Universidade Federal do

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

A POLITIZAÇÃO DA ARTE E A ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA, POR QUE NÃO? – o tropicalismo e o seu legado

Henrique Campos Monnerat

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura/ Teoria Literária.

Orientador: Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins

Rio de Janeiro Maio de 2013

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A POLITIZAÇÃO DA ARTE E A ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA, POR QUE NÃO? – o tropicalismo e o seu legado

Henrique Campos Monnerat

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Lima Lins

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura – Teoria da Literatura.

Examinada por:

______Presidente: Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins (Ciência da Literatura/ UFRJ)

______Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus (Letras Neolatinas/ UFRJ)

______Profª. Doutora Maria Elisa Cevasco (Departamento de Letras Modernas/ USP)

______Prof. Doutor Júlio Aldinger Dalloz (Letras Neolatinas/ UFRJ)

______Profª. Doutora Vera Lins (Ciência da Literatura/ UFRJ)

Rio de Janeiro Maio de 2013

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MONNERAT Campos, Henrique. A politização da arte e a estetização da política por que não? - O tropicalismo e o seu legado / Henrique Campos Monnerat. — Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2013. x, 257 f.: il.; 18 mm. Ronaldo Lima Lins, orientador. Dissertação (mestrado) — UFRJ, Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2013. Referências bibliográficas: f. 222-237. 1. Tema. 2. Palavras-chave. I. Lima Lins, Ronaldo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Programa de Pós- graduação em Ciência da Literatura. IV. Título.

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Sumário

1 - Introdução...... 11

2 - O mapa...... 42

3 - A moda...... 87

4 - O mito...... 141

5 - Considerações finais...... 206

6 - Referências...... 222

7 - Anexos...... 238

7.a – Depoimento de José Genoino...... 238

7.b – Depoimento de Fernando Gabeira...... 242

7.c – Manifesto “Somos um Rio”...... 251

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Título A politização da arte e a estetização da política, por que não? – o tropicalismo e o seu legado

Resumo Esta dissertação debruça-se sobre o escólio da crítica da tropicália a fim de demonstrar como essa produção teórica dirige-se ao tempo presente como um aparato no qual a relação entre arte e política vem sendo paulatinamente negada. A análise, feita a partir das continuidades existentes dos anos 1960 até os dias atuais, propõe-se a inserir o legado de críticos e artistas relacionados ao tropicalismo dentro de uma reflexão que evidencie suas contradições no cenário político e econômico nas duas primeiras décadas deste século. Em um contexto marcado pelo mito do progresso (acentuado no Brasil pela proximidade dos megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Rio de Janeiro), torna-se necessário um mapeamento teórico da manifestação tropicalista para evidenciar as contradições e as modas – como, por exemplo, a moda Walter Benjamin – que operam sua canonização e consagração, conferindo à tropicália uma espécie de aura de lucidez dos novos tempos. Este texto demonstra ainda a forma como, na trilha da lógica política da terceira via (orientada pelo aprofundamento da inexorabilidade do capital e pela perseguição aos movimentos sociais), o tropicalismo pode vir a se tornar uma referência para uma visão de cultura que, através da defesa de um discurso consensual de diversidade aliada à universalidade, procura dissociar a esfera estética da política e invalidar assim qualquer politização ou opinião que questione a ordem estabelecida.

Palavras-chave Tropicalismo; Walter Benjamin; Política; Moda acadêmica, Terceira via; Crítica dialética; Megaeventos; Consenso; Criminalização do dissenso. v

Title Politicizing art and aestheticizing politics, why not? – tropicalism and its legacy

Abstract This dissertation ponders upon the array of critical literature on tropicália in order to demonstrate how this theoretical production is currently turning into an apparatus through which the relation between art and politics is being progressively denied. By parting from the continuation of the 1960s until today, this work proposes to insert the legacy of critics and artists related to tropicalism within a reflection that shows the contradictions in the political and economic scenery in the first two decades of the 21st century. In a context marked by the myth of progress (in vogue in due to the proximity of mega events, such as the FIFA World Cup and the Rio de Janeiro Olympic Games), it has become necessary to map the theories on tropicalist manifestations in order to point out contradictions and fads – as in the Walter Benjamin fad – which work towards canonizing and consolidating tropicalism, conveying a sort of lucid aura to it in these new times. This text also demonstrates how, in the political trail of Third Way logic (guided by the deepening of Capital inexorability and by the persecution of social movements), tropicalism may come to be reference to a vision of culture that, through the defense of a consensual discourse of diversity aligned with universality, seeks to disassociate aesthetics from the political sphere and invalidate any politicizing or any opinions that question the established order.

Key-words Tropicalism; Walter Benjamin; Politics; Academic Fad; Third Way; Dialectic Criticism; Mega Events; Consensus; Criminalization Of Dissent.

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Agradecimentos

Esta dissertação não seria possível sem a ajuda de meus familiares, amigos, outros pesquisadores e a universidade pública.

Sou grato aos meus pais e irmãs que sempre estiveram ao meu lado e à minha tia Eliana Monnerat que muito me incentivou.

Aos amigos que fiz no curso lhes devo um muito obrigado pelas orientações e conversas. Agradeço à Mônica Machado pelas reuniões clandestinas e ajudas sempre bem dadas; à Maria Caú, ao

Ricardo Cruz, à Aline Bezerra da Silva, à Luciana Barboza, ao

João Guilherme, ao João Bastos, à Juliana Caetano, à Renata

Vale, dedico o meu sincero obrigado pelas sugestões e leituras do meu texto. Ao Renato Pardal, que teve a tarefa de revisar esta dissertação, devo o meu agradecimento.

Sou grato ainda à Mayara Alexandre Costa, ao Mário

Rodriguez, ao Leonardo Bora e à Cassiana Lima Cardoso – colegas com quem compartilhei reflexões.

Tenho profundo carinho por Cinda Gonda, que tive o prazer de conhecer no curso de especialização em Literaturas Africanas e Portuguesa, e que desde lá muito me tem ajudado.

Agradeço profundamente ao Ronaldo Lima Lins, mestre a quem tive o prazer de conhecer e ser por ele orientado.

Aos amigos Bruno Gambert, Lívia Cassemiro, Pedro Pinheiro,

Reginaldo Costa, Raquel Sant'Ana e Rita Isadora Pessoa, agradeço pelas conversas e sugestões sempre pertinentes.

Nas questões referentes às traduções e versões agradeço profundamente à amiga de longa data Érica Alves.

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Agradeço à valiosa ajuda da amiga Cleyse Flores dos Santos e ao Wanderly Gonçalves que muito me orientaram sobre a política recente de nosso país.

À Sônia Monnerat, que me auxiliou no projeto da dissertação e no decorrer de sua escrita, registro meu muito obrigado – sua generosidade e humanidade são hoje joias raras no ambiente acadêmico. Agradeço também à Lygia Rodrigues Vianna Peres, amiga que muitos conselhos me deu nessa caminhada.

Agradeço também à Carol Barreto, Hélène Truong, Barbara

Vida e Mariana Cristina, pelas ajudas imprescindíveis no desenvolvimento do trabalho.

Agradeço ao CNPQ, ao professor Luís Alberto e aos funcionários da UFRJ.

Tive o prazer de conhecer no início de minha trajetória

Marcelle Leal, grande amiga com quem compartilhei o processo tão tortuoso de escrita da dissertação nas condições atuais. A ela, a minha profunda gratidão.

Ao namorado Gabriel Mendes, agradeço pelo apoio constante e urgente em horas difíceis.

À Ana Beatriz Domingues sou grato pelas cotidianas conversas e questionamentos sobre os mais variados assuntos que acompanham a prática do professor/pesquisador.

Agradeço ao Victor Manuel Ramos Lemus e à Maria Elisa

Cevasco por estarem presentes em minha banca examinadora.

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À minha vó Acyr Pereira da Rosa Monnerat

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São só resíduos do ódio que resta no organismo

Ba Kimbuta, "Resíduos do ódio"

Como ir pro trabalho sem levar um tiro Voltar pra casa sem levar um tiro Se as três da matina tem alguém que frita E é capaz de tudo pra manter sua brisa

Os saraus tiveram que invadir os botecos Pois biblioteca não era lugar de poesia Biblioteca tinha que ter silêncio, E uma gente que se acha assim muito sabida

Há preconceito com o nordestino Há preconceito com o homem negro Há preconceito com o analfabeto Mas não há preconceito se um dos três for rico, pai

A ditadura segue meu amigo Milton A repressão segue meu amigo Chico Me chamam Criolo e o meu berço é o rap Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai

Afasta de mim a biqueira, pai Afasta de mim as biate, pai Afasta de mim a coqueine, pai Pois na quebrada escorre sangue, pai Pai Afasta de mim a biqueira, pai Afasta de mim as biate, pai Afasta de mim a coqueine, pai. Pois na quebrada escorre sangue.

Criolo, “Cálice”

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1. Introdução

O assunto da tropicália, que sempre tem estado em evidência, viu sua exposição acentuada em 2012: os lançamentos de dois documentários, um com imagens de arquivo e entrevistas antigas e outro que se propôs a pensar o tropicalismo na atualidade; e, em agosto desse ano, a chegada do disco conceitual de Tom Zé, tropicália Lixo Lógico, em que o artista busca explicar o surgimento da tropicália, pensando-a no presente. Tais obras configuram-se como um alento para a crítica do assunto - dentro ou fora do espaço da universidade.

No agonizante contexto em que a crítica é encurralada nos espaços acadêmicos e expulsa dos meios de grande circulação, refugiando-se em palestras, blogues e debates, Roberto Schwarz publicou, nesse mesmo ano, um artigo intitulado “Verdade

Tropical: um percurso de nosso tempo”. Tendo o mérito de ser uma voz dissonante em meio a um forte consenso que paira sobre a crítica literária atual, a análise de Schwarz tem como objeto o livro de , publicado em 1997, em que o músico apresenta sua versão sobre o movimento. Na conclusão do artigo,

Schwarz adverte aos leitores que a melhor maneira de aproveitar aquele livro incomum deve incluir uma boa dose de leitura a contrapelo, pois o texto se caracterizava como um panorama de nossa época, uma dramatização histórica entre a inexorabilidade do capital vitorioso e as promessas e deficiências do impulso emancipatório derrotado. O livro é importantíssimo na crítica literária recente, na medida em que procura reacender um intenso debate sobre o significado não só do tropicalismo e das questões

11 relativas à cultura e política postas a partir da segunda metade do século XX como das relações entre arte e sociedade no momento atual.

O fenômeno da tropicália suscitou publicações da crítica já no final dos anos 1960 com os artigos do próprio Roberto

Schwarz e de . Com o passar das décadas o considerado movimento era cada vez mais reconhecido e assumia novas proporções e novos termos no debate que se formava. O tropicalismo, que já na época de seu surgimento possuía um caráter de moda, tornou-se progressivamente mais célebre (com direito a coletâneas, debates, filmes e muitos trabalhos acadêmicos).

Uma visão consensual teve cada vez mais espaço à medida que a década de 1960 se distanciava: o que se considerou como o tropicalismo ganhava as cores vivas de um movimento. Nesse processo, artistas de distintas áreas foram incluídos no rol de participantes, sem que se fizesse jus a outros, relegados a um segundo plano ou simplesmente ignorados. Na proposta de revelar os porquês do esquecimento e da canonização, alguns trabalhos teóricos recentes têm o mérito de questionar essa história oficial do chamado movimento tropicalista.1

1 Dentre os questionamentos, deve-se chamar a atenção para o de Francisco Alambert (2012), realizado no artigo “A Realidade Tropical”, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros “(p. 139 - 50). Destacam-se outros textos, como: Eu, brasileiro confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, de Frederico Coelho (2010); e Tropicalismo - Decadência bonita do samba, de Pedro Alexandre Sanches (2000). Podemos também fazer referência ao artigo de Flora Süssekind (2007) “Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 1960”; e a Pássaro de fogo no terceiro mundo - O poeta Torquato Neto e sua época, de André Bueno (2005). 12

Pensemos no caso de Tom Zé, importante figura do tropicalismo que encontrou uma pertinente metáfora para definir o que lhe aconteceu: “Eu sou o Trótsky da tropicália” disse em uma entrevista.2 A autodefinição como o revolucionário apagado da história oficial stalinista, aponta para o quanto o músico baiano esteve ausente não só da cena artística oficial como também de coletâneas e trabalhos sobre o tropicalismo. Caso semelhante ocorreu com a figura de Torquato Neto, que por muito tempo foi negligenciada apesar do poeta de Teresina ter sido um dos principais idealizadores do projeto tropicalista e inclusive ter proposto que os artistas criassem o disco manifesto que veio a ser lançado em 1968.

Com o passar do tempo, além de algumas figuras terem ficado relegadas a um segundo plano, o tropicalismo assumiu uma proporção desconhecida para a época, caracterizando-se como um período artístico da recente história brasileira. Sabemos o quão construídas são as categorizações desse tipo, que buscam impor sobre uma época uma diretriz periodista (como, por exemplo, as presentes nos livros didáticos de literatura do Ensino Médio, cujos capítulos são geralmente intitulados: arcadismo, romantismo, naturalismo, pré-modernismo, simbolismo, modernismo, pós-modernismo e tendências contemporâneas). Por essa razão a ideia que pensa o tropicalismo como um período artístico e lhe atribui uma importância desproporcional será através dessa dissertação questionada.

2 A entrevista pode ser acessada no seguinte endereço: http://www.revistagavea.com.br/site_tomze/entrevistas/entrevista_5.htm - acesso em 21/09/2012. A data da entrevista não pôde ser encontrada.

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Não se trata aqui de um jogo fácil de apontar culpados ou de fazer uma espécie de reparação histórica que desse como certa uma essência da tropicália ou de um tropicalismo perdidos. É necessário que ao explorarmos o mapa dos trabalhos sobre o assunto explicitemos as diferenças e os questionamentos para percebermos o quanto o debate sobre o que consideramos como tropicalismo não é letra morta, que ele existe e que não é um ponto pacífico. Uma discussão como essa envolve uma série de teorias e uma miríade de críticos, teóricos, historiadores, jornalistas, especialistas, sociólogos, poetas e cantores. Tal empresa crítica tem que dizer respeito ao tempo em que vivemos, ao nosso momento histórico, à possibilidade - hoje tão combatida

- de buscar pensar o país e seu momento político. Apesar da canonização estabelecer uma visão consensual ou permitir um determinado e saudável dissenso, as interpretações conflitantes são muitas. Ao final, como argumenta Liv Sovik,3 temos a sensação de que o tema da tropicália se tornou uma desculpa para discutirmos nossos problemas atuais, um veículo para se envolver em questões recorrentes. Analisando criteriosamente essa proposição, podemos argumentar que ela não deixa de ser questionável, pois o debate sobre qualquer assunto passado não escapa das implicações do presente e cabe ao analista cumprir o que há de mais essencial no seu trabalho: ser crítico, trazer a crítica e o dissenso situando o presente e o seu tempo em sua análise. Reiteremos que, na hora atual, o dissenso trazido pelo

3 “Ponha seu capacete: uma viagem à tropicália pós-moderna”. Revista da Bahia (FUNCEB), nº 26, maio/1998, p. 60-7. Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicacoes/livsovik3.pdf - Acesso em 15/08/2012 14 crítico é desagradável, quando não escondido ou simplesmente ignorado.

É nesse sentido que deve ser enfatizado a publicação do artigo de Schwarz em sua proposta como questionador em um contexto de consagração da tropicália. Seu questionamento não é recente e remonta aos finais dos anos 1960 e início da década de

1970, quando escreveu seu artigo “Cultura e Política 1964-1969”, que se tornou uma referência. Nas questões analisadas nesta dissertação, o percurso das ideias e opiniões do final dos anos

1960 até o início deste século importam muito a partir de suas mudanças e continuidades.

O trabalho que segue pretende compartilhar daquele gesto que considero primordial à crítica. Cumpre ressaltar, porém, que o objeto de minha análise não se restringirá ao tropicalismo em si, mas também abarcará o seu desdobrar nos trabalhos críticos que se apresentam a seu respeito. Para tanto, será preciso aliar uma concepção de história que rejeite a marcação linear que procura dividir e classificar em períodos, eras e tempos para assim impor uma descontinuidade no intuito de preservar e de isolar uma época com toda a sua problemática e significação.

Isso acontece com os famigerados “anos 60”, que no exterior e no

Brasil ficaram conhecidos como os “anos rebeldes”, título que uma minissérie exibida em 1992 pela Rede Globo pasteurizou.

Contra a tendência historicista e linear que procura domesticar a história e registrá-la em atas é preciso reivindicar um importante conceito de um filósofo essencial para as discussões

15 propostas nesta dissertação: o tempo-de-agora, o jetztzeit4, de

Walter Benjamin. O período histórico em pauta é um importante exercício para pensarmos essa concepção de tempo, pois o que está em conflito é algo muito mais dinâmico que as frias linhas de uma historiografia tradicional.

Em junho de 2012, por exemplo, quando o presidente do

Paraguai sofreu um golpe orquestrado pela direita de seu país, ouvimos os ecos de um passado nem tão remoto, como se dele novamente houvesse uma sucessão ou como se ele nunca tivesse deixado de acontecer. Da mesma forma, a bomba que explodiu na sede estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio de

Janeiro, para matar seu ex-presidente5, que assumiu três dias após o atentado a presidência da seção carioca da Comissão da

Verdade é outro eco de um passado que muitos querem enterrado.

Partindo dessa lógica, é correto admitir que a distância que nos separa dos anos do golpe militar em nosso país se estende, na verdade, pelo espaço de meras linhas escritas e inseridas numa cronologia vazia de um livro de história qualquer.

É preciso deixar claro que as discussões sobre o tropicalismo e sua crítica serão realizadas a partir dessa perspectiva, pois poderíamos afirmar que o desabafo de Hélio

4 O jetztzeit, tempo-de-agora em português, é para Benjamin a prefiguração do tempo messiânico. O tempo de agora é o ocorrido desde sempre, quando o agora encontra o ocorrido e os dois conformam uma imagem dialética. Ela se opõe a uma visão linear e progressista da história que está por trás de uma visão historicista. Para o autor, na tese XIV, a história seria objeto de uma construção cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-agora. Nesse tempo estariam resumidos todos os momentos messiânicos do passado, a tradição dos oprimidos seria reunida no momento presente do crítico ou do historiador. 5 Notícia disponível em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/bomba- explode-no-pr%C3%A9dio-da-oab-1.558004 - Acesso em 08/03/2013 16

Oiticica encontraria ampla área de assentamento, se proferido nos dias atuais:

E agora o que se vê? Burgueses, subintelectuais, cretinos de toda espécie a pregar tropicalismo, tropicália (virou moda) - enfim, a transformar em consumo algo que não sabem direito o que é. Ao menos uma coisa é certa: os que faziam stars and stripes já estão fazendo suas araras, suas bananeiras, etc., ou estão interessados em favela, escolas de samba, marginais anti-heróis (Cara de Cavalo virou moda), etc. Muito bom, mas não se esqueçam de que há elementos aí que não poderão ser consumidos por esta voracidade burguesa: o elemento vivencial direto, que vai além do problema da imagem, pois quem fala em tropicalismo apanha diretamente a imagem para o consumo, ultrassuperficial, mas a vivência existencial escapa, pois não a possuem - sua cultura ainda é universalista, à procura desesperadamente de um folclore, ou a maioria das vezes nem a isso (Oiticica, 1968 em entrevista).6

Neste alerta estão evidenciadas as problemáticas da tropicália e da dinâmica do capitalismo atual em sua ânsia de a tudo tornar mercadoria. Insisto que não se trata de buscar uma essência da tropicália perdida e tampouco de defender que esse ideal foi corrompido. O gesto de Oiticica deve ser resgatado na medida em que nos adverte para o caráter de moda atribuído ao tropicalismo. Dessa forma, não podemos separar o que entendemos como o tropicalismo, a sua discussão teórica e a sua crítica que no contexto atual tornou-se um interessante tema de moda tanto em um nível geral quanto acadêmico que nos permite pensar a cultura brasileira contemporânea. As diferentes interpretações sobre a tropicália nos mostram o quanto os conflitos envolvidos nos permitem refletir sobre importantes debates de nossa história recente. A consagração do tropicalismo como uma moda

6 Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/tropicalia/port/hist_artigos_ensaios/ar tig_helio.htm – acesso em 26/09/2012. 17 pode ser evidenciada na sua canonização e na atenção desproporcionada dada a artistas que tiveram um papel relevante no projeto. Em que medida esse processo está inserido na mesma dinâmica que padroniza o pensamento de um filósofo como Walter

Benjamin em muitos trabalhos acadêmicos? Tal questionamento não pode estar alheio ao período político em que vivemos.

Tendo em vista que o trabalho crítico deve nos apresentar um diferente olhar sobre um assunto, pretende-se ver o período que se estende da ditadura militar ao governo de Dilma Rousseff a partir de uma ótica filtrada não pela ideia da ruptura, mas pelo prisma da continuidade, em cujo escopo as visões focalizadas relevantes destacam-se – mais que pelas diferenças – pelas semelhanças entre as épocas. A um primeiro olhar esse exercício pode parecer difícil ou contraditório, visto que Dilma

Rousseff foi torturada na época da ditadura. Entretanto, quando analisamos a nossa história a partir da perspectiva do tempo-de- agora, que questiona o mito do progresso, vemos que são as continuidades que falam mais alto.

O progresso como mito é uma ideia-chave para a problemática abordada neste trabalho, pois é uma constante, seja no período militar seja no governo Dilma. O estudo do tropicalismo não pode

18 se esquivar dessa problemática. Transamozônica e Belo Monte7 fazem, por suas vezes, parte de uma mesma constelação, por mais que sejam pontos situados em épocas a um primeiro olhar distintas e presumivelmente divergentes.

É imprescindível que, no que diz respeito à ideia de progresso como mito, recuperemos mais um gesto: a iconoclastia considerada tão cara ao tropicalismo. A destruição do mito do progresso torna-se essencial para que não nos embriaguemos com aquelas ideias que se opõem ao tempo-de-agora, trazendo a frieza da mera cronologia de calendário, a domesticação e a institucionalização a dar o tom dos nossos tempos: a linearidade progressista presente numa visão conformista que cai como uma

7 Fazer uma referência a Belo Monte em uma dissertação que tem como tema o legado do tropicalismo torna imperativo que citemos um interessante depoimento realizado por para a TV Belo Monte. No vídeo há importante material de pesquisa para aqueles que procuram analisar no discurso do autor de Fragmentos de Sabonete uma justificativa para o ecocídio que está sendo realizado no norte do Brasil. Mautner declara que "a nossa democracia é realmente muito democrática e a mais ampla de todas em sua constituição." Uma análise crítica sobre o vídeo pode ser encontrada em uma matéria publicada no blogue O Palco e o Mundo: "Belo Monte e Mautner: Kaos em favor da Ordem". Pádua Fernandes conclui sua análise sobre o artista da seguinte forma: Pois o artista-filósofo afirma que é "nos demais países latino-americanos" que "a população índia é 'espacialmente' separada da outra"; no Brasil, ela não seria, por causa da miscigenação... Cito a página 71 do livro-sabonete. Espaços para os índios, para o autor, não se justificam, portanto. É interessante ver como o argumento da miscigenação pode ser apropriado de forma palatável para o racismo. Em nome da união nacional (a Ordem por trás do Kaos), calam-se as dores dos divergentes: "aqui é uma só festança, um só futebol, um grande carnaval, lembrar mestre Gilberto Freyre." Disponível em: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/01/belo-monte-e-mautner- kaos-em-favor-da.html. O vídeo com o depoimento de Jorge Mautner pode ser visto no youtube em http://www.youtube.com/watch?v=veYjzkeO1qI - Acessos realizados em 28/04/2013. 19 luva para o discurso da terceira via.8 Esse ataque ao mito do progresso não deve ser encarado como um ataque feito em nome do conservadorismo passadista. A iconoclastia a ser recuperada aqui

é aquela que ataca a tradição dos opressores. Pois como é defendido por Benjamin, todo documento de cultura é um documento de barbárie em que a tradição e a cultura são transformadas em instrumentos de dominação nas mãos das classes opressoras. Essa iconoclastia deve ser utilizada não só para o questionamento do mito do progresso como também para a fama e o fetiche com que os anos 1960 são vistos pelo presente. Essa herança hoje é apropriada violentamente por um discurso vitorioso que em nome de supostas mudanças encobre as continuidades e aprofunda o processo de privatização e perseguição aos movimentos que promovem um questionamento efetivo da ordem estabelecida.

O alerta de Oiticica citado acima faz menção a uma vivência existencial. O questionamento da separação entre arte e vida é evidente e expressa um momento importante da discussão das vanguardas. Devemos compartilhar, não sem uma certa ironia do destino, da exasperação de Oiticica quando lemos uma notícia como a ocorrida no início de 2012 envolvendo a construtora Odebrecht e a tropicália. O chamado empreendimento tropicália, localizado no bairro de Patamares que tem um dos metros quadrados mais caros da

8 A terceira via pode ser definida como um padrão de dominação capitalista que busca dar conta das sequelas do neoliberalismo, como uma tentativa de dar ares humanos ao sistema. A discussão em torno do conceito surge num contexto de desgaste do neoliberalismo. Trata-se da social-democracia transformada pelo neoliberalismo. Para uma compreensão detalhada do programa da Terceira Via, ver Giddens (2001a; 2001b). O termo, porém, não foi criado por Giddens, e já aparece em David Held (1984), no capítulo intitulado “The Contemporary Polarization of Democratic Theory: The Case for a Third Way”, parte do livro Political Theory and The Modern State, publicado pela Stanford University Press. 20 da capital baiana, teria prédios e áreas de lazer batizados com nomes como Alegria e Divino Maravilhoso. A construção desses edifícios se insere num processo nacional de especulação imobiliária que caminha junto com a privatização dos espaços públicos e a gentrificação9 de muitas áreas da cidade. A reação contra o nome dos edifícios foi imediata: após Caetano Veloso, seguido de Tom Zé e , pedirem que a empresa retirasse os nomes, a Odebrecht respondeu que se tratava de uma “homenagem ao movimento tropicalista”10 e que não havia impedimentos legais para a utilização dos títulos das canções. A empresa ainda argumentou que o objetivo da homenagem foi o de “referendar um importante movimento artístico, de grande representatividade na Bahia e no

Brasil”.11 A questão foi levada à justiça e depois de alguns meses, em setembro de 2012, a Odebrecht perdeu o direito de utilizar os nomes relacionados à tropicália no estabelecimento. Caetano,

Gilberto Gil e Tom Zé argumentaram que havia uma clara intenção de se apropriar do ideário tropicalista para fins comerciais.

Ironicamente, o tropicalismo que no final dos anos 1960 procurou botar o dedo na ferida da mercantilização da arte, encontrava-se

9Segundo a Wikipedia: “chama-se gentrificação, uma tradução literal do inglês ‘gentrification’ que não consta nos dicionários de português, a um conjunto de processos de transformação do espaço urbano que, com ou sem intervenção governamental, busca o aburguesamento de áreas das grandes metrópoles que são tradicionalmente ocupadas pelos pobres, com a consequente expulsão dessas populações mais carentes, resultando na valorização imobiliária desses espaços”. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gentrifica%C3%A7%C3%A3o – acesso em 22/09/2012. Esse processo é acompanhado da criminalização da pobreza, que, se pensada no horizonte das Olimpíadas ou da Copa do Mundo, acentua-se à medida que os megaeventos se aproximam. 10 Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5636102-EI6581,00.html - acesso em 22/09/2012. 11 Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/bobfernandes/blog/2012/08/31/odebrec ht-assina-acordo-com-caetano-gil-e-tom-ze-e-desiste-de-batizar- condominio-de-luxo-como-tropicalia/ - acesso em 22/09/2012. 21 ele mesmo mercantilizado, uma explícita etiqueta de moda nos nomes que batizariam os edifícios e seus espaços de convivência.

Novamente o tema da tropicália e da mercantilização da arte estavam postos. As declarações12 sobre o caso da Odebrecht são expressivas, pois a apropriação comercial do ideário da tropicália nos mostra o quanto ainda não estamos bem resolvidos com aquela época que alguns se apressam em considerar como remota. A defesa do ideário do movimento contra o uso comercial de uma empresa soa irônica. Em

1997 era a própria tropicália a ser patrocinada no carnaval de

Salvador quando figuras como Gil, Caetano e outros artistas

12 Matérias sobre o assunto podem ser encontradas nos seguintes endereços eletrônicos: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5635981-EI6581,00- Depois+de+Caetano+Tom+Ze+notifica+a+Odebrecht+contra+uso+de+imagem+da+ Tropicalia.html e http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas- noticias/2012/02/29/caetano-veloso-vai-a-justica-contra-condominio-de- luxo-chamado-tropicalia-em-salvador.htm. Acesso em 22/09/2012. 22 estiveram com Antonio Carlos Magalhães.13 O entrosamento com o lado comercial não precisa ser buscado somente nos anos neoliberais de

1990. Já em 1968 a empresa Rhodia utilizava-se do tropicalismo para anunciar suas roupas, organizando ainda um desfile com um show em que figuravam artistas tropicalistas.14 Uma grande construtora como a Odebrecht, aliada do governo brasileiro em sua lógica desenvolvimentista - seja em território nacional, seja em território internacional – quando presta uma “homenagem” nesses

13 Uma foto de Caetano Veloso e ACM abraçados pode ser vista numa entrevista feita pelo site brazilmax.com a Cristopher Dunn. Disponível em: http://www.brazilmax.com/news.cfm/tborigem/fe_artcultmus/id/18 - acesso em 26/03/2013. Liv Sovik faz referência a esse caso em um trecho de seu artigo “Tropical Truth: A Reading of Contemporary Debate on Tropicália” (1998) aqui traduzido: “No entanto, nenhum outro aspecto das comemorações tomou tanto espaço na mídia como o carnaval da Bahia que teve a tropicália como tema. O trio elétrico de Gilberto Gil recebeu artistas de primeira classe. Caetano Veloso, Gil e alguns de seus amigos ficaram na cabine com o senador Antonio Carlos Magalhães, o governador Paulo Souto e o prefeito Antonio Imbassaí, cada um usando uma camiseta estampada com a caricatura de um tropicalista diferente. Carlinhos Brown usou o palco do trio elétrico de Gilberto Gil no momento em que os tropicalistas subiram para homenagear ACM como o grande homem da Bahia cuja vinda estava escrita nas estrelas desde 1500. A geleia geral tomou conta do eternamente híbrido fenômeno cultural e político chamado carnaval e o tropicalismo lançou sua versão de baixo nível.” (Sovik, 1998, p. 07). O texto original em inglês: “No aspect of the commemorations, however, took as much space in the media as the carnival of Bahia, at which tropicália was the theme and the motif of street decorations. Gilberto Gil’s trio elétrico welcomed first class artists. Caetano Veloso, Gil and some of their friends appeared in the box with senator Antonio Carlos Magalhães, governor Paulo Souto and mayor Antonio Imbassaí, each dressed in a T-shirt emblazoned with a cartoon of a different Tropicalista. Carlinhos Brown used the stage of Gil's trio elétrico at the moment when the Tropicalistas took their place on it to sing the praises of ACM as the great man of Bahia whose advent was in the cards since 1500 A.D. The geleia geral fully took hold of the always culturally and politically hybrid phenomenon of carnival and tropicalismo was launched in its lowbrow version”. 14 Segundo Bonádio (2005), a empresa de publicidade Rhodia, menos de dois meses após publicação do artigo de Nelson Motta, “A Cruzada Tropicalista”, e um mês antes da gravação do disco manifesto: “já tomava emprestado os ícones do movimento para sua campanha publicitária publicada na revista Jóia, o qual seria tema também do show apresentado em agosto na FENIT e em outras localidades dentro e fora do país”. A dissertação de Maria Claudia Bonádio intitulada O fio sintético é um show! Moda, política e publicidade; Rhodia S.A. 1960- 1970. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?view=vtls000365054 - acesso em 12/02/2013. 23 termos, empreende algo difícil de digerir. Em uma escala ampliada como essa, fica evidente o quanto o caráter de negatividade da tropicália é um elemento ausente em nosso presente.

É inegável que nos últimos anos assistimos a um aumento dos trabalhos sobre a temática do tropicalismo. Alguns críticos procuram associar o surgimento da tropicália com o advento da lógica do pós-modernismo, como se o seu surgimento representasse um importante marco, uma virada na história da nossa cultura recente. É preciso, porém, perguntar: O que vem a ser, afinal, o tropicalismo? Um movimento estético? Político? Estético- político? A palavra “movimento” seria sequer adequada a sua classificação?

O título desta dissertação faz menção a um importante trecho de um dos textos mais comentados e lidos do filósofo

Walter Benjamin. Trata-se do artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (Benjamin, 1994) leitura presente em cursos de comunicação social, história, pedagogia e arquitetura, entre outros. O potencial de discussão proposto nesse texto é enorme e a conclusão esboçada no trecho final eminentemente político é muitas vezes deixada de lado como se se tratasse de um comentário supérfluo de Walter Benjamin que não altera o entendimento global de seu texto:

Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte (Benjamin, 1993, p. 196).

24

A importância dessa passagem é desmerecida quando não se nota o alerta, o grito frente ao surgimento dos fascismos que cresciam - e ainda crescem - e que terminariam por retirar a vida de milhares de pessoas, inclusive a do próprio autor.

Ao definir a estetização da política e a politização da arte como respectivamente o fascismo e o comunismo, Benjamin está fazendo uma colocação difícil de ser deglutida tanto pelos liberais daqueles tempos quanto pelos de hoje. É preciso argumentar que entre o fascismo e o liberalismo não há uma oposição e sim uma unidade. O fascismo é a contra face do liberalismo capitalista. Como argumenta Karl Polanyi, em A grande transformação,: “A total frustração de liberdade no fascismo é, com efeito, o resultado inevitável da filosofia liberal” (Polany, 2002).

Como o tema da tropicália se relaciona a essa discussão?

Dizer que a tropicália é a estetização da política, a representação de uma visão fascista da realidade é uma consideração simplista e apressada. Roberto Schwarz, em um recente debate na Faculdade de Letras da UFRJ,15 disse que uma das críticas mais recorrentes ao seu primeiro artigo sobre a tropicália foi a de que tratou a estética tropicalista como sendo fascista.

Reitero que minha intenção não é definir neste trabalho o que foi o tropicalismo nem ditar a sua verdade. Não se pretende definir a verdade do tropicalismo nem a sua significação

15 O VIII Seminário de Estudos e Pesquisa do Grupo Formação do Brasil Moderno foi realizado pelo programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre os dias 25 e 27 de setembro de 2012 na Faculdade de Letras. 25 política exata, trata-se de resguardar uma esfera da dimensão política para o seu legado e sua discussão.

Após analisarmos muitos trabalhos críticos sobre o tropicalismo, percebemos que há uma visão que enfatiza um suposto aspecto apolítico do tema ou, como se este representasse uma mudança do que consideramos como política, uma separação entre as esferas do cultural e do político que é associada a um período em que os movimentos revolucionários ou os impulsos de recusa da ordem estabelecida foram derrotados. Segundo essa argumentação, a lógica do tropicalismo expressaria a sensibilidade e a lucidez de novos tempos. Deve-se problematizar e questionar essa visão radicalmente, principalmente no sentido que ela tem de inexorável, pois como defendo nesta dissertação ela está relacionada diretamente ao processo de canonização e institucionalização aqui observado e criticado.

Refletir sobre a realidade política contemporânea implica em se aventurar no campo da crítica e em buscar apresentar uma opinião divergente, pois só através da divergência podemos dizer

– com todos os problemas que isso acarreta - que avança o conhecimento. Quando vemos escasseadas as dissonâncias no coro dos contentes o consenso se estabelece com toda a sua violência.

Essa constatação nos permite entender porque um filósofo como

Walter Benjamin é um referencial teórico para esta dissertação.

Seu “alarme de incêndio” (Benjamin, 2000, p. 45-6) nos diz que nada está garantido, que não estamos fadados a nos tornarmos uma sociedade justa com o passar do tempo e o avanço do progresso. A acusação da crítica ao progresso realizada por Benjamin como pessimista não percebe a representatividade que esta possui para

26 as lutas atuais de recusa da ordem. O alerta de Oiticica e o alerta de Benjamin têm que ser postos lado a lado. Nesse embate, categorias como as de otimismo e pessimismo não podem ser neutras. A desafinação do coro dos contentes que teima em ser escondida, maquiada e calada tem que ser aqui revelada em toda a sua significação.

