na prefeitura até eu conseguir uma reforma.

Escolas Rurais criadas por Decreto de 22 de março de 1935. 129 A professora se refere ao outro prédio onde começou a funcionar a Escola Normal, que hoje é a Fundação Educacional de Tanabi, uma escola particular. 130Escola Mista da Fazenda Carrilho, no município de Cosmorama/SP. 164

Vista lateral da escola que mostra os três vitrôs. A porta foi colocada recentemente - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto do acervo pessoal da pesquisadora.

Aí colocaram os vitrôs. Ficou só alguns anos com a janelinha pequeninha, viu? aí eles colocaram esses três vitrôs...

Imagem da lousa (frontal) - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

E como só tinha uma lousa aqui na frente, horrível, eles fizeram uma do outro lado. Porque, como a gente dava aula para 1ª, 2ª e 3ª séries, ou então 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries, você precisava de uma lousa para uma série e outra lousa para outra série; você tinha que passar muita coisa para eles não ficarem sem fazer nada131, certo?

131 A lousa era bastante usada, pois os alunos não tinham livros. 165

Imagem da lousa (lateral) - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

Porque, ao mesmo tempo, a gente tinha que fazer merenda, você tinha que dar aula para 1ª série, 2ª série. E, por exemplo, teve uma época que eu dei aula na Goiaba 132, eu dava aula para 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries tudo junto e tinha que fazer a merenda. Então você tinha que passar bastante coisa na lousa. E nessa época (que) eles reformaram aqui, eles fizeram a cozinha, aqui não tinha, eles fizeram a cozinha e a varanda, senão teria que cozinhar aqui dentro mesmo. Quando eu cheguei aqui nessa escola, tinha 35 alunos, divididos entre 1ª, 2ª e 3ª séries. Já eram crianças maiores, 14 anos; eu tinha um pouco mais, já tinha uns 22 anos, meus alunos só eram um pouquinho mais novos do que eu. Tinha alunos bem grandes. Aí, com aumento das crianças, então começou a funcionar de manhã e à tarde. Aliás, essa escola já tinha funcionado de manhã e à tarde. Depois parou, só era um período, aí voltou a ter essa emergência e passou a funcionar de manhã 1ª e 2ª, ou 3ª e 4ª séries e a tarde outras duas turmas133.

Em algum momento da aula essas diferentes turmas tinham atividades comuns? Sim. Muitas atividades comuns, tipo: 1ª e 2ª séries já era mais difícil, mas a parte de Estudos Sociais, de História e Geografia, Ciências, Artes, isso aí era tudo junto, isso já dava aula para todo mundo, mas na hora de fazer a avaliação, era mais profundo para as séries mais avançadas. Agora, Português e Matemática, na 3ª série e 4ª série, eu dava junto, podia ser a mesma coisa, porque era a mesma matéria, só que mais profundo na 4ª série, mas era a mesma coisa. Então esses alunos da 3ª série eram privilegiados, porque quando eles faziam a 4ª série, eles eram excelentes alunos, porque já tinham visto, eles eram bem adiantados.

E como eram esses alunos? Eles vinham das redondezas? Vinham. Tinha gente que andava mais de 6 quilômetros para chegar aqui. Às vezes vinham andando, tinha aluno que vinha a cavalo, tinha aluno que chegava aqui de braço quebrado, rodando assim ó - a Zuleine, irmã do Erlos, ela quebrou o braço 134. Eles

132 A professora trabalhou na Escola da Goiaba nos anos de 1983, 1984 e 1985, no período da tarde. Em outro período, dava aulas na Escola do Sapé. 133 Nas décadas de 1950 e 1960, existiam a 1ª e 2ª Escola Mista da Fazenda Alferes funcionando. No ano de 1976, aparece somente a Escola Mista da Fazenda Alferes, que segundo consta nos documentos, em novembro de 1976 aparece como EEPG (Isolada) da Fazenda Alferes. Segundo a professora, na década de 1980, pela demanda de alunos, volta a funcionar em dois períodos. 134 A professora se refere a uma aluna que estudou na Escola do Sapé. Eu a conheci, pois eu também morei 166 vinham caminhando ou a cavalo, ou de bicicleta, eram poucos alunos que moravam perto, a maioria morava longe. Outros vinham comigo; a Maria José vinha comigo, não sei se a Rita135 veio, as crianças geralmente vinham comigo, quando eles moravam na beira da estrada. Até o inspetor ficava bravo: “e se te acontecer algum acidente? Você é responsável...” Mas, graças a Deus, nunca aconteceu nenhum problema.

E aí, inspetores de ensino, inspetores de escolas, já existiam? É. Inspetores de alunos existiam na cidade. Para ajudar a olhar os alunos, olhar no recreio. Agora, tinha naquela época o Supervisor de Ensino, que se chamava Inspetor de Ensino. Esses vinham aqui nos visitar, nas escolas isoladas, vinham sempre para ver como é que estava funcionando, vinham ver. Eles ficavam a manhã inteira com a gente e conversavam com as crianças, viam o material escolar, planejamento, eu já estou meio esquecida, mas a gente tinha um livro que a gente comprava na livraria que era o que era para dar; vinha englobado todas as séries, aquilo lá que você tinha que desenvolver durante o ano, só que eu esqueci o nome daquilo lá, preciso perguntar para minhas amigas, se aquilo era um manual. A gente se formava e o professor já falava: vocês precisam comprar esse livro136.

Era tipo um PCN que a gente tem hoje? Um parâmetro curricular? É, não sei, só que era um livro “grossinho” e pequeno, viu? Bem básico. Não davam uns exemplos, era aquilo lá, é mais ou menos o tipo do PCN mas...

Mas era em nível nacional, municipal, estadual... Eu não sei se era estadual, parece que era estadual, você tinha que comprar. E depois, isso é quando eu iniciei, aí depois eu peguei uma época que teve ênfase no ensino rural, então havia apostilas, que até pouco tempo eu tinha, mas eu joguei fora, que era só sobre Ruralismo 137, sobre assim, da terra, sobre gado, sobre horta, sobre tudo... inclusive, era tipo de um ciclo, com todas as matérias. Tinha um núcleo, vamos supor - Geografia - era sobre aquilo; - Matemática - ou seja, todas as disciplinas estavam ali para trabalhar com o tema, até que é moderno isso, né? era como um tema transversal, então é isso aí. E nessa época, eu me lembro, eu ensinei na Goiaba também, a gente tinha horta nas escolas, inclusive, aqui também tinha horta. Mas essa época durou pouco esse negócio aí, porque eles exigiam umas coisas muito simples das crianças, era muito fraquinho aquilo, coisa boa, muito válida, foi a época daquilo, como chama? Curva de nível, para aproveitar melhor o solo, sabe? Foi essa época. Aí depois acabou. Aí tinha, vinha um planejamento da Delegacia de Ensino, que já chamou Delegacia, depois Diretoria, não sei como é que se chama agora, se é Diretoria de Ensino, então vinha um planejamento geral138. Aí depois a gente se reunia, para fazer o planejamento por mês, mês a mês. Inclusive nós, professores, nessa época, não éramos muito criativos, porque a gente tinha que fazer tudo a mesma coisa, está entendendo? Então neste bairro. Neste momento, a professora faz o movimento para demonstrar como ficou o braço da aluna. 135 Essas duas alunas a que a professora se refere, são as minhas irmãs. 136 A professora diz que em 1964 tinha esse Manual com tudo, não tinha atividades. 137 Em 1965 ou 1966, na Escola da Goiaba foi adotado o Ruralismo, com assuntos referentes à vida no campo aparecendo nas aulas e também no jornalzinho escolar (por exemplo: tinha que fazer horta, falava-se sobre curva de nível, leite, ovos...) tinha todas as matérias. Era interdisciplinar. 138 A professora diz que isso foi em meados do final da década de 1960. 167 a gente não era tão criativo. Eu acho que o pessoal agora é mais criativo. Apesar de eu ser meio, sempre fui meio revoltadinha, eu nunca segui muito à risca essas coisas assim. Mas é isso aí.

E nessa questão desse tema, que a gente pode até chamar de um tema transversal da época, a questão da educação rural, existia um interesse por parte do Estado, ou até mesmo do município, de que essas crianças fossem disciplinadas para viverem depois em comunidades rurais? Então, olha a gente... foi uma época que a gente, foi na época da Ditadura, a gente não era muito politizada, a gente não podia pensar muito: “Por que estão dando isso, hein?” A gente não se questionava, porque a gente podia falar tão pouco, eu mesmo nunca me questionei por que. Só sei que tinha nessa época, ou mais pra frente, não sei, tinha aquela do “Plante que João garante”, o presidente da República, João Figueiredo, que é da época da Ditadura, o último, acho. Ele falava “Plante que o João garante”, ele falava para o povo do sítio plantar, que ele garantia o financiamento no banco, e foi na mesma época 139. Só não sei se essas apostilas vinham a nível nacional ou estadual.

Bom, a merenda, a senhora já comentou que muitas vezes era feita na própria escola... É, toda a época que eu dei aula, foi na própria escola 140. E inclusive quando eu vim pra cá, aí tinha um fogãozinho a lenha, mas era ruim cozinhar no fogão a lenha. Então, fizemos... Tinha a APM e eram eleitos os pais das crianças, e a gente fazia muitas campanhas, nós fazíamos muitas quermesses, e fazíamos rifas, e nossa quermesse era tão boa aqui, o pessoal colaborava tanto, que essa escola foi a primeira escola a ter fogão a gás141. Depois, na década de 1990, aí, não sei se foi o município ou se foi o Estado, já começou dar fogão a gás, mas aqui nesta escola quem comprou fomos nós, professores e pais. Compramos fogão a gás com uma cota de dois bujões, olha, e as crianças tinham a merenda. A gente comprava também todo o material para os alunos, e não era caixa não, porque antigamente tinha caixa, era só pra quem precisava, esse não, era para todas as crianças.

Caixa? Falava Caixa “essa criança é da caixa” 142. Eu até morria de dó, porque sabe... aí não tinha APM. A escola dava uns caderninhos, o Grupo Escolar dava uns caderninhos

139João Figueiredo foi Presidente do Brasil de 1979 a 1985 e o último presidente do período da ditadura militar. Não tem ligação com o jornal do Ruralismo, a que a professora se referiu, pois esse foi anterior, teria sido publicado na década de 1960. Ele lançou em 1982 um programa de incentivo à agricultura, que tinha como slogan “Plante, que o João garante”. Esse programa foi criado pelo ministro do Planejamento, Delfin Netto mas não obteve o sucesso esperado devido a uma grande recessão internacional que impedia a obtenção de empréstimos. Embora a agricultura tenha se modernizado, muitos agricultores quebraram esperando um empréstimo que nunca veio. 140Teve início em 1968 no Carrilho. Até 1986 era feita na escola, na Escola do Sapé tinha a Shirley (também colaboradora desta pesquisa) que colaborava e ganhava pela APM (com fundos arrecadados em quermesses), e assinava recibo. 141 O fogão da escola do Sapé foi comprado em 1970 ou 1971. A professora Maria Cecília trabalhou lá até o ano de 1986. 142 A Sede mandava o material para as crianças cadastradas na “Caixa”. Quando começou a APM, eles compravam materiais para todos os alunos. 168 fraquinhos, então só as crianças bem carentes que recebiam esses cadernos, crianças que não podiam comprar, e nem lápis, nada. Aí com a APM, não tinha essa diferença, tanto rico como pobre ganhava o caderno, só se o pai não quisesse que o filho ganhasse, mas eu me lembro que eu comprava aquele monte, inclusive era encapado como esse daqui... (mostra o caderno que estávamos consultando na entrevista). Estou extrapolando, né?

Ah, desse daqui que eram cedidos pelo governo do Estado. (falo isso olhando o caderno que estávamos consultando na entrevista)

E as matrículas? Como eram feitas? As matrículas? Eram feitas na própria escola, tinha um período de matrícula, a gente começava a fazer a matrícula 143. Você sabe que eu não me lembro, acho que era no fim do ano, tenho a impressão que era no fim do ano que a gente fazia, ah sim, claro, para formar as classes. Tinha uns cadernos, esse daqui não era da zona rural, é da cidade, caderno de matrícula, a gente fazia matrícula. Essa letra aqui não é minha, eu fiz mais pra frente. (faz esse comentário mostrando o caderno de matrículas que ela trouxe para a entrevista) Aí a gente colocava o nome do aluno, a data de nascimento, profissão, religião, o nome do pai, da mãe, a profissão, certo? A gente entregava isso daqui na escola sede, no Grupo Escolar, que fosse sede; aí eles passavam para o papel deles, mas a escola tinha isso daqui. Assim como nós tínhamos um caderno de registro de quantas carteiras, quantas cadeiras, quantas mesas, quantos armários, certo? Tipo um inventário, de tudo que tinha na escola.

E aqui na época então, o colégio João Portugal, era o Grupo Sede144? Não, não era. Aqui a Sede era o Ganot; é que eu fui pra lá em 1986, quer dizer, olha aqui, aqui já sou eu, aqui é a minha letra, então aqui já é matrícula no João Portugal 145. Mas aqui na zona rural, tinha a mesma coisa, e lá no Ganot só infantil que era feito assim, no Ganot não, no João Portugal, só infantil que a professora fazia matrícula, o resto era feito tudo na secretaria da escola.

Ah, na secretaria, eu entendo... Esse livro aqui eu trouxe por causa disso... que era igual da... (se refere ao livro usado nas escolas dos sítios).

E assim, existiam, muitas vezes, até quatro séries no mesmo espaço. Como era feita a divisão das disciplinas? “Hoje eu vou... ensinar Ciências, ou a gente vai trabalhar com a Matemática...”, quem administrava isso, o próprio professor? A gente tinha que ter um horário fechado, assim, no nosso diário, tinha que fazer diário, todo dia que você ia dar aula. Então é o seguinte, você tinha que dar diariamente Língua Portuguesa, e todo dia Matemática. Aí, geralmente, a gente não dava assim,

143 Fazia matrículas na escola, no sítio, na década de 1960, 1970 até 1986. Fazia no sítio, mas o livro permanecia na Escola Sede, na cidade. 144 Algumas escolas rurais do município de Tanabi tinham como Sede a Escola João Portugal. Outras escolas tinham como Sede a Escola Ganot Chateaubriand. 145 Ainda se referindo ao livro de matrículas que ela trouxe para a entrevista. 169 completamente de acordo com o horário, antes do recreio, a gente dava Português e Matemática, principalmente Matemática porque a criança estava mais descansada, então a gente achava que era melhor, então dava Matemática e Português. E depois do recreio, aí a gente dava História, Geografia, Ciências, Artes aí, era isso aí.

E a rotina, avaliação, atividades de classe. Qual era essa rotina? A rotina, todo mês a gente tinha que fazer uma avaliação mensal. Aí, depois, a gente somava no fim do ano. No meio de ano tinha uma prova mais... a gente falava “exame”, que era mais, tinha mais valor, com maior peso, no meio do ano e no fim do ano. Aí a gente somava as notas e dividia e dava as médias.

Tinha muita repetência? Tinha. Judiação. Não era tanto, mas agora a gente vê que as crianças repetiam aquela época. Gente, eram muito melhores que os melhores de agora, sabe. É, então, eu acho assim, havia sim repetência, não era demais, não, mas tinha. E eu tinha um dó de repetir aluno que Nossa Senhora...

E qual era a diferença de idade, do menor para o maior que ficava na mesma classe? Não tinha muita diferença, quando era a 1ª. Ah, a cavalgada... 146 De 1ª a 4ª série, tinha lá na Goiaba. Eu tinha um aluno, por exemplo, de 14 anos e tinha criança de 6147.

E alunos que tinham muita deficiência? Tinha, tinha, mas a gente naquela época, não é como agora é... aquelas crianças com deficiência, tipo Síndrome de Down, paralisia... Nestes casos, o pessoal nem ia à escola, eles viviam em casa, reclusos, coitadinhos. Então, não tinha essa, como é que chama?

Inclusão? Inclusão. Então, eu tive vários alunos que eram DM, sabe, que tem aparência assim... mas que não aprende nem... dislexos. Só depois que a gente foi estudar melhor e fomos ver que essas crianças eram dislexas, que eram... Tinha, por exemplo, aluno que era maravilhoso em Matemática, péssimo em Português, outros que eram maravilhosos em Português e péssimos em Matemática. Então são diferenças individuais, que agora são respeitadas, na época não eram respeitadas, por isso que repetia alunos, coitadinhos, tinha mais repetência por isso.

Se não atingisse média em Matemática, por exemplo, poderia ter atingido uma média maravilhosa em outras disciplinas, ele repetia, aí tinha que fazer de novo... Por fim, eu fazia assim, eu achava muito importante Língua Portuguesa e Matemática. Aí eu via como tinha sido mais ou menos, aí eu passava.

146 Neste momento, uma cavalgada estava passando na beira da estrada. Como estávamos dentro da escola realizando a entrevista, pudemos ouvir o barulho dos cavalos passando. 147 Isso em 1983, 1984 e 1985 quando ainda estavam juntos alunos ingressantes e repetentes. Em meados do ano de 1975 foi normalizado, estabelecendo-se a idade das crianças entre 7 e 10 anos. 170

Fazia uma avaliação geral? É.

Bom, falamos das escolas, das aulas, agora vamos entrar um pouquinho mais na Matemática. Como eram introduzidos os números? Os números eram introduzidos, assim, a maioria, até hoje, eu vou falar como é que é, depois eu vou falar como eu faço. Eu chegava na escola, o professor fazia assim ó, 0, 1, 2, 3.... até que a pessoa memorizava, agora a Dona Maria Helena Matos nos ensinou assim: que o primeiro número a ser ensinado era o 1, tudo no concreto, então você trabalhava. Olha, para ensinar até o 9, eu demorava uns dois meses, porque tinha crianças que vinham que não tinham visto um lápis na frente, não é como agora, qualquer criança já viu um lápis. Não, as crianças nunca tinham visto um lápis, eles pegavam um lápis como se fosse uma enxada, rasgavam o caderno, precisa ver as mãos das crianças, vocês não acreditam. Bom, então, naquela época foi muito importante, foi muito criticada aquela coordenação motora, mas foi bom, foi muito válido, porque essa letra bonita das crianças é por causa da coordenação motora, porque então, coitadinhos, eles tinham uma coordenação fina148, né? Então a Dona Maria Helena falava assim: “vamos supor, mostra uma bola, quantas bolas tem? Uma. Então ele tinha que falar que era uma”. Pegar um lápis e você tinha que relacionar com o desenho do número, com a grafia do número e eu ensinava a grafia correta e exigia a grafia correta dos números, por exemplo: olha... sobe, escorrega (a professora, neste momento, faz no papel a escrita do número 1). Não aceitava que fizesse de baixo para cima, tinha que fazer certinho, assim como as letras, grudadinhas uma na outra. Então aí eu demorava uns dois meses para ensinar até o 9, eu não tinha pressa não, tinha pressa de jeito nenhum. Aí vamos ver agora: “quantos patinhos têm aqui?” “Um.” “Se eu colocar mais um? Ah, mais um, quantos patinhos têm? Vamos contar, ah, um, dois. Ah, então, um patinho mais um patinho, dois”. Automaticamente, já (ia) ensinando a adição e a subtração, está entendendo? “Aí se você tirar? Fica 1.” Então já ensinava o número 2, aí ia... Aí fomos até o 9, aprendemos até o 9, quando nós chegávamos no 9, era conjunto, conjunto de nove elementos. Aí, usava muito assim, patinho na lagoa, peixinho. “Ah está, veio um menininho e tirou um patinho da lagoa, quantos ficaram?” Então era a ordem decrescente, então automaticamente já ensinava. Quando chegava no 9, eles já sabiam a ordem crescente e depois já aprendiam a ordem decrescente. “Ah, então vamos tirar hoje: tem 9, tira 1 fica 8”. Aí, no outro dia, tira mais 1, quanto fica? Aí era mais rápido, quase todo mundo aprendia, tirávamos todos os elementos do conjunto, ele ficava vazio. “Ah, como é que nós vamos saber por que ele está vazio, como?” Então aí que surgiu o zero, o zero era o elemento vazio, como elemento não, como um conjunto vazio, aí que era ensinado o zero, depois do 9. Então, automaticamente, zero mais 1, 10, aí vamos para a dezena. Aí já estudava como dezena e unidade. Fazia aqueles desenhos na lousa.

Uma casa para dezena e uma casa para a unidade?

148 Segundo a professora, exercícios de coordenação motora estavam previstos em Lei. Os alunos tinham que ter dois meses para a preparação (15 dias de exercícios motores), sendo que o início da alfabetização poderia vir junto com exercícios motores. 171

Isso. E quando eu ia ensinando, eles iam escrevendo assim, 11, vamos supor, 11 é igual a uma dezena e uma unidade, eles escreviam também já, então para compor e decompor os números era facinho, e até chegar na centena e aí....

Então para começar a contar já era assim também, então vamos somar as dezenas, depois unidades, nessa ordem... Não, sempre as unidades primeiro e depois as dezenas.

E esse negócio de “vai um” já era feito assim? Então, esse negócio era feito, eu aprendi “vai um”, mas não sabia o que era esse “um”, mas meus alunos sabiam, que “vai um”, mas é que vai uma dezena.

E era feita essa decomposição? Era feita, assim. É, eles sabiam que era isso aí, uma dezena, duas dezenas, 8 mais 7, 15... 5 vai uma, uma dezena, e quando estava na coluna do meio, sabia que era dezena que ia para centena, e assim...

E olhando já esse caderno149, as operações de multiplicação, era na sequência, primeiro adição e subtração? Então, eles sempre falavam para a gente ensinar adição e já a multiplicação junto, mas eu não sei, eu não. Eu gostava de dar adição, subtração, depois a multiplicação, aí depois... Porque a multiplicação tem muito a ver com a adição, é a mesma coisa, a multiplicação é a soma de parcelas iguais. Mas não sei, eu tinha essa dificuldade, eu gostava de dar depois.

E essa nota aí? (mostrando o caderno de uma de suas alunas) Essa aluna errou tudo, olha, tadinha. Eu dei dois probleminhas, né? umas continhas, isso aqui eram continhas, três continhas, ela errou duas, já puxei um D, ela montou certinho a continha, mas errou só na multiplicação.

E, assim, eram trabalhados problemas relacionados com o cotidiano deles? Teve uma época que teve a horta... É, então, a gente fazia muito, porque os caderninhos, livros vinham super diferentes os probleminhas. Aí teve uma época150 que nós nos conscientizamos de que a gente não tinha muita noção era da rotina deles. Então a gente fazia dos canteiros, das vacas, litros de leite, cerca, tudo do cotidiano deles, mas também a gente trabalhava coisa de fora, porque e quando eles fossem para a cidade? Eles tinham que ter uma noção também, mas era mais, assim, da vida deles.

A horta dava para ensinar geometria também? Também. Não, geometria dava, dava, mas a geometria não era como agora, a geometria a gente dava lá o quadrado e falava: “esse aqui é o quadrado” está entendendo?

149 Me refiro a um caderno da minha irmã, que tinha sido aluna da professora. 150 Usavam os livros, mas com linguagem do meio rural; até mesmo os nomes das frutas tinham que ser do meio deles. Desde o início da carreira, a professora mesclava com problemas típicos do meio urbano, para que o aluno pudesse ter conhecimento da cidade. 172

Caminho Suave usava? Usava.

Ali fala alguma coisa em identifique quadrado, identifique triângulo, só com identificação? Isso.

Existiam livros, apostilas, cartilhas, que tinham que ser seguidos ou não? era livre? “ah, eu gosto de usar esse material, então eu vou usar esse”...? Ah, podia. Você tinha que dar aquela matéria, naquele mês, aí você poderia seguir qualquer material151.

Os alunos não tinham cartilhas cada um? A cartilha tinha. As crianças tinham cartilha, era “Caminho Suave”152. Durante muito tempo, depois veio “Alegria de viver” também; era só de Língua Portuguesa.

Para Matemática não existia um material específico? Tinha também, mas a gente não adotava, não era assim que a gente adotava 153.

Havia, podemos dizer assim, uma preocupação na adoção de livro de Língua Portuguesa, tido como uma base, que servia para as outras disciplinas e as outras eram trabalhadas livremente? É, porque na cidade, inclusive, os professores, as crianças tinham esses livros, Ciências, aliás eu gostava de dar o livro de Ciências, acho que eles chegaram a ter, sim, mas porque eu achava importante. Por exemplo, Ciências, História, essas coisas se você desse, se você adotasse um livro eles iam ler, certo, porque se você passasse na lousa, as crianças copiam muito errado, então eles iam estudar errado, as palavras erradas, então eu achava muito importante o livro, eu sempre achei muito importante, além do que é um material que em casa eles poderiam ler. Eu estou achando, eu não me lembro, nós tínhamos livro, sim, eu acho. Eu não lembro se nós comprávamos ou se APM comprava, ou se os pais. A gente dava os outros materiais, e falava para os pais comprarem os livros, eu acho que nós usávamos esse sistema, porque eu acho que não dava para comprar para todo mundo, então acho que era isso aí.

E até a quarta série, até onde ia com a Matemática? Quatro operações básicas? Quatro operações básicas, volume...

Entrava na parte da geometria espacial, então? Volume, perímetro, área, entrava um pouco de geometria, e as crianças tinham que desenhar, usavam réguas... E eles também, ah, dinheiro, né. A moeda. Desde a segunda

151 O método que o professor usava era livre. 152 Usaram a Caminho Suave (de Branca Alves de Lima) até final de 1970, depois surgiu No reino da Alegria (de Doracy Falleiros) usada em 1986. 153 No Grupo Escolar tinha, mas não na zona rural, onde os alunos não tinham condições de comprar. 173 série já viam moeda, mas já era mais aprofundado, mas tinha aquela coisa, como chama? Múltiplo, submúltiplo, do metro, do litro.

Ah, das unidades de medida... E tinha Ábaco, Soroban, na época? Não. O Ábaco, as crianças da primeira série, quando eles entravam aqui na escola, eu pedia para o pai cortar sabugo, pequeninho assim ó (a professora mostra com o dedo o tamanho), colocava num arame e punha.

Ficava tipo um colar? Em colar, com pedaços desse sabugo ou tampinhas.

Que serviam para contar? É, eles contavam.

E nesse arame? Tinham quantos pedaços? Pedacinhos de sabugo? Pois é, não tinha esse negócio de dezena. Dez, dez, dez, por exemplo.

O pai fazia do jeito que queria? O importante era eles contarem.

O aluno trazia para sala de aula isso? Trazia. E eu falava para eles contarem muito na mão, viu? eles contavam nos dedos, acho que não tem problema, mas nunca assim, contar os dedos dos pés assim, sabe. Por exemplo, vamos supor 6 + 7, eu falava assim ó “na tua cabecinha tem 6 ó, você já tem o seis, mais quanto você quer, sete, então mais sete. Bom eu tenho seis na minha cabeça, então mais sete. Sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze” está entendendo?

Eu me lembro dessas coisas, está na cabeça... É, às vezes eu punha até uma cabecinha, para lembrar que estava na cabeça.

Além desse material com pedaços de sabugo, existiam outros, com grãos, sementes? Tinha palitos, palitos de fósforo de casa... as crianças podiam trazer palitos de sorvete lavadinho, pedrinhas, semente de tamarindo.

Olha, semente de tamarindo... É, a gente tinha uma variedade.

E aí eles tinham isso no estojo? Andavam com eles? É, para fazer tarefa também.

E aí a gente já comentou um pouquinho do ensino de conjuntos, tem alguma coisa a mais sobre esse ensino, foi uma novidade? Foi.

Foi uma mudança muito forte? É, só que, por exemplo, agora não se fala mais em conjunto, fala? Mas é muito pouco, não é? Eu, a gente nem fala mais em conjunto, apesar que eu fiquei com o infantil, 174 trabalhei com o infantil agora. Mas assim, uma coisa mais adiantada, intersecção, sabe aquelas coisas de conjunto?

Mas aí, até quando a senhora trabalhou com o ensino primário... O conjunto teve uma época que era obrigado a ensinar. Aí depois não era mais, vamos dizer assim, na época de 1980. Parece que teve um auge, depois foi decaindo, já não era “aquela coisa”. No ensino primário teve uma época que não dava mais conjunto? Então foi o seguinte, porque aí em 1986 eu trabalhei com o infantil 154. E retornei para o ensino fundamental em 1999 aí a gente nem falava. Estava nesse auge do Construtivismo, aí o negócio ficou meio bagunçado porque ninguém sabia o que era Construtivismo, e isso também interferiu muito na Matemática155.

Falando em situações problema, assim, havia uma discussão com o aluno, umas situações problema, os erros dos alunos, eram, de certa forma, discutidos com eles? Era, era, não tanto quanto agora. Porque nos últimos cinco anos atrás eu dei aula para a segunda série, dois, três anos 156. Aí a gente fazia a interpretação do problema, eu sempre falava para eles que a parte mais importante, naquela época, eu já falava que a parte mais importante do problema era a pergunta. Eu achava assim, você tinha que chegar naquele resultado, responder aquela pergunta, então, você tinha que ler pedacinho por pedacinho. E agora, recentemente, nós começamos a ver a importância da interpretação do problema como um texto qualquer.

Sei, então isso foi uma mudança de certa forma. E como a gente percebe nesse caderno, o certo ou o errado, existia um formalismo. A criança tinha que seguir aquele padrão, fazia daquela forma, a vírgula é aqui, o número é feito assim, existia esse padrão que a criança tinha que atingir, tinha essa forma.

Existiam esses Inspetores de Ensino, que, de certa forma, trabalhavam como os nossos coordenadores pedagógicos de hoje. Existiam reuniões coletivas de professores? Existia. Tinha uma vez por mês.

Era no grupo escolar? É isso, antigamente. Aí depois na década de 1980, por aí, aí já começou a ter HTPC, HTP. A gente falava HTP, não era HTPC não. Então aí uma vez por semana a gente ia na escola sede, ficávamos reunidos duas horas por semana, pra gente....

E tinha assim, a questão de leis, que regiam o ensino, existia assim por parte do Estado, ou do próprio município, uma legislação forte que determinava o que ensinar

154 Trabalhou na Escola João Portugal (em Tanabi/SP) com a pré-escola, de 1986 até 1990 (trabalhando com o lúdico). Em 1993 prestou concurso em Tanabi/SP e trabalhou com o infantil, usando o Construtivismo, até 1998, no ensino municipal. 155 A professora teve contato com o Construtivismo quando trabalhou na cidade de Mirassol/SP, em 1999. Segundo a professora, o Construtivismo começou e não foi dado suporte aos professores, o que dificultou o trabalhou com os alunos. 156 Se refere aos anos em que trabalhou em escolas municipais em São José do Rio Preto/SP, nos anos de 2006 e 2007. Em 2001, 2002 e 2003 trabalhou com o ensino infantil em São José do Rio Preto/SP. Trabalhou também em escolas municipais em Mirassol/SP. 175 uma determinação até, assim, superior ao do Inspetor de Ensino? Tinha a Lei de Diretrizes e Bases que a gente estudou, mas não vai me perguntar o que era aquilo que eu não me lembro mais. Acho que era Federal, 5692 157, sei lá que lei, sei que falava muito dessas leis.

E dos materiais, tem alguma coisa a mais para mostrar... Então, eu consegui (a professora está pegando os livros...) um livro que é aquele muito importante, que é da Déborah (...) muito importante para a nossa época, agora esse aqui é de Português, não sei se você vai querer.

Posso dar uma olhada... Agora aqui é Matemática, olha.

Capa do livro “Português moderno”158 apresentado pela professora na entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Ah, eram as cartilhas? É, não era cartilha isso aqui, isso aqui era o livro da Déborah.

157 Refere-se à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 5692/71. 158 NEVES, D. P. M., Português Moderno. 2ª série, São Paulo: Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas, (sd). 176

Capa do livro “Matemática moderna”159 citado pela professora durante a entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Terezinha Monteiro Machado, também colaboradora nesta pesquisa.

Ah, era um livro didático. Da Matemática.

Déborah é a autora? É a autora, muito famosa, olha Déborah Pádua Mello Neves, e se eu não me engano ela era de Bauru160.

E ela escrevia tanto para Língua Portuguesa quanto para a Matemática? Para todos, Estudos Sociais, Ciências, Saúde...

Esse era um exemplar do professor? É.

Se os alunos não tivessem esses livros, essas atividades eram transcritas na lousa? Isso.

O caderno da Déborah, Português Moderno. (estava olhando o livro apresentado pela professora) Português Moderno, e tem o livro Matemática Moderna também. Aquele lá deve ser Matemática Moderna, porque tem os conjuntos (referindo-se ao livro de Matemática apresentado).

159 NEVES, D. P. M., Matemática Moderna. 2ª série, São Paulo: Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas, (sd). 160 Era usado na década de 1970; alguns alunos compravam da cidade. Os alunos do sítio não tinham. 177

Livro161 apresentado pela professora na entrevista – o livro estava sem a capa, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Capa do livro “A mágica do aprender”162 apresentado pela professora na entrevista, 1986. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

E aqui, este livro aqui 163, eu acho que era Português e Matemática juntos, mas já é mais novo um pouquinho (refere-se ao livro de Yolanda Marques, que tinha Português, Matemática, Estudos Sociais, Ciências e Saúde). Eu trouxe esses, eu tenho outros lá em casa, mas são modernos, esses aí são os mais antigos, nem são meus, foram doados para mim, para eu te entregar.

161 Livro sem a capa. Editora Ática, (sd). 162 MARQUES, Y., A Mágica do Aprender: livro integrado, 1ª série: Português, Matemática, Estudos Sociais. Ciências e Saúde. 6 ed., São Paulo: Editora Nacional, 1986. 163 Era um livro utilizado pelo professor, em meados das décadas de 1970 e 1980. 178

Outra coisa que nós não falamos, que eu acho importante, eu acho importante, é a tabuada. A tabuada eu ensinava desde a primeira série 164 e outra coisa, quando eu estava ensinando números, eu também ensinava através de reagrupamentos, agrupamento e reagrupamento, assim:  Uma bolinha mais uma bolinha é igual a... duas bolinhas.  Uma bolinha é para formar o número um.  É uma bolinha mais uma bolinha. Ou então, duas bolinhas menos uma bolinha é igual a uma bolinha.  Para formar o número dois, ou o número três, vamos supor, é uma bolinha, mais duas bolinhas, que é igual a 1 + 2. Então, fazia assim, lá no caderno: eu punha uma bolinha mais duas bolinhas, e aqui eu colocava assim, uma flechinha, e punha assim, 1+ 2 = 3

Então partia da ideia não do 1 + 1 + 1, mas do três como 1 + 2? Não, eu punha 1 + 1 + 1, 1 + 2 e 2 + 1, todas essas possibilidades 165. Por isso que eu estou falando para você - estou lembrando agora - que eu demorava uns dois meses para dar aula do um até o nove, que eu fazia através disso...

Os números eram formados a partir dos outros? É.

E a tabuada? Como era feita? A tabuada era feita por meio de conjuntos. Assim, por exemplo:  Eu tenho um conjunto aqui, esse conjunto é um. Eu vou colocar um patinho aqui - que fica mais fácil desenhar na lousa - então tem esse aqui, esse daqui é um lago, e nesse lago tem um patinho.  Quantos lagos eu tenho aqui? Um.  Quantos patinhos eu tenho aqui? Um.  Quantas vezes, quantos lagos eu tenho aqui de um patinho? Um.  Então quantas vezes eu tenho um patinho? Um.

Um lago vezes um patinho... É igual a um patinho. 1x1=1. Depois, a tabuada do 1, no caso, aí é... um conjuntinho. Então tenho um patinho, aí está ali, aí chega mais um patinho - depois se quiser que eu faça na lousa - mais um patinho, aí ficam dois patinhos, mas quantas vezes eu tenho o patinho? Uma. Então, 1x2, dois. E assim eu fazia também o contrário, eu fazia assim, e se eu tivesse dois conjuntinhos de... aí eu fazia desenhinhos, certo? Eu fazia...

Se quiser, fique a vontade... (nesse momento, a professora vai representar na lousa...) Aí, então, quer ver?

164 Desde o início da carreira em 1964. 165 Segundo a professora, esta técnica era usada para iniciar a multiplicação, explicar o que é o “vezes”. 179

Imagem da lousa, com a explicação dada pela professora durante a entrevista, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

Imagem da lousa, com a explicação dada pela professora durante a entrevista, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

O lago já dava ideia do conjunto? É, eu sempre gostava de pôr o lago por causa disso, então eu contava historinhas do patinho... aqui já falava de cor, de tamanho, ah, uma “coisarada”.  Então quantos patinhos eu tenho? Um.  Então quantas vezes um patinho? Uma, vezes um patinho, é igual a um patinho.  Aí chegou mais um patinho, quantos patinhos eu tenho? Dois.  Quantas vezes eu tenho? Continua sendo uma vez, uma vez dois patinhos é igual a dois. Mas eu fazia assim também, quer ver? Eu fazia assim, vários lagos, e conforme iam aumentando os números, quantos...  Quando tem um patinho, quantos conjuntos tem? Um. Um conjunto de patinhos é igual a um.

180

 Depois eu fazia o seguinte: uma, vezes dois patinhos, é igual a dois. E se eu fizer aqui, duas vezes dois patinhos? (não, agora eu não estou sabendo falar).

Dois lagos significava a tabuada do dois? É. Dois lagos vezes um patinho, duas vezes um patinho, duas vezes... Quantas vezes eu tenho um patinho? 2x1, dois.

Eu tenho dois lagos; em cada um deles eu tenho um único patinho, então eu tenho no total dois patinhos? É.

Se eu tivesse dois patinhos em cada lago, no total eu teria quatro? Quatro.

Essa ideia, ela já trabalha então a ideia da adição em uma linguagem da multiplicação? Eu só sei que agora na época da... eu só dava aula para segunda série, então eu já dava essa tabuada assim, eles adoravam, a gente fazia o desenhinho. E agora é caderno grande166, antigamente eram aqueles caderninhos, agora é caderno maior, então a gente já fazia e automaticamente já fazia assim: isso aqui, duas, 3x2. No caso, eu já cheguei aqui no 3x2, seis, portanto, 2x3 é seis. E seis dividido por dois é igual a três, porque 3x2 é seis, você entende?

Já trabalhava com todas as noções juntas? É, e eles adoravam isso, os alunos ultimamente a coisa que eles mais adoravam era a Matemática, e essa parte aí eles adoravam. Aí a gente já fazia até, quando já estava no três. Meus alunos já tinham feito tudo.

Porque já ia trabalhando a tabuada do três e do dois? É.

Depois do três e do quatro, cinco... Aí eles já pediam automaticamente que a tabuada do dois, vamos supor, era de dois em dois. A do três, era de três em três. Então aí eles já contavam nos dedos para chegar ao resultado. Eles adoravam Matemática.

Bom, e dos materiais que a senhora trouxe, tem mais alguma coisa? Eu trouxe uma foto pra você ver e trouxe uns certificados de cursos mais recentes, porque os anteriores eu não sei onde que eu coloquei. Aqui são fotos. Aqui do João Portugal quando eu dava aula para o pré, uma foto da formatura da turma, acho que de 1986 (infelizmente tem alunos aqui que já faleceram, você acredita? de acidente).

166 Se referindo aos últimos anos que lecionou. 181

Turma para a qual a professora lecionou na Escola João Portugal em Tanabi/SP, trazida pela professora para a entrevista, (1986?). Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Aqui já é na escola municipal de Tanabi167, na Festa da Pátria, aqui tinha uma merendeira, só que aqui já não... aqui a merenda já é feita na prefeitura, então vinha pra escola e ela servia as crianças e lavava os pratos. Aqui são as fotos aqui da escola (referindo-se à escola onde estávamos fazendo a entrevista). Essa menininha não estou lembrada quem é. Aqui é a Valdirene, você conhece a Valdirene? (respondi que conheço). A do Jé Elias, qual delas que é, não sei, das mais novas. O Marquinho, filho do Zezinho, sobrinho da Shirley. O Amarildo. O Sérgio Ricardo168.

Foto de uma turma para a qual a professora lecionou, trazida para a entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

167 Essa foto não ficou comigo e, portanto, ela não foi incluída em nosso trabalho. 168 Esses comentários foram feitos olhando para as fotos. As crianças a quem a professora se refere não são identificadas nas fotos. 182

Foto de uma turma para a qual a professora lecionou, trazida para a entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Está vendo, aqui meus filhos vinham, a Gisela, a Ludimila, a Viviane e os alunos, mesmos alunos, está vendo, aqui no Sapé 169. Aqui a privada. Aqui era o poço, está vendo? Aqui o barracão da Shirley. Aqui eram umas paineiras. Aqui a Roberta, está vendo? O outro irmão do Marquinho, o Marcelo, alunos da escola. Aqui minhas filhas...

Foto de alguns alunos da professora, turma de 1979, trazida para a entrevista. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

169 Os filhos da professora foram passear na escola no final do ano. Isso foi em 1979. As crianças não são identificadas nas fotos. Segundo a professora, na década de 1960 os alunos se vestiam diferente, na década de 1980, começou a mudar. 183

Foto de alguns alunos da professora, turma de 1979, trazida para a entrevista. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Foto de alguns alunos da professora, turma de 1979, trazida para a entrevista. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro. Ah, aqui nós fomos fazer um piquenique 170, eu sempre gostei muito de dar aulas ao ar livre (a professora sorri ao lembrar-se do piquenique) Então tinha ali, atravessando a linha férrea, tinha bastante árvores, então eu levei eles para lá, para fazermos um piquenique. Eu comprava, olha só como a gente ganhava bem, eu comprava pão, mortadela e refrigerante para todos com meu dinheiro, eles adoravam, sei lá, e olha quanta criança que tinha. E esse dia calhou que era aniversário da Dalva Cavassani. Aí nós fomos cantar parabéns.

170 Semana da Criança. Isso aconteceu em meados de 1975. 184

Foto do piquenique citado na entrevista, 1975. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Foto do piquenique citado na entrevista, 1975. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Aqui já é também outra turma aqui na escola do Sapé. Toda a criançada aqui, a Célia, está vendo a Célia?171 Aqui também, olha. Esse dia, olha aqui jogando futebol perto das árvores.

171 As crianças não são identificas nas fotos. 185

Foto do jogo de futebol entre os alunos da professora Maria Cecília, citado na entrevista, 1975. Acervo pessoal da profª Maria Cecília Soccio Monteiro.

Neste campo aqui? (Referia-me ao campo de futebol que existe perto da escola onde nós estávamos) Não, lá no piquenique que eu falei, no aniversário dessa menina. Agora aqui foi quando eu lecionei em Mirassol172, aqui é uma aluna Down, que era meu xodó porque, como eu tive uma neta Down, eu protejo, eu ajudo na inclusão. Aqui são fotos da minha pós-graduação173.

(muitas fotos mostradas pela professora não estão aqui apresentadas)

Com os alunos, festa junina. Aqui tem muitas outras também, de professores, de alunos, coisas que eu aprendi, coisa que eu jamais poderia imaginar, um painel, eu fiz esse painel com a ajuda das crianças, esse aqui também, olha, e sabe... sei lá, cada vez eu acho que nós estamos aprendendo mais174. Cadê o DVD? (a professora vai pegar o CD com foto). É quando eu dei aula para o berçário. São fotos do berçário.

Podemos ver aqui no computador? Ah, você trouxe o computador? Ah, mas essa professora é demais. Então, não sei se é do seu interesse, mas... pra ver quanto que a gente aprende continuando a trabalhar. Você está sempre aprendendo, então eu tinha experiência com bebê, meus netos, aí eu fui dar aula para essa turminha, você precisa ver quanta coisa maravilhosa a gente fez e assim eu me realizando, feliz e contente, as pessoas às vezes falavam: “nossa! mas você....” Eu falava: “a mãe, a professora...” Aliás, a mãe de aluno chegava e me falava: “a minha mãe não pode ficar com meu filho porque minha mãe está muito velha, anda muito doente.” Eu falava: “quantos anos tem sua mãe?” “Ah, 46”. Eu falava: “gente, eu tenho 60 e lá vai fogo e me sinto tão bem!” Então eu acho assim, que você trabalhando, você está sempre disposta.

172 Essa foto não consta no trabalho. 173 Essa também não foi registrada no trabalho. 174 Essas fotos não constam no trabalho. 186

(Enquanto a gente aguarda carregar as fotos no computador...) Ah, outra coisa que eu quero te falar, eu nunca fui uma professora muito convencional. Por exemplo, eu sempre gostei de dar muita aula ao ar livre, Ciências é uma coisa que eu não dava. Porque você tinha que pegar uma planta, você arranca a plantinha, tem raiz debaixo da planta, tudo, os animais, tudo, a parte de Ciências principalmente, tudo dava certo assim.

Certo, e o ambiente proporcionava isso. Os animais, as plantas, quantas variedade de plantas tem aqui, então proporcionava também... E quantas coisas que as crianças daqui ensinavam pra gente também. Eles têm mais vivência que a gente. Meus alunos sabiam a que horas chegar, a que horas ir embora pelo sol que batia nas carteiras. “Professora, já tá na hora do recreio, tô com fome...”

Tinham essa vivência com os pais, sabiam a hora de acordar por causa do galo cantando... É.

Sol que estava nascendo... Tem som? (pergunta sobre o computador. Como o som estava ruim, não ligamos. A apresentação de fotos tinha um fundo musical).

Essa carteira era para dupla? (Referia-me à carteira da sala onde estávamos). Em dupla não.

Ah, essa já era individual... Essa daqui é individual.

Carteira escolar com banco retrátil, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

E tinha aquela coisa do coletivo, por que se você se mexer na sua carteira, você mexe no acento do outro aluno. É.

187

(neste momento o vídeo começa...)175

Isso é recente? 2008. Aí é minha estagiária. As crianças aí eram de 1 a 3 anos. Oh eu aí. E nós fazíamos muita atividade aqui na meleca, a gente fala meleca, é um mingau de maisena com tinta.

Nossa, as crianças se deliciavam... Nossa Senhora do céu...

Nossa, as crianças bem pequenas de 1 ano... De 1 a 3 anos. Aí é com, não sei se é saibro ou aquela massa de papel higiênico, papel machê.

Eles tinham que fazer formas? É, só que aí, coitadinhos, ficavam mais com os dedinhos. Essa daí já é outra estagiária, essa daí que passou para o CD.

Maravilha, as crianças ensinam muito para a gente, né? Nossa Senhora!

A paciência, o ter que explicar, passo a passo, o que significa. Aqui é na Festa Junina? É.

A quadrilha, delícia, hein?. (a professora sorri ao lembrar-se da festa...) Olha a foto! não quer dançar, não quer dançar com o par que escolheu.

Essa é uma escola em São José do Rio Preto? É, em Talhado176. E olha como é que são as crianças. Essas crianças aí estão olhando para a gente, mas como as crianças às vezes tomam um, olha prestando atenção no que eu estou fazendo, olha... E eles estão trabalhando mesmo, e eles fazem o maior silêncio quando olham como é que se está fazendo.

Está olhando para o que está fazendo. Olha, eles estão prestando atenção. Que gracinha, gente. Esse dia a gente pôs papel, mas depois a gente fazia isso aí no próprio azulejo, depois lavava.

Ah tá, e é bom para a coordenação motora, né? Nossa! isso é ótimo, é ótimo! Isso aí eu aprendi... está vendo, no fim eles ficavam, eles... no fim eles passavam um no outro.

Eles deviam adorar, eram quantas crianças nesta sala?

175 Vários comentários são feitos olhando o vídeo que a professora trouxe. Esse vídeo não consta no trabalho. 176 Talhado é um Distrito do município de São José do Rio Preto/SP. 188

Eram 16, chegou a ter 18. Aí é no parquinho. Esse dia... não sei se é nesse dia, acho que não, teve um dia em que nós brincamos com barrinho, porque no meu tempo de criança eu brincava muito com barro, você deve ter brincado também.

Sim, bastante. Então, mas esses daí não, inclusive a mãe não gosta muito que suja, viu.

Colocar o pezinho na terra, sentir a terra, olha essa... E essa menina que nós tiramos, ela era muito limpa, ela não se sujava de jeito nenhum! esse dia ela se sujou, extrapolou, foi... pegou gosto pela coisa.

Na hora de brincar assim, tinham atividades como separar os brinquedos das meninas e dos meninos? Olhar os montinhos de brinquedos e ver quem tem mais, quem tem menos, já essas noções de contagem? Tinha, só que naquela época a gente não tinha, assim, como é que chama aquelas coisas de madeira? Blocos lógicos, assim, essas coisas. A gente só tinha cursos disso daí, mas a gente fazia com o que tinha, sementes... Se você quiser parar o vídeo...

Não, vamos ver. Aí é uma atividade coletiva, com todos os alunos da creche. Aí com todos, com bebês. Os bebês de meses, está vendo? até de 6 anos. Usamos todos os materiais, lápis, giz de cera, tinta...

Atividades interessantes, depois na iniciação da escrita com lápis, ajuda muito, porque o pegar no pincel, ter coordenação pra pintar o que eu quero no espaço que eu quero no desenho. Essas coisas eles adoravam, gente, adoravam.

E aí desse trabalho a senhora também já se aposentou? Ou ainda continua? Infelizmente me aposentei.

Mas o ano passado a senhora trabalhava? (pergunto isso porque quando nós conversamos no ano anterior, ela estava trabalhando) No ano passado. Olha, está vendo? aí era Dia das Crianças, eles desfilaram com a roupa do papai ou da mamãe.

Ah, que graça, olha fazendo pose, tinha que ser com a roupa do pai ou da mãe? Tinha, achei tanta graça que tinha um menino aí que a mãe mandou um vestido dela, pro moleque, tudo bem... Esse menino é meu xodó, sabe? Ele tem problema, qual o problema? Não sei, até sei, mas não sei se a gente sabe tudo, né. Mas ele dá muito trabalho e ninguém... ele é muito rejeitado na escola, mas agora ele está mais..., depois da minha proteção, melhorou o ambiente para ele. E aí é piquenique, no campo de futebol.

É da escola esse espaço? 189

Não é, é o campo de futebol do bairro, mas é pertinho da escola, então a gente ia a pé. E as crianças levavam bolo, alguma coisa. Um levava bolo, outro levava biscoito, a gente dava refrigerante, precisa ver que gracinha.

Que delícia, tomando banho... Muito calor, eles tomavam banho. Esse daí é da mesma sala, só que à tarde. Essa é a estagiária da tarde.

Bom, do que foi, do que ficou anotado, tem mais alguma consideração que de repente foi importante, nessa trajetória como professora, da prática que de repente a gente não comentou, algum fato, algum... Ai, o que foi importante e hoje está sendo muito importante para mim também, depois que eu vi esse caderno aqui, o caderno da Maria José, nossa que eu vejo que... Porque é o seguinte: eu exigia número bem feito, não é por nada não, não é por causa da estética, é porque eu achava que o número malfeito, a criança depois nem vai saber se é o quatro ou o nove. Às vezes erra uma operação porque não sabe, então tem que fazer, você fazendo o número, a letra bem feitinho, é mais fácil. A letra manuscrita se você fizesse assim como é a maneira dela escrever, é uma continuidade uma da outra, não precisa truncar. Então fica mais fácil, por isso que eu achava que devia.

Tanto a escrita do número, quanto a própria letra... Tudo.

O caderno de caligrafia que existia? Então, eu não dava, não havia necessidade porque os meus alunos tinham uma letra bonita. Porque, já no começo, começava com o aluno de primeira série, já começava fazendo bem feitinho. Agora, depois do Construtivismo, já não era mais, porque tinha que aceitar do jeito que a criança faz. Com esse negócio, deixaram..., foi muito jogado. Então, foi muito jogado para os professores, eles não sabiam mais o que era certo o que era errado. Inclusive eu, quando retornei em 1999 a dar aula, eu fiquei perdida, não sabia o que era para fazer e o que não era para fazer, eu fiquei perdida. Realmente, a criança construir o seu próprio aprendizado... É a criança que constrói através do seu, da sua vida, mas não é assim, se tem que nortear. Agora que o pessoal está entrando, está caindo na real.

Então foi uma fase que..., será que a gente está vivendo consequências dessa fase? Ah, está. Uai, minha cunhada dá aulas no colegial e tem um monte de alunos semianalfabetos, que mal sabem escrever o nome. E também tem esse negócio de todas as crianças agora vão à escola, todas! Então... é importante, mas eu não sei como é que teria que ser.

Essa exigência de se ir na escola por obrigação... ou por... É, por exemplo, dessa Bolsa Escola. Isso é uma coisa que eu questiono muito, que a criança ter que ter o comparecimento. Aqui na nossa região só exige comparecimento, não exige comportamento. Então tem aluno que bate no professor, que está lá na escola, e... não o infantil, mas os maiores. Desacatam todo mundo, inclusive diretora, todo mundo, mas não faltam nenhum dia, porque não podem perder a Bolsa Escola, mas não fazem nada 190 e atrapalham os que querem fazer, eu morro de dó.

Exige, mas a exigência não é bem clara, e aí pode acarretar essa situação, esse constrangimento na escola, até para aquele aluno que, de repente, não recebe, mas que quer estar lá. É, atrapalha, atrapalha quem quer aprender, por que tem aqueles alunos bons, porque aí você fica... Será que é certo você selecionar os alunos? Assim, pôr só os mais fortes numa sala, os mais..., ou será que é bom misturar, então você fica pensando “mas se eu não mudar, se eu não misturar com todo mundo, eles nunca vão ter oportunidade de ver como é que é um aluno bom. Conviver com os bons. Mas se eu misturar também, eles vão atrapalhar...” então, você sabe, você fica numa indecisão.

Sem saber o que é melhor então nessa situação... Se você quiser parar a apresentação das fotos, pode parar, tá? (a professora referia- se ao vídeo com as fotos que estávamos vendo no computador).

São muitas fotos ainda? É, mas está acabando, eu acho, mas pode...

Quanto tempo de vídeo? Não sei, não lembro, eu sabia, não sei mais...

Ah, está aqui... está na metade Pode parar, é tudo isso aí mesmo, é só brinquedo...

Um belo vídeo, viu, uma boa lembrança... É ótimo.

Boa lembrança, um bom trabalho também com as crianças... É, então, aprendi muita coisa aí também.

Algo mais que a gente pode considerar? Aqui eu falo quando eu aposentei. Aqui eu falo sobre os concursos que eu prestei. Então aqui tem meu relato escrito, depois você pode incluir, pode ser assim, ou só o que é falado?

Eu posso ficar com esse material? Pode, pode.

Para mim vai ser ótimo... Bom, podemos encerrar então o nosso bate-papo? Podemos.

Agradeço demais a colaboração, o tempo, a atenção, a paciência em selecionar esses materiais, em trazer essas lembranças que, para mim, para minha pesquisa, são muito 191 importantes. Porque ler a respeito da época é uma coisa, mas ouvir como as coisas aconteciam é para mim muito valioso e outra forma de chegar a essas práticas, não chegar até elas, porque vai ser impossível voltar no tempo. É verdade.

Mas descobrir um pouco como tudo isso aconteceu, estar neste ambiente também onde tudo isso aconteceu, olhar para esta lousa, que é a mesma lousa da época, olhar para este espaço, para este vitrô que teve toda essa história, que era madeira, e vocês brigaram para ser este porque era mais claro e tal. Então, assim, vivenciar isso de novo, de certa forma, voltar ao mesmo espaço, isso também acho que traz muitas lembranças, até para mim, que fui aluna da escola. Então muito obrigada pela disponibilidade e que possamos ter outras conversas... Ah, e outra coisa que eu quero falar, que eu esqueci de falar, da nossa horta aqui, que a gente tinha uma horta maravilhosa 177! A Shirley que cuidava e o Clarindo, e era a minha merendeira, não o tempo todo, os 16 anos que eu estive aqui, mas grande parte desses 16 anos a Shirley foi a merendeira. Houve outras, mas ela foi há mais tempo, era merendeira, ela limpava a escola, e eu me lembro que as crianças plantavam muita coisa, inclusive o que me ficou mais na lembrança foi rabanete, que as crianças adoravam rabanete, e mostarda, cheiro verde, e outras coisas que eu não me lembro no momento, mas rabanete ficou muito, me lembrei bastante, porque ela fazia salada com rabanete. E ela pegava e aproveitava as folhas do rabanete também, porque diz que é meio peluda, mas ela cortava fininho, misturava com o rabanete, e a molecada adorava. Então ela fazia a sopa, dia de sopa, mas tinha salada, alface, tudo, e a do rabanete também, e as crianças comiam aquela salada junto com a sopa, eles adoravam, então..., ela tinha o ordenado dela 178, mas ela me fez um favor muito grande. Então a comunidade aqui desse local, é assim uma comunidade maravilhosa. Então eles colaboraram muito e espero que, bom e sei que eles continuem assim, na parte da Igreja. Eu também quero agradecer ter vindo aqui, ai adorei, adorei, porque adorei, minha... uma parte muito grande da minha vida passei aqui, então depois que eu vim pra cá eu tive três filhos, então, ah, eu adorei vir aqui, tá. E quando precisar voltar a conversar mais alguma coisa, estou às ordens.

Maravilha, agradeço. Certo.

Tempo de gravação da entrevista: 01h34min24s

177 Segundo a professora, a horta foi feita na década de 1980. Só que em 1970 já havia uma outra no mesmo local. 178 A Shirley recebia salários da APM. Isso nos 1980 a 1985. Antes dela, a APM chegou a pagar outras ajudantes. Isso começou em meados da década de 1970. 192

2. Professora Irma Rosa da Silveira Viana

Profª Irma Rosa da Silveira Viana, 2010. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 14 de junho de 2010, na escola do bairro do Sapé179, com a professora Dona Irma.

Então, para começar, fale um pouco da sua história de vida, as primeiras escolas que a senhora frequentou, ainda como estudante. Meu nome é Irma Rosa da Silveira Viana. Eu entrei na escola, na escolinha rural, Escola Mista da Fazenda Grama180, no ano de 1954.

Que era essa foto aqui? É, essa professora era de Araraquara, chamava Gláucia.

179 O local onde realizamos a entrevista é conhecido na cidade de Tanabi/SP como Bairro do Sapé. É um bairro na zona rural onde funcionava a Escola Mista da Fazenda Alferes. 180 A professora se refere à escola onde iniciou a vida escolar como aluna. A Escola Mista da Fazenda da Grama pertence ao município de Monte Aprazível/SP, que dista 18 quilômetros da cidade de Tanabi/SP. 193

Turma de 1954, da professora Gláucia, da Escola Mista da Fazenda da Grama, na qual se encontra a profª entrevistada. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Nossa, veio de longe e essa turma aqui estudava no mesmo período? É, estudava no mesmo período. Nossa, era numerosa, era carteira dupla. A gente sentava de três, porque – nossa - não cabia, não tinha água na escola, não tinha... como se diz, não tinha privada, né, naquele tempo... Quando apertava, tinha um matinho perto. A gente tinha que levar a garrafinha de água de casa, para tomar no recreio.

Então merenda não tinha? Não tinha merenda. Eu fiquei nesta escola até o terceiro ano; três anos, aí não tinha quarto ano nesta escola, precisei ir para Estrela D’oeste 181, porque a gente morava longe da escola. Aí eu fiz quarto ano e Admissão 182 - naquele tempo tinha o Curso de Admissão. Mas depois a gente veio, meu pai mudou para Tanabi, para os meus irmãos irem para escola e foi aí que eu fiz a quinta série, sexta...

Esse Curso de Admissão era para entrar no ginásio? Era para entrar no ginásio. A gente tinha que fazer um Curso de Admissão, tinha uma prova seletiva, aí eu fiz em Estrela D’oeste. Mas depois estudei em Tanabi mesmo até no magistério, até me formar. Me formei em 1964.

Fez Curso Normal? Naquele tempo falava Curso Normal.

Foi onde é o Padre Fidélis183 hoje? Foi onde é o Padre Fidélis hoje. E só tinha aquela escola na época, e tinha o Ganot184.

Que era para os pequenos? É.

Mas tinha, no Padre Fidélis uma escola de ensino primário, que as próprias estagiárias já trabalhavam... Trabalhavam, era o Curso Anexo185.

A senhora chegou a trabalhar nesse Curso Anexo? Eu dei só um dia de aula.

Na época de estágio?

181 A cidade de Estrela D’Oeste/SP dista 92 quilômetros de Tanabi/SP e fica próxima à cidade de Fernandópolis/SP. 182 Foi para Estrela D’Oeste/SP no ano de 1957. Sobre o exame de Admissão, ver a 5ª NR da entrevista da professora Maria Cecília Soccio Monteiro. 183 Hoje é a Escola Estadual Padre Fidélis, em Tanabi/SP. Na época era Instituto de Educação Padre Fidélis. 184 Hoje é a Escola Municipal Ganot Chateaubriand. 185 Curso Primário Anexo junto ao Instituto de Educação Padre Fidélis. 194

Não, não. Na época faltou um professor lá, me chamaram. A gente dava as aulas práticas. Nesse Curso Normal a gente tinha as aulas práticas, a gente fazia a parte prática do curso, fazia lá.