No dia 13 de agosto de 2012 foi disponibilizada no site

Youtube a música oficial dos jogos olímpicos de 2016, a serem sediados no Rio de Janeiro.16 No vídeo da canção intitulada “Os deuses do Olimpo visitam o Rio de Janeiro” podemos ver atores e cantores representando a maioria dos deuses do Olimpo em visita

à cidade. As imagens se alternam entre as belezas do Rio e os artistas cantando e dançando no estúdio. Mar, rochedo, coqueiro, prédios, céu, clichês bem conhecidos de um Rio eternamente idealizado. O conhecido embate entre moderno e arcaico marca presença nas torres de telefonia na Floresta da Tijuca. As favelas aparecem como marca desse Rio plural e receptivo. A retórica atual do “Somos um Rio”, slogan da campanha pela reeleição de Eduardo Paes em 2012 exemplifica-se na harmonia conciliatória dos deuses representados em sua maioria por pessoas conhecidas: a “imortal” Nélida Piñon representando a imortal Atenas; o chefe do Olimpo, Zeus, interpretado por um otimista e governista sorrindo para a cidade num belo entardecer. O repertório clássico de carnaval, favela e povo trabalhador soma-se ao tema de Rio da paz, expresso no

16 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=cGVjziXl5kM - acesso em 15/08/2012. Uma paródia do vídeo e de seu clima de euforia pode ser acessada em: http://www.youtube.com/watch?v=hNfBkwIJwbQ - Acesso em 17/09/2012. 27 conceito de pacificação17 das comunidades marginalizadas da cidade. É fácil se deixar embalar nesse ritmo e esquecer por um segundo que o mesmo verso “O Rio de Janeiro continua lindo” foi composto para uma canção de despedida de alguém que saía do país então sob um endurecimento do regime militar. Isso parece não importar mais, a ordem atual nos diz que os tempos em que vivemos são outros. Um exercício de crítica atenta nos mostra que nada separa essa canção dos sambas de exaltação como

“Aquarela do Brasil”, escritos já há noventa, oitenta anos. Um parece citar o outro. Assim, o milagre se desfaz, o vinho vira

água, e dos tempos que pensávamos já ultrapassados o terror e a barbárie irrompem em retorno, quando, no dia de cumprimento de

48 anos do Golpe Militar de 1964, um grupo de paraquedistas estira, no mesmo céu azul da mesma cidade vista outrora no contexto do vídeo olímpico, uma faixa de celebração do aniversário da dita revolução.18

Imaginemos, então, como um indivíduo que teve sua casa destruída nas crescentes remoções nas grandes cidades brasileiras veria esse vídeo. Ou como o veria aquela mulher que por muitos anos morou no morro Dona Marta e que agora é desalojada devido à altíssima valorização imobiliária da região?

Com que nostalgia veria ela no vídeo a mulata que desce a escada

17 Lançado em 2012 o disco Universo Preto Paralelo de Ba Kimbuta é um questionamento consolidado da ideologia que há por trás do termo pacificação. "Pacificar com tiro não dá para crer" diz um dos versos da primeira canção intitulada Intro UPP. O disco que é na verdade uma interpretação consistente do Brasil contemporâneo se encontra disponível em: http://bakimbuta.wordpress.com/ep-universo-preto- paralelo/ - Acesso em 29/03/2013. 18 A notícia sobre essa homenagem prestada por paraquedistas da reserva e por Jair Bolsonaro pode ser conferida no endereço: http://www1.folha.uol.com.br/poder/1070055-militares-saltam-de- paraquedas-no-rio-em-comemoracao-ao-golpe-de-64.shtml - acesso em 21/11/2012. 28 do morro com o céu azul e o calor atrás de si e um sorriso estampado na face? O que pensará da cena de um morador forte feito Hércules carregando uma geladeira nas costas enquanto samba, aquele homem que teve que carregar apressado no escuro da noite seus móveis enquanto o caminhão de lixo o aguardava para fazer a mudança?19 É necessário assistir a esse videoclipe partindo dessa perspectiva, o que não deixa de ser o imperativo benjaminiano de ler a história a contrapelo para que possamos entender melhor a ideia do canto desafinado na alegria reinante.

Partindo do âmago dessa imagem de desafinação em um coro de contentes, podemos encontrar um interessante material para a análise do tropicalismo e seu debate crítico. Ao ler os trabalhos sobre o assunto percebemos as variadas formas que os críticos tratam o seu objeto. Temos a sensação de que lidamos com diferentes tropicalismos existentes, daí a ilusão de que talvez seja possível encontrar uma forma verdadeira, uma espécie de verdade tropical. A partir desse assunto muito se pode abordar: dos dilemas sobre a mercantilização da arte aos dilemas sobre a antropofagia; dos temas comportamentais dos anos 1960 às questões relativas à desconstrução da linguagem. Podemos evidenciar em outro eixo essa multiplicidade de assuntos quando constatamos que artistas como , Capinam, Gilberto

Gil e Zé Celso se autoproclamavam ou foram encarados como artistas tropicalistas. Essa multiplicidade pode ser observada quando vemos a manifestação tropicalista associada a outras

19 Aqui faço referência ao relato de muitos moradores que tiveram suas casas removidas. Tal relato pode ser conferido no endereço: http://www.youtube.com/results?search_query=realengo+aquele+desabafo&o q=realengo+aquele+desabafo&gs_l=youtube.3..0.173.3340.0.3483.25.14.0.9 .9.1.241.1498.5j5j2.12.0...0.0...1ac.1.JLlJlfAsY28 – acesso em 21/11/2012. 29

áreas além da musical – como o cinema, o teatro e as artes plásticas. A articulação entre esses dois eixos nos dá uma dimensão do universo da discussão sobre aquele momento e o quanto, por final, ele se tornou uma desculpa para se debater outros assuntos.

A presente dissertação tem como objetivo dialogar com essas discussões sejam elas sobre o tropicalismo ou sobre esses outros assuntos. Partamos em direção a elas como quem parte para outras galáxias e ainda assim se vê num mesmo universo. As manifestações artísticas e obras críticas apresentadas na introdução desta dissertação serão os apoios, os eixos da argumentação aqui proposta.

A tentativa de mapear os trabalhos críticos tem como intenção problematizar a visão consensual que paira sobre o tropicalismo. A análise de diferentes obras nos permite melhor nos situar nesse mapa de maneira que possamos conhecer suas nuances para assim enxergarmos o dissenso onde parece haver o consenso.

Conhecidas as nuances da disputa pela hegemonia consensual

(assim como na consagração do tropicalismo e de sua razão como vitoriosas) é possível projetar uma relação sobre o contexto de chegada do Partido dos Trabalhadores à presidência. A situação atual do mandato da presidente Dilma precedido pelos outros dois do ex-presidente Lula nos dá muitas oportunidades para avaliarmos as continuidades disfarçadas de rupturas como as apregoadas pelos defensores de um suposto caráter esquerdista dos governos recentes.

30

Nessa seara, a mera identificação desse discurso já se configura como um exercício crítico fundamental, dado que em um momento em que a embriaguez do progresso procura invalidar classificações e críticas à política atual, o simples fato de perceber e questionar esse discurso constitui-se como uma tarefa crítica necessária. Podemos contar, felizmente, com valiosos depoimentos sobre a tropicália proferidos por dois políticos:

José Genoino e Fernando Gabeira20, conhecidas figuras desses novos governos e do que eles representaram e representam para a história. Fazendo a curva à direita que muitos rebentos de 1968 fizeram, as histórias desses governantes são exemplares para vermos a construção do discurso de inexorabilidade do capital e a imposição progressiva da ideia de que as lutas para uma alternativa à ordem vigente são um mero sonho de juventude, um delírio. A esquerda para o capital e a direita para o social -

Intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil, título de um importante trabalho21 sobre a pedagogia da hegemonia22

20 Respectivamente (Anexo a) e (Anexo b). Ambos foram retirados de Cyntrão (2000). 21 O livro foi organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves (2010). Sobre essa obra, Roberto Leher diz: “O presente livro é uma obra de agudo acerto estratégico, incidindo sobre dilemas cruciais da conjuntura brasileira e latino-americana. Toda a esquerda anticapitalista terá muito a aprender com a leitura desta imprescindível obra. O coletivo construiu um projeto de pesquisa extraordinário que faz deste livro, escrito com ampla participação de jovens pesquisadores, um trabalho de fôlego, coeso e coerente, que tem tudo para repetir o êxito do primeiro livro do grupo. Após percorrer suas páginas, fica claro o quanto a batalha das ideias é central nos dias de hoje e, sobretudo, o quanto a prática política tem de ganhar densidade para que a falsa oposição entre a Terceira Via e o imperialismo possa ser compreendida pelo conjunto da classe trabalhadora, objetivando a melhor diferenciação das lutas de classes” (Neves, 2010, p. 18). 31 exemplifica a retórica da terceira via a qual Genoino e os governos de Dilma, Lula e FHC se filiam.

Tudo indica que a aproximação dessa lógica à consagração da tropicália constitui-se como um importante campo de pesquisa para a compreensão do Brasil atual. Na conclusão de um artigo muito esclarecedor, Francisco Alambert (2012, p. 139-50) diz que o mundo atual (pós-moderno, neoliberal, antirrevolucionário, multicultural) “convive com uma versão quarentona do tropicalismo”. Nessa conjuntura o autor diz que é preciso entender como opera a dialética entre “tradição” e “modernidade” nos termos deste início de século. O professor da USP relaciona em seu artigo a consagração do tropicalismo como “ideologia cultural hegemônica” (idem, p. 150) ao contexto de governo do

Partido dos Trabalhadores.

A leitura dos trabalhos teóricos que se dedicaram ao tropicalismo desde o seu surgimento nos revela um quadro que reflete as discussões e os embates artísticos e políticos dos

últimos cinquenta anos que nos ajudam a perceber as linhas de força que atuam na criação e na apropriação das manifestações artísticas. Nesse panorama dos trabalhos acadêmicos, a figura de

Walter Benjamin pode ser observada em muitos trabalhos e artigos dedicados ao tema. A apropriação de sua teoria não se faz, no entanto da mesma maneira por todos os autores. Alguns aspectos são enfatizados e outros não são levados em conta. As relações

22 O termo “pedagogia da hegemonia” foi popularizado pela obra A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso, publicado em 2005 pelo Coletivo de Estudos de Política Educacional. Os eixos gerais definidores dessa atual pedagogia da hegemonia são: um novo Estado democrático, uma ordem social pós-tradicional, uma globalização intensificadora, uma radicalização da democracia e uma sociedade civil ativa. 32 que essa apropriação possui com o estudo do tropicalismo e com a cultura brasileira contemporânea é aqui um ponto a ser pesquisado.

As figuras e as ideias que se opuseram à “modernidade” tropicalista ou estiveram fora dela são consideradas de alguma maneira datadas, ultrapassadas, muitas vezes escondidas sob o problemático rótulo do “nacional-popular”.23 A ascensão do tropicalismo e de suas figuras “como oráculos da modernidade”

(Coelho, 2002, p. 131), considerados correspondentes brasileiros de uma vanguarda universal, procura se embasar no conceito de alegoria desenvolvido por Walter Benjamin em seu livro Origem do drama barroco alemão. Essa utilização, porém, dá-se no sentido de se querer provar o caráter revolucionário da fragmentação presente no procedimento estético do tropicalismo. Os favoráveis a esta visão evocam em seus argumentos uma oposição entre

Benjamin e Lukács, incorrendo em simplificações que parecem dotá-lo de uma coesão, assim como, com muita frequência, descrevem-no atribuindo aos seus participantes um protagonismo relacionado a uma “revolução” nas artes brasileiras. A partir de

23 O conceito de nacional-popular é criado por Gramsci e aparece em seus Cadernos do Cárcere (2002), nos volumes 5 e 6. Este conceito aparece vinculado ao tema da literatura quando o pensador italiano reflete sobre o descompasso que há entre os intelectuais de seu país e seu povo, impossibilitando a existência de uma literatura nacional- popular na Itália. A noção também se relaciona à formação de uma vontade coletiva, um consenso em que a vontade popular esteja presente. Este conceito ao longo do tempo tornou-se plural e passou a abarcar diferentes sentidos. Marcelo Ridenti (2000) em Em busca do povo brasileiro - artistas da revolução, do CPC à era da TV defende o conceito de nacional-popular constitui-se como a utopia que aproxima o intelectual ao povo. É preciso que nos questionemos, no entanto, se o conceito de cultura nacional-popular de esquerda ainda pode ser utilizado após a pluralidade de sentidos que essa noção abarca. No Brasil ele foi utilizado para designar as músicas engajadas dos anos 1950 e 1960 cujas temáticas se aproximavam dos temas de nação e povo e é dessa forma que ele será encarado nesta dissertação.

33 um segundo debate que se inicia na segunda metade dos anos 1970 o caminho para a progressiva mistificação atual parece selado, tanto fora quanto dentro da academia.

As bases teóricas do debate muitas vezes operam uma distinção conceitual em que a oposição entre Benjamin e Lukács é acentuada. Essa diferença teórica que diz respeito ao caráter revolucionário da experimentação tropicalista apoia argumentos no debate crítico como os que mistificam o tropicalismo, que por sua vez é associado a um caráter iconoclasta. A sua legitimação a partir dessa discussão se direcionaria então a uma progressiva canonização que se faria acompanhada de sua inserção numa linha de interpretação da cultura brasileira em que diversos conflitos nela existentes seriam utilizados para legitimar seus argumentos. Nesse embate nomes como Oswald e Mário de Andrade assim como Gregório de Matos nos provam que a discussão sobre a tropicália constitui-se como uma interpretação da cultura brasileira e de seus conflitos, que extrapolam os marcos temporais comumente associados ao tropicalismo.

No que diz respeito aos usos das teorias de Walter

Benjamin, a crítica do progresso que orientou sua produção intelectual desde a juventude é o ponto chave para questionarmos as apropriações de suas ideias no estudo do fenômeno tropicalista.24 Essa crítica não pode ser encarada como mais uma de suas teorias e sim como um imperativo que norteou sua

24 Já em 1916, com o artigo “Sur Le Trauerspiel et la tragédie”, publicado em 1982 no segundo número da revista Furor, Benjamin opõe o tempo da história, cheio de temporalidade messiânica, ao tempo mecânico e vazio dos relógios. Na sua tese O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Benjamin já contrasta o infinito temporal qualitativo do messianismo romântico com o infinito temporal vazio das ideologias do progresso. 34 produção intelectual até sua morte. Analisando a partir dessa perspectiva, podemos constatar que muitas das apropriações da teoria de Benjamin não fazem menção a esse traço básico de seu pensamento, como se – bem ao gosto de um extremo relativismo pós-moderno – a tendência à pluralização de palavras como poder, política e sujeito afetasse também a Benjamin. Falar-se-ia então de “Benjamins” como se fala de poderes, políticas e sujeitos.

Ressaltar o quanto essa apropriação está relacionada a uma determinada visão teórica sobre o que o tropicalismo representou

é um dos objetivos deste presente trabalho.

Os depoimentos de figuras políticas como José Genoino e

Fernando Gabeira são interessantes para que avaliemos as dimensões da apropriação de manifestações artísticas em que a exaltação caminha junto com sua canonização. Nesse ponto torna- se clara a ligação com o contexto político brasileiro atual. Em nossos tempos, quando um governo considerado de centro-esquerda revela-se tão eficaz quanto um governo de direita num processo de despolitização e perseguição dos movimentos sociais e de aprofundamentos da lógica mercantilizante de dominação capitalista, as revisões políticas e históricas são constantes e seguem uma cartilha determinada pelo consenso. Esses depoimentos podem ser encarados como uma dessas formas de revisão que, apesar de serem proferidas antes da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, já anunciavam o tom dúbio de conciliação que se consolidou no PT a partir dos anos 1990. Podemos relacionar o fenômeno à conciliadora visão social-democrata criticada por

Benjamin nas Teses sobre o conceito da história. O fato do discurso dos dois políticos ter sido proferido em um congresso

35 universitário evidencia o quanto a Academia contribui para a formulação de discursos hegemônicos.

O discurso sobre o tropicalismo não escapa dessa problemática. As falas de José Genoino e Fernando Gabeira proferidas em um congresso que celebrava os trinta anos da tropicália em 1997 serão centrais para o argumento aqui proposto: a existência de uma conjunção entre o crescente consenso sobre o assunto (patente na visão dos críticos e na maneira com que os referenciais teóricos são utilizados) e uma visão linear e historicista que rende tributos ao mito do progresso. A análise dos seguintes capítulos, depoimentos e documentos servirá para costurar os pontos da argumentação aqui apresentada.

Reforçando a tessitura da argumentação, contamos com um importante documento para pensarmos as questões relativas à cultura e sua mercantilização no contexto atual. Trata-se do manifesto da coligação Somos um Rio25 intitulado “Por um Rio mais justo, humano e feliz para todos” (Anexo C) que, no segundo semestre de 2012, recolheu mais de 300 assinaturas de indivíduos envolvidos com a área da cultura favoráveis à reeleição de

Eduardo Paes como prefeito do município do Rio de Janeiro. O texto do manifesto, suas assinaturas, sua divulgação e armazenamento na internet serão aqui importantíssimos para realizarmos uma análise do legado do tropicalismo que não faça

25 A coligação Somos um Rio foi formada por 20 partidos (PRB, PP, PDT, PT, PTB, PMDB, PSL, PTN, PSC, PPS, PSDC, PRTB, PHS, PMN, PTC, PSB, PRP, PSD, PC do B, PT do B) e teve como candidato a prefeito Eduardo Paes e como vice Adilson Pires. O grande número de partidos na aliança permitiu que a propaganda política do candidato tivesse 16 minutos e 17 segundos enquanto o segundo melhor tempo foi o de 3 minutos e 35 segundos, do candidato Rodrigo Maia, do DEM. 36 vista grossa ou desmereça o momento político atual e suas contradições.

Refletindo sobre a política de nossos tempos, o filósofo

Slavoj Žižek diz que vivemos um tempo em que o divórcio entre a democracia e o capitalismo já se consumou. As demandas democráticas já não podem mais ser conciliadas com a engrenagem do sistema. Devemos nos questionar a respeito da implicação desse fato na realidade brasileira, pois em que medida esse divórcio que está sendo consumado representa muito da realidade do capitalismo no Brasil e em nosso continente latino-americano?

De que forma esse divórcio representa o fim de um casamento que aqui nunca existiu? E que implicações essa colocação possui no contexto de conformação da nova pedagogia da hegemonia?26

Proponho uma divisão em três capítulos que serão intitulados "O mapa", "A moda" e "O mito" respectivamente. O primeiro capítulo pretende realizar um mapeamento da fortuna crítica da tropicália. Trata-se de, a partir de um contexto de celebração acrítica sobre o assunto, empenhar uma tentativa de mapeamento desse terreno (intenção que não será meramente descritiva, como se poderia objetar a uma primeira vista, e que não pretende exaurir todos os trabalhos sobre o assunto). A disposição dos diferentes argumentos sobre o tropicalismo tem como objetivo explorar os embates teóricos para daí retirar os conflitos e os jogos de forças inscritos. O conflito racional/irracional e a forte reação conservadora às análises pautadas em um viés materialista e dialético são percebidos numa

26 Conferir nota 19 da página 29. 37 perspectiva de longa duração que parte de uma continuidade dos tempos áureos da crítica sobre o assunto à produção atual.

Após o mapa encontraremos no capítulo “A moda” a possibilidade de nos questionarmos sobre a canonização que celebra o tropicalismo configurando-o como um modismo. Para isso será analisada a apropriação teórica de Walter Benjamin, que muitas vezes tem o seu potencial crítico de questionamento da ordem capitalista e liberal escamoteado ou subestimado, encarado como um desagradável detalhe. A vinculação entre a moda tropicalista e a “moda Benjamin” é um exercício de reflexão sobre a crítica atual. A relação entre o tropicalismo e o mito do progresso será importante e necessária para o questionamento dessas duas modas. Nessa seara, os intelectuais que refletem sobre a cultura brasileira não devem ser vistos como desconectados de nosso contexto político.

Estabelecidas as análises sobre as noções propostas de mapa e moda, é a respeito do momento político presente que se inserirá o conteúdo de “O mito”, terceiro e último capítulo desta dissertação. O progresso como mito, importante tema das reflexões de Walter Benjamin dá a tônica da crítica de nosso presente. Trata-se de lutar para travar não uma recuperação e um salvamento da tropicália, mas sim a possibilidade de que haja um dissenso que valha o nome e não se limite a questões superficiais.

O chamado legado tropicalista não poderá ser descolado do contexto de mito de progresso. A estruturação dos três capítulos está ligada às concepções teóricas das produções culturais, da literatura e da história. O ecletismo das análises de Walter

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Benjamin será aqui outro gesto inspirador. A incorporação de uma diversidade de fontes - inclusive livros didáticos utilizados em escola - nos mostra como algumas visões se articulam, ofuscando e sendo ofuscadas por outras, relegando algumas a uma espécie de limbo, impedindo o dissenso.

No contexto de euforia vivido não só na cidade do Rio de

Janeiro, como no Brasil, importa, por exemplo, analisarmos de nosso passado recente o legado do tropicalismo a partir de uma retrospectiva da década de 1970 tal como foi, por exemplo, veiculada pela Rede Globo. Além desta, uma série de elementos tornam-se cruciais e ilustrativos: o termo “patrulha ideológica” criado no final daquela década; o depoimento de políticos como

José Genoino e Fernando Gabeira; assim como a produção audiovisual 5 vezes favela, do Centro Popular de Cultura (1962)

(e os recentes 5 vezes favela - agora por nós mesmos (2010) e 5X pacificação (2012)).

A vitória do discurso do tropicalismo é relacionada aqui à consolidação da terceira via, que no contexto político atual, às vésperas dos megaeventos, nos dão uma dimensão de um forte consenso que foi demonstrado por um manifesto (anexo C) assinado por mais de 300 nomes ligados à área da cultura pela reeleição do prefeito Eduardo Paes no Rio de Janeiro em 2012. Zuenir

Ventura nos dá uma pista da direção que esse consenso parece

39 apontar quando compara em sua coluna no jornal O Globo em 2010 a pacificação do Complexo do Alemão com o 25 de Abril português.27

O caminho a percorrer tem como eixo de orientação o presente, as direções por quais seguem o legado da tropicália, seus críticos e seu tempo.

27 “Vi de perto o que colegas da televisão e dos jornais já tinham mostrado, ou seja, a mudança do estado de espírito da população. Primeiro o alívio, depois a alegria, enfim aquele clima de liberdade reconquistada substituindo o medo. Me lembrei de dois momentos: o Brasil se livrando da ditadura e a festiva Revolução dos Cravos em Portugal”. O trecho se encontra no artigo “De volta ao Alemão”, texto de Zuenir Ventura publicado no jornal O Globo, em 04/12/2010. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=f&rct=j&url=http://oglobo.globo.com/pais /noblat/posts/2010/12/04/de-volta-ao-alemao-346769.asp&q=&esrc=s&ei=z- JZUayAEYna9ATZkICIDA&usg=AFQjCNH8F4Ujt00lPFd9E1HSX5-n2L2UFg – acesso em 22/09/2012. 40

2. O mapa

“Antes de rascunhar o discurso de posse de Fernando Collor, o diplomata José Guilherme Merquior percebeu que a prosa ex-tropicalista apresentava um perfil misólogo, ou seja, refratária ao estudo e à escola. Merquior sacou o segredo da década de 1970: a pós-tropicália é antieducação. Ou, digamos assim, desse quadro absurdo: o poeta é anti-Cieps no palanque da sociologia. Nos últimos trinta anos o processo ascensional do compositor popular na cultura brasileira reduziu a didática a um domínio careta, arcaico e assexuado. Simbolicamente, a professora duranga é descartada pela abonada starpopmiuziqui, para quem a musa do cabaré infantil baba no brinquinho nova-iorquino do moderno jornalista televisivo. Enfim, salve a chegada do intelectual ao poder com Gilberto Gil no papel de Ivete Vargas.”

Gilberto Vasconcellos28

A intenção deste capítulo é um esboço de mapeamento da fortuna crítica da tropicália. Utilizo o termo “esboço”, pois um mapeamento é uma tarefa extensa e que sempre será uma atividade seletiva. Não pretendo analisar todas as publicações que tiveram como temática o tropicalismo. Interessam tanto as que considero essenciais para a problemática da canonização e do consenso da crítica sobre o tema, quanto as que questionam tal quadro. Tal proposta de mapeamento se inscreve sob imperativo geral que é a compreensão do Brasil atual. Não cabe aqui a objeção de que se

28 Retirado de: “Sem mentira não se vive”, texto de Gilberto Vasconcellos publicado no caderno +Mais da Folha de São Paulo, em 2 de novembro de 1997. 41 trata de uma tarefa impossível. Pensá-lo como um todo nos dias de hoje é um ato que poderíamos chamar de no mínimo incômodo.

Importantes serão as obras canônicas, a bibliografia já clássica do tropicalismo, bem como as informações que estão situadas mais

à margem ou que não obtiveram muita repercussão por não se integrarem ao quadro evidenciado da canonização instituída.

Não se trata de promover uma descrição organizada ou um inventário das obras. Tampouco de dispô-las numa perspectiva diacrônica como se estivessem numa espécie de manual a ser memorizado. Enxergar a crítica do tropicalismo numa perspectiva de constelação é o que devemos fazer.29 O exercício de relativizar a diacronia obedece aqui ao preceito filosófico do tempo-de-agora, o jetztzeit de Walter Benjamin. Antes de ser encarada como um amontoado de fatos catalogados num livro, a história deve ser pensada filosoficamente, como um saber que está aberto à dúvida, a incompletude e à especulação - o que ainda causa estranheza em alguns ambientes acadêmicos.

Na proposta de mapa aqui realizada, algumas reflexões são energicamente contestadas por aqueles que consideram-nas demasiado políticas, ideológicas, sociológicas etc. (seja em

1969 ou em 2012, ano que nas palavras de um jornalista do jornal

O Globo assistiu a uma “renovação da crítica ao tropicalismo”).30

29 Termo utilizado por Benjamin na introdução de seu livro A origem do drama barroco alemão (1984) e também em Passagens (2006). Segundo Benjamin, as ideias seriam comparadas à estrela e a constelação indicaria uma relação entre elas de maneira dialética em que cada uma seria iluminada por outra e também obscurecida “num lusco-fusco constante”, como define Kothe (1976), em seu glossário sobre termos do filósofo alemão. 30 O artigo do jornal O Globo de 13 de abril de 2012 está disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/renovacao-da-critica-ao- Tropicalismo-4629714 - acesso em 26/11/2012. 42

Na constelação teórica sobre o assunto, o nome de Roberto

Schwarz não pode ser ignorado. Seu ensaio Cultura e política

1964-1969, escrito no exílio no final dos anos 1960, tornou-se uma referência, sendo publicado no Brasil em 1978, num período de importante revisão histórica da crítica brasileira e de relativa e frágil harmonia – como se ao findar a tempestade os balanços e avaliações começassem a ser feitos num ambiente em que ventos tímidos de distensão pareciam soprar. Uma nota do autor, escrita em 1978, ocasião do lançamento do ensaio no livro

Pai de família e outros ensaios, diz o seguinte:

As páginas que seguem foram escritas entre 1969 e 1970. No principal, como o leitor facilmente notará, o seu prognóstico estava errado, o que não as recomenda. Do resto, acredito - até segunda ordem - que alguma coisa se aproveita. A tentação de reescrever as passagens que a realidade e os anos desmentiram naturalmente existe. Mas para que substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje, que podem não estar menos equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos contemporâneos é sempre mais vivo. Sobretudo porque a análise social no caso tinha menos intenção de ciência que de reter e explicar uma experiência feita, entre pessoal e de geração, do momento histórico. Era antes a tentativa de assumir literariamente, na medida de minhas forças, a atualidade de então. Assim, quando se diz “agora” são observações, erros e alternativas daqueles anos que têm a palavra. O leitor verá que o tempo passou e não passou (Schwarz, 1978, p. 61; grifos do autor).

A nota chama a atenção por se inserir num contexto em que a ideia de abertura política e anistia que anunciavam a transição para a Nova República se marcava sob o signo da ruptura, conformando uma nova sensibilidade. Como se o mundo agora fosse outro. A frase “O sonho acabou” não está desvinculada dessa ideia. A evidência desse quadro é um importante ponto para a crítica desenvolvida nesta dissertação. A nota reproduzida acima

43

é publicada no final dos anos 1970, uma época em que a crítica sobre o tropicalismo se consolidava na academia e estava imbuída de um espírito de revisão sobre o seu significado. Há no conteúdo citado uma referência implícita ao tempo-de-agora de

Walter Benjamin. “Assumir a atualidade de então” é “ter a atualidade bem agarrada pelos chifres” - nas palavras do crítico alemão.31

A canção popular que, assim como o futebol, Schwarz define como a manifestação chegada ao coração brasileiro, passa a ganhar um considerável destaque na segunda metade do século XX.

Devido ao seu alcance, o assunto torna-se significativo justamente por objetivar características líricas, políticas e sociais que não se dissociam da questão que diz respeito ao pertencimento nacional. Segundo a historiadora Virgínia Fontes:

Com a entrada definitiva do Brasil na era da industrialização, coexistiriam as sequelas da segregação social e desta modernização pelo alto. A lenta generalização do ensino primário e a permanência crônica do analfabetismo fizeram com que a música, mais do que a literatura fosse o lugar onde se instalaram as marcas mais fortes de pertencimento nacional (Fontes, 2005, p. 241).

31 Essa frase, citada por Schwarz em Martinha versus Lucrécia (2012, p.157) está no seguinte trecho de “Wider ein Meisterwerk” ainda não traduzido para o português: “Das echte Bild mag alt sein, aber der echte Gedanke ist neu. Er ist von heute. Dies Heute mag dürftig sein, zugegeben. Aber es mag sein wie es will, man muß es fest bei den Hörnern haben, um die Vergangenheit befragen zu können. Es ist der Stier, dessen Blut die Grübe erfüllen muß, wenn an ihrem Rande die Geister der Abgeschiedenen erscheinen sollen.” Nossa tradução para o português seria: " A imagem real pode até ser antiga, mas o pensamento real é novo. Ele é de hoje. O hoje pode até ser medíocre, admito. Mas ele pode ser como quiser, é preciso segurá-lo firme pelos chifres para poder interrogar a verdade. Ele é o touro cujo sangue precisará preencher a cova caso os fantasmas dos finados apareçam ao redor dela.” O artigo pode ser acessado em: http://gutenberg.spiegel.de/buch/2981/99 - acessado em 02/12/2012. 44

No contexto dos anos 1960, em que a indústria da música consolidava-se com seu circuito de gravação, reprodução e distribuição, o tema da canção passou a ser largamente discutido como campo de representação do nacional e dos embates políticos e comportamentais.32 A polarização que o mundo vivia era encontrada também no meio da música.

O debate realizado pela Revista da Civilização Brasileira nº7, em maio de 1966, com importantes figuras como Flávio Macedo

Soares, Caetano Veloso, Nelson Lins e Barros, José Carlos

Capinam, Gustavo Dahl, Nara Leão e , representa esse momento em que a música brasileira estava posta em discussão. “Que caminhos seguir na música brasileira?” era o título da mesa redonda organizada pela revista.

Nomes como bossa nova e tropicalismo são vistos como rótulos tanto para estilos musicais quanto para temas de canções. Pensemos no caso da bossa nova que num plano específico se refere a um novo estilo de cantar, tocar e arranjar uma canção. E ao mesmo tempo como o nome sugere pode ser interpretado como um estilo de vida ancorado na informalidade e simplicidade. Haveria um diálogo entre a maneira como se canta e os temas das canções que nos permite pensar num estilo de música bossa nova. Quando pensamos, porém, num estilo de música tropicalista as questões se tornam mais complexas. Isso porque o que se convencionou chamar com esse nome não se constituiu como um gênero de música próprio, pois se aproximava mais a uma paródia ou a um pastiche em que outros estilos eram citados,

32 No que diz respeito ao funcionamento da indústria fonográfica brasileira, vale conferir o livro Os donos da voz, de Márcia Tosta Dias (2000), publicado pela editora Boitempo. 45 tendo as suas significações consagradas muitas vezes questionadas. Além disso, o tropicalismo não estava restrito ao campo musical. Teatro, cinema e artes plásticas também foram reivindicados pelo mesmo tanto na época do seu surgimento e principalmente nos debates críticos e na escrita da história que seguiu.

O termo “tropicália” foi cunhado pelo artista plástico

Hélio Oiticica para batizar uma instalação, sendo depois apropriado por Caetano Veloso em uma de suas canções da época.

Esse trânsito entre as diversas artes deve ser matéria de reflexão, assim como as relações entre a cultura e a política da

época são um objeto de exercício da crítica que nos aportaria reflexões necessárias ao contexto atual em que vivemos. Assim ocorreu com a Bossa Nova; a forma com que olhamos para esses fenômenos é mistificada, construída e mediada pelo nosso presente. É por isso que a ideia de um movimento tropicalista não deve ser aceita de antemão, mas, sim, questionada.

O panorama da discussão sobre a música brasileira no início da segunda metade da década de 1960 difere muito do encontrado hoje. O tema apesar de discutido por muitos não era motivo de trabalhos acadêmicos. A diferença entre esses dois momentos é notável, pois com o aumento dos cursos de pós-graduação as pesquisas nesse campo aumentaram exponencialmente. Analisando o pensamento sobre a crítica da música brasileira o historiador

Marcos Napolitano diz em um artigo que:

A partir da década de 1970, nota-se uma produção bibliográfica mais sistemática que, obviamente, incorporou elementos das várias camadas do debate anterior. Num primeiro momento, a maior parte da produção foi realizada por jornalistas, na forma de

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crônicas, biografias e memórias. Em meados dos anos 1980, os programas de pós-graduação em ciências humanas, letras e artes passaram a abrir espaço para pesquisas relativas à MPB e a outros gêneros musicais, acompanhando a formidável valorização cultural e estética do cancioneiro brasileiro que remonta ao final dos anos 1960 (Napolitano, 2006, p. 138).

O que havia na década de 1960 eram obras isoladas, como o livro de José Ramos Tinhorão (1997). Sua tese bastante provocativa gira em torno da ideia de que o tropicalismo representou no plano cultural o mesmo que a ditadura militar teria feito no plano econômico.

É respondendo as colocações lançadas por Tinhorão em Música popular - Um tema em debate que Caetano Veloso escreve um de seus primeiros artigos intitulado “Primeira Feira de Balanço”

(Veloso, 1977, p. 1-13), escrito entre os anos de 1965 e 1966.33

Pode-se vislumbrar no texto o embrião de muitas questões que serão tratadas posteriormente pelo tropicalismo. Estão presentes dilemas correntes na prática do artista naqueles anos acentuados que dizem respeito à mercantilização da arte e às influências estrangeiras.

Caetano questiona sobre o fato de a música popular ser

“raramente organizada em artigos, uma só vez em livro, mas sempre sugerida em shows e na seleção de repertórios” (Veloso,

1977, p. 3). Quadro bastante diferente do atual em que os estudos da música popular se constituem como um campo de pesquisa acadêmica. Hoje há grupos que estudam a canção brasileira e que encontram justamente nessa segunda metade da

33 O artigo se encontra publicado no livro que é uma coletânea de escritos de Caetano Veloso organizada por Waly Salomão e publicada pela editora Pedra Q Ronca sob o título de Alegria, Alegria em 1976. 47 década de 1960 um importante nicho de investigação.34 Os tempos em que Caetano escreve são os de configuração do mercado de música popular que acompanhou também a construção de seu conceito. Os anos compreendidos entre 1966 e 1968 condensam questões caras à conformação do que conhecemos como música popular brasileira. Um exemplo desse ponto de inflexão dos anos finais dessa década é o fato de tropicalismo e MPB serem considerados hoje como sinônimos. A sigla MPB é demasiado problemática para ser classificada como um estilo musical ou qualquer coisa do gênero. Elis Regina era alguém que se posicionava contra a Jovem Guarda e a guitarra elétrica nos anos

1960, mas já no início da década seguinte gravava canções de

Erasmo e Roberto acompanhada pelo instrumento. Como encarar essas diferentes atitudes num intervalo de seis anos que separa numa ponta o ano de 1966, quando a cantora participou da passeata contra a guitarra elétrica e noutra ponta, em 1972, quando gravou As curvas da estrada de Santos, de Roberto e

34 Numa busca realizada na Plataforma Lattes, pude encontrar 36 grupos de pesquisa que se relacionam ou possuem como tema a música popular. Suas atuações se localizam em áreas diversas como as de comunicação social, história, antropologia, sociologia, artes e em abordagens interdisciplinares. Numa perspectiva mais geral de análise da canção pode-se destacar a publicação online Revista Brasileira de Estudos da Canção, que teve o seu primeiro número lançado no primeiro semestre de 2012, e que está disponível em: http://rbec.ect.ufrn.br/index.php/ - acesso em 25/01/2013. 48

Erasmo? Vale ressaltar que as primeiras discussões sobre o tropicalismo ou tropicália advêm justamente desse período.35

É sabido que a problematização dos adjetivos “popular” e

“brasileira” presentes na sigla MPB é imprescindível para que busquemos entender o seu contexto e a posterior produção bibliográfica sobre a temática estudada. A relativização e o questionamento desses conceitos realizadas nas últimas décadas não devem ser perdidos de vista quando analisamos a produção bibliográfica sobre o tropicalismo. A noção de popular implica uma ampla carga de discussão que deve ser vista com atenção, já que há diferentes acepções para esse termo, referidas tanto à noção de povo, quanto à noção (pautada pelo mercado) de disco ou cantor mais popular, isto é, mais veiculado. É por essa razão que o debate é eminentemente político: ao contrário do que um viés conservador gosta de argumentar, não há coisa mais política que uma declaração que se pretenda apolítica. Sobre a questão do nacional-popular, Marcos Napolitano promove uma reflexão pertinente ao problema aqui abordado:

Apontamos também para uma outra questão de fundo que aponta para a revisão do papel e do estatuto do nacional-popular na cultura brasileira. O que vem predominando é uma certa visão reducionista do sentido que o “nacional-popular” assumiu no Brasil, tido muitas vezes como “xenófobo”, “nacionalista” e “conteudista”, visão que se disseminou na crítica

35 Há uma diferença que separa os nomes de Tropicália e Tropicalismo. O segundo termo, o do sufixo "-ismo" nos dá uma ideia de movimento artístico ausente no primeiro. Frederico Coelho (2010) propõe uma valiosa diferenciação que extrapola simples questões de denominação e atinge a própria forma como vemos e diferenciamos o tropicalismo musical do tropicalismo referente a outras manifestações artísticas. Nessa dissertação, utilizarei, no entanto, os dois termos como sinônimos, o que não implica em ignorar as especificidades do tropicalismo musical e de como este ofusca outras manifestações que foram agrupadas sob este rótulo ou outros como “marginal” ou “pós- tropicalismo”. 49

cultural a partir do tropicalismo, principalmente. Quando superamos a análise dos discursos e manifestos e analisamos as obras que foram rotuladas como parte do “nacional-popular”, criadas por artistas engajados dos anos 1950 e 1960, vemos que mesmo buscando uma modernidade brasileira “autodeterminada”, por vezes abusando de um vocabulário nacionalista, não desprezaram a vocação modernizante e cosmopolita da cultura brasileira. Em outras palavras, nosso nacional-popular pode não ter sido tão “folclorista” e “xenófobo”, e só um projeto de releitura das várias correntes estéticas e obras artísticas deste campo poderia aprofundar esta hipótese (Napolitano, 2004, p. 317).

Os ensaios escritos por Caetano na segunda metade da década de 1960 dialogavam com a produção musical estabelecida no século

XX. Na mesa redonda da Revista da Civilização Brasileira,

Caetano apresentou a ideia da “linha evolutiva” ao discutir que a formação da música popular brasileira consiste na utilização da informação da modernidade musical para dar um passo à frente e assim renovar:

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. Apesar de artistas como , , Gilberto Gil, Maria Bethânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral.36

36 O artigo está disponível em: http://tropicalia.com.br/en/eubioticamente-atraidos/reportagens- historicas/que-caminhos-seguir-na-mpb/ – acesso em 25/01/2013. 50

Trata-se de estabelecer uma tradição da renovação da música brasileira, sem esquecer o que já foi feito. Para

Caetano, João Gilberto é quem atualiza essa linha evolutiva que já vem se formando há muito tempo e que não está em posição inferior à música contemporânea, pois ao contrário, interage com ela. Roberto Schwarz, em uma entrevista concedida em 1999 comenta essa ideia referindo-se à Verdade Tropical, publicado dois anos antes:

Li o livro dele [de Caetano] com grande interesse e há muita coisa ali para discutir. [...] O senso de realidade de Caetano é amplo e agudo, da espécie que admiramos nos bons romances realistas. Os retratos de amigos, colegas e rivais são notáveis, a figura central - ele mesmo - é um herói problemático da maior atualidade e envergadura, os resumos dos debates estético-político- mercadológicos são muitos substanciosos e vivos. [...] O tema central, que serve como critério de tudo, é a formação da música popular brasileira. A tese de Caetano é que João Gilberto explicitou e sinalizou esteticamente uma linha evolutiva que vinha se formando a partir dos batuques da Bahia e do Rio e que agora, em sua nova feição joão- gilbertiana, passou a ter condições de interagir sem rebaixamento com o melhor da música popular contemporânea. O paralelo com a construção de Antonio Candido e com a posição que este confere a Machado de Assis é surpreendente. Eu não saberia entrar no mérito musical, mas o argumento mostra como é geral para o país o tema da formação (Schwarz, 2000, p.71).

Dessa forma, tendo em vista que o papel e o alcance da crítica se modificam com o tempo, o mesmo se pode dizer sobre as discussões travadas sobre a música popular brasileira que, vistas sob a luz da segunda década do século XXI se diferenciam daquelas travadas nos anos 1960. Não se pode negar, no entanto que as discussões associadas ao tropicalismo ocorreram em uma

época de importante inflexão na formação do conceito de MPB. Nos anos de 1967 e 1968, ele era visto como algo que se opunha à

51

MPB. Da mesma forma que era inadmissível há pouco mais que uma década que se escutasse um funk numa rádio como a MPB FM37. Esses debates ultrapassam o que seria uma classificação homogênea, neutra e estritamente musical e nos levam para um terreno muito mais amplo em que cultura não se dissocia de política. E em tal terreno muitos relutam em reconhecer o óbvio: que o funk é uma manifestação cultural. A reivindicação do tropicalismo como legado se dá num contexto de história em aberto, em que entre tantas mudanças e rupturas não se deve ignorar as continuidades presentes. A veiculação de “Agora eu sou solteira” cantada por

Waleska Popozuda, da Gaiola das Popozudas, na rádio carioca MPB

FM, por exemplo, ainda é vista por muitos como algo inusitado, quase como uma descaracterização da rádio, um desrespeito à MPB

– erigida como uma espécie de monumento inquestionável. É relevante aqui que essa veiculação tenha se dado num horário já avançado da noite, integrando a lista de músicas veiculadas pelo programa Noite Preta FM, apresentado por Preta Gil que, assim como Regina Casé, promove uma mediação de estilos diferentes que questiona muitos preconceitos associados a um elitismo que canoniza e estigmatiza certos estilos musicais. A situação, no entanto, muda quando outros exemplos do gênero funk aparecem

“domesticados” pelas vozes de cantores como Celso Fonseca,

Adriana Calcanhotto, Roberto Carlos, Caetano Veloso, ,

Chicas, entre outros que podem ser escutados a qualquer hora do dia sem levantar uma polêmica daquele tipo38.

37 Trata-se de uma emissora de rádio do Rio de Janeiro que ocupa o dial 90,3 MHz em FM. 38 Próxima a essa visão de domesticação, há hoje em dia um discurso muito conhecido que afirma "gosto de funk, mas só o de antigamente, o funk de raiz." Há um inclusive um site na internet intitulado "Funk de 52

Em publicações de grande circulação do eixo Rio-São Paulo como a Folha de São Paulo, Última Hora, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo e O Cruzeiro surgiram os primeiros textos sobre o tropicalismo. As opiniões são diversas e a gama de seus contendores compreende desde aqueles que apoiam o projeto tropicalista aos céticos que o criticam por se tratar de uma moda passageira. Nelson Motta escreveu em fevereiro de

1968, em sua coluna no jornal Última Hora, o artigo “A Cruzada

Tropicalista”.39 É preciso vê-lo como uma espécie de intelectual orgânico40 da tropicália ao contribuir para a disseminação do termo e a defesa de seus ideais que está relacionada à conformação e à consolidação do mercado fonográfico da época.

Muitos textos sobre o assunto foram publicados no Correio da

Manhã pelo grande entusiasta Augusto de Campos. A relação que os concretistas tiveram com essa movimentação nas artes brasileiras

é bem conhecida, já que as ideias de Campos foram importantes para ver o tropicalismo como uma vanguarda artística que atualiza a modernidade brasileira. Na argumentação do poeta pode-se traçar uma linha à ré que parte de 1967, ano em que escreve os textos, passa por 1956, ano do concretismo, e chega a

1922, ano da Semana de Arte Moderna. O autor argumenta que a maturidade da produção artística brasileira fora alcançada em

Raiz", disponível em: http://www.funkderaiz.com.br/ - Acesso em 29/03/2013. 39 O artigo se encontra disponível em: http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/report_cruzada.php/ – acesso em 25/01/2013. Vários outros importantes documentos da época também estão acessíveis no portal http://tropicalia.com.br/. Acesso em 21/03/2013. 40 Agradeço o termo a Reginaldo Costa que, em conversa recente, me apontou a importância estratégica que a figura de Nelson Motta teve para a configuração do mercado da música popular brasileira e de seus debates. 53

1922 e que a universalidade, essa palavra tão cara ao projeto tropicalista, em 1956. Note-se que esse apoio começara a ser dado ainda em 1966 quando o nome utilizado para as propostas identificadas ao tropicalismo era a do “som universal”. Os dois artigos publicados no Correio da Manhã no mesmo ano em que

Caetano se queixava da escassez de livros dedicados ao tema da música brasileira se intitulam: “Da Jovem Guarda a João

Gilberto” (30 de junho de 1966), e “Boa Palavra sobre música popular” (14 de outubro do mesmo ano).41 O pano de fundo é o momento em que a música brasileira se encontrava em forte oposição com a arte engajada – assim chamada por aqueles que a praticavam – e a arte alienada, nome dado aos artistas da Jovem

Guarda que – segundo os que se diziam praticantes da primeira – não estavam preocupados em promover uma reflexão sobre a realidade brasileira que levasse a uma efetiva mudança de seu quadro social. Contrariando a visão nacionalista, Augusto de

Campos afirmou que a Jovem Guarda tinha uma lição para aqueles que a atacavam, acusando-a de estrangeira e alienante. Ao discorrer sobre essa questão, o autor se fundamenta em argumentos de Marx e Engels:

Não é segredo para ninguém que a “brasa” da Jovem Guarda provocou um curto-circuito na música popular brasileira, deixando momentaneamente desnorteados os articuladores do movimento de renovação, iniciado com a bossa-nova. Da perplexidade inicial partiram alguns para uma infrutífera “guerra santa” ao iê-iê-iê, sem perceberem a lição que esse fato novo musical estava, está dando, de graça, até para o bem da música popular brasileira. [...]

41 Ambos os artigos se encontram em Balanço da Bossa e outras bossas (2008). 54

Por isso mesmo é inútil preconizar uma impermeabilidade nacionalística aos movimentos, modas e manias de massa que fluem e refluem de todas as partes para todas as partes. Marx e Engels já o anteviam: “Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal” (Campos, 2008, p. 60).

No ensaio de Roberto Schwarz (1992) Cultura e política

1964-1969, a relação entre esses dois substantivos é analisada sob o clima de endurecimento do AI-5, promulgado no final de

1968. Para introduzir a sua tese o autor parte do argumento de que o golpe civil-militar de 1964 não representou o aniquilamento definitivo do pensamento de esquerda. A menção às ideias de Marx e Engels na argumentação de Augusto de Campos citada logo acima nos dá prova da forte presença de autores de esquerda nos meios intelectuais. Segundo ele, 1964 representou o corte do vínculo entre a intelectualidade de esquerda e os trabalhadores do campo e da cidade. O terrorismo de Estado se abateu primeiro sobre aqueles que tratavam de estabelecer esses vínculos. A presença cultural do pensamento contra hegemônico, contudo, não havia sido liquidada. Haveria então uma anomalia, uma hegemonia de tal presença no país apesar da ditadura da direita. Dessa maneira, durante os anos que se seguiram até o

AI-5, essa intelectualidade à esquerda continuou suas atividades e uma nova geração anticapitalista pôde ser formada. Nas palavras de Roberto Schwarz vivia-se uma espécie de Aufklärung

55 popular.42 No entanto, o golpe representou a volta do que a modernização havia deixado para trás. É a partir desse quadro que a tese do autor é anunciada: o procedimento formal do tropicalismo residiria em dar materialidade a essa fusão do antigo e do moderno com imagens de atrasos e procedimentos contemporâneos justapostos. Essas imagens se constituiriam como absurdos naturalizados que poderiam levar ao conformismo político. Ao contrário do método de alfabetização de Paulo

Freire, observamos no tropicalismo um “esnobismo de massas” que poderíamos arriscar em uma tradução nos termos de hoje com algo entre o “cult” e o “descolado”, que marcam uma inegável posição de classe. Ao discorrer sobre a matéria que deu formação ao tropicalismo, Schwarz cita a liga dos vencidos, as forças liberadas pela modernização conservadora imposta pelos governos militares:

Entretanto, apesar de vitoriosa, esta liga dos vencidos não pôde se impor, sendo posta de lado em seguida pelos tempos e pela política tecnocrática do novo governo. (Fez, contudo, fortuna artística ainda uma vez, em forma de assunto. Seu raciocínio está imortalizado nos três volumes do Febeapá - sigla para Festival de Besteira que Assola o País - antologia compilada por Stanislaw Ponte-Preta. E de maneira indireta, o espetáculo de anacronismo social, de cotidiana fantasmagoria que deu, preparou a matéria para o movimento tropicalista -, uma variante brasileira e complexa do Pop, na qual se reconhece um número crescente de músicos, escritores, cineastas, encenadores e pintores de vanguarda (Schwarz, 1992, p. 71).

Sua análise reconhece a importância do tropicalismo como um movimento inserido em diversas artes, mas não vê nele um potencial de ruptura libertador, mas um movimento que expressou

42 Termo alemão que em português quer dizer iluminação e que também se refere ao Iluminismo. 56 uma posição que encara o absurdo como um destino inevitável, como matéria para se pensar o Brasil. O confronto entre diferentes ideias e interpretações é evidente. Muitas das críticas direcionadas a esse artigo devem ser vistas num contexto de questionamento das ideias orientadas por um viés materialista e dialético que se propunham a discutir questões culturais, artísticas e políticas.

Imbuída do clima maniqueísta da época e da ascensão das discussões acerca do pós-modernismo na academia a partir dos anos 1980 a oposição e a tensão entre esses dois campos como o marxismo e o pós-modernismo aumentou. É declarada então uma troca de acusações em que rótulos como “marxismo reducionista” e

“relativismo pós-moderno” acabam por sua vez atrapalhando e encobrindo o debate. Podemos questionar os rótulos, mas não a existência do conflito de ideias. O consenso aqui é matéria perigosa de que temos que aprender a desconfiar. E o fato dessa oposição ser sentida ainda nos corredores da academia é um dado que não pode ser ignorado.

Um bom exercício para pensarmos essa questão é acompanhar a evolução do que se convencionou chamar de pós-modernismo nos ambientes acadêmicos a partir de fenômenos como o tropicalismo.

A avaliação das rupturas e continuidades e dos embasamentos teóricos existentes nas análises que passaram a ser formuladas tem muito a nos dizer. Tributários do clima cultural e político do fim dos anos 1960, os chamados estudos culturais e o advento do pós-modernismo, na teoria, afirmaram-se no Brasil justamente no período em que o tropicalismo se consolidava como um momento importante da expressão artística. Hoje a tropicália recebe os

57 louros da canonização ao figurar em livros didáticos de literatura estudados nas escolas brasileiras e em catálogos de museu.

Um crítico estadunidense chamado Nicholas Brown relaciona o que se seguiu ao golpe com o fechamento das possibilidades de questionamento do capitalismo. Esse momento assinalaria a passagem de uma situação moderna para uma pós-moderna no Brasil.

Movimentos vistos em série com características utópicas como o romantismo, o modernismo e a literatura pós-colonial estariam relacionados respectivamente às reverberações da Revolução

Francesa, da Revolução Russa e das revoluções anticoloniais ocorridas particularmente na África. Seguindo o seu raciocínio o autor diz que:

A esta série poderíamos adicionar um quarto movimento, de tendência mais difusa e contrária aos três primeiros. Este seria o fechamento do impulso utópico compartilhado por esses três momentos anteriores e seus complementos literários: o fim da Guerra Fria e o ideológico estabelecimento do mercado mundial capitalista como o último horizonte da história humana. Apesar desse movimento ser genuinamente global, sua temporalidade está longe de ser uniforme: em alguns lugares, essa transição se deu através de décadas; em outros, como o Brasil em 1964, tomou a forma de uma crise. Esperaríamos, talvez, que o fechamento da possibilidade utópica teria um profundo efeito na produção cultural, especialmente se a constituição das artes estiver relacionada, pelo menos desde as Cartas Sobre a Educação Estética do Homem de Schiller, com um

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complexo laço com o imaginário político utópico (Brown, 2003, p. 117-59; tradução minha).43

Em Utopian Generations (2005), Brown aponta que a bossa nova estaria inserida no contexto de modernidade tardia enquanto o tropicalismo no da pós-modernidade, numa época em que o questionamento da realidade social dada havia sido derrotado.

Essa discussão encarada como um conflito entre duas épocas é um dos cernes da polêmica acerca do significado do tropicalismo e percorre o seu nome até hoje, visto que um dos eixos principais do debate sobre o assunto é o que procura provar ou não o quão revolucionário e questionador o tropicalismo foi. Sua persistência é uma evidencia do quanto essas questões não podem ser consideradas como um capítulo encerrado de nossa história.

Em um seminário na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro realizado em setembro de 2012,44 Schwarz declarou que a crítica mais indignada direcionada ao seu trabalho foi a que o acusou de aproximar a estética tropicalista

43 No original em inglês: “To this series we might add a fourth movement, more diffuse and contrary in tendency to the first three. This would be the shutting down of the Utopian impulse shared by these earlier moments and by their literary complements: the end of the Cold War and the ideological establishment of the capitalist world market as the ultimate horizon of human history itself. Though this movement is genuinely global, its temporality has been far from uniform: in some places, this transition took place over decades; in others, like Brazil in 1964, it took the form of a crisis. We might expect that the foreclosure of Utopian possibility would have profound effect on cultural production, especially if the constitution of the arts has been bound up, at least since Schiller's Letters on the Aesthetic Education of Man, with a complex relationship to a Utopian political imaginary”.

44 O VIII Seminário de Estudos e Pesquisa do Grupo Formação do Brasil Moderno foi realizado pelo programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre os dias 25 e 27 de setembro de 2012 na Faculdade de Letras e contou com a participação de professores como Ismail Xavier, Michael Löwy e Roberto Schwarz. 59 a uma estética fascista. Segundo o autor, essa crítica estava inserida num maniqueísmo da época que tampouco podemos pensar como acabada. A representatividade dessa acusação não pode ser desconsiderada na crítica do tropicalismo, pois constitui-se como outro eixo carregado de tensões.

A tese central sobre o tropicalismo proposta por Schwarz já referida aqui é que na imagem tropicalista a justaposição entre o antigo e novo compõe um absurdo que está relacionado ao quadro configurado pelo que o golpe de 1964 cristalizou. As respostas a essa tese presentes nos trabalhos sobre o assunto que se seguiram não ficaram restritas ao ambiente acadêmico. O fato dessa reação não ser exclusivamente acadêmica nos faz refletir sobre a força e a persistência da crítica de Schwarz. As respostas a ela se dirigem, curiosamente, ao viés do aparato racional associado ao ambiente acadêmico e à crítica materialista. Em seu livro Armarinho de miudezas (2005), Wally

Salomão rebateu a crítica dizendo:

Como suportar então a racionalidade estreita que acusa o tropicalismo de irracionalista e destruidor da razão? E logo nas páginas da revista Les Temps modernes, de Sartre, logo de Sartre que se autoproclamou neo-dada. Que tipo de exigência racional mais careta, limitada e acadêmica demais para meu gosto, porque os tropicalistas funcionaram como sismógrafos, como antenas de gafanhotos captando um abalo sísmico iminente. La terra trema, terra em transe. As sirenas apitando e a nota era uma só: a fragilidade das instituições político-sociais brasileiras. Sabe-se que a chamada democracia no Brasil é uma planta exótica de difícil aclimatação por estas paragens, débil demais, já dizia o político baiano- brasileiro Octávio Mangabeira (Salomão, 2005, p. 40-1; grifos meus).

Já Caetano Veloso procurou responder a essa ideia do absurdo numa de suas canções intitulada “Love, love, love”

60 presente no disco Muito (1978) lançado numa época em que trabalhos críticos importantes como os de Heloísa Buarque de

Hollanda e Celso Favareto foram publicados:

Eu canto no ritmo, não tenho outro vício Se o mundo é um lixo, eu não sou Eu sou bonitinho, com muito carinho É o que diz minha voz de cantor Por nosso Senhor

Meu amor, te amo Pelo mundo inteiro eu chamo Essa chama que move Pelé disse Love, love, love

Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo Até aí, tudo bem, nada mal Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo O Brasil tem ouvido musical Que não é normal

[...]

A questão da racionalidade presente na resposta a essa crítica não é abandonada quando já no começo do século XXI,

Hermano Vianna escreveu um texto “Políticas da tropicália” publicado no livro Tropicália: uma revolução na cultura brasileira [1967-1972] (2007), organizado por Carlos Basualdo. À afirmação de Décio Pignatari (1968) – que dizia que enquanto o tropicalismo de Gilberto Freyre dava perspectiva ao trópico tal como visto da Casa-Grande, o ponto de vista dos tropicalistas era aquela originado da senzala – o antropólogo responde da seguinte maneira:

O olhar tropicalista prefere se espalhar fractalmente entre a senzala e a casa-grande, passando pela televisão do quarto de empregada do apartamento de Copacabana e indo até o quarto do presidente operário no Palácio da Alvorada em 61

Brasília, e é claro que sendo transmitido também para o circuito interno da mansão de Bill Gates e para o computador que Richard Stallman, criador da Free Software Foundation, estiver usando. Muito confuso para gostos racionalistas? (Vianna, 2007, p. 142).

É evidente a atualidade e a persistência de categorias como racionalidade e absurdo em relação à crítica do tropicalismo.

Interessa observar que muitas opiniões sobre o artigo de Schwarz

“Verdade tropical: um percurso de nosso tempo” (2012) reprovam- no pela acusação de ser demasiado político – ou ideológico, no jargão conservador - como se uma análise que se pretendesse política tivesse como objetivo privilegiar um enfoque em detrimento de outros. Marcos Augusto Gonçalves (2012) ao fazer menção sobre as boas análises e ideias do artigo diz que por mais que pareçam relevantes, constituem o contrapeso ideológico do texto.45 Nelson Ascher (2012), ao comentar o livro em seu espaço na Revista Veja, disse que nele abundam palavras de cunho político e escasseiam palavras como metáfora, anáfora e sinédoque que segundo ele são as que se espera num livro que é dedicado à literatura.46 Euler de França (2012) desenvolve essa crítica proposta por Ascher ao dizer que há um estrabismo em

Schwarz, pois um olho seu se voltaria à análise estética e o outro à análise ideológica.47 Isso após chamá-lo de “dublê de crítico literário e sociólogo pensador”. O que há de humor nessa

45 O seu texto “Schwarz vc. Caetano” foi publicado na seção “Ilustríssima” da Folha de São Paulo, em 15 de abril de 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/37138- feitico-tropical.shtml - acesso em 25/11/2012. 46 Disponível em: http://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/Praga/pt- br/file/26%20abr%20a%205%20mai.pdf - acesso em 25/11/2012. 47 “Caetano Veloso nocauteia Roberto Schwarz”, de Euler de França, Jornal Opção, 12/05/2012 – Disponível em: http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/caetano-veloso- nocauteia-roberto-schwarz - acesso em 25/11/2012. 62 situação não nos deve deixar enganar. A aparente limitação presente numa análise de alguém que afirma que a literatura tem que se ocupar de assuntos literários nos está mostrando mais um lado de um FEBEAPÁ que se configura neste início de século. Seus contornos e suas nuances, ainda que difusos, nos mostram algo: o festival de besteiras que assola o país não é um privilégio dos tempos do regime militar. A um mundo que muitos consideram novo, governado por novas subjetividades deveria corresponder um tipo de análise diferente. As que não acompanham essas mudanças já recebem de antemão o distintivo de ultrapassadas e também autoritárias.

Em uma entrevista Caetano comenta o fato de Schwarz ter levado cerca de quinze anos para realizar uma crítica sobre o seu livro, dizendo sobre Schwarz: “talvez ele tenha tardado também em metabolizar o que leu”.48 Em outra declaração, essa

“demora” para a crítica de seu livro é também comentada por ele:

Não deixa de ser um luxo que um intelectual com as qualificações de Schwarz tenha gastado tanta energia na análise do livro de um cantor de rádio. Mas Augusto de Campos viu muito mais, muito melhor e muitíssimo mais cedo (Veloso, 2012a).49

Referindo-se a essas declarações de Caetano, Denise Martins conclui seu texto sobre a maneira em que o ensaio de Schwarz foi

48 “Caetano Veloso e os elegantes uspianos”, presente na “Ilustríssima”, Folha de São Paulo, 15/04/2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/37126-caetano-veloso-e- os-elegantes-uspianos.shtml - acesso em 24/02/2013. 49 “Renovação da crítica ao Tropicalismo”, O Globo, 13/04/2012. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/renovacao-da-critica- ao-Tropicalismo-4629714 – acesso em 22/11/2012. 63 recebido pela crítica conservadora afirmando o seguinte sobre o cantor:

Enquanto se sobrepõe, no emaranhado de releituras seguidas à publicação de Martinha versus Lucrécia, uma incoerente salvaguarda à imagem do músico e escritor, ele mesmo, embora escape ao recalque daquela crítica protecionista de plantão, tropeça na infantilidade incompatível com as representações que Roberto Schwarz entrelaça em sua análise, e faz birra numa entrevista em que, para concluir suas distorções, apresenta o descabido argumento de que Schwarz teria chegado tarde para a crítica de seu livro, reproduz assim o lugar-comum, e vazio, do imediatismo. Ora, se o tempo comprometesse a importância de qualquer análise ou reflexão, não passaríamos de felizes (?) desmemoriados, sem acesso aos prazeres da tradição, que em seu conjunto é reivindicada a cada leitura (Freitas, 2012).50

As objeções direcionadas ao artigo de Roberto Schwarz procuram atacá-lo enquanto crítico, desqualificando-o pelo fato de sua análise estar relacionada à política e à história recente. Essa visão conservadora é reveladora da tendência de imputar ao crítico um frio papel de juiz do bom gosto e da técnica.

Perceber os conflitos relacionados à música popular numa perspectiva de longa duração é proveitoso para a análise do tropicalismo. Marcos Napolitano (2006) escreveu um artigo cujo título “A historiografia da música popular brasileira (1970-

1990): sínteses bibliográficas e desafios atuais da pesquisa histórica” nos dá um panorama sobre as discussões acerca da música brasileira. Pode-se enxergar no quadro de discussão o contorno de “duas linhas mestras do debate historiográfico que atravessou o século”. Cronistas como Francisco Guimarães e

50 “Veloso e Schwarz”, texto de Denise Freitas publicado no periódico eletrônico SIBILA. Disponível em: http://sibila.com.br/cultura/veloso- e-schwarz/5280 – acesso em 22/05/2012. 64

Orestes Barbosa, nos anos 1930, discutiam sobre o samba enfocando tanto as suas especificidades de gênero, quanto sua relação com o morro, que havia se consolidado como uma espécie de mito fundador da nossa identidade musical. Uma questão cara à problemática tropicalista é a oposição entre a procura de uma

“raiz” específica para a música e a assunção da busca de uma universalidade que já era discutida nesses tempos, décadas antes de seu surgimento. O artigo de Napolitano tem o mérito de situar a base das discussões da música nos anos 1960 antes e depois do golpe. A discussão entre a música folclórica, os ritmos fáceis e universalizantes não eram um dado novo na década de 1960.

Reatualizado então, esse embate até hoje é muito marcado pelas discussões sobre o tropicalismo, correndo o risco de se dar sob a sombra do rótulo da tropicália, o que termina por mistificar certas posições muitas vezes descontextualizadas. Ao comentar o livro Balanço da Bossa e outras bossas, de Augusto de Campos,

Napolitano faz uma observação importantíssima que deve ser estendida aos críticos e aos trabalhos aqui apresentados. Na proposta de mapeamento aqui experimentada o seu aviso deve se constituir como um alerta para muitos trabalhos da área de

Letras sobre esse tema que encaram os críticos e sua obra como descolados de um contexto e de uma determinada historicidade. É nesse ponto que vemos os danos da consolidação de uma mentalidade que separa a literatura da sociedade:

Enfim, o livro organizado por Augusto de Campos, através dos seus vários textos e entrevistas, é um exemplo de documento de época que se transformou na base ensaística a partir da qual uma boa parte da crítica e da historiografia passou a vislumbrar a vida musical dos anos 1960. Entretanto, deveria ser vista mais como uma fonte histórica, sujeita a

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perspectivas e interesses dos protagonistas de uma dada historicidade (Napolitano, 2006, p. 140).

Perceber as perspectivas e os interesses dos protagonistas de uma dada historicidade é um gesto norteador dessa dissertação que possui consequências que extrapolam o mero estudo de uma manifestação literária. Os livros de crítica literária não podem ser naturalizados como fontes neutras e objetivas e tampouco os críticos que os escrevem. O próprio título do livro de Heloísa

Buarque de Hollanda, Impressões de viagem (1981) pode ser usado como exemplo. Há uma tendência em considerar esse livro da maneira criticada por Marcos Napolitano, como se se tratasse de uma fonte histórica neutra, um clássico que contém informações, quase fatos sobre o tropicalismo.

As publicações de obras sobre o tropicalismo se tornam mais sistemáticas ao final dos anos 1970. É nessa época, quando se anunciavam supostos ares democráticos que um clima de distensão se mostrava propício para um movimento de revisão de eventos como o aqui discutido. As respostas às colocações de

Roberto Schwarz e Augusto de Campos se fazem nessa perspectiva.

O livro de Heloísa Buarque de Hollanda é uma obra de referência que surge nesse contexto. Heloísa propõe uma valorização do fenômeno, vendo-o como uma expressão de uma crise. Assim, o encara como uma implosão. Para a autora, o tropicalismo aponta para uma nova sensibilidade, a procura de uma coerência entre produção intelectual e opção existencial. O referencial de atuação propositiva do artista intelectual na construção da história não mais existiria. A representatividade dessas ideias

66 e as discussões suscitadas constituem-se importante matéria para os dois capítulos seguintes desta dissertação.

O caráter de moda associado ao tropicalismo longe de ser algo rejeitado era ambiguamente assumido. O rótulo que se configurou em torno do nome agrupa opiniões tão díspares sobre o tema da moda que não é de maneira alguma um ponto pacífico.

Importante exercício para evitar que o assumamos como dotado de uma coesão e de um projeto bem definido com ideias próprias é reiterar o seu caráter de construção. Caso contrário, arriscamo- nos a dar o primeiro passo em direção à canonização e à mistificação. Tanto hoje quanto na época em que o tropicalismo alcançava forte repercussão nos meios de comunicação esse caráter de moda é evidente como se pode notar na matéria intitulada “Tropicalismo: movimento, mito, escola ou cafajestada sob encomenda?”, de Arlette Neves, publicada na revista O

Cruzeiro, em 20 de abril de 1968, em que a jornalista entrevista

Maurício Vinhas, sociólogo e professor da USP, que reserva

ácidas críticas à tropicália, considerando-a como um:

nacionalismo de epiderme consentido, um tanto para inglês ver. Uma espécie de saudosismo disfarçado dos tempos da senzala. (Ao lado do , o Sr. Gilberto Freyre não será também um tropicalista?) É propor que nos comportemos como os ianques mais preconceituosos julgam que no fundo somos “Yes, nós temos banana”(Vinhas, entrevistado por Neves, 1968).51

Da mesma maneira que a pecha de moda atribuída ao tropicalismo era evidenciada tanto ontem quanto hoje, o

51 O artigo assim como muitos outros da época podem ser encontrados no portal Tropicalia.com.br. Disponível em: http://tropicalia.com.br/eubioticamente-atraidos/reportagens- historicas/Tropicalismo-movimento-mito-escola-ou-cafajestada-sob- encomenda - acesso em 25/11/2012. 67 questionamento de que este se constituía como um movimento já era feito até por um importante nome, como pode-se ver na resposta de Gilberto Gil a uma pergunta de Augusto de Campos, em entrevista realizada em abril de 1968:

AC: Como definiria você, agora que o LP de Caetano e o seu estão editados, o movimento do Grupo Baiano? GG: O trabalho que fizemos, eu e Caetano, surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado. Eu acho que só agora, em função dos resultados dessas novas investidas iniciais, pode- se pensar numa programação, numa administração desse material novo que foi lançado no mercado (Gil em entrevista a Campos, 2008, p. 194).

O espectro das questões que podem ser abordadas na crítica da tropicália é extenso. Seus aspectos tanto de moda quanto de movimento já eram motivos de discussão. Entretanto o quadro evidenciado hoje é de progressivo fortalecimento do caráter de movimento.

O livro de Gilberto Vasconcellos Música popular: de olho na fresta, de 1977, pretende valorizar o legado e a significação do tropicalismo. Respondendo à crítica de Schwarz, o autor afirma que, antes de projetar o conformismo (com a inevitabilidade do seu absurdo), a tropicália, por sua atitude irônica, denunciava uma visão alienada do Brasil, criticando os estereótipos nacionais mais arraigados em nossa consciência social. Essa posição é identificada por ele como ideológica. O termo não está posto numa acepção ingênua presente na expressão “contrapeso

68 ideológico”52 utilizada pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves na Ilustríssima e que é tributária da ideia de que há certas obras que são ideológicas e outras que não. Gilberto, nos anos

1990,53 quando da publicação do livro de Caetano, escreveu uma virulenta crítica ao autor e a tropicália que muito difere do tom assumido em 1977, revelando como esses mapa proposto assume nuances e relevos. É importante que valorizemos a importância do percurso que conecta os anos 1970 às décadas seguintes para percebermos mudanças como as de Gilberto Vasconcellos. O autor propõe uma abordagem que busca valorizar a experiência tropicalista a partir de seu aspecto político de denúncia. Já em

Impressões de viagem, de Heloísa Buarque de Hollanda, podemos perceber que é a mudança do que se entende por política uma das características da época do tropicalismo. Celso Favaretto (2007) relacionará a explosão tropicalista aos tempos em que a ideia de

Brasil é desconstruída em sua totalidade.

Devemos nos perguntar: Quais características e vetores de força estariam por trás dessas diferentes interpretações para um fenômeno e sua época? No que tange ao título da obra De olho na fresta, pode-se dizer que, assim como em Impressões de viagem, há uma ênfase na experiência e revisão, de quem passou por aquelas movimentações. É a experiência, o relato de quem viveu

52 Comentando passagens do artigo de Schwarz sobre os giros de posição de Caetano, Marcos Augusto Gonçalves diz: “Embora possam parecer relevantes, essas passagens na realidade são em grande parte o contrapeso ideológico do texto, cheio de boas análises e ideias, no qual o ensaísta retoma, aprofunda e aprimora aspectos de seu anterior e influente”. “Cultura e Política 1964-1969” - Schwarz vs. Caetano - Ilustríssima, Folha de São Paulo, 15/04/2012. 53 Em artigo que se intitula “Sem mentira não se vive” e que foi publicado no caderno +Mais, da Folha de São Paulo, no dia 2 de novembro de 1997. A epígrafe deste capítulo foi extraída desse artigo. 69 que nos permite pensar esse longo caminho. Cumpre dizer que, em dezembro de 2012, Gilberto Vasconcellos declarou renegar esse livro.54

Outro autor que promoveu reflexões sobre o fenômeno tropicalista foi Silviano Santiago, que em sua obra Uma literatura nos trópicos (1977) reúne escritos compreendidos entre os anos 1968 e 1977. Nos capítulos “Caetano Veloso enquanto superastro” e “Bom conselho”, o autor procura ver a feição de seu tempo a partir da figura de Caetano Veloso. Trata- se de um tempo em que, segundo ele, a cultura jovem já não dependia mais de uma reflexão organizada por princípios ideológicos. Schwarz é criticado por privilegiar uma razão dialética, herdeira de uma tradição europeia centrada em Hegel e

Marx, em detrimento de outras teorias e práticas que estariam fundamentadas numa especificidade cultural do Brasil. Segundo

Santiago há um lado etnocêntrico no materialismo dialético que deve ser subvertido. Observamos porém, que, nesse questionamento do lado etnocêntrico do materialismo dialético, parece questionada toda proposta embasada num viés materialista. Todo seu aporte é descartado de antemão. Esse tipo de colocação é um prato cheio para uma crítica que confunde totalidade com totalitarismo. Silviano Santiago também escreveu o prefácio para o livro de Gilberto Vasconcellos Música Popular: de olho na fresta, defendendo o projeto tropicalista e atacando o que ele chama de uma postura “dogmática e pessimista de Roberto” –

54 “Renego esse livro. Todo autor tem que ter um livro renegado”. A declaração foi feita em uma entrevista presente no número 411 da Revista do Instituto Humanitas/, em dezembro de 2012. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=art icle&id=4820&secao=411 - acesso em 05/03/2013. 70

[Schwarz], que, segundo Santiago, “teve várias objeções de ordem ideológica à tropicália” (1977, p.10).