E o trabalho, a carreira como professora... Comecei a trabalhar em 1965, nesta escolinha aqui (mostra a foto)

Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa, 1965. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Nossa, onde fica? Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa186, fica pra frente de Ibiporanga187.

Nossa, mas a janela era só do outro lado? Então, a janela era só de cá. Quando eu cheguei na escola, até fiquei apavorada com a escola, porque tudo no mato. Aí o supervisor mandou bater uma foto, pra levar na prefeitura para ver se eles davam uma arrumadinha, então esta foto aqui foi antes da gente começar a trabalhar.

Porque depois abriram a janela... Ah não, mas a janela só do lado de cá, uma janela só de cá, de madeira. 188

Aqui também não tinha merenda? Não, não tinha. As crianças levavam de casa. Não tinha poço, não tinha água, tinha que levar de casa.

A escolha foi de vontade própria, de ser professora? Não, não era. É assim: na época, a gente - meu pai - não tinha condições de estudar a gente, estudar fora, então o curso que tinha em Tanabi na época era só o magistério. Mas eu gostava também, sabe, então eu fiz magistério, então assim naquela época a gente, a

186 Município de Tanabi/SP. 187 Ibiporanga é um Distrito do município de Tanabi/SP. 188 Não colocaram outra janela. A escola permaneceu assim por mais 2 ou 3 anos. Depois abriram uma cozinha. 195 mulher, não podia nem prestar um curso, um concurso de banco, né, banco não aceitava mulher. O Banespa 189 não aceitava mulher, então você tinha que ser professora, ou então sair fora, fazer outra coisa, enfermagem, qualquer coisa. Mas enfermagem, na época, só tinha em Ribeirão Preto, não tinha jeito, aí não tinha condição.

Então o primeiro trabalho já foi como professora? Foi. O primeiro trabalho foi como professora. E de criança eu trabalhei assim, de doméstica, de babá.

E o trabalho como professora era importante para compor a renda, antes de casada ou depois... Era importante, sim. Naquela época, assim, professor era valorizado, a gente tinha valor para os pais, era uma missão, sim, importante e assim na renda também ajudava.

E chegou a fazer outros cursos, assim depois de formada, de especialização? Eu fiz Administração Escolar em Mirassol 190, curso de dois anos, Administração de Primeiro Grau e depois, daí a um tempo, eu fiz a faculdade aí em Monte Aprazível191. Jales192 ficava muito longe, então eu fiz em Monte.

Foi a Pedagogia? É, fiz Pedagogia. Aí depois a gente tinha os cursinhos de férias, eu fazia, sempre tinha o cursinho de férias, a gente estava sempre fazendo.

Esses cursos de férias eram dados pelo Estado ou pelo Município? Era estadual. Fiz em Mirassol, fiz em São José do Rio Preto193, em Tanabi também.

Lembra de algum professor assim, que vinha de fora, um nome, alguma... Eu lembro em Mirassol, que tinha um curso de Educação Física (e) eu tinha uma professora que se chamava Lígia. Curso de alfabetização, pronúncia, sabe. Conservação do solo, aqui em Tanabi, que a Secretaria da Agricultura ofereceu, falava assim sobre erosão, curva de nível, quando começou a falar em curva de nível.

Porque aí eles queriam que passassem para as crianças isso? É, tinha até um jornalzinho que chamava Ruralismo, na época194, com instrução, com desenho, sobre assim: filtro em caixa d’água, sobre a fossa, tipo de fossa, para a gente orientar as crianças, e até mesmo fazer reunião com os pais sobre, assim é, sobre a

189 Banco do Estado de São Paulo. Foi extinto no início da década de 2000. A época à qual a professora se refere é meados de 1960. 190 No ano de 1971. Mirassol/SP dista 26 quilômetros do município de Tanabi/SP. 191 Final da década de 1970. 192 Jales/SP dista 108 quilômetros de Tanabi/SP. 193 São José do Rio Preto/SP dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 194Em 1965, quando trabalhou na Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa, tinha o jornal. Ele tratava de assuntos específicos da zona rural. Com o jornal, começou a noção de conjuntos. Continuou a trabalhar com o jornal até o final da década de 1960. Esse mesmo jornal foi citado pela profª Maria Cecília Soccio Monteiro em sua entrevista. 196 construção de fossa. A maioria das casas não tinha nem fossa195.

E eles falavam, assim, que era para eles aprenderem a lidar com o sítio, tinha assim um interesse? Falava assim, para conservar sobre rotação de cultura, sabe, tinha nesse... tipo de um jornal. Tinha História, Geografia, tudo aplicando na zona rural.

Eles tratavam todas as disciplinas com este tema? É.

E era do Estado? O jornal vinha do Estado? É, era do Estado.

Em que ano, mais ou menos, isso? Já foi quando eu estava na Barra Mansa, foi em 1965.

Época da ditadura, então? É, sabe que agora eu não estou associando uma coisa com a outra.

Foi mais ou menos isso? Foi no ano de 1965 que começou, até tinha uma professora que trabalhava comigo, a gente tinha dois turnos, eu estava à tarde196 e a efetiva ficava de manhã; ela era de . Nós duas, a gente estava lá, nós fizemos umas... mímicas, caricaturas, cartazes, assim pra ilustrar197.

Olha que até os pais precisavam de instruções... É, eles falavam o jeito que era, o jeito que eles faziam.

Conta um pouco da trajetória nas escolas em que a senhora lecionou, tanto as isoladas, quanto as escolas da cidade. Trabalhei 26 anos. Eu fiquei 23 anos em escola isolada. Comecei na Barra Mansa, município de Tanabi, depois em 1966 eu trabalhei aqui na Alegria 198, em 1967 eu trabalhei no Espraiado199, era uma escolinha de pau a pique. (neste momento a professora mostra a foto do local) Só que aqui, na hora de bater (a foto), não bateu a escola, pegou só um ranchinho que tinha aqui do lado e uma árvore bem grande que tinha, isso aqui foi no ano de 1967.

Quantos alunos... Lá a gente tinha três turmas, de três horas, porque era muito aluno, uma escolinha de pau a pique.

195 Usada no tratamento de esgoto doméstico. 196 A professora Irma era substituta na época. 197 Para ilustrar os conteúdos e atividades que estavam no jornal, tais como: o uso da fossa, transmissão de doenças, uso do filtro de água, entre outros. 198 Bairro da Alegria, município de Tanabi/SP. 199 Município de Tanabi/SP. 197

Alunos da Escola de Emergência do Bairro do Espraiado, 1967. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Três turnos? De três horas...200 No ano de 1967, era a escola mais longe do município de Tanabi, é Bairro do Espraiado, é depois de Ibiporanga, Carvalho201. É perto da divisa de Palestina202, assim desta escolinha, da cidade de Palestina dava 6 quilômetros. Então, o pessoal assim, numa emergência, eles corriam para a Palestina, que era mais perto; Tanabi dava 47 quilômetros... sabe que naquela época dava voltas, não tinha estrada.

Era uma viagem todo dia? É, a gente ficava lá, morava lá. Aqui na Barra Mansa, eu morava lá.

Na fazenda? É, na escolinha.

Mas ia com a família toda e morava lá, ou ia sozinha? Não, sozinha! Eu era solteira na época, a gente ficava lá.

Na casa dos empregados tinha um quarto que ficava para a professora? Nesta escola aqui, a casa também era de pau a pique, e aí a gente passava o barro na parede, porque caía, né, tinha um professor e duas professoras. O professor dormia na escolinha, levava uma caminha de armar e dormia na escolinha, o Sr. Etore Bilia203, ele mora do lado do Ganot. E eu e a Mafalda, a gente dormia na casa da mulher, mas era de pau a pique também, a escolinha era de pau a pique.

200 Eram 3 horas seguidas de aula, sem intervalo (das 8h às 11h, das 11h15min às 14h15min e das 14h30min às 17h30min). 201 Carvalho pertence ao município de Tanabi/SP. 202 Palestina/SP dista 42 quilômetros de Tanabi/SP, pela estrada municipal de Ibiporanga-Palestina. 203 Por meio desta entrevista, fui procurar o prof. Etore Bilia, que depois torna-se também um professor colaborador nesta pesquisa. 198

Escola do Bairro do Espraiado. Foto trazida para a entrevista pela professora Irma, na qual aparece, entre os alunos, o prof. Etore Bilia, 1967. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Aí o prefeito construiu uma escola de tijolo, mas só que ele não deu a chave para nós, porque ele só ia entregar na época da campanha política, e ele só entregou na campanha política, dia 15 de novembro de 1967.

Entrega de diplomas aos alunos formandos da Escola do Bairro do Espraiado, 1967. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Mas aí vocês deram aulas nesta escola? É, depois nós ficamos o resto do ano aqui, porque foi quando ele deu a chave, isso em novembro de 1967204.

Nossa, um mês só? É.

E a escolinha continuou funcionando?

204 Nesta escola havia alunos mais velhos ou por motivo de repetência ou evasão para trabalhar. Em alguns casos, para que os irmãos pudessem ir juntos para a escola, acontecia de ter irmãos com idade entre 7 e 14 anos que estudavam todos no 1° ano. 199

Sim, continuou funcionando.

Tinha uma varanda boa aqui? (me referindo a foto acima) Tinha uma varanda boa.

Já tinha poço? Tinha poço, tinha fossa, cercou o quintal, tudo arrumadinho.

É a mesma turminha? (neste momento estávamos vendo a foto da escola) É a mesma turminha. Foi no começo do ano, e aqui foi no fim do ano.

Quem era o prefeito na época? José Siriane. Nós fomos lá pedir a chave para ele, porque a escolinha de pau a pique estava assim, ruim, ruim mesmo; a gente tinha medo de ela cair, e assim juntou os pais, os professores e passamos barro na escola porque não dava, o vento entrava, era numa esquina assim, e o pó da estrada... Aí ele falou que não, que ele sabia a hora certa de entregar a escola... naquela época existia isso, não sei se existe ainda. Esse daqui era o professor, olha, ele com a turminha dele, desse mesmo ano, ele que ganhou o concurso da dança lá, o melhor casal205. (olhando a foto)

Ele não foi o que trabalhou no Ganot? Ele trabalhou no Ganot.

Eu estou lembrada dele, de quando eu estudava no Ganot, ele trabalhava, o jeitinho do rosto, do cabelo, estou lembrada dele sim... Ele se aposentou no Ganot.

E ele dava aula também, era polivalente, cada um trabalhava em um período? É, nos três períodos, três horas ... essa daqui é 1967. Aí, de acordo com a classificação lá da escala de substituto, em 1968, eu não consegui pegar Emergência, aí eu fiquei como estagiária no João Portugal206, peguei licença, peguei na Vista Alegre207, na Santa Helena208 e no João Portugal, peguei uma aulas no João Portugal. Em 1969 eu peguei o Espraiado de novo, eu já conhecia, eu voltei para lá. Aí foi esta turma aqui, aí foi em 1969 (mostrando a foto da turma).

Já na escola nova? Já era na escola nova, a gente já trabalhou na escola nova.

205 A professora está se referindo ao professor Etore Bilia que, com a sua esposa, ganhou um concurso de dança que teve em Tanabi no ano de 2010. 206 João Portugal era uma escola na cidade de Tanabi/SP. Hoje é Escola Estadual João Portugal. 207 Vista Alegre fica na Fazenda Fortaleza, município de Tanabi/SP. 208 Neste local trabalhou por 60 dias (licença). Fica no município de Tanabi/SP. 200

Alunos da escola do Bairro do Espraiado, 1969. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Tinha alunos que a senhora já conhecia? Tinha alunos que continuaram, que eram os mesmos, os que estavam no primeiro ano. Depois aqui foi em 1970, eu trabalhei na Barra Mansa, onde foi esta daqui, esta foto, só que já estava assim, tinha melhorado bem, tinha construído uma cozinha aqui no fundo, mas aí o professor fazia merenda, foi quando começou a merenda na escola.

Alunos da Escola da Barra Mansa, 1970. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Era fogão a lenha? Fogão a lenha, água do poço, aí já tinha melhorado.

O professor tinha que dividir o tempo em passar atividades e correr fazer a comida? Sabe, as mães mandavam assim mandioca picadinha, para pôr na sopa, couve picadinha, batatinha descascada, colaboravam, sabe. Tinha uma mulher, ela já morreu, ela morava perto da escola, então quando ela tinha uma folguinha ela corria lá na escola, dava uma mão na merenda ali pra gente.

201

Que bom... época boa, bom, embora o sacrifício, era uma época boa... Era uma época boa, sim, você tinha valor, você tinha valor.

Então, 23 anos foram escolas rurais e 3 anos escolas na cidade, no caso, escolas em Tanabi? Eu fiquei um ano no João Portugal, aí depois fui para o Padre Fidelis, fiquei dois anos209. Aposentei em 23 de fevereiro de 1993.

No Padre Fidelis tinha até quarta série? No Padre Fidelis, de primeira a quarta, era o Curso Anexo que tinha, sabe. Trabalhei em 1992 e um pouco em 1993.

Ainda tinha? Tem até hoje, ah, agora acho que não tem mais.

Não, agora não, é a partir da quinta, só... A partir da quinta... não! Tinha até primeira a quarta, tinha uma classe de deficiente também.

São as classes especiais, até dois mil e pouco que eu estava fazendo estágio, eu ainda trabalhei na sala de alunos especiais... Mas acho que ainda tem, porque a Marina210 diz que tem uma classe no Padre Fidelis.

Porque, parece que tinha fechado, será que ficou alguma? Porque tinha três. Tinha a de Deficiente Visual, que eu acho que fechou.

A sala era de uma amiga minha e ela teve que ir embora. Então, acho que fechou a de Deficiente Visual, mas acho que continua sim a classe especial, porque a Marina tem uma classe lá.

Ela é pedagoga, a Marina? Ela é, fez Pedagogia.

E nessas escolas rurais, quanto à organização das séries, eram às vezes até quatro séries no mesmo espaço? É, só que não podia matricular. Sabe, quando eu trabalhei aqui no Coqueiral 211, não podia, na matrícula, constar primeiro, segundo, terceiro e quarto na matrícula, mas você trabalhava. Tinha um aluno que, quando eu trabalhei aqui na escolinha do Teodorico212, registrado na matrícula tinha primeiro, segundo e terceiro. Foi o ano do Luiz Homero 213,

209 Trabalhou em 1991 na Escola João Portugal; depois, nos anos de 1992 e início de 1993 na Escola Padre Fidélis (ambas em Tanabi/SP). 210Marina é uma professora de Educação Especial de Tanabi/SP que a professora Irma conhece. 211 Município de Américo de Campos/SP, que dista 50 quilômetros de Tanabi/SP. 212 Município de Tanabi/SP. 213 Luiz Homero é meu irmão. Ele foi aluno da professora Irma. 202 mas tinha um aluno ou dois de quarta série, que eles estavam matriculados em Ecatu214, (mas) como não tinham como ir, eu trabalhava com eles aí, dei a frequência deles, tudo, era tudo por Ecatu.

Então o professor que organizava a série em que o aluno estava, na matrícula dele constava simplesmente matriculado, não tinha série? Não, ele constava matriculado em Ecatu.

Não no caso desses alunos; os outros, matriculados na escola, tinham série determinada? Os outros tinham série, tinha da primeira série, da segunda. A gente tinha o livro de matrícula da escola215, fazia no começo do ano, o livro de inventário do material da escola e o livro de presenças.

Dividia a turminha em primeira, segunda, terceira... Dividia por fileiras, fazia o que dava ali, e o trabalho rendia, sabe, porque as crianças se interessavam. Rendia, sim, o trabalho. Indisciplina também não tinha, eu não tinha problema com indisciplina na escola rural, não tinha indisciplina, eles acostumavam, tinha um pedaço da lousa, repartia no quadro a parte da primeira, da segunda, da terceira. E os alunos eram ali, dos sítios vizinhos, vinham a pé para escola.

E os Inspetores de Ensino na época... Como eram? Eles visitavam as escolas? Visitavam. Assim... geralmente, eles faziam duas visitas no ano, uma no primeiro semestre e outra no segundo, quando era uma escola mais perto, eles até iam mais vezes, mas quando eram escolas mais longe como o Espraiado, na Barra Mansa, eles iam duas vezes, a não ser que tivesse problema que eles tinham que resolver. Assim... mas eles iam duas vezes. E tinha reunião todo mês, sabe, então quando você tinha alguma dúvida, tinha reunião que era na cidade. Então aquele dia não tinha aula, era o dia da reunião, uma vez por mês. Aí você tinha que levar o diário de classe, eles davam visto no diário de classe, para ver se estava organizado, se tinha que levar a caderneta de chamada, para ver como é que estava.

E a questão do que ensinar, eles orientavam, tinha ali um plano... Tinha! Eles davam um, igual uma apostilinha sabe. No começo ela vinha repartida por mês, aí depois ela já não vinha repartida por mês, então vinha o que você tinha que trabalhar no ano, então a gente dosava, sabe, porque tinha mês que não dava para você cumprir aquilo, ficava um pouquinho para o outro, aí a gente dosava.

Então o professor podia organizar assim? É, a gente dosava, e ele fazia visita, ele olhava o caderno da criança, ele olhava o caderno de prova, ele olhava... chamava a criança na lousa para fazer uma avaliação. Eu

214 Ecatu é um bairro do município de Tanabi/SP. Ele fica distante da cidade. A professora explica que, no caso desses alunos, como na escola rural em que ela trabalhava não tinha quarta série, esse alunos, que moravam próximos da escola, puderam se matricular em Ecatu e frequentar as aulas com a professora na escola rural. 215 O professor, neste ano, fazia as matrículas na escola e trazia o livro para a Sede. 203 lembro que na época, isso foi em agosto, ele foi lá e falou, lá na Barra Mansa, falou assim: “agosto a professora já deve ter trabalhado com o metro”. Aí foi, chamou uma menina, ele chamava, sabe: “quem é da terceira série?” eles levantaram a mão, aí ele falou: “vem você!”. Ainda bem que ela acertou. Falei: “ai, meu Deus!” eu tinha começado metro naquela semana, não estava bem fixado, se ele chamasse outro aluno teria errado, é que deu sorte que ele chamou assim a “mais viva”, aí ela acertou.

Era uma forma de ver se o professor estava trabalhando direitinho? É, aí pegava o caderno da criança abria, assim... Eu estava na Alegria, ele falou: “Lê aqui o que você escreveu”. Ele leu. “E aqui, e aqui...” Sabe... mandava na lousa, fazia ditado das palavrinhas que ele achava... A criança ficava assustada, porque nunca tinha visto, primeira vez que viu mandar na lousa216.

E aí, quando começou assim a ter merenda nas escolas? Teve uma época que a professora fazia, e aí teve uma época que já pegava pronta da cidade? Eu peguei pronta da cidade, eu já estava no Anselmos 217, devia ser mais ou menos, lá pelo ano de oitenta e... quando o Luiz Homero estava na escola, a gente fazia merenda ainda, foi depois, eu estava no Anselmos, deve ser lá pelo ano de 1984, por aí, porque a gente pegava merenda pronta.

Eu lembro quando eu estudava aqui, a Dona Regina218 trazia... O balde, que a gente pegava na prefeitura pronta. Então, mas eu acho que foi no ano de 1985, por aí. Porque o Zé Ricardo é de 1986, eu não tinha o Zé Ricardo 219, foi mais ou menos, 1985, 1984, nessa época eu já dava aula aqui no Anselmos.

Agora conta um pouquinho das aulas. Era o professor quem determinava o quanto ele iria trabalhar com Ciências, com Geografia, com Matemática, era o professor quem tinha essa liberdade? É, a gente tinha essa liberdade de dosar. É assim, eu fazia assim, eu achava mais fácil trabalhar antes do recreio, que eu achava que rendia mais. Na primeira série mais, a gente batia mais na alfabetização, a Matemática da primeira série, eu achava assim que eles dominavam mais fácil, porque a gente trabalhava com tampinhas, com palitinhos, sabe, então batia mais na alfabetização. Depois da segunda série, aí eu trabalhava primeiro com Matemática, eu achava que rendia mais na entrada da aula, aí depois a gente partia, assim, para Língua Portuguesa. Matemática e Língua Portuguesa era todo dia. Agora, assim, História a gente colocava, procurava dar duas vezes por semana, Geografia duas vezes, Ciências duas vezes, para não sobrecarregar, né... Aí depois, também, a gente intercalava Desenho, eu gostava de dar aula de Religião, eu dava aula de Religião sempre na sexta- feira.

Podia?

216 A professora conta que desde o início da carreira sempre teve. Tinha a divisão da matéria que o professor tinha que cumprir por mês. Era feito um relatório desta visita em um caderno que ficava na escola. 217 Município de Tanabi/SP, na Fazenda Fortaleza, próximo da divisa com o município de Cosmorama/SP (Cosmorama/SP dista 24 quilômetros de Tanabi/SP). 218 Essa foi a minha professora quando estudei na Escola onde estávamos gravando esta entrevista. 219 A professora está se referindo ao filho dela. 204

Podia, até no começo a gente tinha até tipo de um certificado que contava ponto para o ingresso quem tinha trabalhado com aula de Religião, só que aí tinha que ter autorização do padre, pra gente poder dar esse curso, que era uma catequese. No ano de 1965, em que eu estava na Barra Mansa, eu preparei a turminha para a primeira comunhão, sabe? aí o Padre foi lá, rezou missa e tudo.

Então já aproveitou para a Igreja do sítio, para a comunidade, aproveitou essas aulas... É, tinha uma igrejinha, sabe, lá na Barra Mansa tinha uma igrejinha num canto, a escolinha no outro canto e a venda no outro canto, então era uma encruzilhada ali, sabe?

Era quase o estilo daqui, a venda, a Igreja e a escolinha... É, só que era em cruz, cada canto era uma coisa, e aqui tinha máquina de arroz, sabe? no mesmo tempo que tinha aqui no Sapé220.

E qual era a rotina de lição de casa, prova... É, eu dava, sim, uma tarefinha. Às vezes procurar palavras, porque eles tinham que procurar nos livros de leitura deles mesmos porque eles não tinham outra coisa, não tinham um jornal, não tinham uma revista, eles tinham o livrinho deles, o primeiro ano tinha a cartilha, as outras séries tinham o livrinho de leitura. Eu mandava procurar palavras, “tantas palavras com dois s...” eles tinham que abrir o livro para procurar, né, “tantas palavras”, outro dia, “com dois r” e assim a gente ia... E o primeiro ano a gente sempre, eu gostava de mandar eles fazerem a cópia da lição, porque era a única coisa que eles tinham ali de material, então era a cartilha. Faziam a cópia da lição do desenhinho lá, porque era a lição dos cachorros, aí desenhavam os cachorros.

E vinha do Estado o material, vinham as cartilhas para os alunos? Não, não, era tudo comprado na época, lá era tudo comprado. Os pais compravam a cartilha, só aqueles que eram, assim, bem pobres mesmo que às vezes, naquele tempo não falava assim a “Caixa”, depois APM 221, então dava uma cartilha assim para os mais pobres. Mas, geralmente eles compravam, só quando eles também..., no Espraiado, lá foi a escola mais pobre que eu peguei, sabe, em 1965.

Antes de construir o prédio novo? É, lá foi a escola mais pobre que eu peguei, pobre mesmo, eles nem tinham cartilhas, sabe? às vezes a gente aproveitava de, pedia quem tinha cartilha de parente, sabe? passava para eles. Eu peguei uma, aí no Espraiado, um casal de negros, tinha cinco filhos, então tinha cinco irmãos, ninguém tinha entrado na escola, foram a primeira vez na escola, então tinha as maiores, e a menorzinha, era a Odete. Eles não tinham noção nem de caderno, de linha, de nada, sabe? então essa menininha falava: “ô professora, eu já varei a rua, já terminei a

220 Essa estrutura na zona rural era bem comum em algumas comunidades. No bairro do Sapé, lugar onde estávamos realizando essa entrevista, também tem uma Igreja, uma venda (que vendia além de bebidas, alguns itens de mantimentos e também possuía telefone, frequentemente usado pelos moradores da zona rural), um campo de futebol, a escola e tinha, antigamente, uma máquina de limpar arroz. 221 Em meados de 1965 e 1970 tinha a Caixa Escolar, que comprava materiais para os alunos de baixa renda. Em meados do ano de 1990 já tinha a APM. 205 rua, pode fazer outra rua?” (a professora sorri ao lembrar dessa aluna)

Ah, que era a linha... Era a linha, porque ela só conhecia a rua da roça, de café, de planta, para ela era a rua, porque ela viu reto, demorou para ela entender que o caderno chamava linha, para ela era “rua”.

Até para coordenação para pegar no lápis, foi difícil de... A gente tinha que ensinar, sim, pegar na mãozinha... mas chegava no fim, aí eu lembro que eles... Porque você pegava a criança assim, depois quando dava setembro, assim, eles já tinham terminado a cartilha, aí eles compravam o livrinho, eles mesmos compravam o primeiro livro, sabe? e a gente fazia festinha para entregar o primeiro livro.

Agora um pouco mais da Matemática. Quando e como eram introduzidos os números, quando começava a falar em número? Na alfabetização a gente já começava a contar, contar no palitinho, contar o lápis, contar o que eles tinham, assim na época tinha muita, eles tinham muita plantação de arroz, então aquele cano, sabe? do arroz... aí já pedia para o pai cortar, aquele talinho do arroz era o palitinho, então eles cortavam e mandavam, então eu tinha uma caixa com bastante talinho daqueles para contar. A gente fazia os grupinhos, com tampinhas, porque tampinhas mesmo de bebidas, quando eu estava no Espraiado tinha a venda, então eles juntavam na porta da venda, sabe, mas tinha escola que não tinha, era mais difícil, aí eu levava palitinho de sorvete, tudo com... é para eles contarem.

Legal, interessante esses negócios do talinho do arroz... Nossa, veio muito esses talinhos do arroz, e deixava na escola, porque aí depois a gente quando ia... eu usava muito também aquele cartaz, valor de lugar, né, para as unidades, então a gente espetava os talinhos. Um talinho, aí já colocava o número embaixo e para eles associarem, também, a quantidade com o número. Um talinho; depois vinham dois talinhos, já trocava o número dois, aí já deixava os números tudo com fichinhas para eles irem lá trocar, aí formava dez, amarrava, passava para dezena, eles amarravam.

Eles aprendiam a contar primeiro, saber a quantidade, depois descobrir o desenho do número, eles iam associando o que estava ali com a imagem? Com a quantidade, é... Assim, não sei se é o jeito certo, é o jeito que eu achei assim mais prático de eles entenderem.

Maravilhoso. Poder contar, poder “pegar” a quantidade... E teve assim, no ensino da Matemática, passando desde 1966, 1967 depois pra 1970, 1980, teve algum ano em que ensinar Matemática sofreu alguma mudança? veio alguma orientação... Aí depois veio... quando? Deixa eu ver onde que eu estava... acho que eu já estava aqui em Tanabi mesmo, vinha uma folha mimeografada com conjuntos assim para recortar, para eles recortarem, então já vinha as quantias. Tinha tantos alunos, já vinham tantas folhas, para recortar, eram conjuntos, mas assim, tabuada, dava para fazer noção de metro quadrado, sabe, já vinham essas folhas mimeografadas para recortar e montar. Mas eu não guardei nada, sabe? eu reparti tudo, eu aposentei, reparti.

206

E falar em Matemática Moderna, lembra alguma coisa? No meu tempo foi pouca Matemática Moderna, porque eu trabalhava mais com primeiro e segundo... o efetivo tinha que ficar com um número maior de alunos na sala, e sempre quem tinha um número maior era primeira e segunda série. Então eu trabalhei mais com primeira e segunda série, terceira e quarta eu trabalhei pouquíssimo, pouquíssimo. Lá em Boa Vista 222 eu fiquei com primeira e segunda; no João Portugal eu fiquei com segunda; no Padre Fidélis eu fiquei com primeira; no Anselmos eu peguei primeiro e segundo, sabe? Quarto ano eu peguei em Américo (de Campos) uma vez, quando eu lecionei em Américo (de Campos).

Mas por que Matemática Moderna vinha mais para o terceiro e quarto ano? Não, não é que vinha mais para o primeiro e segundo... era assim, não tinha muita variação de coisa, muita diferença sabe. Matemática Moderna mesmo, assim, não...

Porque ficava mais na contagem, tabuada... É, mais na contagem, probleminha para usar a tabuada, esses probleminhas mais básicos, aí as coisas mais complicadas, assim, na terceira e na quarta, que era mais aprofundado.

E tinha bastante probleminha envolvendo coisas de plantações, roça, animais... É, planta, de animais. Assim, a gente pegava mais essas coisas, animais que a gente conhecia do meio deles.

Tinha horta na escola? Tinha horta. No Espraiado223 a gente tinha horta. O professor, ele fez a horta, a gente ajudou. Quando eu trabalhei na Alegria, a gente tinha horta. Aí, depois, aí eu trabalhei na Boa Vista224, a gente tinha horta, mas lá já era um grupo, um grupo assim rural, então tinha o servente que cuidava da horta, não era a gente, lá eu fiquei dois anos. Em Américo (de Campos), era escola isolada, não tinha horta, só tinha merenda, a gente fazia merenda na escola, não tinha nada.

E a horta? Quando tinha a horta, usava para ensinar alguma coisa para as crianças, para dar aulas na horta, alguma coisa assim? Eu usava, quando estava igual assim, a gente plantava coisas que precisavam de menos água. Então, igual cenoura, assim... Contar, quantos pesinhos de cenoura que tem nessa carreirinha aqui, sabe? usava assim... é, contagem, repartir, porque na Alegria 225 não fazia merenda, naquele tempo a gente não fazia merenda, mas tinha a horta, que já fazia parte deste plano do Ruralismo... veio junto 226. Então, a gente repartia com as crianças: tem tantas cenouras, tantos alunos, aí tinha gente que tinha horta em casa que nem queria levar, então nós vamos repartir, contar para fazer a conta, aproveitava assim para repartir.

222 Município de Álvares Florence/SP, que dista 60 quilômetros de Tanabi/SP. Lá era Grupo Escolar Rural. 223 Ano de 1965. 224 Se refere ao ano de 1971. 225 Ano de 1966. 226 Ano de 1965. 207

Bom, os materiais que as crianças faziam. Tinha com talinhos de arroz, com tampinhas... É, com talinhos, tampinhas, palitinhos, que eu levava palitinhos de sorvete, todas essas coisas simples mesmo227. E, assim, a gente não podia pôr muito do bolso também para comprar porque dependia daquele ordenado para ajudar em casa, eu pagava pensão, aí você pagava para viajar, né, a casa que a gente ficava, pagava pensão, a gente pagava... Sabe, era casa pobre... igual: quando eu estava lá no Espraiado, a mulher falava: “Gente, eu não posso dar pensão, eu não tenho uma geladeira, eu não tenho nada”. Não tinha luz elétrica lá. Então ela falava: “Você trazem manteiga?” Então eu levava manteiga. Nem existia margarina, nem conhecia margarina, a gente comprava manteiga mesmo, levava. Ela colocava em cima, sabe? antigamente a gente falava pote, que nem existia filtro, aquele potes de barro branco, ela colocava manteiga lá em cima para ficar fresquinha, sabe? num prato... Então a gente levava, ajudava levar essas coisas, de mistura, a gente ajudava.

Então na verdade ajudava com estas coisas também... E pagava também, tinha que pagar.

E quando começou a falar desses conjuntos, como que eram ensinados esses conjuntos? Ah, eu estava já na Barra Mansa, foi acho que em 1969, por aí. A gente fazia mais com desenhos, às vezes fazia assim com barbante na carteira, a gente pegava o conjunto, colocava pedrinhas, tampinhas, lápis, borracha, fazia na lousa, mais era a lousa, o giz e a lousa.

E aí veio o Inspetor de Ensino passar as instruções de como tinha que trabalhar... É, na reunião ele passava as orientações lá, de como era para fazer...

E Ábaco, essas coisas, chegava a existir? Soroban... Olha, só tinha um, uma vez quando eu estava no Espraiado, segundo ano que eu fiquei no Espraiado, eu fiquei lá em 1969, em 1967 e 1969. Em 1969 mudou uma família, o dono da fazenda, sabe? que eles moravam em Rio Preto (São José do Rio Preto), mudou para lá e pôs o menininho na escola. Então, o menininho dele tinha o Ábaco, ele levou na escola, foi o único Ábaco que as crianças viram. Mas não existia, não existia.

E de Leis assim da época, lembra de alguma... Foi, quando eu estava em Boa Vista, que apareceu, que teve aquele estudo daquela lei 56 228, até tenho o certificado aqui, aí teve uma semana de reunião sobre aquela lei, eu estava no Boa Vista. No ano de 1971, deve ter sido, porque eu fui para o Boa Vista em 1970, agora eu não lembro se foi em 1970 ou 1971. Teve curso, todo ano tinha do Ciclo Básico 229, que era primeira e segunda série. Esse certificado aqui, do que foi, em 1986, Curso: “Quem quiser que conte outra...” esse é de História, o de Boa Vista. Teve um do estudo da lei, é 5692 aquela lei? Acho que é 5692, eu estava em Boa Vista, foi em 1970 ou 1971, não veio...

227 Usava esses materiais desde o início da carreira. 228 Refere-se à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 5692/71. 229 Década de 1980. 208

(referindo-se ao certificado que ela não encontrou no meio dos papéis).

Nossa! então surgiu essa Lei nova e os professores tinham que ficar lá no curso... É, a gente ficava no curso de uma semana, na Sede. Agora eu trabalhava no grupo de Boa Vista, era um Grupo Rural, foi quando eu ingressei, a Sede era em Álvares Florence, não tinha lá no sítio.

E nesses papéis, aí, tem certificados de cursos... Aqui o nome das escolas que eu trabalhei, reunião, esse daqui foi meu convite de formatura, essas daqui foram as escolas em que eu trabalhei aqui em Tanabi, aí era tudo registrado, sabe? os dias em que você trabalhou, férias, faltas230.

Nossa, como um livro ponto... É.

Vocês recebiam um por mês? Ou por ano? É por ano. É que essa daqui foi quando eu estava acho que no João Portugal. Porque depois a gente tinha que juntar esses atestados aqui, para a classificação no começo do ano, para pegar a escola, sabe? O tempo em que a gente era estagiário, falta, tudo registrado. Aí no verso, por ano, licença, era por ano. Esse daqui era calendário que a gente recebia.

O calendário... Tinha os dias letivos, feriados... Festas cívicas, porque no começo, dias das festas cívicas a gente tinha que ir na escola fazer festinha de Tiradentes, 7 de setembro....

Tinha que fazer a comemoração com as crianças? Tinha que fazer a comemoração no dia, aí depois que... Esse daqui é o jornal que eu passei no concurso. A gente recebia assim também, só que eu não achei, eu só achei essa folha, o que você tinha que desenvolver no ano sabe.

O plano de ensino... Você dosava de acordo com a classe, porque tem classe que rende mais, tem classe que rendia menos. No começo eles davam repartido, depois perceberam que não dava certo, mudaram, era por ano.

Mas esse daqui era de que série? (olhando o modelo que a professora levou) Então, agora eu estou achando que isso daqui era de segunda série.

Números naturais... os números naturais, os primeiros até 100, até 300... É, acho que é de segunda série, tem tabuada do 6 e 7... é de segunda série, porque no primeiro ano a gente tinha que dar até a tabuada do cinco. Agora mudou, né, é o primeiro ano agora.

230 Muitos documentos a que a professora se refere não ficaram comigo, apenas foram consultados no momento da entrevista. 209

Plano de Ensino apresentado pela professora na entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Era o antigo pré, agora é primeiro ano. Já é primeiro, porque o menino da Lígia231 está com 6 anos, então ele já está no primeiro ano. Até ele teve dificuldades, porque ele estava numa escolinha particular, a programação era uma, lá não tem mais, acabou. Ele estudou lá até 5 anos, 6 anos aí ela passou para o Santo André 232 porque lá não tem, lá é diferente, então faltou uma etapa para ele, sabe, e a gente está tendo que fazer em casa. Igual ontem, por isso que eu não podia vir

231 A professora se refere à sua filha. 232 Santo André é um colégio na cidade de São José do Rio Preto/SP. 210 ontem, porque ontem eu trabalhei com ele durante o dia porque, fazendo alfabeto, sequências, porque ele não teve essa noção e a escola que ele foi os alunos já têm, então, sei lá...

Por que ele pegou o ano de mudança, ele estaria no pré, para fazer certinho aí já está no primeiro ano? (ainda estamos falando do seu neto) Já está no primeiro ano. Então isso aqui eu acho que é de segunda série, porque tinha problemas, de adição, subtração, aplicação e problemas, terminologia das quatro operações.

E aí o Inspetor de Ensino já entregava esse plano? Já entregava isso aqui na reunião do começo do ano, sabe? aí você fazia seu planejamento233. Porque antigamente não tinha esse planejamento que tem agora, “semana de planejamento”. Semana de planejamento começou quando eu estava em Américo (de Campos), 1973, 1974.

Porque até então o professor recebia e se organizava sozinho à maneira dele... É, sozinho, às vezes a gente comparava com um colega, assim, que jeito, né? mas...

E tinha que dar um retorno para o inspetor: “olha, me organizei assim?” Ou ele não exigia? Não, não precisava, ele olhava na escola, às vezes ele pedia na reunião 234, sabe? pra gente levar, a gente levava. Trabalhei com o curso de adultos, mas eu não tenho nada do curso de adulto, supletivo no sítio.

No sítio? Eram os pais que não tinham ido à escola? É, os pais, irmãos, tios. Eu trabalhei, mas não tenho nada aqui, nenhum papel do supletivo (olhando para os papéis a professora acrescenta), isso daqui é laudo médico, é documentação.

Pelo que eu vejo assim das fotos, desde essas mais antigas, sempre existiu meninas e meninos... Ah é, então, chamava Escola Mista porque só tinha..., igual à do Senhor Etore, era escola masculina, mas tinha menino e menina. Porque homem só podia pegar escola masculina, naquela época. Tinha que ser escola masculina. Existia, sabe, tinha uma no Espraiado, uma aqui na Fortaleza 235, e uma lá em Ecatu, no Japonês 236. Tinha três escolas masculinas.

Então a professora mulher não podia pegar?

233 Isso em 1971, quando ingressou como efetiva. Naquela época não tinha avaliação pela Sede. A professora disse que, na década de 1960, tinha um conteúdo a ser desenvolvido por mês e as avaliações vinham lacradas da Sede. 234 Na reunião que tinha mensalmente na Sede, aos sábados. 235 Fazenda Fortaleza, município de Tanabi/SP. 236Fazenda Nova, em Ecatu, município de Tanabi/SP. Japonês era o apelido do senhor, dono do sítio onde ficava a escola. 211

Não, era só homem que pegava. Ah, e tinha uma no Vau, no Córrego do Vau 237, era até um professor de Palestina que vinha, que era pertinho, tinha quatro escolas masculinas, que eu lembro, na época.

Nossa, que interessante, aí ele recebeu autorização para trabalhar então nesta escola? É, então, ele só podia pegar escola masculina.

Olhando os papéis... Certificado do curso de Pedagogia... Então, este aqui é de Administração Escolar lá de Mirassol que eu fiz, de primeiro grau, que aí depois eu completei e terminei Pedagogia.

Tinha alunos com deficiência, alunos especiais na sala? Tinha assim, de vista. Tinha uma menininha, foi até aqui na escola do Sr. Teodorico, no Coqueiral 238, ela só enxergava de um olho e a mãe não tinha percebido. Eu via que ela olhava na lousa e virava a cabeça e virava, mas... acho que era Maria o nome dela “o que aconteceu Maria, o que está atrapalhando?” Porque escola de sítio é ruim, às vezes claridade, o sol, posição de sol, ela falava “ah... tá ruim para eu enxergar...”. Aí eu coloquei bem na frente. Aí, depois, a gente fazia aqueles testes de vista, você deve ter feito, né? na escola, que a gente tampava uma vista e fazia. Aí eu percebi que ela não enxergava de um olho. Aí eu encaminhei da escola pra lá, a prefeitura parece que pagou uma consulta, ela começou a usar óculos, a mãe não tinha percebido que ela ..., não sabe nem se foi de nascença ou se foi depois, sabe, não enxergava de uma vista, tinha mais era deficiência visual. Lá no Carrilho 239 tinha um menininho, ele enxergava pouco, ele sentava na frente, era até de uma família que tinha, assim, meios para levar no médico, tudo, mandava recado para o pai que o menino não estava enxergando, olha, eu fiquei lá um ano, um ano não, eu dei aula para ele um ano, eu fiquei lá uns três anos, mas o pai não levou e tinha condições de levar. (Olhando os papéis...) Ah, a gente tinha conceito também na época240.

Dentro do desempenho do professor no ano? É, era avaliado. Aí vinha, igual para Ecatu, vinha tantos conceitos, tantos B, tantos A, tantos C. Aí eu tinha que repartir aqueles conceitos, mesmo que eu não tivesse um professor, que não tivesse rendido, ela tinha que empurrar aqueles – neste ano eu estava na direção da escola241.

Quer dizer, recebia a quantidade de notas, e ela tinha que organizar os grupos de professores nestas notas? É, nessas notas.

237 Município de Tanabi/SP. 238Município de Tanabi/SP. 239Município de Cosmorama/SP. 240 Segundo o documento que a professora mostrou na entrevista, foi no ano de 1983. 241 No ano de 1987. Na direção da escola em Ecatu, município de Tanabi/SP. 212

Nossa, que estranho! que avaliação estranha! É, estranho, eu recebi B.

E isso interferia depois para pegar aula no ano seguinte? Interferia para mudar, não para pegar aula, para vencimentos, porque aí você mudava de referência, sabe? tinha que juntar dois B, quem tinha A já mudava.

Ganhava mais? É, tinha as referências242, sabe.

Era uma espécie do que a gente vive hoje, de provas, de avaliações, só que era por desempenho mesmo... É.

Mas nessas divisões “malucas” que o diretor tinha que fazer... Se o diretor não simpatizasse com certo professor, ele jogava C.

Mas era de acordo com rendimento de aluno também? Repetência, essas coisas? Olha, de repetência de alunos, influenciava era para pegar aula, sabe? Se você promovesse mais alunos, você tinha mais pontos. Então aí a gente sempre procurava pegar as escolas que você sabia que tinha bastante aluno, por isso que eu fui para o Espraiado, porque eu precisava trabalhar. Tinha escola pertinho com pouco aluno, igual, tinha a Escola São Paulo243, que na época tinha 10, 12 alunos. Às vezes a professora até levava aluno da cidade, sabe?

Quem tivesse um número maior de aprovações era... Era sua classificação para pegar aula no ano que seguinte.

E essa avaliação feita pelo diretor... Não, agora essa avaliação feita pelo diretor é depois de efetivo.

Depois... que aí já estava numa escola certinho... É, aí já tinha escola, assim, então servia para efeito de vencimento.

Porque aí se o professor já era efetivo naquela escola, sabia que o ano que vem ia pegar aula ali, então era só pra... nossa, influenciava nos vencimentos... É... Eu fiz curso de Ciclo Básico, eu trabalhei mais com o Ciclo Básico que era primeira e segunda série, então eu já participava dos cursos.

Só um detalhe dessa diretora, no caso, era diretora do grupo lá Sede na cidade? É, ela que distribuía. E, assim, se você tivesse uma falta injustificada, você não podia receber nem o B nem o A, você já recebia o C, uma falta injustificada, falta injustificada atrapalhava você para licença-prêmio, para tudo.

242 Esses conceitos interferiam no salário do professor que era efetivo. 243 Escola da Fazenda São Paulo, município de Tanabi/SP. 213

Tinha direito a abonada, essas coisas? Tinha, tinha. No começo, quando eu comecei a trabalhar,244 eram 12 abonadas, aí depois caiu, eram 6 . Tinha as justificadas, mas você perdia ponto e o dinheiro na justificada e tinha a injustificada, que o diretor podia dar, se o professor cometesse uma falta grave, ele podia jogar uma injustificada, aí atrapalhava a vida do professor, então quando tinha festinha cívica, que você tinha que ir na escola, ele ameaçava: “Olha, gente, se eu souber de alguém que não foi na comemoração, eu vou jogar uma injustificada”. Você morria de medo, né?

Por que aí já perdia o conceito A e B, já vai ganhar... nossa... e tinha conceito até C? Tinha até C. É A, B e C.

Então vamos dizer assim, que os vencimentos dos professores eram divididos em três valores diferentes... É assim. Ele era avaliado assim e influenciava nos vencimentos, porque aí tinha as referências, sabe, mudava de referência, e aí tinha os requisitos, a licença saúde também você perdia a referência e uma burocracia...

Que a gente vive até hoje de uma maneira diferente... Até hoje é, muda lá, às vezes muda, faz uma mudança, mas no fim...

As injustificadas ainda continuam prejudicando... E agora ainda piorou, porque agora dizem que é só 20% que recebe aumento.

Tem a prova, e dos que forem aprovados nesta avaliação, só 20% recebem aumento.... É, então, então as injustiças continuam.

E assim, falando um pouco da Matemática, esqueci até de comentar, Malba Tahan, esse nome lembra alguma coisa, chegava a ver livros de autores assim, tem algum? É, Matemática que a gente consultava na época, que a maioria dos professores consultava, era Raciocínio para a Matemática245. Mas eu não lembro quem era o autor. Ensino com Êxito, era um livrinho, aí tinha da primeira série, da segunda série, da terceira série, que a gente comprava, era uma coleção. Tinha assim tipos de problemas, de exercícios, como ensinar, era tipo um livrinho didático. E tinha aqueles caderninhos da Déborah também, que tinha de Matemática, de História e Geografia, de Português sabe, a gente consultava também, era o que a gente tinha246.

Osvaldo Sangiorgi... Osvaldo Sangiorgi também tinha. Eu até tenho um livro do Osvaldo Sangiorgi. Ainda ontem, eu vi o livro do Osvaldo Sangiorgi, era mais de, acho que era mais de quinta. Osvaldo Sangiorgi, você sabe que agora eu não estou lembrando, mas vi o livro lá,

244No início da carreira, em 1965. 245 Usado no início de sua carreira, em 1965. 246 A professora comenta sobre um Atlas que a Escola Sede recebia, que era usado na década de 1960 (meados dos anos de 1967 e 1968). A professora comprou esse Atlas. Comprou também o flanelógrafo que foi usado em meados do ano de 1968. 214 mas não abri para ver, eu estava procurando...

Livro “Matemática e estatística”247 de Osvaldo Sangiorgi, 1962. A professora não o tinha no dia da entrevista, mas na devolutiva de sua entrevista ela fez questão de entregá-lo. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Nossa, eu não consegui nenhum livro dele ainda. Do Osvaldo Sangiorgi, eu tenho lá, eu até te dou.

Posso dar uma olhada, pelo menos assim pra consultar. É para ver, né, comparar alguma coisa, eu tenho um do Osvaldo Sangiorgi.

É difícil hoje em dia a gente conseguir um livro do Osvaldo Sangiorgi... Eu lembro que na, mais assim, fugindo da quarta série o professor de Matemática que eu tive, seguia Osvaldo Sangiorgi, de quinta a oitava era Osvaldo Sangiorgi, até quando foi, quando eu prestei o vestibular para fazer o Curso Normal, que tinha o vestibular na época, o autor que eles mandavam a gente estudar era o Osvaldo Sangiorgi. Foi na época bem conceituado.

Bom, ficou alguma história, alguma coisa que queria contar... Não, assim, a única coisa que eu estudei, graças ao incentivo da minha avó, sabe, minha avó que lutou com meu pai, pro meu pai assim... A gente morava no sítio, meu pai tinha um sítio pequeno, então ele tirava leite, falava: “eu não posso mudar para a cidade, porque como que eu faço, do que que nós vamos viver?” Nós éramos em sete irmãos “como é que eu vou tratar da família?”. Só sei que aí minha avó dizia: “não, você tem que pôr essas meninas pra estudar, como é que vai pôr essas meninas na roça?”. Eu era assim fraquinha, magrela, falou: “como que vai pôr na roça?”. Então eu estudei graças à minha avó, que incentivou. E assim, o esforço do meu pai e da minha mãe também, se eles não tivessem enfrentado na época, e enfrentado toda a dureza, hoje será que eu estaria trabalhando de doméstica?... mas está bom assim.

247 SANGIORGI, O., Matemática e Estatística. 13 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962.

215

Bom, eu agradeço então a colaboração. Ah, nem sei se pude colaborar muito.

Todas essas informações que eu pude conhecer são valiosíssimas para mim, para a minha pesquisa. Agradeço a paciência, a organização em trazer materiais, documentos, fotos, tudo isso que para mim é uma preciosidade e vai servir demais para a minha pesquisa. Então, muito obrigada.

Tempo de gravação da entrevista: 1h1min28s

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3. Professor Etore Bilia

Prof. Etore Bilia, 2010. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 12 de julho de 2010, na escola do Bairro do Sapé248.

Então primeiramente eu gostaria que o Senhor se apresentasse. Meu nome é Etore Bilia, descendente de italianos, e estou com 77 anos de idade. E minha vida todinha foi dedicada ao magistério, como professor, como diretor, como assistente.

E inicialmente, quais escolas o senhor frequentou, quando aluno ainda? Quando aluno, eu frequentei a Escola Estadual e Escola Normal de Tanabi. Foi a primeira Escola Estadual de Tanabi essa daí, nem nome acho que tinha, que atualmente é onde está a escola Fundação249.

O nome era Escola Normal de Tanabi? Isso, Escola Normal de Tanabi, as primeiras turmas foram lá.

Em Tanabi tinha esse Curso Normal, tinha outros cursos, ou não... Não, não, só tinha esse curso. Ou você fazia esse curso ou não fazia nada. Porque as escolas assim melhorzinhas só tinha em Campinas, São Paulo, nem em Rio Preto250 não tinha faculdade ainda. Então o que tinha em Rio Preto, tinha em Tanabi, que era a Escola Normal. Isso em 1952, 1953 por aí.

Em Tanabi só existia o Curso Normal e na região também. A escolha por fazer o

248 O local onde realizamos a entrevista é conhecido na cidade de Tanabi/SP como Bairro do Sapé. É um bairro na zona rural onde funcionava a Escola Mista da Fazenda Alferes. 249 No prédio onde funcionava a Escola Normal de Tanabi, funciona hoje a Fundação Educacional de Tanabi, que é uma escola particular. No ano de 1964 a Escola Normal foi transferida para outro local. 250 Ele se refere à cidade de São José do Rio Preto/SP, que dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 217

Curso Normal foi assim: “só tenho essa possibilidade...” É, só tinha essa possibilidade. Depois teve uma época em que a Escola Normal, você fazia um exame de adaptação, aí você ficava com o curso de colegial e com esse curso de colegial você podia fazer a faculdade, foi até o que eu fiz. Eu me formei no Normal 251, aí depois eu fiz esse Curso de Adaptação. O Curso de Adaptação eu fiz até em Mirassol 252. E aí eu fui para Ribeirão Preto 253, eu queria ser dentista (neste momento o professor sorri) eu, odontólogo. E aí fui pra lá, fiquei lá um ano e pouco, entrei no curso, tudo direitinho, comecei a cursar, aí minha mãe faleceu, aí virou um transtorno danado em casa, virou um rolo danado. Aí eu larguei mão, larguei mão de ser professor, ser professor não, larguei mão da faculdade. Voltei para Tanabi e, nessa ocasião, aconteceu uma coisa gozada... minha mãe faleceu, meu pai tinha alguns imóveis, algumas coisas, então ele repartiu um pouco da herança para cada filho, eram vários filhos. E eu, entusiasmado com aquele dinheirinho que eu recebi, larguei mão da escola, larguei mão de tudo, aí fui me meter com transporte, fui mexer com caminhão, comprei um caminhão e viajava para São Paulo, dava até um certo dinheiro, mas muitas despesas, muita coisa, e aí a pressão da família, todo mundo, ninguém se conformava de ver onde eu estava trabalhando, com caminhão, formado, aquela coisa toda. Aí aconteceu uma coisa gozada... meu vizinho, Sr. Orlando Melotti 254, era diretor do Ganot Chateaubriand255, e era muito amigo meu, e naquela época as escolas eram diferenciadas, tinha escola masculina e tinha escola mista. A mulher, a professora, não podia dar aula na escola masculina e o homem podia dar aula na escola mista, era um contratempo. E o mais gozado é que na escola masculina era mista, porque tinha meninas e tinha meninos.

E deve ser a época dessa foto aqui... (neste momento eu mostro a foto que eu tinha dele com as crianças)

251 Se formou normalista no ano de 1953. 252 Mirassol/SP dista 26 quilômetros de Tanabi/SP. 253 Ribeirão Preto/SP dista 242 quilômetros de Tanabi/SP. 254 O professor Orlando Melotti também é colaborador nesta pesquisa. 255 Ganot Chateaubriand é uma escola na cidade de Tanabi/SP. Foi Grupo Escolar e hoje é uma escola municipal de Ensino Fundamental I. 218

Professor Etore Bilia com seus alunos. Bairro do Espraiado, 1967. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana.

Deve ser, exatamente, você observa aqui (olhando para a foto). O que aconteceu? Eu estava em casa uma tarde 256 aí chegou o Orlando Melotti, que era diretor do Ganot, e falou: “Etore, pelo amor de Deus, você vai deixar esse caminhão de um lado aí, e você vai dar aula numa escola lá no Espraiado, lá no Córrego do Vau 257”. Que era uma escola masculina que tinha lá. Eu falei: “Que é isso Senhor Orlando, pelo amor de Deus, eu não vou dar aula coisa nenhuma...” “Não, não... você vai lá porque a escola está fechada, tem quarenta e não sei quantos alunos, não tem professor, eu não posso mandar uma professora para lá, e você tem que ir lá dar aula.” Eu falei: “Mas como é que eu vou dar aula lá? faz cinco anos que eu não, que eu larguei mão desse negócio de dar aula.” Ele falou: “Não, você vai lá! você vai lá, eu sei que você vai dar conta e tal...” E eu fui de caminhão dar aula na escola. Aí chegou lá na escola, a molecada, encontrei com o pessoal todinho, tinha um senhor muito simpático, chamava-se Armando Marquezam, ele tinha uma perna só, mas tinha uma agilidade terrível com aquela perna e aí logo ele se prontificou, nós combinamos lá certinho, eu fiquei hospedado na casa dele258 e fui lá para a escolinha masculina do Córrego do Vau. E lá tinha primeiro, segundo, terceiro e quarto ano numa sala só. E aí você já viu, fazia uns cinco anos que eu não tinha dado aula, eu dei aula só um ano e pouco, depois

256 Meados de 1965. 257 São dois locais diferentes. Uma escola é no bairro do Espraiado, que pertence ao município de Tanabi/SP. A outra é no Córrego do Vau, que também pertence ao município de Tanabi/SP. 258 O professor comenta que, na década de 1960, era muito difícil para os professores do sexo masculino conseguirem pensão. Às vezes, eles tinham que dormir na própria sala de aula. 219 larguei259, então foi uma dificuldade danada pra mim. Mas é aquilo que eu falei para você lá em casa, você não consegue entrar dentro de uma sala de aula sem estar preparada para aquilo porque senão você vai pra lá e você vai se embananar todinha. Você vai fazer confusão, uma em cima da outra. Então eu logo me organizei, graças a Deus sempre fui muito organizado para essas coisas, eu organizei, fiz um sistema certinho. Então, eu sabia certinho, a hora que eu entrava no primeiro ano, no segundo, no terceiro e no quarto. E logo no princípio, a turma da quarta 260, tinha umas meninas muito boas na escola, me ajudavam a me mexer com o primeiro ano também, a olhar caderno, essas coisas todas aí. Aí eu fui montando, fui montando as coisas e fiquei lá dois anos, dois anos lá 261, porque a família era muito boa, eu queira largar e eles não deixavam, queria largar, não deixavam. Acabei vendendo o caminhão e comprei um jipe, naquela época, tinha aula no sábado também. E a gente saía na segunda bem cedinho. Eu levava algumas professoras junto comigo e ia distribuindo umas professoras pela estrada, a última que tinha era a minha e aí voltava. Saía na segunda de madrugada e voltava no sábado à tarde. É, e morávamos lá na escola, eu tive uma sorte danada nos dois primeiros anos que eu fiquei na casa desse Armando Marquezam; eles me tratavam maravilhosamente bem, era um sítio, tinha de tudo, tinha um quarto só pra mim, refeições, muito bom, eu pagava uma mensalidade por mês, mas muito bom. E depois dali é, aí eu larguei mão, larguei mão de dirigir caminhão, aquela coisa, e comecei a voltar na escola. E naquela época 262, pra você ingressar, não tinha concurso, não existia concurso. Você escolhia, assim, mediante os pontos que você tinha. Se você tivesse x pontos, seguia uma tabelinha, aparecia uma escola, lá não sei onde. Se chegasse a sua vez com aquela quantidade de ponto, você ia lá e escolhia. Então a hora que eu comecei a dar aula, caiu por terra isso daí... aí tinha que ter concurso, só que o concurso não saía, o concurso não saía, então eu fiquei dando aula, mais ou menos, andando pelos sítios aí, mais ou menos uns quinze anos. Não tinha concurso, tudo quanto era professor que tinha é, era uma briga no final do ano, o Estado dispensava todo mundo e, no começo do ano, quando começavam as aulas, aí quem tinha mais pontos263 pegava fácil.

Então na verdade continua esse sistema de pontos, enquanto o concurso não saía? Continua esse sistema de ponto, só que agora tem os concursos, né? Tem o concurso, mas geralmente, agora como passou para municipal, então na municipalidade existe aquela história de mudança de... 264, é tem um ano que tem mais classe, outro ano que não tem, então o concurso ficou assim meio jogado. Aí eu continuei, e todos os anos era uma coisa gozada... em casa era uma briga danada, briga não, era uma chateação danada, que a hora que chegava no final do ano, você

259 Depois de formado, o professor tinha dado aula por um tempo na fazenda do “Japonês” e no bairro das Perobas, ambos pertencentes ao município de Tanabi/SP. 260 Segundo o professor, essas alunas tinham a idade regular para a quarta série. Em alguns casos, tinha alunos mais velhos na sala por causa de repetência. 261 O professor trabalhou na escola do Córrego do Vau durante os anos de 1965 e 1966. Nos 3 anos seguintes, trabalhou na escola do Bairro do Espraiado. 262 Ano de 1965. 263 Esses pontos eram contados por tempo em sala de aula. Depois, o sistema de pontuação passou a ser vinculado às notas constantes do diploma. 264 O professor se refere à política. No concurso de remoção, por exemplo, a política acabava beneficiando alguns. 220 ficava sem escola; aí você só ia pegar escola novamente no mês de fevereiro. A hora que começavam as aulas, você tinha certeza que você ia trabalhar o ano todinho, até dezembro você estava bem, ninguém te tirava da escola, mas (na) hora que chegava em dezembro, você ficava sem novamente. E aí continuou desse jeito aí uns quinze anos, mais ou menos, lecionando assim, pra cá, pra lá. E cada ano eles inventavam uma coisa diferente. Então tem uma nota no diploma de, que reza atrás do diploma de normalista, que é uma nota de pedagogia e psicologia, não sei você sabia disso.

Não. Não? Então, conforme aquela nota tinha um peso. Aí começaram a ter aquela leva de professores formados, com nota tudo dez, nove e meio, nove vírgula nove. Então não sei o que foi que lá, lá na secretaria decerto tinha algum apadrinhado, alguma coisa, resolveram fazer a classificação através de nota265.

A nota do Curso Normal? A nota da Pedagogia e da Psicologia. Como na minha época era um curso super difícil, super duro, a nota da gente naquela época variava em torno aí de sete, sete e meio, oito era uma nota excelente. No meu caso, por exemplo, eu tinha oito de Pedagogia e eu era o último para escolher, porque as escolas, as mais modernas 266, os professores todos tinham dez, nove e meio, dez, certo? Então na hora que chegava a hora de escolher as classes, aí vinha lá, quem tem nota maior, aí eles davam risada da gente: “É o último, vixe, você é o último pra escolher...” E olhe lá ainda se escolhia, porque tinha gente que, se tinha sete, sete e meio, não escolhia. Então o que sobrava pra mim? sempre as piores classes. Sempre os piores lugares, e concurso nada, concurso nada. Aí eu lembro direitinho uma vez, dando aula lá no Espraiado, eu, a Irma Rosa 267 e a Iolanda Pacheco, os três fomos para lá, pra ver quem é que pegava, que classe pegava. A Irma que tinha uma nota melhor ela pegou na frente, então ela pegou é, quarto ano. Aí a Pacheco, a nota depois da minha, depois dela, pegou segundo e terceiro ano, porque eram duas classes pequenas então dava para ajuntar duas classes, e sobrou o primeiro ano para mim268. O primeiro ano tinha quase 40 alunos, acho que 38, 39 alunos de primeiro ano e nenhum deles sabia nem o que era lápis, nem borracha, nem caderno, nada. Naquele tempo, não tinha esse negócio de ter em casa e conhecer, nada! não tinha nada disso. E a criança tinha um medo danado do professor, né? e eu, grandão desse jeito, a molecada tremia de medo, só de entrar na classe, tinha criança que, coitadinho, fazia xixi de medo. Mas, graças a Deus, logo eu começava a bater papo com eles ali, entrosava direitinho, mas tudo aluno sem noção de nada, nem de número, nada, nada, nada, nada. Não

265 Meados dos anos de 1967 e 1968. 266 O professor Etore se refere aos cursos dos anos de 1967 e 1968. 267 A profª a quem ele se refere é Irma Rosa da Silveira Viana, também professora colaboradora nesta pesquisa. 268 Foi o ano que a professora Irma Rosa da Silveira Viana, em sua entrevista, comentou que a escola tinha três turnos. Então era um turno com o quarto ano, o outro com o segundo e terceiro juntos e outro somente com o primeiro (em média com 40 alunos, só de primeiro ano). Segundo o professor, tinha alunos mais velhos, atrasados, em todas as séries. 221 sabia o que era um, dois, três... não tinha noção de nada, nada. E naquela época você tinha que, tinha uma meta para você cumprir, olha que chegava no mês de julho, a criança tinha que estar no meio da cartilha, as sílabas simples tinha que dominar. Você tinha que estar com a tabuada, até a tabuada do três, no final do ano eles tinham que saber. Então a hora que chegava no mês de julho, a criança tinha que estar sabendo a tabuada pelo menos do número um e do número dois. Isso aí era um inferno verdadeiro porque, como é que você pega uma criança que não tem noção nem de número, de nada, e você tem que fazer problema, e problema? No final do ano, o primeiro ano, tinha que resolver problemas. Agora você calcula como era o ensino.