Ocupando uma posição importante nas obras dedicadas ao tema em questão, o livro de Favaretto Alegoria alegria (2007) é uma obra de referência de grande relevância para a discussão do tropicalismo que, segundo a tese do autor, se configurou como uma explosão colorida, uma abertura cultural do Brasil que punha

à prova a realidade nacional. Discordando da tese de Schwarz,

Favaretto vê na alegoria a chave teórica para a compreensão da modernidade. Para o autor os fatores que justificariam a valorização do movimento devem-se ao procedimento alegórico, pois em sua fragmentação residiria a possibilidade de crítica à realidade. Dessa maneira se poderia descontruir os ufanismos e utilizar-se da paródia para pensar a conjuntura política e construir uma nova linguagem estética da canção. Utilizando-se de noções da psicanálise, o autor propõe a alegoria não como a expressão do absurdo a-histórico do Brasil, mas como uma espécie de retorno do reprimido. Não ignorando o aspecto publicitário de moda da tropicália, Favaretto defende a ideia de que ela questiona e desconstrói os mitos nacionais e a ideologia dos discursos sobre a nação. É interessante pensarmos que apesar do aspecto iconoclasta do tropicalismo referido, pode-se dizer que ao decorrer de sua análise há uma progressiva mistificação da tropicália, que contribui para a ideia de que o tropicalismo promoveu uma subversão da lógica de mercado que a tudo pretende transformar em mercadoria. Ao tropicalismo é reservada uma coesão que pode dar margem à sua canonização. Autores como

Kristeva (1970) e Lyotard (1973), utilizados em sua

71 fundamentação teórica, mostram-nos que as reflexões sobre a problemática do pós-moderno estão presentes em sua crítica, que também busca aproximar a imagética tropicalista com o surrealismo ao pensar a questão da alegoria. Respondendo às ideias de Schwarz, Favaretto escreve que:

A exposição do absurdo não implica a sua contemplação, podendo levar à desmistificação. [...] Assim compreendida, a alegoria tropicalista das “relíquias do Brasil” não petrifica o absurdo como um mal eterno. As ambiguidades da linguagem tropicalista não podem ser debitadas a uma visão fatalista, em que a história é tida como decadência, porquanto não há originalidade primitiva alguma a recuperar. O tropicalismo atualiza versões do passado, expondo-as como objetos a ver, através do brilho intermitente de imagens que fisgam as indeterminações do Brasil e afirmando que ele não chegou a ser (Favaretto, 1979 p. 124-5).

A defesa do tropicalismo e de um aspecto subversivo da alegoria tropicalista bem poderia ser interpretada como uma defesa do pós-modernismo como teoria:

Dizer que o tropicalismo é representação de representação é excluir a reduplicação: esvaziadas de seu conteúdo representativo, as imagens tornam- se formas cuja significação nasce do tráfego que as governa. Instala-se a dissonância: os contrários coabitam, se superpõem, se identificam, gerando sincretismo e indiferenciação – metamorfose pura, o reino da diferença. Nesta permutabilidade contínua no heteróclito, fluxo constante e descontínuo de imagens, é excluída toda ideia de totalidade ou de totalização. Daí o caráter ativo e subversivo da alegoria tropicalista, pois, ao libertar o desejo da totalidade, lança-o no fragmento puro. O fragmento é agressivo porque ironiza o todo, desapropriado pela operação parodística: é neste sentido que se pode dizer que o tropicalismo é interpretação de interpretação (idem, p. 28).

72

Entre as posições críticas que põem em perspectiva o quadro de canonização do tropicalismo que se vale da trinca teatro- cinema-música (respectivamente na tríade Celso-Rocha-Veloso) para afirmar o tropicalismo como movimento, o livro de Frederico

Coelho (2010) apresenta questões relevantes que problematizam décadas de acúmulo teórico sobre o tema. Em Eu brasileiro confesso minha culpa e meu pecado - cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970, o autor nota uma diferenciação que coloca em outra perspectiva a análise sobre o assunto. Segundo

Frederico há dois erros que perseguem a historiografia canônica sobre a tropicália: o que encontra numa trajetória de um artista uma racionalidade para o movimento, como costuma acontecer com as figuras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o que se utiliza de uma ideia de espírito de época. Com esses erros diversas manifestações e conflitos existentes são homogeneizados numa lógica de funcionamento já predeterminada. A confluência que desemboca em 1967 e 1968 não deve ser naturalizada. O problema da cultura marginal não pode ser reduzido à sua relação imediata com o tropicalismo. Uma categoria como “pós-tropicalismo”, cunhada por Heloísa Buarque de Hollanda em Impressões de viagem

(2004) não se sustentaria para definir a movimentação do início dos anos 1970. A diferenciação proposta por Frederico Coelho se aplica aos termos tropicalismo e tropicália. O primeiro seria entendido como o tropicalismo musical que se restringiu a um período (os anos de 1967 e 1968), enquanto o segundo diria respeito a algo mais amplo e envolveria diversos nomes das artes, como Oiticica, Lygia Clark, Rogério Sganzerla, Júlio

Bressane, Rogério Duarte, José Agrippino de Paulo, Waly Salomão,

73

Duda Machado, Torquato Neto e, em certa medida, Glauber Rocha. A tropicália, portanto, estaria para além dos limites de um fenômeno surgido em 1967, com o Festival da Canção: ela viria sendo gestada através de todo um campo de discussões que já se davam desde a década de 1950. A fundação de um cânone tropicalista terminou por colar esse segundo grupo ao primeiro.

Frederico propõe que descolemos a tropicália do tropicalismo, pois a memória do tropicalismo estaria engolindo hoje a da tropicália. Dessa maneira o autor defende a seguinte hipótese:

A partir dessa discussão sobre as especificidades do tropicalismo musical e da tropicália, sugiro a seguinte hipótese para este capítulo: em um segundo momento (do mesmo ano de 1968), Gil, Torquato e Caetano, ao aproximarem-se do universo estético de Hélio Oiticica, Rogério Duarte e Glauber Rocha, deslocavam-se desse tropicalismo modista e superficial (que chegava aos seus “limites de uso”) para a trincheira radical da tropicália e dos personagens que povoam tal universo. E não o contrário. À medida que essas aproximações entre artistas e músicos baianos ocorrem, não é o seu trabalho que se tornava mais pop ou até mesmo acessível a um grande público, mas eram os músicos que se tornavam mais radicais e violentos em suas aparições públicas - vide o exemplo de Caetano apresentando a canção “É proibido proibir”, em setembro de 1968, as imagens agressivas do programa Divino maravilhoso e a apresentação com a bandeira Seja marginal, seja herói em show de Caetano, Gilberto Gil e Os Mutantes na boate Sucata, em outubro do mesmo ano (Coelho, 2010, p. 137-8).

Pode ser traçado um paralelo entre essa tese e a de Flora

Süssekind (2007), que escreveu um artigo intitulado “Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista de fins dos anos

60”, publicado no catálogo Tropicália: uma revolução na cultura brasileira, organizado por Carlos Basualdo. No artigo, a autora

74 chama a atenção para questionamentos acerca do caráter de movimento e da limitação temporal da tropicália.

Talvez seja o caso, nesse sentido, de não se pensar unicamente, então, em movimento (no que esta expressão supõe de programático e organizacional), mas num “estado mais amplo e profundo”, numa “arena de agitação”, num “momento tropicalista” cuja abrangência iria bem além do campo estritamente musical (no qual se poderia pensar, de fato, num grupo mais coeso, constituído basicamente pelos participantes do disco-manifesto Tropicália), ou de uma limitação temporal demasiado rígida (se bem que o biênio 1967-68 concentra, de fato, algumas de suas mais intensas e significativas manifestações) (Süssekind, 2007, p. 31).55

Outro trabalho que não segue o senso comum da canonização do tropicalismo é Tropicalismo - decadência bonita do samba

(2000) escrito pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches. Esse livro nos chama a atenção por apresentar um discurso que difere completamente do senso comum sobre a tropicália. Num texto repleto de provocações, o jornalista escreve numa época em que a axé music - que tem muito a ver com o tropicalismo - estava em seu auge. A decadência bonita do samba a que se refere teria culminado na sua morte e o culpado por esse feito seria o tropicalismo que, fruto da pós-modernidade, estaria inscrito num tempo de presente perpétuo que dá o tom do final dos anos 1990 e percorre o seu texto. A hegemonia de Caetano Veloso - grande personagem do livro - e de Gilberto Gil revela os tempos de homogeneização e obscurantismo gritante na virada do milênio no

Brasil. Com uma prosa ácida que compara Caetano Veloso a uma

“Carla Perez de pop intelectuais e/ou intelectualoides

55 As expressões entre aspas utilizadas pela autora são de Poggioli e podem ser encontradas no livro de Marjorie Perloff, O momento futurista (1993, p. 19). 75 nacionais” (Sanches, 2000, p. 15) o livro tem o mérito de demostrar a dissonância presente na produção bibliográfica sobre o assunto. Um dado que chama atenção e que está relacionado a essa dissonância é a escassez de referências a essa obra - editada uma vez só - em outros trabalhos escritos posteriormente. A indiferença aqui expressa um ponto importante e nos revela em que medida alguns autores podem ser relegados, assim como Tom Zé o foi, ao papel de Trotskys da escrita da tropicália.56

A primeira obra oriunda dos EUA sobre a tropicália, intitulada Brutality Garden: Tropicalia and Emergence of a

Brazilian Counterculture (2001), foi publicada pelo brasilianista Christopher Dunn.57 O tropicalismo é por ele contextualizado e relacionado à contracultura, entendida como um fenômeno internacional. O trabalho é revelador de um crescente interesse de estudiosos estrangeiros sobre o tropicalismo e nos dá um interessante panorama do fenômeno e o relaciona a outras manifestações culturais surgidas nas décadas de 1980 e de 1990, como o Rap, o Hip-Hop e o movimento pernambucano do Mangue-bit.

Se levarmos em consideração os aniversários do tropicalismo teremos importante material para a investigação de como o processo de mistificação e canonização ocorre. O ano de seu

56 A dissertação de mestrado de Enzio Georcione Soares de Andrade intitulada “Essas pessoas na sala de jantar”: espaços históricos em canções tropicalistas (1963-1973), publicada pela UFRN, em 2011, elabora em seu primeiro capítulo um balanço bibliográfico da tropicália e tem o mérito de fazer uma breve análise do livro de Pedro Alexandre Sanches – ainda que, a meu ver, um tanto desmerecedora – ao menos considerando a existência do livro. 57 Em 2009, em publicação da UNESP, foi lançada a tradução feita por Cristina Yamagami com o título Brutalidade jardim - A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. 76 surgimento é apontado geralmente como 1967. A escolha dessa data

é tributária do domínio do tropicalismo sobre a tropicália, nos termos de Frederico Coelho (2010), pois nela ocorreu a apresentação de “Domingo no parque” e “Alegria alegria”, no

Festival da Canção da Record. Os anos de 1977, 1987, 1997 e 2007 tornaram-se as efemérides que buscaram repensar e revisar o legado tropicalista. Comparar os distintos aniversários é uma tarefa que envolve outra maior, que é a de pensar o Brasil contemporâneo. O estudo de tais datas deve seguir a direção contrária da que prioriza as mudanças e as rupturas de nossa realidade política. Num plano superficial de quem enumera fatos políticos que ocorreram na retrospectiva de um ano teríamos então uma multiplicidade de realidades, momentos e detalhes que, se espalhados por aquelas datas, turvariam a nossa vista. É preciso que forcemos o nosso olhar para buscar o inconcluso, as continuidades que persistem apesar do progresso como mito insistir em reivindicar uma desconexão do presente com o passado.

Algumas páginas da Revista Manchete de fevereiro de 1983 foram dedicadas aos quinze anos do tropicalismo. A revista nos dá um panorama amplo do assunto, discorrendo rapidamente sobre suas principais características e as pessoas envolvidas. Como de praxe em muito do que se escreveu com essa temática, o disco manifesto Tropicalia ou Panis et Circensis é analisado. O tom que se percebe na leitura da matéria escrita por Sérgio Costa é o que afirma o caráter contestador e subversivo do objeto da reportagem. Com esse objetivo o texto “procura lembrar um pouco daquela época em que ‘tudo é perigoso, tudo é divino

77 maravilhoso’. Antes que a história se perca na lenda”. Sérgio

Costa dá a palavra ao empresário Guilherme Araújo, grande nome na estratégia de lançamento do tropicalismo no mercado:

Aos que acusavam - e acusam - a tropicália de “alienada”, Guilherme Araújo lembra a prisão de Gil e Caetano, na manhã de 31 de dezembro de 1968. “Nós morávamos no mesmo prédio da avenida São Luís, em Sampa. Caetano e Dedé, dois andares acima. Seis da manhã fui acordado por Dedé que dizia estar com dois policiais em casa. Subi e os homens me informaram que levariam Caetano para um ligeiro interrogatório e poucas horas depois ele estaria de volta. Perguntaram inclusive se tínhamos algum compromisso e eu respondi que mais tarde haveria a gravação de um programa na tevê. Eles disseram que estava tudo bem. E saíram com o Caetano, que só foi localizado dias depois, preso na Vila Militar” (apud Costa, 1983, p. 85).

Uma coletânea de título Tropicália 20 anos (1987), publicada através do Sesc58 e organizada por Jesus Vazques

Pereira, denota a progressiva institucionalização a que o tropicalismo já se submetia. A coletânea contém artigos de diferentes personalidades, como Tom Zé, Luiz Carlos Maciel,

Celso Favaretto, Waly Salomão, Augusto de Campos, Ismail Xavier,

Chico de Assis, entre outros. Na introdução escrita por Danilo

Santos de Miranda, diretor regional do SESC de São Paulo, lemos o seguinte:

58 “O Sesi foi o “instrumento de realização da filosofia social da indústria, baseada inclusive na doutrina social da Igreja” (Beloch; Fagundes, 1997, p. 133). Inspirado no ideário de cooperação das classes e da paz social, o Sesi, assim como seu congênere Serviço Social do Comércio (Sesc), criado no mesmo ano, tornaram-se valiosos instrumentos de combate ao comunismo. À diferença do Senai e Senac e sua marca de órgãos “técnicos”, o Sesi e o Sesc nasceram como organizações ideológicas confessas em um momento de incipiente rearticulação do movimento dos trabalhadores. Se Senai e Senac pretendiam formar trabalhadores enquanto tais, Sesi e Sesc iam além, propondo a formação do trabalhador em um sentido amplo (Pronko, 2003).” (Neves (org.), 2010, p. 59)

78

Temos plena certeza de que este esforço de revisão do tropicalismo atingiu seus objetivos, quer do ponto de vista da informação, quer do ponto de vista de uma certa revivência lúdica que aproximou os jovens de ontem aos jovens de hoje, através de sua intensa programação. Mas, principalmente, do ponto de vista de fazer um registro histórico e o necessário desvendamento de seus significados. Se de “Tropicália 20 Anos” ficar ainda um pequeno e involuntário sabor nostálgico, isso certamente será devido a uma natural simpatia que a entidade sempre nutriu por aqueles que têm ou tiveram a ousadia de mudar (SESC, 1987, p. 7).

A frase “ousadia de mudar” denota as novas diretrizes das classes empresariais que se imbuíam de uma retórica da mudança anunciando uma espécie de nova sensibilidade, uma nova pedagogia do empreendedorismo que anunciava a formação de um novo consenso num contexto pós-ditadura militar. Em relação a alguns textos da coletânea, é interessante notar a presença de um tom nostálgico que se contrasta a um certo desprezo pela produção artística da década de 1980, associada à invasão de um rock sem qualidade.

Dentre as efemérides, o ano de 1997 é sintomático por representar não só o terceiro aniversário da tropicália como também a publicação de Verdade tropical do Caetano, uma autobiografia que procurava justamente dar a sua interpretação para a tropicália. Roberto Schwarz ao tratar do assunto, passados quinze anos, não deixa de contribuir para a sua consagração ao situar o livro “em boa posição ao lado dos congêneres literários ilustres, como o Itinerário de Pasárgada, de Bandeira, e o Observador no escritório, de Drummond, ou as memórias de Oswald de Andrade e de Pedro Nava” (Schwarz, 2012, p. 53). Vale lembrar que 1997 foi o ano em que o Brasil assistia ao sucesso do Plano Real e à implementação progressiva de

79 medidas neoliberais por parte do governo de Fernando Henrique

Cardoso.

Indo contra a maré do senso comum e da própria má-fé não devemos nos deixar enganar pensando que esses tempos já se foram e estão distantes, já que a considerada oposição ao governo FHC chegou ao poder. O que era chamado de privatização em 1997 hoje recebe eufemisticamente o nome de concessão.59 A retórica do ano de 2007 já se faz amparada numa lógica explícita da terceira via que justamente procura se distanciar dos tempos neoliberais, mas na realidade os traduz para um tempo em que o capital ainda é o consenso e se estabelece como cada vez mais arraigado e inexorável em nosso horizonte. Não devemos pensar que os tempos de hegemonia neoliberal são uma página virada na história. Como conclui o Coletivo de Estudos de Política Educacional no capítulo “Fundamentos históricos da formação/atuação dos intelectuais da nova pedagogia da hegemonia”:

Assim sendo, fica evidente que os tempos de hegemonia neoliberal se efetivaram no aperfeiçoamento de estratégias políticas concentradas fundamentalmente na formação de uma nova subjetividade coletiva que resultou numa nova sociabilidade (Chaves, 2010, p. 71).

Francisco Alambert publicou um artigo na Revista do

Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo intitulado “A realidade tropical” (2012). As reflexões realizadas pelo pesquisador são de suma importância para o

59 Há uma diferença sutil entre privatização e concessão. Maior que a diferença, porém, há o fato de que ambas constituem-se como desestatizações e contribuem para o desmonte do bem público. Ambas vão contra o processo de descomodificação que consiste retirar domínios sociais apropriados pelo capital da esfera mercantil. 80 debate da tropicália, pois procura ir contra a consagração reinante sobre o assunto. Além do mais, o autor realiza uma crítica que não se isenta do presente, relacionando a consolidação do tropicalismo com o momento político atual a partir de uma visão crítica da euforia do progresso de um governo que se proclama de esquerda. O futuro da questão cultural no Brasil, assim como o seu debate são questões demasiado urgentes para o debate crítico do tropicalismo que parte de seu contexto de consolidação. Na conclusão de seu artigo, Francisco afirma ser essa uma tarefa coletiva da crítica:

Assim, o mundo “pós-moderno”, neoliberal, antirrevolucionário, multicultural etc. convive com uma versão quarentona do tropicalismo. Entender como se dá a dialética dessa “tradição” (agora tanto razão de Estado quanto centro da indústria cultural) e dessa “modernidade” é central para se compreender o futuro da questão cultural no Brasil, sobretudo no que tange à possibilidade de revitalização de uma cultura de “resistência” que a razão tropicalista implodiu. Isso é uma tarefa pra muitos. A proposta de grupos de teatro de recuperar a tradição épica e dialética, enfrentar a produção de cultura como ato político coletivo, contrariando os imperativos da indústria cultural e do domínio das leis de “incentivo” à cultura atreladas aos departamentos de marketing das empresas (como a famigerada Lei Rouanet), representa a tentativa de elaboração de uma arte nova, que ignora o niilismo bem posto que o tropicalismo nos ensinou a adorar (Alambert, 2012, p. 150).

A proposta de mapeamento teórico realizado aqui se configura também como uma discussão bibliográfica que procura balizar e demarcar diferentes pontos de discussão sobre a tropicália.

Quais conclusões podemos retirar dessa combinação de diferentes ideias que poderíamos ver como uma constelação? Quais terão sido os procedimentos de valorização e crítica do assunto? 81

Como podemos ler essas críticas como pertencentes ao seu tempo?

O que nos diz a fundamentação teórica proposta? Arte e política devem ser pensadas de maneira isolada ou são necessariamente relacionadas?

Não há como deixar de notar o quanto adjetivos como

“datado” e “ultrapassado” são importantes para abordar os embates que perduram no tempo. Como interpretar a afirmação de que o debate sobre o significado do tropicalismo a partir de uma perspectiva dialética entre a arte e a sociedade se encontra ultrapassado? Maria Elisa Cevasco (2012) nos sugere algo quando aponta a reação indignada provocada pelo artigo de Schwarz nas páginas da grande imprensa:

Para os que aspiram ainda a um mundo diferente, estas reações provocam uma esperança: se o antimarxismo está tão vivo e latejante, será possível afirmar que seu antagonista, não só como a instância da crítica ao vigente mas também como demonstração da necessidade de mudar, ao contrário do que dizem, não morreu? Os ensaios de Roberto são uma resposta incisiva a esta questão recorrente (Cevasco, 2012).

As noções de modernidade e a de contemporaneidade devem ser tratadas com atenção, pois o tropicalismo na sua qualidade de fenômeno pop costuma ser associado ao que de mais moderno e contemporâneo houve na música brasileira. Essa proposição que tem muito a nos revelar não é apolítica ou neutra e tampouco é um fato que se evidencia por si só.

É interessante notarmos a qualidade de “radicalismo” que é dada a qualquer visão que ouse questionar o estabelecido. A

82 tropicália, que em declaração recente60 foi dita como domesticada pela esquerda, precisa se explicar. O que está em jogo é a forma como lidamos com uma época que passou e hoje já pode ser fruto de uma distraída fruição catalogada na história. O que cumprirá um papel importante na argumentação é o percurso que seguimos, é

O que fizemos de nós, sugestivo título da obra de Zuenir Ventura

(2008). Em Essa guerra ainda terá muitas batalhas, o escritor carioca nos diz algo importante para pensarmos o Brasil de hoje.61 A sua celebração da UPP como o começo da reunificação da cidade através da megaoperação que atraiu as câmeras e os olhos de todos em novembro de 2010 tem alguma coisa importante a nos revelar (assim como também, em outro artigo, a desastrosa comparação que fez do sentimento de libertação dessa operação de pacificação com o 25 de abril português)62. Ventura não está sozinho no argumento da “libertação”. A propaganda oficial do

Governo do Estado do Rio de Janeiro sobre a Unidade de Polícia

Pacificadora veicula a seguinte frase entre as imagens da paz:

“200 mil pessoas libertadas”.63 Há algo cifrado nesse “novo

60 Euler de França fez essa declaração em uma matéria publicada no Jornal Opção, na edição 1922, de 6 a 12 de maio de 2012: “A Tropicália percebida por Schwarz é uma Tropicália domesticada... pela esquerda. Estava a serviço de uma causa. Entretanto, ao contar sua história, Caetano pôde explorar suas contradições e exibir uma crítica mais aberta e contundente não apenas à ditadura”. Disponível em: http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/caetano-veloso- nocauteia-roberto-schwarz - acesso em 13/03/2013. 61“As UPP são o começo da reunificação da cidade” - declara Zuenir Ventura. O texto entremeado com falas suas foi escrito por Alexandra Lucas Coelho e disponível em: http://blogues.publico.pt/atlantico- sul/2010/12/06/zuenir-ventura-%E2%80%9Cesta-guerra-vai-ter-muitas- batalhas%E2%80%9D/ - acessado em 02/12/2012. 62 “De volta ao alemão”, texto de Zuenir Ventura publicado no jornal O Globo, em 04/12/2010. 63 A propaganda realizada pela agência Prole e dirigida por Mini Kerti foi publicada no Youtube em junho de 2010 e está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=kPIA8WKSV1c - acesso em 21/01/2013. 83 momento”, nesse suposto período de começo de paz, uma paz sem voz que – como canta O Rappa - não é paz, é medo.64 Esse algo parece naturalizar e louvar uma nova ordem em que a comunidade

“pacificada” torna-se terreno para a implementação de ONGs e instituições em que o Estado e a iniciativa privada são vistos como parceiros com suas noções de lucro e governabilidade impostas como a única saída possível para os problemas. Essa imposição é realizada a partir de um forte consenso – uma força em nossos tempos.

Se a tropicália tornou-se afinal uma desculpa para se falar de outros assuntos, assumamos isto e nos perguntemos justamente quais outros assuntos que devem nos parecer relevantes.65 Na relação entre cultura e política, as diferenças conceituais estabelecidas são significativas. Seria possível uma análise exclusivamente política ou cultural? O debate epistemológico define questões de nosso tempo, da maneira como encaramos a realidade e os conceitos. Pensar a tropicália hoje se tornou um interessante exemplo, uma forma de interpretarmos o Brasil. É conveniente reconhecer que há um vago incômodo em pensar o

64 O verso reproduzido de Marcelo Yuka é da canção “Minha Alma”, do grupo O Rappa: “A minha alma tá armada e apontada /Para cara do sossego! / (Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!) / Pois paz sem voz, paz sem voz / Não é paz, é medo! / (Medo! Medo! Medo! Medo!)”. Lado B Lado A, Warner Music, 1999. 65 É Sovik (1998, p. 1) quem diz que: “O fato do discurso sobre o tropicalismo estar repetitivo é um sinal de como este está se tornando uma maneira de se falar sobre outros assuntos. Está se tornando parte do cânone do discurso da identidade brasileira, aceito como um essencial ponto de referência” (tradução minha). Original em inglês: “The fact that discourse on Tropicalismo is repetitive is a sign of how it is becoming a way of speaking about other things. It is becoming part of the canon of Brazilian identity discourse, accepted as an essential point of reference”.

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Brasil na sua totalidade, em arriscar-se a especular ou realizar uma interpretação. A nota que percorre é a de que pensá-lo na sua totalidade tornou-se uma tarefa arriscada demais, quase impossível, que já é logo taxada de ideológica, obsessiva com a sociologia e outras classificações. As relações entre a estética e a política cobrem-se de uma espécie de tabu e quando uma análise entre essas esferas num estudo crítico é feita acusam-na de mascarar um discurso ideológico sob a persona de uma análise estética. O problema aqui não é de diferentes opiniões ou maneiras de ver o mundo: trata-se de um estreitamento da nossa perspectiva crítica que procura justamente ignorar a dialética que existe entre arte e sociedade.

Não é tarefa nossa estabelecer juízos determinantes para a tropicália, se ela foi isso ou aquilo. É preciso evidenciar a canonização, entender sua significação e buscarmos o seu legado.

O que terá ela nos aportado? A questão da Odebrecht e os depoimentos de Gilberto Gil, Tom Zé e Caetano Veloso aqui referidos podem nos dar algumas pistas. Assim como a abundante produção cinematográfica e acadêmica sobre o assunto.

E por que hoje se fala tanto em tropicália? Há entre essas duas épocas uma certa afinidade, uma estranha aproximação que resiste, apesar dos quase 50 anos que insistem em separá-las completamente. O denominador comum entre os dois tempos é o mito do progresso. A afinidade que une os períodos não está dada de antemão, não é óbvia. Necessita de um estranhamento de nosso olhar para observá-la. Qualquer escrito ou dito sobre a tropicália, suas ideias e seu legado adquire a qualidade de

85 interessante, pois através deles podemos pensar o Brasil de hoje.

Com o material apresentado neste capítulo pudemos fazer um esboço ao dispor a produção teórica sobre o tropicalismo em um mapa cujos continentes e oceanos não têm contornos objetivos, pois se relacionam com quem escreve, onde, como, quando, sobre e por quê. A historicização em seu afã de registrar e de organizar os fatos é uma das faces do mito do progresso que se relaciona à noção de moderno, vigente tanto naquela época quanto nos dias de hoje. Ela deve nos provocar a pensar o presente. É por isso que se torna imperativo encarar os questionamentos culturais e políticos recentes à luz do mito do progresso e dos discursos que propagam novos tempos.

Ao realizarmos uma crítica da crítica conservadora direcionada a Roberto Schwarz, mais especificamente no ano de

2012, veremos na ânsia de se separar a esfera política e cultural uma tentativa de retirar da crítica literária o seu potencial negativo de questionamento da ordem. A produção acadêmica sobre o tropicalismo e a presença teórica de Walter

Benjamin constituem matéria interessante para a problematização e o questionamento da separação entre as duas esferas. Tal separação se traduz no que entendemos como uma moda Benjamin, em que a citação, apropriação ou utilização desse autor e de suas ideias são tão evidentes na produção acadêmica de variadas áreas das ciências humanas, que se tornaram uma espécie de moda.

Avaliar as relações dessa moda Benjamin com a moda da tropicália é o objetivo central do próximo capítulo.

86

3. A moda

A tendência do tropicalismo, em alta para o verão 2013, traz à estação o frescor baseado em aspectos naturais. [...] Como usar a moda tropicalista? Às mulheres sem medo de ousar, sugerem-se peças lisas em uma das cores do tropicalismo com motivos estampados. Referência também presente nos acessórios, combine braceletes, colares e elementos coloridos com temas tropicais. Mulheres discretas, porém, podem apostar nas produções menos chamativas, e combinar superfícies lisas no verde ou amarelo, por exemplo, aos tons suaves do off- white, nude ou branco. Para um visual atual, invista em camisas refinadas aliadas às sandálias e calças de print tropical.

Site da marca Lado Avesso66

Agora o tropicalismo está de volta, mas dessa vez sem tanta rebeldia: ele apenas vai entrar em nossos guarda- roupas! Vamos participar do tropicalismo pelo simples prazer de vestir o bonito, o colorido e o alegre, mostrando o orgulho que temos do nosso país.

Blogue Mana Manuê Calçados67

Ao digitar no serviço de buscas Google as palavras

“tropicalismo” e “moda” encontram-se aproximadamente 195.000 resultados. Algo curioso se revela: as páginas iniciais são em

66 Disponível em http://ladoavesso.com.br/blog-de-moda/Tropicalismo/ – acesso em 06 de fevereiro de 2013. 67 Disponível em http://www.manamauecalcados.com.br/brasil- Tropicalismo-na-moda/ – acessado em 06 de fevereiro de 2013. 87 sua maioria de sites de moda, de marcas de roupas, acessórios ou de lojas que divulgam suas coleções explorando o que se apontou como a tendência do verão de 2012 e 2013. As referências de artigos sobre o tema que relacionam o tropicalismo à moda se perdem pela blogosfera. O que já existia no ano anterior é apresentado como a última novidade. Entramos na dimensão de tempo do inferno, de repetição do mesmo que Walter Benjamin identifica na moda.68 As relações entre a moda e a revolução constituem um importante núcleo da argumentação do crítico alemão e estão estreitamente relacionadas à teoria do progresso.69 As associações entre o tropicalismo e o mundo fashion não são novidade: desfiles de moda como o da Rhodia, em

1968, foram considerados tropicalistas assim como as roupas desenhadas pela estilista mineira Regina Helena Boni que podem ser vistas no volume de Marisa Alvarez Lima intitulado

Marginália: arte e cultura na idade da pedrada (1996).

Teorizando sobre a relação entre as duas categorias, o crítico argentino Gonzalo Aguilar escreve o seguinte:

Ao observar o Tropicalismo com os olhos da moda, a complexidade de suas práticas se revela com a ambiguidade e a violência simbólica que são duas de suas características. O Tropicalismo foi, entre outras coisas, uma moda, e suas obras e histórias

68 Há uma correspondência entre a modernidade, o progresso e a condenação ao inferno. A quintessência do inferno para Benjamin em Passagens é a eterna repetição do mesmo. A temporalidade da moda é associada ao inferno, na medida em que ela é a repetição do mesmo que não possui fim nem ruptura, servindo assim como camuflagem para as classes dominantes esconderem o horror que possuem a qualquer mudança radical (Benjamin, 2006). 69 Michael Löwy comenta em Aviso de Incêndio a tese XIV: “Como interpretar, nesse contexto, a surpreendente comparação entre a moda e a revolução? Uma observação em Das Passagens-Werk nos ajuda a compreender o paralelo. Aparentemente, elas têm a mesma conduta: enquanto a Revolução Francesa cita a Antiguidade romana, a moda do final do século XVIII cita a Antiguidade grega” (Löwy, 2005, p. 120). 88

extraem sua força do contato com esta. Mas, correlativamente, também foi um movimento que pôs a moda em tensão com a arte e a cultura (Aguilar, 2005)

Situadas em uma outra esfera que não se desconecta da primeira exemplificada pela epígrafe, podemos vislumbrar uma moda tropicalista encontrada em diversas teses, filmes, dissertações, discos e monografias. Nesse percurso crítico outra moda nos acompanha. Trata-se da moda Benajmin, presente na produção acadêmica de muitos centros universitários (brasileiros ou estrangeiros). Este capítulo possui como objetivo evidenciar tal moda no intuito de perceber quais relações podemos estabelecer com a tropicalista. Uma considerável parte dos trabalhos sobre o tema procura amparo teórico nas ideias de

Walter Benjamin. A utilização automática das noções de um autor como se fossem elementos isolados, encaixes de um arcabouço teórico pré-fabricado, deve ser, no entanto, questionada. Por mais que tenhamos patente essa questão, ignoramos o quanto o saber acadêmico está preso a amarras que impedem um pensar mais ensaístico, que sofra menos pressões de citações e referências – que muitas vezes valem como atestado de um pertencimento teórico ou como escudos que conformam um saber que enumera fatos como quem organiza tediosamente a lista de autores em uma biblioteca.

O assunto está relacionado a uma problemática muito presente na produção discente da graduação, que ao escrever seus primeiros trabalhos tem que formular a sua fundamentação teórica e se alocar numa posição em que a citação de um autor tem um peso sobre-estimado no texto do aluno. A produção acadêmica iniciante

89 não deve ser vista como um campo isolado da que consideramos já consagrada e reconhecida pela comunidade da academia.

Os estudos sobre a tropicália realizados entre o final da década de 1970 e o início da década seguinte foram descritos no capítulo anterior como pertencentes a uma leva que responde ao debate de final dos anos 1960. Tal produção se conforma aos padrões acadêmicos e consolida a discussão do assunto. Celso

Favaretto e Heloísa Buarque de Hollanda são um exemplo com seus trabalhos que foram, respectivamente, uma dissertação de mestrado do curso de filosofia da Universidade de São Paulo e uma tese de doutorado apresentada na Faculdade de Letras da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Inseridas num ambiente acadêmico, ambas se diferenciam das anteriores por apresentarem uma fundamentação teórica que se ampara em autores que não estão restritos apenas a um único campo do saber. Walter Benjamin não escapa dessa fundamentação. Em seu artigo “Cultura e política

1964-1969”, escrito em 1969, Roberto Schwarz faz referência ao filósofo numa época em que seu nome não era muito recorrente no ambiente acadêmico brasileiro. Analisar de que maneira os argumentos e as ideias de Walter Benjamin foram encadeados é aventurar-se no delicado terreno da recepção das ideias de um autor num contexto acadêmico específico. O trabalho de Gunter

Karl Pressler intitulado Benjamin, Brasil (2006) procura seguir tal caminho ao analisar a recepção do filósofo alemão no contexto brasileiro.

Minha análise não buscará inventariar os trabalhos sobre o tropicalismo que fazem referência a Walter Benjamin, mas pôr em contato, lado a lado, o que chamo de moda tropicalista e moda

90

Benjamin para, através das significações que puderem ser depreendidas dessa aproximação, elaborar um questionamento sobre a relação entre a crítica literária e o seu tempo.

É marcante a presença de um autor como Walter Benjamin no campo das ciências humanas. Da comunicação social à história, da teoria da literatura à pedagogia, Benjamin é reivindicado por diferentes linhas teóricas. Num plano generalizado, pode-se dizer que ele é disputado por dois grandes campos: o moderno e o pós-moderno. São conhecidos os reducionismos que podem se esconder por trás dos termos. Há, no entanto, uma diferença na apropriação entre os dois campos que é política. A inserção nos centros acadêmicos nos revela sua atualidade e, consequentemente, o seu caráter de moda. Michel Löwy (2005) nos adverte para a impossibilidade de recrutar Benjamin para um campo de pensamento específico, pois, antes de tudo, o pensamento do crítico alemão morto em 1940 é “uma crítica moderna à modernidade (capitalista/industrial), inspirada em referências culturais e históricas pré-capitalistas” (p. 15).

O termo “moda Benjamin” já é utilizado por

(2007) em um artigo que tem por título “Olvidar a Benjamin”. O panorama apontado pela autora no contexto argentino pode ser relacionado ao brasileiro, pois seu modismo não é um fenômeno exclusivamente da Argentina, quanto menos latino-americano. A argumentação de Sarlo parte da constatação do quanto alguns conceitos do autor tornaram-se inflacionados nas discussões acadêmicas. Segundo ela, tanto a semiótica quanto os cultural studies abordam obstinadamente a problemática da cidade e ignoram as diretrizes que estão por trás. A autora faz uma

91 observação importante ao situar cronologicamente (década de

1980) o que chama de moda: um período em que as universidades argentinas passavam por um processo de conformação às regras acadêmicas que se seguiu à ditadura militar - responsável por iniciar um processo de decomposição da estrutura que havia anteriormente. Sua observação em relação à Argentina pode ser estendida aos outros países do continente latino-americano que passaram por essa “modernização” em seu ensino universitário que se reflete num declínio de um importante viés ensaístico na produção acadêmica. Relacionar o momento da universidade atual à

época da ditadura é uma tarefa muitas vezes esquecida. No contexto observado por Beatriz Sarlo haveria na recepção de

Walter Benjamin uma “inflação conceitual” (Sarlo, 2007, p. 79) que terminaria esvaziando algumas noções, tornando-as meras etiquetas de moda. Autores como Foucault e Bakhtin, de acordo com Sarlo, também passam por processos semelhantes. Sobre Walter

Benjamin a autora diz:

A leitura de Benjamin (e, junto com ele como se tratasse mais ou menos do mesmo, de Schorske, Berman, Sennett, De Certeau, Augé, Baudrillard, entre outros) tem produzido uma espécie de erosão teórica que carcome a originalidade benjaminiana até os limites da completa banalização. Dizer que estamos frente a um caso de empobrecimento semântico é pouco. Benjamin está ensopado em um xarope puramente léxico: ele é citado como se a citação assegurasse, como às vezes assegurava a Benjamin depois de muito trabalho compositivo e histórico, a produção de um sentido novo sobre

92

cenários diferentes (Sarlo, 2007, p. 79-80; tradução minha).70

A conclusão a que Beatriz Sarlo chega é que, no momento em que Benjamin se encontrar inflacionado por um tipo de análise fragmentária que desconhece (ingênua ou propositalmente) as linhas de força que o norteiam, ele deve ser esquecido. A figura do flâneur é um dentre tantos outros índices que conformam a sua imensa obra inacabada, o livro das Passagens (2006) que teve como objetivo norteador fazer uma genealogia do capitalismo e da modernidade. A provocação que dá título ao seu artigo “Olvidar a

Benjamin” está relacionada à ausência na Moda Benjamin das dimensões relacionadas à teoria do conhecimento e do progresso, espécie de ponto nevrálgico das questões que inquietaram o crítico.

Antes de Sarlo, em 1982, Jeanne Marie Gagnebin se aproximava da constatação da argentina ao evidenciar no contexto brasileiro o boom benjaminiano e o seu caráter de moda: “No

Brasil [...] assistimos, nestes dez últimos anos, a um verdadeiro boom benjaminiano, certamente bem-vindo, mas não sempre desprovido de modismos” (Gagnebin, 1982, p. 75-6).

Referindo-se a um caso mais grave que o de Walter Benjamin,

Ronaldo Lima Lins fala em um “assassinato cultural” do filósofo

Jean-Paul Sartre na academia. O esquecimento de sua figura

70 No original: La lectura de Benjamin (y, junto con él como si se tratara más o menos de lo mismo, de Schorske, Berman, Sennett, De Certeau, Augé, Baudrillard, entre muchos) ha producido una especie de erosión teórica que carcome la originalidad benjaminiana hasta los límites de la completa banalización. Decir que estamos frente a un caso de empobrecimiento semántico es poco. Benjamin está ensopado en un jarabe puramente léxico: se lo cita como si la cita asegurara, como a veces le aseguraba a Benjamin después de mucho trabajo compositivo e historico la producción de un sentido nuevo sobre escenarios diferentes.

93 equivaleria a um segundo enterro, este “mais sério e definitivo do que o primeiro, porque um enterro de opiniões”. (Lins, 2009, p.45) Podemos fazer uma aproximação entre a recepção dos dois filósofos justamente pela desqualificação de seus vieses marxistas:

E, como ninguém escapa da engrenagem, mostram-se cada vez mais velozes, dentro das regras do consumismo, os ventos de renovação que sopram e derrubam os parâmetros assumidos de cultura. Com referência a Sartre, cumpre notar que, durante os festejos, enquanto recuperavam O ser e o nada, da fase fenomenológica, ficaram evidentes os esforços da crítica em desqualificar a fase do existencialismo marxista, como se, aqui, somente uma parte da obra, e não o seu conjunto, tivesse de ser apreciada e estudada (Lins, 2009, p. 46).

Chamar a atenção para a importância da crítica do progresso no pensamento de Benjamin é evidenciar o quanto distintas noções suas se inter-relacionam. Nesse sentido, conceitos de Walter

Benjamin importantes como o de jetztzeit (o tempo-de-agora), da rememoração, da experiência e da alegoria não podem se isolar do questionamento do progresso como mito. A ênfase nessa crítica como um traço marcante da produção intelectual de seu pensamento nos revela o quanto as apropriações de sua teoria são utilizadas em contextos muitas vezes inusitados, que acabam se esvaziando de sua dimensão filosófica e de seu caráter político. Tomando como exemplo um fragmento do arquivo temático B [Moda] de seu livro Passagens, podemos depreender de sua superficialidade, algo tão caro a Benjamin, um aspecto da moda que não é dos mais

óbvios e quando relacionado aos conceitos de Benjamin, citados há pouco, reveste-se de um potencial crítico valioso que não deve ser descartado:

94

Uma perspectiva definitiva sobre a moda oferece-se apenas pela observação de como para cada geração aquela que a precedeu imediatamente parece ser o antiafrodisíaco mais radical que se possa conceber. Com este julgamento, ela não está tão errada como se pode imaginar. Há em cada moda algo de sátira amarga do amor, cada moda contém todas as perversidades sexuais da maneira mais impiedosa possível, cada uma comporta em si resistências secretas contra o amor. Vale a pena confrontar-se com a seguinte observação de Grand-Carteret, não importa quão superficial ela seja: “É pelas cenas da vida amorosa que se percebe, na verdade, aparecer todo o ridículo de certas modas. Estes homens, estas mulheres, não são eles grotescos em gestos, em poses, pelo topete extravagante em si mesmo, pelo chapéu de copa alta, pelo redingote ajustado à cintura, pelo xale, pelos chapéus de abas largas, pelos pequenos borzeguins de tecido? “O confronto das gerações passadas com as modas tem então uma importância muito maior do que se imagina habitualmente. E é um dos aspectos mais importantes do costume histórico de empreender isso, sobretudo, no teatro. A partir do teatro, a questão do costume penetra profundamente na vida da arte e poesia, nas quais a moda é, ao mesmo tempo, mantida e superada (Benjamin, 2006, p. 103-4).

O potencial crítico que se pode perceber na leitura do fragmento se ausenta na moda Benjamin. Ciente das disputas ao redor das ideias do filósofo alemão, Terry Eagleton escreveu um livro, em 1981, cujo título Walter Benjamin or Towards a

Revolutionary Criticism expressa a ideia de desviarmos o olhar para o potencial revolucionário da crítica do autor alemão.

Eagleton justifica da seguinte maneira seu trabalho:

Há outras razões porque um livro sobre Benjamin parece apropriado. Criado como um intelectual burguês, Benjamin nadou contra a maré ao se dedicar às tarefas de transformação revolucionária, de modo que qualquer que seja a proveniência individual e de classe dos intelectuais marxistas dentro da academia hoje, sua vida e obra falam desafiadoramente para todos nós. Isto é verdade, sobretudo, em um momento de turbulência histórica, quando todo o trabalho intelectual materialista deve deliberadamente examinar suas próprias credenciais políticas. Além disso, a obra de 95

Benjamin parece-me impressionante, pois prefigura muitas das questões atuais do pós-estruturalismo. Isso excepcionalmente num contexto comprometidamente marxista. Dessa maneira, este livro pretende entre outras coisas ser uma intervenção para essas disputas particulares. Mas eu escrevi o que eu acredito ser o primeiro livro- estudo sobre Benjamim em lingua inglesa, de modo que eu possa chegar a ele antes que a oposição assim o faça. Todos os sinais indicam que Benjamin está em perigo iminente de ser apropriado por um stablishment crítico que considera seu marxismo como um pecado leve e eventual ou excentricidade tolerável (Eagleton, 2009, p. 7; tradução minha).71

O risco de a oposição chegar primeiro e escrever um livro teórico apropriando-se de seu discurso é concreto. Hanna Arendt organizou um livro intitulado Illuminations, publicado nos

Estados Unidos em 1969, com importantes ensaios do crítico alemão: o ensaio sobre Kafka, seus estudos sobre Baudelaire,

Proust, Leskov, o teatro épico de Brecht, as considerações sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica e por último suas teses sobre o conceito de história. O que salta aos olhos quando folheamos o volume não é a introdução de Hanna Arendt, mas um pequeno prefácio escrito em 2007 por Leon Wieseltier, um escritor e crítico estadunidense que é o editor literário da

71 Traduzido do original: “There are other reasons why a book on Benjamin seems appropriate. Bred as a bourgeois intellectual, Benjamin buckled himself to the tasks of revolutionary transformation; so that whatever the individual class provenance of Marxist intellectuals within the academy today, his life and work speak challengingly to us all. This is true above all at a time of historical upheaval, when every materialist intellectual labour must deliberately examine its own political credentials. Moreover, Benjamin’s work seems to me strikingly to prefigure many of the current motifs of post-structuralism, and to do so, unusually, in a committedly Marxist context. The book is therefore intended among other things as an intervention into those particular disputes. But I have written what I believe is the first book-length English-language study of Benjamin in order also to get at him before the opposition does. All the signs are that Benjamin is in imminent danger of being appropriated by a critical establishment that regards his Marxism as a contingent peccadillo or tolerable eccentricity”.

96 revista The New Republic desde 1983. As considerações de Leon são um ótimo exemplo para evidenciarmos a oposição mencionada por Terry Eagleton inserida num campo teórico identificado à direita por justamente desmerecer ou diminuir a dimensão questionadora da ordem estabelecida. Ler algumas passagens dessa introdução constitui um interessante exercício de análise do discurso liberal sobre Walter Benjamin:

Com seu temperamento e seu método, Benjamin era um esotérico. Foi o cabalista da modernidade. Em seu mundo obscuro e encantado só havia mistérios ocultos e revelados. Sua paixão pelo marxismo, o episódio mais embaraçoso dentre seus devaneios mentais, o único momento em que se consentiu no regimento de sua própria mente, pode ser interpretado apenas como um dos exercícios mais desesperados de sua leitura arcana. […] Benjamin lia de forma messiânica. Para ele, o esclarecimento era uma espécie de intoxicação. E realmente, sua busca pelo delírio através da crítica inutilizou seus escritos políticos para a política. “A realização de sonhos na lucidez é um exemplo clássico de pensamento dialético”: governo nenhum jamais se estremeceu diante de tal dialética. Apesar de suas proclamações de solidariedade política, no final Benjamin representava somente a si, com sua fome introvertida e insaciável de um conhecimento oculto, uma iniciação, uma revelação. […] O trabalho de Benjamin é estigmatizado por sua arrogância altamente ideológica, um exemplo sendo quando zombou do “ideal liberal-moral-humanista esclerosado de liberdade” (como se a Europa do seu tempo estivesse sofrendo por excesso disso), e especulava sobre a crença no “sagrado da vida” (ou um excesso disso), e respondia com perfeita desconfiança à censura e perseguição de escritores na União Soviética, que descrevia friamente como “a transferência dos meios de produção mentais para a

97

propriedade pública” (Wieseltier p. 8-10; tradução minha).72

Na visão de Wieseltier, o marxismo representou para

Benjamin um perigo de arregimentação e padronização de sua mente

– uma colocação que, para qualquer crítico interessado em sua obra, tem algo de risível. Antes de representar uma opinião política conservadora consolidada, os trechos lidos pecam por falta de fundamentação. É curioso o tom racionalista do autor na maneira como se refere às noções de “messianismo”, “exotérico”,

“revelação” e “conhecimento secreto”. Há uma espécie de fixação sobre essa dimensão do pensamento benjaminiano observada nas três passagens citadas acima. Como se a crítica a ser realizada de seu pensamento marxista, seu uso para a política e para a compreensão de um contexto de uma época, tivesse que passar pela categoria da irracionalidade. Há uma dimensão irônica nessa colocação: ela nos induz a pensar que categorias como

72 Os extratos acima assim aparecem no texto em inglês: “In his temperament and in his method, Benjamin was an esotericist. He was modernity's kabbalist. In his turgidly enchanted world there were only mysteries, locked and unlocked. His infatuation with Marxism, the most embarrassing episode of his mental wanderings, the only time that he acquiesced in the regimentation of his own mind, may be understood as merely the most desperate of his exercises in arcane reading. […] Benjamin read messianically. Insight, for him, was a variety of intoxication. Indeed, his quest for delirium in criticism made his political writings finally useless for politics. “The realization of dream elements in waking is the textbook example of dialectical thinking”: no government ever trembled before such a dialectic. For all his proclamations of political solidarity, Benjamin finally represented only himself, and his own introverted and inextinguishable hunger for a secret knowledge, an initiation, a revelation. […] Benjamin's work was scarred by a high ideological nastiness, as when he mocked “the sclerotic liberal-moral-humanistic ideal of freedom” (as if Europe in his day was suffering from a surfeit of this), and speculated acidly about the belief in “the sacredness of life” (or from a surfeit of this), and responded with perfect diffidence to the censorship and the persecution of writers in the Soviet Union, which he coldly described as “the transfer of the mental means of production into public ownership” (Wieseltier, 2007, p. 7-10).

98 racionalidade e irracionalidade são encaradas como polos opostos, categorias objetivas e estabelecidas que não estariam inseridas numa determinada historicidade.

É necessário realizar aqui um parêntese e aproximar essa provocação ao ponto do racionalismo e do irracionalismo comentado no capítulo anterior nas críticas à visão da tropicália. Talvez possamos entender melhor a insistência da questão do absurdo e da racionalidade sem cairmos no erro de naturalizarmos essas noções como se estivessem descoladas de seu tempo.

Como Hanna Arendt, pertencente a uma geração de intelectuais judeus que formulou uma crítica ao racionalismo moderno a partir de uma dimensão cultural muito forte leria as colocações do estadunidense escritas 32 anos após a sua morte?

Tais questionamentos ajudam a estabelecer nossas diferenças com o passado. Importará neste capítulo percebê-las para podermos iluminar ou contaminar - e este talvez seja o verbo mais conveniente para o discurso conservador – de historicidade o presente. Wieseltier, que não prefacia o livro por acaso, ignora o desconcertante fato de que o pensamento de Walter

Benjamin não está restrito a uma esfera de conhecimento seja ela marxista, surrealista, romântica ou messiânica. É a mistura entre essas esferas que se opõe a um marxismo mecanicista. Uma interessante metáfora para essa questão tão cara ao marxismo pode ser encontrada em Passagens. No arquivo temático K [Cidade de Sonho e Morada de Sonho, Sonhos de Futuro, Niilismo

Antropológico, Jung], Walter Benjamin comenta sobre a relação entre superestrutura e infraestrutura. Rejeitando a noção de

99 reflexo, ele propõe a noção de expressão. A relação de determinação se dá a partir de tal ideia. Como é sabido,

Benjamin não se contenta em estabelecer uma colocação teórica ao vazio. Ao afirmar que as condições econômicas da sociedade encontram na superestrutura a sua expressão, o autor traduz essa questão no:

Estômago estufado de um homem que dorme,[que] embora possa “condicioná-lo” do ponto de vista causal, encontra no conteúdo do sonho não o seu reflexo, mas a sua expressão. O coletivo expressa primeiramente suas condições de vida. Estas encontram no sonho a sua expressão e no despertar a sua interpretação (Benjamin, 2006, [K 2,5] p. 437).

O autor do prefácio em questão talvez considere irracional uma declaração como essa. Não é por acaso que, no segundo trecho citado, ele aponte que os escritos de Walter Benjamin são inúteis para a política. Perguntemo-nos a que tipo de política se refere o editor? Baseado em que podemos dizer que algumas ideias do crítico alemão são inúteis para a política? Por acaso será aquela representada pelo teatro da democracia liberal dos

Estados Unidos da América? Ou devemos supor que a noção de urgência do uso político de Benjamin é desconhecida por ele

(assim como a demanda dos que engrossam as manifestações occupy em diversas cidades dos Estados Unidos)? O prefácio escrito em

2007 seria diferente se concebido após a crise de 2008? O terceiro trecho procura mostrar um tímido Benjamin nas suas críticas direcionadas à União Soviética e um ácido comentário em relação ao ideal de liberdade liberal-moral-humanista. O desconhecimento das reais proposições de Benjamin por parte de

Wieseltier é um claro exemplo da miopia ou da embriaguez liberal

100 estadunidense que acompanha aqueles que acreditam na legitimidade do jogo democrático atual que pode ser relacionado ao ideal liberal-moral-humanista descrito pelo mesmo Benjamin. A cegueira do editor para a teoria do conhecimento e a teoria do progresso do autor do livro das Passagens é sintomática. Não espanta saber que a revista em que trabalha defendeu a invasão ao Iraque em 2003 em nome dessas mesmas ideias liberais humanistas que o crítico alemão apontava como esclerosados.73 Por fim podemos ver em seus comentários uma estratégia comum do pensamento político conservador: condenar de antemão qualquer defesa ou consideração feita pelo que a União Soviética representou, indo de acordo com uma lógica em que qualquer ato político coletivo que questione o poder vigente terminaria no terror totalitário. Em paralelo, o mesmo acontece com a herança da Revolução Francesa, pois interessa à França liberal de hoje criar para si a imagem de uma história de modernização política que apesar de reivindicar o passado revolucionário, prescinde, contudo, do marco de 1792. Wieseltier simplesmente ignora o fato de que Benjamin, em 1927, quando viajou à Rússia, já se mostrava crítico ao regime da União Soviética (Benjamin, 1989, p. 71) e que a escrita das Teses sobre a filosofia da história foi realizada em 1940 sob o impacto da assinatura do tratado Hitler-

Stalin.

73 A defesa da invasão pode ser lida no editorial de 10 de fevereiro de 2003 da revista: “Então agora alcançamos as condições em que, de acordo com a padrões instado pelos mais liberais, os Estados Unidos devem desarmar Iraque pela força”. Traduzido do original: “So we now have reached the conditions under which, according to the standards once urged by most liberals, the United States must disarm Iraq by force”. Disponível em http://www.freerepublic.com/focus/news/833379/posts/ - acesso em 10/02/2013. 101

A quem interessaria esse “Walter Benjamin” sem Walter

Benjamin? Não nos surpreende que tal texto tenha sido escrito por alguém que ocupe uma posição importante numa revista estadunidense imbuída da ideologia liberal e conformada por um discurso em que está latente o acentuado relativismo disposto pela recepção dos cultural studies a que Beatriz Sarlo faz menção em seu ensaio. Situar ideologicamente a moda Benjamin nos ajudará a entender a sua significação política tanto no exterior quanto num país como o Brasil.

No livro Benjamin Brasil (2006) de Gunter Karl Pressler sobre a recepção de Walter Benjamin em terras tupiniquins podemos encontrar exemplos do desmerecimento de algumas dimensões do pensamento benjaminiano. Segundo o autor, o período que vai de 1985 a 1990, quando os volumes das Obras escolhidas são publicadas, assiste a um progressivo interesse pelas Teses sobre o conceito de história. É ainda inscrito nesse período que se realizou, entre os dias 25 e 28 de setembro de 1990, o

Simpósio Brasil-Alemanha: Sete Perguntas a Walter Benjamin, no

Instituto Goethe, em São Paulo. Referindo-se ao debate em torno dos escritos do crítico alemão sobre a história, Pressler comenta a posição de José Carlos Merquior:

Merquior vê nas teses “Sobre o conceito de história” uma escorregada de Benjamin, causada pelo pacto entre Hitler e Stalin, mas continua elogiando-o como um dos maiores críticos literários do século XX. O declarado ensaísta e diplomata de cunho humanista liberal entra em conflito com a filosofia da história de Benjamin, quando é criticado extremamente o conceito da progresso (Pressler, 2006, p. 206).

102

A forma com que Walter Benjamin é citado e estudado sofre uma variação em diferentes áreas. Sendo um pesquisador profícuo e peculiar, há certamente múltiplas recepções que nos permitiriam falar de um tipo de Benjamin lido nas escolas de

Comunicação a outro lido nas faculdades de Letras. Seu pensamento deixa rastros em distintas áreas e consequentemente alguns conceitos passam a ser privilegiados em relação a outros.

A consolidação de seu pensamento no ambiente universitário ocorre paralelamente à dos estudos sobre a Tropicália. O texto

“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” é, por exemplo, muito conhecido nas áreas das ciências humanas, tonando-se um de seus artigos mais célebres. Pode-se argumentar que a moda tropicalista está relacionada àquela que também canoniza uma determinada visão de Walter Benjamin, desenhando contornos que se distanciam de outros que atravessaram as suas inquietudes e investigações teóricas. Poderíamos relacionar a moda Benjamin a um aspecto interessante de nosso tempo a que o filósofo Slavoj Žižek exemplifica pela imagem do “café descafeinado”.74 Aproveitando-nos da metáfora, cabe questionar a validade de um “Walter Benjamin” desprovido do potencial radical e defensor de uma lógica afeita a um discurso liberal, relativista e inscrito sob os marcos do capitalismo. Neste ponto, a visão de Žižek é estratégica: precisamos encarar esse fenômeno como algo que atravessa o nosso tempo e permeia os

74 Essa metáfora é utilizada por Žižek em muitos de seus textos. Ela pode ser encontrada, por exemplo, em seu conhecido discurso “Tinta vermelha” proferido aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street, em outubro de 2011. O texto do discurso está disponível em http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/esp_1659/a+tinta+vermelh a+o+discurso+de+slavoj+Žižek+no+occupy+wall+street.shtml – acesso em 10/02/2013. 103 nossos embates políticos. Essa retórica de uma revolução sem revolução é matéria que nos diz respeito e encontra no final dos anos 1960, mais especificamente em 1968 um ponto de inflexão importante. É sabido o quanto figuras importantes que questionaram a ordem naqueles anos tomaram posições reformistas e conciliadoras que terminam por endossar a ideia de que vivemos mergulhados numa inexorabilidade que nos retira a contingência e impõe a ordem do capital como a única possível para a humanidade.

Longe de encararmos as relações entre a moda Benjamin e a moda da tropicália como uma espécie de caça às bruxas entre alguns autores, procuramos aqui evidenciar um fenômeno de nosso tempo ao apontar algumas questões que o estudo de ambos os assuntos suscita: o advento da cultura de massas, a discussão da universalidade, a importância da técnica e a mercantilização da esfera cultural. A universalidade da técnica e suas relações com a obra de arte não foi ignorada por Walter Benjamin em sua produção intelectual. Esses pontos, por sua vez, não são alheios ao debate do tropicalismo.

Os últimos anos da década de 1960 propuseram repensar a política, o papel do intelectual e do artista na sociedade. Não

é por casualidade que o estudo de Walter Benjamin sobre a alegoria presente em A origem do drama barroco alemão (1984) seja uma referência em trabalhos acadêmicos sobre a tropicália, visto que o procedimento alegórico é apontado com uma

104 característica desse fenômeno artístico.75 A noção de alegoria defendida por Benjamin possui uma dimensão da história da filosofia, uma historicidade, pois na sua proposta de “dizer o outro”, nos diz aquilo que é interditado a uma historiografia oficial. Frederic Jameson (1986) aponta o viés alegórico como uma constante da produção literária da periferia que procura pensar a nação.76

A afirmação de Jameson gera importantes discussões e não há como não relacioná-la a um aspecto importante da tropicália e de sua época, que é sua forma alegórica de pensar o país. O trabalho de Ismail Xavier, Terra em transe - alegorias do subdesenvolvimento (1993) é um exemplo disso. Como absurdo ou não, o país é pensado alegoricamente. As “relíquias do Brasil” em sua diversidade são inventariadas e isso não deixa de se constituir como uma empresa crítica. Hoje, isso causa certo estranhamento visto que a inexorabilidade da ordem é tão forte que antes de tudo, é preciso que deixemos em aberto o espaço da possibilidade de recusa do sistema atual. A ideia tão cara ao

75 Para Benjamin o conceito de alegoria se contrapõe ao de símbolo. A partir de seu sentido etimológico (“dizer o outro”), Benjamin propõe uma revalorização desse conceito. É em seu livro sobre A origem do drama barroco alemão que o autor escreve a seguinte frase: “As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas” (p. 200). Flavio Kothe escreve sobre a palavra em seu glossário ao final de seu livro Para ler Benjamin: “Benjamin retoma o seu sentido etimológico de ‘dizer o outro’. O crítico alemão procura revalorizar esse conceito, contrapondo-o ao de símbolo. Examina-o aí em função do drama barroco, cuja diferença em relação à tragédia é enfatizada, procurando mostrar como a alegoria atinge uma dimensão ontológica na obra literária. Dizendo o “outro”, ela manifesta uma abertura que é vedada à historiografia oficial. Daí a preocupação em examiná-la também sob uma perspectiva da Filosofia da História” (Kothe, 1976, p. 107).

76 “Third World Literature in The Era of Multinational Capitalism”, Social Text (Outono/1986) nº15, p. 65-88. Disponível em http://people.cohums.ohiostate.edu/denton2/courses/c879/readings/james on1986.pdf – acesso em 15/01/2013. 105 conceito de alegoria – que é o que poderia ter sido, e não foi – nos permite vislumbrar como estamos mergulhados na contingência.

A frase de Brecht “nada é impossível de mudar” é testemunha da necessidade de se manter esse espaço em aberto.

A citação do expoente dramaturgo do teatro épico como uma espécie de slogan por um dos candidatos à prefeitura do Rio em

2012 nos é bastante reveladora.77 Numa perspectiva de longa duração poderíamos traçar uma linha que vai desde os anos em que

Brecht cunhou a frase, ao final da década de 1960 e o começo dos anos 2010. Perceber todos esses momentos como presentes numa unidade, numa outra temporalidade, é inspirar-se no que Benjamin chama de jetztzeit, o tempo-de-agora. A esse conceito está relacionado o de Historischer Zeitraffer, que podemos traduzir como “abreviação histórica” e que pode ser exemplificado nas teses XVIII e XV comentadas por Michael Löwy (2009). Referindo- se ao conceito de Historischer Zeitraffer e sua tradução, Löwy diz:

Em sua própria tradução, Benjamin propõe “uma espécie de abreviação histórica”, que explicita assim: o primeiro novo dia integra todo o tempo anterior. Por quê? Talvez porque, nesse dia, se encontrem “condensados” todos os momentos de revolta do passado, toda a riqueza da tradição dos oprimidos. É o que sugere Benjamin, ao observar, em uma das notas preparatórias, que na ruptura da continuidade histórica - a revolução - ocorrem ao mesmo tempo um novo começo e a tradição (GS I,3, p. 1242). Mas a expressão Historischer Zeitraffer continua enigmática... (Löwy, 2005, p. 124).

77 A frase em questão foi utilizada como slogan da campanha do candidato do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e foi bastante veiculada nas redes sociais e em camisetas. Tendo como candidato a vice-prefeito o músico Marcelo Yuka, a candidatura que não se coligou a nenhum partido foi derrotada no primeiro turno, sendo a segunda mais votada e totalizando 28,15% da vontade eleitoral, enquanto o candidato vitorioso, Eduardo Paes, à frente de sua coligação “Somos um Rio” de 20 partidos totalizou 64,60% dos votos. 106

Esse conceito de Benjamin é indissociável do que ele considera como o tempo messiânico. A aproximação com essa noção de tempo-de-agora tem uma função mais primordial que também poderíamos identificar como mais urgente: a de resguardar para o nosso tempo a característica de histórico, lutando contra o signo de a-historicidade, pois vivemos tempos em que o

“presentismo” se torna uma embriaguez de sucesso a nos envolver com sua ânsia de a tudo tornar como passado devidamente classificado e catalogado nos anais da história. As duas últimas décadas insistem em se desligar de outras épocas como se representassem tempos muito distantes, tendo a queda do Muro de

Berlim funcionado como um marco para a chegada desse novo mundo.

O passado aqui se torna algo próximo a uma categoria de fetiche, domesticado e controlado. Frente a isso é preciso então fazer um exercício para enxergarmos o quanto a discussão trazida pelo século XIX, no que diz respeito à formação das ciências sociais,

é atual. Com as reflexões dos últimos 200 anos em nossas costas não podemos mais usar palavras como ciência, verdade e teoria de forma impune. Isso tampouco significa que devemos abandonar essas categorias considerando-as como obsoletas e defasadas. Por mais que os nomes e as classificações sejam questionados, as estruturas de autoridade que essas categorias representam seguem firmes.

A história como disciplina profissional se consolidou no século XIX obtendo uma acentuada valorização num contexto pós

Revolução Francesa por representar algo que poderia ser compartilhado por toda a nação, partindo da ideia de que era necessário um passado comum, uma herança compartilhada por

107 todos. Para que a nação se afirmasse como um discurso convincente, o ofício do historiador - assim como o do romance - tornava-se estratégico. E é nesse sentido que devemos entender o termo que Benjamin se utiliza na escrita de suas Teses sobre o conceito de história: “prostituta era uma vez” e “prostíbulo do historicismo” presente na tese XVI.78

A aproximação da história ao discurso científico se insere no mesmo contexto em que a dimensão filosófica se distancia do pensamento histórico. Tal quadro, embora questionado fortemente no século XX, pode estar por trás do fato da concepção de história de Walter Benjamin ser marginalizada nos currículos dos cursos universitários de história.79 Podemos ler, à guisa de provocação, o comentário do historiador Guilherme Neves sobre a consolidação e profissionalização do campo da disciplina ao final do século XIX e início do século XX. Relacionar sua consideração à época atual é interessante na medida em que nos ajuda a pensar o quadro presente:

Mas, uma vez consagrada, [a história] viu-se enredada em sua própria glória. Ao profissionalizar-se, oficializou-se. E perdeu a inquietação da histoire philosophique, conservada,

78 Michael Löwy (2005, p. 114) em uma nota de rodapé traduz um trecho do posfácio “Libérer l'enfermé” de Miguel Abensour do livro de A. Blanqui Instructions pour une prise d'armes (1972, p. 206): “[...] aparece em filigrana a sombra de Blanqui. Como se o autor, na textura de suas teses, tivesse tecido um comentário esotérico sobre os manuscritos de Blanqui: aí se reconhece o salto do tigre. Especialista em colagem, Benjamin age como se pegasse as armas forjadas por Blanqui contra o positivismo a fim de dar seus próprios golpes naqueles que se entregam no bordel do historicismo”. 79 Pode se objetar que para a disciplina da história torna-se muito complicada uma apropriação da filosofia da história tal como empreendida por Benjamin caso não se tenha em conta a dimensão de suas “fusões alquímicas”. Ao escrever as famosas teses, o autor se refere ao historiador informado pelo materialismo dialético, contrastando-o ao historicista, responsável pela “história cortesã”. 108

de um lado pelas nascentes ciências sociais, cada qual procurando, penosamente, refazer o percurso que ela, a história, de certa forma já percorrera, de unir teoria e empiria para cada campo específico; ou então, de outro lado, expandida para uma crítica radical à sociedade da época, como realizaram socialistas e comunistas, mais ou menos rigorosa conforme a inteligência e a profundidade de seu porta-voz (Neves, 2011, p. 26).

A renovação observada no século XX com a chamada escola dos Annales procurou lutar contra uma visão positivista - que o autor prefere chamar de empirista-dominante. O caráter de ciência não era, contudo rejeitado e, na necessidade de ver-se como uma ciência social, a história como disciplina pôde conquistar a sua autonomia, oficializando-se. Não espanta, portanto, que a concepção de Walter Benjamin sobre a história encontre-se marginalizada por não ser suficientemente embasada, acusada de beirar o irracionalismo, num contexto fortemente marcado pelo estatuto do científico.80

Refletir sobre a forma como encaramos o tempo histórico é um imperativo importante e o fato de que tal reflexão não esteja presente em muitos dos currículos dos cursos de história nas universidades prova que uma concepção positivista e cientificista da história nunca abandonou a cena. O lema de

Ordem e Progresso costurado em nossa bandeira denuncia nossas raízes positivistas, assim como o nome Ciência da Literatura,

80 A título de exemplo do incômodo que o messianismo de Benjamin causa cabe a observação feita por Thiago de Faria e Silva (2011) em sua dissertação Audiovisual, memória e política: os filmes Cinco vezes favela (1962) e 5x favela, agora por nós mesmos (2010): “Embora não concordando com as concepções teológicas e messiânicas de Benjamin - sempre tão polêmicas -, vejo no autor um esforço por uma história talhada pela beleza estética, pelo inconformismo e pelo desejo de auscultar na ação dos homens - sobretudo dos menos poderosos - outras possibilidades de mundo. Mesmo sem crer no messias ou na redenção, acredito que se pode compartilhar com Benjamin uma visão da história, na qual arte e a cultura ocupem um lugar central.” (Silva, 2011, p. 12). 109 que batiza o departamento de Letras de da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A sensação de que vivemos num tempo de eterno presente é apontada como uma característica da pós-modernidade por Fredric

Jameson (2007) ao referir-se a termos como perda de historicidade e a surdez histórica de uma época que já esqueceu como pensar historicamente o presente. François Hartog (2003), ao debater a necessidade de problematizar a noção de historicidade e o conceito de época, propõe que consideremos os modos pelos quais presente, futuro e passado se conectam na escrita da história. Frente à perplexidade vivenciada nas ciências sociais no início deste século, o autor argumenta que discutir o tempo e não instrumentalizá-lo de maneira mecânica é a melhor maneira de orientação. Pretere, portanto, a noção de

época, que considera demasiado vaga, e propõe a noção de regime de historicidade, pois enquanto a primeira se insere numa concepção linear, a ideia de regime seria mais adequada por expressar uma “experiência temporal”. Napoleão Bonaparte, por exemplo, seria visto como alguém que foi pego na transição entre dois regimes de historicidade. Enquanto se desmoronava o regime da história magistral, em que a relação entre passado e futuro era dominada pelo passado, erguia-se o regime de historicidade moderno, em que o futuro passava a ter uma autoridade sobre o passado e a história passava a ser vista de forma linear e regulada pelo progresso. Apesar dos questionamentos desse regime de historicidade moderno no começo do século XX por figuras como

Walter Benjamin e Paul Valéry, François Hartog afirma a sua permanência após a catástrofe da segunda guerra mundial.

110

Haveria, no entanto, uma pequena mudança que nos interessa aqui e que começa a se acentuar nas décadas seguintes: o futuro começa a ocupar cada vez menos lugar enquanto o presente ganha progressivamente o primeiro plano. Sobre esse regime, o autor cita T.S. Eliot:

Em nossa época... ganha existência uma nova espécie de provincialismo que talvez mereça novo nome. Trata-se de um provincialismo, não espacial, mas temporal; um para o qual... o mundo constitui a propriedade exclusiva dos vivos, uma propriedade da qual os mortos não mais compartilhem (Eliot apud Hartog, 2003, p. 25).

As transformações dos anos 1950 e 1960, podemos argumentar, contribuíram para esse crescimento da limitação pelo presente. A história do tempo presente surge como um campo de estudos nesse contexto:

Assim fomos do futurismo para o presentismo e ficamos habitando um presente hipertrofiado que tem a pretensão de ser seu próprio horizonte: sem passado nem futuro, ou a gerar seu próprio passado e seu próprio futuro. Múltiplos sinais disto: nossas atitudes para com a morte, assim justamente estudadas por Ariès, a extrema valorização da juventude, todas as técnicas que tendem a suprimir o tempo (o tempo do computador e o tempo real). (Hartog, 2003, p.27).