Até a própria leitura e a escrita que ele tinha que saber para trabalhar o problema... Pois é, e outra coisa, você tinha que dar aula de Língua Portuguesa, eram tantos minutos, Matemática tantos minutos, Ciências tantos minutos e Estudos Sociais tantos minutos. Isso aí era infalível. Você tinha que fazer isso daí269. Hoje em dia eles não cobram mais, hoje em dia se a professora fizer festinha, passa todo mundo e acabou. Não existe assim uma avaliação, uma coisa. A criança, se ela vai bem, ela vai; se ela vai mal, ela vai; o professor não tem responsabilidade em cima do ensino do aluno, ele lava as mãos: “Ah, ele não quis aprender, ele não quis aprender”. Nós não, eles cobravam. Teve uma época que você ganhava até ponto de acordo com o número de alunos aprovados, era terrível! Então chegava no final do ano, era aquela correria, as provas vinham da Secretaria da Educação, lacradas, fechadas, e quem fazia a prova dentro da sua classe não era você, era um outro professor270.

Mas essa prova era uma vez por ano? Era uma vez por ano, na hora de fechar o ano, pra ver quem passava, quem ficava. E se não tivesse aquela nota, tomava bomba mesmo, não tinha conversa, não. E não tinha esse negócio de segunda época, segunda chamada, nada, era reprovado. Eu lembro direitinho que a gente era obrigado a escrever no boletim, em vermelho, “reprovado”, era uma barbaridade.

E isso influenciava na pontuação do professor depois? Também!Depois caía na pontuação do professor. Então, tinha professor que no dia da prova chorava, dava faniquito, aquela coisa toda, porque sabia que a classe não tinha desenvolvido o tanto que tinha que desenvolver. E tinha uma “politicagem” muito feia dentro da escola, principalmente em grupos escolares e coisa assim. Os professores mais queridinhos do diretor etc. etc., os mais velhos, os que tinham mais pontos, aquela coisa toda, geralmente pegavam classes melhores. Então era comum, a Secretaria é... pegar as fichas dos alunos e montar as classes para determinado professor, então...

Já selecionava a própria classe? Já selecionava pro tal professor, o professor entrava na classe, a turma já sabia,

269 Segundo o professor, na década de 1960 vinha estipulado pela Sede o tempo para trabalhar as disciplinas. Por exemplo, uma hora para Português e uma hora para Matemática. Ciências, História e Geografia tinham que ser trabalhadas duas ou três vezes por semana. O método que o professor usava era livre. 270 As provas vinham da Delegacia de Ensino, lacradas. Isso por volta da década de 1980. 222 falava “nossa! só nata, só a nata.” Em compensação tinha o outro coitadinho que só pegava aqueles que não iam, de jeito nenhum, aquela coisa de louco. Aí chegava no meio do ano, ficavam esnobando, né? porque a classe deles estava lá na frente e a sua estava lá pra trás. Era uma disputa terrível, uma disputa terrível, só que funcionava, funcionava porque o professor fazia “das tripas coração” pra poder dar conta, né. Era terrível.

Essa pontuação no início, que o senhor falou antes, de olharem diplomas, era por tempo de serviço? Teve uma época que tinha por tempo de serviço. Teve outra época que era por nota. Você fala para escolher a classe?

É, na escolha. Isso, isso. Aí teve época que foi só a nota do diploma. Eu lembro direitinho que eu estava numa classe grande, pra distribuir as classes, no sítio, e tinha um tal de professor Galeano, ele recém-formado, ele tinha dez em Pedagogia, mas ele não sabia nada, nada, nada coitadinho. Aí ele já olhou na minha nota e falou: “Quanto é que você tem, oito? Eu estou com dez”. Então ele escolheu na minha frente e depois nós fomos na mesma escola, que funcionava de manhã e à tarde, duas classes, foi aqui perto de Ecatu. Aí fiquei muito amigo dele, aquela coisa toda. E todo o mês você tinha que apresentar um resumo. O resumo marcava quantos dia letivos teve, quantas faltas o aluno teve, pra chegar no final do ano, você fechar o aluno, a nota, aquela coisa toda, passar na caderneta, tudo certinho. Ele não dava conta de fazer nem o resumo e escolheu na minha frente. Eu tinha que fazer o resumo para ele, porque ele não sabia, praticamente nada, então essas barbaridades foram acontecendo assim direto, toda a vida foi assim.

E nesse resumo do aluno, influenciava o número de faltas para a reprovação dele? Se faltava demais, também, reprovava também. Geralmente quando chegava no meio do ano, assim, você olhava na caderneta e de acordo com o número de faltas você já punha em vermelho, ele estava eliminado. Então, nesse resumo mensal, você tinha que colocar o aluno que estava faltando, você dava baixa nele, levava para escola, na sede. Aí a sede tinha o controle certinho das reprovações, de tudo. A vida do aluno ali... era feito assim.

E além do Curso Normal, você fez outros cursos? Pensando no magistério. Cursos de especialização... Então, depois que eu comecei a dar aula, que eu já estava mais ou menos, acho que com uns 5, 6 anos dando aula, aí abriu a faculdade em Jales, de Pedagogia. Aí o governo disse o seguinte: quem tivesse Pedagogia ia ganhar “x” a mais. Aí foi aquela correria, todo mundo foi fazer Pedagogia. Então a cidade inteira ia fazer Pedagogia em Jales 271. Aí nessa ocasião eu estava com uma classe até aqui nos Anselmos, aqui perto do Sapé272. E aí eu fui também para a faculdade para ver como é que era, como é que não era.

271 O professor se formou em Pedagogia na cidade de Jales/SP no ano de 1977. Jales/SP dista 108 quilômetros de Tanabi/SP. 272 Bairro dos Anselmos, município de Tanabi/SP. Sapé é nome do local onde estávamos realizando a 223

Mas custava caro a faculdade, eu tinha três crianças pequenas, aquela luta toda, e eu fui junto com o pessoal...; “não, não... vamos junto! vamos junto!” Aquele mundo de professores. Cada um foi com um carro, daqui, dali, aí chegamos na faculdade, fizemos a inscrição lá, e passei no vestibular. Aí passou bastante gente... e não tinha como esse pessoal viajar. Como é que faz, como é que não faz, ia atrás de ônibus, não dava certo, naquele tempo a prefeitura não dava ônibus para ninguém. E aí não dava certo, foram atrás de um ônibus, custava muito caro. Aí, não sei quem lá que sugeriu que eu podia comprar, porque a maior parte era tudo mulher, só tinha eu de homem, naquela turma. Então as mulheres falaram assim: “Etore, porque você não compra uma perua e nós te pagamos a viagem? E dá para você pagar a faculdade também”. Aí nós fizemos uns cálculos lá, aí eu comprei uma perua, uma Perua kombi, eu levava o pessoal e com a viagem, eu viajava e fazia o curso também, e aí eu fiz o curso de Pedagogia.

Em que ano foi isso? Isso aí foi em 1970, 1968, 1969, por aí.

Já tinha alguns anos que o senhor estava na sala de aula... É. Aí dentro da própria faculdade começaram a aparecer cursos novos. Apareceu curso de Administração Escolar. Eu fiz também. Depois, teve uma mudança grande, porque a escola, ela vem de mudanças constantes, eu nunca vi um ano ficar igual ao outro. A cada ano que passa, eles modificam, entra um pessoal novo lá, eles modificam, entra um Secretário novo, ele resolve fazer umas mudanças lá e muda. Ele não quer nem saber, nem pergunta pro professor, pra quem está acostumado com crianças, para ver se dá certo, se não dá. E aí então surgiu, que ia desaparecer História e Geografia, só ia ter Estudos Sociais273 nas escolas. Nessas alturas eu já estava fazendo é, eu tinha acabado de fazer Administração Escolar e tinha terminado Pedagogia. Aí eu entrei novamente na faculdade para fazer Estudos Sociais. Aí esses Estudos Sociais era outra turma, a gente trocava os carros, essa coisa toda. Fiz Estudos Sociais. Antes de acabar Estudos Sociais, no primeiro ano eu já peguei aula no ginásio, já aproveitei dar aula no ginásio. Peguei muita aula no ginásio, sobrava aula porque era Estudos Sociais que apareceu e eu tinha o curso, então tinha aula pra tudo quanto é lado. Eu peguei um monte de aula em São José do Rio Preto. Viajava de Tanabi para São José do Rio Preto, todos os dias. Saía cedo de casa e voltava às onze horas da noite, onze e meia, meia-noite. Dava aula em, em quatro, cinco escolas. E nessa ocasião eu larguei mão da escola primária, eu larguei. Eu fiquei, porque tinha muita aula no ginásio, larguei mão da escola primária, aí eu lecionei, mais ou menos uns cinco anos, mais ou menos no ginásio, é Estudos Sociais274. Aí de repente, as novas mudanças na Secretaria lá, não ia ter mais Estudos Sociais, entrevista. 273 A disciplina Estudos Sociais foi inserida no currículo escolar pela Resolução 8 de 1º de dezembro de 1971, através do qual o ensino de História foi suprimido para dar lugar aos Estudos Sociais, e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), justificando que essas disciplinas poderiam dar “uma visão mais global da vida.” Na verdade, era uma tentativa do Governo militar de influenciar, desde cedo, a educação para a formação de cidadãos mais passivos, menos politizados.

274 No início da década de 1980 o professor fez concurso de primário e largou o ginásio (fez concurso para dar aulas no ginásio também, mas não assumiu). 224 aí ia passar a ter novamente Geografia e História. Aí o que eu fiz? eu tive que voltar na faculdade novamente e fazer um tipo de complementação em História e Geografia. Então eu tenho o diploma de Normal, eu tenho um diploma de Administração Escolar, de Pedagogia, de Estudos Sociais, de Geografia e o diploma de História 275. Aí nesse ínterim saiu concurso para Professor I, porque não tinha concurso, nem para Professor I, nem parara Professor III, II nada 276. Aí saiu concurso para professor I e eu fui fazer. Falei: “Ah, vou fazer”. Todo mundo em casa: “Ah, faz, faz, faz”. Aí fui fazer. E felizmente eu passei até bem. Passei até bem, mas tinha muita escola em São Paulo, aqui por perto não tinha, tinha umas escolas muito ruins, aí eu resolvi escolher no primário em São Paulo, porque era efetivo. Como eu tinha aquele monte de diploma fui pra São Paulo, cheguei lá em São Paulo escolhi uma escola lá no bairro Santa Tereza, lá perto de Embu Guaçu lá, lugar horrível. Pra escolher a escola, eu fui pelo nome, né. Na hora de escolher, não conhecia os lugares, então o nome da escola era nome de japonês, era Tadakiyo Sakai. Aí eu lembro direitinho falei: “Ah, eu vou nessa, né, escola de japonês deve ser boa, né? japonês aí, eu vou escolher nessa daí mesmo”. Aí escolhi, Tadakiyo Sakai277. Aí tinha uma japonesa perto de mim, que iria escolher logo em seguida, ela é até de Marília, ela falou: “O senhor conhece essa escola?” Eu falei: “Eu não conheço nada, eu vou pelo nome”. “Ah então eu vou junto com o senhor”. E escolheu também junto comigo, é amigona minha até hoje. Aí nós escolhemos, Tadakiyo Sakai. A hora que nós chegamos na escola... aí meu Deus do céu! era uma favela, mas uma favela tamanha que dava medo de ver, era um morro enorme assim e a escola lá em cima, na ponta do morro. O ônibus passava, parava lá em baixo, a gente tinha que ir a pé até lá em cima. E era tudo favela em volta. Aí eu cheguei lá, falei assim: “Eu vou embora, não vou ficar aqui não”. Mas aí eu entrei na escola, o pessoal muito bacana e tal. A escola, os vidros todos quebrados, as portas, tudo arrebentadas, falei: “Nossa Senhora! o que é isso? o que eu vou fazer aqui?...” Naquela época os professores faziam o seguinte, eles escolhiam, entravam com licença e vinham embora. Alguns tiravam, por exemplo, licença de trinta dias. Porque você só pode ser mandado embora se você faltar trinta dias seguidos. Então tinha gente que não conseguia licença, ele faltava 29 dias, a hora que ia interar o 30° dia ele ia e dava aula e no outro dia voltava para cá, pro interior novamente. A escola ficava lá, a Deus dará. Mas aí eu falei: “Não, isso daí eu não vou fazer de jeito nenhum”. Aí fiquei na escola, aguentei firme na escola. Aí fui fazer uma amizade danada, fiz amizade inclusive com os bandidos todos da favela lá, eles me tratavam muito bem, e aí eu fiquei dois anos em São Paulo. Só que eu dava aulas no primário de manhã e depois eu dava aula no ginásio, à tarde e à noite.

Mas esse concurso era pro cargo de professor I. É ensino primário? Professor I. Ensino Primário. Então para o ensino primário eu era efetivo, certo? E naquela época o professor primário dava aula num período, não tinha esse negócio de dois períodos, ele dava aula num período, no outro período ele não fazia nada, ia corrigir prova,

275 O professor se formou em Pedagogia no ano de 1977, em Estudos Sociais no ano de 1972, em Geografia e História em 1979 e Administração Escolar no ano de 1971. 276 Segundo o professor, o Professor I dava aulas no ensino primário, eram os normalistas. O Professor II dava aulas no Ginásio (até a 8ª série), tinham Licenciatura Curta e o Professor III dava aulas no Ginásio e Colegial. 277 Isso foi no ano de 1982. 225 essa coisa. Então, o que eu fazia? dava aula de manhã na escola, arranjei uma pensãozinha lá perto, era o inferno verdadeiro. Eu dava aula de manhã e eu voltava à tarde e à noite na escola pra dar aula no ginásio de Geografia. Aí fui me especializando em Geografia. Aí demorou quanto? depois de São Paulo, dois anos ou mais, aí teve um concurso de remoção, eu entrei no concurso de remoção e vim pra Tanabi, na escolinha rural de Perobas278. Perobas naquela época tinha uma escola lá. Aí vim para Tanabi e continuei dando aula no ginásio e dando aula na escolinha. Aí abriu concurso... não, minto! antes disso daí, o Maluf, pressão danada em cima dos professores para aumentar o salário, aquela coisa toda, e ele não queria aumentar, o que ele fez? ele aumentou a carga horária do professor, ao invés do professor dar quatro aulas, o professor passou a dar oito aulas. Então você podia ter duas classes. Aí o que eu fiz? eu vim para Tanabi, peguei uma classe, né? e larguei o ginásio e peguei uma outra, peguei duas classes, então eu dava uma aula no sítio, e uma aula eu peguei, até foi a aposentadoria da minha senhora, no Ganot Chateaubriand. Então eu tinha uma classe efetiva no sítio, eu levantava cedinho, dava aula até meio- dia, chegava em casa, tomava um banho rapidinho, almoçava e voltava para o Ganot e dava mais quatro horas de aula. Então eu tinha dois cargos, na realidade279. Aí apareceu concurso para professor III 280, fazia vinte anos que não tinha concurso, aí eu prestei o concurso de Geografia e passei.

O professor III é o que dá aula hoje de quinta a oitava (do sexto ao nono ano)? Exatamente, de quinta a oitava até colegial, né? podia dar. Era o professor III. E passei no concurso de Geografia. Na hora de escolher, tinha classe tudo em volta, foi um concurso meio difícil, em Tanabi só passaram duas pessoas e na hora de escolher começou aquela história, né? Não... larga mão, porque patatá... Aí o que aconteceu? eu consegui a segunda vaga dentro do Ganot. Então eu atravessava a rua, você viu minha casa ali no Ganot? eu atravessava a rua e tinha uma classe de manhã, vinha em casa, almoçava e voltava, tinha outra à tarde, na mesma escola. Então eu não escolhi a vaga de professor III, eu passei no concurso, mas quando eu fui escolher, todo mundo falava assim: “Etore, larga a mão, você está com duas classes dentro de casa, você vai sair daqui para vir enfrentar a viagem novamente?” Pois para esse concurso de professor III, tinha aula em Rio Preto, em Bálsamo, em Votuporanga 281, em Tanabi não tinha. Ele falou assim 282: “Você vai ganhar menos do que você está ganhando hoje”. Porque com duas classes, eu ganhava mais do que se eu estivesse dando aula no ginásio só, com 40 aulas no ginásio. Aí, eu não escolhi o concurso, e fizeram até festa para mim. Para não ir no concurso, porque tinham outros professores que se eu fosse, eu ia tirar a vaga deles. A escola, tudo... “Não, você não pode sair daqui em hipótese alguma”. Estou com duas classes lá, eu falei: “Quer saber de uma coisa? vou ficar aqui mesmo”. E fiquei, fiquei. Aí eu tive mais sorte ainda, porque logo em seguida veio uma diretora para o Ganot e me colocou como Assistente, eu fiquei como Assistente, depois trocou duas, três diretoras, mas eu fiquei como Assistente, mais ou menos uns nove anos, Assistente de Direção e alguns, acho que 2, 3 anos eu fiquei como

278 Perobas pertence ao município de Tanabi/SP. 279 Era duas classes primárias. Duas classes como efetivo. 280 Em meados dos anos de 1983 e 1984. 281 São José do Rio Preto/SP, Bálsamo/SP e Votuporanga/SP, distam 40 quilômetros, 14 quilômetros e 43 quilômetros de Tanabi/SP, respectivamente. 282 O pessoal da escola. 226 diretor da Escola283.

E quando o senhor veio aqui pra Perobas, neste primeiro concurso, em que ano foi isso? Ah, agora você me apertou, foi em... já estava em 1980, 1984, 1985 por aí.

E aí, em Tanabi, quando o senhor passa nesse segundo concurso, que não tem vagas em Tanabi para professor III, já existia Padre Fidélis, João Portugal, é que não tinha as vagas mesmo? Já, já existia tudo, não tinha vaga em Geografia, que eu tinha passado em Geografia, não tinha vaga, estava lotado, tinha em volta, até tinha. Mas aí eu teria que sair de casa para ir para Monte Aprazível284 dar aula no ginásio e eu ia ganhar menos do que eu ganhava nas duas classes. Então, eu falei: “Não! eu vou continuar, continuar na escola primária”. Eu tive sorte, depois passei para Assistente, depois passei por diretor, então eu acabei ficando melhor assim.

Entendo, e agora para a gente falar um pouco do dia a dia das escolas, principalmente das escolas isoladas, das escolas do sítio. Como era essa rotina de sala de aula? As salas na maioria eram multisseriadas, estudava primeira, segunda, terceira e quarta série no mesmo espaço, ou como no caso do Espraiado que era dividido em três turnos. Mas como era a rotina, merenda, matrícula, dia a dia com os pais, com os alunos? A matrícula era feita na própria escola. Nós tínhamos o livro de matrícula, você fazia matrícula, o nome do pai, da mãe, aquela coisa toda, a profissão, né? tudo do sítio. Aí depois você levava esse livro para a sede, que a sede nossa era o Ganot Chateaubriand, era o que comandava as escolas rurais, e cada escola rural era uma escola, desde clientela, posição, tinha algumas escolas que eram disputadas, porque eram mais perto, a clientela era melhor e tinha escola que tinha dois períodos. Teve escola que chegou, eu já falei para você, a ter três períodos, né? Mas geralmente a escola tinha primeiro, segundo e terceiro ano, geralmente era isso aí. O quarto ano, como era um ano já a mais, assim, mais adulto, geralmente a criança largava mão, ela não ia na escola mais, porque trabalhava na roça, o pai não interessava muito para o quarto ano, às vezes tinha um aluno, dois, três alunos no quarto ano, certo? Então às vezes o pai trazia para a cidade, ou fazia alguma outra coisa diferente... mas eu dei aula vários anos com primeiro, segundo, terceiro e quarto ano dentro de uma sala aula, de um sala só. Dividia só em espaço da carteira e dava aula assim.

E essa questão de ter escolas melhores, melhores em que sentido, de rendimento? Melhores na clientela, principalmente na clientela, porque tem bairros que tem muito sitiante, tem muita gente, assim, de poder aquisitivo melhorzinho. Então as crianças são melhores tanto como o aluno é assim no dia a dia, no trato, eles são melhores. E tem escola, igual essa lá do Espraiado, era só nortista, entende? tinha um filho ou dois filhos de fazendeiro que destoavam dentro da classe. O resto era aquele pessoal pobre, pobre, pobre mesmo até não ter jeito. A maioria tudo descalço, era uma outra vida, uma outra...

283 Começou a trabalhar como Assistente de Direção no ano de 1988. Ficou os últimos nove anos da carreira na Direção (Assistente e depois, Diretor). Aposentou-se no ano de 1997. 284 Monte Aprazível/SP dista 18 quilômetros de Tanabi/SP. 227

Agora a merenda, a merenda era uma coisa gozada porque, como homem, eu não perdia muito tempo com merenda. Então a gente pegava os alimentos na prefeitura. Quando a gente vinha pra Tanabi no sábado a gente corria na prefeitura, uma vez por mês, e lá tinha as porções indicadas para cada escola. Essas porções eram feitas de acordo com o número de alunos, era por aluno, então você levava aquela quantidade de mercadoria pra fazer a merenda. Então, todas as escolas tinham um fogãozinho separado, um tipo de uma cozinha, então ali você levava os alimentos logo cedo, geralmente as meninas de quarto ano é que faziam isso. Na minha situação eram elas que faziam. Eu costumava dar uma orientada. Então, conforme elas folgavam um pouquinho dentro da classe, elas corriam lá e faziam as coisas. Os alimentos vinham mais ou menos preparados, era só a questão de colocar nas panelas, e tinha a quantidade de água para pôr, então era muito fácil fazer. Era um tipo de arroz, temperado, já próprio, então não tinha muita variedade de comida, era aquilo ali e os meninos comiam até bem aqueles alimentos. E teve uma ocasião, que as crianças eram tão pobres, tão pobres, que eles reclamavam que não tinha nada para comer em casa, que tinha mais irmãos. Então quando chegava na hora da merenda, os irmãos vinham junto, eles vinham junto e comiam tudo junto. Só que aí a merenda não dava, então chegava mais no final do mês a merenda acabava, aí eu ia na prefeitura, eles às vezes arranjavam um pouco mais, é uma coisa, mas era só isso.

E essa divisão do tempo das aulas, de Estudos Sociais, Ciências, Matemática, Língua Portuguesa. O professor que administrava ou existia assim, um coordenador, um inspetor que ficava fiscalizando... Nada, nada disso. A coordenação apareceu muito tempo depois, era o professor que fazia tudo, né? Às vezes o inspetor de Ensino fazia visita na escola 285, mas dificilmente ele dava alguma dica para você. Ele só vinha ver o que você estava fazendo, se você estava na escola, se você não estava, se você estava faltando ou não, se você estava trabalhando. Aí ele fazia um tipo de teste para os alunos na lousa, ia chamando os alunos pra ver como é que os alunos estavam. E aí eles colocavam um, como é que chama... um relatório e esse relatório constava lá tudo, até o jeito que o professor dava aula. Mas não ensinava nada à gente não, naquela época a gente aprendia era sozinho mesmo, através de experiência com outros colegas, através de livros, e você tinha que pesquisar, você tinha que ir atrás e o que mais assim é, que te deixava mais a vontade, dentro da sala de aula, é a experiência do dia a dia. Cada dia de aula você aprende uma coisa diferente. É com aluno diferente, é com outra colega, uma série de coisas. E as aulas eram administradas assim: Você entrava, você já sabia o que tinha que fazer, porque se você não soubesse você não dava conta de dar aula. Então tinha o diário de classe que você tinha que obedecer, e esse diário de classe era um tipo de caderneta e ali você sabia o que você ia dar durante aquele dia, você preparava em casa. Então... Matemática... “o que que eu vou dar de matemática hoje? Eu vou dar dois problemas - por exemplo - para a quarta série. Eu vou dar dois problemas pra terceira série. E vou dar um probleminha pro primeiro ano.” Era feito assim. Aí você deixava, eu costumava deixar o primeiro ano, eu passava as coisas na lousa muito rapidamente, às vezes eu chegava antes da aula e punha na lousa. Escrevia, porque você tinha que pôr na lousa, não tinha como, você ia ditar... não virava nada, então você tinha que escrever o problema na lousa, passava

285 Segundo o professor, o inspetor visitava as escolas duas vezes por ano. Fazia um relatório da visita que era enviado à Delegacia de Ensino. 228 dois problemas nessa lousa, dois problemas nessa lousa aqui. Hora que entrava, os meninos já sabiam. Menino de quarto ano, são esses dois problemas, menino de terceiro ano, esses dois problemas. E enquanto o quarto ano e o terceiro iam resolvendo os problemas, você dava uma outra atividade para o segundo e para o primeiro. O segundo geralmente você dava um... texto, uma coisa assim para eles copiarem, fazer qualquer coisa, para não atrapalhar a classe, e você ia trabalhar com o primeiro ano, que o primeiro ano não tem jeito, o primeiro ano você tem que trabalhar com ele quase que individual. Então geralmente no primeiro ano tinha doze, oito, dez alunos no primeiro ano. Então você às vezes sentava na mesa, na carteira, em qualquer lugar e você passava as atividades no caderno deles, no caderno. Então logo nos primeiros dias você só passa exercício, são praticamente quase que dois meses de primeiro ano, que são só exercícios. Exercícios para ele aprender a pegar no lápis, usar o lápis, usar a borracha, usar o caderno, é porque é aquilo que eu falei pra você: a criança no sítio ela entrava no primeiro sem saber absolutamente nada, mas é nada de nada! não sabia nem pegar no lápis. Você dava um lápis pra ela, e na primeira coisa que ela punha quebrava a ponta do lápis, aí se você deixasse ela apontar o lápis ela ia até acabar com o lápis e não conseguia apontar. Então você tinha que apontar o lápis rapidinho. Eu costumava ter vários lápis já apontados. Então, conforme quebrava, eles já corriam lá e pegavam outro, que depois em outra hora eu apontava os lápis... então, você tinha que ir fazendo todo esse esquema para poder dar conta, se não você não dava conta de jeito nenhum. Agora tinha uma coisa gozada, que no primeiro ano, quando você sai dos exercícios, que você tem aquela parte motora, né? A criança tem que aprender a mexer com o lápis... e eu sempre tive, assim, facilidade para escrever. Eu lembro que quando eu tinha 12, 13 anos de idade, meu pai um dia pegou o caderno e falou: “é um absurdo, não dá pra entender o que você escreve. Você tem que fazer alguma coisa pra melhorar essa letra, como é que você vai entender isso?” Eu, de fato, escrevia e às vezes eu não sabia nem o que eu estava escrevendo, de tão rabiscado que era. Aí eu fiz um curso de caligrafia, Caligrafia De Franco, e aquilo me ajudou demais da conta, mas demais mesmo. Então aqueles exercícios que eu aprendia quando eu era jovem, eu comecei a passar para os meninos desde o primeiro ano. Então acontecia uma coisa gozada: hora que chegava no quarto ano, todos eles escreviam igual a mim, mesma caligrafia, igualzinha, era desenhada a caligrafia. Então aí quando começava a contagem, por exemplo, de números era muito divertido porque a gente aprende números brincando, né? A criança, a gente aprende brincando, então desde joguinhos assim na lousa, na mão. Então você passa na carteira com três bolinhas na mão, por exemplo, menino de primeiro ano, não pode passar de três, quatro pedrinhas... assim. Põe na mão: “Quantos têm aqui?” Às vezes ele nem sabe contar. “Tem um, dois, três. Tem três? Três. Tem três, né? Três”. Aí você põe a mão pra trás e traz só dois, deixa um lá atrás. Aí você fala: “Quantos têm aqui? Dois”. “E quantos que ficaram lá atrás?” Aí eles têm que ir mentalmente fazendo o cálculo. Aí tem... então, tem uns que são mais sabidos do que os outros, lógico, então quando... você vai crescendo devagar, vai crescendo devagarzinho. Aí você passa a contar com os dedos e essa coisa toda, você vai contando devagar. Aí eles começam a trazer do sítio, sementes, coisinhas assim pra eles mexerem. Eu lembro que eu gostava que eles trouxessem a semente de jatobá. Porque a semente do jatobá ela é redonda e grande, então é fácil de usar na contagem, então cada aluno na carteira tinha, pelo menos, uma dúzia de sementes de jatobá. E com aquilo ali nós trabalhávamos a matemática, era em cima daquilo e eles aprenderam com uma facilidade 229 danada. E nós começamos a fazer aquilo que hoje em dia nós chamamos de incógnita, quando o número não aparece. Então desde novinho eles já aprendem isso daí. Então é feito assim na lousa, na lousa é feito desse jeito assim.

(Neste momento o professor vai até a lousa e demonstra como fazia com seus alunos).

Explicação colocada na lousa pelo professor Etore Bilia durante a entrevista, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Então você coloca: 2 +... . Aí aparece a incógnita, certo? Aqui: 2 + não sei quanto, é igual a 3. Então eles têm que achar um número que vai aqui dentro que fique aqui. Então ele vai aprendendo duas operações, uma de mais e depois eu inverto, eu inverto. Então se você vier: 3 menos... o que está aqui. Vai dar esse daqui, certo? Então, e aí você vai aumentando, vai aumentando até você chegar nas tabuadas, né. A tabuada geralmente: 5 x quanto que dá trinta? Ele tem que voltar lá na tabuada, aquela coisa toda, porque na tabuada você nunca ensina tabuada desse jeito que está aqui, ó... nunca faça isso, nunca faça isso aqui, é 3x2 e vai... nunca faça isso, porque ele decora, às vezes ele decora quase que só a sequência, mas se você perguntar um número no meio ele não sabe, certo?

Professor Etore Bilia, durante a entrevista, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Então você tem que aprender a ensinar tabuada. Você coloca um número aqui na

230 ponta, tabuada do três. Três vezes quanto que dá... aí você vai fazendo os números de baixo. E números salteados: 3x3, 3x8, 3x4...

Explicação colocada na lousa, demonstrando a atividade citada na entrevista, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Ele tem que raciocinar exatamente essa conta aqui, ele não tem que decorar, então... aí ele sabe que vai dar 9, 24, e assim é que ele vai fazendo as operações. 286

E essa ideia da multiplicação, 3x3, ele usava esquema aditivo, de somar três vezes o três? Exatamente. Então no começo, tem até aquela história da laranjinha, aquele negócio: “Quantas laranjinhas tem aqui? Tem uma”. Então vai fazendo a numeração. “Quantas laranjinhas tem aqui? Tem duas, né? tem duas”. “E aqui?” E assim vai indo, aí você começa a fazer os conjuntos. “Quanto é que tem nesse conjunto aqui? Tem três”.

Explicação do professor Etore Bilia colocada na lousa, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

E você vai fazendo, vai fazendo, e vai abordando. Agora tem uma coisa que eu achava muito bacana: é na hora que você vai aprender numeração, então você põe lá o número um. Aí você coloca uma laranjinha aqui debaixo, no comecinho... Você vai ensinar vários números de uma vez, número dois, aí você punha duas laranjinhas aqui debaixo, certo? Aí você ia, número três, número quatro, número cinco...

286 Essas práticas eram feitas tanto nas escolas do sítio como nas escolas da cidade. 231

Lousa com explicação do professor, dada durante a entrevista, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Aí a meninada, sentadinha lá bonitinha, pega uma régua, um pauzinho, qualquer coisa para mostrar, então aquele silêncio na classe. Assim, você não pode deixar ninguém conversar nem nada, eles ficam tudo assim... aí você bate a régua aqui, eu não converso, eu não falo, é a régua que fala. Aí eu falo: “a hora que eu apontar, vocês falam o número.” Um... todo mundo fala um. Dois, todo mundo fala. Três, todo mundo fala... Aí, ao invés de você passar pelo quatro, você aponta no cinco, você pula o quatro, aquele que está meio distraído, ele grita quatro, aí é aquela gozação em cima dele, certo? Aí todo mundo: “Ô burrão, ô não sei o que lá, tal...”. A partir daí, você vai e volta, você pula, você... “Que número que é esse?” “E esse aqui...”. Ele falam assim na hora, dois, cinco. E a hora que um erra, você ouve perfeitamente e a classe todinha ouve, aí eles pegam no pé. Então é muito importante a criança ser cobrada, certo? Se você não cobrar a criança ela não aprende. Eu tenho experiência, posso garantir para você, e você cobrar ela, ela aprende, se você não cobrar ela não aprende. Saída de classe. Está na hora do recreio. Eles já sabem já, é a tabuada... É a tabuada do dois, hoje. Enquanto não souber a tabuada do dois certinho, não vai. Então eu falava: “Quanto que é 2x8?” O primeiro que levantava a mão, 16. “Sai pro recreio.” “2x9?” “18”. “Sai pro recreio”. Os que não sabem, vão ficando vão ficando. E aquilo você percebe que vão ficando num estado de nervos, porque está saindo o pessoal e ele está ficando, ele está ficando, até que ele fica quase pro fim. Não cobro nada dele. Só o fato de ele ficar por último é uma cobrança que você não calcula o tanto que no outro dia ele volta queimado com aquilo. Então às vezes, o que errou hoje, dali dois, três dias ele te cobra: “O senhor não vai pedir a tabuada? O senhor não vai pedir a tabuada, professor?” Porque ele estudou, ele quer falar logo de cara o número que tem lá ou então quando na saída da classe: “Que tarefa que vai ter?” Falei: “A tabuada”. Todo mundo já sabe, aí eu vou falando, vou pedindo a tabuada e vou falando o que eu fiz dentro da tabuada. O que não souber, recebe uma folha, essa folha com as tabuadas daquele jeito lá, certo? Ele tem que fazer, então dar uma folha pra aquele que não fez a tabuada e ele tem que trazer de casa, aquela folha completinha. Aquilo também era uma “morte”, porque ninguém quer receber aquela folha. Você não precisa mandar ele estudar, ele sabe que se ele não estudar, ele vai passar vergonha lá dentro da sala de aula. Então é uma cobrança danada, se você não cobrar, não vai. Então o que acontecia? minhas classes de matemática, principalmente: menino de primeiro ano sabia

232 coisa de segundo, de terceiro, porque eles se dedicavam de uma tal maneira que...

Em alguns momentos, tinham atividades comuns? Que as quatro séries faziam? Atividades todos faziam. A atividade, por exemplo, da tabuada eu passava esses exercícios aí, só que vai aumentando... Uma coisa gozada é quando você passa, por exemplo, probleminhas de quebra- cabeça. É o que eles mais gostam, então você coloca lá assim: Em um viveiro havia três frangos e um macaco, dois perus. Quantas aves havia no viveiro? Ah, eles somam na hora e põem o macaco junto, certo? Então aí eles têm que saber que o macaco não é ave. Então é um quebra-cabeça. E eles falam: “Professor, tem pegadinha?” Falei: “Não sei, você lê o problema, se tiver pegadinha você tem que descobrir”. Quando ele percebe, ele vibra: “Ah, já sei, já sei...” Então, geralmente as classes têm esse costume, os primeiros que fazem, eles fazem correndo e geralmente o que faz correndo, geralmente erra. Aí ele tem que voltar. Nossa! ele fica louco da vida, porque ele foi o primeiro, como é que ele está errado? Mas logo eles pegam, logo eles pegam. Então é uma série de coisas que a gente vai aprendendo no dia a dia, a gente vai desenvolvendo dentro da sala de aula. A leitura, a mesma coisa. A aula de leitura, classe todinha lendo. Por exemplo, tem uma sala sozinha do quarto ano, terceiro ano, por exemplo, tem que ler corretamente. Então todo mundo a lição tal. Então vamos lá, número tal, pode ler. Ele não lê o livro, ele lê só o parágrafo. Se errou, pára onde ele errou. Ele vai ser obrigado a escrever aquele parágrafo na hora ali. Se errou, a turma fica ali marcando: “Errou! ele errou! ele errou!” Então, pode copiar esse parágrafo inteiro aí. E aí você vai: “amanhã eu vou tomar essa leitura aqui”. Nossa! eles voltam que voltam na ponta da língua, certo? Porque sabe que se errar vai fazer a cópia : “se errar a leitura, amanhã eu quero a cópia. O que não erra não precisa fazer”. Ah, eles vêm com a leitura que vêm, que vêm tinindo. Eles tinham uma cartilha que eles levavam pra casa. Não, eles tinham o livro. O governo às vezes mandava um tipo de livro ou então a gente fazia um texto e aquele texto você distribuía na hora. Geralmente quando você distribuía o texto na hora, assim, muitos erravam. Então eu costumava dar um texto, ele levava pra casa, ele fazia uma cópia, ele ia bem, aí depois que eu ia cobrar, certo? Porque depois ele tinha que saber, porque geralmente o texto de cara, assim, é difícil, mas o restante vai embora. Então a criança só aprende se você cobrar, senão ela não aprende. Você pode colocar o método que você quiser, se você não souber cobrar, ele não aprende. Se você não está cobrando ele não está nem aí. Outra coisa que tinha demais da conta, quando eu trabalhei de Diretor, essa coisa. Eu fazia questão de pegar os cadernos dos alunos, eu era até meio chatão, mas eu pegava um caderno de um aluno, um aluno de classe. Pegava um caderno de um aluno de classe, um caderno de tarefa da classe “x”: “eu hoje peguei o caderno da classe tal” era aquela correria. Aí eu pegava o caderno e ia olhando o caderno lá da professora e do aluno. Tarefa, tarefa, tarefa, tarefa (o professor ia fazendo gestos como se estivesse folheando um caderno). Aí você olhava o caderno da criança, você não via a presença da professora. A professora não estava no caderno. Aí eu chamava a direção. Porque como não estava no caderno? a professora não aparecia em lugar nenhum. Simplesmente ela passava um visto assim, certo? Passava um visto, e tinha umas que nem o visto não passavam. Manda fazer e 233 não olha! Às vezes uma palavra, um erro que estava aqui, estava lá no fim e ela não tinha visto ainda, certo? Uma troca de sílaba, uma coisa assim. Então a professora tem que estar presente naquilo que ela pede. Um dia se você pedir uma provinha e depois não corrigir, isso aí não vale nada, não tem valor nenhum. Então você pede e passa lá, na mesma hora, ou você corrige ali ou você corrige em casa, não deixa sem corrigir, porque aí você desestimula o aluno... então você olhava na coisa... no livro, então você via as notas, né? da professora que corrige tudo e dá uma notinha aqui e depois ela dá um prêmio. “Quantos dez você teve?” “Quantos seis você teve?” “Tantos!”. Então ela faz um quadrozinho no canto da lousa lá, e lá ela põe em destaque o nome dos alunos que tiveram mais notas melhores, era um tipo de incentivo, certo? Aí tem professor que não faz nada, tem professor que simplesmente entra na sala e dá aula, não cobra nada, não passa nada, e o aluno fica desinteressado da coisa. Esse é o pior mal que existe na escola, hoje em dia ainda é assim. A professora costuma às vezes até falar pro aluno: “Eu não preciso estudar mais, o problema é de vocês”. Eu acho um absurdo isso daí, ela esta lá é pra ensinar, ela não está lá pra... O problema não é dela, como não é dela? Daí você vê ainda hoje em sala de aula fazer isso aí. “Ah, você quer estudar, estuda, se você não quiser, o problema é seu”. Não é assim, certo? Você tem que, se o aluno não sabe, a maior parte da culpa é do professor, a maior parte. Tem aluno, coitadinho, às vezes ele não tem mesmo né?..., mas dentro dos limites, você percebe que ele tem vontade de aprender e ele vai aprender alguma coisa, isso é muito importante.

E nessas classes multisseriadas, o fato de ter alunos mais velhos, eles ajudavam, colaboravam com os menores? Ajudam, ajudam demais, ajudam demais... Tem um método que eu costumava usar também, é a troca de cadernos, certo? Aqui tem uma fileira, aqui tem outra. Então passa um ditadinho lá, tantas palavras. Acabou o ditado, na hora: “Troquem com essa fileira daqui o caderno”. Então ele passa o caderno pra lá e esse pra cá. “Nós vamos corrigir”. Aí eu passo na lousa as palavras, aí o aluno, nossa, ele tem uma coisa que ele quer corrigir, uma vontade, e uma vontade doida de achar o erro, esse que é o..., ele não quer saber se está certo, ele quer saber onde está o erro, porque ele quer riscar de vermelho, no caderno do outro. E sai muita briga por causa disso, porque às vezes não está muito errado e ele vai lá e risca, e o outro fica bravo porque riscou o caderno dele de vermelho, aquela coisa toda. Mas é importante porque cria dentro da classe um tipo de aprendizado porque ele sabe que ele está sendo cobrado. Nossa! ele quer saber por que, “Onde é que eu errei?”. Entende? era demais da conta. Tem um tipo de ditado que eu faço, eu fazia. Eu passava para as professoras, mas elas não sabiam, elas não sabiam fazer porque não... . Dava um resultado que era uma coisa de louco. Você escreve dez palavras na lousa, ou dez números na lousa, ou cinco números, aí depois você apaga os cinco números de uma vez, e ele, você não deixa ele... Põe o lápis de um lado ali, não mexe no lápis, na caneta nada, e eles ficam policiando, um fica policiando o outro. Aí você passa, por exemplo, cinco números, pra começar você põe cinco números lá na lousa, pode ver os números, eles ficam... Você tem que prestar atenção para eles não escreverem em algum lugar, mas os próprios alunos eles se policiam. Aí eu falo: “Eu vou apagar agora, prestem bem atenção”. Aí eu ia lá e “vap”, apagava, né? Aí você conta até dez, por exemplo, você espera um pouquinho, pronto, está pronto: “Agora vocês vão escrever o primeiro número que estava aqui, por ordem. Nossa! depois você falava assim 234

“escreva os três números que estavam aqui” ele decorou a sequência. Então você fala, escreva dos cinco, o que estava no meio, nossa, aquilo vinha aquela confusão toda, e é uma coisa tão fácil de fazer, mas tão fácil. A língua portuguesa era a mesma coisa, você escreve várias palavras na lousa, palavras difíceis, né, eles ficam que eles ficam comendo as palavras lá. Aí você vai lá e fala: “Eu vou apagar uma palavra, preste bem atenção que eu vou apagar uma”. Aí você corre pra cá corre pra lá, eles ficam decorando as palavras, ai você vai lá e “rak”, apaga uma rapidamente. Nossa! eles têm que saber que palavra que apagou e como é que ela estava escrita, essa correção tem que ser feita na hora, no momento, aí você, com uma caneta, passa na classe rapidamente, só certo, errado, certo, errado, aí você pode .... Aí você vai pra outra palavra, aí depois você faz uma média e ele recebe uma nota por aquilo. Por isso que eu falo, tudo que você fizer, tem que cobrar. Se você não cobrar, eles não aprendem, eles encostam. Às vezes tem aluno que fica esperando o outro fazer para ele fazer ou ele também não faz, “você fez? Fiz!”. Se você não foi lá ver, não resolve nada, tem que cobrar, tem que ter uma disputa dentro da sala de aula, não interessa se ele é mais forte, se ele é mais fraco, ele tem que saber que ele está lá pra aprender, então a disputa é muito importante, sempre dei valor na disputa e sempre deu certo.

E pra Matemática, existia, além das sementes de jatobá, existiam outros materiais, por exemplo, o Ábaco? Existiam, sim, essas tabuadas com relógio, que o menino vai lá e roda... sabe. Era uma roda grande, eu tinha, até pouco tempo eu tinha uma em casa. O gostoso é quando você manda um fazer pro outro, ele tem o prazer enorme de ir lá rodar a roda só pra ver o outro, a tabuada que o outro vai falar. Então tem todas as tabuadas lá, de um a dez tem todas lá. Aí ele vai lá e risca e fica torcendo para ter um número ruim pro outro não responder, porque a vibração dele é do outro não responder, então o outro responde e aí vai. Então, eu acho até hoje que a criança, pra ir bem em Matemática, ela tem que saber a tabuada. Hoje em dia eles falam que não precisa, porque tem a calculadora, tem isso, tem aquilo, não, não tem nada disso. Você passa qualquer probleminha na lousa, a criança que sabe a tabuada num “instantinho” ela resolve.

E essa roda, qual era o nome dela? Esqueci o nome agora, mas era um tipo de relógio, relógio de tabuada, relógio de tabuada287. É feito uma roda, ele feito uma roda. (neste momento o professor vai até a lousa e desenha)

287 O professor conta que sempre usava esse relógio. 235

“Relógio da tabuada” desenhado na lousa pelo professor Etore Bilia durante a entrevista, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Ela é feita uma roda assim, e aqui no meio tem o ponteiro. E esse ponteiro ele..., são dois ponteiros, aliás, um vai lá e o outro vai aqui, por exemplo. O ponteiro pequeno, aqui tem os quadradinhos, sabe, tem os quadradinhos tudo em volta aqui, tem os quadradinhos aqui, tem outros quadradinhos aqui, tem um quadradinho maior atrás, e um quadradinho menor na frente. Aí dentro desse quadradinho tem um número e dentro de todos esses daqui tem um número, só que o número desse daqui tem que bater com esse. Então vamos supor que aqui tem o número cinco, tem o número cinco. E aqui tem o número vinte, aqui tem o número vinte, certo? Então ele tem que achar, aí o menino vem e põe esse relógio aqui no cinco, e aí esse daqui tá no vinte ele tem que descobrir cinco vezes quanto que vai dar aquele lá, certo? Então onde que está o número, qual que está o número e tal...

O ponteiro maior indicava o resultado? Ele tem que descobrir... ele tem que coincidir esse número com aquele lá, não importa onde, às vezes tinha até número repetido, mas ele tem que chegar aqui e colocar o número pequeno em um, e o outro tem que achar o número grande, onde é que é a tabuada do...

Mas se chegasse assim, o ponteiro maior no cinco e o menor no dezesseis, por exemplo? Aí não dá.

Aí ele sabia que não dava... Ele sabia que não dava. E ele tem que procurar onde é que está o vinte, certo? Porque aqui está, por exemplo, cinco vezes, aí tem um quadradinho aqui no meio, que o menino escreve aqui 5x2, quanto que dá? Aí ele tem que procurar o grande que ele quer, porque ele tem achar onde que está o ponteirinho que vai dar 5x8, 40, ele tem que achar. Ele tem que procurar e achar.

Isso era fabricado? Isso aí eu que fazia, eu que fazia isso aí. É, você faz um, pega um pedaço de compensado, redondinho o quadro, aí você prega um relógio, com os números, tudo certinho e os dois ponteiros, eu tinha isso daí até pouco tempo, depois não sei pra quem que eu dei. Aí você leva o ponteiro, a criança que leva. Ou você leva o ponteiro pequeno, ou 236 você leva o ponteiro grande.

Da para ir jogando e a criança pode ir preenchendo o quadradinho do meio que vai completar a tabuada? Exatamente, ela tem que completar.

E de um lado ficavam os números grandes que eram os resultados, do outro os menores de um a dez? Isso.

No caso era de um a dez? De um a dez. Porque de um a dez ali porque eles sabem os números que vai dar em volta.

Lousa com desenho do “relógio da tabuada” ao qual o professor se refere durante a entrevista, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Os de fora, os quadrados de fora são resultados. Os de fora eram os resultados.

E são coisas, assim, que dá pra aplicar hoje? Dá pra aplicar, tranquilamente. A criança vai lá e faz direitinho.

Está certo! não conhecia esse, muito interessante. E livros, apostilas, essas cartilhas, esse material, o professor tinha? Esse material a gente passava, igual essa coisa aqui, conjunto, a ideia de conjunto...

(olhando para o livro que mostrava os conjuntos)

Conjunto, quando começou assim a falar em conjunto? Conjunto foi quando saiu o jornalzinho 288, foi quando houve aquela mudança

288 O professor conta que fez muitos cursos e que havia muitos específicos para a Matemática. O professor conta que, desde o início da carreira, usou o jornalzinho (nos anos de 1965 e 1966), nas escolas do Bairro do Espraiado e Córrego do Vau (com esse jornal vieram os conjuntos). Segundo o professor, não havia cobrança para o uso do jornal, usava quem queria. Ele continuou usando em sua prática até a época em que tornou-se diretor. Com o apoio pedagógico do jornal, ele trabalhava com todas as disciplinas e de todos os anos. A professora Irma Rosa da Silveira Viana, colaboradora nesta pesquisa, também afirma que, com este jornal, 237 grande, nossa, teve uma mudança grande na escola, porque apareceram esses conjuntos, essa coisa... não sei em que ano...

Foi na época desse material aqui então da Matemática Moderna? Isso, da Matemática Moderna, foi quando começou a aparecer o conjunto. Até todo mundo não se conformava com o conjunto vazio. Eu lembro direitinho o que era um conjunto vazio. Então era difícil você ensinar para a criança o conjunto vazio. Se é um conjunto, tem alguma coisa. Então a gente explicava assim: você pega uma caixa de fósforo, uma caixa de fósforo é um conjunto, desde que ela tenha dentro os palitos, se ela não tiver os palitos lá dentro, ela é um conjunto vazio. Mas o aluno ficava meio assim: “Mas a caixa de fósforo não é uma coisa, como é que é um conjunto vazio, certo?” Porque a gente costumava fazer os conjuntos com aquelas coisas, né... aquelas coisas, como é que chama? Costumava fazer o conjunto aqui, aí mandava o aluno, esse daqui você tem que fazer o conjunto vazio, mas como é que ele vai pôr uma caixa de fósforo aqui, aí ele: “não é mais conjunto vazio! tem uma caixa aqui, embora ela esteja vazia.” Então era difícil ensinar isso, Nossa Senhora! Então nós acabamos fazendo assim: “Que que é isso daqui?” “É um conjunto vazio.” “Mas não tem nada aí dentro, como é que pode ser conjunto vazio?” Então criou uma polêmica “disgramada” em cima disso aí. Até hoje, ainda, às vezes eu falo: “gente, como era difícil de ensinar o conjunto vazio para a meninada, porque se você pensar bem, é difícil.”

O senhor que acompanhou essa mudança onde não tinha conjunto, depois passou a ter, que importância o senhor vê na Matemática, para o aluno que aprende Matemática a importância de aprender conjunto? Não. O conjunto é bom na numeração. Como nós colocamos ali, três laranjinhas, ali é um conjunto, certo? Então aquelas três laranjinhas equivalem a um conjunto de três unidades lá dentro. Aí você trabalha com unidade, aí depois vem dezena, vem centena e o conjunto é bom pra essa parte aí, certo? E a formação do conjunto também, né? conjunto igual, conjunto diferente, aqueles sinais de igual, diferente, aquilo a gente usava muito, maior, menor. É que foi nessa época aqui também que apareceu, e até hoje quase que não se usa aquilo, né? Aqueles sinais lá de: maior, menor, e tal. Aquilo lá a gente usava muito naquela época. Depois não sei por que, hoje eu quase não vejo a criança usar mais aquilo, muito difícil usar os sinais de maior, menor, diferente, igual.

É, os alunos normalmente têm também... dificuldades para entender sinal de maior, menor.. Não, mas é fácil demais da conta, maior, menor. Porque quando surgiu o sinal maior que, menor que, aqui é o menor, aqui é o maior, aqui é o maior está aberto. Então punha aqui quatro, punha aqui três, três é menor do que quatro, quatro é maior do que três, certo? Ou vice-versa, com qualquer outro número, vão aprendendo. Depois aprenderam o outro sinal lá do... igual. Três é igual a três, três é diferente de quatro. E aí foi esse monte de sinais aí que foram aparecendo, mas hoje eu não vejo mais, quase mais ninguém usando esse tipo de sinal.

usado por ela no ano de 1965, vieram os conjuntos.

238

Lousa com explicação do professor, feita durante a entrevista, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

E esse material aqui, a escola que recebia? Essas orientações? Não, esse material aqui eu comprei, esse daqui foi comprado, Manual Pedagógico...

“Manual Pedagógico para a Escola Moderna”, (sd) 289. Livro do acervo pessoal do professor Etore Bilia apresentado no dia da entrevista.

Quando o senhor estava em sala de aula ou quando era... Esse daqui quando saiu, porque veio aquela mudança, primeiro de tudo veio o jornalzinho, eu dei aula muito tempo com aquele jornalzinho... Esse jornalzinho era melhor do que esse livro aqui, porque era muito bom. Aí imprimiram esse livro 290. Aí eu comprei, era coleção, eram quatro livros, um pra cada ano. Eu não sei onde foi parar o do terceiro ano.

289 CASTRO, N. de; et. al., Manual Pedagógico para a Escola Moderna, 2° grau, São Paulo: Editora Pedagógica Brasileira Ltda, (sd). 290 Isso nos anos de 1965 e 1966. Neste livro, (Imagem 1), tinha muito do jornal que o professor se referiu e da Matemática Moderna. Tinha conteúdos para todos os anos. Veio pela Secretaria de Educação. 239

E aí esse jornal, tanto esse livro, ele traz a atividade? Só atividade, só atividade. Tipos de experiências, musiquinha... se o professor quiser dar aula com isso daqui ele dá, com esse livro ele dá.

E aí existia algum autor, matemático, alguma coisa que ficou na memória, autor de livros, alguma coisa assim? Não. O autor era... agora eu esqueço o nome dos autores, mas tinham autores bons, agora eu esqueço o nome dos autores, faz tanto tempo...

Tinha da Caminho Suave, que usou muito tempo... Caminho Suave era de Português, de língua. Agora o outro, qual que era o outro, gente, tinha vários de Matemática...

Malba Tahan chegou a ver alguma coisa, Sangiorgi... Tinha o livro da Déborah... Da Déborah, tinha um outro nome, eu esqueço o nome dele agora, que era muito bom também.... Agora uma coisa que atrapalha o professor demais, até hoje eu vejo lá nas escolas. Eu não falo nada porque eu não tenho mais nada que ver com isso. Mas é querer pular de uma parte para outra sem saber a anterior... isso aí é o maior mal que existe hoje, principalmente em Português. Português, se você não levar primeiro de tudo os exercícios motores, primeiro exercício motor, se vai fazendo os exercícios motores a criança tem que saber, ela tem que saber dentro da linha, por exemplo, ela tem que fazer uma laçada assim, esse daqui é o exercício motor que melhora a caligrafia; ela tem que fazer isso daqui de qualquer jeito. Aí deste exercício aqui você já tira o l, né? depois vem aquele o..., se você quiser parece o t, depois vem... antes desses exercícios aí tem aqueles que vão de uma linha na outra certinho, inclinado assim, assim, então depois tem... E são exercícios que antecipam a linguagem. Se a criança não tiver desenvolvido com esses exercícios aqui, ela vai ter dificuldade na escrita. E uma coisa que atrapalha demais da conta a escola é quando a criança começa a ler e a caligrafia é, manual, não acompanha a caligrafia, isso é muito comum na escola. Ele sabe fazer a letrinha com a mão, mas não sabe ler aquilo, porque a professora não colocou os dois juntos, não acompanhou os dois juntos, ela foi desenvolvendo só uma parte, a outra ficou para trás. Aí uma dificuldade danada para você chegar naquela parte, porque ele está lá na frente e esqueceu a de trás.

Então, deve-se trabalhar tanto o manuscrito, quanto a letra de forma, que a gente fala... Isso! A gente tem que ir junto, não pode deixar uma para trás, jamais. Então porque, principalmente o A. O A é muito diferente do A comum, né? os outros são mais ou menos parecidos, mas o A, o B também é muito diferente, então se a criança, se você não trabalhar em cima daquilo ali, ela fica pra trás, depois ela não consegue, aí atrapalha, atrapalha... Outro problema que tem na escola é a decoreba, como diz o outro, a criança aprende a decorar e não aprende. Ela decora, então ela pega... eu tinha aluno, uma vez um aluno chegou perto de mim assim, olhando para porta assim: “A galinha pulou na gaiola, e pegou assim...tatatá”. Mas ela não olhou nada do que estava escrito lá, falei: “Meu Deus do céu, quem é que ensinou isso pra você?” 240

“Ah, minha mãe que ensinou”. Falei: “Mas como que a tua mãe ensinou, filho?” “Ah, minha mãe foi falando e eu...” Falei: “É, é... Então vem cá, o que está escrito aqui?” “Ah, não sei, não.”

Ah, a mãe dela leu, provavelmente, ela ouviu... Foi lendo várias vezes, várias vezes e ela aprendeu que a galinha saiu da gaiola e tatatá, tatatá... ela decorou. Então ela ia correndo o dedo em cima assim, a galinha saiu da gaiola, tatatá... Vai aprender o que desse jeito? Nada, decoreba. Então eu usava um papel, um papel de cartolina, eu fazia um buraquinho no papel certinho, assim no tamanho de uma palavra, mais ou menos. E aquele papel era o terror da molecada. Está lendo na cartilha, por exemplo, Caminho Suave, que são letrinhas bem facinhas, então você chega no aluno: “Lê aí”. Papapá, papapá.... Punha o papel assim em cima de uma palavra: “O que está escrito aqui?” Nossa! aquilo para ela era uma morte; ele tem que saber o que é, porque senão não resolve ler. Aí, a partir daquele momento, todos eles usavam o papelzinho furado, põe o papelzinho furado em qualquer palavra...

Eles faziam e tinham um, cada um tinha o seu? Cada um tinha o seu, porque aí ele saía das decorebas, porque ele decorava e não virava nada, parece que sabia, mas, não sabia. Então essas coisinhas é que o professor às vezes não sabe, não tem aqueles anos de experiência, esse que é o problema. E quando você sai da escola, você não sai com essa bagagem, ninguém ensina isso para você, não ensina de jeito nenhum, isso você vai aprendendo devagarzinho, você vai observando, o que deu certo, o que não deu. Esse negócio de contagem com a varinha e com a régua, régua grande, dá um resultado, olha, não quero me gabar, não, mas numa semana eu ensino os dez, de um a dez, e a classe inteirinha sabe. Mas é desse jeito, falando alto, e aquele que erra, o resto faz gozação, e tem que falar, de vez em quando você pega um meio “jururu” lá no meio, você traz ele aqui na frente e faz para ele sozinho, que ele tem que aprender de qualquer jeito. Aí depois é uma consequência, você vai embora.

Bom, então, foram maravilhosas essas informações, conhecer tudo isso, conhecer o dia a dia da sala de aula, as escolas, os percursos... o ensinar Matemática... Matemática é fácil... Onde você arrumou essa foto aqui?

(neste momento o professor está vendo as fotos disponibilizadas pela professora Irma – colaboradora nesta pesquisa - as fotos estão no texto da entrevista da professora)

Com a Dona Irma. Ela tinha com a turma dela, com outras turmas, mostrando a escola ainda antes de... aqui acho que é quando a escola foi construída, tinha uma varanda... Essa escola aqui. Nós, eu, nós dormimos dentro dessa escola...

Aqui era a turma dela.... 241

Olha, gente...

Aí ela que tinha essa fotos... Gente, nós dormimos dentro dessa escola, eu e o Galeano. Dormimos aqui na cozinha... (o professor sorri quando lembra dessa história).

Tudo em 1967... Por aí... Ai ó paiolzinho lá, eu morava aqui na escola, e aquele paiolzinho, eu fiz aquele paiolzinho, e eu criava uns porcos lá no fundo... Gente, eu tenho uma história para te contar que é meio comprida...

Pode contar... fique à vontade. Eu tinha um jipe. Então tinha venda, a escola era pertinho da venda aqui no Espraiado..., aquele monte de gente que era uma coisa. De vez em quando, à noite, assim, fora de hora vinha alguém e pedia pelo amor de Deus para fazer uma viagem, alguma coisa, eu não gostava, não, mas você era obrigado a fazer. Aí um dia, já era umas duas horas da manhã, mais ou menos... “Oh professor, professor, pelo amor de Deus, professor...” Falei gente, o que que é isso? Eu dormindo nesse quartinho, eu o Galeano. Acordei: “O que que é?” Nem conhecia direito, baixinho, magrinho... “Pelo amor de Deus professor, minha muié tá morrendo, o senhor me ajuda, professor?” “Mas o que é que aconteceu?” “Minha muié teve criança, doutor... professor e tá lá morrendo, tá morrendo esgotada lá”. Falei meu Deus do céu o que é que eu vou fazer agora? Aí peguei esse jipe e fomos lá na casa da mulher. Era uma casinha de pau a pique, foi até difícil pra encostar o jipe lá. A mulher tinha tido criança e tinha uma hemorragia muito forte, e a parteira estava lá junto e a parteira não conseguiu, não sei como é que foi a criança, não limpou, não tirou a placenta, uma coisa assim, e a mulher estava morrendo esgotada. Mas a hora que eu cheguei na casinha, assim, falei: “Ah vamos levar essa mulher embora”. Mas a hora que eu entrei na porta no quarto, que eu fui ver a mulher, gente do céu, a mulher, olha, ela pesava uns 180 quilos, por aí, era uma coisa desproporcional, deste tamanho... A cama, você olhava a cama, assim era puro sangue, aquele lençol, aquela coisa, tudo. Falei: “Meu Deus do céu, o que é que nós vamos fazer aqui?” Estava eu, o marido, que era baixinho, magrelinho, e a parteira que era outra senhora já de idade. Vamos levar essa mulher para Tanabi, senão ela vai morrer aqui. E para pôr essa mulher dentro desse jipe? nós não conseguimos pôr. Aí encostei o jipe, assim, como se fosse assim a escada, era um pouquinho mais alto assim, encostei a traseira do jipe, baixei a tampa do jipe e nós não conseguimos pôr a mulher dentro do jipe, de tão pesada que ela era. E quem tinha força, mais ou menos, era só eu, porque os outros dois, um pega daqui, outro pega de lá e nada. Aí, botou em cima de uma coberta lá e nós fomos arrastando essa mulher, pôs ela no chão e foi arrastando até lá, e não conseguia levantar, e puxa pra cá e puxa pra lá, pôs uma tábua, assim, olha foi a mesma coisa que embarcar um..., uma coisa assim. Pôs essa mulher lá na 242 traseira do jipe e botamos um colchão, tudo cheio de sangue, botamos essa mulher dentro desse jipe, e vim pra Tanabi. Chegamos em Tanabi, era o doutor Geraldo Reis, a hora que ele viu essa mulher ele começou a xingar, começou a xingar: “Tá parecendo porco, deixa dar cria lá no mato”. E começou a me encher o saco com aquilo, foi indo, foi até que eu não aguentei e soltei os cachorros nele, falei: “Oh, você vai cuidar da mulher ou você vai ficar enchendo o saco aí? a mulher está morrendo!”. Aí ele falou: “Como é que você traz um trem desse aqui?” Falei: “Não! eu vou deixar morrer lá no meio do mato lá, vou deixar lá morrer no meio do mato?...” Aí nós discutimos lá, tudo, aí levou a mulher pra dentro, dois três enfermeiros não davam conta de pôr a mulher em cima do carrinho pra tirar desse jipe, foi lá tal... aí nós conseguimos salvar a mulher.

A criança já tinha nascido, então, quando você chegou na casa? A criança já tinha nascido, a criança tinha nascido.

Era só a mulher mesmo... Mas olha, que barbaridade, o que foi, coisa de louco...

Outra ocasião, essa foi divertida...

Tinha muita gente na roça, né, que tocava roça. Aí estou na venda (bairro do Espraiado) batendo um papo, assim, isso era umas oito horas da noite, chegou um tal de Cosme, era um baiano lá, chegou pro dono da venda, que chamava José. “Seu José, pelo amor de Deus, seu José, o senhor me arranja um dinheiro aí porque o fiscal do Banco do Brasil está lá na minha roça - plantava muito algodão- está lá na minha roça, está lá em casa, e se eu não arranjar o dinheiro pra ele, pra poder pagar uma taxa, lá, não sei como é que é o negócio lá, eu vou ter que pagar uma multa e vai cortar meu financiamento. Ele está lá em casa e tal...” Eu estava do lado, assim, e falei: “Ô Cosme, como é que é esse negócio aí? conta pra mim essa história aí”. E falou: “É, seu Etore, mas hoje eu passei um dia que o senhor não calcula, chegou um fiscal do Banco do Brasil lá, cara chato, metido, andou na minha roça lá, disse que se eu não pagar uma taxa lá de não sei quanto, eu esqueço agora, ele vai embargar o serviço, vai tirar o meu financiamento, tudo...” Falei: “Cosme, pelo amor de Deus, isso daí tá errado”. “Por que que tá errado, seu Etore?” “Fiscal do Banco do Brasil não cobra nada assim em roça, não, se você quiser pagar, você vai pagar lá no banco”. “Não, mas ele vai pagar para mim...” “Conversa fiada”. “Não, pelo amor de Deus, então como é que é, como é que não é...” E isso tinha uma turma meio doida lá na venda, tinha uma baianada danada, falei: “Esse cara é malandro!”. Ele falou: “Ah, o senhor acha, seu Etore?” “Ele é malandro, certeza que é malandro”. “Então o senhor vai comigo lá em casa, ele tá lá em casa, hospedado lá, a mulher 243 matou um frango, matou isso, fez aquele outro, tá dormindo, vai dormir lá...” “Pára, mas é um bandidão que tá lá na sua casa, rapaz!”. Ah, mas a hora que eu falei um bandidão juntou mais uns dois ou três daqueles homens que estavam ali, vamos lá, vamos lá... Aí peguei o jipe e fomos lá na casa dele. Chegou na casa dele, uns 100 metros antes assim, vamos parar por aqui, para ele não desconfiar qualquer coisa, falei: “Ó, vocês deixam eu conversar com ele primeiro aí depois nós vamos ver o que acontece...” Então tá!. Aí eu entrei na casa, até eu entrei com o Cosme. E tal... “Aqui Sr. Etore, esse daqui que é o fiscal do Banco do Brasil”. Ele estava com uma panca assim desgraçada, numa mesa assim, já tinha jantado, já tinha servido até vinho pra ele. Eu falei: “O senhor é fiscal do Banco do Brasil?” “É, sou fiscal do Banco do Brasil de Tanabi”. Aquela panca danada. “Mas como é que o senhor está cobrando essas taxas aí?” “Não, eu estou fazendo um favor pra ele aí, porque esse povo é muito ignorante, papapá, papapá... não paga as coisas...” (mas precisava ver a panca dele). Eu falei: “E o recibo que o senhor tem do Banco aí? Pra receber o dinheiro aí?” “Não, eu dou um recibinho aqui pra ele aqui e tal...” Eu falei: “Recibinho? Meu amigo, você está com malandragem, cara”. “Ah ó, malandragem rapaz...” Já engrossei... Mas eu já tinha combinado com a turma, ele tinha uma pasta, sabe, eu fiquei com medo que dentro da pasta tivesse um revólver, alguma coisa assim. Aí eu tinha combinado com caras, falei: “Ó, depois que eu chegar, vocês vão chegando devagar e tal”. E foram três comigo. Falei: “Vocês ficam atrás dele meio no jeito porque se ele for mexer na pasta, vocês não deixam, vocês grudam na pasta antes. Se vocês perceberem qualquer movimento que ele fizer de pegar uma arma, uma coisa assim, vocês grudam nele”. E aí foi. A hora que eu... falei pra ele algumas coisas, ele foi pro lado da pasta... Gente, tinha um tal de Caxambu lá, um baianão, juntou a... pasta dele, falou: “Aqui não...”, pensou que era arma. “Que que você está fazendo?...” “O que está acontecendo é que você é malandro, rapaz, você é bandido, você está cobrando taxa, diabo a quatro desse pessoal, que negócio é esse? Banco do Brasil, que Banco do Brasil é esse?” “Ah, porque eu sou do Banco do Brasil”. “Mas Banco do Brasil da onde, rapaz? Eu conheço o fiscal do Banco do Brasil lá, onde é que você mora lá em Tanabi, que você é fiscal?” “Ah, eu moro lá perto da casa do senhor Odilon”. “Isso é conversa”. Doutor Odilon era advogado. Falei: “Conversa fiada, eu conheço todo mundo lá na rua, você não mora lá coisa nenhuma”. Aí eu engrossei com ele. “Você quer saber de uma coisa, rapaz, eu estou te seguindo desde Rio Preto, rapaz”. Porque ele tinha desembarcado no ônibus, falaram... Banco do Brasil, fiscal do Banco do Brasil desembarcar de ônibus, com essa panca aí, falei: é bandido! Eu falei: “Eu estou te seguindo desde Rio Preto”. Ele tinha passado de fato em 244 vários lugares, estava com um monte de cheque, dinheiro dentro da pasta, malandro refinado mesmo. Ah, aí foi gozação, né, esse tal de Caxambu já deu uma gravata nele, e nós prendemos esse cara. Eu falei: “Eu sou, eu trabalho na polícia, rapaz, você está preso”. Aí juntamos esse cara, prendemos ele e trouxemos para Tanabi, 50 quilômetros de distância. Aí viemos os três juntos. Prendemos o cara e viemos para a delegacia de Tanabi. Chegamos em Tanabi, era umas quatro horas da manhã. Aí fomos atrás do delegado, do “diabo a quatro” e tal. E aí, a hora que eu prendi, tudo, ele queria me dar um dinheiro. “Oh, oh... vamos dar um jeito, eu passo um dinheiro pra você, aí, você me solta aí...” “Não, negão, eu vou te soltar lá em Tanabi”.

Nossa, depois queria dividir o dinheiro? Por isso que eu falo pra você o que passa um professor. Chegou lá em Tanabi, o escrivão começou a fazer o flagrante lá, aquela coisa toda. Depois que estava tudo feito, eu não sei que confusão que ele fez lá, ele trocou o nome dele, aí o oficial desconfiou. “Rapaz, esse não é seu nome coisa nenhuma não, rapaz”. “Uai, eu falei que nome eu falei pro senhor?” “Como é o nome que você falou, rapaz, você não sabe nem o seu nome...” Virou aquela confusão. Aí, por coincidência, ia passando o dito do doutor Odilon que ele falou que era advogado. Odilon passou na delegacia, viu as luzes acessas, que vinha de Rio Preto de uma festa não sei o que lá... e falou: “Vou ver o que está acontecendo na delegacia.” Chegou lá, deu de cara com ele: “Rapaz, mas você aqui, rapaz? que você está fazendo aqui?” Ele falou, com aquela cara assim:“O que aconteceu, professor?” Eu falei: “Aconteceu isso, foi assim, assim, assim...” Ele falou: “Meu Deus do céu, mas eu já te tirei da cadeia faz pouco tempo, rapaz, você está aprontando outra...”

Era advogado dele... Era advogado dele. Eu falei: “Mas que filho da mãe”. Aí eu falei: “Como é que é o nome?” “Não é o nome dele esse daí nada não; o nome dele é fulano de tal...” Aí prenderam ele, depois na cadeia ele mandava uns recados para mim, que ele ia sair da cadeia e ia me matar. Ele não sabia que eu era professor, sabe. Depois a turma falava: “Ô professor, o cara vai sair da cadeia e vai te matar...” Ah, vai matar nada... Então, gente, é cada história que nós temos pra contar... (o professor sorri com essas lembranças).

Eu agradeço muitíssimo a colaboração... muito obrigada, professor. Ah, que isso, bater papo só...

245

Tempo de gravação da entrevista: 1h38min33s

246

4. Aluna Shirley Fabri Peruca

Sra. Shirley Fabri Peruca, 2010. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 4 de outubro de 2010, na Escola Isolada do bairro do Sapé (rural)291, com a Dona Shirley.

Então, primeiro fale o nome completo, a idade, se quiser, e aí a gente começa, desde a infância, a contar um pouco aqui da escolinha, e aí a senhora pode ir contando a vontade... Então, fui nascida aqui, tenho sessenta..., vou fazer 68 anos agora em outubro e sou nascida e criada aqui. Só mudei de lá de baixo pra cima aqui só, no mesmo sítio e estou aqui já faz “uns par” de anos, faz 37 anos que eu estou aqui, perto da escolinha.

E conta um pouco então de quando a senhora era criança, que estudava aqui, que ano foi isso.... foi em 1949, mais ou menos, né? Mais ou menos em 1949, que eu estudei aqui na escolinha, 1949, eu tinha 7 anos quando eu passei a estudar aqui.

Tá, e essa foto é dessa época? É dessa época. Do meu primeiro ano de escolinha.

Nessa foto só têm meninas, então a classe era de meninas? Era de meninas.

Os meninos estudavam outra hora? Estudavam outra hora.

Com a mesma professora? Isso agora eu não lembro se era, mas eu acho que era a mesma, viu.

291 O local onde realizamos a entrevista é conhecido na cidade de Tanabi/SP como Bairro do Sapé. É um bairro na zona rural onde funcionava a Escola Mista da Fazenda Alferes. 247

Turma da Escola do Bairro Sapé, município de Tanabi/SP, 1949. Acervo pessoal da sra. Shirley Fabri Peruca.

E mesmo sendo escolinha aqui no sítio, esse uniforme era obrigatório, tinha que pôr a roupinha? É, tinha que pôr a roupinha...

Que era o laço na cabeça, era saia? O lacinho a gente punha porque era costume das mães ter isso daí, era um costume e o uniforme era o “uniforminho” da escolinha.

E eu estou vendo aqui, parece que tinha um suspensório, era saia? É.

Tinha bastante meninas... E essas meninas aqui já eram misturadas. Tinha de primeiro ano, segundo... Tinha. É primeira, segunda até a terceira.

E aí então foi estudar em Tanabi no quarto ano, foi isso? Aí o quarto ano eu fiz na cidade, em Tanabi.

A senhora ficava lá, na casa de quem, como é que era? Ficava na casa da minha avó.

E fez até o quarto ano e parou? Aí eu parei.

Na cidade em Tanabi, já tinha como avançar ou não, só tinha até o quarto ano? Ah, isso agora eu não lembro. Mas, deveria ter, né? estudado mais... Eu só fiz o quarto porque morava no sítio, então eu não quis ir para a cidade ficar lá, então eu fiquei no sítio.

248

Aí depois na época já de mocinha, então aí na estação... conta um pouco como era isso. Se esta estação era movimentada, trazia movimento aqui para a escolinha, para a venda... Tinha muito movimento a estação ali. A gente pegava o trem, ia pra Rio Preto 292. De Rio Preto pegava de volta piava 293 aqui. Então era aquele trânsito, sabe, que nem um ônibus, né? Só que era o trem que levava. A maioria das pessoas pegava o trem pra ir pra Rio Preto, Mirassol294, tudo lado pra lá.

Grupo de jovens na Estação Ferroviária de Tanabi/SP, (19??). Acervo pessoal da sra. Shirley Fabri Peruca.

E depois já adulta, então, que a senhora continuou morando aqui. As filhas estudaram aqui? As minhas filhas estudaram. Elas fizeram primeiro, segundo, terceiro e quarto. Aí depois foram pra cidade.

E foi nessa época que a senhora ajudava na cozinha ou não? Eu ajudava na cozinha.

Durante quanto tempo, como era isso, como acontecia isso? A comida vinha da cidade? Ah, eu fiz, mais ou menos, uns cinco anos. Já vinha pra fazer, né? Aí fazia uma sopa, fazia... depende o que tinha pra fazer, a gente fazia. Mas eu tinha uma hortinha, fazia, plantava as coisas, fazia uma saladinha de alface pras crianças, tudo da hortinha que eu plantava.

E as crianças ajudavam na horta também ou não? Não, isso daí era nós, eu e meu marido que mexíamos na hortinha.

292 Ela se refere à cidade de São José do Rio Preto/SP, que dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 293 A Dona Shirley está usando uma corruptela do verbo “apear”. O seu significado era “descer, pôr no chão”. Ele era usado inicialmente com o significado de descer do cavalo ou da carruagem. Com a chegada dos trens, o verbo continuou a ser usado, em especial, no meio rural. 294 Mirassol/SP dista 26 quilômetros de Tanabi/SP. 249

Em que época começou isso? Agora certinho pra você eu não sei, não.

Já tinha as meninas? Já tinha as meninas.

Então devia ser em 1975, 1980... É, por aí. Nessa faixa aí.

A época que a senhora cozinhava era a época que as meninas estavam estudando aqui. Estavam.

Eu falo meninas, mas tem filho homem? Não, só têm as duas meninas, as duas filhas.

Bom, o que mais a gente pode falar... Das aulas, com a professora, com a professora Zulmira295, tem alguma lembrança, assim, se ela era brava, se tinha castigo?... Não, as lembranças, as professoras eram muito boas, né? elas corrigiam as crianças todas assim, conversando, era muito... muito legal. Nossa, a professora era muito boa!

Por que o fato de ter só menina, também deixava a sala de aula calma? Calma. A professora, bom, para mim, foi uma excelente professora, as que eu estudei aqui.

Aí foi aqui que a senhora aprendeu a ler, a escrever... Aqui, aqui nessa escolinha...

E assim, falando um pouco do que foi aprendido aqui, como a senhora aprendeu a fazer conta, como faz conta até hoje, tem alguma lembrança? A minha lembrança, que eu comecei aqui a fazer minhas continhas. E eu gostava muito, eu fui uma pessoa assim, uma aluna que eu não dei trabalho pra professora, sabe? Eu fazia tudo certinho e eu tinha uma Matemática, nossa, muito boa.

Lembra um pouco do tipo de conta que a professora dava? Tinha semente, se ela usava assim um material diferente, se era só lousa, passava na lousa e copiava no caderno, e aí tinha que fazer as continhas no caderno? Era só assim na lousa e passava nos cadernos. A gente copiava da lousa no caderno...

E assim, somar, dividir, lembra assim o que aprendeu primeiro? Como aprendeu a somar, a dividir... A senhora hoje faz conta de um jeito diferente? Não, aquele tempo, no meu tempo eu somava contando nos dedos. Eu contava nos dedos, era a soma que eu fazia. Era contada nos dedos.

E depois a multiplicação, a tabuada? Tinha que decorar?

295 A professora Zulmira também é colaboradora nesta pesquisa. Ela foi professora da Dona Shirley. 250

Ah, tinha. A tabuada tinha que ser tudo decorada.

E depois para multiplicar, hoje, por exemplo, a senhora faz conta rápido de cabeça? Faz no papel... ou tem dificuldade? Não, hoje eu tenho um pouco mais de dificuldade, né? pra fazer as contas. Só que eu faço tudo nos dedos.

Mas de multiplicação? A de vezes eu fazia assim: decorava as tabuadas, era tudo decorada, então já sabia 3x3, é nove, 3x6, 18, então era tudo estudada mesmo. A gente tinha decoração das tabuadas, e nesse ponto eu fui muito inteligente nessa parte aí. Tinha facilidade na matemática, porque eu gostava muito da matemática, eu tinha... era rapidinho, era difícil eu errar as coisas, gostava muito da matemática.

E livro, assim, tinha cartilha, essas coisas? Tinha, antigamente tinha a cartilha.

Mas era mais cartilha de Português? Era.

Tinha de Matemática também? Não, de Matemática eu não tenho lembrança não, a de Português tinha.

Por exemplo, esta daqui que é uma cartilha antiga... dê uma folheada, lembra de algum livro colorido assim, pra preencher, pra fazer as continhas, ou não? Ah, eu não lembro disso não...

(neste momento, estou mostrando alguns livros à entrevistada)

Que esse daqui é mais da época de 1960, essa cartilha aqui. Está vendo, completar a sequência dos números... Ah, então, não, eu não lembro disso não...

Colocar dezena, centena, unidade... está vendo as continhas? Eu não lembro, vou falar a verdade para você. Eu não lembro.

A professora passava esse tipo de continha? Passava. Continha era tudo passada, tinha que copiar tudo no caderno. Isso eu lembro que era tudo passado no caderno.

E depois, quando as meninas (suas filhas) estudaram aqui, aí senhora já percebia que era diferente? Ah era, era diferente, assim, sei lá, parece que é mais facilidade, era pelo livro. E a gente já estudava leitura, tudo, eu tinha nota boa também na leitura. Aí tinha os livros tudo da leitura, de leitura tudo. Agora os problemas, eles passavam os problemas pra gente fazer as contas, né? Fazia os problemas na lousa e a gente fazia as contas.

251

E aí, a Dona Zulmira, ela deu aula na primeira, segunda e terceira? Ou mudou a professora? Olha, eu vou falar a verdade pra você, agora no momento eu não lembro, mas acho que foi ela. Não sei se veio outra, eu era criança, né, eu não lembro.

Que bom que tem uma foto para guardar essa recordação. A escolinha aqui, eu vejo que a porta era aqui do lado. E já tinha janela? Porque a Dona Cecília 296 contou que uma vez ela veio dar aula aqui e ainda não tinha esses vitrôs...

Vista lateral da escola, onde podem ser vistos os três vitrôs. A porta foi colocada recentemente - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Não, era janelinha, uma janelinha de madeira. Aí depois eles abriram aquela cozinhinha lá, que aí começou a fazer a comida, a cozinhar a sopinha pras crianças, né? então abriram lá, pra ter mais facilidade, abriram a porta pra lá, pra sair na varandinha.

Interior da escola do Bairro Sapé, onde estava sendo realizada a entrevista. A porta à direita dá

296 A professora Maria Cecília também trabalhou nesta escola e é colaboradora nesta pesquisa. 252

acesso à sala de aula. A porta à frente é a cozinha, 2010. Foto feita pela pesquisadora.

Não tinha a varandinha? Não tinha. Cada um trazia sua marmita de casa para comer, as mães mandavam as marmitas. Aí eu mesma, quanta marmita que eu trazia, eu repartia com as minhas coleguinhas; às vezes a mãe não trouxe e elas não trouxeram lanche, então a gente repartia. Trazia comida, e quando eu não trazia, minha mãe mandava, trazia comida pra mim na hora da merenda.

E aí então só tinha janelinha... tinha energia elétrica nessa época aqui? Não.

Nossa, mas era escuro aqui dentro da escola? Não, era clarinha a escola.

Tinha quantas janelas de madeira? Devia ter, será que tinha umas três também? Parece que era três que tinha aqui, três janelinhas.

E aí o banheiro? Era privada ali já? Era privada.

Já existia aquela ali? Tinha uma ali no fundo, que agora caiu... Caiu, então, era a privada ali.

Por que quando eu estudei aqui297, ainda era a privada ali. Era privada.

Então nessa época já tinha? Tinha privada, fizeram uma privada.

E a água pra beber? Água vinha daí da venda298.

Não tinha filtro aqui dentro da sala, nada... Eu não lembro, mas acho que tinha filtro sim.

Não... parece que tem um suporte de filtro ali no canto, ou não? É, tem um suportinho ali, acho que era dos meninos porque, quem trazia água, às vezes algum dia faltava água, né? então trazia e punha a coisinha ali, mas nós tínhamos filtro sim pra pôr água. Não era filtro, acho que era pote.

297 Eu também fui aluna nesta escola. Fiz a primeira e a segunda séries nos anos de 1989 e 1990. Na terceira tive que ir estudar na cidade de Tanabi/SP. 298 A Venda fica do lado da escola. Esse tipo de comércio é comum em alguns bairros da zona rural do município de Tanabi. Nesta Venda, vendiam-se bebidas, alguns mantimentos, doces e era um local bem frequentado pelos moradores dos sítios próximos, fazendo as vezes de mercado, bar e local de socialização. 253

Aí tinha que beber do pote do fundo da sala? É, punha água ali dentro.

Pegava água da venda? É, pegava água da venda ali.

E essa venda era de quem na época? Ah, agora eu não lembro.

Não era do seu pai? Não, meu marido é capaz que lembre o nome de quem era, mas eu não lembro.

Então esse sítio aqui onde está a escola era do seu avô? Do meu avô. A linha de ferro ali, a linha de ferro, meus avós que deram, meu pai e meus avôs que doaram o terreno pra passar a linha de ferro.

E nessa época, quando a senhora estudou aqui, a escolinha era novinha? Era novinha.

Devia ter sido construída há pouco tempo? Ah, eu acho que sim, viu? Eu não tenho certeza a data certa não, mas era antes. Porque essas daqui, olha, eram mais velhas (apontando para algumas alunas da foto) e elas estudaram aqui. E essas daqui moravam no sítio do meu pai, essa aqui, essa aqui...

Turma de alunas da escola do Bairro do Sapé, 1949. Acervo pessoal da sra. Shirley Fabri Peruca.

Já deviam estar no terceiro ano? Mais ou menos.

254

E nessa época já tinha a igreja. Na época? Não, a escolinha foi antes da igreja.

E já tinha venda, então acho que a venda e a escolinha são mais ou menos da mesma época? Mais ou menos, né? Que a venda não tenho lembrança agora, é mais fácil um dos meus irmãos mais velhos lembrar do que eu, não tenho lembrança agora se tinha, porque era a venda, eu lembro que eu era pequeninha. A gente vinha na venda no comício, a venda era uma casinha de pau a pique, não era venda de tijolo, era de barro. Aí depois que venderam pra outro, aí outro fez, levantou uma casa.

E a escolinha já foi construída no tijolo? Já foi construída no tijolo, essa já foi feita no tijolo.

Portanto essa construção aqui a gente pode colocar que ela tem já uns 60, 70 anos? Ah tem, porque você vê, eu estava com sete anos, já vou fazer 68, agora em outubro.

É e se a escola estava nova, ela não devia ter muitos anos. Ela tem uns 60 anos, devia ter marcado né, mas naquele tempo... não usava marcar as datas.

A gente percebe que o telhado era novo... E a senhora conhece, por nome, algumas dessas meninas? Ai agora eu precisava dos meus óculos, agora eu esqueci. Essa daqui é a Maria, essa aqui é a Tonha, Antonia, né? essa daqui é a Ninfa, minha prima, também morava ali embaixo299.

Essas meninas deviam morar aqui em sítio, aqui perto? Tudo em sítio aqui. Essas daqui moravam em sítio do meu avô, do meu pai.

E pelo trem, será que chegava alguém vir de trem pra estudar aqui, acho que não, né? Não, eu não lembro.

Essa foto aqui a gente ainda não viu... Conta dessa casinha aqui... Essa casinha aqui era a casa que...

299 Se referindo às alunas da foto. Elas não estão identificadas na foto. 255

Familiares da sra. Shirley, (19??). Acervo pessoal da sra. Shirley Fabri Peruca.

Era aqui do lado? De pau a pique também ou era tijolo? Ai, que dó, eu não peguei os óculos...

É tijolo... dá pra ver os tijolinhos... Essa turma aqui era turma da escola ou turma que morava aqui? Não, é a turma daqui. Eu posso ir lá buscar meus óculos?

(Tempo depois...)

Então olhando o que tem na foto... Essa daqui é minha avó, essa aqui é minha tia Luizinha, já falecida também, aqui são minhas primas.

Nossa, estão vestidas iguais... Elas eram cantoras, elas cantavam, tinham uma duplinha, elas cantavam, só que eu não lembro o nome da... da duplinha delas.

E moravam nessa casa? Não... aqui morava, ah... parece que era o Luís, não sei se era o Luís Galã, eu não lembro.

256

Essa casa era mais ou menos aqui onde era a máquina300? É aqui onde é essa casa aqui301.

As mulheres, as crianças, a maioria estão de branco, era comum usar assim muito branco? É, todo mundo andava de branco, branco e preto302.

E a escolinha quando foi construída ela ficou assim no tijolo? Ela já era rebocadinha, já.

Será que foi algum prefeito que quis construir? Isso agora eu não sei te falar, te explicar, não. Que nem aí agora precisava de uma pessoa mais idosa, né? para explicar isso.

Tem mais alguém na foto? Então, agora eu não estou lembrada se essa casa aqui era da minha tia, do tio Feliciano, eu não lembro. Eu acho que era do tio Feliciano, depois que fizeram máquina. Acho que era dos meus tios mesmo isso daqui.

Quem bateu a foto? Algum daqueles fotógrafos que passavam nas casas? Não, isso daí era algum parente da gente que vinha e tirava, né? mas eu não lembro disso porque eu era criança. Se eu não me engano essa daqui sou eu, olha, se eu não me engano... (apontando para a fotografia)

Devia ter uns 4 aninhos aqui? Mais ou menos.

E a senhora cuida até hoje aqui da escolinha, quer pintar e arrumar... E ela pelo jeito já foi vestiário de jogador, porque separou aqui...303 Foi... É quanto tinha o time, estava uma coisa aí, né? ninguém ocupava, então estava esse time, tinha que fazer um vestiário, aí conversamos com as pessoas que ajudavam a mexer com o time, fizemos uma divisãozinha de papelão aqui...

Quem colocou essa madeira? Não é madeira isso daqui, é Duratex. Foi o meu genro, ele era presidente do time aí, e tomava conta, né? ele falou: “Então vamos fazer, que assim fica pros dois times”. Aí fez.

E porque esse cuidado com a escola, porque querer conservar a escola?

300 Ao lado da escola, além da venda, tinha também uma máquina de arroz, que servia para limpar o arroz colhido nos sítios. 301 Dona Shirley se refere à casa que ainda hoje existe ao lado da escola. 302 Talvez pela dificuldade em se tingir as peças de algodão que são, originalmente, brancas ou “algodão cru” como se costuma dizer. 303 Hoje existe dentro da escola uma separação de madeira. Dividida em duas partes, a escola serviu de vestiário para os jogadores que vinham jogar no bairro. Em frente à escola, existe um campo de futebol, onde alguns times de outros bairros costumam jogar. Hoje em dia não sei se continuam realizando jogos. 257

Porque é uma coisa de antiguidade da gente, né? então a gente é que participa disso daqui. É um terreno que é a gente que cuida, então quer dizer que não tem como a gente abandonar, então é da gente cuidar, a gente que zela.

Porque esse terreno hoje ele faz parte do sítio, não é um terreno da prefeitura, nada assim, é do sítio? É, ele é um terreno, certo, eu não sei te explicar não, mas como a gente está (com) há 37 anos aqui, é um terreno que sempre existiu, agora se tem escritura isso eu nunca fui ver.

Mas foi doado, provavelmente, na época? Um pedacinho pra construir a escola. Na época foi. Pra construir a escola, é.

E hoje vocês zelam pela conservação? Compram tinta, tudo? A gente zela, não deixa ninguém entrar, ninguém invadir, nada, então é a gente que cuida. E é tudo nós, os gastos sempre foram nossos.

Pra manter viva essa história? É, pra manter viva a história.

E aí esses brinquedos 304 foram colocados aí, para as crianças aproveitarem um pouco esse espaço? É, pra aproveitar o espaço foram colocados os brinquedos, porque era um espaço que estava aí, né, então tinha que...

Eu lembro que na época que eu estudava, era o lugar que a gente fazia Educação Física, onde a gente brincava... É, neste espaço.

Bom, algo a mais que queira contar, alguma história? A história é o amor que a gente tem no lugar que a gente mora, né? porque isso daqui tudo foi dos meus avós, depois passou pro meu pai, aí depois foram dividindo pra um, dividindo pra outro, então a gente tem aquela lembrança, aquela saudade, porque a gente foi um dos fundadores daqui, né? Meus avós foram os fundadores daqui, quando eles vieram pra cá não tinha nada, nada, nada, a primeira casinha que foi feita foi a dos meus avós.

É aquela lá em baixo... está em pé até hoje? Não, a casa não. Foi feita de pau a pique, coberta com sapé, aqui tem o nome de Sapé por causa do meu pai.

Conta essa história... Porque quando a gente comprou aqui, ele falou assim pra mim: “Ô fia” − que aqui era Fazenda Alferes né, não tinha... − Aí ele falou “Ô fia, por que ‘ocê’ não ‘ponha’ Bairro do Sapé?”, porque a primeira casinha que foi construída aqui foi feita com sapé, coberta

304 Hoje existem, no quintal da escola, alguns brinquedos instalados. 258 com sapé, que foi do pai e da mãe dele que chegaram da Itália.

Eles vieram da Itália e já se instalaram aqui? Instalaram. Ficaram 45 dias em Tanabi, pra construir o ranchinho de sapé, aí construíram a casinha de sapé. Meu avô veio com quatro filhos e depois teve meu pai e minha tia aqui, que nasceram aqui. Então aí meu pai, quando a gente comprou, ele falou “Filha, põe o nome de Bairro do Sapé”, porque a primeira casinha que foi feita aqui foi coberta com sapé, aí nós pusemos Bairro do Sapé.

E hoje é conhecido na cidade com esse nome. Já é oficial? É o endereço daqui? Hoje é conhecido em todo lugar, Bairro do Sapé. É Fazenda Fortaleza, Bairro do Sapé.

Isso aqui tudo então era Fazenda Alferes? Fazenda Fortaleza.

Mas e a Alferes? Aí depois...

Provavelmente seus avós que compraram essas terras e colocaram o nome de Fazenda Alferes? Ou já era o nome do lugar? Não, aqui era Fazenda Alferes. Até a escolinha era Fazenda Alferes, no comecinho da escola. Depois cada um teve o seu pedaço de terra, de sítio que meu avô comprou, aí foi que depois que nós mudamos pra cá que foi Bairro do Sapé.

E a Fortaleza era antes da Alferes, então? A Fortaleza, Fazenda Fortaleza era antes da Alferes.

Mas hoje ainda tem um pedaço que chama Fortaleza, não tem? Onde é? Tem. É mais pra baixo.

Devia ser tudo Fortaleza, aí teve a Fazenda Alferes que virou Bairro do Sapé. É, a Fazenda Alferes é pra lá do Bairro do Sapé.

Ah, ainda tem um pedaço com esse nome? Fazenda Alferes era pra lá, era de outro senhor, né? então ele tinha...

Mas chegava até aqui, porque a escolinha teve esse nome? É, então, aí puseram o nome na escolinha Fazenda Alferes. Porque nós não éramos fazenda, do meu pai era sítio; então o outro que era Fazenda Alferes, então meu pai ficava entre a Fazenda Alferes e o sítio dele, de meus avós.

Ah, então na verdade essa Fazenda Alferes era um lugar que era aqui do lado, que a escolinha levou o nome? Levou o nome de Fazenda Alferes.

Agora eu estou imaginando aqui, se seus avós vieram da Itália, provavelmente eles 259 vieram de trem... Não, mas se eles vieram, eles não vieram aqui, porque foi depois que meu avô doou o terreno, as terras para passar a linha.

É verdade, não tinha ainda a linha... Tinha até Rio Preto, mas pra cá não tinha. Aí depois foram cada um doando um pedaço, doando um pedaço, até passar a linha de ferro aqui. Meus avós, quando vieram aqui, eles iam pra Rio Preto fazer compras de carro de boi. Levavam três juntas de boi, punham duas e a outra ia sem carregar, pra depois voltar, porque os bois não aguentavam, né? vir de lá (até) aqui.

Em Tanabi não tinha nada, então? Tinha que fazer compras lá? Não, Tanabi tinha, mas você sabe, eles compravam saco de arroz, saco de açúcar, saco de sal, saco de... e querosene, porque aquele tempo não existia energia aqui, então eles compravam aqueles latãozão querosene, pra lamparina.

Ir daqui pra Rio Preto com carro de boi era uns três dias? Dois dias pra ir, dois dias pra voltar. Eles iam de carro de boi, tudo por estrada de terra.

(neste momento ouve-se barulho de pássaros cantando, maritacas...)

Seus avós deviam ter bem o sotaque italiano, falavam italiano. Tudo em italiano, tudo italiano. Às vezes minha mãe ia nos corrigir, a vovozinha, que é aquela que eu te mostrei na foto, essa daqui a vovó, que tá de preto. Ela falava... (ela reproduziu uma frase em italiano). Não deixava bater em nós. Porque naquele tempo dava uns tapinhas, não era assim corrigido que nem hoje, primeiro você dava uns tapinhas, pra criança saber que aquilo estava errado. Tem outra foto também, eu não trouxe, está lá em casa. Está saindo a Companhia 305. Eu ia te mostrar o casarão que meu avô fez, tudo está lá.

305 Companhia de São Sebastião. Com uma bandeira do Santo. As pessoas saíam em procissão, cantando e rezando em forma de devoção. No dia da leitura do texto da entrevista, ela me mostrou as fotos. 260

Saída da Companhia de São Sebastião, tendo ao fundo a casa à qual a sra. Shirley se refere, (sd). Acervo pessoal da sra. Shirley Fabri Peruca.

Músicos integrantes da Companhia de São Sebastião, (sd). Acervo pessoal da sra. Shirley Fabri Peruca.

261

A de sapé ou já a de tijolo? Não, a de tijolo não, a de barro; mas só que é aquelas casonas altas assim, com aquele porãozão embaixo, com aquela janelona, eu tenho a foto lá, era de madeira, era tudo madeira.

Eu gostaria de agradecer não só a disponibilidade da senhora em fazer essa entrevista, mas também o apoio que a senhora tem dado pra fazer as entrevistas aqui com os professores. Em limpar a escola, deixar tudo ajeitadinho, arrumar cadeira e providenciar tudo e estar disponível aí pra abrir a escola pra mim já quantas vezes... E agradecer por essa conservação da escola, porque as outras que eu tenho visitado estão todas abandonadas... Aqui não entra ninguém sem ordem nossa.

E agradecer, porque na verdade é a história que mantém viva, eu só estou podendo ter essa oportunidade de fazer as entrevistas aqui dentro porque ela está conservada, porque dá pra entrar, dá pra ficar aqui. Pode ver o telhado dela, tá conservado. Puseram até uma telha de vidro ali, olha, pra clarear mais.

Gostaria de parabenizar por isso. Veja as lousas, né? só essa daí que estragou mais, mas já essa não.

Imagem da lousa (frontal) - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Imagem da lousa (lateral) - Escola Mista da Fazenda Alferes, município de Tanabi/SP, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

262

Nossa, essa está muito conservada. Era tudo cadeirinha assim... e ele lá outro aqui, outra aqui...

Carteira individual, com banco retrátil, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Já eram essas carteiras aqui? Era, só que parece que as outras eram diferentes, era outro modelinho diferente, depois que veio essa.

E na época vocês usavam tinteiro, era canetinha de pena? É.

Tampo da carteira, onde se pode observar o baixo relevo para colocação da caneta/lápis e o espaço onde se encaixava o potinho com tinta, 2010. Foto tirada pela pesquisadora.

Aqui colocava o potinho com a tinta? É. A gente nem acredita né, 68 anos...

Tempo de gravação da entrevista: 37min3s

263

5. Professora Eunice Kannebley Melotti

Profª Eunice Kannebley Melotti, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 18 de maio de 2011, com a professora Dona Eunice Kannebley Melotti306.

Professora, pode iniciar contando a história da formação, as escolas que frequentou ainda como aluna, depois Curso Normal... O primário eu fiz numa escola particular, chamava Baronesa de Rezende e depois, o que hoje seria de quinta a oitava série, o ginásio, eu fiz no Colégio Piracicabano, um colégio americano, onde tinha muitas atividades, inclusive natação. As aulas de Línguas eram à tarde e as outras matérias eram cursos de manhã; então o aluno ficava praticamente o dia todo na escola. A gente ia pra casa pra almoçar e voltava para as aulas de Línguas e depois de Educação Física.

E por ser um Colégio Americano, “Línguas” subtendia-se só Inglês ou não? Francês, Espanhol? Não. Francês, Latim, na nossa época tinha o Latim também... o Inglês era bem desenvolvido e depois, terminando a oitava série, eu fiz um, porque eram muitos alunos que pretendiam ficar na mesma escola; então tinha uma seleçãozinha e eu fiz essa seleção, passei em décimo segundo lugar. Eram 44 vagas. E fiz o magistério lá, antigamente chamava Normal, Curso Normal.

Isso em que ano, a senhora lembra? É mil novecentos e... eu formei em 1949. Então, foi em 1947, 1948 e 1949.

E depois dessa formação do Curso Normal, a senhora já iniciou na escola, a trabalhar como professora? É, eu já quis mesmo por, foi escolha minha, porque sempre gostei muito de criança,

306 Essa entrevista foi realizada na residência da professora na cidade de Tanabi/SP. Em alguns momentos da entrevista, seu esposo, o professor Orlando Melotti faz algumas intervenções que são transcritas em itálico no texto. 265 inclusive tinha uma... vizinha minha me chamava de madrinha, e toda vez que eu tomava o bonde, que naquele tempo tinha bonde também, né? então ela saía na porta e ficava..., ah, eu peguei aquela paixão por criança pequena, falei: “eu vou fazer o magistério!” Eu entrei, cheguei a entrar no Curso Clássico, mas acabei abandonando porque a minha vocação era mesmo magistério.

O Curso Clássico dava um suporte para fazer depois um Curso Superior? Um Curso Superior.

Como estudou na escola em Piracicaba307, então a senhora morava lá na região de Piracicaba e foi lá que começou a lecionar? Não, eu vim lecionar aqui em Monte Verde, perto de Olímpia - Monte Verde Paulista308. Papai era coletor em Itajobi309, então ele veio e eu vim para ficar com ele, né?

E lá em Monte Verde Paulista, as escolas já eram escolas rurais ou não? Não, não... eram escolas da cidade, Estaduais.

E era escola isolada ou grupo escolar? Era Grupo Escolar.

E depois, então, qual foi a primeira experiência nas escolas isoladas e em escolas rurais? Eu não tive! Nunca lecionei em escola isolada. Eu fui lecionar em escola isolada no finzinho da minha carreira; que eu lecionei 34 anos, porque eu estava fazendo tempo, eu comecei a lecionar no Padre Fidélis310, algumas matérias do colegial.

No Padre Fidélis aqui em Tanabi? É, pra completar jornada de trabalho. Eu fiquei os 34 anos e para não atrapalhar a escolha de outros professores eu deixei as matérias, não fui na escolha e peguei uma classe na zona rural.

Isso foi em que ano, mais ou menos? 1981, 1982.

Onde era essa escola rural? No bairro das Perobinhas311. E lá então... a professora tinha que participar da merenda escolar, da sopa e a gente tinha, lecionava em três turmas... primeiro, segundo e terceiro.

Eram salas multisseriadas? É, e bastante alunos! E as menininhas, as maiores, se prontificavam (a) ajudar na

307 Piracicaba/SP dista 342 quilômetros da cidade de Tanabi/SP. 308 Monte Verde Paulista/SP dista 119 quilômetros da cidade de Tanabi/SP. Isso em 1950. 309 /SP dista 115 quilômetros de Tanabi/SP. 310 Padre Fidélis é hoje uma escola Estadual em Tanabi/SP. Na época já era Estadual. 311 Escola Mista da Fazenda Perobinhas. Município de Tanabi/SP. 266 cozinha. Aí a gente acabava aprendendo a fazer a sopa com elas, porque eu fiquei apenas 15 dias nesta escola, e já saiu minha aposentadoria. A única experiência que eu tive de escola isolada foi essa. Uma classe, uma escola muito boa, os alunos, assim, maravilhosos, é... prestavam muita atenção e um pedido da gente era uma ordem, não tinha problema, os pais apoiavam também.

E no Padre Fidélis, as salas que a senhora lecionou eram salas do ensino primário também? Não, primário não; eu lecionei já no ginásio.

Então a senhora fez um outro curso além do Curso Normal? Fiz Pedagogia, fiz Estudos Sociais também, depois fiz Geografia.

No ensino secundário a senhora lecionava Geografia? Geografia, e lecionava Educação Moral, e Programa de Informação. É... USPB... é Programa de Formação Profissional (segundo o seu esposo, ele acha que é PIP: Programa de Informação Profissional).312 Eu dava informação, então eu fazia pesquisa, pedia para as indústrias mandarem apostilas dos empregos e dos cursos que eles poderiam fazer dentro da fábrica. A Shell mandou muito filmes e eu passava numa sala, as profissões, os slides, para os alunos.

Nossa! tinha uma disciplina específica para isso? É, era específica. E no último ano que eu lecionei ainda existia essa matéria; no próximo ano desapareceu.

Mais ou menos em que década? 1982. Ela existiu pouco tempo, essa matéria. Eu comecei a lecionar, lecionei acho que três ou quatro anos e me afastei para a escola isolada.

Esses 34 anos de carreira então foram de meados de 49 até 82? Eu parei em 1982. E dei aula no Magistério, porque como eu dava aula no primário no João Portugal313, pelo Método Global314 e as alunas do magistério iam assistir às minhas aulas. O diretor deu essas aulas do Magistério pra eu lecionar.

Então essas alunas faziam um estágio nas salas em que a senhora trabalhava? Não, elas eram minhas alunas. Eu que passava as informações da didática e também escalava pra dar aula. E em escola isolada também elas iam.

É o que a gente faz hoje no estágio supervisionado. Então no João Portugal a senhora teve experiência com o ensino primário? É, ensino primário no João Portugal e aqui no Ganot315 também. Depois eu fui

312 Pode ser que eles estejam se referindo à OSPB – Organização Social e Política do Brasil. 313 João Portugal é hoje uma escola Estadual na cidade de Tanabi/SP. Na época já era Estadual. 314 É ao método de trabalho que a professora se refere. Segundo a professora, ela usou esse método durante toda a carreira. Durante a entrevista, ela irá detalhar mais sobre o método. 315 Ganot Chateaubriand é hoje uma Escola Municipal em Tanabi/SP. Na época era Estadual. 267 transferida pra cá (referindo-se ao Ganot), e também lecionei no primário. E tive umas aulas também de Estudos Sociais no Ganot à noite, umas aulinhas que sobraram aqui eu peguei.

E as escolas Ganot, João Portugal já eram, sempre foram Grupos Escolares? Sempre. Depois o Ganot criou até a oitava série. O Ganot passou a ser municipal. O João Portugal é estadual até oitava série. Agora o Padre Fidélis é ainda estadual. O magistério também do Padre Fidélis desapareceu.

Foi em oitenta... quase noventa? É.

E na época o Ganot, o João Portugal eram colégios estaduais? Todos eles. Agora que eu acho que o Ganot é municipal.

Não, porque as escolas rurais eram vinculadas à Sede Ganot, que era estadual...

(Neste momento, seu esposo completa que existiam apenas uma ou duas escolas municipais de educação infantil)

E nas salas do Ganot ou João Portugal, aí só tinha um ano dentro da sala? Ah, sim.

Em que anos a senhora trabalhou? Não. Eu só trabalhei com primeira, segunda e terceira séries em escola isolada, eram esses 15 dias de escola isolada. Mas no comecinho da minha carreira, foi em Duplo Céu 316, lá também a gente lecionava pra duas classes, dois anos numa sala só.

(Seu esposo completa que era exceção; o normal era uma só. Para ser Grupo Escolar tinha que ter pelo menos quatro classes: uma de primeiro, uma de segundo, uma de terceiro e uma de quarto. Mas aí, quando tinha muito aluno, então você podia fazer uma quinta classe, que você podia pegar um pouco de segundo e um pouco de terceiro ou um pouco de quarto, um pouco do terceiro pra formar uma quinta classe, uma quinta turma).

E no Ganot, a experiência maior foi em que ano específico? trabalhava mais com o primeiro ano, mais com o segundo? Eu trabalhei com o terceiro e com o primeiro.

Focando um pouco mais o ensino nas séries primárias, fale um pouco desse ensino. Pode falar amplamente - primeiro Língua Portuguesa, Estudos Sociais, como eram as aulas? Olha, na primeira série, como eu dava Método Global, eu já ia aproveitando as palavrinhas e introduzindo Geografia, introduzindo um pouquinho de Português. E trabalhava muito com cartelas, mostrava as cartelinhas e eles aprendiam a fisionomia da

316 Duplo Céu é distrito da cidade de Palestina/SP e dista 123 quilômetros de Tanabi/SP. Em Duplo Céu, lecionava em Grupo Escolar na cidade. Isso no ano de 1954. 268 palavra. A palavra não era repartida, eles não aprendiam o abecedário, nem as letras, eles aprendiam as palavrinhas. Então colocava, depois que eles aprendiam, as palavras na parede. A campainha, é, armário, lousa e para exemplificar, por exemplo, armário eles conheciam bem. Então, pra começar a silabação, eu falava: “Bom, armário se a gente tira dois pedacinhos, nós vamos formar o nome de um homem, quem será que vai ser capaz de formar o nome desse homem?” Alguns conseguiam. “Mário!”, tirava o “ar” ficava “Mário”. Aí, então: “Só que Mário se escreve com letra maiúscula, o “m” do armário ali é minúsculo, mas nós vamos escrever com letra maiúscula”. Aí começavam a escrever também. “E lousa? E lousa também se eu tirar duas letrinhas fica uma coisa...” Eu já ensinava que o armário era um objeto, né? era uma coisa palpável... agora, a lousa também é um objeto, é palpável. “Agora se eu tirar duas letrinhas, o que sobra? Usa”. Usa é uma coisa que eu faço, e aquilo que a gente faz, então vai ser chamado de verbo. Mas nós então: “Eu uso, você usa...” Então eles sabiam o que era uma coisa, o verbo, e quando não era verbo. Só que no primeiro ano não, ninguém dá esse ensino de Português assim profundo. E na parte de Matemática eu usava mais elementos, tabuadinha também do dois eles sabiam; e usava ter muito material didático, tinha um, uma roda que ia girando, onde ela parava 2x2 eles tinham que saber que era quatro.

O relógio de tabuada? O relógio de tabuada e tinha um outro quadrado também que é... tinha um dispositivo que você girava também e ele parava também em qualquer lugar, né? E a criança era para somar. Então, ela somava aquele número que estava na roda com aquele que estava atrás da roda - eram duas rodas - e assim começava a Matemática. Não podia ser muito profunda, mas eles já iam para segunda série com um pouquinho de noção de conjunto, de tabuada, que hoje não ensina mais. E a gente já exigia e ensinava sempre brincando, né? porque tudo aquilo que você exige, a criança não aceita muito, nem o adulto, né? Então a gente ensinava brincando. E a cartilha, voltando outra vez para o primeiro ano, a cartilha que eu usava era O Presente, era a vida de um carneirinho. Que veio pequenininho para a cidade e as crianças, o dono, os meninos cuidavam dele e ensinava a voz do carneirinho, e depois da voz do carneirinho ensinava a voz de outros animais, do gato, né? a do cachorro... Escreviam na lousa e tudo brincando, e o carneirinho ia procurar comida, eles saíam andando na classe como se fossem um carneirinho. Eu movimentava a classe, eu não ficava parada num lugar estático. Quando eu percebia que eles estavam cansados, eu inventava uma coisa para movimentar a classe, pra eles saírem do lugar. E não tinha aquela coisa de toda hora lá fora, você percebia aquele movimento de criança que saía toda a hora, na minha classe não existia, porque eu mantinha eles em atividades o tempo todo.

Esses materiais, o relógio e... eram os professores que produziam esses materiais? Era tudo feito por mim mesma. Eu até tinha a assistência do Trida 317 com uma outra professora que ela dava também Método Global, e então eles vinham uma vez por semana. E das atividades dela eu aprendi muita coisa, e ela levou muito das minhas. Por exemplo, esse brincar com a cartelinha como se fosse o baralho, pegar a cartelinha, dobrar, falar a palavra, inventar, fazer, como eu diria, uma pergunta: “dessa palavrinha eu posso formar

317 Trida era um inspetor escolar da Delegacia de São José do Rio Preto/SP. 269 essa, se eu tirar essa sobra o quê? Eu vou tirar essa sobra...” Então tinha, eu tinha esses joguinhos assim e a criança aprendia brincando.

E esse Método Global veio de alguma lei específica? Olha, falar a verdade eu...

(Neste momento seu esposo completa que era uma questão de técnica, não tinha nada de leis, porque até aquela época, depois de ter implantando o Método Global, mais da metade das escolas continuavam com método da Caminho Suave, da Branca Alves de Lima, alfabetização pela imagem. E depois, baseada nessa alfabetização pela imagem, foi criado esse Método Global. Mas não existia uma imposição).

Tinha A Pata Nada também, né? Eu achava um defeito na Pata nada, porque nós lecionamos também em Itaquerê, em Araraquara 318 por alguns meses, e eu peguei o primeiro ano e lá era A Pata nada. O diretor exigia essa Pata nada. Ela trabalha tudo com o “a”. Agora, quando você for mudar para o “e”, é um sacrifico porque a criança tem aquela tendência de usar só o “a”. Então era um defeito, fica um defeito, e quando eu vim para o Ganot, também eles exigiam o Caminho Suave, eu usei o Caminho Suave mas apliquei o Método Global e as outras colegas gostaram da ideia e aplicavam também.

Esse Método Global a característica dele era esse trabalho, misturando-se as disciplinas, mostrando um objeto trabalhando verbo no meio de substantivo, vai trabalhando tudo, dando sentido... De acordo com a classe, o que você perceber o interesse dela, você pode ir jogando, você não fica presa, porque você já conhece o programa. A primeira coisa que meu pai fez, ele mandou buscar o “Método de Ensino319”, do primeiro, segundo, terceiro e quarto ano e a gente lia muito e via as atividades que existiam; hoje já nem usa mais. E, para eu dar essas aulas, eu tinha um trabalho bem grande aqui em casa: eu preparava o cartaz porque era primeira fase da cartilha O Presente, do Método Global. Depois vinha a segunda parte, que era O Tufão, a vida de um cachorro. Que animais, as crianças gostam de animais e aí vinha praticamente o livrinho de leitura. Em junho eu já fazia, no começo de julho, eles já recebiam o livrinho de leitura.

Esse Método Global tinha as cartilhas O Presente, que era a história do carneirinho, depois O Tufão..., esses eram materiais que eram exigidos? Na primeira parte, O Presente, vinha o cartaz para o professor; então era tudo surpresa: amanhã, o que será que o carneirinho vai fazer? O que vai acontecer com o carneirinho? Então eu levava o cartaz: “aí vamos ver o que aconteceu?” eles ficavam doidos, era um cartaz bem grande e eles tentavam ver embaixo, adivinhar, até vencer essa fase. Quando foi O Tufão, que era a vida do cachorro, o Bilu, né? a vida do Bilu, cheguei na classe de mão vazia: “Ah, mas a senhora esqueceu o outro pedacinho da história”. Falei:

318 Araraquara/SP dista 208 quilômetros de Tanabi/SP. Itaquerê era uma fazenda no município de Araraquara/SP. Tinha Grupo Escolar (estadual) e Escola Isolada. Lá moravam cerca de 5 mil pessoas. Tinha até hotel para os professores. 319 Programa Fundamental do Ensino Primário. Tinha o conteúdo com atividades (divididas por mês). Isso no início da década de 1950. 270

“Ah, vou contar uma coisa para vocês: nós vamos mudar de cartilha, agora nós vamos pegar essa daqui”. Mas o diretor veio até na minha classe, porque todo mundo deitou a chorar e o filho da Zulmira 320 falou: “Entrou um cisco no meu olho”. Meu filho sentava junto com ele: “No meu também”. E ia gritando e todo mundo abriu a boca a chorar mesmo, reclamar, que não queriam mesmo. No começo foi difícil fazer eles aceitarem, mas aí eles começaram a gostar da história do Tufão e agora era cachorro, né? e assim passava o tempo. Mas quando terminou o Tufão, fiz a mesma tática, só que o Tufão não tinha o cartaz, era já o livrinho que eles iam lendo. Aí eu entreguei o primeiro livro de leitura, que seria o propriamente dito. Mandava fazer um bolo, quase sempre eu fazia, mas eu cheguei a fazer até o mapa do Brasil, uma bandeira, etc... recuava as cadeiras, mas era aquela festa para receber o livro.

E trabalhava então a Geografia, trabalhava vários assuntos... Vários esquemas, e o diretor quando mudava de atividade, de livro, era uma choradeira porque eles queriam continuar ouvindo, não se conformavam, por exemplo, do carneirinho ter ido lá pra fazenda de novo. Quando terminou a história do Tufão, queriam também, eles adoravam aquilo que eles estavam fazendo. Mas aqui em casa eu tinha bastante trabalho. O cartaz já vinha pronto, mas eu preparava outros cartazes com nome e distribuía no recreio todo, no banheiro deles, na cozinha, tudo relacionado com aquele ambiente. Aí vinha um contar: “Eu vi tal que a senhora fez tal coisa”. “Ah, eu vi lá no banheiro”. “Ah, porque eu vi lá na cozinha”. Então eles não estavam só lendo ali na sala de aula, eles iam, saíam lendo no ambiente escolar e quando eles iam para rua eles iam lendo, tentando ler os cartazes das lojas, era muito interessante, viu.

Instigava os alunos a estarem o tempo todo pensando e aprendendo. E não deixava a classe ficar parada, porque a bagunça que eles tinham dentro da classe era tudo relacionada comigo, entre eles mesmos não existia bagunça nenhuma.

Entendi, bom esse método, até porque envolve o aluno, ele fica o tempo todo curioso... É. Dá muito trabalho, o professor hoje, nem todos gostam, né? Aí nós aplicamos aqui no Ganot, o Caminho é o... Método Global no Caminho Suave. Meio difícil porque ele é um caminho suado (a professora sorri ao lembrar) o método Caminho Suave devia mudar o nome, viu.

E com relação à Matemática, a senhora que pegou esse período de 49 até 82, com relação ao currículo, ao que deveria ser ensinado em Matemática a senhora lembra de alguma grande mudança, de algo novo que começou a ser exigido, nesse período? Não.

Por exemplo, conjunto, quando começam as atividades com conjuntos, a senhora lembra quando começou, qual era o método que utilizava? Eu já comecei já tinha conjunto.

(Seu esposo completa que deve ter começado a noção de conjunto na década de 1960. A noção de conjunto, conjunto unitário, conjunto vazio, tudo isso começou aí nessa época.)

320 Zulmira também é uma professora colaboradora nesta pesquisa. 271

Que foi pelo Movimento da Matemática Moderna?

(Seu esposo completa: é isso! já como Matemática Moderna, era essa matemática aqui ó [mostrando o livro de Osvaldo Sangiorgi – Matemática e estatística - o mesmo livro apresentado pela professora Irma Rosa da Silveira Viana, que também é colaboradora nesta pesquisa] eu ensinei tudo isso daqui, quando eu lecionava, tudo, tudo.)

Na primeira série, a gente aproveitava as coisas do momento, mas realmente acho que conjunto foi nessa época mesmo que entrou.

E com relação às avaliações: existia uma avaliação final ou o professor fazia? Existia e era muito exigente e vinha da Delegacia a avaliação 321, a prova final e era aberta na frente de três professores, o diretor, o professor da classe e o Assistente.

(Sr. Osvaldo completa: nessa época, não sei se era na época dessa cartilha, antes da Caminho Suave. Na Caminho Suave a avaliação era feita assim: era um professor estranho [que vinha] fazer exame na classe, exame final. Recebiam as questões, ele que ia fazer o exame na outra classe, e até a reclamação - que no caso piracicabano, que é o caso dela e mais uma dúzia que tinha de piracicabano - por causa da pronúncia. A professora costumava fazer o ditado com aquela pronúncia nossa, daqui, e depois, o piracicabano “do lado de lá”...) (reproduz a fala com sotaque).322

E o professor tem mania de abrir bem a boca e pronunciar bem as sílabas para as crianças.

Falamos um pouco sobre o ensino da Matemática, os cálculos e com esse Método Global também, a escrita do aluno era exigida. Tinha muitas atividades em que os alunos eram levados a escrever, a realizar as atividades no caderno? É, fazia no caderno. Inclusive, a gente fazia até, como que eu diria... é... entrevista. O que nós estamos fazendo, entrevista. É, levava na prefeitura, entrevistava o prefeito, já entra Geografia aí, História 323. Então eram feitas todas essas atividades, mas não, em outro método não exigi isso.

Era um trabalho de campo, eles iam aprender sobre política mas iam e conversavam com os políticos? É, conversavam. Não, mas eu citei a prefeitura, para eles conhecerem o ambiente da prefeitura também, né? mas a gente fazia outras visitas também. Pedia para o indivíduo vir até a classe, e era entrevistado pelos alunos. Mas só que eu fazia então como você fez aqui, né? um relatório, um roteiro para que o entrevistado tivesse uma noção do que as crianças iam responder, e responder na altura de criança, né? porque, às vezes, entrevistava uma

321 Isso na década de 1950. Ocorria tanto nos Grupos Escolares quanto nas Escolas Isoladas. Em 1980 a própria escola fazia. 322 Neste momento eles destacam que a pronúncia usada pela professora era diferente dos alunos. Isso se refletia nas avaliações (turma do 1° ano). 323 Quando trabalhava na escola Ganot Chateaubriand (em Tanabi/SP), por volta do ano de 1965. 272 pessoa muito elevada que a criança não ia entender nada.

E em Matemática, além desse relógio de tabuada, esse quadro onde os alunos eram levados a somar ou subtrair, trabalhava com as operações, tinham outras atividades? Tinha, tinha a vendinha324, não era assim uma Matemática, bem, com se diria, muito elevada, era um ensino bem simples. Eu fazia lá atrás uma vendinha, saquinhos de açúcar, de feijão, aquela coisa do cotidiano da criança. O desenhinho do sorvete, uma tacinha pequenininha cheia de material que dizia que era sorvete e eles faziam a conta, pra aprender o dinheiro, os cálculos também. Aí eles aprendiam comprando isso. Porque que estavam multiplicando por dois, porque às vezes a gente ensina, mas ele não tem noção porque está multiplicando por dois, porque eu comprei duas coisinhas, que custava dois reais, então 2x2.