É nessa dinâmica que, nas palavras de Hartog, nos deparamos com um presente que se tornou ansioso demais para se ver como passado, como história. O esforço da mídia em produzir eventos históricos pode ser explicada a partir dessa ânsia. A moda da tropicália que, com suas efemérides trilha o caminho da mistificação, pode ser situada nessa dinâmica em que o presente, obcecado em estabelecer a procura de um “novo” para a vida política e cultural, torna-se sôfrego por comemorações.

111

Na visão de Walter Benjamin sobre a história, passado e presente não devem ser vistos como duas esferas estanques. Não se trata de uma primazia do presente sobre o passado, mas de um procedimento de atualização. A lógica passado-presente-futuro que, bem ou mal, constitui um bê-á-bá no ensino de história nas escolas precisa ser problematizada. Não se trata de partir do presente para o passado, trata-se mais de uma proposta de interpretação. O historiador deve interpretar o passado como quem interpreta sonhos:

Na imagem dialética, o ocorrido de uma determinada época é sempre, simultaneamente, o “ocorrido desde sempre”. Como tal, porém, revela-se somente a uma época bem determinada - a saber, aquela na qual a humanidade, esfregando os olhos, percebe como tal justamente esta imagem onírica. É nesse instante que o historiador assume a tarefa da interpretação dos sonhos (Benjamin, 2006, p. 506).

Eis a proposta de interpretação que deve sustentar a nossa qualidade de crítico de um assunto como o tropicalismo e seu legado.81 Em “tempos interessantes”82 como os vividos atualmente, o olhar direcionado para a tropicália precisa ser entendido de forma estratégica. A importância atribuída a uma esfera cultural em um determinado momento influencia a maneira como lidamos com

81 A ideia do sonho, em Benjamin, está relacionada ao conceito de imagem dialética. As imagens dialéticas não são imagens oníricas; pelo contrário, elas representam o fim do sonho: o despertar, onde se deve dar a interpretação dos sonhos, como os desejos imaginados de um mundo melhor. Cf. Benjamin, Passagens (2006), K [Cidade de Sonho e Morada de Sonho, Sonhos de Futuro, Niilismo Antropológico, Jung] e N [Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso]. 82 Slavoj Žižek na introdução de seu livro Primeiro como tragédia, depois como farsa retira essa expressão de uma maldição chinesa que se lança contra alguém que se detesta. A expressão significa “períodos de agitação, guerra e luta pelo poder, em que milhões de espectadores inocentes sofrem as consequências.” (Žižek, 2011, p. 7) e é muito pertinente quando pensamos o contexto mundial atual, servindo também para animar a desafiadora tarefa de reflexão sobre o contexto brasileiro. 112 as épocas passadas. O relacionamento com o passado não é estático e está sempre sujeito às mudanças do presente. Momentos de grande dissenso, como os anos de surgimento da tropicália, tornam-se bens culturais em que o próprio questionamento da ordem acaba se tornando uma mercadoria em épocas em que o consenso impera. A consolidação e a manutenção do consenso necessitam de doses homeopáticas - ou “descafeinadas”, como na metáfora de Žižek - de dissenso para se sustentarem. O fato de um importante nome da tropicália ter sido empossado Ministro da

Cultura do governo de Luís Inácio Lula da Silva não pode nos passar despercebido quando temos como objeto o legado do tropicalismo.

É necessário que articulemos neste capítulo outro ponto que relacione Walter Benjamin ao tropicalismo. Não se trata da alegoria, passaporte de Walter Benjamin para outras apropriações teóricas que ignoram ou fingem não ver o que motivara o seu trabalho. Trata-se da ideia de progresso e o seu questionamento que é essencial para a compreensão de nossa história. No próprio conceito de alegoria proposto por Benjamin podemos vislumbrar traços da crítica do progresso, pois ao pensar o que poderia ter sido e não foi, a alegoria nos mostra que a história não segue um rumo teleológico em direção ao progresso. Não defendo aqui que essa relação seja uma característica do tropicalismo.

Afirmar o contrário, além de parecer demasiado ingênuo e redutor, dotaria a tropicália de tamanho potencial crítico que poderia servir de munição para aqueles que insistem de antemão em seu aspecto revolucionário. É sabido que interessa a uma

113 proposição “descafeinada” da tropicália pintá-la com cores revolucionárias.

A relação que as imagens tropicalistas possuem com o tema da tecnologia e o progresso material é, contudo, conhecida. A imagem que aproxima o berimbau à guitarra elétrica é significativa. Ainda valerá, porém, como emblema? Até quando?

Junto a essa figura podemos adicionar a do vendedor ambulante que, ao caminhar, tem por fundo a moderna capital recém inaugurada. As manifestações do fenômeno tropicalista provenientes de diferentes campos artísticos não fizeram vista grossa a tal contradição. Reside aí, aliás, entre os debates sobre o tropicalismo um ponto que invalida a crítica que mais incomodou a Roberto Schwarz: a que o acusou de associar a estética tropicalista a uma estética fascista.

Invalidar essa acusação é importante para esta dissertação, uma vez que não se trata de definir o tropicalismo numa analogia

à estetização da política identificada por Walter Benjamin como estratégia fascista na conclusão de seu ensaio “A obra de arte na reprodutibilidade técnica” (1993). A acusação e a sua réplica podem ser consideradas como um núcleo de tensão da crítica do tropicalismo – como se a questão se resumisse em defini-lo como revolucionário ou não.

Numa mesa de debate realizada em 2012 no festival Adaptação no espaço Oi Futuro no Rio de Janeiro, o diretor do filme

114

Tropicalismo Now!,83 Ninho Moraes, comenta o fato de seu filme não contar com imagens de arquivo do período, como de praxe ocorre. O documentário possui imagens de cobertura retiradas da rua e do cotidiano a partir do que o diretor considerava como imagens tropicalistas. A característica da cultura digital e das novas mídias - um ponto importante do filme - refletia um traço que os participantes da mesa identificavam como típico: a fluidez e a queda de barreiras para se pensar uma manifestação artística.

A dimensão que relaciona o tropicalismo ao aspecto tecnológico percorre o documentário. Os artistas utilizam os

últimos produtos das tecnologias da informação e da comunicação

– aspecto que fortemente se relaciona à atualização do tempo presente, expressa exclamativamente no título do filme. Pensar a técnica num sentido neutro e isento é um dos traços do mito do progresso veiculados no documentário e que também pode ser encontrada na visão de Oswald de Andrade em “A crise da filosofia messiânica” (1950).

A persistência da questão nos mostra que se trata de um problema que não pode ser deixado de lado. No debate do festival

Adaptação, argumentava-se que o filme de Ninho era tropicalista

83 No site Rei do Filme encontra-se a seguinte descrição sobre o documentário: “Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now! Sinopse: Um novo olhar sobre um dos movimentos mais importantes da história da cultura brasileira, o tropicalismo. Um documentário lítero-musical, que mixa entrevistas, shows, intervenções artísticas e atores em pequenos esquetes. No emblemático , o músico André Abujamra promove uma releitura das músicas do tropicalismo, intercaladas com depoimentos de Gilberto Gil, José Miguel Wisnik, Laymert Garcia dos Santos, Cláudio Prado, Celso Favaretto e Marcelo Ridenti. Uma visão a partir da era digital para as ousadas propostas dos artistas que revolucionaram a arte e a cultura brasileira no final dos anos 1960 e que influenciou gerações no Brasil e no mundo.” – Disponível em http://reidofilme.com/filme/-futuro-do-preterito-tropicalismo-now/ – acesso em 17/01/2013. 115 em sua estrutura, a partir da forma como foi feito e dos elementos utilizados. A permanência dessas imagens tropicalistas e sua atualização é fortuita na medida em que se atreve a pensar uma afinidade que uma época pode ter com outra. Isso nos permite ver por outro ângulo o que consideramos a nossa história recente.

Se voltarmos os olhos para os últimos índices anuais de crescimento econômico e PIB – que já dão claros sinais de arrefecimento –, veremos como se reacende uma atmosfera de exaltação do progresso enquanto discurso sobre o Brasil que é integrada a noções próprias de nosso tempo relacionadas a uma concepção da 3ª via que não descarta de seu vocabulário noções como “cidadania”, “inclusão” e “democracia”. Ironicamente, os dois slogans dos últimos governos, “Brasil: um país de todos” e

“Brasil: país rico é país sem pobreza”, dizem, na prática, o contrário. Partindo do inegável fato de que muitos brasileiros saíram da fetichizada “linha da pobreza” é preciso que questionemos o extensivo pronome “todos” no slogan acima, quando a esfera privada cada vez mais avança sobre a esfera pública. É nesse contexto que assistimos à tão proclamada ascensão da classe C. Faz-se mister esclarecer que a inclusão que aí está subentendida não se faz pela cidadania, mas pelo consumo. Afinal de contas, a política de combate à pobreza empreendida pelo governo vem a um preço muito cômodo, sem custo algum para os ricos.

Perry Anderson, no artigo “O Brasil de Lula” (2011), fala em “uma distribuição sem redistribuição”. A relação que os

últimos anos tiveram com o progresso e o crescimento econômico

116 possui uma inusitada afinidade com o início dos anos 1970, época de consolidação do regime militar. Os megaeventos como a Copa do

Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016 no Rio de Janeiro, abrem possibilidades de acentuação de medidas que desmontam a esfera pública e aumentam a repressão aos movimentos sociais.

Essas práticas se fazem num discurso que se pretende novo, progressista e harmônico. No caso do Rio de Janeiro muito se fala na união e cooperação entre cidade, estado e país que só benefício teria a trazer para a população.

Dizendo respeito à união e harmonia dessas três esferas, as práticas utilizadas pelo Estado neoliberal da 3ª via devem ser definidas:

Dentre as práticas utilizadas pelo Estado neoliberal da Terceira Via, destacam-se: a interferência na legislação e a concepção de estruturas regulatórias que privilegiam interesses específicos; o fato de o Estado assumir o risco nas tão festejadas parceira público-privadas; a multiplicidade das maneiras de “vigiar e punir” voltadas à classe trabalhadora; o fato de o Estado ter o dever de proteger os interesses corporativos, se necessário reprimindo a dissensão (Chaves, 2010, p. 71).

Se pensarmos embasados na concepção da filosofia da história de Walter Benjamin, uma conexão secreta se abriria entre o Rio de Janeiro do período da reforma de Pereira Passos e o Rio de Janeiro governado pelo prefeito Eduardo Paes, conformando uma imagem dialética. O discurso de apologia ao progresso é tão vigoroso que a diferenciação entre os possíveis tipos de progresso a que nos referimos, apesar de existente, acaba ofuscada, ela também descafeinada, na forma de debates vazios que nos dão a impressão de um questionamento, mas que na

117 verdade não passam de um falso contraponto da visão dominante.

Poderíamos arriscar a hipótese de que a relação do tropicalismo com o progresso - seja ela questionadora ou endossadora - é uma característica importante para uma aproximação entre a tropicália e Walter Benjamin.84 A relação não é das mais óbvias por não ser explícita nas modas Benjamin e tropicalista, pois é justamente a dimensão de questionamento do mito do progresso que

é escamoteada na moda Benjamin e no discurso hegemônico.

Munidos desses questionamentos, devemos analisar uma crítica de Heloísa Buarque de Hollanda direcionada ao ensaio de

Roberto Schwarz. Por ser uma tese de doutorado, a consolidação ao nível acadêmico do debate tornava premente a necessidade de embasamento teórico. Nomes como os de Adorno, Lukács e de Walter

Benjamin tornavam-se referências na discussão em torno do engajamento do artista e da indústria cultural. Não devemos encarar os trabalhos críticos sobre o tropicalismo como fontes históricas objetivas que trazem em si as características do fenômeno artístico necessárias para a pesquisa. A tarefa aqui é de desnaturalização e questionamento desses trabalhos consagrados, inserindo-os em sua historicidade.

Como Heloísa Buarque encara o tropicalismo nesse trabalho que é considerado um clássico do assunto? Em que medida a moda

Benjamin ilumina a moda da tropicália e vice-versa?

84 Gonzalo Veloso (2005) em sua dissertação de mestrado Tropicália pós- moderna: a “geleia geral” fragmentária no contexto dos anos 60 reserva o segundo capítulo à “discussão sobre o conceito de progresso no Tropicalismo”. Sua análise, porém, não se insere numa problematização do conceito, limitando-se a discutir sua problemática nas canções de Gilberto Gil. O autor, aliás, não se utiliza de Walter Benjamin como referência teórica para a discussão da questão. 118

Os debates acadêmicos e a exposição de diferentes ideias não podem se eximir das questões de seu tempo. Hoje nos parece muito difícil divisar um contexto mais propício para o dissenso.

E não há como negar que para que nos mantenhamos no sono profundo do progresso o consenso tenha que funcionar como uma espécie de combustível, matéria-prima, condição. Diferenciar o progresso social do avanço técnico-material é uma tarefa tão simples como de vital importância para a argumentação de

Benjamin sobre o mito do progresso. Essa diferenciação - cantada por Clara Nunes e :85 “Energia nuclear, homem subiu a Lua / é o que se ouve falar, mas a fome continua” - deve ser a condição básica para que observemos a que direção parece apontar a moda Benjamin ou uma determinada visão da tropicália.

No segundo capítulo “O susto tropicalista na virada da década” de seu livro Impressões de viagem (2004), Heloísa

Buarque de Hollanda afirma que são dois os principais traços que marcarão o tropicalismo: a crítica à intelligentsia de esquerda e o namoro com os canais de massa. Marcado por uma recusa do discurso populista e uma desconfiança dos projetos de tomada de poder, o tropicalismo seria a expressão de uma crise.

Valorizando os canais de massa, a construção literária das letras, a técnica, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a crítica de comportamento, esse fenômeno artístico estaria ligado a incorporações de elementos fundamentais da modernidade.

Segundo a autora esses traços podem ser definidos claramente na

Semana de Arte Moderna de 1922 e identificados no simbolismo e

85 As duas cantam estes versos na canção “P.C.J. (Partido Clementina de Jesus) do compositor Candeia da . A canção se encontra no álbum As forças da natureza, de Clara Nunes, lançado em 1977. 119 além em Gregório de Matos. A vinculação da tropicália à Gregório de Matos se insere num marcante debate que diz respeito à discussão de formação de nossa literatura.

Chama a atenção a ausência de referência a Oswald de

Andrade no capítulo referente à tropicália do livro de Heloísa

Buarque de Hollanda. Ela, porém, não deixa de relacionar os traços da modernidade do tropicalismo com os da Semana de 1922.

É sabida a importância que o autor de Rei da vela tem para o tropicalismo. Em relação ao tema do progresso, é impossível não nos referirmos à “Crise da Filosofia Messiânica”. Uma análise que se propusesse a relacionar as considerações de Oswald nesse trabalho sobre o messianismo e o progresso às colocações de

Walter Benjamin seria deveras pertinente.

O bárbaro tecnicizado seria mais uma ilusão do progresso?

Qual a correspondência entre a crítica de Schwarz (1999) a

Oswald de Andrade em “A carroça, o bonde e o poeta modernista” e a sua crítica em relação à tropicália? Nesse ensaio Schwarz classifica como inocente a possibilidade apontada por Oswald de

Andrade de o Brasil deglutir as conquistas dos países avançados, reinventando-as de maneira sábia, configurando assim uma humanidade pós-burguesa.

O que a relação entre essas duas críticas teria a nos revelar? É importante que lancemos esse questionamento, pois a linha de continuidade traçada entre Oswald de Andrade e a tropicália poderia também ser pensada a partir da problemática do mito do progresso e do que entendemos como modernização em nosso continente no século XX. A modernização implementada pelo

120 regime militar significou a submissão e a imposição autoritária

às exigências do grande capital.

A modernidade segundo Heloísa seria vista aqui como um momento em que o herói não seria mais herói e sim um representante daquele. A perda da imagem do mundo enquanto totalidade observada pela autora relaciona-se às visões sobre o tropicalismo. O nome de Walter Benjamin aparece no momento em que a autora apresenta o conceito de alegoria como a chave teórica para a compreensão da realidade moderna. Dessa maneira

Heloísa define o procedimento alegórico como fundamentalmente crítico. Essa questão é introduzida pela autora para fundamentar as objeções que faz à tese de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo. Heloísa prepara o seu contra-argumento fazendo menção ao que chama de “perspectiva ortodoxa” de Lukács. O adjetivo ortodoxo deve nos valer aqui como uma espécie de credencial para o clube dos autores ou ideias que recebem esse título. Escrever a história da utilização desse adjetivo na produção acadêmica da área de Teoria da Literatura nas últimas décadas seria uma interessante empresa crítica.

Sendo reativado pelo tropicalismo, o procedimento alegórico ou a estética alegórica ocupa um papel central na argumentação da autora. Ela enumera os argumentos de Lukács que se opõem ao de Benjamin no que tange a tal procedimento, pois para o húngaro a alegoria não teria a capacidade de apontar para um futuro, levando à impossibilidade de se formar um horizonte, configurando uma linguagem de desespero, como se tratasse de um beco sem saída. Quando Schwarz diz que o tropicalismo não vê os contrastes e absurdos do Brasil como historicamente

121 determináveis e superáveis estaria se aproximando mais do discurso de Lukács, pois estaria implicitamente exigindo uma perspectiva finalista para a obra de arte. O adjetivo ortodoxo usado pela autora em relação às ideias de Lukács poderiam ser direcionadas também a Schwarz como de praxe ocorreu em muitas matérias de jornais e revistas que procuraram criticar o ensaio de Roberto Schwarz “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo” (2012). Seu discurso torna-se assim ortodoxo, assim como qualquer discurso que questione o mito da tropicália, que não o consagre e nem ponha em xeque o seu estatuto de “oráculo da modernidade” nos termos utilizados por Frederico Coelho (2002).

É importante perceber que a ideia de modernidade cumpre um papel importante no argumento de Heloísa. Talvez aqui seja pertinente lembrarmos do conselho de Fredric Jameson em seu livro A

Singular Modernity (2002) lembrado por Maria Elisa Cevasco:86 o crítico estadunidense sugere que sempre que lermos o termo

“modernidade” devemos substitui-lo por “capitalismo”, só para ver o que acontece.

Partindo dessa ideia de determinações direcionadas à obra de arte, Heloísa vê com reservas o fato de Walter Benjamin ser um embasamento teórico do trabalho de Roberto Schwarz. Ela chama a atenção para a circunstância de que, apesar de estar apoiado na visão benjaminiana sobre a alegoria, Roberto Schwarz estaria na verdade mais orientado a uma concepção luckacsiana no que diz respeito à perspectiva finalista para obra de arte em seu determinismo e ordenação para a obra.

86 Maria Elisa Cevasco nos lembra desse conselho em seu artigo inédito intitulado “Modernização à brasileira”(2012). 122

Ao afirmar implicitamente que Roberto Schwarz cita

Benjamin, mas na realidade se embasa em outro autor, a autora não percebe o quanto o trabalho de Roberto Schwarz está conformado sob uma crítica muito importante para Walter

Benjamin: o questionamento do mito do progresso. O desconhecimento dessa dimensão benjaminiana do ensaio de Schwarz nos é bastante revelador e constitui-se aqui como matéria de análise da moda Benjamin. Karl Pressler diz que a recepção de

Walter Benjamin no Brasil caracterizou-se pelos seguintes momentos decisivos que englobam quatro fases. A primeira fase vai de 1960 a 1974 e esteve inserida num debate da estética marxista mais orientado ao ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica.” A segunda fase vai de 1975 a

1984 e reconhece em Benjamin um teórico da modernidade a partir de sua obra Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo

(1989). A terceira fase, inscrita entre os anos de 1985 e 1990 é o período em que a sua teoria da história exemplificada nas teses sobre o conceito da história está mais em voga. A última fase destacada, a quarta, estaria inserida entre os anos de 1991 e 2005 e seria caracterizada por um desdobramento filológico- acadêmico sobre sua obra em geral em que a tradução do livro das

Passagens seria realizada. A obra de Heloísa se situa justamente na segunda fase descrita. Poucos anos antes da publicação do livro de Heloísa, Kothe (1976) chama a atenção para o problema da tradução que nos permite pensar uma dimensão da moda

Benjamin:

A obra de Walter Benjamin, apresentada ao público brasileiro restringe-se geralmente a três ou quatro ensaios, sempre repetidos, totalizando cerca de cem

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páginas, quando a obra publicada deste autor compreende mais de cinco mil páginas. A obra publicada, pois muitos de seus textos foram perdidos, especialmente com as reviravoltas da Segunda Guerra Mundial, enquanto que outros nem sequer foram até hoje publicados(Kothe, 1976, p. 9).

A resposta à crítica de Heloísa a Schwarz deve partir da dimensão de questionamento de mito do progresso que percorre o seu ensaio. Para isso, cabe a citação de um trecho de uma entrevista concedida por Schwarz a Pressler (2006) em que o entrevistador afirma:

Chama a atenção para o fato de que os seus trabalhos sobre Machado de Assis têm tanto de Benjamin que não precisa citá-lo. O relacionamento direto entre o complexo social e as formas estéticas permite uma comparação (percebe-se um diálogo intrínseco) entre o livro Um mestre na periferia do capitalismo e a matriz, o ensaio sobre Baudelaire (O lírico no auge do capitalismo) (Pressler, 2006, p.92).

É a visão que se opõe ao mito do progresso que permite um novo entendimento do que representou o golpe de 1964. Sendo esse procedimento um eixo central nas investigações de Walter

Benjamin, pode-se dizer que em matéria de estar orientado sob um autor ou não, o texto de Roberto Schwarz, sem recorrer à citação

óbvia que na dinâmica da moda Benjamin funciona hoje mais como uma credencial, possui em sua argumentação o aspecto central benjaminiano de questionamento do mito do progresso. Ao analisar o quanto o mito estava presente na crença otimista que o PCB depositara na burguesia nacional, Schwarz realiza uma operação crítica próxima a que Walter Benjamin promove quando critica a socialdemocracia alemã e diz que imbuída da confiança nas leis da história e do progresso, ela fizera a classe trabalhadora 124 desaprender o ódio necessário à luta dos trabalhadores. Essa questão é urgente no pensamento anticapitalista no Brasil, na

Europa convulsionada ou na África. Porém Heloísa, percebendo a formação de um novo tempo e uma nova sensibilidade dirá que faltou ao ensaio de Schwarz uma percepção mais ampliada que pudesse “dar conta dos efeitos críticos do tropicalismo entendido como uma nova linguagem crítica, especialmente no sentido da subversão de valores e padrões de comportamento”.

(2004, p.70)

É nesse momento que a moda Benjamin se relaciona à moda tropicalista vitoriosa. A autora escreve partindo de um novo tempo que ela diz de crise da linguagem formada pelo marxismo e de uma descrença em relação à ideia de tomada de poder. Tal descrença também afetaria a noção de revolução marxista- leninista que revelaria em sua prática o autoritarismo e a burocratização. Ao fazer referência à crítica do marxismo como linguagem e mostrar que a noção de revolução marxista-leninista desembocaria em um autoritarismo e burocratização nada atraentes, Heloísa Buarque de Hollanda contribui para a visão que destaca somente o que deu errado no socialismo, o que existiu na prática. Argumento bastante utilizado em declarações conservadoras que procuram invalidar de antemão a luta por uma sociedade baseada em uma efetiva justiça social. Sendo assim, essa luta já não teria mais sentido visto o que ocorreu na União

Soviética e em outros países do bloco socialista. As consequências dessa posição são avaliadas por Daniel Bensaïd:

A ênfase dada a um “erro” teórico desligado dos processos históricos e sociais de burocratização sugere que bastaria corrigi-lo para dissipar o

125

perigo burocrático. A explicação do stalinismo como sendo um “desvio teórico” lembra, então, a procura de um pecado original. Ela leva não só a uma liquidação do “leninismo”, mas também, em grande medida, a uma renúncia ao marxismo crítico, ou mesmo à herança do Iluminismo: da culpa de Lenin, logo se remontou à “culpa de Marx” e mesmo à “culpa de Rousseau”! (Bensaïd, 2008, p. 75).

É partindo da consciência de um novo tempo que Heloísa afirma que faltou a Schwarz “uma percepção mais global” (idem, p. 70) que abarcasse os efeitos críticos do tropicalismo entendido como uma nova linguagem ao propor a subversão de padrões de comportamento e valores. O que a autora define como pós-tropicalismo seria uma intensificação dessa nova linguagem e de suas características: a preocupação com a modernidade, a radicalização da crítica comportamental e a desconfiança com relação à esquerda ortodoxa e à direita. Os ditos elementos do pós-tropicalismo são aproximados pela autora à contracultura. A associação dessa época a um progressivo desinteresse pela política que se delineia é clara. A identificação não se faz mais com o povo enquanto classe social, mas com as minorias. Em tal contexto, as opções estéticas seriam levadas para o centro das experiências existenciais. De acordo com Heloísa, o binômio arte/sociedade seria substituído pelo binômio arte/vida. A mudança passaria da esfera coletiva para a individual:

O empenho da mudança refere-se inicialmente à transformação do artista dentro de suas relações mais gerais com o sistema. Importa a viagem, o percurso, a campanha mais que o resultado. A preocupação é com o aqui e agora e aqui e o agora do pós-Tropicalismo é ambíguo, múltiplo, contraditório: a intervenção possível exige a participação, a “batalha” nos próprios circuitos do sistema, sem abrir mão de uma linguagem que se opõe violentamente à ordem desse mesmo sistema. (os últimos dois grifos são meus) (Hollanda, 2004, p. 85 -6; grifos do autor e meus). 126

O que podemos entender como a “intervenção possível”, a

“batalha” nos próprios circuitos do sistema no Brasil dos anos

1970 e 1980 e no Brasil atual? O que define a possibilidade ou a impossibilidade de um acontecimento? Por que, dentro dos circuitos do sistema, a batalha tem que estar entre aspas, e, no plano da linguagem, ela tem que se opor violentamente à ordem do sistema? Em que medida as colocações da autora sobre o tropicalismo e o pós-tropicalismo contribuem para a naturalização dessa intervenção possível? Ao estilo da frase “o sonho acabou” que adquiriu tanta significação a partir dos anos

1970 e com o tempo tornou-se uma verdade inquestionável?

As colocações de Heloísa prenunciam uma tendência que se acentuou nos últimos tempos: uma sociabilidade atravessada por uma concepção utilitarista do conhecimento em que a formação de

“novos intelectuais orgânicos da nova pedagogia da hegemonia na

América Latina se processa nos estreitos limites “do possível” e

“do existente” (Falleiros et al. apud Neves, 2010, p. 81).

Engana-se quem pensa que tal discurso não esteja presente numa

“esquerda” que devemos escrever com aspas.

Assim como a autora apontou em Roberto Schwarz um caráter lukacsiano em detrimento da teoria de Benjamin – posição muito mais próxima a Lukács que a Walter Benjamin –, podemos argumentar que em seu trabalho, apesar da referência à modernidade, o discurso parece mais identificado à visão da pós- modernidade, entendida como um momento de crise da linguagem e de fragmentação do mundo e do conhecimento. Segundo Neves

(2010), no capítulo “fundamentos teóricos da formação/atuação

127 dos intelectuais da nova pedagogia da hegemonia”, de A direita para o social e a esquerda para o capital:

Tal visão traz como consequências políticas a constatação de que “não pode haver base para a solidariedade e ação coletiva fundamentadas em uma 'identidade' social comum, uma classe, em uma experiência comum, em interesses comuns' (Wood, 1999, p. 13). Dessa forma, para a autora, na perspectiva pós-moderna existiria a impossibilidade de qualquer política libertadora baseada em algum tipo de conhecimento ou visão totalizantes: “A política, [...] ligando-se ao poder dominante de classes ou Estados e à oposição a eles, é excluída, cedendo lugar a lutas fragmentarias de 'política de identidades' ou mesmo ao pessoal como político. (Wood apud Neves, 2010, p. 101)

A crítica ou a recusa da racionalidade, do universal e da ideia de emancipação são apontadas por Coelho (2005) como característica do pensamento pós-moderno contemporâneo. A associação com a reflexão de Heloísa sobre o Tropicalismo e o que considera como pós-tropicalismo é evidente, apesar da autora não fazer referência ao termo pós-modernismo. No final dos anos

1970 e início da década de 1980 a etiqueta “pós-modernismo” não estava ainda consolidada. Note-se, no entanto, que a visão que a autora retoma na prática do modernismo é a que se constituirá como o discurso pós-moderno. Por mais que não afirme o debate entre as duas visões, insinua que são as características pós- modernas as que permanecem no contexto de aprofundamento pós- tropicalista.

Em Celso Favaretto, no entanto, observamos uma referência mais explícita à linha de pensamento pós-moderno através da citação de autores como Lyotard e Kristeva. É a partir da alegoria que podemos encontrar uma referência a Walter Benjamin na obra do autor. Sua análise da alegoria no tropicalismo é mais

128 consistente ao se relacionar a um aspecto de “retorno do reprimido” do país, na linha do que poderia ter sido e não foi.

A diferença de análise entre os dois autores pode ser observada na metáfora que criam para o Tropicalismo: uma implosão para

Heloísa e uma explosão para Favaretto. A alegoria como chave teórica para compreender a modernidade e sua fragmentação permitem desconstruir os ufanismos e aí residiria o seu caráter revolucionário.

Se avaliarmos a repercussão do livro de Favaretto nos trabalhos acadêmicos, notaremos o quanto seus argumentos foram importantes para a consolidação de uma visão que encontra no

Tropicalismo o teor revolucionário combinado a uma lucidez de um novo tempo. A tal explosão tropicalista toma um caráter otimista e celebratório que acaba pesando o outro lado da balança e contribuindo para a sua mistificação como movimento. No que diz respeito à alegoria, ao viés alegórico fica-se sem espaço para a melancolia e sim para uma grande festa a partir de uma explosão colorida. O risco aqui é evidente e não é por acaso que tal trabalho se torne uma referência para outros que caminham na canonização do Tropicalismo. Somente à manifestação artística da

Tropicália fica reservado o papel de questionamento efetivo do quadro estabelecido na época. O perigo aqui é que terminemos por considerá-la “moderna” enquanto outras manifestações artísticas que diferiam do tropicalismo, mais próximas ao que se denominava arte engajada ou nacional-popular, sejam classificadas como antiquadas no sentido que o conservadorismo político atual gosta de classificar a recusa da ordem.

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Em geral, nos trabalhos sobre música popular brasileira, as manifestações que não se identificavam à tropicália e tampouco à considerada música engajada terminaram relegadas a um segundo plano, revelando um conservadorismo de gosto elitista, uma espécie de retorno do reprimido. A Jovem Guarda, por exemplo, é subestimada muitas vezes, sendo raramente citada nos livros sobre o tropicalismo, apresentada muitas vezes como uma de suas confluências – e só isso. Comparar o número de trabalhos acadêmicos sobre o tropicalismo com o da Jovem Guarda seria interessante, para percebermos o elitismo interiorizado, e muitas vezes inconsciente, daqueles que escrevem sobre esse período e justamente enfatizam na tropicália a quebra entre uma arte elitista e outra popular. O trabalho de Paulo César de

Araújo Eu não sou cachorro não (2002) é fundamental para atentarmos para toda uma vasta produção musical popular que não

é identificada nem à tradição nem à modernidade. Essa produção - a de cantores como Waldik Soriano, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo

- encontra grande dificuldade para ser reconhecida pela crítica e pela historiografia da música popular brasileira. Paulo César de Araújo chama a atenção para um aspecto importantíssimo para pensarmos a crítica da música brasileira:

A análise específica da preferência musical do público de classe média e formação universitária é fundamental porque é deste segmento da população que saem os críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos, enfim, os “enquadradores” da memória da nossa música popular. E isto ajuda a explicar por que a quase totalidade do que existe publicado sobre música popular brasileira – biografias, ensaios, estudos acadêmicos e coleções em fascículos – se refere a gêneros e compositores identificados ou com a “tradição” ou com a “modernidade”. Assim, temos biografias de sambistas como Sinhô, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Paulo da Portela; análises sobre a

130

produção musical de , , ; estudos e ensaios sobre a obra de Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Gilberto, Johnny Alf; e teses e livros sobre o Tropicalismo, a bossa nova e, principalmente, o samba: samba-enredo, samba malandro, samba de breque, samba de roda, samba-canção, samba-exaltação, origem do samba, mistério do samba, decadência do samba etc. etc. (Araújo, 2002, p. 343-4).

É interessante notarmos o quanto a classificação do gosto entre uma arte considerada superior e outra inferior não faz sentido nas análises de Walter Benjamin. Em relação à política e

à compreensão de sua época, é inegável que o seu pensamento tem uma importância inestimável – que não pode ser menosprezada, mas antes deve ser direcionada – para a esquerda, como uma espécie de combustível para as atuais lutas de emancipação social. Não se trata de superestimar sua importância, mas fortalecer uma crítica ao progresso que não é exclusiva do pensamento de Walter

Benjamin.87 A proposição de uma nova concepção de história não é uma tarefa simples. Longe de ser uma ciência, a história para

Benjamin é uma atividade de rememoração que está fortemente relacionada ao messianismo. A relação entre o messianismo e a revolução é um ponto central em seu pensamento e não é isenta de um racionalismo crítico próprio ao autor.

Michael Löwy ao falar sobre as distintas fontes nas quais bebe o pensamento benjaminiano nos traz a ideia de uma fusão alquímica. O romantismo, o marxismo e o messianismo não seriam somados, mas inseridos numa grande fusão, numa invenção entre os três que nos revelaria um pensamento peculiar e inclassificável.

87 A sua reflexão crítica sobre o progresso se relaciona ao pensamento de muitos autores que em suas discordâncias e concordâncias ajudaram- no a desenvolvê-la. Dentre os pensadores podemos destacar Franz Rosenzwig, Ernst Bloch, Gershom Scholem e Theodor Adorno. 131

A isso poderíamos somar o método da montagem, advindo das vanguardas no caráter fragmentário de seus textos. A imagem de fusão alquímica nos é útil, pois evita que encaremos a Benjamin ora como marxista, ora como teólogo. Löwy aponta para dois erros que podem ser feitos em relação ao autor. O primeiro é pensar uma separação entre um Benjamin de uma fase inicial e outro de uma fase tardia. Tal visão faz pouco caso da continuidade de seu pensamento, das questões que atravessaram suas investigações ao decorrer de sua vida. O segundo erro, por outro lado, seria o de desconsiderar a importância que o marxismo passou a ter nas investigações teóricas do autor em meados dos anos 1920. O que lhe interessou e se constitui como uma inquietação recorrente foi procurar traçar uma espécie de genealogia da modernidade capitalista. Bastam algumas considerações sobre a sua obra para se desmontar a sustentação da moda Benjamin. Como argumenta

Beatriz Sarlo (2007):

Benjamin não estudou as cidades porque era um tema da moda. Buscou sentidos e, naturalmente, encontrou as cidades como cenário. Não viajou a Moscou para escrever o diário da visita a uma grande capital. Perseguiu em Moscou um amor duplo: foi ali por uma mulher e uma ideia de revolução. E, naturalmente, não encontrou nenhuma das duas (Sarlo, 2007, p. 80; tradução minha).88

Devemos definir a Benjamin como crítico, na medida em que sua análise nos revela o que não está inscrito no óbvio, a alegoria, o detalhe, o esquecido, o dissenso, o que poderia ter

88 No original em espanhol: “Benjamin no estudió ciudades porque fuera un tema a la moda. Buscó sentidos y, naturalmente, encontró a las ciudades como escenario. No viajó a Moscú para escribir el diario de la visita a una gran capital. Persiguió hasta Moscú a un amor doble: fue allí por una mujer y una idea de revolución. Y, naturalmente, no encontró del todo a ninguna de las dos”. 132 sido e não foi. O seu grande projeto interminável, a obra das

Passagens, pode ser interpretado, segundo Rolf Tiedeman (apud

Benjamin, 2006, p. 13) como a filosofia material do século XIX.

Tal século lhe interessava na medida em que nele estava inserido o seu presente. Na conformação da modernidade está presente a origem da mercadoria como fetichismo. Dar voz a uma origem, fazer falar a materialidade, a superfície desses objetos muitas vezes esquecidos pela história constitui o seu objetivo. O que, em meados do século XX, era visto como antigo e arcaico, era por ele interpretado como a manifestação do sonho de uma época.

A ideia do sonho se revela como uma importante comparação.

A ela são associadas outras imagens que, como de hábito ocorre com as noções de Walter Benjamin, são excelentes metáforas. As ideias relacionadas ao despertar ocupam um papel central em sua filosofia da história. Não é por acaso que quando procura explicar um importante ponto do marxismo, a determinação entre diferentes esferas, Benjamin propõe algo diferente da noção de base e superestrutura, que, como observa Raymond Willians em

Marxismo e literatura (1979) são metáforas que se naturalizaram como conceitos do marxismo. O filósofo alemão recorre à metáfora do sonho de alguém que após muito comer, foi dormir com o estômago cheio: a produção onírica seria a expressão do estômago estufado.

O passado para a filosofia da história de Walter Benjamin não é visto da maneira historicista como algo já terminado e acabado. A sua incompletude é carregada de um significado político e não deve ser negligenciada ou escamoteada. A escrita da história é eminentemente política. Não se trata do

133 historiador no presente, mergulhar no passado, mas de ir em direção ao presente, sendo arrancado da continuidade histórica.

A partir da filosofia da história de Walter Benjamin, a celebração e o patrimônio como institucionalização são vistos como uma catástrofe, pois é justamente esse acidente que retira de um ocorrido o potencial subversivo de nos mostrar algo que poderia ter sido, mas não foi. É por isso que a literatura pode ser vista como uma espécie de historiografia inconsciente. Ela não deve ser inserida numa continuidade histórica – deve, antes, ser retirada. Essa provocativa formulação traz em si consequências que merecem ser exploradas. Por isso a literatura do passado tem o risco de se tornar o bem cultural do vencedor.

A conformação histórica, a captura da tradição pelo conformismo

é o perigo maior que pode nos assaltar.

Devemos ver a institucionalização da tropicália a partir de tal reflexão. Reivindicar para essa manifestação e sua época um caráter aberto é uma tarefa urgente. Mais do que definir o que foi o tropicalismo, trata-se, apropriando-se de uma metáfora presente do livro das Passagens,89 de limpar o terreno do mato da oficialização que cresce ao redor dessa manifestação artística e de sua época. É tarefa que implica pensar o presente. A história não deve servir à mera curiosidade ou à contemplação passiva e melancólica. Para isso, lamentar ou comemorar o fim de 1968 são dois lados da mesma moeda. A fixação que tal ano provoca em

89 A metáfora está presente num fragmento do índice temático N [Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso] do livro das Passagens: “Tornar cultiváveis regiões onde até agora viceja apenas a loucura. Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para não sucumbir ao horror que acena das profundezas da selva. Todo solo deve alguma vez ter sido revolvido pela razão, carpido do matagal do desvairio e do mito. É o que deve ser realizado aqui para o solo do século XIX.” (BENJAMIN, 2006, p. 499) 134 nosso imaginário revela o quanto de agora está contido naquela

época.

A história - aqui encarada como oposta à história do historicismo descrita por Benjamin como aquela que se identifica com o vencedor (cf. Löwy, 2005, p. 70) - pode fornecer armas para a prática revolucionária do presente: o que parece ser o aspecto mais resistente à força de tração levado a termo pela moda Benjamin. A categoria de jetztzeit, o tempo-de-agora, é o tempo messiânico, que é identificado à revolução. Um importante legado do pensamento político de Walter Benjamin para a luta política reside na atenção que se deve voltar para o perigo representado pela social-democracia em sua lógica reformista da realidade que, confiante no progresso, espera o dia em que a mudança pode ser feita. Sob essa lógica, a classe trabalhadora desaprende o ódio e a vontade de sacrifício necessário para a luta. E isso não é privilégio entre os que se autoproclamam de direita. Difícil não relacionar essa colocação à crença que, nos anos 1950 e de 1960, o Partido Comunista Brasileiro tinha no progresso, na chegada do socialismo que sucederia à revolução burguesa.

A crítica proposta por Benjamin se afina com a análise que

Walnice Galvão (1976) promove da moderna música brasileira da década de 1960. Em seu ensaio “MMPB: uma análise ideológica” escrito no ano de 1968, ela destaca um dos seres imaginários que compõem a mitologia da Moderna Música Popular Brasileira: o “dia em que virá” presente no cancioneiro brasileiro da época. As canções da época, muitas das que se consideravam como engajadas anunciavam o dia em que todo o sofrimento terminaria e esse dia

135 era sempre conjugado no futuro, absolvendo aquele que cantava ou ouvia de qualquer responsabilidade no processo histórico. A referência que a autora faz à Marselhesa ao final de seu ensaio

é profundamente marcada pela questão do presente.90 Não é o próprio Benjamin que em uma de suas teses sobre o conceito de história nos chama a atenção para os franceses que no entardecer do primeiro dia de luta, ainda em julho, dispararam tiros contra os relógios das torres na tentativa de parar o tempo, de lutar contra o futuro? Após mencionar o “fatalismo conservador” que toma conta do ouvinte, a autora conclui:

Daí: não há na canção popular brasileira sinais de uma consciência avançada nem proposta para qualquer ação que não seja cantar. Como essa canção não é folclórica, mas semierudita, vale o cotejo com exemplos da mesma linha. Por isso, nem é preciso apelar para as canções de Brecht e Kurt Weil; basta pensar n'A Marselhesa. Enquanto nossos autores oferecem ao público um confortável dia que virá, A Marselhesa diz que o dia já chegou:

“Allons, enfants de la patrie Le jour de gloire est arrivé”

Todavia, era uma vez uma canção chamada Carcará. (Galvão, 1978, p. 119).

O argumento que Benjamin propõe de que a luta revolucionária deve se alimentar não do futuro, mas do passado,

é uma espécie de alento que nos permite identificar e reconhecer

90 Por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa, em 1989, o historiador inglês Eric Hobsbawm (1996) escreveu o livro Ecos da Marselhesa - dois séculos reveem a Revolução Francesa. Seu livro procura enfrentar a crítica historiográfica revisionista que procura desmerecer a interpretação marxista de eventos históricos. Para isso a autor se refere às conexões teóricas e políticas da Revolução Francesa com a Revolução Russa. Em sua ótica, os marcos de 1917 não poderiam ser entendidos sem uma compreensão de 1789. Vale esclarecer que Hobsbawm escreveu no contexto de crise do socialismo real e do paradigma comunista de fim do século XX que afetou a tradição marxista de interpretação da Revolução Francesa. 136 o discurso dominante. Não são as vidas dos que virão que fomentarão a luta pela emancipação social, mas as vidas daqueles que morreram. A reparação da vida dos que pereceram na luta possui uma forte dimensão teológica e política. Os conceitos de redenção e reparação são essenciais para entendermos as críticas de Walter Benjamin aos rumos políticos de seu tempo. A exclamação muitas vezes proferida “em pleno século XXI, como isso pode acontecer?!” não tem sentido para a filosofia da história que ele propõe. A frase traz em si a ideia de crença no progresso, ainda que disfarçada. Isso porque o estado de exceção

é a regra. O nazi-fascismo que exibia o seu rosto nos grandes comícios e nos campos de concentração não é de maneira alguma um retrocesso, mas algo que não se dissocia da modernidade da civilização capitalista. Devemos partir do referido argumento para invalidarmos a crença de que os tempos de exceção não existem mais, de que foram destruídos. É preciso ver o estado de exceção nas mais simples coisas ao nosso redor. Assim como interessava a Benjamin a superficialidade, materialidade, podemos, por exemplo, ver nas pedras pontiagudas colocadas embaixo de viadutos pela prefeitura do Rio de Janeiro traços desse estado de exceção silencioso.91 As pedras podem ser vistas pela Avenida Brasil, a mesma que assiste com frequência, entre os carros que passam velozmente, à debandada de usuários de

91 Desde o ano de 2010, a prefeitura do Rio de Janeiro tem colocado grandes pedras pontiagudas ao redor das bases dos viadutos para que a população de rua não durma ou ocupe o local e também para que as cracolândias sejam dispersadas, como insinua a manchete do canal R7, de 4 de julho de 2012: “'Viaduto anticrack' falha em dispersar cracolândia no Rio”. Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de- janeiro/noticias/-viaduto-anticrack-falha-em-dispercar-cracolandia-no- rio-20120704.html – acesso em 25/01/2013. A prática arquitetônica é encontrada também em outras capitais como Belo Horizonte e São Paulo. 137 crack, em fuga dos agentes públicos mobilizados pela ordem de internação compulsória. O nível de silêncio consequente dessa questão pode variar de acordo com cada classe social, estabelecendo-se a partir de um forte consenso.

Quando escrevia as folhas de seu último livro na prisão, pouco antes de ser executado pelos nazistas, o historiador Marc

Bloch em Apologia da história (2001) conta o caso em que, acompanhando o historiador Henri Pirenne em uma viagem a

Estocolmo, o colega lhe perguntara: “O que vamos ver primeiro?

Parece que há uma prefeitura nova em folha. Comecemos por ela.”

O professor belga, segundo Marc Bloch, completara dizendo: “Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida.” (Bloch, 2001, p.

65). Não nos surpreende que quando era “meia-noite do século”, nos termos de Victor Serge (1939), dois autores reservam uma importância ao presente, ambos acometidos pelo seu caráter de urgência. Como se no momento de perigo se lhes revelasse a imagem dialética, ou seja, a dialética na imobilidade. As Teses sobre o conceito de história devem ser consideradas como um grande aviso de incêndio, como insinua Löwy no título de seu livro Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses sobre o conceito de história (2005). O caráter de urgência é o mesmo que se opõe ao sono – ao qual muitos se entregam iludidos que estão pelo progresso ou por uma visão linear, homogênea e vazia do tempo histórico. A urgência deve nos acordar do sono que se intensifica com os primeiros traços do despertar. Os riscos da letargia se manter, porém, são grandes, como insinua

Benjamin em um provocante texto chamado “Alarme de incêndio”:

138

A representação da luta de classes pode induzir em erro. Não se trata nela de uma prova de força, em que seria decidida a questão: quem vence, quem é vencido? Não se trata de um combate após cujo desfecho as coisas irão bem para o vencedor, mal para o vencido. Pensar assim é encobrir romanticamente os fatos. Pois, possa a burguesia vencer ou ser vencida na luta, ela permanece condenada a sucumbir pelas contradições internas que no curso do desenvolvimento se tornam mortais para ela. A questão é apenas se ela sucumbirá por si própria ou através do proletariado. A permanência ou o fim de um desenvolvimento cultural de três milênios são decididos pela resposta a isso. A história nada sabe da má infinitude na imagem dos dois combatentes eternamente lutando. O verdadeiro político só calcula em termos de prazos. E se a eliminação da burguesia não estiver efetivada até um momento quase calculável do desenvolvimento econômico e técnico (a inflação e a guerra de gases o assinalam), tudo está perdido. Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado. Ataque, perigo e ritmo do político são técnicos - não cavalheirescos (Benjamin, 2000b, p. 45-6).

Podemos perceber que as categorias de passado, presente e futuro não deixam de ser construções e que o conceito de imagem dialética procura nos mostrar a história abreviada, o ocorrido desde sempre que interessa ao historiador materialista. Se pensarmos nesse método, podemos ver a tropicália disposta na constelação do tempo-de-agora e reconhecermos nos anos passados a sua atualidade.

Como pensar o legado da tropicália? Que forças haverá despertado? Em que medida ela nos explica e nos define? E o que dizer da escrita de sua história e de sua época?

São tais questionamentos que nos impelem a nos determos sobre a filosofia da história de Walter Benjamin, sem censuras e escamoteações de seu viés marxista, revolucionário e crítico ao discurso liberal. Essa dimensão de questionamento é definida por

Terry Eagleton como um “pecadillo” (2009, p. 6) e por Beatriz

139

Sarlo como “modos caipiras descobertos em um amigo muito refinado” (2007, p. 85).

Resguardar uma significação política para o debate da tropicália não deixa de ser um contrassenso explicável graças à força que o conservadorismo desempenha ao querer esvaziar tal faceta, classificando-a pejorativamente de ideológica. A resistência a esse esvaziamento é mergulhada numa curiosa dimensão da chatice, ou de algo “fora de moda” que logo desmerece, por um poderoso senso comum dentro da esfera acadêmica, a resistência. Assim temos vários personagens: o ecochato; o revoltado; o politicamente correto; o patrulheiro ideológico; o comunista; o marxista; o ideológico... A lista é interminável.

Após o mapeamento crítico da tropicália realizado no capítulo anterior, foi preciso que no presente capítulo nos voltássemos à relação entre a canonização de um autor como

Walter Benjamin e a da tropicália. O estudo das duas modas e a fundamentação teórica acerca da filosofia de história de Walter

Benjamin nos permitem agora que direcionemos nosso olhar ao legado do tropicalismo visto como uma imagem dialética.

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4. O Mito

Viu como as coisas avançaram? E como as coisas avançam?

Fernando Gabeira92

As mudanças que tenho visto desde a minha adolescência são muito rápidas e muito grandes para que os mais letrados entre nós só repitam que não andamos. É loucura.

Caetano Veloso93

O legado do tropicalismo - tema central da presente dissertação - é objeto deste terceiro e último capítulo.

Utilizamos a palavra legado por ela nos permitir pensar uma articulação, uma relação entre o passado e o presente que não deve ser vista a partir de uma lógica de ruptura entre o ontem e o hoje, como se de um dia para o outro o mundo houvesse se tornado diferente, com novas certezas e novas configurações políticas. Importa aqui que tomemos o presente no seu sentido de atualização.

Após a apresentação e discussão do mapa e da moda, o mito é aqui identificado ao progresso e ao que se configurou em torno da tropicália. O mapa, a moda e o mito nos permitem entrar na delicada instância do hoje, permeada por essa tão subjetiva categoria que é o contemporâneo. A atualização proposta deve ser

92 In: Cintrão, 2000, p. 84. 93 Revista Cult, maio/2009, nº135. 141 orientada explicitamente por um viés político que não se desliga do debate crítico e da história. O que se intentará realizar nesta parte final do trabalho já vem se desenhando nos capítulos anteriores. Mapa, moda e mito são, portanto, indissociáveis.

A questão que devemos chamar de estratégica tem o objetivo de nos munir intelectualmente para que, partindo da conjuntura de início da segunda década do século XXI, melhor situemos nossas manifestações artísticas e a forma como elas são apropriadas por um discurso que poderíamos chamar de hegemônico, dominante ou qualquer outro adjetivo que dê conta do forte poder de consenso presente nas esferas da política e da cultura que tendem a ser vistas como separadas. O percurso que acompanha a nossa história recente se insere nos tempos de consolidação de uma nova pedagogia da hegemonia, como encara o Coletivo de

Estudos de Política Educacional (CNPq/Fiocruz-EPSJV) em seu livro A direita para o social e a esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil (2010). A proposta dos autores é assim definida por Roberto Leher:

Trata-se do mais amplo, sistemático e abrangente estudo publicado no Brasil sobre os fundamentos teóricos que estruturam o mencionado campo ideológico no qual não é possível vislumbrar um horizonte anticapitalista, nem mesmo em uma temporalidade de longa duração (Leher In: Neves, 2010, p. 15).

É a ideia do Brasil contemporâneo, norteadora da escrita da presente dissertação que será aqui esboçada. Entre tantas incertezas há algo que nos parece evidente: o crescimento da dificuldade de análise à medida que nos aproximamos do tempo presente. O passado, é preciso reiterar, domestica e canoniza.

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Tal dinâmica afeta não só acontecimentos políticos, regimes e governos, mas igualmente a arte. O fato se torna evidente em análises de manifestações artísticas cientes de que categorias como “forma” e “conteúdo” não se apartam por uma oposição estanque nem obedecem a critérios de esferas diferentes. A importância da diacronia se evidencia, pois pode-se ver também o quanto de historicidade tais categorias possuem. Percebemos como, para a crítica literária atual, pode parecer mais cômodo investigar o modernismo brasileiro e o regionalismo que se aventurar na produção contemporânea da literatura em que proliferam a confusão e a incerteza. Um bom exemplo para essa questão pode ser encontrado na análise de livros didáticos de literatura. Em geral, o que vemos é uma proposta de história da literatura como uma sucessão de obras, autores, movimentos artísticos ou escolas. Há normalmente um texto introdutório contextualizando historicamente um movimento ou um autor cujas obras são logo enumeradas e explicadas à luz das forças de uma determinada época. Trata-se de um procedimento que se encontra bastante vivo no ensino da matéria nas escolas brasileiras.

Analisar de que maneira o tropicalismo é considerado em diferentes livros didáticos pode ser um instigante objeto de pesquisa. Uma análise que procure pensá-lo como uma provocação na construção de um período literário na história do que chamamos de literatura brasileira é um método interessante de se discutir o seu legado. Por se tratarem de um instrumento tradicional do ensino de literatura, os livros didáticos são uma clara expressão do conceito de história identificada a uma visão historicista. Avaliar nesses livros o caráter de movimento

143 atribuído ao tropicalismo é útil por nos ajudar a perceber como alguns fenômenos artísticos podem ser canonizados e o quanto esta canonização está carregada de historicidade. Ao compararmos a forma como essas tendências contemporâneas são vistas em dois livros de diferentes épocas, poderemos exercer a atualização e a rememoração de uma manifestação artística.

É válida uma observação proposta por Jauss (1994) no livro

A história da literatura como provocação à teoria da literatura.

O autor sugere que pensemos de trás para frente uma manifestação artística para entendermos a direção que o processo de canonização segue.

Farei a seguir uma breve análise dos livros Viva português

(2011), de Elizabeth Campos, Paula Marques Cardoso e Silvia

Letícia de Andrade, e Literatura brasileira (1995), de William

Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães.

No caso do primeiro livro, o conteúdo de literatura é apresentado de uma forma que o posiciona como uma espécie de apêndice da disciplina de língua portuguesa. Isso talvez explique o caráter conciso da publicação e reflita uma concepção subentendida em que a literatura é vista como um elemento submisso ao domínio linguístico. Neste livro, o termo tropicalismo, tratado no capítulo intitulado “Bossas, jovens guardas, Tropicalismos, marginalidade” (Cereja & Magalhães,

2011, p. 259-69) é, junto a outras manifestações culturais,

144 escrito no plural.94 Comparando as obras, percebemos que a análise feita em 2011 é superficial e incorre em simplificações que, por reducionismo, atribuem o tropicalismo a Caetano Veloso e Gilberto Gil. Curiosamente, a tropicália é ali distanciada da

“irreverência” da Jovem Guarda e aproximada aos artistas das

“canções de protesto”:

Na década de 1960, formam-se os movimentos culturais promovidos pela televisão. A Jovem Guarda (de Roberto e ) e o Tropicalismo (de Caetano Veloso e Gilberto Gil) são movimentos surgidos em programas e festivais da TV Record. A Jovem Guarda cantava a irreverência, questionava em suas músicas alguns conceitos morais da época; o Tropicalismo e os compositores de “canções de protesto” (como a conhecida “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré) eram considerados aliados no combate à ditadura, à repressão (Campos, Cardoso & Andrade, 2011, p. 259).

O segundo livro didático (Cereja e Magalhães, 1995) é por sua vez mais detalhado, pois vincula a tropicália não só à dupla

Caetano e Gil, mas também a outros nomes como Os Mutantes, Tom

Zé, Torquato Neto, Capinam e Rogério Duprat. A referência ao contexto da época e às contradições que não escapavam ao olhar do tropicalismo não é abandonada:

Com uma perspectiva dinâmica e crítica da cultura e da realidade brasileiras, os tropicalistas denunciaram e ironizaram as contradições do país, que, sob a égide da ditadura militar, acreditava em milagres da industrialização e do capital

94 À guisa de informação, vale dizer que o título da dissertação de mestrado de Lígia Cristine de Morais Bezerra, Tropicalismos na música popular brasileira: um olhar interdiscursivo sobre a tropicália e a geração de 1990. (2005), também possui o termo no plural e procura investigar a interdiscursividade entre o tropicalismo e a vertente nordestina da Geração de 1990. Dissertação disponível no endereço: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_ac tion=&co_obra=60033 - acesso em 04/03/2013.

145

estrangeiro, sonhava com o Volkswagen zero e via o Chacrinha pela televisão (Cereja & Magalhães, 1995, p. 442).

A entrada na seara do tempo presente nos livros didáticos deve ser feita a partir do último capítulo que em diversas vezes se intitula “Tendências da literatura contemporânea”. São estas as que nos interessam na medida em que abarcam o conteúdo do tropicalismo. Elas geralmente se esboçam nas décadas de 1950 e

1960 e seguem até os nossos dias. Nos dois livros percebemos que há um limite que determina o contemporâneo como se fosse desenhada uma continuidade apesar de marcos como o fim da ditadura militar ou o fim da guerra fria. Pode-se notar, porém, que no livro de 2011 há uma tendência em se deslocar esse marco temporal da contemporaneidade relacionando-o ao advento da comunicação virtual e à era da transmissão via internet. Tal fato é compreensível dado o crescente poder de alcance e transformação realizado pela grande rede. As transformações da revolução tecnológica iniciada com a informática não estão isoladas do plano da manifestação artística e o tropicalismo não escapa dessa evidência.

As relações entre arte e técnica já há muito tempo constituem uma área importante de reflexão. Repensar a noção que temos de literatura é uma tarefa infinita. Não se trata de nos perguntarmos se essas inovações técnicas e manifestações artísticas se constituem como literárias ou não. A pergunta reside em pensarmos o que essas novas categorias e tecnologias podem fazer com o conceito de literatura estabelecido.

146

Cientes de tais reflexões, perguntamos: Por que o tropicalismo no início da década de 2010? Qual seria o seu legado? E como encontrá-lo?

Apenas na década de 2000 foi notável o surgimento de dissertações, documentários, álbuns e teses sobre o assunto, configurando-o como uma referência da cultura de nosso país. Tal consagração não é um fenômeno exclusivo brasileiro. Christophe

Dunn (2008) aponta que a tropicália, diferentemente da Bossa

Nova não recebeu muita atenção fora do Brasil no final da década de 1960. Na década de 1990, porém, a situação mudou. David Byrne lançou o disco Beleza tropical, uma coletânea de música popular brasileira. O mesmo selo que lançou esse disco, o Luaka Bop, lançou um álbum com canções de Tom Zé, chamado Massive Hits. Em

1991, Caetano publicou no jornal The New York Times um artigo sobre , chamando a atenção de um editor de Nova

York, que lhe sugeriu a escrita de uma biografia tropicalista.95

Dunn apresenta evidências do início da última década do século

XX para contextualizar o quadro em que a maior parte dos álbuns tropicalistas tinha sido relançada em CD e podia ser encontrada com facilidade na Europa e nos Estados Unidos. O autor comenta que houve uma onda tropicalista em seu país durante o verão de

1999 quando várias revistas publicaram artigos sobre a tropicália e seus participantes. Além disso, Tom Zé, Caetano

Veloso e Gilberto Gil fizeram uma série de apresentações em

95 Ver “Carmen Mirandadada”, Folha de São Paulo, 22 out. 1991. O texto foi publicado em inglês sob o título “Caricature and Conqueror, Pride and Shame”, The New York Times, 20 out. 1991. O texto em português está disponível em: http://tropicália.com.br/leituras- complementares/carmen-miranda-dada – acesso em 02/03/2013. 147 vários locais, atraindo grandes plateias. Sobre a consagração internacional o autor diz:

Os tropicalistas foram aclamados como precursores de grupos dos países dominantes em busca de uma estética baseada na apropriação irônica, na justaposição e na reciclagem de material datado de diversas fontes. Músicos e críticos expressavam um sentimento de “finalmente alcançar” o tipo de música recombinante e híbrida desenvolvida no Brasil, mais de trinta anos atrás. A tropicália se tornou a última encarnação da “poesia de exportação” de Oswald de Andrade (Dunn, 2008, p. 234).

A referência a Oswald de Andrade no texto de Dunn conduz à conhecida articulação entre antropofagia e tropicalismo.96 A pergunta sobre o legado da tropicália é também uma pergunta sobre o legado de figuras como Oswald de Andrade que não estão encerradas no que chamamos de modernismo. As relações a uma primeira vista óbvias entre os dois temas nos oferecem o risco de pensarmos de forma simplista como se a tropicália correspondesse a uma atualização da antropofagia. É inegável que haja uma grande influência, mas é necessário que se atente para as particularidades e jogos de forças e oposições que se colocavam em cada época. Não é, pois, na tensão, no questionamento e na problematização das categorias de forma e conteúdo que reside o conflito latente entre a estetização da política e a politização da estética? Haveria um descompasso entre a dimensão política e a dimensão estética que não diria

96 O livro Antropofagia e Tropicalismo (1993), editado pela Editora da Universidade Federal do , reúne três interessantes ensaios: “Antropofagia: rito, metáfora e pau-brasil”, de Bina Friedman Maltz; “O liquidificador de acarajés: tropicalismo e indústria cultural”, de Jerônimo Teixeira; e “Caetano e a canção tropicalista”. de Sérgio Luís Peixoto Ferreira. Favaretto, em Alegoria, Alegria (1979), trata dessa questão em seu capítulo “A mistura tropicalista“, no tópico “Tropicalismo e antropofagia”. 148 respeito ao tropicalismo?97 Essas perguntas dão margem a muitas discussões, principalmente quando relacionadas à maneira como hoje a tropicália é referida. Flora Süssekind, em um artigo escrito para o livro organizado por Carlos Basualdo (2007), toca no ponto de aproximação e diferenciação entre a tropicália e a

Antropofagia:

E se as ideias de uma devoração e reinvenção sistemática dos aportes estrangeiros, de um entrecruzamento sincrético de perspectivas, linguagens e ritmos temporais distintos e de um tensionamento e um trânsito constantes (e vistos como constitutivos do processo cultural brasileiro) entre “alta cultura” e “mau gosto”, cultura letrada e “tradições orais”, entre nacional e estrangeiro, arcaico e moderno, entre atualização e revisão de “componentes recalcadas da nacionalidade” aproximariam o grupo da tropicália do primeiro modernismo brasileiro, era igualmente evidente a diferença contextual entre esses dois momentos de invocação de uma estratégia antropofágica. Ou, como assinalaria Caetano Veloso, “entre a experiência modernista dos anos 20” e os “embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60”. E também, seria possível acrescentar, entre o universo dessa nova música popular brasileira e o dos grupos concreto e neoconcreto no Brasil dos anos 50 (Süssekind, 2007, p. 36-7).

Anderson Pires da Silva (2009), no capítulo intitulado “A antropofagia remixada”, de seu livro Mário & Oswald: uma história privada do modernismo, analisa as relações entre a antropofagia e o tropicalismo, propondo-se a pensá-las como um remix. É pertinente o uso de tal categoria, pois ela abarca uma concepção de criação que questiona as noções de autoria e obra.

97 Slavoj Žižek reflete sobre essa questão na introdução de seu livro A Visão em Paralaxe (2008): “Estruturalmente, o encontro entre a política leninista e a arte modernista (exemplificado na fantasia de que Lenin teria encontrado com dadaístas no Cabaré Voltaire, em Zurique) não pode acontecer; em termos mais radicais, a política revolucionária e a arte revolucionária movem-se em temporalidades diferentes. Embora interligadas, são dois lados do mesmo fenômeno que, exatamente por serem dois lados, nunca podem se encontrar. (ŽIŽEK, 2008, p. 14) 149

A discussão sobre direitos autorais98 e a noção de creative commons99 não são alheios ao debate. A noção de remix que

Anderson Pires defende ajuda-nos a caminhar em direção a uma história em aberto – oposta a uma visão historicista e canônica.

Ela deve ainda nos servir como gesto inspirador para encaramos as relações entre literatura e sociedade:

Os poetas concretistas prontamente viram no ideário do CPC a reencarnação da lógica “verde-amarelista”. Discutindo a canção de Carlos Lira, “Subdesenvolvido”, o hit dos estudantes, Augusto de Campos ouvia a “temática nordestina” como “presença paradigmática do desajuste social”. Sob o argumento de que a Bossa Nova era elitista, a temática do subdesenvolvido representava uma “má consciência”, um retorno ao discurso “folclórico-sinfônico”, o mesmo que Oswald de Andrade tachara de “macumba para turista”, que tomava a “matéria-prima do primitivismo nacional” como pretexto para o paternalismo cultural (Silva, 2009, p. 132).

Há entre o ideário do CPC e a lógica verde-amarelista uma distância que não deve ser ignorada. Quando os concretistas pensam dessa maneira corroboram com a crítica que Caetano Veloso no palco do III Festival da Canção de 1968 dirigiu à plateia que

98 No que diz respeito aos questionamentos que categorias como Remix e Sample realizam nas relações de autoria e obra, os versos cantados por Gaby Amarantos são elucidativos. “Eu vou samplear, eu vou te roubar“ repete o refrão da música “Xirley”, composta por Zé Cafofinho, e presente no disco Treme (2012). 99 O verbete da Wikipedia sobre o termo creative commons o define como: “Organização não governamental sem fins lucrativos localizada em São Francisco, Califórnia, nos Estados Unidos, voltada a expandir a quantidade de obras criativas disponíveis, através de suas licenças que permitem a cópia e compartilhamento com menos restrições que o tradicional Todos direitos reservados. Para esse fim, a organização criou diversas licenças, conhecidas como licenças Creative Commons“. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Creative_Commons – acesso em 27/03/2013. 150 lhe assistia.100 Em seu discurso, o artista acusa o público de se comportar como os integrantes do CCC que espancaram os atores da peça Roda Viva. Essa visão afina ideologicamente com a crítica que iguala o comunismo e o nazismo, nivelando-os a partir da ideia de totalitarismo. Não cabe aqui uma defesa das vaias recebidas por Caetano e tampouco do que o stalinismo representou. O que se deve fazer além de matizar e questionar a comparação é evidenciar a sua representatividade para a história dos embates de nossa crítica da década de 1950 até hoje. É problemático e nos força a pensar na associação entre as duas

épocas o argumento reproduzido por Anderson Pires que afirma ser uma má consciência ou uma espécie de “macumba para turista” a crítica do “subdesenvolvido” sobre a Bossa Nova.

Relacionar momentos históricos diferentes é um imperativo neste capítulo. A problematização de rótulos como “nacional- popular” e “patrulha ideológica” deve ser inspirada por essa dinâmica. É preciso superar um pouco nosso olhar engessado sobre a tropicália para nos darmos conta de uma miopia que afeta não só os anos que passaram mas também os atuais. Quando tudo parece mais do mesmo faz-se necessário lançar mão do dissenso, a incerteza e a contingência como nossas categorias de análise e ferramentas críticas.

100 O famoso discurso inicia-se da seguinte maneira: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada“. Ele está disponível na íntegra, assim como o áudio do discurso em: http://tropicália.com.br/identifisignificados/e-proibido- proibir/discurso-de-caetano - acesso em 03/03/13. 151

Quais questões ficaram em aberto ou permaneceram encerradas tornando-se tabus? Uma experiência comum aos que voltaram do exílio após a lei da anistia foi a consciência de que o país havia mudado. Os chamados anos de chumbo tinham submetido o

Brasil a uma modernização que abrira o país ao capital exterior e seguira a cartilha econômica hegemônica com sua política de arrocho salarial e perseguição às organizações populares. O país distanciava-se assim de um projeto de nação que se apresentava no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Após o fim do AI-

5, o sentimento de balanço de que o pior já havia passado e de que começava uma fase de abertura do regime se evidenciavam.

Estava dada a largada para a formação de um novo consenso nos limites da ordem do capital. O Brasil que era desenhado e construído em 1960 já era completamente diferente deste, que no final dos anos 1970 assistia à lenta, gradual e conciliadora transição à democracia. A atualização dessa época se constitui como um interessante campo de análise para o entendimento do

Brasil contemporâneo.101

Imaginemos um exercício em que entre os anos de 1968 e 1978 escolhemos o segundo. Hoje, a categoria de fetiche e o status em torno do primeiro nos atrapalha. Interessa hoje que se comercialize um ano de 1968 com cores idealistas e exóticas enquanto as questões discutidas dez anos depois como as derrotas da anistia e posteriormente das Diretas Já são ofuscadas, relegadas a um segundo plano e suavizadas. O próprio engajamento político - homeopático e superficial – torna-se assim uma

101 Agradeço ao Paulo Gajanigo que, em uma conversa na Aldeia Maracanã, em janeiro de 2013, chamou-me a atenção para esse urgente ponto de estudo da nossa história recente. 152 espécie de mercadoria. Como provocação, pensemos no título do famoso livro de Zuenir Ventura e no lugar de 1968: o ano que não terminou leiamos “1978: o ano que não terminou”. O período é muito importante para a consolidação da crítica do tropicalismo, pois foi no final da década de 1970 quando foram escritos importantes trabalhos como os de Celso Favaretto (Alegoria

Alegria, de 1979); Heloísa Buarque de Hollanda (Impressões de viagem, defendido como tese em 1978 e publicado em livro em

1980); Gilberto Vasconcellos (Música popular: de olho na fresta, de 1977); e Silviano Santiago (Uma literatura nos trópicos, de

1978).

A proposta deste último capítulo é pensar o legado da tropicália numa análise a contrapelo, partindo de nossa atualidade em direção à década de 1960. No amplo horizonte descerrado pela proposta analítica há uma certeza a que devemos nos agarrar: a mistificação que assombra 1968 é hoje um empecilho tanto para a crítica quanto para as lutas políticas do nosso presente. Tal mistificação não é um processo natural e tampouco inocente. Ela obedece a uma dinâmica consensual que se fortalece à medida que nos aproximamos de nosso presente. A significação do tropicalismo precisa se inscrever aí e cumpre perceber quais discursos ela consolida. Como já foi ressaltado, a ideia de trajetória é importante na medida em que nos mostra a construção de uma lógica e da formação de uma sensibilidade e subjetividade novas que funcionam como uma explicação para as mudanças do presente.

Tal tarefa se torna necessária, pois não podemos descolar o que chamamos de legado tropicalista do contexto de mito do

153 progresso, revelador para a hora histórica atual. A frase que dá título a esta dissertação – “a politização da arte e a estetização da política” – é importante na perspectiva de história em aberto que nos orienta em nossa investigação.

Além das reflexões de Walter Benjamin discutidas no capítulo anterior, as referências teóricas do presente capítulo podem ser encontradas em outros autores (como, por exemplo,

Slavoj Žižek - o novo “guru” e “a nova moda acadêmica de esquerda” nas palavras de Euler de França de Belém)102 que nos auxiliam a desmistificar o final dos anos 1960 a partir de seu conceito de Rumspringa acadêmica. Configurando-se um exemplo de história em aberto e uma tensão entre continuidade e descontinuidade traçada desde aqueles anos até os de agora ganha outras significações que não aquelas inscritas sob os “anos rebeldes” que lhes retiram o seu conteúdo anticapitalista e enfatizam aspectos triviais da luta, incorporando-a e tornando-a em si mesma uma espécie de fetiche.

Como resistência ao que essa lógica representa, Daniel

Bensaïd propõe, em Os irredutíveis (2008), teoremas para o tempo presente, fundamentando um questionamento daqueles que proclamam a falência do marxismo e da possibilidade de recusa da ordem estabelecida. No tempo atual, que insiste em se desligar de qualquer passado, palavras como “revolução” e “totalidade” já são invalidadas de antemão. Vislumbrar um processo histórico

102 A declaração pode ser encontrada no jornal Opção, edição 1922, de 6 a 12 de maio de 2012. Disponível em: http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/caetano-veloso- nocauteia-roberto-schwarz - acesso em 12/02/2013. 154 através da análise de diferentes manifestações culturais é necessário, pois ambas as esferas fazem parte de uma unidade.

Para entendermos as transformações e continuidades operadas em meados do século XX até a nossa época, o livro A direita para o social e a esquerda para o capital (2010) nos permite, com

ênfase no caso brasileiro, direcionar nosso olhar para a atualidade:

Ainda restam profundas lacunas na produção do conhecimento sobre o modo como os dominantes dominam na atualidade. Os desafios teóricos e pedagógicos dos movimentos na disputa por outra hegemonia são, por conseguinte, relevantes, em que pesem avanços no plano epistemológico advindos da crítica ao eurocentrismo e em defesa da interculturalidade (Leher In: Neves, 2010, p. 15).

A tarefa de captar o que chamamos de legado da tropicália para o nosso tempo não é objetiva e tampouco neutra por estar inserida numa proposta de interpretação do Brasil atual. Não classificaremos em ordem de importância as manifestações aqui analisadas como se somente a uma determinada expressão artística estivesse reservada a possibilidade de análise. Não nos interessará, portanto, o cânone normalmente associado ao estudo do tropicalismo. Sendo assim, é indiferente se estamos tratando de uma retrospectiva televisiva da década de 1970 realizada pela

Rede Globo ou de um manifesto pela reeleição de um candidato a prefeito do ano de 2012. Em tal proposta, a ordem cronológica não é o que mais importa, mas antes o são as relações e afinidades que podemos encontrar quando analisamos elementos que a uma primeira vista poderiam ser considerados díspares.