E aquele dia que conversamos a senhora comentou sobre método da divisão, os oito passos da divisão, conte um pouco sobre isso... Ah, esse aí eu dava na segunda série, né? Você dava primeiro a divisão por um algarismo, mas um número, um número só na chave. Já depois, no segundo período do ano, você entrava com a divisão com dois algarismos e tinha os passos, primeiro passo, segundo... acho que eram nove ou dez passos.

(Neste momento, seu esposo completa: eram dez passos a divisão por dois, sabe por que? Porque no segundo ano, antigamente era o segundo ano, depois passou a ser esse negócio de série, eles mudam o nome acham que mudaram a Matemática, não mudou nada. No segundo ano, condição “sine qua non”, para passar para o terceiro, o aluno tinha que saber a divisão por dois algarismos, coisa que hoje no colegial não sabe, nenhum aluno do colegial faz a conta, e o aluno tinha que aprender com 8 anos de idade; e aprendiam! o bom é que aprendiam! Então pra... uma das técnicas era essa dos passos da divisão, você começava dividindo, por exemplo, por 10, 100 e 1000, era o primeiro passo, porque dividir por 10 é bem fácil. Depois por 11, 12 e vai indo.)

Sempre o primeiro número maior que... a dezena maior que a unidade, porque é mais fácil de o aluno encontrar, porque se puser um, tem que ficar experimentando, né? dois não dá também, três não dá, quatro não dá... E também já aproveitava e ensinava o Português na hora da Matemática. “Vai um”. Tá certo. “Vai dois, não, é: vão dois”. Então você já ia aproveitando e ensinar a maneira correta. E para exemplificar, entrou um diretor, que até foi meu professor de Português no colegial, ele chamava Silvio325, agora eu esqueci o sobrenome dele, e entrou na classe: “Todo mundo sabe dividir por dois algarismos?”.“Ó sei, sei...” Ele botou lá um número enorme, com três, quatro números na chave, e aí, eles não entendiam nada da Matemática, e era diretor. Então um diretor que entrava na classe, podia saber mais que eu, ou mais... de acordo com a classe que estava lecionando, ele errou.

324 Quando trabalhou nas escolas Ganot Chateaubriand e João Portugal (ambas em Tanabi/SP). Isso na década de 1960. 325 Isso ocorreu em Monte Verde Paulista/SP, na década de 1950. Silvio era professor da Escola Normal em Piracicaba/SP e foi diretor da escola que a professora lecionava. 273

(O esposo complementa: ele não tinha nem noção, esse senhor Silvio, do que era lecionar para o primário. Então eu me lembro quando eu era substituto, em 1949, 1950, falando com ele, falei: “Senhor Silvio, gostaria que o senhor me explicasse um pouquinho de divisão por dois algarismos, tenho que começar agora, faz parte do programa...”. “Eu vou dar a primeira aula pra você”. “Ótimo, então vamos lá”. Ele sentou na cadeira, “sapecou” um dividendo lá, um divisor com seis ou sete algarismos. “Quem quer fazer?” Mas como, quem quer fazer? Os alunos de segundo ano não têm nem noção. Aí eu falei: “Nossa, agora que estou perdido, o que eu faço com essa..., não tenho nem noção”.)

Aí nós começamos a procurar um método...

(Esposo: Tinha saído do Normal sem saber nem como começar isso, e aí apanhamos até aprender.)

No próprio Curso Normal não dava uma base?

(Esposo: não, não dava).

Era na experiência, na prática?

(Esposo: era na experiência mesmo, por incrível que pareça no Ensino Normal, no Ensino nosso Normal, nem o meu nem o dela, pelo menos no meu, não falou que existia um tal de “Programa Fundamental do Ensino Primário”, que era aquilo que você tinha que dar. Esse programa fundamental era organizado pelo Rio Grande do Sul, era o Estado mais adiantado em educação que tinha naquela época, educação primária, era o melhor que tinha. Aí o pai dela, que não tinha nada que ver com a educação, falou:”Vocês não tem o cursinho... o Programa do Ensino Primário?” Falamos:”Não tem”. Aí nós fomos comprar. Então era um livreto daqui ó, excelente... é o pai dela que mandou vir até, e com aquilo que a gente se orientava e foi aprendendo alguma coisa e era muito bacana que a gente aprendia com o Malba Tahan... E era Matemática mesmo, e era excelente o ensino, aprendemos com o pai dela...)

E eu falava: “Papai, como é que eu vou ensinar divisão por dois algarismos?” E ele falava: “No meu tempo eu aprendi assim, o longo, você conhece o longo?” Esse daí é muito complicado, ensinar o longo, e nós tivemos que descobrir... Isso, no próprio manual trazia os dois (o breve e o longo), aí eu falei: “Tem os dois métodos aqui”.

(Esposo: o longo é mais fácil de os alunos entenderem, mas depois você tinha que deixar de usar aquilo, tinha que raciocinar.)

Não, nem deixava eles pensar, era só para ele entender que naquela operação entravam quatro operações: mais, menos, vezes e dividir. E então eles aprendiam, iam aprendendo... Já o nome, desde a primeira série, ah, mas eles... aprendem. Gente, eu tenho uma netinha, ela tem 4 anos e eu estou usando mais ou menos o Método Global com ela, cartelinhas. Ela já sabe de todas as cartelinhas, e ela ia passando na rua e viu “mãe” ela falou: “Ó, mãe! lá tá escrito mãe”. E ela: “Vó, eu sei escrever Pedro”. E 274 fazia no ar assim, Pedro, mas tudo com letra de forma, né? maiúscula. E agora ela já está, na escolinha dela mesmo, já está ensinando. Então outro dia ela falou: “Ah, eu sei fazer letra minúscula”. Estão pegando esse Método Global.

Tem mais alguma história que a senhora está lembrando, gostaria de contar, mesmo que não esteja aí no questionário? Você perguntou o tempo de aula aqui, né? 326 Não existia um horário, a gente tinha que obedecer àquele horário e tinha que deixar em cima da mesa o horário que você fazia. Porque, se acaso o inspetor entrasse na sala de aula, ele ia olhar a matéria que você estava dando e ia olhar no horário. É, e se você fica na Matemática o tempo todo, a criança vai pegar raiva daquela matéria, então você.... era bem divididinho para não acontecer isso. 327

Tinha que ir trabalhando as outras matérias juntas? Isso.

Soroban, Ábaco, no caso, não tinha? Eram mais esses materiais que o próprio professor produzia? Não. É a gente que fazia o material.

Sementes, os alunos usavam pra contagem? Porque hoje se fala muito de palito de sorvete, mas na época acho que eram mais sementes, grãos de feijão? Ah, sim, grão de feijão, sementes, palitinhos de fósforo, eles aprendiam a contar, aprendiam a fazer continhas; quer dizer que é alguma coisa palpável, está vendo. Para depois poder transferir para.... Porque senão depois fica mais difícil, né? porque ele não vê. A mesma coisa a tal da vendinha, então eles compravam o arroz, o feijão, tudo já e fazendo pra usar no futuro eliminar aquilo lá.

Então, muito obrigada pela entrevista. Tá legal.

Tempo de gravação da entrevista: 38min30s

326 Se referindo a uma das perguntas que estava no questionário que entreguei a ela para realização da entrevista. 327 Isso ocorria nos Grupos Escolares. O inspetor ficava na Delegacia de Ensino. 275

6. Professor Orlando Melotti

Prof. Orlando Melotti, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 18 de maio de 2011, com o professor Sr. Orlando Melotti328.

Sim, pode começar... Minha formação começou com a Escola Normal, naquele tempo era Escola Normal. Em 49, 1949 329. Em 1950 nós começamos como substituto 330, professor substituto, que era uma figura que existia naquela época que hoje não existe mais. Cada grupo escolar tinha um número de substitutos equivalente ao número de professores efetivos que tinha. Então, um grupo com 10 classes tinha direito a 10 substitutos efetivos. Não tinha remuneração nenhuma, era atividade gratuita, não se pagava, não recebia nada por isso, a menos que lecionasse. Depois que houve uma possibilidade de colocar uma remuneração, mas no começo não tinha nada, era só isso. Então, a gente ia lá e assinava o ponto, e esses pontos assinados era tempo computado para efeito de concurso depois de professor. E o concurso, quando eu comecei no magistério, o concurso era só de títulos. Depois quando eu fui fazer o concurso já não era mais só de títulos, era títulos e provas331. Então nós tivemos que prestar prova de avaliação em São Paulo. Na prova entravam conhecimentos gerais e conhecimentos específicos. Foi aí que eu prestei o concurso depois para diretor e depois para supervisor, e

328 Essa entrevista foi realizada na residência do professor na cidade de Tanabi/SP. Sua esposa, a professora Eunice Kannebley Melotti ficou presente nesta entrevista, que ocorreu logo após ela mesma ser entrevistada..As intervenções da profª Eunice aparecem em itálico no texto. Como o professor já estava participando da entrevista com ela, poucas perguntas foram feitas. De forma livre, o professor já começou a contar a história de sua carreira no magistério. 329 Se formou normalista na Escola Normal na cidade de Olímpia/SP, que dista 96 quilômetros de Tanabi/SP. 330 O entrevistado se utiliza do pronome “nós” quando a informação diz respeito a ambos: a ele e à sua esposa também. Iniciou sua carreira em um Grupo Escolar em Monte Verde Paulista/SP, distrito de /SP. Monte Verde Paulista/SP dista 119 quilômetros de Tanabi/SP. 331 Neste concurso, eram computadas as notas do curso de Pedagogia e outros cursos. As notas do Curso Normal valiam como pontos. O tempo de serviço também era considerado, isso na década de 1950. Antes a prova era por “ponto sorteado”, que significa que o candidato deveria sortear um tema do conteúdo e escrever sobre ele; quando o professor foi fazer o concurso, em 1958, já eram questões de múltipla escolha. 277 depois o cargo de Delegado. Quando eu cheguei, na ocasião, já era um cargo de confiança como é hoje, hoje nem existe mais, hoje mudou até o nome, é diretor, naquela ocasião era Delegado. Então eu comecei com a Escola Normal, depois ingressamos no magistério em 1950, em 50, né? (pergunta à esposa). Em 1951 ou 1952, eu não me lembro, foi aí que eu lecionei. Eu como substituto lecionei e sofri bastante nos anos de 1950 e 1951 e 1952 332. Em 1953 é que eu ingressei com o concurso de títulos, ingressei em Duplo Céu 333 como professor, foi a única vez que eu lecionei realmente em dois anos, e peguei sempre quarta série, quarto ano antigamente.

No quarto ano, aí que eu disse pra você que o que tem aqui no Osvaldo Sangiorgi (imagem abaixo) tudo isso era matéria do quarto ano todo, mas hoje não aprende nada.

Livro “Matemática e estatística”334 de Osvaldo Sangiorgi, 1962. Acervo pessoal da profª Irma Rosa da Silveira Viana. O professor estava com o livro no momento da entrevista.

Olha, daqui eu só não entrei em raiz quadrada, com os meus alunos, só não dava raiz quadrada. Mas em compensação eu entrei numa área que eu não achei aqui! Vi muito rapidamente, que era o cálculo do metro quadrado, do metro cúbico e principalmente o metro quadrado. Que quando eu cheguei lá em Duplo Céu a grande dificuldade lá era... a população lá é pequena, mas quase que oriundo da Bahia e todos, quase que 90%, analfabetos. Então os pais esperavam dos filhos uma orientação. Então eu fui obrigado a ensinar para eles alqueire, área, hectare, o palmo, a braça quadrada, o metro quadrado pra eles ensinarem os pais. Porque os pais se julgavam prejudicados pelos patrões, pelos sitiantes na hora de acertar as contas.

332 Em Monte Verde Paulista/SP. 333 Duplo Céu/SP dista 123 quilômetros de Tanabi/SP. Lá lecionou em Grupo Escolar. Nos anos de 1955, 1956 e 1957 ficou como diretor substituto em Duplo Céu. 334 SANGIORGI, O., Matemática e Estatística. 13 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962.

278

Então eles faziam uma roçada, eles faziam uma roçada num pasto. “Quanto eu tenho que receber?” Eles não sabiam quanto é que era uma braça quadrada, quanto é que era um metro quadrado, quanto era um alqueire, quanto era um hectare, quanto é que era... eles não sabiam nada disso. Tudo, tudo eu tive que ensinar. E o bom que eu acho é que eles aprendiam realmente, eles gostavam de aprender isso e ensinavam para os pais. Às vezes os pais iam lá comigo, principalmente os... aceiros de cerca, eles faziam muito isso, naquele tempo era muito comum, era fazer o aceiro, era com uma braça de largura assim, e depois o comprimento de acordo com a medida. E às vezes o terreno era irregular, então eles tinham que trazer, davam pro filho o desenho do terreno. “Quantos metros tinha aqui?” “quantos metros tinha aqui?” “quantos metros tinha aqui?” e eu ensinava o filho como é que fazia pra calcular. Então, além disso tudo que você viu aqui no Sangiorgi, eu dava tudo isso aqui, mínimo múltiplo comum, máximo divisor comum, tudo isso eu ensinei para os meus alunos. Eu cheguei quase a brigar uma vez em São Paulo quando eu fui fazer o concurso para diretor. Nós estávamos numa sala do “Archero Junior 335”, era muito famoso naquela ocasião, estávamos nuns 340, 350 alunos, um anfiteatro que era uma beleza. E ele contratou um professor de Matemática para ensinar Matemática para o concurso de diretor. Eu me lembro que esse professor chegou, falou: “Olha...” Bateu um papo com a gente, era um cara até alegre, ele falou: “Vocês vão me desculpar mas eu tenho que saber o que é que vocês sabem, para ponto de partida, eu não sei onde é que eu vou começar a ensinar vocês aqui”. Tá bom. “Então vocês vão me perdoar, mas eu vou botar um problema na lousa e quem souber, por favor, levante a mão”. E ele sapecou um problema na lousa, pá pá pá pá pá. Eu levantei a mão, olhei para lousa, ninguém sabia, eu falei: “Uai, será que eu estou ficando bobo?” Ele falou: “O senhor sabe fazer esse problema?” Eu falei: “Eu sei”. “O senhor quer fazer ele para mim?” “Pois não”. Peguei o giz, fui na lousa, pá pá pá pá pá pá... Ele falou: “Como é que o senhor sabe fazer isso?” Aqui é uma regra de três simples, uma regra de três composta, eu não me lembro. “Mas como é que o senhor sabe?” Eu falei: “Eu dou essa matéria para os meus alunos”. Nossa Senhora! tinha umas professoras que queriam me bater. O senhor é muito atrevido, isso não é do programa, isso... mas virou uma discussão, que você precisava ver. (A esposa completa: só que os alunos saíam, prestavam Admissão, que naquele tempo tinha Admissão pra entrar, e não faziam Admissão, já entravam direto.)

Eu sei que eu dava todos esses programas aí, tudo que você pensar que está escrito aqui, eu já dei tudo isso aqui para os meus alunos do quarto ano de grupo, era uma beleza.

O inspetor escolar, depois quando eu passei no final do ano, eu passei pra diretor substituto, então eu não podia fazer exame na minha classe, quem ia fazer exame na minha classe era um inspetor escolar, que vinha de Rio Preto 336. Então ele foi fazer, e se hospedou na minha casa porque não tinha nem pensão lá, ficou lá. Era o senhor Oscar. Aí ele chegou e falou assim: “Olha, você quer ver as questões que nós vamos aplicar amanhã, vamos ver o

335 O professor pode estar se referindo ao professor Achilles Archero Júnior. Autor de vários livros sobre educação chegou a ser Assistente Geral do Departamento de Educação, Diretor da Escola Universitária de São Paulo e chefe do Ensino Secundário e Normal de São Paulo. No interior não tinha cursos para diretor. 336 São José do Rio Preto/SP, que dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 279 que você quer mexer aí, vamos trocar, porque eu não quero que passe pela vergonha que eu passei hoje lá em Palestina, com o Alcides, na classe do Alcides que era a mesma situação”. “Por quê?” Ele falou: “Uai, não passou um aluno de Matemática dele”. Falei: “Que é isso, seu Oscar? Então deixa eu ver!”. Aí eu peguei as questões, e principalmente era a Matemática que reprovava... eu olhei, olhei, falei: “Seu Oscar, o senhor pode chegar e aplicar do jeito que está aqui”. Ele falou: “Você tá ficando louco? Não passou um aluno do Alcides”. Eu falei: “Se ficar um aluno reprovado aqui, dessa turma, com essas questões aqui, eu rasgo o meu diploma!” Só teve um japonês que tirou 50, que era o mínimo, nota 50, o resto foi 75 e 100.

E essa escola era de onde? Era de Duplo Céu, escola rural 337. Inclusive tinha 50 % (dos alunos que) era japonês que tinha, e o japonês é duro para aprender que você precisa ver! eles são muito esforçados, mas são duros para aprender e esse japonês que tirou 50, esse aluno...

(A esposa completa: na língua portuguesa eles tinham dificuldade.)

É, mas Matemática eles aprendiam, mas com dificuldades. Então aí eu comecei no magistério, acho que eu lecionei dois anos também, e depois - incentivado mais por ela aí - (referindo-se a esposa) fui fazer o concurso para diretor que, já nessa ocasião, já era concurso de provas, não era mais só títulos. E aí surgiu a primeira prova por questões objetivas, que ninguém sabia o que era, nessa ocasião ninguém. “O que é isso?” Porque até aquela época, as provas eram feitas por ponto sorteado, era dissertação, tudo dissertativa, ponto sorteado. Eram vinte pontos sorteados, sorteava um ponto e falava sobre três, três a, b e c, sessão a, b e c. E quando eu fui já era questão objetiva, foi a primeira vez e houve, foi quando foi feita a primeira prova de inteligência, nunca mais fizeram que teve tanto mandado de segurança contra o Estado, que desanimaram. A prova de inteligência era o seguinte: nós chegamos na classe, não sabia o que era e nem sobre o que era feito aquilo... e nós entramos na classe, entrou o examinador mais dois assistentes. “Bom, aqui é o seguinte: vocês vão ter que responder aqui nessa apostila que está aí virada na carteira, são 90 questões que tem aqui, 90 questões e cada uma tem 5 alternativas e uma só é a certa”. Foi onde eu me salvei foi por causa disso, ele falou: “uma só é a certa”, eu falei: “Bom, já está aí uma pista para mim, se eu acertar, descobrir a certa, eu não vou olhar as outras”. “Porque vocês tem 40 minutos para responder 90 questões”. Cada uma com cinco alternativas, cada questão tinha mais ou menos 8 a 10 linhas, cada resposta com 4, 5, 6 linhas. Você já pensou responder em 40 minutos? Eu me lembro que quando ele acabou de falar, um colega levantou, pediu para sair, desmaiou, já... e assim foi, eu me lembro que eu respondi todas, todas, cheguei no final. E aí depois veio a avaliação e saiu no diário oficial a avaliação. Então a avaliação, que eu não entendi muito bem como era, até hoje é o seguinte: eles tiravam uma média de acertos da classe, da turma, então a média de acertos digamos aí é, 40%, 50%, 80%. Quem acertar o 50% na média, tira zero, certo? Essa é a média, zero. Quem acertar menos que 50% ou mais que 50%, esses acertos ou erros serão reduzidos à escala “T de Mekal”. Você sabe o que é isso? Eu não sabia também e não fiquei sabendo até hoje o que era essa escala “T de Mekal”, não sei. Bom, reduzia pra essa escala. Então

337 Era o quarto ano de Grupo Escolar. 280 você tirou zero? Não, você tirou menos 1, sua nota é menos 1. A sua menos 2, menos 3, menos 4, menos 5. E a sua? É, mais 1, mais 2, mais 3... Pra baixo ou acima da média. Aquilo criou um problema porque os que tiraram menos que zero foram ridicularizados. A hora que chegava lá nas escolas: “Você tirou menos dois. Você tirou menos 3”. O que é isso? Aquilo foi um... um bafafá... que nunca mais tivemos essa prova. Nessa ocasião nós éramos em três mil e não sei quantos candidatos, nós passamos em trezentos e pouco só. Mas essa prova não era eliminatória, tem essa vantagem, era só classificatória. Depois, a sua média dali dessa sua prova era jogada para o seu total. Você podia tirar mais 1, ou menos 2 ou menos 3... Eu me salvei, eu tirei 16. Da turma toda teve um 20, não sei quem foi, teve uma nota 20, e a minha foi a segunda, 16.

16 corresponderia então ao 66% da prova? Não sei.

Pensar que 50% era zero, 16 era 66%. Eu não sei o que foi, eu respondi todas, ou certo ou errado, eu respondi todas, eu fui até o fim, até a última na prova. Aí, bom, foi o concurso para diretor, passei para diretor, tomei posse como diretor; ingressei onde?... aqui em Tanabi, no Grupo Escolar na Vila Rincão338. Depois da Vila Rincão eu passei para a , né? Não, Nova Europa não, Nova Aliança. Eu fui para Nova Aliança339. Não, porque como professor, nós fomos para Nova Europa, lá em Araraquara340. E agora como diretor eu fui para Nova Aliança. Depois de Nova Aliança, por união de cônjuges que era um sistema de remoção que existia, eu vim aqui pro Ganot Chateaubriand341. E depois veio, porque ela veio primeiro.

(A esposa neste momento completa: eu vim primeiro pro Ganot, já vim direto para o Ganot.342)

Ah é, ela veio, eu vim por união de cônjuges, eu peguei o Ganot Chateaubriand. Aí depois foi desmembrado o Ganot, e criamos dez, nós não, o prefeito criou dez classes lá 343 e criou o João Portugal. Eu continuei no Ganot, você que saiu e foi para o João Portugal (referindo-se à esposa). Depois do Ganot eu fui pra inspetor substituto344 e depois para supervisor, por concurso. E formação profissional, além do Normal, depois eu fiz curso de Administração Escolar, um curso de dois anos, Administrador de Educação, no Monsenhor Gonçalves em Rio Preto. Depois aí veio a 5692, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1971. Essa

338 Vila Rincão é um bairro rural do município de Tanabi/SP. Isso em 1958. 339 Nova Aliança/SP dista 68 quilômetros de Tanabi/SP. 340 Nova Europa/SP dista 222 quilômetros de Tanabi/SP. Nova Europa é um município que fica na região de Araraquara/SP, lá ficava a Fazenda Itaquerê, local onde o professor e sua esposa lecionaram. 341 Ganot Chteaubriand é uma escola na cidade de Tanabi/SP. Hoje é uma escola municipal. 342 Isso em 1958. Estava na Fazenda Itaquerê, região de Araraquara/SP. 343 Na escola João Portugal, em Tanabi/SP. Isso em 1961. 344 Pela Delegacia de Ensino de São José do Rio Preto/SP. 281 lei quase que obrigou todo mundo a ter formação superior 345, então passei para faculdade de Pedagogia também, foi onde todos os professores tiveram que fazer uma formação superior, porque senão no vencimento vinha a diferença do professor primário. E aí criou o ensino de 1° e 2° graus. Então as escolas ficaram com o 1° grau, né? De 1ª a 8ª série. E 2° grau, era o antigo colegial, foi assim.

E nessa experiência no Ganot como inspetor, o senhor visitava as escolas rurais, as escolas isoladas? Sim, aí já era como inspetor, então já não era mais como diretor. Porque depois existiu uma função, não era cargo, era uma função de auxiliar de inspeção. Então o diretor do Ganot, que era a maior escola do município, era também Sede de Inspetoria. Sede antigamente não era na Delegacia, era nos municípios, município sede. Então aqui tinha a função de auxiliar de inspeção que, obrigatoriamente, era inerente ao diretor da escola. Então tive que pegar esse “abacaxi” aqui como inspetor escolar, nesse caso eu não visitava escola, eu só respondia administrativamente por elas346. Que naquela ocasião tudo era feito na escola, inclusive folha de pagamento, boletim de frequência do professor, as faltas, falta abonada, falta justificada, licença, era tudo feito aqui. Existia uma coletoria que pagava, em dinheiro, os professores. Eu fazia, na ocasião, você vê, só 57 isoladas com mais algumas substituições durante o ano, só escola isolada chegava a 70, 80 professores e mais os do Ganot aqui, entre efetivos e substitutos. Eu sei que eu tinha que fazer uma folha de pagamento com mais de 150 pessoas. E onde? Na mão, na mão, não existia máquina, não existia nada. Aí veio a primeira máquina de calcular, aquela que tinha uma manivela, assim, o Estado me mandou uma. Eu botei meu assistente, eu não confiava na máquina. Eu pus o Davi aqui, e pus o Vadinho aqui. Eu falei: “Você vai falando as parcelas”. O Davi vai fazendo na máquina e eu vou fazer aqui, na mão. Aí a primeira conta, então o Vadinho foi falando e o Davi foi fazendo, pá pá pá... “Quanto deu?” “O meu deu quatrocentos e...”. “E o seu?” “Deu tanto?” Falei: “A máquina tá errada”. “Como? Como a máquina?” “A máquina tá errada”. Aí fomos conferir a máquina, em cada parcela ela somava uma unidade a mais, quer dizer, eu estava certo e a máquina estava errada. E aí, para começar, eu tinha um coletor estadual naquela ocasião, pra mim eu classifiquei como sádico, cada um dá o nome que quiser, o Simões. A gente mandava a folha de pagamento em três vias, era uma folha dessa largura assim, e desse comprimento assim ó, ali vinha o nome, o RG, vinha tudo o que você quisesse saber do professor vinha ali, até as parcelas da conta, tudo, tudo. Se tivesse um erro, um erro que fosse, em qualquer uma que ele achasse um erro, ele fechava as folhas e mandava de volta: “Tá errado!” Eu falava: “Ô “desgraçado”, onde é que você viu o erro? Fala pra mim”. “É problema teu”. Tinha que fazer tudo de novo para descobrir onde é que estava o erro. Falei: “Custava muito, Simões, você chegar e assinalar para mim o erro? Eu corrijo aquilo e acabou, eu faço outra folha”. “Não. Isso aí é problema teu. Tá errada!” Desse jeito. Então eu tinha que fazer a folha de pagamento, botava três substitutas, cada uma com uma via da folha, que podia não estar certo na primeira ou na segunda. Era feito tudo na mão. Então um ia ditando, o dia inteirinho ditando, ditando..., número por número, para evitar erro. Isso na

345 Na verdade, ela tinha a profissionalização compulsória para os alunos do Ensino Médio e criava um plano de carreiras, dando vantagens econômicas a quem tivesse o curso de Pedagogia. 346 No início de 1970 foi criada e implantada nas escolas a função de Auxiliar de Inspeção. 282 folha de pagamento. E depois tinha um tal de BF, que era o Boletim de Frequência do professor. Aí vinha o histórico da vida de cada um daquele mês, dizia direitinho, daquele mês o que se passou com ele, se teve falta abonada, falta justificada, injustificada, se teve licença, se afastou do cargo, tudo, tudo, tudo, o histórico de cada um. Isso era feito mensalmente. Então veja como é que sofria o auxiliar de inspeção.

E os professores faziam matrícula na própria escola isolada? Na isolada, sim.

E quando esse livro vinha pra Sede... os professores contam que faziam matrículas e depois traziam para a Sede, era o senhor que supervisionava esse serviço também? Isso. Tudo, tudo, tudo, verificava tudo, tudo. Matrícula, eliminação, transferência, tudo, tudo, tudo.

Então, aquele caderno, aqueles cadernos que tem no Ganot hoje, aqueles Mapa das Escolas Isoladas, era o senhor quem... Quem dirigia tudo.

Que dirigia e organizava? É. Eu dirigia tudo e, no final do ano, durante.... aqui você falou em avaliação, a avaliação era feita, a gente já chegou a falar... nós organizamos a avaliação e era mensal, a avaliação dos alunos era mensal, dos professores era anual ou semestral. E na ocasião existia até uma avaliação de desempenho que hoje o governo está querendo fazer outra vez; só que ele faz do jeito dele, ele faz uma provinha para os professores. Nós não! a avaliação do desempenho era uma avaliação do professor, o auxiliar de inspeção mais o inspetor. O que esse professor foi durante o ano? Qual é a... quanto foi a promoção dele? Principalmente era a promoção.

Ah, os alunos aprovados... É, qual foi a aprovação dele, ele promoveu quantos? 70 %, 80 %? O que mais..., Teve falta? Teve isso, teve aquilo, faltou, morou, porque era obrigado a morar na escola o professor, tem... a horta dele funcionou? Tudo isso era avaliado, era a avaliação do desempenho, essa avaliação era feita anualmente. Depois tinha aqueles critérios: bom, muito bom e péssimo. Era péssimo, ou ruim, bom e muito bom. Eu podia dar 20% só de muito bom.

Ah, tinha cotas, ainda? É, 60% de bom e 20% de péssimo. E se eu não tivesse nenhum péssimo? Você ficava marcado com o professor. “Deu péssimo para mim”. Você vê, tudo isso foi um bocado de erros que foi feito. E do aluno era feito mensalmente. A gente organizou um grupo de diretores, que organizava para os grupos escolares as provas, e o auxiliar de inspeção a gente organizava para as escolas isoladas. O professor levava e aplicava aquela prova, mensalmente, e aqui também mensalmente. E, no final do ano, o professor não aplicava a prova na classe dele, trocava. A gente que escalava, você vai fazer na Dona Eunice, a Dona Eunice vai fazer na Dona Zuleika, e você vai fazer na Elza... 283

(Sua esposa questiona: mas já nessa ocasião não vinha da Delegacia a prova?)

Vinha tudo da Delegacia. A final vinha tudo da Delegacia 347. Era aberta na frente dos alunos a prova. E eu não estou falando que às vezes eles implicavam até com a voz do professor? Não era boa a pronúncia. Então era feita a avaliação assim de professor e de...

(Sua esposa: mas com o tempo isso daí caiu, né?)

Ah, sim, depois foi mudando. Quando começou a surgir esse método global, que até lá, era o Caminho Suave, era um tipo para a primeira série, só que depois para as outras classes não.

(Esposa: mas poucas professoras adotavam o...)

O global? É, foi muito criticado, porque depois eles achavam que os alunos saíam da primeira série sabendo ler, mas não sabiam escrever. Que é o método da visualização, quer dizer, então ele, o global tinha..., o Caminho Suave já ensinava paralelas as duas coisas, Matemática e Português. Todos eles tinham crítica, né? Existia na época, que ela (se referindo à esposa) não falou. Nós tínhamos equipes técnicas, nós tínhamos em São Paulo o DRHU - Departamento de Recursos Humanos. E aqui em Rio Preto, nas Delegacias, tinha o SERU - Serviços de Recursos Humanos. Que era a equipe técnica. Elas então estudavam junto com a gente, estudavam e vinham aqui dar orientação técnica para o professor também nas escolas, tanto, principalmente Matemática e Português. Tinha Matemática, Português, Estudos Sociais. E qual era a outra? Estudos Sociais, Matemática, Português... Ciências348.

Então na verdade promoviam cursos de aperfeiçoamento? Esse pessoal de Rio Preto? Eles eram especializados em orientação técnica. Cada uma numa área, então é um..., era um curso, mas era uma orientação que dava pra todo ano e era dividido. O programa de ensino era dividido. Cada professor sabia que neste mês de março, maio, ele tem que dar isso aqui. Ele tinha que cumprir essa tarefa349.

Um planejamento? É, um planejamento. Elas faziam o diário ou semanário.

(Esposa: diário.)

É. E alguns, principalmente os professores de primeira série, era o diário. Os outros podiam fazer semanário. E era toda a semana a gente pegava o diário delas e via o professor, o diretor via e o supervisor também350.

347 A avaliação final vinha da Delegacia de Ensino. As avaliações mensais eram feitas pelo professor. 348 Os professores que trabalhavam nas escolas rurais também participavam destas orientações técnicas. Eles forneciam material. 349 O professor tinha autonomia para trabalhar os conteúdos. 350 Nas escolas rurais era por mês. 284

E na região aqui o senhor comentou que tinha 57 escolas isoladas. Isoladas, nesse município.

Dentro desses 57, as Típicas Rurais, as de emergência faziam parte desse universo? A escola era dividida. Naquela ocasião, existia a escola mista, que era alunos, meninas e meninos. E escola masculina, é uma figura que desapareceu, e escola de difícil acesso, muito ruim e difícil às vezes até para pensão, então a gente colocava como escola masculina351, só tinha acesso à escola masculina o professor do sexo masculino, só para homem, entende. Naquele tempo tinha, hoje não tem homem mais que leciona, mas naquele tempo tinha. Então escola masculina só era escola de emergência352. Vamos supor, eu chegava a ter, digamos dessas 57 escolas, digamos que 30 ou 35 ou 40 fossem escolas mistas, as outras eram de emergência. Quando um núcleo, vinha um fazendeiro, um proprietário, vinha comigo naquela ocasião: “Olha, eu tenho lá um grupo, eu tenho mais de 15 alunos”. Então eu ia lá e verificava se realmente existiam esses alunos, eu reunia todos num lugar. Se tivesse sala de aula, que ele me arrumasse uma sala de aula, muito bem, senão eu ia com a prefeitura e construía, eu mesmo que ia lá, orientava o pedreiro a fazer e fazia. Até isso eu fazia: a orientação para a construção de uma sala de aula. Então a escola ficava como emergência enquanto né? um ano, dois anos, três anos como experiência, aí podia ser efetivado, a escola podia se transformar em escola comum ou desaparecer. Aí essa escola ficava comigo, eu botava num lugar, onde tivesse aluno, se tornava emergência ou comum, assim. O grupo escolar era autônomo, só inspeção nossa, mas era autônomo, o diretor para fazer tudo. Agora, escola isolada, não, era tudo aqui. Reunião mensal, toda reunião mensal aqui, era aos sábados, um dos sábados do mês. Então num sábado já marcava, a próxima reunião fica para tal dia. A reunião era dividida em parte administrativa e parte técnica.

E como tinha aulas aos sábados também, existia um sábado do mês que os professores não davam aula e vinham nessa reunião? É. Um sábado por mês eles não davam aula, mas dava como frequência por causa da reunião.

Aqui em Tanabi existiam as Típicas Rurais também ou não? Tinha a Típica Rural. Tinha a Típica Rural na Cachoeira dos Felícios. Tinha Típica Rural lá no... como é que chama o pai da Lurdinha Chain? Tinha na Cachoeira dos Felícios, aqui tinha no João Felix, lá na Fazenda Nova. Típica Rural tinha o Grupo Escolar em Ecatu, até pouco tempo era Típico Rural353.

(Esposa: naquele momento tinha mais rural de que...)

Mesmo porque na hora da escolha dos concursos o professor que tivesse ensino típico rural tinha preferência para escolher.

351 As escolas masculinas eram escolas de difícil acesso. A nomenclatura se dá devido à especificidade do sexo do professor – tinha que ser um homem – porém, estudavam meninos e meninas. 352 Ou de difícil acesso. 353 Esses locais citados pelo professor são todos no município de Tanabi/SP. 285

Por que tinha uma formação específica? É.

(Esposa: e o professor que fazia típico rural ingressava através de prova e não por títulos.)

É porque começou a prova antes.

(Esposa: eu fiz a Escola Agrícola em Piracicaba para a Típica Rural, mas não prestei para a rural, não354.)

Mas era um concurso à parte, o ingresso, mas aqui tinha. O Ecatu era o único Grupo Rural que eu tinha Típico Rural. O Rincão era Rural, mas não era Típico Rural. Perobas era Rural, mas não era Típico Rural. E Ibiporanga também355.

E Ecatu era Grupo e era Típico Rural? Era Grupo Escolar Típico Rural.

Tinha as duas categorias? Eles tinham a inspeção nossa, do ensino comum, e do Típico Rural, que a Sede era , era o senhor Lupércio356.

(Esposa: acho que eles visitavam também o engenheiro agrônomo porque eles tinham que fazer horta.)

Mas aí era convite. A gente convidava o engenheiro agrônomo para fazer palestra.

(Esposa: mas eles eram obrigados a fazer horta também.)

O senhor não chegou a orientar diretamente o ensino de Matemática, dessas escolas rurais? Sim, nas reuniões pedagógicas tinha que orientar, aí tinha muito, um que eu não achei aqui, você quer ver, uma coisa que eu não achei, por isso que eu tive olhando bastante aqui (referindo-se ao livro de Sangiorgi, ilustrado anteriormente). Eu aprendi, na escola - quando aluno eu aprendi Matemática - Matemática que eu digo a tabuada, que hoje não usa mais, ninguém sabe a tabuada hoje. Aprendi a tabuada com um tal de Triângulo de Condorcet. Já ouviu falar? Não tem aqui.

Triângulo de Condorcet? É. Esse triângulo é da seguinte forma, é a coisa mais lógica, mais matemática, mais simples que tem. Você pede para o aluno; “pode rabiscar aqui?”

354 Depois que se formou no Curso Normal, em 1949, fez um curso de 4 meses. Tinha a parte de agricultura, apicultura, horticultura e avicultura. 355 Ecatu, Rincão e Perobas são bairros rurais. Ibiporanga é um distrito. Todos no município de Tanabi/SP. 356 O Grupo Escolar Rural recebia orientação da Inspetoria rural de Catanduva/SP e da Delegacia de Ensino de São José do Rio Preto/SP. 286

Você pega para o aluno e faz o seguinte... (riscando na folha). Então aqui, vamos supor, eu pego a tabuada do dois, certo? Então eu quero saber, 2x2, quanto é que dá? Quatro. 2x3, quanto dá? Seis. 2x4, quanto dá? Oito. E vou até o final. Aqui 2x9, 18. Eu não dou 2x0, e explicava porque 2x0, sabe que é zero. E 2x1 é dois e também 2x10 não punha aqui, porque dez sabe que, dava separado, dez, vinte. 2x10, 3x10... Bom, agora a do três. O que eu faço com a do três, eu preciso pôr aqui 2x3 ou 3x2? Não, porque eu já tenho 2x3, eu tenho 2x3, aqui começou 2x2, né? Eu já tenho 2x3, então eu não preciso pôr, porque eu já tenho aqui o... Então eu começo aqui com qual? Começo com o três, 3x3, nove, certo? 3x4, 12. 3x5, 15. E assim vai... Quando chegar na do quatro, veja que vai formando um triângulo, aqui se vai até o nove aqui você vai até? Começando a do três você vai acabar aqui ó, o nove vai cair aqui, 9x3, 3x9, 27, aqui do quatro vai sair aqui ó...

(Esposa: chegava no nove, só sobra o nove.)

4x9, 36 vai cair aqui, então forma assim...

Triângulo de Condorcet, desenhado pelo prof. Orlando Melotti, 2011. Foto feita pela pesquisadora.

(Neste momento a gravação é interrompida por falha no gravador, imediatamente, inicio a gravação via celular.)

287

Esse daqui estudava muita Matemática, também é muito bom (referindo-se a outro método).

Qual o nome desse outro método? Esse não tinha nome. Que nome que ia dar pra isso, cada aluno tinha, cada professor tinha que ter um desse, colocava em cima na lousa. Mandava fazer aqui no Bechara357 naquela ocasião, fazia de madeira, bonitinha assim, compridinho358. Tinha a “Árvore da Matemática” também359.

(Esposa: mas era mais para a primeira série.)

É, e o que eu sempre usava também para desenvolver o raciocínio do aluno também. Eu não aceitava o aluno simplesmente: “Deu isso aqui”. Como deu isso aqui? O resultado correto seria 100, o seu deu 4900, como pode ser uma coisa dessa? Não sei se alguém mais fazia isso. Eu fazia uma tal de estimativa, por minha conta. Eu passava um problema na lousa. Ninguém pega lápis nem nada. Vamos ver o problema. “Agora no cantinho do caderno vocês vão fazer o problema de cabeça”. Fez de cabeça. “Quanto é que você acha que vai dar o problema, o resultado?” Põe no cantinho aqui. “Acabaram?” Todo mundo acabou a estimativa. Espera ali, dois, três, quatro minutos... “Agora vamos fazer”. Cada um faz o dele. E aí vamos ver quem acertou, quem não acertou. E eles tinham que aprender a fazer isso. Porque depois, no começo a gente exigia, cada operação que ele fizesse, ele tinha que escrever o porquê ele tinha feito aquilo. Então, eu vou primeiro fazer aqui 15+17. “Mas porque que eu fiz essa conta?” “O que quero saber com isso?” Então, ele tinha que escrever para saber quantas laranjas eu chupei. Ele tinha que escrever o porquê ele tinha feito essa conta. Agora eu vou multiplicar isso aqui por, 20 centavos. “Por quê?” Porque cada laranja custou 20. Então eu quero saber quanto é que vai custar. Então ele tinha que fazer também o porquê. Era um artifício que a gente usava muito em Matemática. E assim foi tocando Matemática no nosso Grupo360.

Quantas coisas interessantes para o ensino da Matemática, principalmente esse triângulo, na questão da multiplicação. Esse triângulo aqui é uma coisa fantástica para a tabuada, hoje ninguém sabe a tabuada. Matemática era assim, não tinha que pensar para responder a tabuada, era assim, pá pá. Era na bucha e era uma beleza que eles aprendiam de fato. Eles saíam dali sabendo Matemática mesmo, eu te dei o exemplo de um aluno, só um tirou 50 naquelas questões dele361.

357 Bechara é uma indústria de móveis da cidade de Tanabi/SP. 358 Era um quadro de madeira onde eram indicados valores numéricos (na lousa, por exemplo, poderia ser colocado apenas o resultado). O aluno tinha que adivinhar, por exemplo, a operação envolvida. 359 A árvore da matemática era de madeira e nela eram penduradas as frutas. 360 Essas experiências foram vivenciadas na época em que ele trabalhou como professor. Ele usava também nas reuniões com os professores. 361 O professor se refere à avaliação que foi aplicada em sua sala de quarto ano quando era professor. Contada anteriormente nesta entrevista. 288

E acompanhando o ensino da Matemática, esse grande momento da Matemática Moderna, em meados da década de 60, tem alguma lembrança forte de quando começou... Daí pra frente que eu passei, mas foi quando foi feita a Lei de Diretrizes e Bases, a 5692. Foi feita a reestruturação das Delegacias, aí foi uma bagunça danada. E foi criada a tal jornada de trabalho. Nessa ocasião, eu estava pela Delegacia de Rio Preto, a Sede era lá, não era mais aqui, era lá a Sede. E aí foi sobrando para mim aos poucos. E ainda por sorte minha ou azar meu, a chefe da equipe toda de lá era a Evelin, e a coitadinha “espanou”. Ficou totalmente desequilibrada mental e aí depois ela (supervisora) voltou a trabalhar, mas voltou com 30% do que era. E na ocasião tinha um Delegado de Ensino que era o professor Lima, ele era de Mirassol. Eu não sei por que ele gostava muito de mim. Eu me lembro quando nós fizemos uma reunião, ele falou: “E agora? A Evelin caiu fora, quem é que vai pegar para fazer isso tudo?” Ele falou: “Olha o homem aqui”. Eu falei: “Você tá louco, Lima”. Ele falou: “Você vai fazer isso”. E ficou pra mim o abacaxi. Então fiquei com tudo isso na Delegacia e... quanto à estruturação, nós chegamos a 16 supervisores de ensino na Delegacia. Desses 16, acho que 13 ou 14 eram advogados, e a parte de legislação todinha era minha e eu que tinha que fazer reunião com esse povo todo. Então eu tive que implantar a jornada de trabalho e como a divisão não tinha lá um assessor técnico para isso, ficava também para mim. A Delegacia... a nossa divisão pegava de , não, Barretos já era pra Ribeirão. Olímpia, eu começava por Olímpia, eu vinha de Olímpia pra cá, acompanhando o norte aqui, o Rio Grande e se vai aqui Olímpia e vem até aqui no município de Tanabi e vai aqui pegava outra Delegacia, próxima Delegacia: Votuporanga, era nosso. Fernandópolis, era nosso. Jales, era nosso, e depois Santa Fé do Sul. Indo pro sul da Delegacia de divisão, então pegava Monte Aprazível e José Bonifácio, era tudo daqui. E indo pra lá, leste, então tinha Catanduva, também era nosso. Então tudo isso caía em cima da gente. Eu cheguei a fazer reunião para atribuição de aulas, excedentes, de aulas mesmo, para composição de jornada no Monsenhor Gonçalves362 com mais de 3000 candidatos. Para você ter uma ideia, lá no Monsenhor Gonçalves, eu fiz, e até tive que fazer o seguinte: ali a capacidade física do prédio era para 400 pessoas, só 400 pessoas, não cabia mais que isso e tinha muito mais que 3000. “Bom, o que eu faço com esse pessoal aqui?” Bom, a primeira coisa que eu tinha que fazer é chamar a polícia, para a polícia botar em ordem, porque senão, nossa, eles se matavam, eles queriam, nossa.... e eu fazendo 400 de cada vez. Dava orientação mais ou menos por uma hora, para cada 400, depois vinha mais 400, o dia inteiro, isso o dia inteiro.

Então essa parte mais aqui que você tá perguntando363, já me fugiu um pouco, porque eu fiquei mais com essa responsabilidade lá. Tinha dia que eu ia 6 horas da manhã. E tinha os concursos nessa ocasião, os concursos eram todos organizados na divisão, tudo pra mim também, era tudo por mim conta, fique bem entendido: as questões não; vinham de São Paulo. Mas a aplicação do concurso, aí a aplicação era tudo eu, eu que fazia tudo. Então essa parte aqui, ficou bem, bem sacrificada, porque... Mas para isso eu tinha o auxiliar de inspeção e a equipe técnica do SEROPE que vinha aqui, né. O SEROPE, Setor

362 Monsenhor Gonçalves é uma escola Estadual na cidade de São José do Rio Preto/SP. 363 Se refere à pergunta sobre a Matemática Moderna que estava no questionário que entreguei a ele para orientar a entrevista. 289 de Orientação Pedagógica364.

Algo a mais que queira acrescentar, contar, que não foi contemplado aqui, alguma história... A Matemática houve alguma mudança? Bom agora, o que... a Matemática mesmo não sofre mudança, o ensino é que sofre a mudança, né? E a única coisa que eu acho que mudou muito é a avaliação. A avaliação era muito mais séria. E naquele tempo se exigia e cobrava do professor e do aluno, e hoje não tem mais cobrança. Então eu não sei como é que você vai avaliar uma coisa se você não cobrar? Eu não consigo hoje raciocinar como raciocina esse pessoal, de jeito nenhum. Não, você não sabe, eu estava lendo um artigo hoje, me deu vontade de rasgar o jornal, eu estava falando pra ela aqui, tem uma, uma.. escritora? O que ela é? Que ela escreveu, ai meu Deus..., se eu pegar o jornal de hoje eu te mostro. Ela acha que está muito certo a criança falar: “Nóis vai”. “Nóis fumo”. “Nóis qué”... É, está correto! É um absurdo!. E o artigo ali é para “meter o pau nela”, sabe. Mas o pior de tudo não é ela concordar com isso, a escritora, é o MEC concordar com isso. Ela fez uma cartilha, ela fez uma cartilha, e na cartilha dela é desse jeito e o MEC acha que está certo, que cada um tem o direito de falar como quer. Então onde é que vai parar a gramática? Como é que você vai ensinar a gramática daqui pra frente? Ou a língua pátria desse jeito?

A linguagem que era exigida desde o primeiro ano, o “falar corretamente”... Então, já existe uma corrente, aliás, você pode concordar, que você pode falar errado, mas agora escrever errado é que você não pode. “Nóis fumo”. Tudo bem, você perdoa, entra por aqui e sai por aqui, mas se você for escrever “Nóis fumo”. Que é isso? você não pode aceitar isso como certo, gente!

Aceitar de quem fala na vida, tal... Mas agora aceitar do aluno que frequenta uma escola não aprender corretamente... Senão vai acontecer o que aconteceu. Você é muito nova, você não vai lembrar. De um governador que nós tivemos chamado Jânio Quadros, Jânio da Silva Quadros. Foi assim, uma revolução no Estado inteiro, o homem fez tudo, tudo, tudo. E eu nunca me esqueci, que teve um professor aqui de Guaraci 365, naquela ocasião tudo que se pedia para o Jânio Quadros, ele tentava fazer, e procurava fazer. Inclusive quando eu fui fazer o concurso para diretor, naquela ocasião se exigia do candidato a ficha funcional, ficha de exercício, era o resumo da sua vida, pronto, que a Secretaria de Educação te pedia 366. Você pedia, aquilo era um documento que... “Sine qua non”, tinha que apresentar aquilo para se inscrever. E eu tinha a inscrição, eu pedi autorização, tinha que entregar em 30 dias aquilo, então eu vou pedir e tal. Então eu fui falar com o Janio Quadros, fui falar com o Vilar, que era o vice. Se você pedia esse documento para a Secretaria de Educação, demorava, era no mínimo, e ainda se você tivesse muita política lá dentro pra te ajudar, você conseguia em uns seis meses, senão em um ano, dois, três. Bom, eu fui lá, cheguei lá: “Pois não”. Eu falei: “É assim, assim..., eu

364 O professor citou as professoras: Maria Aparecida Barco, Maria Helena de Matos, Meire Chalela e Carmelita (diretora do Serope). 365 Guaraci/SP dista 117 quilômetros de Tanabi/SP. 366 Em 1956. 290 me inscrevi para o concurso de diretor e preciso da minha ficha de exercício”. Ele enfiou a mão por debaixo da mesa assim e falou: “Senhor, por favor, requeira isso”. Eu falei: “Agora?” “Agora”. Peguei uma caneta e de pé, de pé mesmo, fiz o requerimento, entreguei para ele. Ele falou: “Por favor, senta um minutinho”. Eu sentei, esse cara sumiu. Dali uns 15 minutos ele voltou, e falou: “Tá aqui sua ficha de exercício”. Eu falei: “O quê? Tá pronto?” Falei: “Bendito Jânio Quadros, gente!”. Demorava um ano para você adquirir esse documento, para você ter uma ideia. Mas voltando no Português... Esse professor de Guaraci mandou uma carta para ele, não sei o que o moço reivindicava, efetivo, escolheu em Guaraci, mas tudo errado. Ele não publicou os erros, tinha que publicar isso, ele não publicou pra gente ver no diário oficial, mas ele mandou uma carta para o indivíduo acabando com ele. E o cara, para ser justificar, se justificar, então ele falou que ele foi mandado pra lá muito tempo e que ele acabou absorvendo aquele linguajar daquele povo. Aí ele publicou no diário oficial, porque ele foi mandado lá pra ensinar e não para aprender, ele foi lá para ensinar. Nunca me esqueci do Jânio Quadros, por causa daquilo. E a história da mulher, do jornal de hoje, depois se você quiser ver eu te mostro, é um absurdo. Ele acha que é correto ensinar: “Nóis fumo”. “Nóis é”. “Nóis qué”. “Nóis vai”. Mas o que é isso? Como é que você vai passar isso para o pessoal que ainda vem? O que eles vão aprender da gramática, de que jeito? Um absurdo.

Então, muito obrigada pela atenção. Que é isso? Às ordens! Qualquer coisa, aparece aí.

Tempo de gravação da entrevista: 39min52s

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7. Professora Maria Feliciana Guimarães Donofre

Profª Maria Feliciana Guimarães Donofre, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 19 de maio de 2011, com a professora Dona Maria Feliciana Guimarães Donofre367.

Então, pode começar, Dona Maria, a contar um pouco da trajetória, ainda como aluna, as escolas que frequentou, se fez Curso Normal... A escola que eu frequentei foi o Padre Fidélis e em Jales, era escola seriada368 também.

No caso no Padre Fidélis369, fez a parte do curso primário? Não, não. Foi já da quinta à oitava. E o Normal.

E em Jales? Santa Albertina370, pra lá de Jales, fiz o primário.

Quando estudou no Padre Fidélis era a época que tinha aquele Curso Anexo? Onde as alunas faziam estágio? Tinha o Aperfeiçoamento e tinha o Científico, só. Não. Nós fazíamos estágios nas isoladas.

E o Padre Fidélis era onde o prédio é hoje? Por que antes o prédio era ali onde é a Fundação371 hoje? Era já. Onde é a Fundação não, ali não, ali era a Escola de Comércio, Escola de

367 Esta entrevista foi realizada na residência da professora, na cidade de Tanabi/SP. 368 A entrevistada se refere às classes multisseriadas. 369 Padre Fidélis é uma escola estadual na cidade de Tanabi/SP. 370 /SP dista 139 quilômetros de Tanabi/SP. Pertencia a Jales/SP. Na época eram 4 séries na mesma sala. 371 Fundação Educacional de Tanabi é uma escola particular na cidade. 293

Mauá. Até a oitava eu fiz ali 372, porque eu era bolsista, né? depois eu passei, que eu formei Auxiliar de Escritório ali, depois eu passei para a Padre Fidélis no Normal noturno.

Então, além do Normal tem o Técnico? É. Nós fizemos o Normal noturno lá. Tinha o técnico aqui na Escola de Comércio. Como é que ela chamava? Escola de Mauá, não era? Acho que era de Mauá e o Normal era aí também.

Ah, tinha? Só que eu não peguei aí, eu estudava aí à noite, a parte de Contabilidade e depois lá abriu. O deles lá foi - mais ou menos - quer ver? eu tinha 15 anos quando o Fidélis abriu... não! 17. Quantos anos faz? Eu estou com 60 e pouco, 64.

Foi quando no Padre Fidélis começou a ter Curso Normal e parou de ter aqui? É, e parou de ter aqui.

Entendi. E outros cursos, além do Magistério, a senhora já falou que fez o Curso Técnico de Contabilidade e depois teve outros Cursos de Aperfeiçoamento, já como professora? Já tive vários, tive um que durou um ano e pouco, mas nem lembro mais o nome, faz tantos anos. Eu formei em 1970. Já faz tantos anos que eu não lembro mais...

A senhora comentou que, de 1970 até 1988, trabalhou em outro ramo, que foi na enfermagem? É, enfermagem373.

E quando a senhora cursou Técnico em Enfermagem, depois do Curso Normal? Foi. Fiz no Hospital de Base 374, onde é o ambulatório hoje. Hoje nem sei o que é lá mais, antes era o ambulatório do Hospital de Base, fica ali do lado, quando você vai, Hospital de Base, aqui do lado esquerdo.

Então a senhora se formou Normal, não foi dar aula, fez o curso Técnico em Enfermagem e trabalhou como enfermeira quase 18 anos e aí foi para a escola dar aula. E essa escolha de ser professora, era uma escolha da senhora? Tinha desde criança. Já era desde criança, ser professora. Era um sonho que acalentei desde criança.

E de 1988 a senhora deu aula até que ano? De 1988 eu dei aula até abril do ano passado, 2010.

E a experiência em escola rural isolada, foi por quanto tempo? Melhor que em escola da cidade. E foi de 1988 a 1994.

372 Era a Escola Técnica de Comércio Visconde de Mauá. 373 Chegou a dar aulas por 3 meses no ano de 1979, mas voltou mesmo foi em 1988. Desde então, trabalhou até o ano de 2005 no município de Tanabi/SP. 374 O Hospital de Base fica na cidade de São José do Rio Preto/SP, que dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 294

E falando nessas experiências das escolas isoladas. Tinha os três anos, quatro anos na mesma turma, ou não? Quatro séries na mesma turma, todas. Primeira, segunda, terceira e quarta.

Tinha algumas escolas isoladas que tinham até o terceiro ano. É, mas todas que eu peguei, na Perobas foi até... primeira, segunda, terceira e quarta. Trival: primeira, segunda, terceira e quarta. Trival é indo para Ibiporanga, do lado esquerdo, antes de chegar em Ibiporanga375. No Córrego do Vau376: primeira, segunda, terceira e quarta.

A quantidade de alunos do quarto ano já diminuía? Não! Era assim: você tinha, três, quatro da primeira; cinco, seis da segunda... Tinha vez que tinha: um da terceira; quatro, cinco da quarta... Teve uma vez, que nem aqui na Perobas, que eu peguei: oito alunos da primeira; três da segunda; cinco da terceira e três da quarta. Era de 30 para baixo, dava 22, 23, separado em quatro.

A senhora pegou uns anos assim que essas escolas já foram fechando. Por conta do número de alunos? Já. Não... por conta assim do melhoramento, né?

Era mais fácil trazer esses alunos para a cidade do que mandar um professor para lá? Pra cidade, é, do que mandar um professor para lá.

Entendi, e a senhora pegou uma fase de morar no sítio? Não, eu ia de carro todo dia e voltava.

Como eram os alunos dessas turmas, eram bons pra trabalhar? Alunos bons e principalmente educados, e os pais mais educados ainda, porque hoje os pais são os piores.

É, reflete. Organização familiar reflete na escola? É, os pais são os piores, esses como falam? Direitos das crianças, como é que fala?

O ECA? Não, essa tutelar, como é que chama?

Conselho Tutelar? É, isso daí estragou tudo, porque muitos pais já queriam a liberdade, não queriam educar filho nenhum. Com o Conselho Tutelar eles não podem nem relar a mão nem nada. Então deixou tudo solto à vontade, quando o professor faz qualquer coisa, aí vai ver como é que fica...

Nossa, a gente não pode...

375 Ibiporanga é um distrito do município de Tanabi/SP. 376 Perobas, Trival e Córrego do Vau ficam no município de Tanabi/SP. 295

Lá em São Paulo 377, eu cheguei, no primeiro dia de aula em São Paulo, na fila - que aqui no interior você põe a mão no aluno, brinca, tudo - eu pus a mão no menino para ele entrar assim na classe, na fila né, ele tava assim olhando para trás. Ele falou assim para mim: “Tira a mão senão eu te processo”.

É complicado... E aí já tinha os inspetores de escolas que visitavam as escolas? Tinha da Delegacia, porque tinha os Delegados e os inspetores. Depois virou supervisores.

Na época a Delegacia era em São José do Rio Preto? Não, era em Monte Aprazível 378. Nós pertencemos primeiro a Votuporanga 379. Em 1979, pertencia a Votuporanga. Já em 1988 pertencia a Monte. Se pertenceu a Rio Preto 380, foi no período que eu não estava dando aula, naquele intervalo que eu parei.

E aí esses inspetores eles avaliavam os alunos, o professor? Vinham, avaliavam os alunos, faziam o ditado, mandavam o aluno contar história.

E tinha uma avaliação que era externa? Tinha a prova. Nós fazíamos prova escrita, chamada oral, muitas vezes mandavam o aluno fazer trabalho em casa ainda e tinha as tarefas.

E nessa época tinha uma prova que vinha de fora? Não, não tinha, nessa época não tinha ainda.

Porque alguns professores me contam que tem uma prova que vinha um professor de fora aplicar381. Não, não, não. Isso é só quando a classe que tinha um problema, acontecia algum rolo, então vinha alguém ver como é que estava a classe.

E a organização de merenda, matrículas... Merenda eu nunca peguei de fazer na escola, eu levava pronta da prefeitura.

E matrículas? Os pais tinham que vir na cidade fazer? Não, os pais vinham na escola fazer matrícula 382, e quando os pais não iam, a gente ia na roça procurar os pais, na terra tombada, para poder achar os pais.

E por quê? Os pais não tinham conhecimento da escola ou não tinham interesse que os alunos estudassem? Não é que não tinham interesse, porque todos eram empregados, e os patrões de

377Trabalhou em São Paulo (capital) de 2006 até o início do ano de 2010. Era ensino primário, em Escola Estadual. 378 Monte Aprazível/SP dista 18 quilômetros de Tanabi/SP. 379 Votuporanga/SP dista 43 quilômetros de Tanabi/SP. 380 A entrevistada se refere à cidade de São José do Rio Preto/SP. 381 A professora conta que em 1988 tinha, depois não. 382 O professor fazia a matrícula na escola rural e trazia para a escola Sede. 296 antigamente eram uns carrascos, não era como os patrões de hoje que dão mordomia para os empregados. Antigamente empregado tinha mordomia? Não tinha.

E a criança tinha que trabalhar na roça? Trabalhava! Eu trabalhei muito apanhando algodão. Criança não tinha mordomia antigamente, empregado, essas coisas, imagina, de sol a sol, até de segunda a sábado...

E a senhora chegou a trabalhar em alguma escola de emergência, em alguma escola típica rural? Tinha essas escolas... Tinha. De emergência eu sei que trabalhei em uma. Mas agora eu não lembro qual foi, se foi lá no Trival, até hoje eu não sei qual é o significado da emergência para a isolada, eu não sei.

É que uma escola de emergência, por exemplo, se tiver um sitiante que tem vários empregados, que vai ter uma plantação de algodão, que é ali temporário, então ele pede para instalar ali uma escola de emergência. Então a escola funciona enquanto tem aluno, e quando os trabalhadores forem para outro lugar, a escola pode fechar.. Ah não, então não peguei nenhuma, peguei isolada.

Há casos em que, se vem um sitiante ali, se instala e fica por muito tempo, pode ser que depois de dois, três anos essa escola de emergência passe a ser fixa no lugar. É, mas eu acho que antigamente todas eram de emergência depois passaram a ser isoladas.

Então, a escola isolada, na verdade, a característica dela é que tem só o professor e a sala de aula. Não tem secretaria, não tem direção, não tem nada. Então, o que o inspetor de escola me disse é assim: tem lugar que a de emergência passa a ser isolada e fica ali fixa no lugar, tem uma de emergência que desaparece... É. Mas aqui, quando desapareceram, foram todas de uma vez. E na Trival, desapareceu dois anos antes de terminar todas, essa da Trival, porque os professores iam para Ibiporanga, então carregavam os alunos. E a gente ia para a escola com até dez alunos dentro do carro.

Ia dando carona. E quando lá não dava o tanto de aluno que tinha pra funcionar a escola, eles levavam pra cidade.

No Sapé a senhora não chegou a dar aula, na Fazenda Alferes383? Não. Dei aula na Trival, no Durval Vargas384. No Durval Vargas eu dei aula um ano. Na Perobas, na Trival e no Córrego do Vau.

E como eram as aulas, havia separação das disciplinas? Quando eu vou dar Ciências, Geografia, História, era o professor quem determinava isso? Não. A gente dava, revezava assim... que nem: o dia que eu dava História, eu dava:

383 Município de Tanabi/SP. 384 Durval Vargas fica no município de Tanabi/SP. 297

Geografia, História e Português. No outro dia eu já dava Matemática, Português e Ciências. E era duas vezes por semana Geografia e História, duas vezes por semana Ciências. Agora Matemática e Português era quase todos os dias. Que Português tinha que ser todos os dias, agora tinha dia de Português em que você não dava Português, você ia contar história. Era Português, então eles iam ler livros, iam contar historinhas, eles iam fazer uma redação.

Mas a aula de leitura já era um texto de Geografia? Já era, só que não era incluído não, era completamente separado. Não é como hoje, que num texto de Português você dá uma aula de Geografia e de História, Ciências. Você dá um texto de Ciências e já trabalha Ciências e Português. Hoje é assim, mas antigamente não, era cada um no seu. É, aula de reprodução, aula de composição, narração, era tudo separado.

E como tinha as quatro séries juntas, a senhora separava no quadro? É, no quadro: primeira, segunda, terceira e quarta.

E cada aluno já sabia onde é que ele tinha que olhar? É! Quando o aluno estava na segunda, ele fazia matéria da quarta, quando chegava na quarta ele estava cansado. Ele ficava vendo. Tinha aluno da segunda série que sabia mais do que da quarta, porque tem aluno que não aprende, tem outros que têm mais facilidade.

E os alunos maiores ajudavam os menores? Ajudar a fazer uma lição, colaboravam? Olha, comigo não, na sala de aula. Mas eu pedia para que eles ajudassem os irmãos em casa. Todos tinham três, quatro em casa.

Como a senhora já disse, exigia tarefa, lição de casa, ali todo dia? Tudo, e ali eles ajudavam em casa, porque muitas vezes o pai era analfabeto, né? então os irmãos tinham que ajudar uns aos outros.

E às vezes o conhecimento dos alunos ajudava o próprio pai depois? É, como meu pai e minha mãe, que aprenderam a ler comigo, quando eu entrei na escola. Nós éramos em dez. Então eles não sabiam nada, eles vieram da Bahia, eles não sabiam nada. Nós que ensinamos eles a escrever.

Era o próprio conhecimento que o aluno levava para os pais. É, entramos todos juntos na escola. Uma turma entrou à noite, outra de dia. E a gente ia ensinando. E eu era a que mais tinha paciência de ensinar eles. Porque eu também entrei na escola com 10 anos já, porque não tinha escola para lá.

E, sobre a Matemática, quando e como eram introduzidos os números, as contas...? Na primeira série? No comecinho, você já introduzia o Português, tinha que ir dando as palavrinhas.

Que era a alfabetização? É. Eles já iam vendo a segunda trabalhar, a terceira trabalhar, a quarta trabalhar, então eles não precisavam de muitos rodeios, não. Eu já começava a ensinar o 1. Só que 298 tinha uns desenhinhos, que agora eu não lembro. Eu só sei que o 1 é..., o 6 era a bengala de cabeça para baixo, o 9 era a bengala, o 3 era o ratinho em pé, o 4 era a cadeirinha em pé. Então tinha todos os desenhinhos.

Pra associar o desenho ao número? É, tinha um que era uma borboleta, o 8 que era o gatinho ou o coelhinho, depende do que a criança quisesse fazer dele, e o resto eles iam associando ali com as figuras e com terceira já.

Então na verdade começava no primeiro ano, mas eles já iam aprendendo das outras séries? Já iam vendo tudo ali junto, então eles não encontravam a dificuldade.

E nessa época, como aqui nesse livro, os conjuntos. Foi algo difícil para ensinar conjuntos? (neste momento apresento um livro que tinha conjuntos) Não, não! Foi a coisa mais simples do mundo.

E aquelas relações de maior, menor, diferente, a senhora chegou a trabalhar com isso? Conjunto unitário? Trabalhei, muito. Mas aí quando eu peguei conjunto maior, menor, já peguei na terceira série... não! na segunda, na segunda série.

E aí tinha a questão do conjunto vazio... É. Finito, infinito, vazio, unitário e por aí vai indo, né? Então você ensinava que o infinito eram os números, as estrelas, que não podia contar, que não tinha fim. Finito era aquele que você punha lá, e você via e só tinha aquele e acabou. Unitário era só um. Vazio não tinha nada. Então eles iam associando. Contar, contava com o palito, que você não podia trazer fósforo que eles punham fogo na escola, então era palito, pedrinha, milho, feijão, eles traziam tudo de casa.

A questão da tabuada, sempre foi importante ensinar a tabuada? Olha, o povo não aprende Matemática hoje porque não sabe tabuada. Se não souber tabuada não aprende nada de Matemática. É a base. Nós dávamos a tabuada do relógio, a tabuada em pé e a tabuada deitada. Três tipos de tabuada.

Como era a do relógio? É, era assim, quer ver? (neste momento a professora desenha no papel como era o relógio). O do relógio era assim: você punha o número por dentro e punha o tracinho e o resultado aqui fora. E eu pus por fora, mas é aqui dentro que punha os números. Aqui: 2x1, ia por aqui, ó, dois. 2x2, quatro.

Isso eles tinham no papel, tinha que escrever o resultado? Eles tinham no papel, e nós passávamos em folha mimeografada a tabuada e eles colocavam os resultados. Outra hora, a gente colocava os resultados para eles riscarem e achar. Agora a deitada era assim ó: 0, 1 e 2, 2x0, zero. 2x1, dois. E a de dividir do mesmo jeito, seria aqui de dividir. Dois dividido por 1... Entendeu? De dividir. Então era: o vezes e 299 o dividir assim, a deitada e a em pé. Então todas as vezes que você fazia a de vezes, você fazia a de dividir junto, não ia trabalhando de vezes, não385. Então, a criança que não aprende tabuada não aprende Matemática na vida, não faz nada. Por que hoje a Matemática não vale nada nas escolas? Oitava série, ninguém sabe a Matemática, ninguém sabe a tabuada, ninguém sabe fazer a conta. Você chega na oitava série lá em São Paulo, aqui eu não sei, você pergunta: quanto é 2x2? Ninguém sabe, ninguém sabe. Agora que eles estão acordando para vida, de quando eu cheguei lá. Lá na zona leste que estão dando a tabuada outra vez.

A senhora chegou a trabalhar lá em São Paulo também? Três anos, quase quatro. Agora, terminei em abril386.

As folhas mimeografadas, a senhora disse que tinha. Livros, cartilhas e apostilas, usavam essas387? Era.

As crianças ganhavam do governo ou tinham que comprar? Não, naquele tempo tinha que comprar. O governo não dava nada e, muitas vezes, mandava para as escolas da cidade. Aí quando ficavam aqueles bagaços assim, igual está esse (referindo-se a um livro velho que estávamos olhando) mandava para nós darmos para a molecada388.

Tinha Soroban, Ábaco... Ábaco tinha nas escolas da cidade, no sítio não tinha389. Até para ensinar aquele decimal, a gente fazia assim ó (mostrando como se fazia com a folha): aqui, punha unidade, dezena, centena, e punha aquelas fitas separando, sabe? Então você ia ensinando tudo com isso. Aí você pegava os papeizinhos compridinhos, que a gente cortava de papel cartão, punha aqui. Quando chegava nove unidades, quando ia chegar dez, pulava uma pra cá, pra dezena. Depois ia colocando dezena, dezena, dezena aqui, quando chegava na centena, pulava uma pra cá e assim ia indo. Então, quando a criança fazia a primeira e chegava na quarta, já sabia tudo isso, porque eles tinham visto ensinar no segundo, no terceiro e no quarto.

Usava também amarrar dez palitinhos para uma dezena? Não, isso daí vai de cada professor. Eu preferia esse... eu esqueci como é que chamava, eles davam um nome, tinha um nome. Eu preferia as cartelinhas. Fazia um para cada um na sua carteira, cada um tinha o seu. Quando eu trabalhava na lousa, eles trabalhavam no deles, então assim eles iam aprendendo, que nem dezena, unidade, dezena e centena, ensinava tudo por isso daí. E aqui ensinava também eles a tirar. Tirava uma dezena, tirava duas dezenas, e contava quanto é que ficava.

385 Desde o início da carreira a professora trabalha com este método. 386 Do ano de 2010. 387 Estou me referindo a alguns livros didáticos que estavam comigo. 388 Segundo a professora, o Grupo Escolar recebia os livros novos. Os livros velhos eram levados para as escolas no sítio. Foi assim durante o período em que trabalhou com as escolas rurais. 389 Isso em meados do ano de 1995. 300

Já pra fazer depois as contas de adição e subtração? É. Eles aprendiam tudo assim.

A senhora trabalhou até 1994 com o ensino primário. Depois trabalhou com o ensino secundário também, em São Paulo? Não, só primário.

O ensino de conjuntos, ele permaneceu até o ano passado? É que agora mudou, este ano? Que eu saiba não mudou, não. Não, o primário não mudou não, até o ano passado tinha, este ano ainda tem...

Quando se fala em Matemática Moderna, a senhora lembra de alguma coisa sobre isso? Essa que tem aí hoje?

Na verdade foi um movimento que ocorreu. Nesse Movimento da Matemática Moderna são introduzidos os conjuntos... Bom, até aí foi bom, agora eu não lembro. Agora que eu vi, que nem... não no primário, mas da quinta a oitava, entrou tanta “burrice” na Matemática, gente, o que é aquilo? Eu via em uns cadernos lá das professoras, que eu ficava na casa das professoras de Matemática, da quinta a oitava, as duas, tanto a Viviane quanto a Maria Auxiliadora390. Cada..., gente, pra quê aquilo? O aluno não vai usar aquilo para nada, que (dó) daqueles alunos que tem ali na zona leste! só se ganhar na esportiva para fazer alguma coisa da vida, que eles não fazem é nada. Então sempre saíram os bons, né? mas para que entrar aquelas coisas, de quinta a oitava, para quê aquilo? Eu acho que o início da tabuada é primeiro de tudo, muito, muito, muito.

Tentam avançar mas ainda falta? Não. Avançou? Quer avançar em cima de quem não... eles não aprenderam a base, não têm base. Que nem ali ó, primeiro... oitava série, sétima série, elas estão dando tabuada, estão dando ditadinho, separaram, vinte, de uma classe de quarenta, separa vinte para fazer ditado que não sabe nem o nome. Agora eu te pergunto: Onde está o pai até agora? Que nem quando tinha repetição. Foi a pior droga, foi o aluno passar sem repetir.

Progressão continuada? É, a pior droga que existe. Então, agora você reprova o aluno... que nem: uma vez, eu tive que reprovar um aluno, que eu não gosto de reprovar aluno, aluno meu, ainda bem que não reprovava, mas esse aluno reprovou por falta, né? E não era eu que reprovava. O pai veio em cima, eu falei: “Mas onde que o senhor ficou todo esse tempo? O senhor não viu que o seu filho não estava vindo na escola? Que culpa tenho eu? O senhor vai brigar com a direção, não sou eu que reprova o aluno”. Ele faltou: “ele não passa mesmo e acabou”. E agora o aluno pode faltar o que quiser que tem, dá uma tabuada para ele fazer lá, é a compensação para ele passar de ano, é para tirar as faltas dele tudo. É uma porcaria. O

390 Ficava na casa das professoras de Matemática enquanto dava aulas em São Paulo/SP. Elas trabalhavam na mesma escola. 301 ensino está uma droga. Você está fazendo Matemática? Parte e vai dar aula na faculdade, não vai dar aula no ginásio, não... apanhar dos outros na escola? É uma porcaria, está uma droga o ensino.

Tudo isso acaba gerando um desinteresse no aluno, porque o aluno já não precisa mais estudar... Não. Você vê que já não estão achando mais professor. Em Rio Preto, não tem professor de Matemática, está lá desde o começo do ano: aula de Matemática, aula de História, aula de Geografia. Não tem quem pega. O Estado paga mal, Prefeitura paga melhor. Vai pra onde? Para Prefeitura. Então não tem. Agora você está fazendo Matemática? Ótimo! Faz igual aquela Rita professora, lembra? Até que faleceu, a Ritinha, aquela do Padre Fidélis... Então, faz igual a ela, parte para o Fórum. No Fórum ela passou em primeiro lugar, só que ela não quis assumir, ela gostava de ser coordenadora. Mas ela não ia enfrentar a sala de aula, ela só mandava. Então era bom, quando você é coordenadora. Mas para aguentar também esses professores e ser coordenadora... Ia falar assim: você passa num banco, você passa numa multinacional. Você tendo Matemática, fazendo bem feito, você vai seguir carreira, você não vai ser uma medíocre lá. Porque professor hoje em dia é medíocre. Para ganhar o que ganha? Você vê, pega que nem São Paulo: quarenta alunos por classe. E olhe lá se não é 48, 42, que nem eu, já peguei 42. Aluno chega na quarta série sem saber o nome. Agora onde estava o pai numa hora dessa? Mas está tudo muito bem, né? Eu dei aula, o primeiro ano que eu fui pra São Paulo, tinha 39 alunos, cinco tinham pai e mãe dentro de casa, o resto, pais separados que o aluno nem sabia onde existia e uns 15, o pai ou a mãe estava preso, criando com os avós. Agora como é que você vai pôr isso na cabeça de uma criança? Ai, meu Deus, é muita judiação! isso que o governo devia ver: tanta coisa errada...

Tem algo a mais sobre essa época... Tenho. Se isso importar, você coloca. Livro de Matemática é importante. Tabuada é o principal na Matemática, porque quem não sabe tabuada não sabe a Matemática, não aprende. Não aprende a dividir, não aprende a multiplicar, não aprende a somar, não aprende nada, porque não entra na cabeça, que a base da Matemática é a tabuada. Eu sempre ensinei meus alunos até a do 12, a gente ia, e olha, era crânio. Hoje tem alunos que foram meus, não sei se você conhece, ele é professor do Hospital de Base391 hoje, o Luciano. Foi aluno meu de segunda série. Então, eles eram gêmeos... Tinha o Lucimar. Alunos do Trival, era aluno meu, da segunda série, depois foram alunos meus em Ibiporanga, que aí fechou a Trival, eu peguei aula em Ibiporanga, eles foram alunos meus lá também. Um dia o pai deles chegou em mim, o pai deles é aquele que o trator moeu a perna, até no joelho, o Marcílio, ele é dos...ai não lembro, Silveira! Então o pai chegou em mim: “Professora, o que a senhora acha que meus filhos vão..., o Luciano diz que quer ser médico, o Lucimar - Lucimar é o outro - o que a senhora acha?” Falei: “se o Lucimar se interessar para alguma coisa, o senhor põe ele na veterinária,

391 Hospital de Base que fica na cidade de São José do Rio Preto/SP. 302 porque ele vai mexer com boi e cavalo.” É o que faz. É o que faz e não fez veterinária não, não fez nada. Falei: “Ele não vai estudar para nada”. Que ele não tinha vontade, ele não queria aprender. Agora, já o Luciano - que é professor lá da enfermagem padrão do Hospital de Base - o Luciano teve uma redação assim, que era inter escola, regional, ele ganhou em primeiro, estava no segundo ano, tirou o primeiro lugar de Português. E ele tinha uma noção assim para aprender, aquela vontade... Falei: “o Luciano o que ele quiser fazer, pode fazer que esse vai, mas o Lucimar não.” Então você conhece o aluno, você vê que o aluno vai para frente. Então, que nem eu falo: eu tenho aluno que hoje é advogado, que foi aluno meu. Tem esse Luciano que é professor lá do Hospital de Base, da enfermagem padrão, que dá aula lá há muitos anos; tem o Vando que é advogado. Então você fica contente quando os alunos vão. Mas quando você está dando aula para ele, você já sabe quem vai, quem não vai. Você vê, e eles eram gêmeos o Luciano e o Lucimar” O Lucimar ficou ajudando o pai no sítio, porque o pai moeu a perna no trator. Então, pelo menos ele ficou lá dando uma mão. Agora o Luciano está lá no Hospital de Base.

Referindo-se aos livros... Esse daqui era da segunda série. Em 1988 já tinha esse livro aí... É o da Déborah392. Eu tenho um desse, da quarta série, que eu não dou para ninguém, só que está em São Paulo, deixei com uma amiga, já mandei a outra pegar dela e devolver. Elas ficaram louquinhas. Que é o melhor livro que tem, que eu achei até hoje na Matemática. É o melhor livro que eu tenho de Matemática da quarta série. Vou buscar agora quando eu for em junho, no pagamento. Tem que pegar uma coleção com uma japonesa que eu larguei, da segunda série 393... como que vou começar a dar aula em Rio Preto outra vez?

Então vai dar certo394? Vou. Semana - quarta-feira eu fui. Agora terça, eu fui, não tinha. Na outra quarta, se eu tivesse ido, tinha; pegou um com menos pontos do que eu. Ele falou (referindo-se ao local de atribuição): “Você não veio, o povo que vem vai pegando”. Agora quarta-feira eu torno a ir!, então agora estou primeira, só eu chegar! se tiver aula de quarta eu pego. Um mês, dois meses. Pelo menos não fico enfiada dentro de casa.

Tomara que dê certo. Quanto ao livro (que a professora disse que deixou em São Paulo), lembra da autora, do autor? Era a Lucília Bechara, a Déborah, a Yolanda Marques? Eu não sei, eu não lembro. Não, não... é antiga. Eu acho que era da Déborah. E é interessante, que agora eles dão aquele, como fala? Tudo da novidade que eles estão dando agora da quinta a oitava, eu tinha naquele livro da quarta. Aquele negócio de logotipo, aquelas coisas, lembra? Você estuda isso, né? Tinha tudo. Quando você vier, da próxima vez, até o fim do ano eu te mostro. Esse livro foi um

392 Déborah Pádua Mello Neves. 393 PASSOS, L., Fonseca, A. e Chaves, M., Alegria de Saber, 2ª série do 1° grau, Scipione, 1991. 394 Estou perguntando se a professora conseguiu as aulas em São José do Rio Preto/SP, pois quando conversamos em outro dia, antes da entrevista, a professora me contou que ia a esta cidade para pegar algumas aulas. 303 furor lá em São Paulo, naquela “Marcos Antônio395”, tinha mais de 15 professores, todo mundo tirou xerox. Aí ficou com uma, porque ela não tinha dinheiro para tirar xerox, eu emprestei pra ela. Fui duas vezes a São Paulo este ano, ela não tinha tirado ainda. O ano passado eu voltei lá uma vez, era para ter tirado, aí eu falei pra Bia: “Pega meu livro”. A Bia pegou, está na casa dela. Então pra eu ir na casa da Bia é mais fácil, que a outra eu não sabia onde morava. Sabia o bairro, mas não sabia nem onde ficava, tal de Jaçanã.

Gostaria de agradecer. Muito obrigada pelo tempo disponibilizado.

Tempo de gravação da entrevista: 32min59s

395 Marcos Antônio era a Escola Estadual em São Paulo/SP. 304

8. Professora Maria Virgínia Mendonça Sabatini

Profª Maria Virgínia Mendonça Sabatini, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

396

Entrevista realizada no dia 19 de maio de 2011, com a professora Dona Maria Virgínia .

De início, gostaria que se apresentasse com nome completo, idade, se quiser, e aí a gente começa a contar pela história de vida, a formação inicial e quais escolas a senhora frequentou e em quais cidades. Meu nome é Maria Virgínia Mendonça Sabatini, sou casada e tenho duas filhas. Nasci e me criei em São José do Rio Preto397, lá cursei o pré-primário na escola Santo Antonio e na escola Ezequiel Ramos, o primário; e no Colégio Santo André 398, de quinta a oitava e o Normal.

No Santo André fez o Curso Normal? Da admissão ao Normal399.

Esse de admissão, quanto tempo de duração? Ao final do quarto ano do primário, prestávamos um exame oral e escrito para cursar de quinta a oitava.

E o trabalho como professora foi sua única atividade? Sim. Sempre trabalhei como professora, depois coordenadora pedagógica e agora como diretora400.

396 Esta entrevista foi realizada na residência da professora, na cidade de Tanabi/SP. Ao final da entrevista, o gravador falhou, por isso, no dia da leitura do texto foram feitas as complementações necessárias para finalizar as últimas respostas da professora. Com a leitura do texto da entrevista, a professora optou por “limpar” o texto, deixando-o com um formato reduzido. 397 São José do Rio Preto/SP dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 398 É um colégio particular na cidade de São José do Rio Preto/SP. 399 Se formou no curso Normal no ano de 1969. 400 Chegou a trabalhar na cidade de Ribeirão Preto/SP. Trabalhou no município de Tanabi/SP, em escolas isoladas rurais, do ano de 1980 a 1991. Trabalhou também em algumas escolas particulares. 305

Chegou a cursar Pedagogia, então? Fiz Pedagogia na cidade de Monte Aprazível401, uma cidadezinha aqui perto de Tanabi, na Faculdade Dom Bosco.

E além da Pedagogia, outros Cursos de Aperfeiçoamento, Capacitação, longa duração, curta duração... Muitos: Pró-letramento, em que fui tutora na área de Português; Letra e Vida; Aceleração; Curso Montessori; e várias outras capacitações.

Quais específicos de Matemática? E em que ano alguns desses cursos aconteceram? Montessori402, no ano de 1971, e o Material Dourado, em 1989, na cidade de Tanabi403.

Décadas de 1970 e 1980, e esse curso da década de 1970 estava no auge da Matemática Moderna? Sim.

E tinha algum curso específico, falava-se muito da Matemática Moderna, da implantação, da modificação do próprio currículo de Matemática? Sim, muito. Tanto é que a gente fazia essas capacitações 404, ninguém perdia, pois todo o professor queria se atualizar. Depois veio também o Ciclo Básico e, nesse ínterim, tivemos um grande avanço. Foi nesta época que trabalhamos o Material Dourado e o Ábaco.

Fez cursos promovidos pelo GEEM, que era um grupo de formação, lembra de alguma coisa? Não.

E sobre as experiências no Magistério, em quais escolas e em quais anos a senhora lecionou? Eu comecei em 1971 em escola isolada, as escolas rurais para quatro séries. De 1980 até 1991, eu fiquei em escola rural 405 e fazia substituições aqui na cidade. Em 1996 fui para a escola Melotti406, lá ficando até 1999, quando municipalizou Tanabi. Neste período, voltei para o Estado na cidade de Votuporanga 407. Neste mesmo período, trabalhei em períodos diversos na escola particular, Colégio Objetivo408. Em 2005, retornei como coordenadora pedagógica no município e em 2010, como diretora de escola. Minha carreira foi assim, crescendo aos poucos.

401 Monte Aprazível/SP dista 18 quilômetros de Tanabi/SP. 402 Realizado em São Paulo/SP. 403 Oferecido pela Delegacia de Ensino de Monte Aprazível/SP. 404 Aconteciam na escola Sede. Vinham dirigentes da Diretoria. 405Escolas rurais do município de Tanabi/SP. Trabalhou no Grupo Escolar no distrito de Ibiporanga (Tanabi/SP) e nos bairros rurais: Espraiado; Rincão (escola com 4 salas); Malhador; Alegria; Ecatu e Fazenda Barra Mansa (todos no município de Tanabi/SP). E Escola João Portugal na cidade de Tanabi/SP. 406 Alexandre Kannebley Melotti é hoje o nome de uma escola municipal de Tanabi/SP. 407 Votuporanga/SP dista 43 quilômetros de Tanabi/SP. 408 É a Fundação Educacional de Tanabi uma escola particular. 306

Nas escolas rurais, como era a organização do dia a dia, a rotina de sala de aula? Era muito organizada, funcionava com quatro séries. Os alunos colaboravam muito. Eram alunos interessados em aprender, e gostavam muito da escola, porque além de aprender se socializavam. Eram crianças espertas, alegres, que gostavam muito de colaborar com as atividades diárias. Nestas escolas, era difícil ocorrer problemas com indisciplina.

E os conteúdos eram divididos no próprio quadro? Na minha escola, geralmente tínhamos mais de duas lousas, onde os conteúdos eram por série. As atividades giravam em torno de muito diálogo, muitas cópias e o uso do livro didático.

Tinha material didático? Sim, usávamos os livros didáticos oferecidos pelo governo estadual409.

Os alunos tinham que comprar? Não, o Estado sempre mandava, e cada aluno tinha o seu material, que por sinal era de ótima qualidade.

E essa coleção, tanto da Déborah 410 quanto da Yolanda Marques 411, o Estado adotava essas coleções? Sim, tinham muitos. Mais ou menos em 1987 412, os professores se reuniam em uma escola central na cidade para escolher o livro didático para o próximo ano. Em 2000, a cidade de Tanabi, com a municipalização, apostilou.

E os livros da Lucília Bechara, lembra? Chegou a trabalhar com algum livro dela? Não.

E os livros de Osvaldo Sangiorgi, conheceu? Esse conheço porque já estudei nele.

A questão da matrícula na escola isolada, o próprio professor fazia nas escolas? Sim, fazíamos na escola e encaminhávamos para a escola Sede.

Existia uma avaliação externa que outro professor aplicava no final do ano, e a aprovação dependia do resultado dessa avaliação ou não? Não. Sempre fui eu que avaliei meus alunos 413. Eu tinha nota, tinha caderneta, tinha tudo e quem fazia as avaliações era eu.

Como era essa rotina do ensino de Matemática, pensando nas classes multisseriadas?

409 De 1980 até 1991 trabalhou com livros didáticos. 410 Déborah Pádua Mello Neves. 411 Segundo a professora foi muito usado. 412 De 1987 até o início das apostilas. 413 Desde 1971. 307

Era bem tradicional nessa época de quatro séries, porque você tinha que levar tudo bem controlado. A Matemática era com muitos probleminhas de raciocínio; continhas com as quatros operações; numerais; escreva como se lê; tabuada, e dava certo.

E o ensino da tabuada, existiam práticas diferenciadas, materiais? Não, era bem tradicional... os alunos decoravam. Só lá pelos anos 1997 é que começamos a dar atividades diferenciadas (jogos).

Tinha muita chamada oral? Sim.

Quanto à divisão das disciplinas, Português e Matemática eram vistas todos os dias? Todos os dias414. Geografia, História e Ciências já eram intercaladas durante os dias da semana. Também tinha aula, assim, por área. Durante dois anos, aqui na cidade415, trocavam os professores por área, só na quarta série. Eu dava Português, Geografia e História e Artes, a outra professora dava Matemática, Ciências e Educação Física, isso já.

E quem determinava o que, como e quais os conteúdos? vinha um planejamento pronto? Os professores se reuniam no começo do ano e faziam o planejamento, por ano. E hoje, cada professor se reúne na sua Sede, que é a escola onde leciona.

E nessa época existia o diário? Sim, como existe até hoje e temos também o caderno piloto 416 feito pelos alunos, que bate com a matéria do dia, o caderno diário do professor e o diário de classe.

Caderno piloto, como é isso? É um caderno que tem o seu registro feito pelos alunos, diariamente. O professor segue a sequência de nomes da turma, fazendo com que todos os alunos trabalhem no mesmo.

Sobre o ensino de conjuntos nas séries primárias, quais as lembranças? As lembranças, que os alunos aprendiam com maior facilidade e é uma prática super válida.

O conjunto pode ajudar no aprendizado de outros conteúdos da matemática? Sim, pode.

Para o ensino da base 10, a ideia de conjunto ajudava? Sim.

414 O professor tinha liberdade para determinar o tempo das aulas. Tinha atividades que trabalhavam a coordenação motora. Para o ensino da Matemática eram usadas sementes e tampinhas. Para o ensino de conjuntos, eram feitas representações por meio de desenhos (entre as décadas de 1970 e 1990). 415 Ano de 1998. 416 Tem o Caderno Piloto desde meados dos anos de 1996, 1997. Eles são usados para acompanhar o andamento das aulas. 308

Esses assuntos foram vistos no Curso Normal? Sim, desde a época de 1969, quando me formei já era visto e estudado.

Soroban, Ábaco, existia algum tipo de material? Existiam. Mas só trabalhei com Ábaco417.

Algum material feito com sementes, palitos... Claro, muitos trabalhos feitos com sementes, palitos, tampinhas, grãos, usava-se muito.

Material Dourado, Ábaco, quando começaram a ser utilizados? Eu conheço desde 1970 e a partir daí trabalhei com esses materiais418.

E para trabalhar nessas escolas isoladas, a professora comprava esses materiais? Não. Na época, o Estado forneceu o Ábaco419 e nos livros didáticos já existiam disponíveis atividades de recortes e encaixe. No final da década de 1970, o Estado já começou a mandar outros tipos de materiais.

Tem alguma lembrança que gostaria de comentar, alguma história da época, alguma particularidade das escolas isoladas? O que eu posso dizer é que era muito bem organizada 420, e nós sempre tivemos o apoio do Estado.

E a época que municipalizou aqui em Tanabi, no caso particular de Tanabi, foi a mesma época em que acabaram com as escolas isoladas e trouxeram os alunos para a cidade? Não. As isoladas terminaram bem antes421.

Essas escolas fecharam por conta do número de alunos? Número de alunos e também problema de transporte.

Algo a mais? O ensino de Tanabi é muito bom, porque os professores fazem sempre muita capacitação, graças ao prefeito Sr. José Francisco de Mattos e à nossa secretária da Educação, Maria Eunice B. Salomão.

Gostaria de agradecer a colaboração.

Tempo de gravação da entrevista: 21min28s.

417 Desde 1996. E também trabalhou com o Tangram. 418 Tinha também o Cartaz de Pregas, Flanelógrafo. 419 Os alunos tinham esses materiais desde 1996. Na década de 1990, as escolas confeccionavam, por exemplo, o Tangram. 420 Segundo a entrevistada, os alunos eram bem dedicados, com bagagem riquíssima. Ela afirma ainda que os alunos na escola rural tinham idade regular, sendo que ela não percebeu diferença nas escolas rurais. 421 Isso em 1995, mais ou menos. 309

9. Professora Mércia Maria Ribeiro Caires

Profª Mércia Maria Ribeiro Caires, 2011. Foto tirada pela pesquisadora, no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 8 de junho de 2011, com a professora Dona Mércia422.

Então a senhora pode começar contando, fale o nome completo, a idade, se quiser e as escolas que frequentou inicialmente, ainda quando aluna, qual foi essa formação inicial. Mércia Maria Ribeiro Caires, 62 anos, aposentada, e eu estudei na EEPG Ganot Chateaubriand423 em Tanabi e no Colégio Estadual e Escola Normal Padre Fidélis de Tanabi424, onde eu me formei professora425.

Fez o Curso Normal no Padre Fidélis? É, no Padre Fidelis. Depois eu fiz Pedagogia. Primeiro eu fiz Ciências Breve, depois eu fiz Pedagogia com todas as especializações que tem. Depois fiz o pré-primário, mas isso já conforme a gente lecionava, fazia esses cursos. Eu comecei lecionando em Mira Estrela 426, em escolas rurais. Teve escola do Grupo Escolar de Mira Estrela e na Inspetoria Auxiliar. Inspetoria Auxiliar eram as escolas rurais que pertenciam à Inspetoria Auxiliar, que prestava também contas na Inspetoria Auxiliar e normalmente no Grupo da Vila.

Além do Grupo que era Sede, tinha essa Inspetoria Auxiliar? Tínhamos a visita do inspetor de ensino, que é supervisor agora, mas naquela época eram os inspetores de ensino, eles vinham e visitavam as escolas rurais. Nós tínhamos reuniões nas Sedes, mas prestava contas sempre para a Inspetoria do Município.

Em que ano, mais ou menos, isso? 1968, eu comecei em Mira Estrela, 1969, por aí.

422 Esta entrevista foi realizada na residência da professora, na cidade de Tanabi/SP. 423 Ganot Chateaubriand é hoje o nome de uma Escola Municipal na cidade de Tanabi/SP. 424 Padre Fidélis é hoje o nome de uma Escola Estadual na cidade de Tanabi/SP. 425 Se formou no ano de 1967. 426 Mira Estrela/SP é uma cidade que dista 111 quilômetros de Tanabi/SP. 311

E Mira Estrela eu tanto lecionei na escola de Mira Estrela e nas rurais também, que tinham duas, três séries juntas. A gente tinha um número razoável de alunos. As escolas eram longe, era dificultoso pra ir, não tinha ajuda de custo, não tinha nada. É, a merenda da escola também a gente recebia ou fazia numa cozinha que tinha atrás da classe ou alguma mãe de aluno ajudava. Alguns alunos ajudavam a mexer panela, ajudava a arrumar a cozinha, a lavar a louça, porque era tudo a gente tinha que se virar, porque não tinha nada disso, tanto para gente chegar na escola não tinha ajuda de nada, e com a merenda também, era tudo da responsabilidade da gente, inclusive limpar a escola o professor que ia junto com os alunos para manter ela limpa.

E por que essa escolha de se formar em Tanabi e dar aulas em Mira Estrela? Olha, naquela época, o que tinha mais para a gente estudar era o Normal mesmo, faculdade já era mais difícil, era caro, era longe. Então os pais tinham muitas preocupações de deixar a gente sair de casa também pra estudar fora. Às vezes a gente falava que queria, por exemplo, eu tive uma tia que eu podia morar em São Paulo, eu queria fazer Educação Física, morar na casa dela e fazer Educação Física, mas aí minha vó falou: “Ah, mas é muito perigoso”. E não deixava a gente ir, a gente não ia, então a opção que tinha por aqui era o Curso Normal. Eu acho que mais por isso mesmo, senão eu acho que teria feito Educação Física, mas aí eu teria que desobedecer, né? e aí a gente não fazia isso. Eu estava em Mira Estrela, eu passei num concurso e eles não chamavam a gente pra efetivar. Então eles baixaram uma norma que os professores que tivessem passado no concurso, em qualquer lugar (classificação), que ele fosse escolher aula, ele ia escolher na frente dos que não tinham passado, ia seguir aquela classificação que tinha saído do concurso, aí eu pude voltar para Tanabi porque aqui tinham muitos professores antigos e a gente não conseguia pegar e eu tinha parente em Mira Estrela, por isso que eu fui para lá morar na casa de um parente porque se não morar com parente é perigoso, tal, senão não poderia lecionar, então só tinha lá que dava certo. Aí quando saiu, nós já tínhamos até feito inscrição, já ia pegar classe em Mira Estrela, saiu essa lei. Então, de lá mesmo a gente já mandava a inscrição pra onde a gente quisesse, eu vim para Tanabi. Foi aí que eu fiquei, eu devia ser a terceira ou quarta da lista, pra pegar classe, e aí eu fui pro Sapé 427, por isso que eu peguei ali pertinho, porque aí eu estava com meus pontos do concurso. E quando aconteceu isso também, que eles viram que não ia ter jeito de deixar, a gente ia pegar mesmo, passou um pouco eles chamaram para efetivar... então eles não chamavam porque tinha a velha proteção, aqueles antigos que pegavam todo ano e tal, então eles não mandavam essas classes para escolha. Então aí mandaram, mandaram todas as escolas que tinham para escolha. E aí a gente pôde escolher e eu fiquei um ano no Sapé e fiquei vários anos na Alegria 428 antes ainda de eu me efetivar, sempre com duas séries, a maioria. Teve uma escola que eu acho que tive três séries juntas, primeiro, segundo e terceiro.

No Sapé, já pegou a fase de duas séries? De duas séries, duas de manhã e duas à tarde. É, quando tinha duas professoras, normalmente cada uma ficava com duas séries, a não ser que, vamos supor, tivesse muito

427 No ano de 1972. Escola Mista da Fazenda Alferes no município de Tanabi/SP. 428 Escola da Alegria no município de Tanabi/SP. Meados do ano de 1974. 312 aluno de primeira, então acontecia que um ficava com primeira e outro ficava com segunda, terceira e quarta. Aí quando eu me efetivei eu fui para uma escola de Gestal 429, também rural, duas séries juntas. As séries eram separadas só por fileira mesmo, não tinha nada, normalmente a gente tinha duas lousas ou se tivesse uma só grande, repartia a lousa no meio, um pra cá e...

Então, além do Curso de Magistério, fez o Curso de Ciências e Pedagogia. Com esse Curso de Ciências chegou a dar aula no secundário também, ou não? Muito pouco, porque aí eu já tinha passado pra me efetivar no primário e eu gostava de alfabetizar e de pré-primário. Então, eu cheguei a lecionar, lecionei no Rincão 430, Ciências e Matemática, no João Portugal 431 − se bem que esse tempo eu nunca usei porque ele era concomitante − e acho que no Ganot também eu cheguei a ir, mas logo eu parei, porque depois eles ofereceram duas classes para dobrar o pagamento, só que deu as duas classes, e não dobrou o pagamento. Eles deram aquela mexidinha política, eu não me lembro se foi o Maluf, acho que foi ele mesmo, e você teria direito tudo duas vezes, que você era duas pessoas. Mas aí eles mexeram para fazer do jeito que não dobrou. A gente ganhava mais, mas eu parei com o secundário. E duas coisas também: eu já tinha passado no concurso e ia efetivar, depois saiu uma lei que quem tivesse Pedagogia − foi até por isso que eu fiz Pedagogia, eu tinha feito Ciências − e aí saiu uma lei que quem tivesse Pedagogia ia ganhar, ia receber como professor de ginásio, porque o seu diploma era igual, entendeu? Era superior, aí saiu essa lei. Como eu gostava de primeira série, de pré, eu abandonei de vez o ginásio, porque o ordenado era o mesmo. Só que depois eles cortaram a lei, depois parou simplesmente de pagar um direito adquirido que a gente tinha, se eu não me engano chama Progressão Funcional, pararam de pagar porque o governo faz o que quer, né? E depois você já está com a carreira lá com vinte anos, você vai largar tudo? Eles demoraram, demoraram para pagar Pedagogia − até eu tinha feito Ciências, Ciências não valia, tinha que ser Pedagogia − fiz Pedagogia, comecei a receber, depois eles tiraram, então isso me fez deixar o ginásio. E Matemática no ginásio é muito difícil, a meninada tem muita dificuldade, eles não querem aula de Matemática. Eu tinha um aluno que, quando eu chegava, ele falava: “Ah, professora, não, Matemática não”. Sabe? Porque eu acho que eles têm dificuldade de entender e aí aquilo passa todo mundo sem saber nada, porque o governo gosta assim. Então quando ele chega lá pela quinta, sexta série, ele não sabe nem fazer conta de dividir por dois. Como é que ele quer aula de Matemática, tudo é com compreensão das coisas, eles não aprendem, não entendem, não prestam atenção, estão lá porque precisa tá, não é porque gosta. E aí eu deixei o ginásio, parei, não lecionei mais.

E com as séries iniciais, a experiência passou também por Grupos escolares ou não, somente escola isolada? Não, lá de Gestal, que era uma escola isolada, eu vim para uma escola de

429 /SP é um município que dista 77 quilômetros de Tanabi/SP. Isso no ano de 1977. Em Tanabi tinha muitas salas para o professor substituto, para efetivar não tinha. Havia também muitas Escolas de Emergência. 430 Rincão é um bairro no município de Tanabi/SP. 431João Portugal é uma escola na cidade de Tanabi/SP. Hoje é a Escola Estadual João Portugal. 313

Cosmorama432, numa agrupada, Escola Agrupada da Vila Nova. Depois passou a chamar Vila Nova, mas parece que depois deram um nome para ela.

Escolas Reunidas? Agrupada, Escola Agrupada da Vila Nova.

Como eram essas Escolas Agrupadas? Nessas escolas era assim: normalmente tinha um pátio pequeno no meio, uma classe de cá, uma classe de cá. Nessa classe de cá, perto dela tinha a cozinha que saía pro pátio; nessa de cá, tinha a secretaria, que também saia aqui pro pátio. De manhã, funcionava normalmente terceira e quarta, à tarde primeira e segunda. E a gente ficava com uma classe só, uma série só. Eu fiquei bastante tempo lá, quando surgiu que a gente podia pegar duas classes, eu passei a pegar duas. Aí eu tinha uma classe lá e uma classe aqui no João Portugal. Aí vagou uma classe lá, que uma efetiva removeu, eu fiquei com duas classes lá, ficava o dia inteiro, de manhã tinha a quarta; à tarde a segunda. Depois eu fui para a Direção, daquela Agrupada. Porque o nosso diretor se removeu para Cosmorama e eu fui, mas não gostei de Direção. Porque a Agrupada não tem direito a ter diretor, o diretor de uma Agrupada é um Assistente. Aí um Assistente tem um ordenado pouquíssimo a mais do que um professor, e você tem que sair de Tanabi, ia para essa Agrupada e as reuniões eram em Votuporanga, que a Delegacia era de lá, então ficou difícil, ficou longe. E eu já estava com problemas de calo nas cordas vocais, lecionando o dia inteiro, e quando eu comecei a lecionar, às vezes eu lecionava cedo e à tarde, e à noite ia pro João Portugal. E aí a Direção não compensava, não compensava problema de Direção porque é um que não faz, o outro que deixa de fazer, o outro que... Você sabe escola como é que é, né? Eu com problema grave nas cordas vocais e remover e voltar para a sala de aula ia piorar, e ficar na Direção não estava compensando de jeito nenhum, aí eu entrei com uma readaptação. Eu fui a São Paulo fazer os exames. Aí eu fiquei readaptada, trabalhando em secretaria. Vim para a secretaria do João Portugal, cuidei da biblioteca, foi muito pouco tempo. Cuidei muito do Diário Oficial, o que tinha que recortar, aquelas coisas... às vezes a gente ajudava no que tinha: serviço de secretaria que tivesse pra fazer, a gente fazia: dar uma mão na biblioteca ou mesmo com aluno, às vezes precisava ficar um pouco com aluno, a gente fazia o que precisava, até aposentar.

E em sala de aula, mais ou menos, foram quantos anos? Eu fiquei de, não sei se eu comecei foi em 1968 ou 1969, até 1980... Acho que foi até 1984. Uns 16 anos, por aí. E teve – assim - nesse meio de tempo, as substituições que eu tive do diretor de lá, quando ele tirava férias, qualquer coisa eu substituía, mas era na sala de aula mesmo.

A senhora quer seguir, mais ou menos, o que a senhora anotou, fique à vontade...433 Não trabalhei em nenhuma outra atividade, assim, fora da escola. O trabalho como professora era importante para a renda familiar? Era sim. Era a

432 Em um bairro rural no município de Cosmorama/SP que dista 24 quilômetros de Tanabi/SP. 433 A professora havia anotado algumas informações para o momento da entrevista. Essas anotações não ficaram comigo. 314 renda que a gente passava a ter para a família da gente, não pra minha família, pra família que eu constituí depois. Os alunos... Eram ótimos, assim, das escolas rurais. Uma parte tinha dificuldade, eu não sei se hoje os pais ajudam muito os filhos, eu acho que continuam não ajudando muito não, em casa, assim, dando um apoio. E naquela época eram poucos os que podiam ajudar e que tinham estudo pra ajudar. Muitos iam pra roça, então chegavam cansados. Por exemplo, eu tinha um aluno na Vila Nova que a mãe dele falava: “Ah, eu não consigo fazer ele fazer a tarefa. Faz ele fazer a tarefa aí junto com a senhora”. Eu falava: “Essa tarefa é a de casa”. Ela queria que a gente ficasse a mais lá, pro filho dela! até parece.... Eu falava: “Mas se a senhora não consegue fazer ele fazer a tarefa, não posso fazer nada; essa é a tarefa que é para ser feita em casa”. Quando o aluno não entendia uma coisa, a gente ficava com ele. Fiquei muito em intervalos com alunos meus pra ensinar continhas de dividir por dois... eles não iam, tinham muita dificuldade, então aí você fica sem o seu recreio para ele entender uma coisa, mas não pra fazer a tarefa. E as mães queriam passar essa obrigação pra gente. Se deixasse, tinha muitas. Outras que também não entendiam, muitas porque são acomodadas, muitas que não queriam saber de nada. Mas os alunos nem dá pra comparar com os de hoje, porque no final, quando eu estava no João Portugal, os alunos já estavam muitos indisciplinados. Sabe, eu acho que já chegavam na escola achando que não precisava respeitar. Isso a gente não teve não. Escola rural tinha aluno arteiro, mas arteiro de arte de criança, não de falta de educação que não te respeita, não tive problemas assim não. Eu era bem enérgica, (mas) os alunos gostavam de mim. Eu era sempre muito bem tratada e muito amiga deles, mas eles não misturavam não e eu também não misturava. Eu era amiga deles, professora, eu não era amiguinha deles. Que aliás, eu acho isso um erro, hoje em dia. Eu acho que ajuda o aluno a não respeitar o professor, encontra na rua fica batendo papo, fica junto, acho que tem umas coisas que não dão certo, porque depois lá dentro eles são novinhos eles não vão entender, eles continuam. Eu nunca tive problema. Os inspetores de escolas eles faziam visita, olhavam o que a gente tinha dado, caderno de aluno, o diário da gente, se o que a gente tinha colocado que ia dar era o que estava dando, exigiam bastante, até mais do que eu acho que devia. Eles apareciam lá uma vez por ano434 e não sabiam o que era aquilo lá, no dia a dia. Alunos que, às vezes faltavam, porque tinham que tratar do porco, eles achavam que aquilo lá era a oitava maravilha. Teve uma época que começaram a exigir jardim na frente da escola, plantar flor na frente da escola, você já tinha escola pra limpar, comida pra fazer e plantar flor? Claro que todo mundo gosta de uma flor, mas desde que tenha alguém para fazer isso. Eu acho que às vezes eles exigiam muito porque passavam lá uma vez por ano, depois não ficavam lá, ficavam na Delegacia de boa, então é fácil, chegar e ver se está tudo lindo e maravilhoso... você só está ganhando pra ser professor, e quer que faz tudo? horta, não sei o que, sabe? A merenda, a gente recebia e tinha que dar um jeito, mas a gente tinha, às vezes colaboração de mãe, de aluno mais velho, sabe? tudo de bem com a vida, assim a coisa andava.

E as matrículas, a senhora fazia lá na escola?

434 Essa era a realidade das escolas rurais do município de Mira Estrela/SP. 315

As matrículas, isso vinha tudo para a Inspetoria435. A matrícula era feita aqui, a papelada era tudo aqui, não ficava a papelada na escola e a gente, todo mês, tinha um resumo mensal que ali você tinha seus alunos: quem entrava, quem saía, era um controle para eles saberem como é que estava andando a frequência lá. Então, normalmente quem fazia esse controle era a gente e passava para a Inspetoria, e tinha uma reunião aqui, você tinha que entregar tudo. Aqui que ficava tudo, que controlava tudo.

Fale um pouco sobre as aulas. Olha, a gente separava as disciplinas. O tempo a gente controlava para dar um pouco de Português, um pouco de Matemática, Ciências, Geografia e História − teve uma época que dava junto, chamava Estudos Sociais − e a gente tinha que dar um controle: antes do recreio faz isso, depois do recreio faz aquilo.

E geralmente Português e Matemática tinha todos os dias? Todos os dias. Era Português, Matemática, um pouco de Geografia, sabe. Outro dia Português, Matemática e Ciências 436. Porque também a gente não tinha tanto tempo, passava para um ir fazendo e ia corrigindo o do outro. Aí você explicava aqui, o outro ia fazendo. Você já vinha cuidando das duas séries. Às vezes, por exemplo, a gente sentava aqui na mesa para passar um exercício motor, por exemplo, da primeira série, ia trazendo o caderno, você ia passando, e punha o livro aqui do lado, da segunda série. Então, você vai passando o exercício aqui pra esse, porque no começo você tem que passar no caderno mesmo, e às vezes você tem que pegar na mão do aluno. Agora não, mas escola rural, eu peguei aluno que você tinha que pegar na mão. Eles iam para a escola, para a primeira série, sem estar acostumados com cadernos e com nada, essa parte aí eles davam muito mais trabalho, porque eles não tinham fácil, caderno, lápis, essas coisas. Eles não tinham não, era ali. Alfabetizar a criança com a mão esquerda também não é fácil, porque você escreve com a mão direita, então você tem que ver como é que ela vai fazer o movimento com a mão esquerda, para você fazer com ela, você entendeu? Agora, a criança que já está acostumada a rabiscar com a mão esquerda, é mais fácil para ela fazer o movimento... agora, você dá o lápis para a criança, ela pega com a mão esquerda, então você vai trabalhar com aquela criança pra ela aprender. Porque antigamente, obrigava a escrever com a mão direita, há muitos anos atrás. Pode ver: tem muita gente velha, bem velha, que faz tudo com a mão esquerda, come com a mão esquerda, se você reparar, ele faz tudo com a mão esquerda, mas na hora de escrever, escreve com a direita. Era obrigado a escrever com a direita. Só que quando eu comecei, aí já não era mais obrigado. Então tudo isso a gente tinha que fazer ali dentro da sala de aula, porque era só aquilo ali que você tinha, você não tinha pai para ajudar ele a escrever com a mão esquerda, não. Era lá dentro da sala de aula que você ia ter que inverter os movimentos para ele, você tem que ajudar. Tanto é que, às vezes, a gente pega o costume e aprende a escrever um pouco com a esquerda também, de tanto que a gente faz para o aluno.

Então, na rotina de sala de aula, era dividido em Português e Matemática todos os

435 No caso do Ganot Chateaubriand, em Tanabi/SP, ele era Sede de Inspetoria e Grupo Escolar (Sede). Trazia toda a documentação da matrícula para a escola Sede. 436 Primeiro trabalhava Português e Matemática, depois as outras disciplinas. 316 dias, e as outras disciplinas aos poucos? É. E naquela época, a gente ainda precisava - assim - dar um pouco de Educação Física. A gente ia com as crianças, uma vez por semana, que eles adoravam e para falar a verdade não dava nem tempo de ir, mas ia, você tinha que ir também. Eles não queriam saber se você era uma, duas ou três.

Ia para o quintal e jogava bola? Às vezes, a gente arrumava algum joguinho, procurava ver se dava para participar todos... às vezes fazia aquele, sabe aquele “coelhinho sai da toca” ? E aí ficam dois alunos assim no outro, e todo mundo brinca. Dava exercícios, aí punha todos eles em fileiras, era uma vez por semana, às vezes tinha que ser mais, mas a gente, uma vez por semana, era mágica.

Porque não tinha o professor de Educação Física, vocês que tinham que... Não, não tinha nada , nada, nada... Não tinha cozinheiro, não tinha ninguém para limpar, não tinha nada.

E aula de Artes, Educação Artística também? Tinha Educação Artística que nos pequenininhos a gente desenhava mais. Assim, nos maiorzinhos, eles faziam mapas, eles aprendiam papel de seda, tinha aqueles, como é que chamava aquele artigo? 437 Eu me lembro, tinha um livro antigo, ele era bom, ele era desse tipo aqui, não era assim não, não lembro o nome direito. Mapa, aquelas coisas, as crianças pegavam aquele papel fininho transparente, papel de seda, que a gente arrumava e levava, ensinava eles a colar, riscar atrás, passar no caderno, desenhar, sabe? Só que isso também era pouco, não era uma coisa, era para eles aprenderem a fazer, mas depois não tinha – assim - tempo para ficar fazendo muito não, mas tinha assim Educação Artística para ensinar trabalhos manuais. E Educação Física, a gente sempre procurava também alguma coisa que desse para fazer com eles: um joguinho, exercícios também... eles gostavam de aprender a marchar, tudo retinho, sabe? e aí você ensinava, aproveitava para ensinar direita, esquerda, tudo que você fazia você já ia aproveitando, tudo que desse para aproveitar.

Tá certo, e agora falando um pouco mais sobre a Matemática, quando e como eram introduzidos os números? A Matemática tem – assim - naquela época não tinha pré, mas onde tinha já começava a ensinar números, e sempre concreto. Porque eu estou vendo aqui: se você falasse “dois”, você mostrava duas coisas, para eles ligarem com o número, porque eles não conheciam o número direito, então você tinha que firmar bem aquilo, e tudo bem concreto. Mesmo na primeira série, quando você começava com aqueles probleminhas: “o Fulano ganhou tantas laranjas, chupou tantas, ficaram...” Sabe? Porque ele tem, ele tinha que entender que estava diminuindo, e aí você entrar com as continhas. Depois os conjuntos também ajudaram bem, porque aquele sinal, maior, menor, aquelas coisas, a gente usava tudo.

Quando a senhora começou, em 1968, 1969, já tinha conjuntos?

437 Se referindo ao tipo de material que era usado. 317

Eu não lembro. Eu não lembro quando começaram os conjuntos. Porque desde que me entendo por gente parece que tem conjunto. Olha, porque a gente tinha que usar é, do material concreto, pode ser até que não chamava conjunto, porque eu não lembro quando começou. Porque a gente sempre, a vida inteira, a gente ensinou com frutas, para eles entenderem. Todos, quanto soma, multiplicação, divisão, adição, tudo foi. Você tinha que pôr concreto do lado. Sete laranjas, punha o 7. Três laranjas, aí tinha o número 3.

Pensando, assim, em conjunto de laranjas? Então aí você fazia a conta. Agora eu não lembro se chamava conjunto no começo, era usado, se já chamava conjunto eu não lembro, mas eu acho que já chamava, viu? não lembro.

E depois conjunto vazio, conjunto... É porque aí já era quando tinha o conjunto mesmo, que foi tirando, foi tirando e ele ficou vazio, para eles entenderem que aquilo lá era um conjunto. Por isso, porque não era o círculo que você fez, eram as coisas (que estavam dentro do círculo), era um conjunto, que depois ele ficou vazio. Porque se você não for bem concreta, mas bem no concreto no comecinho deles, eles não entendem nada, eles podem até ficar quietinhos, mas depois a hora que é para eles fazerem, eles não entenderam o que você falou. Agora a meninada começa mais cedo, eu tenho a impressão que isso que era na faixa dos 6 anos, deve ser nos 4 anos agora, 3, sei lá. Porque tinha que ser bem... Começava com adição e subtração simples, tudo simples, nem vai, nem empresta nada. Depois entrava a divisão e multiplicação, também bem simples. Aí, depois, começava o “vai um, empresta um”, aí, eu acho, já era na segunda série. Eu acho que na primeira série aprendia as quatro operações simples; agora, na segunda, começava sempre assim, primeiro adição e subtração e depois a multiplicação e divisão.

E esses materiais concretos, tinha assim sementes, essas coisas, ou era usado desenhar a laranja? Tinha sim, eles levavam, mas acho que eram sementes de milho, era mais que feijão, era o milho. Uns punham até em caixinhas de fósforo, aí não cabia nada, mas tinha, levava o milho pra ajudar. Às vezes, até eu vi escrito aqui, teve uma época que muitos tinham esse Ábaco, não no comecinho, mais pra frente. Esse Soroban aqui438, eu não sei o que é. O que é isso?

É uma espécie de Ábaco também, tem as contas, tudo. Ah, sei.

E a tabuada? A tabuada, eu sempre ensinava por concreto, punha o concreto aqui e os números embaixo439. Primeiro a do dois. Aí depois tinha aquilo, se eu não me engano chama Triângulo de Condorcet440, eles adoravam aquilo. Porque eu falava: “Se você aprender bem a do dois, na do três fica menor, a do quatro vai ficar menor, quando você chegar na do

438 Se refere aos materiais que estavam citados no questionário que havia entregue à professora antes da realização da entrevista. Segundo a professora, ela usou muito o Cartaz de Pregas. 439 Primeiro era feito o desenho na lousa, depois os alunos faziam usando as sementes. 440 O “Triângulo de Condorcet” foi citado e desenhado pelo professor Orlando Melotti em sua entrevista. 318 nove, você só vai ter que aprender....”. Sabe, pra motivar. Era difícil a multiplicação, até eles entenderem o que você estava fazendo. Depois que entendeu, tem que decorar, não adianta, se fala 3x5, ele não vai pegar cinco, e cinco e cinco, três vezes, pra depois juntar, porque senão ele não vai fazer nada o dia inteiro, ele vai fazer duas ou três continhas, se ele for ficar fazendo isso. E aí não tinha muito como não decorar, a gente tinha que pegar firme. Fazia o Relógio da Tabuada441, o joguinho, você tinha que, depois que entendeu, depois que está sabendo o que está fazendo, eu falava: “Se você não souber, então pega e faz, se você for fazer 3x5, põe 3x5 aí, e junta que vai dar”. Mas depois que entendeu é que tinha que decorar, e aí fazia decorar, porque se não você ficava a aula inteira para dar duas coisas. Mas a divisão por dois algarismos, acho que é o que eles têm mais dificuldade. Se eu te falar que acho que, faz mais de dez mil anos, que eu não faço divisão por dois algarismos, nem eu sei. Mas eles, depois que entendiam, que a gente ia por aquele processo longo, e fazia a continha de diminuir ali, abaixa o outro, eu falava: “Agora não precisa mais fazer isso, agora já pode só falar e escrever o resultado aí embaixo”. Mas eles tinham dificuldades. Mas não era uma coisa não, porque, da hora que eles entendiam bem entendido, se ele estivesse com dificuldades, ele fazia o processo longo, quer dizer, aprendia a se virar, porque a gente tinha que fazer o aluno aprender aquilo lá e da hora (em) que ele entendeu (em diante), se vai fazer uma prova, se você esqueceu a tabuada naquela hora, no último caso, você vai perder tempo, mas se vira, entendeu? E tinha que aprender por raciocínio, a criança tinha que raciocinar na hora que ele aprendeu, ele tinha que aprender e se virar, e a gente cobrava bastante. Mas você podia cobrar antigamente, depois foi indo, foi indo, você não pode cobrar mais nada.

Os alunos reprovavam, tinha o exame final, não tinha? Reprovavam, tinha o exame 442. Olha, se eu não me engano, quando eu vim para o Sapé, eu não sei se ainda tinha, porque quando tinha o Exame de Admissão pra entrar no ginásio, e eu não sei se quando eu fui pro Sapé ainda tinha, isso em 1972, se eu não me engano. Nossa! eu fiz minha turma da quarta série estudar tanto, tanto, tanto, porque tinha que vir pro ginásio e tinha que acompanhar, sabe?

Então essa preocupação existia lá na escola rural também? Existia, exista. Por exemplo, História, Geografia e Ciências, se tivesse uma noção e se ele soubesse se virar, a hora que ele tivesse essa aula, ele conseguiria se virar, mas para ele aprender a se virar, ele tinha que fazer Matemática. Então você tinha que fazer ele raciocinar, o aluno era obrigado a raciocinar, e com isso, se ele soubesse bem. Eu gostava mais de Matemática do que de Português. Nossa! eu não tive bons professores de Português, e Português é difícil. Então redação, esses negócios, eu dava porque era minha obrigação dar, tudo o que tinha que fazer a gente fazia, mas puxar o aluno, assim, automaticamente você puxa mais naquilo que você gosta, você entendeu? Então eu acho que isso ajuda ele depois a se virar nas outras coisas que ele tem que aprender; você não precisa ficar se preocupando tanto com Ciências, tanto com Geografia, ele tinha que saber o mapa do Brasil, do Estado de São Paulo, localização, umas coisas assim, mas você não precisava ficar com tanta coisa e a hora que ele aprendesse, mais

441 Citado pelo professor Etore Bilia em sua entrevista. 442 Quando trabalhou no município de Mira Estrela/SP tinha. 319 tarde, ele conseguia ir. Mas se ele entrasse numa classe e não acompanhasse Português e Matemática, ele não conseguia ir, ele ia ficar repetindo. Porque professor de ginásio não volta para ensinar aluno a aprender; ele pode até ter tempo, mas não faz, ele não quer fazer aquilo porque não é obrigação dele. Então, eu acho assim: a gente tinha essa preocupação, os alunos vinham para a cidade e tinham que saber443.

Então esse raciocínio matemático já ia servir para outras disciplinas? Para as outras, para a vida, porque a vida inteira a gente tem que dar uma solução para os problemas da gente e se você não aprender a raciocinar, você não dá, fica parado.

E tinha livros, cartilhas, materiais para as aulas de Matemática? Olha, quando a gente começou, a gente passava tudo na lousa. Ai começaram as folhas mimeografadas, usava bastante, porque aí você já ia com elas prontas, você não ficava perdendo tanto tempo, porque você tinha que fazer, o aluno tinha que fazer. Números, a gente ensinava com desenhos. O dois era o patinho. O oito, acho que era o gatinho.

E exigia aquela escrita, tinha que ser naquela ordem? Ah sim, tudo, e o Português, a letra também. O A era assim, não é esse A 444. Era cursiva mesmo, era uma letra certinha, não tinha essa bagunça que começa com uma letra de mão, outra letra de forma, outra letra maiúscula, não tinha nada disso. Na Matemática também: os números era feitos bem, sabe? Não é nada de fazer bolinha e fazer assim não, fazia o nove. O seis, você fazia o seis. E pra eles gravarem qual era o número seis, qual era o número oito. Às vezes você falava, por exemplo: “Ah esse eu não lembro mais o que é”. É o cinco. Mas ele não sabia o que era o cinco. Aí você falava: “O cinco é tal coisa”. Por exemplo: “Ah, é o número dois, o patinho”. Na hora.

Com o desenho eles associavam? É, porque senão ele não sabia, ele sabia quanto que deu. Sete, mas na cabeça dele não tinha o sete. Então tinha todos, até o nove, eu já esqueci, mas do um até o nove tinha.

E a ordem foi ensinar do um até o nove e por último o zero? Eu não lembro, agora que eu fui te falar, você sabe?

Iniciou com a ideia do conjunto, de tirar tudo e ficar vazio e ele representar o zero? Quando foi ensinar conjunto? Não, quando a gente começou, sabe que eu não sei se a gente começou assim? quando eu não tenho nada, acabou tudo se era o zero, ou se o zero veio depois do nove, não lembro.

E tinha as caixinhas para ensinar unidade, dezena, milhar... A gente tinha um... é que eu não sei como é que chama aquilo. Mas porque a gente tinha um flanelógrafo 445, que era uma placa assim de flanela, punha em pé − isso que eles vendiam, a gente comprava, outras vezes a gente confeccionava − e era para conjunto para

443 Quando iam cursar a 1ª série ginasial. Isso nas décadas de 1960 e 1970. 444 Se referindo à letra “A” escrita em letra cursiva e não em letra de forma. 445 A professora não se lembra quando começou a usá-lo. 320 somar, para tirar. Então tinha ali, a gente usava, cortava tudo em papel cartão, pregava uma lixinha atrás. E a gente pegava (neste momento a professora está dobrando a folha) aquele papel pardo e fazia assim um monte de pregas. Aí você repartia em unidades, dezenas e centena, três partes. Mas era grande lá e aí tinha aquele monte, aí esses palitinhos desses papéis. Tinha dia que tinha palito de sorvete, a maioria era papel cartão que é duro, mas não precisava ter nada atrás. Então eles faziam, na parte - assim - concreta, aprendeu até o nove, fica nas unidades. Quando você passa pro dez, que são dois algarismos, então você junta esses daqui quando der dez, você passa um para cá. Depois a centena, então usava muito isso para ajudar, ficavam até dentro da classe essas pregas. Estava repartida entre unidade, dezena e centena, aí punha lá, era tudo dividido, então ia pondo unidade aqui, conforme aqui deu dez, pode pôr? Não pode pôr dois algarismos aqui, aí então você passa um para cá, e aqui ficou o quê? Ficou zero. Então que número que formou? O dez. E assim seguiu, e quando você chegava bem lá pra frente eles já iam sozinhos. Quando ele entendia o que você tinha juntado para passar, esse aqui foi, ficou zero e ficou dez. Então, não é que um só que é dez, aí dali vai. Chega no 99, não pode pôr, vai usar três casinhas. Depois os números... eles vão embora.

E a legislação, quem determinava o que e como trabalhar com a Matemática? Tinha leis, o inspetor dizia: “Olha, saiu um novo currículo”. Alguma coisa? Vinha um. No começo do ano a gente tinha um planejamento446, ele vinha da Delegacia, já com a matéria que você tinha que dar aquele ano. No começo447, tinha o exame no final do ano e a gente trocava de classe. Às vezes trocava e vinha mais um professor ficar junto; na maioria, a gente não ficava na classe da gente mesmo não. E era exame pra reprovar e vinha a prova fechada, aquelas coisas assim. Aí depois começaram com as cachorradas, que aí ensinavam os alunos, vinha pronto, mas já estava ensinando os alunos. Isso foi bem mais pra frente448. No começo não, a gente obedecia e reprovava mesmo. Depois não adiantou nada, porque eles deram um jeitinho, e aí que o governo... Mas é, tinha exame, e você já recebia na reunião o que você tinha que dar, de todas as matérias e vinha ate a Educação Artística, Educação Física. Acho que teve uma época que teve até religião. Era uma religião – assim - não católica nem nada 449, era uma religião na parte de respeitar, educação com Deus, com o Universo, essas coisas, era uma coisa mais assim, não era nada mais. Mas vinha tudo e a gente tinha que obedecer aquilo, inclusive era repartido por mês, por bimestre você tinha que dar conta daquilo.

A senhora chegou a participar de algum curso de especialização em Matemática. Algum curso de formação quando já lecionava? Eu fiz muito, esses cursinhos de férias450 (que) você está falando, né? Todas as férias a gente fazia, mais porque contava ponto, contava ponto pra remoção, pra ingresso,

446 Isso em 1968. Vinha o conteúdo que tinha que ser trabalhado, o professor organizava esses conteúdos durante cada mês. 447 Isso em 1968 no município de Mira Estrela/SP. 448 A professora não se lembra quando foi. 449 A professora quer dizer que não se devia seguir os dogmas de nenhuma das crenças; apenas ensinar noções de ética, respeito, amor ao próximo, amor a Deus. 450 A professora citou alguns: Curso de Expansão Cultural, pela Delegacia de São José do Rio Preto/SP; Atualização Pedagógica do Magistério; Objetivos da Escola Primária Pública (1971); Ciências no Ensino Primário; Psicologia da Aprendizagem. 321 contava ponto pra tudo. E as novidades... então, se você não fizesse o curso, uma amiga passava o que tinha visto, que a gente achava que ficava de interessante. Mas fiz muitos, nas férias a gente sempre aproveitava. E tinha cursos que a gente fazia que reprovavam... eram (cursos) de férias, pouco tempo, mas tinha uma avaliação no final do curso. Pouquíssimos. Eu lembro que nós fizemos um, que eles separaram a gente numa quadra e deu a prova, sabe? e teve gente que repetiu; é esquisito, mas teve, foi uma professora, uma argentina, que veio no Brasil para dar o curso451.

E Matemática Moderna, a senhora lembra alguma coisa? De falar em reunião ou de algum inspetor citar? Eu não lembro não, mas eu lembro do nome.

Foi quando vieram os conjuntos. É, e começaram a mudar, foi nessa época que começou também o sinal de maior, menor. Mas reunião, cursos, só disso, eu não lembro.

E esses conhecimentos, eles foram positivos para o ensino da Matemática ou não? o que já tinha estava bom, que é a tabuada, o uso concreto? Olha, eu acho que qualquer coisa para Matemática ela é positiva; se ela foi bem entendida, se você conseguiu fazer eles entenderem, senão ela não é. Que às vezes, a gente pensa que eles estão entendendo e não estão. Então, se você explicar de um jeito e cobrar e ver que não aprenderam, você tem que arrumar um outro jeito para você ensinar, que aquele que você ensinou não valeu, não adiantou nada e não adianta você explicar outra vez porque eles não vão entender. Então eu acho que qualquer coisa que vier que ele entenda é aproveitada. Agora, se puser lá e ele vai como se estivesse entendendo, eu acho que aí não vira. Não sei, uma das coisas que eu acho, que o pessoal lá de cima da Educação não tem noção do que é a Educação, do que é a sala de aula. Então, acho que fica difícil porque tudo o que eles fazem lá não é real para o dia a dia e eles continuam fingindo que é. Então, o Secretário - lá de cima - da Educação, faz uma coisa que não tem nada, que não vai valer nada, que não vai ajudar. E o outro - de baixo - finge que vai ajudar e segue, e vira isso que virou o nosso ensino, sabe? Se desligarem as máquinas acaba a Matemática, porque eles sabem mexer na maquininha. Você compra uma coisa numa loja, ele vai te dar um troco de dois reais, ele faz lá na máquina. Você deu cinco e gastou três. Ele pega lá: cinco reais e tira dois. Você entendeu? E isso, eu acho que enquanto não mudar lá de cima, se não der autoridade para o professor, não muda.

Nas escolas rurais tinha meninos e meninas nas salas, eram salas mistas? Eram mistas.

Lembra de algum autor, Osvaldo Sangiorgi, Malba Tahan? Osvaldo Sangiorgi era quinta série? Usava muito no ginásio.

Então eu vou encerrar a gravação. Tempo de gravação da entrevista: 57min41s

451 Curso de Educação Física Infantil (30 horas), com a professora Beatriz Ramos (1972). 322

10. Professora Zulmira Mattos Miziara

Profª Zulmira Mattos Miziara, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

452

Entrevista realizada no dia 8 de junho de 2011, com a professora Dona Zulmira Mattos .

Então pode começar professora, a falar pelo nome completo, idade, se quiser, a formação inicial, as escolas que a senhora frequentou ainda como aluna, contar um pouco dessa história de vida, antes do tornar-se professora. Meu nome é Zulmira Mattos Miziara, eu tenho 82 anos e sou nascida em Araraquara453, onde eu fiz até a terceira série. Depois, fiz a quarta série em Bálsamo 454 e como não tinha as séries seguintes em Bálsamo, eu fui fazer o ginásio em Araraquara. Então eu fiz até, naquele tempo era quinta série, em Araraquara. Depois, eu fiz a Escola Normal em Mirassol455, terminei em 1946 a minha Escola Normal.

E essa escolha pelo Curso Normal, foi escolha da senhora ou a família que influenciou? Não, não, foi minha escolha. Foi assim, meio que, é o melhor porque é perto, sabe? Na verdade, lá em Araraquara, os meus colegas que fizeram Ginásio comigo, todos eles, muitos foram ser dentistas, que eu fiquei sabendo, ou médicos, e eu fui ser normalista, mas foi bom.

Trabalhou em outra atividade além de ser professora? Não teve não. Depois eu prestei concurso para diretor, mas bem mais tarde. Eu lecionei bastante anos, na zona rural e na cidade.

Realizou outros cursos, além do Curso Normal, fez Pedagogia? Fiz, fiz Pedagogia 456 e outros cursos, assim, paralelos. Fiz um curso em Rio

452 Esta entrevista foi realizada na residência da professora, na cidade de Tanabi/SP. 453 Araraquara/SP dista 208 quilômetros de Tanabi/SP. 454 Bálsamo/SP dista 14 quilômetros de Tanabi/SP. 455 Mirassol/SP dista 26 quilômetros de Tanabi/SP. 456 Em /SP, no final da década de 1960. 323

Preto457, que chamava “Administradores Escolares”, que foi financiado pelo governo militar. Nós fizemos o curso ganhando porque nós já éramos formadas. Ele deu uma bolsa para 30 pessoas, e nós fizemos no Monsenhor Gonçalves em Rio Preto, dois anos, no período da Ditadura458.

E chegou a fazer curso para atuar no ensino secundário? No secundário não. Eu fiz Pedagogia, então eu dei aula na Escola Normal daqui de Tanabi, eu dei aula de Filosofia, Psicologia. Trabalhava à noite.

Em quais anos lecionou e em quais escolas, Grupos Escolares, escolas isoladas ou foi um pouco de tudo? É, eu lecionei em escola isolada. Lecionei numa escola que pertencia a Monte Aprazível459. Eu morava nesse tempo em Mirassol, então eu vinha de trem até Balduíno 460. Em Balduíno tinha um menino me esperando com um cavalo; aí ele ia na garupa, me levava até a casa onde eu ficava. Eu fiquei mais de um ano, acho que um ano e meio nessa escola, dando aula. Passava a semana toda, só voltava no sábado. Às vezes eu ficava até no fim de semana porque era andar bastante de trem, de Mirassol até Balduíno. E foi minha primeira experiência de dar aula. Foi até assim, às vezes quando eu me lembro, eu penso: quanto que a gente errava com as crianças, por exemplo, exigindo que eles copiassem logo de cara o nome da escola, aquele nome enorme, “Escola Mista da Fazenda...” e tal. Lembro da carinha das crianças, assim, meio abobalhadas na hora, mas no fim deu certo, consegui alfabetizar todas as crianças.

E a experiência na escola do Sapé461, foi depois? É, aí eu ingressei na escola do Sapé, já foi meu ingresso, em 1951. Lá era Fazenda Alferes. Eu também ficava lá, na casa do seu Gildo Favarão. Nós ficávamos hospedadas, eu e a outra professora. E lá tinha duas classes, uma de manhã e uma à tarde, na escolinha.

Eram duas séries de manhã e duas séries à tarde? Eram, duas de manhã e duas à tarde. Lá não tinha a quarta série, acho que era a primeira, segunda e terceira só. Mas os alunos muito bons, muito inteligentes, nossa! Tive uma experiência maravilhosa lá. Não sei se você sabe, naquele tempo, as escolas, as classes, elas eram examinadas no final do ano por uma pessoa que vinha examinar a classe, não era o próprio professor que fazia o exame. E naquela escola, quem fez o exame para mim foi o que naquele tempo era o inspetor de ensino, seu Dario Gale, e os meus alunos passaram 100% 462. Eu fiquei muito feliz, super contente, ele também ficou admirado porque (era) escola de roça, né? Mas eu sempre tive, assim, o costume de pegar os alunos mais fracos e trabalhar um pouco mais com eles. E me lembro que tinha um que era bem fraquinho, eu sempre entrava

457 São José do Rio Preto/SP, que dista 40 quilômetros de Tanabi/SP. 458 Realizado na década de 1960. 459 Monte Aprazível/SP dista 18 quilômetros de Tanabi/SP. 460 Engenheiro Balduíno é distrito de Monte Aprazível/SP e dista 8 quilômetros de Tanabi/SP. Isso no ano de 1948. 461 Escola Mista da Fazenda Alferes, no bairro que é conhecido em Tanabi/SP como Bairro do Sapé. Perguntei sobre isso porque no dia em que encontrei com a professora, ela havia me contado que trabalhara lá. 462 Escola Mista da Fazenda Alferes. Ano de 1951. 324 mais cedo um pouco, com ele, para que ele acompanhasse a classe toda.

Um trabalho mais individual? Mais, e com o mais fraquinho. E a gente conseguia então levar a todos os alunos e eles eram muito estudiosos. Tem uma experiência muito engraçada que eu dizia assim: “Vocês têm que ler a lição dez vezes e copiar dez vezes”. Aquelas pequenas lições. E falava: “Você põe dez grãozinhos de milho e vai tirando”. E às vezes, eu passava na casa de alguns deles à noite, realmente estavam ali os grãozinhos de milho, e eles copiando dez vezes (a professora sorri ao lembrar-se deste fato), muito obedientes, uma graça.

E essas avaliações em que vinham o inspetor, normalmente o que se aplicava era uma avaliação de nível tal como do Grupo Escolar na cidade, exigia o mesmo? Igual, porque a criança depois ia seguir o ensino, não podia vir mais fraca, era igual.

E essas crianças do sítio, elas gostavam da escola, os pais, a família achava importante ter a escola no meio rural porque queriam que os filhos continuassem os estudos, ou não, eles eram resistentes? Gostavam muito, muito. Tenho muitos alunos que eu encontro aqui, são até avós já e progrediram muito e estão muito bem. Eu fiz uma vez um artigo, escrevi um artigo no jornal falando do primeiro dia de aula. Que chegou um aluno, tão bem vestidinho, camisa branca, calça azul-marinho, sapatinho, meia e um buquê de flores na mão para a professora. Então aquilo me tocou muito porque eu fiquei pensando quanto que essa mãe falou para esse menino, quanto que ela estimulou esse menino para vir numa escola, que ela achava maravilhosa, para deixar, fazer ele tão bonito e com as flores para a professora no primeiro dia, achei lindo463.

A importância pelo que iria começar na vida dele... É, na vida dele, a expectativa muito boa, quer dizer, que ela esperava muito da escola.

Entendi. E quanto à organização dessas escolas isoladas, merenda, matrículas. Como acontecia? Então, a merenda realmente não tinha, a gente é que tinha que fazer. Às vezes, os alunos traziam alguma coisa, abóbora, mandioca, e a gente às vezes levava pedaço de carne, qualquer coisa e a gente fazia. Tinha o fogão, a gente fazia uma sopa464. E a organização era feita aqui na Sede.

Matrículas era tudo na Sede? Era tudo na Sede, a gente tinha o livro de chamada, tinha o boletim do aluno, tinha tudo, mas a gente trazia mensalmente para a Sede.

463 Foi em uma escola rural no Bairro Rincão, município de Tanabi/SP (em 1953/1954). A escola tinha duas salas de aula. Existia, além da sala de aula, um quarto para o professor morar (era Estadual). 464 A professora conta que, antes da década de 1950, o dinheiro da “caixa” servia para comprar sopa para os alunos que não levavam merenda (época que a merenda ainda não era feita na escola). 325

E como eram as aulas, a divisão das disciplinas? Então, a gente não tinha muita orientação, as professoras tinham alguns livrinhos para ajuda 465. A gente tinha um caderninho muito interessante, que eu até gostaria de ter um, que se chamava: Quatrocentos Problemas466. Eram cem para a primeira série, cem para a segunda..., era muito interessante.

E eram probleminhas gerais ou de Matemática? De Matemática. E tinha uma, eu não lembro como é que é, tinha um livro que o pessoal usava para outras matérias 467. A gente tinha um negócio que chamava Manual do Ensino Primário468, e a gente se virava com aquilo.

E a rotina das classes multisseriadas, como era feita a organização de atividades? Às vezes até na primeira série costumava ter as seções A, B e C, não sei se alguém já te contou isso.

Não. Não? Tinha aluno da seção A, da seção B469.

E essas seções eram por nível de facilidade do aluno? A gente passava uma atividade para a criança ir fazendo enquanto a gente ficava com o outro grupo. Depois a gente passava atividades para aquelas e ia pro outro grupo olhar se a atividade estava certa. Isso foi durante certo tempo, depois abriram mais escolas, mais classes e foi então separando e a gente foi ficando com a classe só de uma série.

E tinha atividades comuns, por exemplo: “vou trabalhar esse probleminha e todas as séries vão trabalhar nele” ou não dava para fazer? Não; não dava pra fazer. A não ser que fosse, por exemplo, preparo de uma festa. Então a gente dava aula de canto; como era? a gente punha a música na lousa, todos copiavam, todo mundo copiava e todo mundo cantava aquela música. E preparo para festinha também era tudo junto, distribuía poesia para um, para outro, diálogo. A gente fazia festinha, mesmo com uma classe a gente fazia festinha. Até lá no Sapé, lá na Alferes uma vez, uma professora de outra escola que ficava mais para frente, acho que lá que era o Sapé, ela veio no dia 07 de setembro, se reuniu com a minha escola e fizemos uma festa juntos.

Essas comemorações cívicas tinham que ser cumpridas, né? Tinha no dia mesmo, no dia.

E isso contava ponto para o professor, essa participação era exigida? O que contava ponto para o professor era aprovação do aluno, contava ponto para a remoção. Então, eu acho que nisso era cobrado dos professores, se cobrava alguma coisa,

465 Lembra na década de 1960 dos livros da autora Déborah Pádua Mello Neves. 466 Usado antes da década de 1950, no início da carreira. 467 Era um livro mais elaborado, tinha todas as disciplinas. 468 Isso na década de 1950. Era fornecido pelo Estado. 469 As seções eram divisões dentro da mesma série (seções A, B e C). O professor é que organizava. 326 porque se vinha uma prova externa, como hoje uma avaliação, então era uma cobrança que se fazia e era retribuído em pontos.

E falando um pouco mais da Matemática, quando e como eram introduzidos os números, para esse aluno que chegava à primeira série e não tinha noção de como pegar no lápis, o que era um caderno, ou seja, onde todo esse processo de aprendizagem tinha que ser feito. Como eram introduzidos os números, a noção de número, de quantidade? Eu acho que eu fiz uma escola muito boa, meu primário, e eu me lembro de ver a minha professora com uns soldadinhos em cima da mesa, soldadinhos de chumbo, como eles falavam, ensinando os números e as operações. Eu também ensinei desse jeito, com tampinhas, punha a tampinha, o menino fazia uma bolinha para representar uma quantia, e eu punha a bolinha na lousa e punha o número 1. E assim a gente foi. E ensinava também através de pequenas canções, né? “A galinha do vizinho bota ovo amarelinho, você conhece?” (a professora sorri ao lembrar-se da música) “Bota um, bota dois...”. E amarelinha também, a gente riscava no chão, escrevia, né?

Então tinham brincadeiras também? Tinham brincadeiras, e sempre trabalhando assim com tampinhas, sempre com o concreto.

E tinham outros materiais, como, por exemplo, sementes? Também. Você me fez lembrar que eu ensinei, o ensino era bastante acadêmico. Então eu me lembro quando eu estava ensinando Geografia, as meninas traziam uma tabuinha, enchia de barro e eu riscava o mapa do Estado de São Paulo naquela tabuinha de barro, e a Serra do Mar era grãozinho de milho, entendeu? A outra Serra era grãozinho de feijão e assim a gente representava, ficava lindo, secava, e eles sabiam. Desenhava o rio para eles perceberem, ficava uma gracinha.

E tudo com materiais que eles tinham... tábuas, barro, grãos? Barro. Fazia muito, usava muito o barro, porque ali perto, aqui no Rincão, tinha saibro branco e eles então traziam aquelas pelotas de saibro e a gente...

Chegou a fazer algum material para contagem com esse saibro? Alguma coisa que serviu para a Matemática? Bolinhas. Elas secavam, ficavam durinhas e a gente ensinava. Por exemplo, vai ensinar a tabuada, já fazia com as bolinhas primeiro. Sempre usando o concreto.

E trabalhavam com problemas envolvendo situações cotidianas? Muito. Eu lembro da conta da venda do porco, que tem que descontar 20%. Você compra o porco vivo, tem que descontar 20%.

Por que o porco vai ser limpo? Por conta disso. Então eu me lembro que a gente ensinava isso aí. E eu fazia até uma vendinha na minha classe. Eu punha uma tábua com os saquinhos com mantimentos, o preço embaixo e fazia imitação de notas, fazia problema bem concreto.

327

Essa questão da venda do porco trabalhava com porcentagem. São exercícios avançados? O pessoal fala muito hoje, os pais falam assim, eu já vi muitos falarem, que eles sabem mais do que seus netos em Matemática. A gente ensinava metro quadrado, perímetro, volume.

Tudo até a quarta série primária? Tudo até a quarta série.

Muitos alunos paravam de estudar, não realizavam a quarta série? Sim, e em alguns lugares nem tinha a 4ª série. Eu, na zona rural, não percebi isso. Engraçado, eu fico pensando, não percebi evasão 470. Uma vez teve um senhor, que... Um menino chegou pra mim e falou: “Olha, a gente não vem mais na escola, meu pai precisa da gente na roça”. Eu falei: “Nossa, mas são três crianças”. Fiquei desesperada. Mandei chamar o pai e falei pra ele: “O senhor tem que mandar os meninos senão eu vou ao juiz”. Aí ele não mandou, eu fui ao juiz, e o juiz fez ele... E às vezes, eu encontro com esses meninos aí, são pais de família, e eles comentam isso comigo. E tinha uma fazenda próxima da nossa escola que as crianças não frequentavam e a gente foi insistindo. Foi até que um dia vieram todos, vieram todos...

A professora tinha esse papel também, de chamar os alunos para a escola? A professora era tudo. Professora era muito importante na zona rural.

Entendi. E existiam livros e cartilhas? É, tinha a cartilha. E lá pelo mês de outubro, por aí, as crianças já tinham terminado a cartilha e entravam no livro. Tinha a festinha do livro, para receber o primeiro livro de leitura471.

E o planejamento, quem determinava o que e como ensinar a Matemática, o currículo da Matemática, tinha alguma determinação que vinha pronta? Tinha sim, a gente tinha o que dar bimestralmente472. Já vinha, a gente sabia, eu sempre reclamava muito, porque eu achava muita coisa, não tanto na Matemática, nem no Português, mas eu achava muito na Geografia, na História, sabe? Eu achava que não dava para a criança guardar tudo aquilo, eu achava muito acadêmico, muita coisa. Eu sempre reclamava muito, mas não adianta reclamar, o professor é o último a ser ouvido. Eles não ouvem as bases.

E sobre o ensino de conjuntos, tem alguma lembrança de quando começou? É, eu me lembro quando começou sim, eu me lembro, a Teoria de Conjuntos. Eu cheguei, eu não me lembro se eu cheguei a dar, porque depois eu... Eu me lembro sim, eu acho que eu cheguei a dar para as crianças conjuntos, pertence, não pertence, união, né?

470 Não percebeu evasão nem repetência na escola rural. Já na década de 1990 diz que encontrou alunos repetentes com 13 anos na escola. 471 Era comprado pelos pais. O dinheiro da “caixa” era usado para comprar para os alunos que não tinham condições. 472 Desde o início da carreira. Os diretores que organizavam e passavam para os professores. 328

Eu me lembro que eu tinha um joguinho muito bom, que tinha figuras amarelas, vermelhas e azuis, triângulos, retângulos, não sei se você conhece.

Os Blocos Lógicos? Blocos Lógicos. Você conhece? Então, eu cheguei a usar para conjuntos.

Por que tinha o conjunto de peças que ora era dividido por cores, ora era por formas? É isso mesmo, por exemplo: o triângulo era amarelo ou azul. Mas se é o triângulo, pertencia ao conjunto união, me lembro disso aí.

E para ensinar Matemática tinha outros objetos, Ábaco, Flanelógrafo... Tinha um conjunto de, a gente chamava de Cartaz de Pregas, você já viu?

Que tinha como colocar as fichinhas? É, com fichinhas. Então tinha as pregas em cada coluna, da unidade, dezena, centena e milhar, tudo separado, e a gente ia juntando as fichinhas. E isso também não foi no começo não, viu? isso daí já veio bem depois pra gente explicar para a criança como é que formava uma dezena, e quantas dezenas formam uma centena, isso já demorou bem.

Estava em que época, mais ou menos? Bem depois, lá pra 1960, eu acho. Em 1970 foi uma confusão.

Conta um pouco dessa confusão. Você já ouviu falar na 5692? Então, eu peguei essa época. Para explicar a 5692 precisou chamar um professor de Matemática (a professora sorri ao lembrar dessa história), coisa horrorosa, nossa!

Muitas mudanças pra escola? Eu acho que foram mudanças que nem aconteceram. Porque isso foi na época dos militares, eles queriam Escola Técnica 473 e as escolas não estavam preparadas, nenhuma. Então ficou muito de fachada, por exemplo, a minha filha fez um colégio, eu acho que ela fez, parece que lá era Enfermagem, mas na verdade ela só fez o Segundo Grau normal, o Colegial normal.

Não teve a parte específica? Teve algumas noções só, eu acho. Então não deu certo. Sabe que até hoje é muito difícil uma Escola Técnica, é muito cara.

Conta um pouco mais sobre essas transformações que foram acontecendo ao longo do ensino da Matemática. Fez alguns Cursos de Especialização, Formação Continuada? É, eu fiz um curso bom, que eu me lembro muito desse curso, acho que foi na década de 1960, no tempo de Juscelino 474. Ele mandou umas professoras para os Estados Unidos, parece que foram algumas de Brasília. E elas davam aulas, deram vários cursos, eu achei muito bom, muito bom. Parece que introduziram, nessa época, um negócio que não

473 A LDB 5692/71 estabeleceu a profissionalização compulsória no Ensino Médio. 474 Juscelino Kubitschek de Oliveira foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961. 329 deu certo, que foi Estudos Sociais. Juntaram Geografia e História e, no fim, ninguém sabia o que era Estudos Sociais. Mas em Matemática eu fiz alguns cursos bons 475. Eu lembro que, por exemplo, ao invés de ensinar a tabuada assim como ela é, como o pessoal ensina, era por unidades. Então, por exemplo, a unidade do 12. Três vezes o quatro. Quatro vezes o três. Três vezes quanto que dá 12? Quatro vezes quanto que dá 12? Então a criança já via o oposto, a tabuada ficava bem diminuída, e ele já começava a ver a divisão. Eu achei muito bom, depois comecei a dar a tabuada desse jeito e facilitou, facilitava muito para a divisão.

E se não trabalhava na sequência, nem tinha cara de tabuada, por que estava trabalhando a noção da multiplicação, do inverso que é a divisão, de uma vez só? Isso é, e eu sempre exigia que eles soubessem. Ia devagar, tomando todo dia, cada dois, três dias estava uma unidade lá, fazia na lousa o desenho.

(a professora pega o papel para desenhar). Por exemplo, eu fazia assim: um prédio de apartamentos. Então aqui tem 12 pessoas. Aqui tem três quartos. Quantas pessoas tem em cada quarto? Você entendeu? Aqui tem quatro quartos, sempre o doze. Quantas pessoas têm em cada quarto? E assim vai, eu me lembro desses desenhinhos.

Registros feitos pela professora Zulmira Mattos Miziara durante a entrevista, 2011. Foto feita pela pesquisadora.

E para ensinar metro quadrado, eu me lembro que - a gente fica cansada de falar na aula – né? Então eu falava: “Agora o problema é mudo”. Fazia problema mudo 476. Então fazia um desenho e eu punha assim, por exemplo, a área. Vamos supor, área 20. Aqui eu punha 5 e aqui eu punha um ponto de pergunta, entendeu?

475 Curso sobre adição e multiplicação e sobre o ensino da tabuada por unidades (entender no concreto, depois decorar). Nessa época criou-se a disciplinas de Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica. 476 Usou os problemas mudos desde o início da carreira. 330

Registros feitos pela professora Zulmira Mattos Miziara durante a entrevista, 2011. Foto feita pela pesquisadora.

Aí depois eu queria o perímetro. Então o mesmo problema, eu punha P, um ponto de pergunta. Qual é o perímetro? Depois eu fazia três cerquinhas. Vai cercar com três fios, só desenhado. Quanto vai gastar? Depois eu punha uma portinha. Agora eu vou fazer uma porteira, vamos descontar, entendeu? Quanto vai gastar de arame? Tudo sem falar e sempre dando uma olhada na classe, para ver se o aluno estava fazendo. A gente punha o dedo, para ele ver que estava tendo um probleminha ali, mostrava onde ele estava errando, para ele consertar.

E esse jeito novo de trabalhar a tabuada, que foi visto em cursos em 1960, é daquele acordo da MEC-USAID que a senhora comentou que fez477? Não é.Você me falou aquele dia e eu lembrei que não, era PABAE. Eu até tive pensando: “O que será esse PABAE?” PABAE: Programa..., deve ser de auxílio ou qualquer coisa, Brasileiro... Escolar, ou de qualquer coisa assim478. Foi no tempo do Juscelino, que foi esse tempo que eles trouxeram os Estudos Sociais e trouxeram vários cursos.

E da MEC-USAID? Da MEC-USAID foi agora, no tempo da ditadura.

A senhora chegou a fazer cursos também? Da MEC-USAID? MEC-USAID, espera, sabe o que foi MEC-USAID? Foi muito aquele negócio de estratégia, objetivos específicos e objetivos amplos, aquilo de você botar o que eu quero conseguir do meu aluno, até quanto, e cumprir aquela meta, sabe? É uma coisa muito Matemática em cima do ensino, quase que uma engenharia ali. Foi, eu acho que foi isso aí, e até certas palavras que a gente não conhecia, por exemplo, estratégia, nunca foi

477 No dia em que conversei com a professora (antes da entrevista) ela havia comentado sobre isso. 478A professora se refere ao PABAEE - (Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar). Este programa foi constituído por um acordo assinado entre Brasil e os Estados Unidos, em 1956, sendo Juscelino Kubitscheck o Presidente da República. 331 usada na escola, entrou para escola nesse tempo. Deixa eu ver se eu me lembro, tinha outras palavras também que não eram do nosso uso, feedback, por exemplo. Ficava meio confuso.

O que hoje seriam as competências e habilidades? É.

Entendi, o professor tinha que pensar o que ele quer atingir? Aí vêm esses termos de objetivos, de estratégias? É. Parece que eles fizeram uma coisa muito bem organizada, mas não chegou até o professor, a escola foi decaindo. Agora também tem vários motivos pro ensino ter... Você fez a primeira e a segunda série na fazenda?

Eu fiz na Fazenda Alferes, vim cursar a terceira série no Ganot479... E o que você acha? Você aprendeu bem lá também?

Sim, não percebi diferença, não senti dificuldades, inclusive na quarta série no Ganot, eu me lembro até hoje, na entrega dos boletins, eu fui uma aluna que fechou com tudo A, e tinha feito os primeiros anos no sítio; então para mim não teve prejuízo. É. Você sabe que eu sou uma pessoa que dou muito valor para o professor. Então tem professor que gosta de fazer aquilo e também ele tem que estar preparado. O professor depende também da escola de que ele veio, os professores que ele teve, porque tem professor que anima a gente.

A senhora se formou em 1949, deu aula até quando? Eu dei aula até 1963, depois eu prestei concurso para diretor de escola primária. Aí escolhi primeiro Balduíno. Depois eu fui para Rincão, como diretora. Ali tinha quatro classes só 480. Era bom, nossa! que escola boa que era! porque quatro classes a gente está sempre junto com o professor. Nós fazíamos experiências ali maravilhosas.

Não chegava a ser Grupo Escolar, era o caso de classes agrupadas? Não tinha uma categoria assim? É, tinha, tinha.

Porque só quatro salas, era uma escola pequena? Era uma escola pequena, mas a gente, não sei, tinha os professores que eram bem preparados, a gente fez experiências muito boas. Assim, eu vou te dar um exemplo: os alunos vão fazer, vão ser repórteres do jogo de futebol, todos vão com o caderno assistir ao jogo, escrever tudo o que se fala, tudo que se faz. No outro dia, escrevem aquilo, os alunos escreviam bastante. Outro dia vocês vão até a venda escutar o que as pessoas falam do preço das coisas e no outro dia vocês vão trazer.

Então foi até 1970, mais ou menos, com a experiência em sala de aula, depois passou a ser diretora? Depois passei a ser diretora, e como diretora fui muito bem também, nossa! muito

479 Escola Ganot Chateaubriand, que fica na cidade de Tanabi/SP. 480 Era uma Escola Agrupada. Ficou como diretora durante os anos de 1966 até 1971. 332 bem, tive muita sorte!

E de 1950 a 1970 o currículo da Matemática sofreu grandes transformações, inclusive pelo movimento da Matemática Moderna, lembra desse movimento? Não. Agora você me fez lembrar de um jornal, nós recebemos um jornalzinho com as explicações. E eu, como gosto muito de Matemática, eu pegava logo o jornalzinho e destrinchava. Aí tinha um supervisor que ia lá na minha escola estudar comigo para depois poder passar nas escolas, porque ele ia ter essa obrigação.

E nesse jornalzinho já tinha também as atividades? Tinha todas as atividades. Esse jornalzinho era muito bom, tinha até de Ciências, sabe. Tinha Ciências, Geografia. Teve um tempo que veio esse jornal, muito bom.

Que era da Matemática Moderna? É.

Essa Matemática, esse jornal, chegava nas escolas rurais? Chegava... era bom. Isso se todo mundo aproveitou também, a gente não sabe.

E falando em jornalzinho, me fez lembrar agora de uma professora 481 que contou que tinha jornais assim, mas sobre o Ruralismo, com coisas do campo. Foi nessa época, esse jornal.

Não sei na época do presidente João Figueiredo482, me parece... Será que foi? Porque isso foi antes. É, pode ter sido em 1964, porque foi antes de eu prestar. Não, eu já era diretora, então foi nessa época sim. Não sei se foi, tinha mesmo esse negócio de rural. Eu me lembro que tinha uma aula sobre “amarelão”, sabe? Explicar como é que pega o amarelão. Tinha sim, tinha esse tempo. Eu me lembro, uma aluna falou: “Eu peguei bichinho do amarelão, pus numa pedra e bati”. Quer dizer, não estava compreendendo...

E, além disso, tinha coisas específicas sobre plantações, sobre terra? Falava sim, falava sobre o semear, chuva, era bem interessante, foi pouco tempo também, não teve muita aceitação.

E tinha épocas em que os professores davam aulas para os adultos à noite? Eu dei aula para adultos quando eu estava na primeira escola483.

E eles faziam matrícula? Tinha matrícula, tudo direitinho.

481 A professora Maria Cecília Soccio Monteiro, também colaboradora nesta pesquisa, que falou sobre isso. 482 João Figueiredo foi presidente do Brasil de 1979 a 1985 e o último presidente do período da ditadura militar. Posteriormente a professora Maria Cecília Soccio Monteiro disse que o jornal não foi na mesma época deste presidente. 483 No início da carreira, isso em 1947, 1948. 333

É como um EJA hoje? É. E todas as professoras, eu acho que daquela época, porque também valia ponto, sabe? Teve uma época que eu dei aula à noite e não ganhava nada, só ponto.

E essas modificações no currículo da Matemática: ficaram pontos positivos, pontos negativos, o que significou isso tudo? Vou ser para você, eu gosto muito de Matemática, mas até hoje eu tenho dificuldade de ver aquelas letras, até hoje eu me embaralho muito. Números naturais, racionais eu me embaralho bem. Eu acho que, não sei, parece que não fez falta. Parece que dá para eu ir pra frente sem essa nomenclatura.

Essa formalidade então da Matemática nem sempre é necessária? Pode ser que para um estudo futuro, para um estudo mais profundo, eu até acredito que seja necessário trabalhar com muita letra. Mas assim, para o dia a dia, acho que não. Não acho que é tão importante, não sei se é porque eu não... Mas eu acho meio difícil, me embaraça.

Entendo. E na verdade, o que se exigia na escola rural era o mesmo que se exigia nos grupos escolares. Se vinha uma cartilha para trabalhar no Grupo Escolar, era a mesma cartilha, a mesma orientação que recebia o professor da escola isolada. Era igual e as provas eram as mesmas. Eu acho que isso é que é certo. Eu acho que é certo porque a criança não vai ficar eternamente no mesmo lugar, ela tem que ir para a frente, porque ninguém, aqui ninguém pensa em se fixar na lavoura, mesmo porque não tem serviço mais. Hoje você vê, lá no Rincão tinha quatro classes, hoje não tem nenhum aluno. Tem dois ou três que vêm aqui de ônibus só, foi terminando, terminando.

Acho que na região, aqui no município de Tanabi, não tem mais escola rural. Eu acho que não.

Acho que da Fazenda Alferes deve ter sido uma das últimas que fecharam que foi já na década de 1990. No Rincão eles lutaram para segurar, mas estava ficando muito caro pagar um diretor, um servente, um secretário.

Rincão era o Grupo que tinha quatro salas? Era Grupo, mas foi um Grupo. Fechou, demorou para fechar, teve tempo de ter dois, três alunos na classe. Pessoal veio embora, gado e cana acabaram com a zona rural, o café acabou.

A senhora lembra de mais alguma história, de algum fato que queira compartilhar? (a professora sorri) Eu acho engraçado quando eu me lembro que eu, acho até que já contei para você, que eu vinha a cavalo, voltava a cavalo. E o cavalo vinha muito cansado (a professora sorri), porque ele já pegava o cavalo que estava trabalhando na roça. E quando eu entrava em Balduíno - eu já contei isso para você? - o cavalo corria pro buteco e eu não conseguia segurar o cavalo (a professora sorri ao lembrar-se dessa história).

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Era acostumado a vir com o dono que ia pro buteco? O dono ia pro buteco... Eu segurava o cavalo que eu podia. Aí quando ele chegava no buteco, eu não sei o que ele fazia lá, que o arreio derrubava, eu tinha que descer bem correndo. Eu acho que ele apertava pro arreio cair pra... Eu sei que era muito divertido, era engraçado.

Então tinha que ter habilidades também com o cavalo? É, e as crianças da roça, elas têm uma ingenuidade muito grande. Elas em contato com a natureza, as coisas para elas são muito normais. Então uma vez eu ia atravessando um pasto com um aluno na garupa e ele falou para mim: “Olha, a senhora anda depressa que aqui nesse pasto tem um cavalo inteiro e outro dia ele subiu na égua e quebrou todos os ovos do oveiro” (a professora sorri) Que o oveiro ia carregando aquelas cestas (a professora sorri). Eu falo: olha a ingenuidade dele: “aqui neste pasto tem um cavalo inteiro484, e a senhora corre...”

E vocês estavam numa égua? Nós estávamos numa égua. Eu falo: “que maravilha a ingenuidade da criança!” Mas as crianças eram muito felizes, muito alegres, eu ia pescar com eles, sabe? Ia botar água no cruzeiro para chover, todas essas coisas.

Botar água no cruzeiro... Ia cantando para botar água no cruzeiro.

Tinha essas crenças, que o professor acabava participando com eles? Acabava participando. Você quer ver algumas fotografias? Eu vou te mostrar, mas acho que eu só tenho do Rincão. (neste momento a professora busca as fotografias para me mostrar)

Comunhão na Escola no Bairro do Rincão, município de Tanabi/SP. No flagrante, aparecem as

484 “cavalo inteiro” é aquele não castrado. 335

professoras, o diretor e o Cônego Victor de Jesus Herrero Padilha, 1954. Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Comunhão, o Cônego Victor 485. Lá já tinha diretor, o diretor e as professoras, eram quatro.

E aqui os alunos... As alunas todas vestidinhas, com a roupinha...

Tinha muito essa questão de a catequese ser ministrada pelas próprias professoras na escola. É, a gente ensinava religião na escola. Formatura. E aqui um diplominha. Aqui é o prefeito, o José Siriani. O mesmo diretor, e eu sou a professora da quarta série. Viu que vestido bonito?

Formatura dos alunos da escola do Bairro Rincão, município de Tanabi/SP. No instantâneo, aparecem, além dos alunos, a professora sentada, o prefeito e o diretor, 1954. Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Formatura da quarta série, aqui é de uma escola isolada? É lá na Rincão mesmo, as quatro salas.

Quantos alunos, hein? Você vê quantos alunos? que beleza! tinha aluno que vinha, que nem esse daqui morava com a avó - olha que menina linda, nossa! Linda! Também é uma quarta série. Esse daqui é o servente. (na foto seguinte)

485 Cônego Victor de Jesus Herrero Padilha foi pároco em Tanabi/SP. 336

Alunos da escola do Bairro do Rincão, município de Tanabi/SP. Além da entrevistada, aparecem os alunos, o servente e mais duas professoras, início da década de 1960. Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Essa daqui que era no? No Rincão, essa daqui era outra quarta série, olha quanto aluno.

A senhora está aí? Estou aqui. Aqui é a Irene, Irene de Andrade, não sei se você conhece a Irene, você deve conhecê-la, o marido dela é o Homero, ela tem um filho chamado Mauro que é advogado. A outra é a Marlene Violin.

Aqui parece uma escola rural. Mas lá era rural.

No Sítio do Estado? Não, esse que é o Sítio do Estado486 (foto seguinte). Aqui é o Rincão, por que Rincão era uma escola rural, tinha duas salas e um alpendre no meio, só duas salas. Depois, para virar Grupo Escolar, fecharam o alpendre e fizeram mais uma sala.

Que já nessa época tem diretor? É, aí já apareceu o diretor. Antes, quando eu fui para lá de professora, não tinha diretor. Depois transformou em Grupo Escolar.

E aqui que é o Sítio do Estado? Isso aqui é uma festinha, na escolinha do Sítio do Estado. Aqui tá meu marido, e aqui tá o Miltinho Perches, aqui, tá vendo? Aqui tudo é material.

486 Sítio do Estado é um bairro do município de Tanabi/SP. 337

Apresentação de alunos durante uma festa realizada na Escola Sítio do Estado, município de Tanabi/SP, década de 1970. Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Os trabalhos? Das crianças, achei bonitinha (nota-se na foto os cartazes produzidos pelas crianças, aos quais a professora se refere).

Sítio do Estado é uma escola isolada também? Hoje é um grupinho escolar também 487. Mas já foi, nesse tempo era escolinha; ela só tinha uma sala.

E a senhora falou das fotos pequenas. É, eu tenho pequenininhas, da minha primeira escola, em Balduíno. Mas eu acho que eu tirei, aqui só tem meninos, vou ver se eu tenho das meninas. Já é diferente, né? que aqui, quando é no Rincão, já tem uniforme, aí já não tem. Eles estão sim, eles estão de calcinhas azul-marinho, não estão?

487 Hoje é uma Escola Municipal. 338

Escola Rural na Fazenda em Engenheiro Balduíno, município de Monte Aprazível/SP. Turma dos meninos, 1947. Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

A foto das menininhas... As menininhas. Você repara que algumas estão descalças, né? E ninguém tinha bolsa, era só uma sacolinha, eles falavam embornalzinho. Olha que gracinha, olha que coisinha mais linda!

Escola Rural na Fazenda em Engenheiro Balduíno, município de Monte Aprazível/SP. Turma das meninas, 1947. Acervo pessoal da profª Zulmira Mattos Miziara.

Outro dia estava falando com um senhor de Monte Aprazível, eu estava falando: “Eu queria tanto saber dos meus alunos”. Eu falei: “Eles devem ter hoje de 60 a 70, que eu estou hoje 80”. Então eu devia ter uns 20 ou 19, por aí. Ele falou: “Eu dou conta de achar para a senhora todo esse pessoal”. Porque ele é de lá. Porque eu falei para ele que eu lecionava na fazenda Lorenção, ele falou: “Lorenção, um do Lorenção eu conheço, que é o filho do dono do sítio”. Ele falou: “Por ele eu vou descobrir para a senhora onde estão esses...”. Porque a gente tem aquela nostalgia de pensar o que foi feito desses menininhos, tão pobres, tão... Porque ali, sitiantes mesmo não era, era tudo meeiro, eram os empregados.

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Então, gostaria de agradecer muitíssimo a atenção, a colaboração. Com certeza tudo o que foi contado aqui vai contribuir, e muito, para constituir parte desta pesquisa que eu busco fazer com a realidade das escolas isoladas e, especificamente, com a região de Tanabi. Muito obrigada. Estou às ordens, venha sempre, tudo que você quiser, eu estou à disposição.

Tempo de gravação da entrevista: 51min30s

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11. Professora Maria Terezinha Monteiro Machado

Profª Maria Terezinha Monteiro Machado, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista gravada no dia 08 de junho de 2011, em Tanabi, com a professora Dona Tereza488.

Então primeiro se apresente, com nome completo, idade, se quiser, e aí a gente começa a falar um pouco das escolas que a senhora frequentou na formação inicial. Certo! Eu me chamo Maria Terezinha Monteiro Machado, tenho 60 anos, e eu trabalhei em escolas da cidade, também nas escolas rurais.

Fez Curso Normal? Fiz o Curso Normal aqui no Padre Fidelis489 e depois eu parti para a Pedagogia, Pedagogia eu fiz em Monte490.

E sempre lecionou nas séries primárias? Isso, só primário, eu não quis outra série, não.

E essa escolha do ser professora, teve influência da família ou não? Ah, da minha mãe! da minha mãe! Eu gostava pouco, mas a minha mãe era... Tinha que se formar para alguma coisa, né? e o que quisesse! Eu optei para professora.

E quando se formou normalista, já começou a lecionar, antes da Pedagogia, ou não? Eu formei Normal, depois que eu comecei a trabalhar. Aí eu fiz à noite Pedagogia e trabalhava durante o dia, cedo e à tarde, naquela época, né?

488 Esta entrevista foi realizada na residência da professora, na cidade de Tanabi/SP. 489 Na cidade de Tanabi/SP, era Instituto de Educação. Formou-se no ano de 1972. Nos anos de 1973 e 1974 já trabalhava em escolas isoladas do município de Tanabi/SP. 490 A cidade de Monte Aprazível/SP dista 18 quilômetros de Tanabi/SP. Foi no final da década de 1980. 341

Formou-se normalista quando? Em que ano mais ou menos? Em 1972, por aí, eu acho; Não sei não, hein!

E além da Pedagogia, existiram cursos de formação continuada, cursos de verão? Ah sim, cursos, todo ano tinha. Principalmente em julho, né? tinha no começo do ano, tinha em julho e tinha no fim. Aquela época tinha muito. É que agora quase não tem mais, né? Mas a gente fazia.

E eram cursos específicos? Por exemplo, para o ensino de Matemática, ou não? eram de assuntos gerais? Não, de uma forma geral, forma geral. Falava-se de tudo, em geral 491.

Quanto às experiências no magistério, em quais anos lecionou, foi até quando? Em 2008, 2007 que eu me aposentei.

Parte dessa carreira teve mais a ver com as escolas rurais ou não, também Grupos Escolares? Dois, três Grupos Escolares. Foi o José Serafim da Silva em Ecatu492, João Portugal493, Ganot494. Teve mais um lá, Coronel Tobias, em Descalvado495, foi onde eu ingressei. Só que lá era também, a minha classe era isolada, rural.

A senhora era daqui e quando se efetivou pegou sala lá em ? Fui para Descalvado.

E aí conseguiu remoção e voltou? É, eu voltei pro José Serafim da Silva, Ecatu. Trabalhei também no João Portugal, mas depois de lá, já vim pro Ganot, me aposentei no Ganot.

E os anos de experiência nas escolas isoladas, foram muitos? Ai, foi bastante viu? a maioria. A maior parte do meu trabalho foi toda em isolada.

E na isolada existia uma experiência diferenciada por lidar com mais de uma série ao mesmo tempo. Isso mudava muito a prática com relação aos Grupos Escolares onde tinha uma única série na sala? Menina, era gostoso viu? principalmente assim acho que, em Ecatu não, mas quando eu vim para o Ganot, a gente sente a diferença, muita diferença.

Diferença em que? Tudo. Em tudo. Na isolada parece que as crianças tinham mais interesse.

O fato de ter mais de uma série não dificultava o trabalho?

491 A professora conta que fazia cursos na Sede aos sábados ou na Delegacia de Ensino (década de 1980). 492 Ecatu é um bairro do município de Tanabi/SP. Isso em 1983. 493 Escola Estadual João Portugal, na cidade de Tanabi/SP. 494 Escola Municipal.Ganot Chateaubriand, na cidade de Tanabi/SP. 495 Descalvado/SP dista 285 quilômetros de Tanabi/SP. 342

Não, não. Menina, era gostoso viu?

E como era a organização nas escolas, agora falando das escolas isoladas, a organização das séries, das classes, como o professor administrava isso dentro ali do mesmo espaço? Eu fazia fileiras, primeira, segunda e terceira 496. Assim, dava atenção para uma, né? Bom para uma, era mais a primeira, que era naquela época a primeira série, a que mais... Mas ali você não tinha intervalo, você não tinha nada, né? além de você trabalhar dentro da sala de aula, você era cozinheira, merendeira, faxineira. Depois que eu vi que os alunos precisavam mais da gente, foi quando eu consegui uma ajudante 497. Aí eu consegui, então dava aula direto, assim na hora do intervalo, saía, brincava um pouquinho, aí já voltava quem tinha mais dificuldade, e além do horário.

Essa ajudante era voluntária, ou alguém que a escola colocou lá? Não, não, eu que coloquei particular, para ajudar, senão não dava conta. Menina, quatro séries, merenda, você não podia parar de mexer, né? naquela época. Depois sim, a gente levava.

E os inspetores de ensino, aqueles que visitavam as escolas, como era o trabalho deles, eles chegavam de surpresa? Chegava, chegava de surpresa. Mas, olha, eu sempre agradecia. Porque talvez você pensava que estava fazendo um trabalho de um jeito e não era para fazer assim. E outra, era tudo conhecido. Mas era muito bom, menina! era legal à beça, eles iam sempre.

Eles levavam orientações que ajudavam o trabalho do professor, contribuíam? Levavam! sempre tinham aqueles mais – assim - mas na maioria, graças a Deus, eu até agradecia quando eles iam. Eu agradecia sim, porque talvez você pensava que estava fazendo de um jeito, porque eu pedia orientação, né? Falava: “Olha, eu estou fazendo assim, assim. Está certo?” “Não, está ótimo! Não, continua assim. Não, e se você fizesse assim?” Eu gostava de opinião, eu gostava, para ver se eu estava certa, né? Ainda mais em começo de carreira, a gente apanha. Nossa! era excelente! eu gostava sim.

E as matrículas, eram feitas na própria escola pelo professor, depois vocês traziam o livro para a sede? Eram. As matrículas eram na escola. E se não tivesse o tanto suficiente você tinha que correr atrás, né? você tinha que ir atrás de aluno.

Tinha um número certo, por exemplo, 30 alunos? Nossa! eu já tive 48 alunos, eu já tive.

As escolas em que a senhora trabalhou, isoladas, tinha as escolas de emergência? Tinha um bairro. Então marquei aqui, onde eu ingressei. Foi isolada Fazenda Santana em Descalvado. José Serafim da Silva, que era o Grupo em Ecatu. Ganot, aqui. A

496 Isso nas escolas isoladas nas quais trabalhou, no município de Tanabi/SP. 497 No final na década de 1980. 343 fazenda Nossa Senhora do Amparo498. A isolada do bairro da Alegria499. Emergência da Vista Alegre. Tinha a emergência do bairro dos Anselmos. João Portugal e Cachoeira dos Felícios500. Eu fui lembrando, eu fui marcando.

Quanto à divisão das disciplinas, era o professor que organizava? Hoje eu vou trabalhar um pouco Matemática, Português, depois Ciências. Como acontecia essa divisão? Ah, era assim, era desse jeito e sempre preparando aula à noite, até tarde da noite, já levava tudo certinho. Tinha dia que dava para você deslanchar mais, né? se você visse que eles estavam com muita dificuldade não tinha como você passar para frente, você não podia, tinha que voltar tudo de novo com bastante calma. Sempre tinha aqueles que tinham mais dificuldade, você tinha que ficar em cima, tinha que ser junto, não podia ficar um bem para trás não, era todo mundo junto.

E quanto ao tempo dessa aula, tinha ou não, eram atividades? Não, não, eram atividades. Quando terminava, a gente mudava. Eu fazia isso.

E como eram várias séries no mesmo espaço, existiam atividades comuns? Não. Eu dava assim: Matemática para a primeira série 501. Então dava Língua Portuguesa para uma, Matemática para outra, Língua Portuguesa para outra. Você tinha que ter jogo de cintura, né? Eu achava que os que tinham mais dificuldade, então, por exemplo, eu dava Ciências que eles gostavam mais. Aí eu trabalhava mais com a outra série a Matemática. A outra estava mais com dificuldade de Português, então dava mais. Matemática: só de você dar uma explicação, eles deslanchavam. Tinha que ir jogando502.

Falando sobre o ensino de Matemática. Quando e como eram introduzidos os números? A noção do número, da quantidade, da escrita, como era feito esse trabalho? Eu usava muito, que era o que eles mais tinham, seja o arroz ou o que eles achavam das árvores, sementes, então trabalhava muito assim. Que naquela época não tinha muito, como agora, que tem bastante material. Aí eu mesma comprava joguinho e levava. Que nem quando eu estava dando, acho que, por exemplo: Matemática para uma, se dava um joguinho de Matemática para aquela. Por exemplo: para a primeira série, fazem isso, isso, isso, isso, até eles irem, você dava para esse. Depois você passava para outra. Eu procurava sempre ter um pouco de cada série. Aí depois com os anos, né? que a gente foi vindo para a cidade, foi mudando um pouco, não tinha quase nada em escola isolada. Então eu gostava de pegar o que tinha mais em contato com eles: pauzinhos, sementes, principalmente sementes503.

498 No município de Tanabi/SP. 499 Alegria é um bairro rural no município de Tanabi/SP. 500 Vista Alegre, Anselmos, Cachoeira dos Felícios, todos do município de Tanabi/SP. 501 No primeiro ano, tinha também exercícios para a coordenação motora. 502 O professor é quem administrava esse tempo, de acordo com as atividades que estavam preparadas. A professora conta que, nas décadas de 1970 e 1980, dependendo do local, tinha alguns alunos mais velhos, atrasados em relação aos demais alunos da mesma turma (às vezes a família vinha de outros Estados para trabalhar). 503 Segundo a professora, essa metodologia do uso de sementes e palitos ocorria mais nas décadas de 1970 e 344

E os cálculos, adição, subtração, como eram feitas essas operações? Era tudo através disso, do concreto. Explicava, e aí eles iam trabalhar, mas assim, mais manualmente para depois passar para a folha, certo? Era lousa, eu gostava muito de mandar na lousa, ia um e outro, principalmente em época assim de intervalo. Lá quase não tinha férias, né? porque nas férias eu pegava esses mais - assim - a gente fazia competição, primeira, segunda e terceira. Era assim: primeira e segunda, e terceira e quarta, principalmente a tabuada. Aí tinha, final de aula, na sexta-feira principalmente, era trabalhada a tabuada. Levava muito presentinho e não (só) para um, né? leva um melhorzinho para quem foram os melhores e alguma coisa, um lápis, um apontador, uma borracha, um caderno, lápis de cor (para os demais), porque eles já ficavam alegres.

E a tabuada, nessa época, valorizava-se o entendimento da operação e depois o decorar mesmo, ou não era importante decorar? Não, não, tem, é lógico. Eles tinham que entender o que eles estavam fazendo, não adiantava eles decorar e não saber. Aí trabalhava bastante e através disso daí. Eles mesmos iam ter que estudar, senão a turma deles não ia conseguir nada e aí é onde que eles vão e eles mesmos, entre eles. Na hora do intervalo, você pensava que eles estavam brincando ou jogando, estavam um tomando tabuada do outro: “Ó, hoje vai ter gente, vamos ver.” Já via a sacolinha chegando: “Que será que tem lá hoje, hein?” Era isso aí.

E trabalhava com muitas situações cotidianas, por exemplo, plantações? Ah sim, a vida deles. Fazia muita feirinha, assim, no fundo da classe. A primeira série tinha a sua parte, a segunda, a terceira e a quarta e aí eles iam fazendo. Trabalhava com o dinheiro e com compras. Ali a gente formava, da primeira série, quando eles já pegavam bem, eles já formavam o probleminha, por exemplo: se eu tenho duas abóboras mais dois chuchus? Certo? Então falava: “Se eu tirar tanto, quanto é que vai ficar?”

Esses mantimentos existiam? Lógico, eu levava, eles levavam de casa! E dependendo da escola, tinha já no fundo. A gente já tentou fazer horta, mas não virou por causa da água, sempre faltava água. Assim tinha dia que tinha que trazer tudo para a casa para ser lavado aqui, porque no final de semana, passava a turma nas estradas, jogava sabão, que a gente lavava, laranja, bagaço. Aí a prefeitura ia lá e limpava. Quando eu trabalhei no Sr. Durval Vargas 504, ele me ajudou muito nesse sentido, mas era todo fim de semana, bem!

E existiam livros e cartilhas, que tipo de material existia disponível? Eram esses aqui. (a professora apresentou vários livros, alguns estão ilustrados a seguir)

Tinha para Matemática e Língua Portuguesa? É, Matemática, Língua Portuguesa, Estudos Sociais naquela época, acho que não tem nenhum aqui, não peguei nenhum. Será que eu não peguei? Não, não peguei nenhum. (a professora, neste momento, estava olhando os livros na mesa).

1980. Depois, já no final da década de 1980 existiam alguns jogos. 504Fazenda no município de Tanabi/SP. Isso em 1982. 345

Esses daqui... tem de Matemática e de Português, eu falei: “Eu vou guardar. Sempre tem alguém que vai fazer algum concurso, eu acho assim tão bom!” Esses daqui acho que não existem mais, viu?

Esses livros aqui eram adotados pelos grupos escolares e vocês recebiam ou o professor comprava? Não, não. O Grupo Escolar que fornecia505.

Capa do livro “A mágica da Matemática”506 apresentado pela professora na entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Terezinha Monteiro Machado.

Essa coleção da Déborah, a professora - a Dona Cecília 507 - já havia comentado sobre essa coleção, dessa autora, ela também pontuou como muito bom. E então, na verdade, aqui em Tanabi adotava esse livro? Isso.

505 Fornecia para o professor, depois para os alunos. 506 MARQUESs, Y,. A Mágica da Matemática. São Paulo: Companhia Editora Nacional, (sd). 507 A professora Maria Cecília Soccio Monteiro é também colaboradora nesta pesquisa e havia comentado sobre esses mesmos livros. 346

Capa do livro “Português moderno”508 apresentado pela professora na entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Terezinha Monteiro Machado.

E aí, se o livro tivesse sido adotado no Grupo Escolar, automaticamente todos os professores das escolas isoladas tinham acesso a esse livro? e pelo que eu vejo aqui, são livros de professor. Os alunos tinham uma cartilha dessas também, era consumível? Olha, alguns tinham e outros não vinham, não. Não tinha como comprar, aí você passava na lousa, depois de tanto a gente ir em cima, fazendo os cursinhos, a gente foi pedindo, aí começaram a mandar para o aluno509.

A gente vê que são atividades para o aluno fazer aqui, no próprio livro? É, no próprio livro. Não, alguns alunos - assim - no começo, não tinham não, aí então você preparava tudo. Porque eu acho que o mais importante para o professor é levar, planejar tudo que vai ser dado, principalmente com quatro séries. Você vai com tudo em mãos510, chega lá, olha, eu acho que é beleza. Porque tinha hora que tinha coisa que você preparava que não dava tempo de dar tudo, por causa da dificuldade deles, aí você tinha (conteúdo) demais. Agora tinha uns não. Além daquilo (do planejado), dava para você dar muito mais.

508 NEVES, D. P. M., Português Moderno. 2ª série, São Paulo: Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas, (sd). 509 A professora não se lembra quando o Estado começou a enviar livros para todas as crianças. 510 A aula bem planejada. 347

Capa do livro “Matemática moderna”511, apresentado pela professora na entrevista, (sd). Acervo pessoal da profª Maria Terezinha Monteiro Machado.

Capa do livro “Mundo mágico: comunicação e expressão”512, apresentado pela professora na entrevista, 1983. Acervo pessoal da profªMaria Terezinha Monteiro Machado.

E existia na época, não sei se obrigatoriamente, o diário, onde o professor tinha que organizar o que ele ia trabalhar? Isso, tinha. Não, com certeza eu acho que naquela época era um pouco obrigatório. Porque logo que chegava o supervisor, ele olhava o diário e dava o visto. Tinha que planejar tudo, o supervisor chegava, já deixava ali na mesa.

511 NEVES, D. P. M., Matemática Moderna. 2ª série, São Paulo: Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas, (sd). 512 MORAES, L. M. de, e Andrade, M., Mundo Mágico – Comunicação e Expressão. Primeiro grau, livro 2. 2 ed., São Paulo: Ática, 1983. 348

E se não deu, o aluno não acompanhou, teria que registrar isso e retomar? Ah, sim, lógico, é isso aí! Tudo, tudo que você fazia era ali. E eu usava muito cartaz na sala de aula, tanto da primeira, segunda, terceira e quarta, no jeito deles. Tanto de Matemática, as redações, que naquela época eu dava, mas tudo da natureza, tudo da vida deles. Aí então colocava tudo exposto. Fazia assim no fundo da classe, do lado, tinha aqueles varõezinhos513 com trabalhinhos deles, tudo, tudo. Estudos Sociais, tudo da vida deles, se dava um geral, né? Lógico! você falava da cidade tudo, mas os trabalhinhos deles eram mais ali, deles ali.

Valorizava-se o trabalho final do aluno? É lógico.

E quem determinava o que e como trabalhar, existiam as leis? Os inspetores de ensino ou os diretores faziam reuniões pedagógicas e diziam o que tinha que trabalhar? Não, não, a gente fazia um planejamento 514. Todo começo de ano a gente fazia um planejamento, todo mundo. Reunia os professores no início do ano e aí a gente planejava o que a gente ia dar durante o ano.

E isso já tinha um modelo pronto? Não.

Em que vocês se orientavam? A gente olhava o livro. “Olha, este ano a gente vai trabalhar...” Então a gente dava uma olhadinha em casa, cada um fazia um. “Olha, gente, até junho vamos dar isso e isso e isso.” Aí você via se a sua classe podia, conseguia, atingia até lá ou não. Então por que a gente geralmente dava mais horas-aula. Que nem todo mundo ia embora, os bons iam embora, mas eu ficava mais com aqueles mais – assim - para a gente chegar tudo junto.

Havia essa preocupação e inclusive havia o exame final que era alguém de fora, o inspetor de ensino que às vezes vinha aplicar? Isso.

E o resultado daquela prova é o que determinava se o aluno era aprovado ou não? Isso.

E desde a primeira série havia reprovações? Olha, havia. Naquela época havia sim, eu acho isso muito importante. É o que eu acho que devia ter isso até hoje, viu? reprovação.

Ábaco, existia disponível? Olha, não, para a isolada não. Agora já no Grupo sim, no Grupo vinha sim.

Tinha o Flanelógrafo e outros?

513 Segundo a entrevistada, tinha trabalhos expostos de todas as disciplinas. Ficavam durante o ano todo. 514 A organização do planejamento era de cada professor. Para o Grupo Escolar e para as Escolas Isoladas era o mesmo planejamento. Isso nas décadas de 1970 e 1980. 349

Sim, que era de flanela, usava. A gente que fazia515.

E as cartelinhas para colocar as questões das unidades, dezenas, centenas? Eu sempre usei, tinha esse Cartaz de Pregas, eu sempre tive. Na época, no começo, na unidade, dezena e centena, cada um tinha um de sulfite, fazia um para cada um. Eu tinha, eu fazia. Tinha o grande, eu trabalhava lá. Mas, agora, cada um tinha um na sua fileira, porque depois dava o trabalho, passava na lousa, aí você passava e perguntava para um e um, e aí eles iam colocando. “Duas unidades. Onde é que você vai colocar? E a dezena, qual é a casinha da dezena?”. Eles iam colocando os palitos, eu comprava palitinhos de sorvete. Cada um tinha o seu saquinho de palito de sorvete.

E sobre o ensino de conjuntos, estou vendo vários livros já do Português Moderno, da Matemática Moderna, não tem aqui ano de publicação? (estou mexendo nos livros neste momento...) Isso aí agora eu não sei, porque eu me formei, eu já não entrei assim para o magistério, eu passei bastante, uns 7 anos ou 5, 6 anos para vir para cá516.

E foi na década de 1970 que esse livro era usado? Ah, eu acredito que sim.

Essa questão do ensino de conjuntos, então a senhora começou a lecionar, já existia, já fazia parte do currículo de matemática? Já, já.

Como era esse ensino nas séries primárias? A questão do conjunto vazio, unitário, maior, menor, como eram essas questões de ensino, eram fáceis de ensinar para o aluno? Ah, eu achava fácil, menina! Não sei se é porque eu gostava, eu achava fácil.

E isso permaneceu até o ano de dois mil e pouco quando a senhora encerrou a carreira como professora, ou não? Ah, eu sempre dei noção, viu? Pelo menos a noção eu dei, sempre dei 517. Não está assim no currículo, tem um currículo que talvez não tenha, mas eu não sei se já é o costume da gente trabalhar, então já dava noção, porque eu acho que isso daí cai muito. Que nem, não tem lá, por exemplo: um plano que vem da Delegacia de Ensino, é para você dar isso, isso e isso. Então dependendo do que é para você dar, você já introduz um pouco isso aí, certo? Muita coisa não dava? Não. Mas, olha, eu acho que sim, viu? eu acho que eu trabalhei com isso até o fim. Tinha muita coisa que você achava que era importante para eles, talvez não tinha na segunda, ia ter na terceira! Se você terminou tudo que você tinha que dar, por exemplo, naquele bimestre você deslanchava mais. E eles gostavam muito de trabalhar isso daí, viu, menina? Ah, eles adoravam, precisava ver.

515 Usava sempre, desde o início da carreira. 516 No final da década de 1970 morou em outra região e parou de lecionar. Ingressou como efetiva (por concurso) em 1981 na cidade de Descalvado/SP. 517 Desde o primeiro ano eram usados os desenhos. Depois já começava a trabalhar com conjuntos de sementes. 350

Esta cartilha é bem ilustrativa e ela começa falando em conjuntos. Cada aluno tinha uma cartilha destas em mãos? Ultimamente tinha, no começo não, no começo de jeito nenhum 518. É porque agora ultimamente não é mais esse daqui, agora eles adotaram a − gente como é que chama aquilo que eles compram, agora? Eles compram um para cada um e tinha a do professor − o ensino apostilado, é do COC. Eu trabalhei com o COC na minha época519. É bom? Era bom, sim. Mas eu achava a leitura, até hoje, a leitura muito grande, muito grande. Que nem: aqui tinha uma, mas olha, jamais tinha desse tamanho. (a professora está mostrando um texto da cartilha). Que nem: tinha uma leitura falando do futebol. As perguntas que eles faziam para responder eram completamente diferentes do que tinha no texto. Não batia uma coisa com a outra e eram grandes, grandes. Que nem: era aqui, tinha essa parte; e você virava, ainda tinha a metade da outra. Oh, um aluno de segunda, primeira não tem... e outra: parece que não chamava muito a atenção deles. E esses daqui, naquela época, parece que eles gostavam mais, eram mais fáceis de fazer a interpretação, tudo. E se te perguntarem alguma coisa é daquilo que você leu. Se está falando de futebol, vamos perguntar de futebol, não completamente diferente.

E falando em Matemática Moderna, inclusive é o título do livro. Nas reuniões pedagógicas que existiam, nos cursos de férias, falava-se em Matemática Moderna, lembra de alguma coisa? Ah não, Matemática Moderna nunca. Assim, era a Matemática em geral, nada disso aqui não.

E do Movimento da Matemática Moderna, comentários a esse respeito, discussões, tinha? Não, porque eu já peguei, quando ingressei, já foi direto aqui.

Já tinha isso? É. Eu ingressei foi em 1981 na sala de aula. Depois trabalhei um pouco nas isoladas. Porque depois já foi direto, tinha ano que você pegava, tinha ano que você não pegava 520.

A senhora que passou por experiência tanto em Grupos Escolares quanto nas Escolas Isoladas, havia diferença do que exigir do aluno? Do que e como ensinar? Não, não, era tudo igual.

Tudo que chegava no Grupo chegava na Isolada? Isso, porque o supervisor nosso da Isolada era o mesmo do Grupo.

Tem alguma história, algum comentário, que a senhora queira compartilhar? Eu acho que você já perguntou tudo, não perguntou? Se tiver alguma coisa que você queira perguntar, se eu souber responder...

518 Começou no final da década de 1970. 519 Isso em 2007, no fim da carreira. 520 O professor substituto às vezes ficava sem aula. 351

As questões eram mais sobre o ensino da Matemática, a questão do ensino de conjuntos, pontuando como positivo ou não, em que realmente ele contribui para o ensino da Matemática nas séries primárias, dada a importância do saber a tabuada, a importância de saber as quatro operações básicas. É importante, porque isso aí é a vida da gente, não é verdade? Eu acho muito importante, muito importante.

E até a quarta série, assim, quais eram os outros conteúdos trabalhados em Matemática? Existia a geometria? Tinha, mas aí já entravam os problemas. Tudo a gente procurava dar, que nem aqui: adição, subtração, conjunto, comparações, ordens, classes, números. É lógico, isso aqui mesmo, par, ímpar, tudo isso aqui. Ordem crescente, decrescente, isso daqui nós trabalhamos até o fim. (olhando para o índice de um dos livros) Muda? Muda o jeito de dar? Não sei, porque eu acho que, pode ser alguma, uma experiência que você tem, você aplica uma. Que nem: para a subtração - se você fizer assim é melhor que assim, entre a gente, mas depois você pega aquele ritmo e vai embora. Porque talvez o que você deu na sua classe não vai servir para minha classe. Tem umas que deslancham mais, outras já têm mais dificuldades. E como sempre sobravam (crianças com) mais dificuldade para mim, eu tinha que ficar mais... Mas é isso aí. Mas era bom demais.

Foi uma experiência boa? Foi, ótima, muito boa. Dá saudade? Dá. Mas ultimamente, bem, a coisa não estava... Não era por causa, fala que é a clientela, não é! É dificuldade em casa, os pais, todo mundo trabalhando, chegava à noite, não dava aquela atenção, estava todo mundo cansado. Tinha aluno que dormia na classe, o outro: “Ah, tá dormindo”. Deixa dormir. Na hora do intervalo, eles saíam, eu ia lá e falava: “A hora em que você estava dormindo dei isso aqui, assim, assim, assim”. Então... “Mas, por que você dorme?” “Em casa, tia, eu tenho que chegar e não dá para dormir”. Levantava muito cedo, ia pro Lar 521.

O modelo de família que a gente tem mudou. As mães também precisam trabalhar fora e com isso os alunos mudaram, são outros? São sim, eu acho, muitas dificuldades. Não prestam atenção nessas coisas. Fala que ele é muito assim, não é. Gente! vai ver em casa como é que está, para depois falar do aluno. Não adianta falar: “Ele tem muita dificuldade, não sei o quê”. Falei: “Calma, pára e pensa o porquê.” Que geralmente, tinha alguns que, lógico, têm mais dificuldades. Mas geralmente, era em casa, a mãe que ajudava o filho, era completamente (diferente) daquela outra que não tinha tempo.

Antes a gente via uma situação de que os pais não auxiliavam os alunos porque os pais não tinham estudo. Hoje a gente vive outro drama: são outros motivos que levam esses pais a não darem atenção para o filho em casa, com relação aos estudos. Com certeza, com certeza.

521 Se refere ao Lar das Crianças, na cidade de Tanabi/SP, local onde as crianças ficam em período oposto ao horário da escola. 352

Está chegando essa geração que passou, passou de ano... Passa, o duro é que passa, viu? não adianta você querer segurar não.

Muito obrigada pela entrevista, por colaborar com essas informações que são muito valiosas para a minha pesquisa. Está legal! Se precisar de qualquer coisa que eu puder ajudar...

Tempo de gravação da entrevista: 36min23s

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12. Professora Lourdes Rita de Paula Sanches Fernandes

Profª Lourdes Rita de Paula Sanches Fernandes, 2011. Foto tirada pela pesquisadora no dia da entrevista.

Entrevista realizada no dia 8 de junho de 2011, com a professora Dona Lourdes 522.

Então, professora, se apresente com nome completo, idade, se quiser, e primeiro vamos conversar um pouco sobre sua formação inicial, quais escolas frequentou até chegar à formação de professora. O meu nome é Lourdes Rita de Paula Sanches Fernandes, eu tenho 67 anos e comecei meus estudos com pré-escola. Quando entrei na pré-escola, eu já sabia escrever o meu nome e já lia várias coisas, que os meus pais já haviam me ensinado em casa, e então eu fiz a pré-escola. Depois, quatro anos de primário. E eles introduziram uma quinta série, no primário523, que preparava o aluno para fazer o Exame de Admissão. E para você prosseguir e fazer o curso ginasial, você tinha que passar no Exame de Admissão. Eu felizmente passei, fiz quatro séries do ginasial, primeira, segunda, terceira e quarta e depois eu fui para fazer o Curso Normal de professor primário.

E em que cidade fez o Curso Normal? Em Tanabi, tudo aqui em Tanabi524.

A senhora fez outros cursos além do Curso Normal? Sim, sempre. Eu fiz um Curso de Aperfeiçoamento525 no Instituto de Educação Padre Fidélis, aqui de Tanabi, um ano, revendo todos os conteúdos do estudo do Normal, com ampliação de conteúdos também, acrescentados a eles. E aprendemos um monte de coisas, como trabalhar em sala de aula, os estágios que deveriam ser feitos, o contato com

522 Entrevista realizada na residência da professora, na cidade de Tanabi/SP. 523 Esse curso tinha duração de um ano e servia como preparatório para o ginásio. Isso na década de 1950. Segundo a professora, durou por pouco tempo e era um curso muito bom. 524 Formou-se em 1962 no Instituto de Educação Padre Fidélis. Nos anos de 1963 e 1964 já lecionava. 525 No ano de 1965, à tarde (dava aulas de manhã). No Curso de Aperfeiçoamento teve aulas de Filosofia, Sociologia, Psicologia e Didática. Depois, nos anos de 1968, 1969 e 1970 cursou Pedagogia na cidade de Votuporanga/SP, que dista 43 quilômetros de Tanabi/SP. 355 professores que davam aula num Curso Anexo ao Instituto de Educação. Então a gente fazia estágio nesse Curso Anexo, que tinha todas as séries, de primeira a quarta série. A gente estagiava na classe, tinha que dar aulas com a presença do professor (nosso) de prática de ensino, mais o professor da classe. E nós éramos avaliadas por isso.

E esse Curso de Aperfeiçoamento, pelo que eu vejo é uma complementação importante do Curso Normal. Era obrigatório fazer esse curso um ano a mais? Olha, na época nós fazíamos porque saíamos dali já com a prática escolar, inclusive com atestado de estágio feito, isso tudo era considerado como atividades relevantes. Para aperfeiçoar mais, é claro que eu fiz. Tudo que houvesse, e que fosse em benefício próprio para melhorar minha atividade profissional, eu nunca deixei de fazer, claro que nem todos os colegas de classe fizeram, mas eu sempre fiz.

E a relação da família com a escolha de ser professora, teve alguma influência? Não, na verdade não sei nem se foi uma escolha, eu acho que houve - assim -uma sintonia, porque eu sempre gostei de lidar com pessoas, então era uma coisa que já vinha comigo, a facilidade de falar, aprendi a ler com 6 anos de idade, então isso tudo acabou influindo. Era sempre uma das primeiras alunas da sala, eu ensinava meus colegas que estavam do lado, eu funcionava como uma espécie de monitora do meu professor de classe, e eu gostava muito, porque é tão bom colaborar, contribuir! E era o único curso também que tinha na minha cidade, era o de professor. Ou então, você teria que fazer o Curso Clássico ou o Científico; eram cursos que tinham três anos, só que a pessoa não saía com diploma, ela tinha que depois fazer a faculdade para obter o diploma universitário. Eu optei, então, por uma carreira que me desse diploma mais rapidamente, porque meus pais se separaram quando eu tinha 13 anos de idade. Então para mim, naquela ocasião, eu e mais cinco irmãos e só minha mãe do nosso lado, que era doméstica, a gente tinha que correr atrás, procurar se formar o mais rapidamente possível, inclusive para ajudar nas despesas de casa. Então eu uni o útil ao necessário, que - para mim - foi muito agradável poder colaborar com a minha mãe para que ela sofresse menos do que normalmente uma mulher que se separa, principalmente na fase que aconteceu a separação dela, a mulher era muito discriminada e desrespeitada. Então a gente sofria por isso, né? nós éramos taxados de filhos sem pai, isso daí doía muito, é o bullying do passado.

A senhora chegou a exercer outras profissões, ou não? foi só na área da educação? Não! eu peguei mesmo a área da educação, me enfronhei nela e tentava a cada ano trabalhar melhor que o ano anterior. Eu abracei a causa da educação da criança, assim, como uma coisa maravilhosa, que para mim é, porque você vê um aluno da primeira série terminar o ano lendo, escrevendo, refletindo, estabelecendo comparações, não tem como a gente não ficar contente!. Você vê que o fruto do seu trabalho surtiu efeito, isso é gratificante. E na época, por incrível que pareça, nós ganhávamos muito mais do que se ganha hoje. Naquela época ganhávamos quase igual a um juiz de direito, era uma diferença mínima do juiz de direito, tanto é que eu comprei carro zero quilômetro com 19 anos de idade, com o meu dinheiro, com a minha luta, meu suor, eu adquiri. Então, por aí você vê como o nosso ganho era muito superior e nós éramos muito valorizadas, em todos os setores que nós íamos. Eu não me lembro de nenhuma ocasião em que eu tivesse sido criticada ou maltratada, muito pelo contrário, nós éramos reverenciadas, este é o termo correto: reverenciadas. Então nós éramos bem tratadas em qualquer setor onde nós 356 estivéssemos, fosse numa faculdade, fosse para programar uma palestra, tudo eles tinham a maior confiança na pessoa da gente, e sem falar o respeito e o carinho que eles demonstravam. Isso tudo não tem dinheiro que pague.

Em quais anos lecionou e em quais escolas? foram só Escolas Isoladas, ou também Grupos Escolares? Olha, é o seguinte: eu recebi o diploma de normalista, quer dizer, professora primária em 1962 e no ano seguinte eu já comecei a lecionar. Porque naquela época, era pela nota da aprovação do Curso Normal que se fazia a classificação para dar aula, e como eu tinha uma avaliação bem alta, então eu consegui pegar uma escola rural logo no primeiro ano de formada. Eu tinha 18 anos e não parei mais: trabalhei quatro anos com escolas isoladas rurais526. E eu tinha que morar no bairro, na casa de uma família, normalmente de um aluno, e só vinha para casa no sábado no final do dia, porque naquela época tinha aula de segunda a sábado. Era seguido e como não havia meio de transportes, inclusive a grande maioria das estradas era de terra, não tinha linha de ônibus e tudo o mais, eu tinha que morar na fazenda, ficava em casa com a família só no domingo. Aí, na segunda-feira bem cedo, eu ia novamente para a zona rural.

E como era a organização das séries, no caso eram classes multisseriadas? As classes eram assim: uma escola rural que tivesse o número de alunos mais reduzido, tipo 15, 18, nessa faixa, 20 em torno, mais ou menos desse número, agrupavam- se os alunos em três séries. Então ali só ministrava aulas de primeira, segunda e terceira. Para o aluno cursar a quarta série, o pai tinha que levá-lo para uma escola maior, sempre a cavalo, levava, buscava, essas coisas.

Existiam escolas isoladas rurais que tinham quarta série, mas não eram todas? Tinha. As escolas rurais devido a um número maior de alunos, tipo 38, 40. É claro que a gente fazia pesquisa antes da clientela. Então aí eles dividiram duas turmas, a primeira e a segunda séries, juntas. E a terceira e quarta séries, juntas. Então para trabalhar era um pouco mais fácil, porque a primeira e a segunda têm muitos pontos em comum, assim como a terceira e a quarta séries. Inclusive quanto às disciplinas, só alterava um pouco o conteúdo, mas aí na hora de trabalhar um conteúdo diversificado, a gente dividida as turmas. Então, enquanto uma turma fazia uma leitura reflexiva, a outra estava adquirindo um conhecimento que era próprio da série dela.

Existiam atividades comuns? Existiam e tinha algumas que eram diversificadas por causa do nível de rendimento.

E como eram os alunos dessas escolas rurais?

526 Em 1963 na Escola de Emergência do Bairro Malhador; em 1964 na Escola de Emergência da Fazenda Barra Mansa; em 1965 na Escola de Emergência do Sítio Canela, todas no município de Tanabi/SP. E em 1966 em uma Escola Típica Rural do município de Américo de Campos/SP, que dista 59 quilômetros de Tanabi/SP. Nessa escola do município de Américo de Campos/SP, tinha o zelador que cuidava da horta e sua esposa cuidava da limpeza da escola e da merenda. Na escola tinha a sala de aula, refeitório (varanda) e ali estudavam crianças de 1ª e 2ª séries de manhã e 3ª e 4ª séries no período da tarde. Em 1968 se efetivou, por concurso, em uma Escola isolada no município de Cosmorama/SP, que dista 24 quilômetros de Tanabi/SP. 357

Olha, da minha parte, dos quatro anos que eu trabalhei, eu não tenho nada a reclamar, muito pelo contrário, eu me dei bem, eu me adaptei bem à zona rural, aprendi muita coisa com pai, com aluno, que eu desconhecia, porque o meu meio era urbano. Mas foi bom, aprendi muita coisa. O que achei mais importante nisso tudo é que o aluno tinha uma postura simples, humilde, mas por outro lado, também, eles captavam com certa facilidade as explicações que a gente dava. Eu não sei se seriam todos muito inteligentes, mas que eles aprendiam e com qualidade, aprendiam! Então a disputa entre eles não era uma disputa como é hoje, de um querer prejudicar o outro, não! Era uma disputa prazerosa. Se um sabia uma determinada poesia de cor, o outro também queria aprender, decorar. Quando tinha uma festividade cívica, nossa! um queria recitar, o outro também, o outro também. Fazíamos cultos semanais com a bandeira brasileira e o canto do Hino Nacional. Então, qualquer aluno da terceira, quarta série sabia cantar o Hino Nacional inteirinho e a letra correta, coisa que hoje, você vê, tem alunos até de universidades, professores, que não sabem direito a letra do Hino e as crianças daquela fase sabiam. Ensinávamos todos os hinos: Hino Nacional, o Hino à Bandeira, o Hino da Independência e o da Proclamação da República. E, por incrível que pareça, todos sabiam cantar, cantavam juntos, num coro só.

Falando da organização específica dessas escolas rurais, existiam os inspetores de ensino que visitavam essas escolas, de que forma eles atuavam? Olha, nos primeiros tempos eu não tinha inspetor de ensino, porque naquela época não havia concurso, então aqueles que já estavam na rede, claro que eles iam procurar as cidades maiores, mais confortáveis e tudo o mais. Em geral a escola isolada não tinha inspetor de ensino, tinha assim um ou outro que era escalado, pra ir lá numa ocasião esporádica fazer uma visita, mas não era uma coisa constante e que houvesse por parte dele um apoio pedagógico ao trabalho da gente. Eles, em geral, até se manifestavam assim: “Você sabe muito mais do que eu, do que deve ser feito em sala de aula”. “Eu não tenho como lhe orientar”. Eu cansei de ouvir isso. Mas por quê? Porque ele era esporádico, ele passava às vezes na escola a cada dois, três meses... isso não é inspeção escolar.

Na verdade ele cumpria uma formalidade? É, porque ele tinha que ir também em várias escolas, porque tinha muito pouco inspetor escolar e cidade pequena não tinha inspetor escolar, só cidades maiores527.

E quanto à organização dessas escolas, merenda, matrícula, o dia a dia? Era tudo a cargo do professor. Então, tinha livro próprio. Fazíamos a matrícula dos alunos, juntávamos a documentação, tudo. Além disso, nós fazíamos um tipo de um boletim mensal, ou boleto mensal, tanto faz. Ali registrávamos frequência, tinha que dar a porcentagem de frequência. Se um aluno faltava um dia ou dois (dias), a gente já ia atrás, eu fazia visitas domiciliares, principalmente com aqueles aluninhos que estavam – assim - meio para trás, que não estavam tendo um acompanhamento como a gente gostaria. Então eu fazia visita domiciliar528, procurava conhecer as famílias, os parentes mais próximos, vizinhos. Isso tudo eu sempre fiz, porque você tem que conhecer o lugar onde você atua. Aí a distribuição dos alunos nós mesmos fazíamos, baseados no levantamento feito.

527 Em Tanabi/SP, a escola Ganot Chateaubriand foi Sede de Inspetoria e Sede de Escolas Isoladas. 528 Era um costume da professora. 358

Nós que fazíamos a merenda das crianças; os alunos ajudavam assim na limpeza da sala de aula, alguma coisa mais relevante. E os meninos tiravam água no poço, que era aquele de sarilho, balde, corda e ajudavam na limpeza também.

Essa divisão dos alunos, que era feita pelo próprio professor, era por idade, na série específica? Não, não era por idade, era de acordo com a série. Então o aluno que ia cursar a primeira série ia pertencer à turminha da primeira, e eles ficavam todos na mesma sala. Os que estavam no nível de segunda, a mesma coisa. A gente fazia uma avaliaçãozinha529 antes, para ver se ele estava realmente dominando o conteúdo para prosseguir os estudos. Inclusive, era muito raro você encontrar um aluno de segunda série que não estivesse completamente apto para cursar a segunda série, porque faziam a primeira série tão bem feita que eles saíam dali alfabetizados. Eles liam textos tanto curtos como compridos, eles entendiam, eles interpretavam, eles anotavam, faziam ditados entre eles, os próprios alunos entre si faziam ditados, leituras, um cobrando do outro, era um negócio até um tanto engraçado. E por outro lado, eu ficava até vaidosa com isso, porque eu percebia que eles estavam aprendendo muito bem, a ponto de um até ser - entre aspas - “um professor” do colega. E isso daí só vinha a acrescentar, no sentido de aprender cada vez mais. E é por isso que não havia essa competição desvairada como tem hoje em dia, que um quer prejudicar o outro, passar a perna no outro, né? Tudo assim com aquele intuito de se dar bem, era uma competição sadia.

E falando um pouco mais sobre as aulas, como o professor administrava a divisão das disciplinas? Olha, eu particularmente fazia assim: primeiro eu analisava o número de alunos que eu tinha. Teve ano que eu dei aula para uma classe com três séries: primeira, segunda e terceira. Então eu tinha que me desdobrar para atender as três séries. Eu fazia assim: enquanto eu estava com atividade, que eu tinha que estar junto com o aluno acompanhando, os demais estavam em uma mais reflexiva, de leitura, uma coisa uma pouco mais suave, porque ele não tinha naquele momento o apoio do professor. Porque se fosse ficar me interrompendo o tempo todo, prejudicava aquela turminha que precisava mais de mim. Então eu tentava controlar assim, por nível de adiantamento.

E como eram feitas essas divisões, era por tempo, ou não? Eu normalmente procurava, e claro, tinha sempre o relógio à minha vista, inclusive um na parede também que eu fazia questão, acompanhar mais ou menos um período de tempo. Por exemplo: Matemática e Língua Portuguesa, que eu sempre considerei como matérias mais fundamentais, não que as outras não tenham importância, as outras também tinham, mas eu considerava leitura e escrita, cálculo como disciplinas mais fundamentais, para o dia a dia da criança. As outras, como complemento, que eram História, Geografia, Ciências, Saúde etc., o Culto à Pátria e tudo o mais. Então, eu dava mais aulas de Matemática e Língua Portuguesa e procurava sempre trabalhar todos os dias com as duas. Mas não controlava muito o horário. Se eu via que uma determinada programação a classe já havia dominado, não tinha importância que não tinha dado uma hora, eu partia para

529 Essa avaliação servia para o professor conhecer o aluno. 359 outra, porque você tem ganhar tempo e não perdê-lo530.

Agora vamos mais especificamente na Matemática, no ensino de Matemática. Quando e como eram introduzidos os números? Eu partia primeiro da realidade deles, já conhecia as famílias, as crianças, porque as visitas eu fazia no início do ano, logo nos primeiros dias de aula, então eu conhecia os alunos, eu sabia o que eles podiam dispor em casa e trazer como material para a escola, para leitura, para escrita, para cálculo e tudo o mais. Então, no cálculo, eu sempre pedia para eles trazerem coisas que eram do ambiente deles, por exemplo: sementes, conchinhas, grãozinhos, pedacinhos de papel que eles mesmos picavam, recortavam, traziam com figuras geométricas. Faziam a disposição na carteira, em linha reta primeiro, para ensinar a adição e a subtração numa linha do caderno. E depois montava no sentido vertical, no segundo momento. Até chegar o ponto de a criança calcular de cabeça e já dar o resultado. Então é claro que era tudo compassado, aos poucos. E a gente se desdobrava muito, era muito estafante e cansativa a jornada de trabalho lá.

Então havia sempre essa relação com o concreto, ao aprender a quantidade? Sim e primeiro com coisas do ambiente deles, por exemplo: sementes de frutas, frutinhas pequenas que às vezes eles tinham, traziam sementes diferentes, aí eu já aproveitava para ver alguma noção de Ciências. Eu tentava assim, dar um ensino de maneira entrosada, aproveitando aquele material, e partindo em outros ramos também, para buscar a curiosidade do aluno. E ele mesmo passava a estabelecer comparações, por exemplo, ele dizia assim: “Ah, dona Lurdinha, a semente da pinha é diferente da semente de laranja”. Aí eu perguntava: “Por que você acha isso?” “Olha, pelo tamanho, pela cor, a semente de laranja vai dar um pezinho de laranja, a semente da pinha vai dar um pezinho de pinha.” Falava do tamanho que a planta poderia ter, até dar novos frutos. Então eram coisas assim, que aos poucos, dependendo do que se conversava em sala de aula, nós tínhamos que ser criativas a ponto de partir para outras minúcias, para buscar curiosidades do aluno, inclusive para estabelecer comparações, isso é muito importante.

E falando desses materiais, sementes, quais outros estavam disponíveis? Existiam alguns disponibilizados pelo Grupo Escolar, Ábaco, por exemplo? Não, nada. Não tinha nada, nada, de escola. Até o giz nós comprávamos, mesmo porque na época, como eu lhe disse, a gente ganhava muito melhor do hoje; hoje é uma migalha. Dava para fazer, hoje não dá mais. O vale-refeição de um professor hoje é R$ 3,50. Vê se você compra alguma refeição com R$ 3,50. Você compra uma coxinha, ou duas e olha lá.

E outros materiais manipuláveis, existiam? Nós confeccionávamos. Quando eu fiz o Curso de Aperfeiçoamento, eu já estava dando aula em escola isolada. Então, o que eu fiz? eu peguei e preparava os materiais nas aulas de prática de ensino. Então, antes de eu ir para a escola isolada, eu já tinha preparado uma base de materiais. Eu usava cartolina, eu usava tinta guache, aquela aquarela e por aí vai. Então eu fazia o molde e levava, mas na sala de aula quem fazia era o aluno. Ele

530 A professora é quem fazia o seu horário. 360 pegava o molde, fazia o traçado, ele recortava, era bom porque atividade manual é muito importante, inclusive para manusear lápis, para escrever. Já aproveitava para dar a diferença entre as cores, qual cor combinava com qual cor, ensinava também as cores do arco-íris, de como uma cor combinando com outra, dava uma secundária, isso tudo eles aprendiam, mas assim, na prática, fazendo o desenho, usando a cor. Ele até escolhia as cores que ele queria, ele falava: “O cabelinho desse menininho eu vou fazer pretinho, o do outro eu vou fazer um pouquinho mais claro, cabelo enroladinho, o do outro eu vou fazer loirinho”. Quer dizer, ele mesmo distinguia que cores ele gostaria de utilizar.

Então já servia pra uma atividade multidisciplinar? Ah, eu acho, inclusive na área de Educação Artística, eu acho assim que a criança se tornava muito mais criativa, porque a partir daquela base que ela recebia, criava outros, então ela se tornava mais criativa. Além disso, ela apurava mais o seu bom gosto, no traçado, nas cores utilizadas, em outras comparações que entre eles mesmos faziam. Eu gostava muito, eu achava que era muito importante isso aí. Muita gente pode achar que era bobagem, mas eu nunca achei, eu acho que só acrescenta, tudo o que a criança aprende não é em vão, ela de uma maneira ou de outra vai utilizá-lo, e quanto mais agradável for a atividade, mais ela utiliza e aprende muito mais.

E livros, cartilhas, apostilas, tinha? Cartilha eu utilizei, no período que eu dei aula para escola isolada, a Caminho Suave. Porque ela tinha partes na cartilha que poderiam ser aproveitadas para os alunos de segunda série, então eu tentava mesclar o ensino da primeira série e da segunda, naquilo que era pertinente e que havia possibilidade de haver um acompanhamento da primeira para a segunda, eu tentava aproveitar o máximo o material que eu tinha.

Os alunos tinham a cartilha? Tinham a cartilha, os pais compravam531.

Isso foi década de 1960? Na década de 1960.

E outros livros? Os outros livros, por exemplo, de segunda, terceira e quarta séries, tinha livros de leitura532. Mas não era aquele livro com muita figura, muito colorido, não, eram livros que eu até considerava um pouquinho cansativos, porque eles tinham mais textos que figuras, e as figuras eram (em) branco e preto. Mas por incrível que pareça, eles acostumaram com os livros de tal maneira que eles adoravam, porque ali tinha poesias, era uma leitura bem variada. Não é essa coisa chata, maçante que eu vejo nos livros de agora, essas tais de apostilas, que fica rotulando o aluno, que fica deixando ele com uma cabecinha quadrada que só vê aquele horizonte, não vê a amplitude, certo? Então eu gostava dos livros, eu achava que eles eram muito interessantes, porque ali tanto tinha poesias, como tinha

531 Os pais que podiam comprar, compravam. Alguns eram doados. 532 Alguns pais compravam. Alguns livros eram confeccionados com textos elaborados pelas crianças. Eram livros com figuras, desenhos. A professora organizava a “Hora do Conto” na qual os alunos podiam contar histórias sobre assuntos que haviam estudado. Isso na década de 1960. 361 fábulas, contos. Tinha, por exemplo, fatos históricos, aqueles mais curiosos, aqueles mais interessantes. Então eu acho que era um livro, assim, multidisciplinar.

E lembra de algum autor, ou de alguma coleção que tenha marcado? Eram tantas. Eu não lembro muito bem.

A coleção da Déborah, da Yolanda Marques? Não, eu não sou dessa fase, eu sou anterior.

Tenho alguns aqui. (neste momento mostrei alguns livros que estavam comigo: um livro da autora Déborah Pádua Mello Neves; um da Yolanda Marques e um do Osvaldo Sangiorgi)

Eu sou anterior a essa fase desse tipo de livro didático. Esses livros não são da minha fase. Os livros que nós utilizávamos eram livros que tinham mais textos, como eu lhe disse, figuras em branco e preto, o único que tinha um conteúdo assim, um pouco mais agradável, e com figuras e tal, era a Caminho Suave, que eu usava na primeira série e na segunda série também.

E com relação ao currículo de Matemática, quem determinava o que e como trabalhar nas séries primárias? vinha um planejamento pronto, via Delegacia de Ensino ou do próprio Grupo Escolar? Olha, a Secretaria de Educação do Estado, naquela época ela trabalhava de verdade, porque hoje não faz nada, muito pouca coisa e ruim de qualidade. Eles mandavam uns livros, tanto para primeira, como para segunda, para terceira e para quarta. Eram livros de Apoio Pedagógico533. Então, nesse livro, eles davam sugestões de textos, e de como trabalhar aquele texto. Só que eles não davam uma regra pronta, não, nós tínhamos que pôr a cabeça para funcionar em cima daqueles modelos que eles mandavam, e criar outros. Às vezes o próprio aluno participava da história, a gente ia anotando na lousa a frase e eles lá da carteira já complementavam, sabe. “Ah, vamos colocar isso daqui?” Aí eu concordava: “Vamos!”. Dali a pouco outro dava outra sugestão. “Então vamos acrescentar...”. Eles cooperavam e colaboravam com os textos, era uma maravilha, aprendiam muito, muito mesmo, porque quando o aluno cria, ele gosta mais e ele não esquece.

E falando do currículo da Matemática, se lembra de alguma grande mudança que sofreu o ensino de Matemática, como a entrada de novos conteúdos? Por exemplo, conjuntos? Não. A fase que eu trabalhei era baseada mais no raciocínio. Nós éramos, assim, tendentes mais para ensinar o aluno a raciocinar. Então a gente partia de problemas mais simples, que ele raciocinava e respondia na hora, oralmente. Aí depois passava para um escrito. E era assim: a gente elaborava o texto, às vezes os alunos, conforme eu lhe disse, cooperavam na elaboração, mesmo de problemas, e depois na resolução. Então nós

533 Na capa vinha escrito o nome da disciplina (Matemática, Português, Ciências, História ou Geografia). Esses livros que traziam textos complementares, com roteiros para trabalhar determinado assunto, não direcionavam, davam sugestões de atividades. Cada professor montava o seu material didático. Isso na década de 1960. 362 dividíamos a folha em duas partes, uma parte da folha, do lado esquerdo, era indicação de quais contas deveriam ser feitas para solucionar o problema e do lado direito, a solução, que era a forma como o aluno usava para chegar naquele resultado. Assim incentivava ele a raciocinar. Por quê? Porque um coleguinha poderia usar uma inversão de conta e chegar no mesmo resultado que o outro chegou. Então, é a partir daí que você desenvolve o raciocínio do aluno e ele passa a comparar: “Nossa, eu fiz essa conta e deu 17. Do meu colega Pedrinho, ele fez de uma outra maneira e também deu 17”. Porque aí é que está o nó do raciocínio: você pode procurar caminhos diferentes, alternativas e chegar ao mesmo resultado.

E nisso tudo, tabuada era muito importante? Demais. Eu acho que essa história de ficar em sala de aula com máquina calculadora, e sei que tem muita aparelhagem por aí, em alguns aspectos, acho condenável. Porque acaba tirando do aluno a capacidade de memorizar: “Ah, eu não vou aprender tabuada não, eu pego a calculadora e faço a conta”. Mas você não pode usar a calculadora a vida inteira, então eu acho que a memorização é importante. Porque vai chegar um momento em que essa pessoa, às vezes, vai ter que exercer uma profissão, trabalhar em um setor que requer raciocínio, requer rapidez, então a memorização ajuda muito. Eu sou a favor de que o aluno deve saber a tabuada, para facilitar o cálculo, a tarefa, porque senão fica toda a vida ali com calculadora. Sou contra o uso de celular em sala de aula, eu acho que não deve ter, porque dispersa a atenção do aluno. E computador também, em alguns aspectos, eu acho condenável, porque às vezes o aluno não pára nem para pensar e para elaborar um texto. O que acontece? Ele vai no computador, entra lá na internet, copia um texto, que vai aparecer na folha do outro, na folha do outro, na folha do outro, praticamente textos iguais. Então eu não vejo nenhuma vantagem nisso, porque o aluno, na verdade, ele não pesquisou, ele transcreveu um texto que vai aparecer na folha de todos os colegas da sala. Isso não é pesquisa, a pesquisa você tem que ler diferentes textos, procurar diferentes fontes e a partir dali elaborar um texto próprio, que não vai ser igual ao do Pedrinho, do Joãozinho nem da Mariazinha.

Então, assim, sobre o ensino de conjuntos, não há lembranças? Olha, conjuntos, nós não ensinávamos534 da forma como se fala hoje com, por exemplo, usando algum tipo de letra, que vai simbolizar o conjunto zero, ou unitário, e coisas assim. Nós utilizávamos em forma de desenhos, de números, e fazíamos uma linha circundando aquele conjunto, isso nós fazíamos. Mas ficar baseando em dados, assim de abrir chaves, fechar chaves, ou então colocar um sinal para representar uma operação, aí isso não. A gente procurava sempre falar a palavra completa, na íntegra.

Não tinha, por exemplo, o símbolo do conjunto vazio, desenhava-se um conjunto vazio, é isso? Não, nós dávamos de maneira prática. Que na verdade um conjunto vazio nem era bem um conjunto, porque ele não tinha nada dentro. E um conjunto unitário era aquele que tinha um elemento. Mas o aluno fazia sempre em forma de desenho, com recortes, partia

534 Na década de 1960. 363 sempre do concreto, para depois abstrair535.

E Movimento da Matemática Moderna, se lembra de alguma reunião, de comentários a respeito desse movimento? Que inclusive colocou o ensino de conjuntos nas séries primárias. É, nós trabalhávamos conjuntos, mas da maneira como eu lhe falei, sem muita minúcia, letrinhas, detalhezinhos, a gente batia mais no concreto, para que o aluno compreendesse exatamente o que a gente estava falando536.

E essa forma de abordar os conjuntos já vinha nos livros? Não. Muitas coisas eram criadas por mim mesma, com o dia a dia. Porque, às vezes, tinha aluno que tinha mais facilidade para aprender de uma maneira que de outra, então você também tem que ir ao encontro do aluno, né? Aquele demora um pouco mais para aprender, mas você não pode abandoná-lo, você tem que trabalhar com ele, para que ele possa se sentir bem, valorizado, e saber que ele é capaz de realizar aquela tarefa, só que de uma maneira um pouquinho mais lenta que a do outro colega.

E com relação às avaliações, existia um exame final que era, muitas vezes, apresentado por outros professores. Desse exame dependia a aprovação ou não do aluno? Havia. Havia e eu até acho que era bom esse sistema 537. Porque você vê, se fosse eu mesma elaborar o exame, é claro, não que eu fosse desonesta, mas eu iria forçosamente, ou pela prática, abordar aqueles temas que a gente já sabia que era do domínio deles. Agora, vindo uma pessoa, um inspetor, ou um professor de outra escola para aplicar uma prova, era bom, no sentido de que o aluno encontrava ali algumas novidades, mas que ele tinha capacidade para comparar com aquilo que o professor dele tinha feito. Então, é uma capacidade que indica que ele aprendeu mesmo, porque ele leva de uma situação para outra. Agora, eu sempre gostei que fosse alguém de fora para fazer a avaliação, só que em duas ocasiões eu saí um pouco entristecida, porque eu percebi que um inspetor escolar, e uma professora que foi convidada para aplicar a prova, eu achei que eles agiram de maneira discriminatória. O aluno usou uma linguagem, que era própria da região onde ele morava, coisa que um inspetor escolar desconhecia, então ao invés de ele perguntar ao aluno o que ele queria dizer com aquilo, ele colocou errado. E inclusive, teve um caso de um aluno, esse eu não esqueço, encontro com ele sempre, eu me sinto culpada por isso. Porque era para escrever sobre uma boa ação que ele praticava. E ele, menino da roça, simples, pobre, colocou que às vezes ele caçava codorna e pássaros, que levava para casa para fazer e comer. E o inspetor reprovou o aluno por causa disso, falou que ele estava destruindo a natureza, aquelas coisas. Agora eu achei errado. Você sabe por quê? Porque a realidade desse inspetor escolar era uma, e a do meu aluno, que se chamava Luiz Carlos, era outra. Porque uma criança que mora na zona rural, que às

535 Com o tempo, o aluno não precisava mais usar os desenhos, ele já falava em “elemento”, já abstraía. 536 Segundo a entrevistada, na reunião pedagógica mensal, os supervisores preparam os conteúdos e traziam alguns materiais que poderiam ser utilizados nas aulas de Matemática. 537 Segundo a professora, essas avaliações vinham lacradas. Foi assim durante os quatro anos em que ela trabalhou nas escolas rurais. Tinham provas todos os meses, a prova final vinha da Delegacia. Isso nas décadas de 1960 e 1970. 364 vezes tem falta de alimento em casa, que pode acontecer, né? de ter o arroz, de não ter o feijão, de não ter uma carne, se ele conseguir pegar uma codorna, uma perdiz, ou um tatu, como ele citava lá no texto, a intenção não era de acabar com a natureza, a intenção dele era de ajudar no sustento da casa. Eu não acho que ele errava de caçar uma codorna. Por quê? Porque ia alimentar ele, os irmãos e os pais. Agora, destruir a natureza, eu acho que é aquele que não obedece o que a lei determina e acaba depredando o ambiente, e tudo por ganância, por dinheiro, por facilidade, porque não ama a natureza. Agora o pessoal da zona rural, eles amavam a natureza, eles mesmos construíam as represas, colocavam os peixes para procriar, tratavam deles. As árvores, eles não podavam, deixavam crescer, dar frutos. Eu nunca soube de algum que cortasse uma árvore, quer dizer, eles amavam a natureza. O fato de caçar pássaros ou uma perdiz, ou o que seja, eu acho que era por necessidade de alimentação, como o fruto também.

Como a senhora teve as duas experiências, a de trabalhar nas Escolas Isoladas rurais, viver toda essa experiência e depois trabalhar como professora primária também em Grupos Escolares daria para elencar algumas diferenças ou semelhanças nessas duas realidades? Não pela localização das escolas, urbana e rural, mas pensando que na rural tinha duas séries ou três e na mesma sala e no Grupo escolar, uma única série? Olha, eu acho assim: no meu caso, como eu trabalhei vários anos com escolas rurais, eu era elétrica. Procurava aproveitar ao máximo tudo o que era possível, entrelaçar as disciplinas naquilo que era semelhante, a gente fazia todo esse jogo com materiais que eram do local e tudo o mais. Então eu acho assim: que para mim foi mais gratificante trabalhar com a Escola Isolada, porque o espírito criador aflorava mais, a gente se sentia mais realizado. Agora, trabalhar com Grupo Escolar eu achava um inconveniente, era com referência aos materiais. Em geral eles eram impostos pelos diretores. Livros, cartilhas, tinha que usar aquilo.

Mas esses materiais também não eram distribuídos para as Isoladas, porque o Grupo servia como Sede de várias Escolas Isoladas? Sim.

As Escolas Isoladas não necessariamente tinham que usar esse material? Mas acontece que as Escolas Isoladas eram vinculadas a uma escola específica. Poderia ter na cidade outras escolas sem nenhuma vinculação com a escola rural 538. Então o que acontecia? Os livros que eram distribuídos, em geral, eram comprados pelos pais, conforme eu lhe disse, a entrega de material ocorreu muitos anos mais tarde. E eu senti, assim, que na escola em que eu trabalhei, Grupo Escolar, que tinha uma série só, às vezes eu parava até para sentar, descansar um pouquinho, esperar fazer. No começo eu achei muito chato, parecia que eu fazia muito pouco, que eu não estava acostumada com aquele tipo de ritmo, mas com o tempo a gente vai acostumando. Agora é claro que o aprofundamento de conteúdo para quem trabalha com uma série só é muito melhor. Mas chegou ao ponto que numa escola, inclusive isolada, que eu tive, com terceira e quarta séries, eu me lembro que até noções de álgebra, aquela noção básica, eu dava para os alunos, inclusive nos probleminhas. A incógnita representava por um quadrinho e eles

538 Em Tanabi/SP, quando o número de escolas isoladas cresceu demais, a escola João Portugal passou a ser Sede também. 365 dominaram, assim, com uma tamanha de uma facilidade, que eles pediam depois para eu dar probleminhas mais difíceis, que aqueles eram simples demais. Então eu fiz isso tudo, e cada realidade é uma realidade, depende muito da localização. Se é uma escola de Distrito, tem um nível um pouco mais rural. Se é uma escola de Sede, um nível mais urbano, tem isso também.

A senhora gostaria de falar mais sobre o ensino dessa época, nessas escolas isoladas, ou até mesmo sobre o ensino da Matemática? Olha − isso é um arremate − o melhor, o que achei importante nisso tudo que a gente conversou, é que eu tentei enaltecer o poder criativo do aluno, que hoje não se leva mais em conta, muito pelo contrário, a criança é podada. Hoje, se ela for muito criativa, ela é considerada chata, é aquele aluno que atrapalha a aula, coisas assim. Eu nunca vi por esse prisma, eu sempre valorizei a criatividade. Agora outra coisa que eu acho relevante colocar é que o aluno de antigamente, da minha fase, era mais observador, ele empregava mais o raciocínio, tanto que eles executavam a tarefa, resolviam problema, às vezes até de diferentes maneiras, a ponto de eu ter aluno que fazia cálculo de cabeça e dava o resultado antes de elaborar as contas. Isso é extremamente gratificante, é ótimo. Isso, se for colocado hoje, é provável que tenha professor que vai achar ruim, porque ele vai dizer assim: “Ah mas você acabou muito cedo, você está atrapalhando, os outros ainda não fizeram”. Quer dizer, ao invés de premiar, de elogiar aqueles alunos que se sobressaem mais por uma capacidade individual dele, eles ficam chateados. Por quê? Porque eles não são valorizados, eles querem manter todos no mesmo pé, no mesmo nível. Eu acho que está errado! Cada um tem um nível de capacidade, de compreensão, e se um demora mais para aprender que o outro, ele não pode ser abandonado de jeito nenhum, como a gente vê hoje em dia, ele é abandonado, discriminado, fica encostado na sala de aula. Por quê? Porque o professor já sabe que no final do ano, o aluno tendo aprendido ou não, estando preparado ou não, com a Promoção Automática vão passar todos. Só para você ter uma ideia: nos meus últimos anos como diretora de escola 539, eu era muito cobrada pela Diretoria de Ensino, por supervisor, por Delegado de Ensino. Por quê? Porque eu seguia exatamente aquilo que a Lei determinava, que era fazer reuniões com o Conselho de Escola e com o Conselho de Classe e eu ouvia realmente a opinião das pessoas, pais, alunos, professores. Sempre ouvi, porque eu acho que cada um tem uma realidade para mostrar, que às vezes não coincide com a do outro, e então eu fazia isto. E quando ia resolver promoções de alunos, fazia reunião de Conselho de Escola. Agora, quando o governador Mario Covas 540 entrou no governo do Estado, eu me aborreci muito, e de lá pra cá, eu acho que o ensino no Estado de São Paulo ele está decaindo cada vez mais. Ele tem ganhos em alguns aspectos, mas eu acho que a decadência é gritante, não tem como não perceber. Por quê? Porque primeiro com essa história de Promoção Automática, o aluno não pode ser reprovado e eu fui perseguida pela Diretoria de Ensino assim, no sentido de cobranças, de ficar ali pegando no meu pé. Por quê? Porque ouvindo o Conselho de Série, de Classe, de Escola, nós retínhamos aqueles alunos, não era

539 Como professora trabalhou de 1963 até 1985 (em Escolas Isoladas e Grupos Escolares). Tanto como professora quanto como diretora, chegou a trabalhar em outros municípios além de Tanabi/SP. Trabalhou até o ano de 2007 (os últimos anos foram em Tanabi/SP). 540 Mario Covas foi governador do Estado de São Paulo do ano de 1995 até 22 de janeiro de 2001. 366 um quantidade grande, mais nós retínhamos aqueles que não tinham condições de prosseguir os estudos na série seguinte. Chegou ao ponto de eu até acabar discutindo com Delegado de Ensino, com supervisor de escola que nunca aparecia na escola para fazer visita pedagógica nenhuma, mas depois queria que eu assinasse Termo de Visita, como ele tendo comparecido à escola, para ganhar diária. É claro que eu me recusei, eu jamais assinei um Termo de Visita que não foi realmente realizada. Eu fui, assim, um tanto enérgica com as coisas, honesta demais, eu colocaria isso. Porque hoje a honestidade está virando um artigo meio que de luxo. E então eu fui muito pressionada, né? inclusive ameaças, advogado que era mandado na escola para pressionar para passar aluno. Então eu sofri muito, nos meus últimos anos de trabalho, porque eu me senti injustiçada por causa dessas pressões, dessas perseguições, veladas ou não veladas, e que tirou de mim o brilho e a vontade de continuar na escola.

Gostaria de agradecer muitíssimo a atenção, a paciência, o cuidado em anotar algumas coisas e agora o cuidado também com a entrevista, todas essas questões são valiosíssimas para a minha pesquisa, gostaria de agradecer a colaboração. Eu fiquei muito satisfeita em poder conversar com você, porque dá para perceber com muita clareza que faz um curso muito bem feito pelas questões que você abordou. E espero que, quem sabe no futuro, o governo do Estado de São Paulo e a Secretaria da Educação pensem melhor e tentem mudar esse caos que virou a educação no Estado de São Paulo, no sentido de corrigir esses erros. Embora eu não acredite muito, porque como tem o componente político, em geral, nem sempre as pessoas mais capacitadas são as escolhidas. Olha-se muito a cor do partido e coisas assim, e é por causa disso que a qualidade do ensino só tem decaído, e as Universidades Federais e as Estaduais ainda têm cursos muito bons, mas as faculdades particulares, a grande maioria, só visam dinheiro, mais nada. Eu fui convidada para trabalhar nelas e eu não quis. Sabe por quê? Porque queria apenas que você fosse lá fazer figuração, e eu não me presto a isso, eles queriam era que promovesse, porque o interesse era financeiro. Então você vê que não há assim aquele objetivo primordial que é de fazer o aluno aprender. Aprender coisas boas, corretas. Então eu não me presto a isso que eu estou vendo por aí. Você está fazendo qual faculdade?

É mestrado em Educação, pela Faculdade de Educação da Unicamp. Maravilha, eu já fui à Unicamp umas duas ou três vezes, participar de cursos 541. Eu trabalhava perto da região de Ribeirão Preto 542 uma época, fiquei até afastada um pouco da minha casa e eu tive a oportunidade de ir lá, acho uma excelente escola e valorizo muito. E estive também na USP, em São Paulo, também durante um Curso de Aperfeiçoamento de Supervisor Escolar. E eu acho sinceramente que as Faculdades Federais e Estaduais, o governo deveria investir mais em pesquisas. E esse trabalho que você está fazendo também é muito bom. Você pode ter certeza de que vai lhe ser muito útil, em muitas coisas, inclusive para o seu dia a dia. E que o Estado, né? deixe de lado esse ângulo de política, de vaidade e invista em Faculdades Federais, Estaduais. Pague bem os professores para que eles possam se manter

541 Cursos da área pedagógica. 542 Ribeirão Preto/SP dista 243 quilômetros de Tanabi/SP. Na USP de Ribeirão Preto chegou a fazer Curso Específico para Diretor de Escola. 367 e não precisarem viver de migalhas, de cesta básica e nem de vale-refeição, e que tenham um salário condizente com a capacidade e com o esforço deles. E não com essas manobras políticas querendo mostrar uma realidade que na verdade é falsa, não existe, de aprovação de todos os alunos de uma escola, para dizer que aquela escola é uma maravilha, a gente sabe que não é.

Está certo, vou encerrar.

Tempo de gravação da entrevista: 1h5min45s

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ANEXOS

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Questionários utilizados nas entrevistas

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Questionário Professores

Olá professor(a)! Peço, por gentileza, que dê uma olhada neste questionário. Ele poderá nos ajudar no nosso encontro/entrevista. Atenção: se tiver qualquer material: livros, fotos ou documentos, da época em que lecionava, favor levá-los para o nosso encontro. Lembrando que os Procedimentos: gravação; transcrição; leitura e correção; autorização – com carta de cessão, serão devidamente combinados no dia da entrevista.

1) Sobre sua história/vida?

 Quais escolas a senhora freqüentou inicialmente? E para a formação como professora?  Relação dos pais/família com a escolha de seu trabalho como professora, com sua carreira.  Trabalhou em outra atividade antes, durante ou depois de atuar como professora.  O trabalho como professora era importante para a renda familiar?  A senhora realizou outros cursos além do magistério?

2) Sobre a suas experiências no magistério.

 Em quais anos lecionou? Em quais escolas?  Eram escolas rurais ou não?  Como era a organização de séries? Classes/salas?  Como eram os alunos?  E os inspetores de escola? Como atuavam?  Organização, merenda, matrículas, quem administrava tudo isso, principalmente das escolas rurais?

3) Como eram as aulas?

 Havia separação das disciplinas? Qual era o tempo (hora/aula)?  Como eram feitas as divisões das aulas?  Qual era a rotina de sala de aula?

4) Sobre a Matemática.

 Quando e como eram introduzidos os números?  E as contas? (cálculos)  Trabalhavam com problemas? Situações cotidianas?  Existiam livros, apostilas, cartilhas, folhas mimeografadas?  Quem determinava o que e como trabalhar com a matemática ou com as disciplinas no geral?  Sobre o ensino de conjuntos nas séries primárias, tem alguma lembrança?  Soroban, ábaco, existia algo deste tipo para trabalhar a matemática? Um abraço! Luzia de Fatima Barbosa Mestrado em Educação – FE-Unicamp-SP

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Questionário Aluno

Olá! Peço, por gentileza, que dê uma olhada neste questionário. Ele poderá nos ajudar no nosso encontro/entrevista.

Atenção: se tiver qualquer material: livros, fotos ou documentos, da época em que lecionava, favor levá-los para o nosso encontro. Lembrando que os Procedimentos: gravação; transcrição; leitura e correção; autorização – com carta de cessão, serão devidamente combinados no dia da entrevista.

1. Quando ingressou na escola?

2. Estudou em mais de uma escola rural? Eram perto umas das outras?

3. Quais os nomes das escolas rurais onde estudou?

4. Até que série estudou?

5. Como, quando e porque surgiu a escola?

6. Os professores ficavam vários anos na escola?

7. As aulas eram sempre na sala de aula? Tinha outras atividades na escola? Comemorações,...

8. Como eram as avaliações?

9. Visita de alguma autoridade na escola?

10. Como era a relação com o professor, com os outros alunos, com a escola?

11. Por ter vivenciado uma escola rural, acredita que isso influenciou na sua vida?

12. Qual era expectativa em continuar na zona rural? E dos seus pais?

Um abraço! Luzia de Fatima Barbosa Mestrado em Educação – FE-Unicamp-SP

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Questionário Inspetor

Olá professor(a)! Peço, por gentileza, que dê uma olhada neste questionário. Ele poderá nos ajudar no nosso encontro/entrevista. Atenção: se tiver qualquer material: livros, fotos ou documentos, da época em que lecionava, favor levá-los para o nosso encontro. Lembrando que os Procedimentos: gravação; transcrição; leitura e correção; autorização – com carta de cessão, serão devidamente combinados no dia da entrevista.

1) Sobre sua história/vida?

 Quais escolas o senhor freqüentou inicialmente? E para a formação como professor/inspetor?  Trabalhou em outra atividade antes, durante ou depois de atuar como professor/inspetor.  Quais cursos o senhor realizou? Em quais anos?

2) Sobre a suas experiências na Educação.

 Chegou a lecionar? Se afirmativo, em quais escolas? Eram escolas rurais ou não? Qual era a rotina de sala de aula?  Sobre a Matemática, quem determinava o que e como trabalhar com a matemática ou com as disciplinas no geral?  Conte um pouco sobre o ensino de matemática nas séries primárias?

4) Carreira de Inspetor

 Qual foi a formação/preparação para atuar como inspetor escolar?  Que região o Senhor atuou como inspetor?  Quantas escolas faziam parte da região que atuou? Eram escolas de que tipo: isoladas, rurais, mistas, típicas rurais, de emergência, grupos escolares...  Quando aconteciam as visitas às escolas? O que era feito nessas visitas?  O inspetor avaliava os alunos e também o professor?  O inspetor orientava os professores sobre o conteúdo a ser ensinado?  Os professores que atuavam nas escolas rurais criavam vínculo com a escola?  Os inspetores realizavam reuniões pedagógicas com todos os professores?  Se algo surgia no Currículo, os professores passavam por capacitação? Lembra de alguma mudança, principalmente em matemática?

4) Sobre a Matemática

 Como era o ensino de matemática?  Como os professores eram cobrados sobre o que ensinar?  Como eram as avaliações?  A matemática sofreu alguma mudança durante os anos que o Senhor trabalhou?

Um abraço! Luzia de Fatima Barbosa Fernandes Mestrado em Educação – FE-Unicamp-SP 375

Cartas Cessão de Direitos

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