No título do livro Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços (2000), em que se encontram os depoimentos de José

155

Genoino e Fernando Gabeira (anexos A e B), há uma referência implícita sobre a explosão tropicalista de Celso Favaretto, sendo o crítico muito citado na introdução escrita por Hilda

Lontra. É com certo desconforto que lemos a apresentação do volume, na qual a organizadora parabeniza os palestrantes por seguirem sendo vanguardas. Junto aos nomes de Fernando Gabeira e

José Genoino arrolam-se os de figuras como Xico Chaves, Jorge

Mautner, Jomard Muniz de Brito, Jards Macalé, Sérgio Cassiano,

Celso Favaretto, Luiz Carlos Maciel, Júlio Medaglia, Rogério

Sganzerla, Anazildo Vasconcellos da Silva, Benito Martinez

Rodriguez e Ivo Luchesi. Sobre eles a organizadora do seminário

Sylvia Helena Cyntrão diz:

Aos luminares citados no início, agradeço a atenção, o apoio e o carinho com a comunidade acadêmica, virtudes fundamentais nestes tempos de reumanização, em que se constrói um novo paradigma para as relações na própria Universidade, já que a expressão positiva de sentimentos não torna menos sérias as informações com as quais trabalhamos nem o compromisso com a produção e a divulgação de conhecimento. Depois de três décadas, na arte, na teoria crítica e na política, vocês continuam sendo vanguarda! (Cyntrão, 2000, p. 7).

A exclamação nos interessa na medida em que procura pensar uma continuidade sobre o passado debatido e o presente - neste caso, o ano de 1997. Há nos discursos de Fernando Gabeira e José

Genoino um tom de autocrítica em relação à postura de ambos na

época do tropicalismo que é bastante significativo. Os discursos em suas argumentações, exemplos e significados expressam muito bem os caminhos da canonização instituída e nos contam mais sobre a construção de uma subjetividade que fundamenta o consenso em torno da inexorabilidade da ordem do capital. O

156 comentário de Maria Elisa Cevasco, em um artigo ainda inédito chamado “Modernização à brasileira”, sobre a publicação do ensaio de Roberto Schwarz nos é útil para pensarmos a formulação de tais discursos:

O ano de 1964 representa uma hora histórica decisiva com consequências que reverberam até nossos dias. Um dos muitos focos de interesse do ensaio de 2012 é que tenta responder à questão central, ou seja, “Como foi que aquilo tudo deu nisso?” Como as ideias de superação do capitalismo por uma ordem mais justa dos anos pré golpe foram superadas por sua vez pela acomodação à ordem vigente, ainda que posando de “outra coisa”? Que cara tem essa “esquerda acomodada” e o que ela pode nos ensinar a respeito do movimento histórico da vida brasileira, como apreendido por uma figura que concretiza de forma específica vários aspectos centrais das nossas condições objetivas? Essas são algumas das perguntas que o ensaio de Roberto suscita. (Cevasco, 2013).

A reumanização (2000, p. 7) referida por Hilda Lontra deve ser aproximada à ideia da terceira via de humanização do capitalismo tão necessária para a sua manutenção. A compreensão do que a luta política da geração de 1968 representou é uma condição para entendermos os meandros e sutilezas do momento político atual. As transformações pelas quais o ensino universitário tem passado no Brasil estão inseridas em nosso contexto econômico e político. À ideia de que as universidades são um espaço de distintos saberes devemos contrapor a de que lá também se fabrica o consenso através dos seminários realizados, grupos de pesquisa e disciplinas oferecidas. Apesar dos questionamentos à autoridade da ciência e da assunção de outros saberes, o lugar de fala e a autoridade acadêmica mantêm-se firmes e fortes através da sucessiva e cada vez mais fortalecida especialização do saber.

157

Os diferentes congressos e seminários realizados nas universidades são um interessante campo de análise que nos revela não somente a reunião de diversos profissionais de uma

área específica, mas também conformam grupos reunidos sob determinados interesses, concepções políticas e diferentes comprometimentos com a indissociabilidade entre ensino e pesquisa.

A Rumspringa acadêmica formulada por Žižek é um conceito

útil para analisarmos a maneira como Genoino e Gabeira encaram a tropicália e seu legado. A celebração da tropicália como moda acadêmica está relacionada à sua apropriação em um discurso que se afirma como explicitamente político. Vindo de ex- guerrilheiros, um deles filiado ao Partido Verde e o outro do campo da articulação do PT, os depoimentos tornam-se representativos de nosso momento histórico.

O termo cunhado por Žižek deriva-se do verbo alemão herumspringen, que significa saltitar. A palavra serve para designar um costume das comunidades amish. Ao completarem 17 anos, os filhos que até então estavam submetidos à rígida disciplina da família são encorajados a experimentar os costumes do mundo de fora. Após uns anos espera-se que eles decidam se devem se tornar membros da comunidade amish ou se transformar em cidadãos norte-americanos comuns. O filósofo esloveno define essa opção como uma falsa escolha, uma solução “de uma violenta tendenciosidade”:

Depois de longos anos de disciplina e de fantasias sobre os prazeres ilícitos e transgressores do mundo externo “inglês”, quando os adolescentes amish são jogados nele, de repente e sem preparo, é

158

claro que só podem aderir a comportamentos transgressores exagerados, “experimentando de tudo”, mergulhando de cabeça numa vida de sexo, drogas e bebedeiras. E como, nessa vida, eles não têm limites ou regras inerentes, essa situação, permissiva inexoravelmente se inverte e gera uma angústia insuportável; portanto, é quase certo que, dali a alguns anos, voltem à reclusão da comunidade. Não admira que 90% dos amish façam exatamente isso (Žižek, 2008, p. 433).

Tal exemplo é utilizado para teorizar sobre o que seria uma escolha verdadeira. A partir do momento em que sua adesão é vista como uma questão de consubstancial participação em uma determinada comunidade, o sujeito passa a ser acusado de

“fundamentalismo”. Como exemplo o autor cita o caso das mulheres muçulmanas que segundo a atitude liberal podem usar o véu somente se for uma opinião idiossincrática pessoal. Indo além o autor afirma:

Isso significa que o “sujeito da livre escolha” (no sentido multicultural “tolerante” do Ocidente) só pode surgir como resultado de um processo extremamente violento de ser arrancado de seu mundo vivido específico, de ter as suas raízes cortadas. E não é assim que funciona a nossa liberdade acadêmica? (Isso não as torna a priori sem sentido ou “cooptadas”; deveríamos simplesmente ter consciência disso.) Nada leva mais à integração adequada na comunidade político-ideológica hegemônica do que um passado “radical” no qual se viveram os sonhos mais loucos. Os protagonistas mais recentes dessa saga são os atuais neoconservadores norte-americanos, dos quais um número surpreendente foi trotskista na juventude. Como agora podemos afirmar, retroativamente, o glorioso Maio de 1968 parisiense não foi também uma rumspringa coletiva que, a longo prazo, contribuiu para a capacidade reprodutora do sistema?(Žižek, 2008, p. 434).

Difícil não pensar na leitura dos depoimentos de José

Genoino e Fernando Gabeira, dois políticos que compartilharam de um passado radical e que quando proferiram seus discursos

159 participavam de posições moderadas identificadas a uma centro- esquerda ou ao que poderíamos chamar de uma “esquerda do possível.” Não devemos encarar como algo isolado, marginal ou exceção no quadro da canonização da tropicália a visão aqui analisada. O que se deve depreender na sua leitura são os pontos e meandros pelos quais o legado do tropicalismo pode ser articulado e como a sua apropriação por um discurso que se explicita como político se encaminha para um senso comum, um consenso estabelecido em uma determinada prática e em uma nova forma de ver a política. Para isso, é preciso que articulemos os dois depoimentos a manifestações e documentos a partir de uma análise que não se detenha nas rupturas e sim nas continuidades entre os anos da ditadura e o tempo atual.

A primeira coisa que chama a atenção em suas falas é que ambos partem de um tom de autocrítica que percebe anos depois que o tropicalismo tinha razão. Tal viés se direciona ao

“passado radical” da luta armada e da luta estudantil, na sua forma de encarar a atuação política, outras manifestações artísticas e a própria história. As palavras de Fernando Gabeira evidenciam esse tom:

Eu queria dizer que tenho uma dívida muito grande com o Tropicalismo. Na época em que o tropicalismo aconteceu eu não o entendi. [...] Hoje eu me identifico e compreendo melhor o tropicalismo. Portanto, essa minha intervenção é quase um pedido de desculpas histórico. [...] Ainda há muitas possibilidades de sacudir o Brasil. Mas o que foi feito ali naquele momento foi fundamental. Tanto fundamental, e mais uma razão de nós nos sentirmos hoje culpados (no bom sentido) por não termos entendido, é que a própria ditadura militar compreendeu isso (Gabeira, 2000, p. 73-4).

160

Nota-se que Gabeira procura também reforçar a ideia do aspecto revolucionário do Tropicalismo sendo percebido pelos próprios militares na época. Genoino, então professor do Colégio

Equipe, comenta sobre a conversa que teve com Caetano e Gil em

1978, na ocasião de um show realizado na escola pelos artistas, que na época ainda se encontravam na clandestinidade:

Terminou o show e, na conversa com o Gil, eu disse que tinha estado em 68 na Universidade Federal do Ceará, na Faculdade de Direito e que queria dizer: “Vocês também tinham razão”. [...] Quando eu dialogava sobre isso, em 78, com eles, lá no Equipe, eu dizia: “Agora eu entendo porque vocês foram os únicos que tiveram a sensibilidade de, no momento em que o Che morreu, comporem aquela música ‘Soy loco por ti, America’” (Genoino, 2000, p. 100 e 104).

É interessante explorar o tom de dívida e de compreensão tardia do tropicalismo, pois ele conforma uma dimensão digna de análise de apropriação por um determinado grupo político que participou ativamente das lutas contra a ditadura. A mudança de discurso sobre a tropicália evidencia as mudanças de uma época.

Quase trinta anos depois de 1968, Gabeira e Genoino referem-se de maneira genérica às organizações de esquerda, como se entre os comunistas da época lhes fosse vedada a possibilidade de perceber a vanguarda artística incorrendo na ideia de que os militantes fossem insensíveis às esferas dos costumes e das manifestações artísticas. Os dois autores atribuem implicitamente a essa esfera um caráter de universalidade que é digno de nota.

161

A universalidade opera aqui no plano de afirmação de uma percepção que poderíamos chamar de “global” no estilo usado por

Heloísa Buarque de Hollanda em sua crítica a Schwarz.103 A universalidade da cultura jovem e da rebeldia é associada ao tropicalismo. Sugerir um descompasso entre vanguarda política e artística não é algo descabido, porém atribuir a todo o conjunto da esquerda a cegueira em relação ao tropicalismo e a necessidade de se revolucionar os costumes é algo demasiado apressado e reflete muito bem a formação de um consenso conservador em relação às lutas políticas passadas. Esse consenso pode ser observado no trecho em que Fernando Gabeira comenta o discurso de Caetano no Festival da Canção de 1968, quando foi vaiado ao cantar “É proibido proibir”:

Eu me lembro que o próprio Caetano quando foi vaiado cantando o “É proibido proibir” ficou muito sentido porque sabia que estava cantando alguma coisa de esquerda. Ele sabia que estava de certa maneira expressando a palavra de ordem mais avançada possível naquele momento. E, no entanto, ele absolutamente não era entendido. Ele era vaiado. Então ele disse “vocês são uns fascistas”, “vocês não entendem o que está se passando”. E ele tinha razão porque a visão de arte da esquerda brasileira, naquele momento, e, de modo geral, a visão de arte da esquerda, até hoje, é muito limitada (Gabeira, 2000, p. 92-3; grifo meu).

Para problematizarmos essas citações, expressões como

“palavra de ordem mais avançada” devem ser lidas com uma dupla

103 Refiro-me aqui ao seguinte trecho do capítulo “O susto tropicalista na virada da década“ do livro Impressões de viagem, de Heloísa Buarque de Hollanda (2004): “O tropicalismo começa a sugerir uma preocupação com o aqui e o agora, começa a pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, rompendo com o tom grave e a falta de flexibilidade da prática política vigente. [...] Faltou ao excelente ensaio de Schwarz uma percepção mais global, capaz de dar conta dos efeitos críticos do tropicalismo entendido como uma nova linguagem crítica, especialmente no sentido da subversão de valores e padrões de comportamento.“ (Hollanda, 2004, p. 70). 162 desconfiança. É preciso perceber os dois políticos discursando a partir do contexto político de 1997, época em que eram deputados federais. Este ano em que Caetano Veloso escreveu Verdade tropical é o que está por trás da passagem em que comenta o filme Terra em Transe. Schwarz percebe nas colocações de Caetano a recomposição ideológica pós-golpe. Trata-se da cena em que o poeta Paulo Martins tapa a boca de um operário e grita “Isto é o povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!”. Lendo o seguinte trecho podemos visualizar o contexto em que Genoino e

Gabeira proferem seus discursos:

Vivi essa cena - e as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar - como o núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar não me ocorreria com tanta facilidade então (e por isso eu buscava mil maneiras de dizê- lo para mim mesmo e para os outros): a morte do populismo. Sem dúvida, os demagogos populistas eram suntuosamente ridicularizados no filme: ali eles eram vistos segurando crucifixos e bandeiras em carro aberto contra o céu do Aterro do Flamengo, exibindo suas mansões de ostentoso mau gosto, participando das solenidades eclesiásticas e carnavalescas que tocam o coração do populacho etc.; mas era a própria fé nas forças populares - e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo - o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever- lhe as consequências. Nada do que veio a se chamar de “tropicalismo” teria tido lugar sem esse momento traumático (Veloso, 1997, p. 104-5).

A vinculação do tropicalismo a um “momento traumático” chega a soar estranha ou descabida para aqueles que querem dissociar a tropicália de um debate ideológico ou político. A maneira como Caetano vê tal momento em 1997 traz em si uma reconfiguração ideológica pós-golpe que percorre o tempo

163 presente e não está excluída da forma como Genoino e Gabeira avaliam a história recente do país.104

Necessitamos explorar o que seria o conflito entre uma dimensão séria e racionalista e outra debochada e irreverente já referida no primeiro capítulo. A oposição percorre o legado da tropicália e tudo indica que se fortaleça nas próximas efemérides. Nos dois autores, o contraste entre a seriedade dos grupos revolucionários e a irreverência tropicalista a partir da utilização de determinados substantivos e adjetivos compõem um interessante maniqueísmo entre dois aspectos: o belo da irreverência do tropicalismo versus o carrancudo da luta política por uma sociedade sem classes – um antagonismo que fala muito ao nosso tempo.

Os tropicalistas estavam procurando também alguma coisa que fosse absolutamente não séria, alguma coisa que de certa maneira sacudisse a estrutura mental europeia que os dominava. [...] Então o Brasil não é sério, tal como o Chacrinha. O Brasil é a banana. E o Brasil é mais divertido, é mais animado, é mais interessante do que esses caretas gostariam que fosse. [...] Uma espécie de desencaretada violenta que permitiu que nós pudéssemos nos ver um pouco mais como somos de fato. (Gabeira, 2000, p. 78, 79, 82; grifos meus). [...]

As gerações futuras tentaram recompor na continuidade histórica, trazendo os valores do Tropicalismo para a sua universalidade, em que o belo universal, a felicidade, o prazer se incorporam na política de fazer, quando optamos, necessariamente, por uma questão de sobrevivência, pela clandestinidade, pela luta armada e depois pelas prisões.

104 Para que possamos entender melhor o que seria tal reconfiguração, é preciso ver o Golpe de 1964 não como um acontecimento isolado, caso singular, mas como a consolidação da hegemonia americana no continente e posteriormente no mundo. 164

[...] Como nós vivemos hoje uma crise de esperança, como nós vivemos hoje uma crise de futuro, eu acho que é muito atual e importante participarmos deste evento e olhar para a obra dos protagonistas do Tropicalismo como a antecipação dessa ideia de que o belo, a felicidade, o prazer, a alegria têm que se incorporar a uma luta política revolucionária. A gente às vezes tinha dificuldade em imaginar como uma coisa tão exuberante, tão bela, virava dentro das organizações de esquerda uma coisa fechada, carrancuda, pesada, feia, sectária, agressiva, quando o processo libertário é um processo de irreverência, de rebeldia, de insubordinação. (Genoino, 2000, p. 103-4; grifos meus).

Ao passado da luta armada é retirada a possibilidade de beleza, felicidade, prazer e alegria. Se partíssemos do argumento de Genoino citado acima ficaria vedada a uma figura como Marighella e tantas outras que se engajaram e perderam suas vidas em tal empreitada a dimensão do belo, da felicidade e da alegria.

É necessário enxergar nesse depoimento o retrato de conformação de um tempo e não a expressão individual de determinados indivíduos. Devemos perceber em tais discursos uma retórica que desde 1997 foi sendo acentuada. A sensação de inexorabilidade do capital e sua confirmação não é um privilégio da autoproclamada direita. Gabeira quando fala sobre o avanço do capitalismo e da individualidade diz acreditar menos nos movimentos coletivos e mais nos movimentos de identidade pessoal. Pode-se perceber que em boa parte de seu discurso o autor argumenta que os tempos atuais não permitem mais os eventos acontecidos ao final dos anos 1960, pois atualmente as lutas coletivas encontram-se enfraquecidas e focadas mais nas

165 identidades.105 Por conseguinte, o próprio marxismo como ferramenta analítica inseparável da transformação da sociedade perderia a validade:

Hoje não se luta mais contra o capitalismo apresentando um modelo acabado de alternativa. Não existe isso. Hoje nós lutamos por verdades parciais. Ninguém mais se considera o dono da verdade, ninguém mais trabalha com um script da história como nós trabalhávamos no tempo em que éramos marxistas, pois o marxismo era o script da História. Ele dizia que depois do capitalismo viria o socialismo e depois viria o comunismo. Todas as etapas já estavam planejadas. Não temos mais o script da História. E, ao não termos mais, a História não tem mais quem a conduza olimpicamente como vanguarda (Gabeira, 2000, p. 81; grifos meus).

Essa colocação, ainda que realizada no final do século XX, não tem dado mostras de enfraquecimento, por mais que os acontecimentos ocorridos após a crise econômica mundial de 2008 tenham abalado fortemente a concepção de que chegamos ao fim da história. O que poderíamos dizer da crescente organização dos

105 Cabe aqui a transcrição de um trecho do artigo de Francisco Alambert sobre o tropicalismo publicado em 2012. Em seu artigo o autor comenta a cena de um show performático tropicalista do espetáculo Ópera dos vivos, em 2010, do grupo de teatro paulistano Companhia do Latão. O comentário é útil aqui para pensarmos a assunção desses novos tempos aqui discutidos. O personagem que fazia a performance tropicalista quando questionado por um senhor esquerdista assim responde: “Eu sei que a luta de classes acabou. Já me contaram que as coisas vão ser daqui por diante mais ou menos como nos Estados Unidos. Esquerda e direita são farinha do mesmo saco, e o nosso saco agora é outro. O mundo, esse grande saco, agora será ensacado na forma do que parecia ser a estrutura da sociedade norte-americana. O negócio agora é negar pela cultura (a contracultura), mirar nas minorias (os negros, os gays, a libertação sexual, o feminismo sem distinção de classe, só de gênero, etc.). E a gente não vai mais ao povo, a gente vai ao consumidor, através do espetáculo e da TV.“ (Alambert, 2012, p. 142). 166 mineiros na África do Sul106 no contexto atual de crise? Seria ela a demonstração de uma concepção de história com script? A identidade de classe, a organização sindical e as demandas populares seriam todas elas classificadas hoje como uma concepção de história que trabalha segundo um roteiro pré- estabelecido? A concepção de organização em torno de um partido que tenha como bandeira a revolução social perderia a validade?

E a mobilização dos trabalhadores em países como Grécia,

Portugal, Chile, Espanha, Chipre e Islândia? O que dizer dos bombeiros espanhóis que se recusam a realizar despejos, argumentando que sua função é resgatar pessoas e não os bancos?107 A expressão “no tempo em que éramos marxistas” poderia ser um bom título de um livro que procurasse dar conta de muitas trajetórias desde os anos 1960 até os dias atuais. A

106 As greves dos mineiros na África do Sul se intensificaram no segundo semestre de 2012. Num contexto de sindicatos corruptos e desacreditados como o NUM (Sindicato Nacional de Mineiros) os trabalhadores estão construindo uma organização verdadeiramente combativa. A onda de greves e revolta social é a mais forte desde a queda do regime de Apartheid. O Estado não tardou em reprimir os manifestantes. Em 16 de agosto de 2012, 34 mineiros foram assassinados pelas forças policiais. A repressão aos trabalhadores grevistas e militantes tem se intensificado no início do ano de 2013. Uma análise dessa questão está disponível em: http://srev.blogspot.com.es/2013/03/sudafrica-gran-respuesta-para- el.html – acesso em 29/03/2013. Há no Youtube uma compilação de vídeos da grande imprensa sobre a revolta dos mineiros. Aos 4’15’’ de vídeo podemos ver a polícia sul-africana abrindo fogo sobre os mineiros desarmados. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=tU-aFTH_JQw - acesso em 29/03/2013. 107 “Rescatamos personas no bancos“ - a frase aparece em faixas seguradas por bombeiros espanhóis. A posição adotada pelos bombeiros iniciou-se na Comunidade Autónoma do Principado de Asturias, no verão de 2012, e se espalhou pela Espanha. Em fevereiro de 2013, repercutiu o caso de um bombeiro de La Coruña que se recusou a derrubar a porta da casa de uma octogenária. No local havia mais de 200 manifestantes do movimento Stop desahucios. A negativa em intervir em casos como esses configuram uma questão moral, um conflito entre a consciência e o dever. Para mais informações sobre esse caso e a questão dos bombeiros na Espanha, vale conferir o site #anonymousespaña, disponível em: http://anonops.es/?p=66. Diversas páginas do movimento Stop Despejos podem ser encontradas no Facebook. O endereço do movimento é: http://www.stopdesahucios.es/. - Acesso em 20/03/2013. 167 simplificação promovida por Gabeira aqui em relação ao marxismo

é gritante, como se se tratasse de um bloco homogêneo e coeso como em geral as visões que o atacam gostam de pintá-lo. Há que se ter muita cautela com a concepção que classifica a luta política coletiva como eminentemente autoritária. O elogio da democracia, feito sem distinção entre direita e esquerda permite pensar a ideia de uma resistência democrática, diferenciando-a da resistência contra o capitalismo que por sua vez torna-se sinônimo de autoritarismo.

O episódio da declaração de Rogério Duarte comentada por

Caetano Veloso em seu livro é citado por Roberto Schwarz em

Verdade tropical: um percurso de nosso tempo (2012). Rogério

Duarte - apontado como o feiticeiro e pajé108 da tropicália por

Heloísa Buarque de Hollanda - diz a Caetano Veloso que o prédio da UNE “devia mesmo ter sido queimado” (1997, p. 107). Caetano, apesar de inicialmente chocado com essa afirmação fala em um

“estranho júbilo” ao entender com clareza as razões de Rogério e ainda se identificar com elas. Um paralelo pode ser traçado entre Caetano e Genoino, quando este comenta a posição autoritária de sua geração que havia nascido contra o autoritarismo (Genoino, 2000, p. 102). Caetano Veloso diz em sua biografia publicada no mesmo ano em que Genoino profere seu discurso:

108 Em Impressões de viagem a autora diz: “A propósito, parece-me fundamental lembrar o papel desempenhado, neste grupo, por Rogério Duarte. Músico, cineasta, designer, poeta, ator, Rogério é como que eleito feiticeiro e pajé dessa tribo. Investido de um ‘saber superior’ avalizado por um bom número de leituras e de um ‘poder’ conferido pela experimentação sensível limite, até mesmo próxima da loucura, Rogério traz em si os índices constitutivos da vivência tropicalista” (Hollanda, 2004, p. 81). 168

Não tardei a descobrir que Rogério exibiria ainda maior violência contra os reacionários que apoiassem em primeira instância a agressão à UNE. Isso, que para muitos parecia absurda incoerência, era para mim prova de firmeza e rigor: ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo dos grupos que lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria confundir-se com os atuais opressores destes (Veloso, 1997, p. 107).

Ainda no discurso de Gabeira e Genoino, chama a atenção a assunção de que vivemos novos tempos chama a atenção no discurso de ambos. Essa colocação ainda que compreensível na medida em que avaliamos o quanto estamos distantes das décadas de 1960 e de 1970, deve ser matizada. Há uma distância considerável entre o ano de 1997 e o de 2013. Entre essas duas épocas a crise de

2008 é um forte questionamento para muitas ideias configuradas apressadamente como certezas. No plano brasileiro, a chegada de

Luís Inácio Lula da Silva à presidência da república, em 2003, e sua reeleição seguida pelo mandato de Dilma Rousseff totalizam dez anos de governo do Partido dos Trabalhadores. É interessante notar como o discurso de 1997 dos dois políticos está ora explicitamente ora implicitamente impregnado da lógica que se aproxima ao “fim da história” de Fukuyama. Em Gabeira a referência ao novo é feita a partir do famigerado termo

“globalização”. Para ele, o tropicalismo pode nos ajudar a nos redefinirmos como cultura num momento de globalização. A globalização é mostrada como uma oportunidade de promoção de justiça na ordem capitalista.

A intensificação da globalização como um dos pilares do projeto político da terceira via no quadro de muitas mudanças não deve ser ignorada. Ela é identificada a uma mudança na sociabilidade e na própria maneira como se entende a política:

169

A Terceira Via sugere que o mundo contemporâneo precisa ser reinterpretado, pois o período de conturbações em que vivemos teria gerado um mundo sem o peso das velhas tradições e contradições. O esquema analítico parte da premissa de que a globalização não é apenas um fenômeno econômico, mas é, sobretudo, uma manifestação cultural, a “transformação do tempo e do espaço em nossas vidas” (Giddens, 2001a, p. 41). A globalização cultural seria um fenômeno muito forte e intenso, aproximando os acontecimentos e permitindo o compartilhamento de modos de vida. As culturas foram aproximadas ou mesmo fundidas, permitindo trocas recíprocas de hábitos, costumes e experiências, “criando novas regiões econômicas e culturais que por vezes transpõem as fronteiras dos Estados-nações (Giddens, 2001a, p. 42)”(Chaves, 2010, p.119-120).

Devemos desconfiar da recorrente associação do tropicalismo

à universalidade, pois ela encobre certos meandros que a conectam a uma única lógica possível. Maria Elisa Cevasco afirma que há uma colonização do termo “moderno” realizada “pelo sistema vigente [que] relega os esforços anticapitalistas à posição contrária de antigo, fora de moda, algo pronto para ir para a lata de lixo da história”.109 A questão do universal e da universalidade associada ao tropicalismo pelos dois políticos e muitos de seus críticos não escapa dessa colocação.

A associação entre as reações ao tropicalismo e as reações ao progresso é surpreendente quando vista a partir da visão acrítica que Gabeira atribui à tecnologia. Eis aqui uma das faces do mito do progresso. As suas considerações sobre a internet como um espaço livre e democrático verdadeiramente anarquista (“Eu sinto que a internet é um produto muito mais forte do anarquismo que do socialismo científico que nós

109 A afirmação se encontra no artigo, “Modernização à brasileira“, texto ainda inédito de M. E. Cevasco. 170 propugnávamos” (Gabeira, 2000, p. 85)) são hoje risíveis, dado o progressivo aumento do controle das informações e arquivos trocados na internet, que pode ser exemplificado por fatos como a criação do SOPA110 (Stop Online Piracy Act) e a pressão para que o grupo Anonymous seja incluso na categoria de grupo terrorista.111

É intrigante e ambíguo quando Genoino fala em um momento de reconstrução e também crise de futuro. Eis aqui uma dimensão do mito do progresso a que devemos nos deter. Note-se como a concepção que percorre o seu discurso de se exaltar o belo, o prazer e a felicidade na luta política revolucionária nos parece uma maneira de - nas palavras de Benjamin - desaprender tanto o

ódio quanto a vontade de sacrifício.112 Em sua obra Sobre o

110 Segundo o verbete da Wikipedia: “O Stop Online Piracy Act (em tradução livre, Lei de Combate à Pirataria Online), abreviado como SOPA, foi um projeto de lei da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, de autoria do representante Lamar Smith e de um grupo bipartidário com doze participantes. O projeto de lei amplia os meios legais para que detentores de direitos de autor possam combater o tráfego online de propriedade protegida e de artigos falsificados. No dia 20 de janeiro, Lamar Smith suspendeu o projeto. Segundo ele a suspensão é “até que haja um amplo acordo sobre uma solução.“ - o verbete está disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Stop_Online_Piracy_Act - acesso em 10/03/2013. 111 Em muitas matérias e blogues da internet, encontramos associações do Anonymous à qualidade de grupo terrorista. Inclusive se falou que o Anonymous fora declarado oficialmente como um grupo terrorista pelo FBI, como pode-se ver em: http://www.vanguardia.com.mx/anonymousesdeclaradocomogrupoterroristapo relfbi-1255683.html – acesso em 10/03/2013. Confirmando-se a notícia ou não, fica a suspeita como evidência de uma conhecida estratégica conservadora dos Estados Unidos pós-2001: associar movimentos sociais ao terrorismo. A estratégia, porém, não é exclusivamente americana. A criminalização dos movimentos sociais é crescente e tem se intensificado nos últimos anos em todo o mundo. 112 É na tese XII que Benjamin comenta que a ideia da última classe escravizada realizar a libertação em nome das gerações derrotadas sempre escandalizou a democracia. Comentando sobre a social-democracia o autor diz: “Nessa escola a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quanto a vontade de sacrifício. Pois ambos se nutrem da visão dos ancestrais escravizados, e não do ideal dos descendentes libertados.“ (Benjamin apud Löwy, 2005, p. 108). 171 conceito da História o tema da redenção das vítimas ocupa uma posição importantíssima, sendo retomado nas teses II, III, IV e

XII. Nesta última, o imperativo judaico Zachor113 percorre o texto. A luta política tem como mola propulsora a memória do passado e dos que morreram na batalha contra a opressão. Lembrar e rememorar as vítimas só tem sentido quando elas se tornam uma espécie de combustível para a luta realizada no presente.

Reparemos aqui que a ideia de construir um futuro e uma história

- como propõe Genoino - entra em conflito com essa colocação. É a social-democracia aquela que nos dizeres de Benjamin “teve comprazer em atribuir à classe trabalhadora o papel de redentora das gerações futuras” (apud Löwy, 2005, p. 108) que se faz presente neste depoimento. É a Rumspringa acadêmica apontada por

Žižek e representada pela pseudoatividade de uma “esquerda” conformada aos padrões da terceira via:

Era uma geração tão cheia de esperança que não queria a derrota e foi exatamente através daquela simbologia que não era uma saudade no sentido do passado, era uma saudade no sentido do presente e do futuro. Assim, meu querido professor, vale a pena uma saudade com cheiro e com amor ao presente e ao futuro (Genoino, 2000, p. 105).

Representativos de uma época na qual se afirmava uma nova sensibilidade, os dois depoimentos devem ser analisados juntamente com outros neste capítulo, pois se trata de uma tarefa de interpretação de um processo histórico acentuado no

Brasil atual.

113 Michael Löwy comenta sobre o Zachor: “Lembre-se de seus ancestrais que foram escravos no Egito, massacrados por Amalek, exilados na Babilônia, dominados por Tito, queimados vivos pelas Cruzadas e assassinados pelos pogroms”(Löwy, 2005, p. 110). 172

A associação do legado da tropicália à singularidade é apontada por Gabeira. Assistimos ao primado da singularidade e da individualidade sobre a coletividade. A reivindicação do legado do tropicalismo se dá através da sua assunção como referência para as lutas políticas atuais que, vale lembrar, são diferenciadas daquelas orientadas por uma dimensão negativa e questionadora da realidade. Elas se inserem na ideia de um novo momento, em que a própria concepção de política é questionada.

Ainda com respeito à ideia de trajetória como o percurso por onde caminha o legado do tropicalismo a partir de uma noção de retrospectiva associada a uma história presa ao calendário, é pertinente que nos confrontemos com um documento do final dos anos 1970: trata-se da retrospectiva114 feita pela tevê Globo em

1979 sobre a década que então chegava ao fim. Realizada no contexto de abertura política, uma época em que era preciso formar um novo consenso, é possível notar no vídeo uma mudança de tom. Assistir a essa retrospectiva é perceber na euforia do progresso, apesar da crise econômica que logo chegou, a reconstrução de um novo tempo. Por mais que ainda seja forte a ideia de que a crise econômica não afetará com muita força o

Brasil, podemos ver na redução do crescimento e nas orientações da política macroeconômica evidencias de contradições

114 Intitulada “A aventura do homem na década de 70“, a reportagem tornou-se um marco divisor na história das retrospectivas. O programa de duração de 195 min. foi exibido em 1º de janeiro de 1980. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273- 249745,00.html – acesso em 29/03/2013. O vídeo está também disponível no Youtube, dividido em 13 partes. O link para a primeira parte é: http://www.youtube.com/watch?v=_LKvZkdfp3A – acesso em 28/03/2013. 173 latentes.115 O Brasil de hoje que privatiza sua previdência, sua educação e saúde não é estranho ao que foi submetido por uma modernização autoritária nos anos 1970. Entre os dois opera o signo da continuidade. A retrospectiva da década veiculada pela rede Globo era uma ótima oportunidade para a promoção de um tempo que é mutável como a moda. O texto de apresentação da retrospectiva, narrado pela voz de Cid Moreira, assume o caráter de testamento de uma época, de como um discurso dominante interpretou seus sonhos:

Começamos a viver hoje os desafios de um novo tempo: 1980! Um ano terminado em zero com ar de começo e fim, um número redondo que encerra um ciclo da história de cada um de nos. 1980: como foi que chegamos até aqui? Como vivemos? Como morremos? Quando acertamos? Por que erramos? A história que começamos a recordar daqui a pouco tem muito a ver com você, com a nossa vida, é a história de todos nós, das nossas vitórias e de nossas derrotas, das nossas tristezas e das nossas alegrias. A televisão vai mostrar durante quatro dias um documento importante para a reflexão de todos nós. Vamos começar a reviver a grande aventura do homem nos

115 As evidências dessa contradição e uma análise da política macroeconômica do governo Dilma Rousseff, feita em 2011, são o tema de uma entrevista concedida a Reinaldo Gonçalves intitulada “Nacional- desenvolvimentismo às avessas e a fragilidade econômica“. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500453-nacional- desenvolvimentismo-as-avessas-e-a-fragilidade-economica-entrevista- especial-com-reinaldo-goncalves - acesso em 29/03/2013. Sobre a contribuição do pensamento de Chico de Oliveira para a compreensão do pensamento do Brasil atual, Reinaldo Gonçalves diz em outra entrevista: “O modelo liberal periférico no Brasil se caracteriza, na dimensão econômica, por: fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política desta trajetória observa-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições e sistema político corrupto e clientelista. É o país do desenvolvimento às avessas.“ Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/514122-o-capitalismo- brasileiroornitorrinco-gera-o-brasil-invertebrado-entrevista-especial- com-reinaldo-goncalves - acesso em 29/03/2013. 174

anos 70, a década de todas as incertezas, véspera e esperança de um mundo novo e melhor.116

O pronome “nós” utilizado por Cid Moreira na apresentação da retrospectiva é expressivo por procurar encerrar consigo a totalidade da nação, dos patrões e empregados, a funcionários liberais e donas de casa. É importante observar que a formação de um consenso, objetivada pela primeira pessoa do plural e pela retórica de um mundo novo, importava muito à época da abertura política e econômica do país. A atualização dessa retórica no

Brasil de 2013 é clara e por isso estamos fortemente ligados a essa retrospectiva. Foi naquela época que a expressão “patrulha ideológica” foi criada e popularizada. A dimensão ideológica passa a ser direcionada ao questionamento da ordem e no que ela tem de “estraga-prazeres” de um consenso que começa a se consolidar alimentando-se dessa retórica da renovação.

É expressiva a forma como a temática da abertura política é apresentada na retrospectiva. Quando os militares começam a perder a sua utilidade, é preciso que se crie uma nova sensibilidade para os tempos de democracia que parecem se anunciar. Em um determinado trecho do vídeo que tem a canção

“Acorda amor”117 de Chico Buarque como trilha sonora, são exibidas imagens do final da década de manifestações estudantis sendo reprimidas pela polícia. Em outra sequência mais adiante, a narração afirma que a juventude “viveu a metade da década de passo certo com a ordem, querendo a vanguarda, mas consumindo

116 Transcrição do áudio da retrospectiva exibida no final de 1979. O programa se encontra disponível no Youtube em: http://www.youtube.com/watch?v=_LKvZkdfp3A - acesso em 10/03/2013. 117 Composta pelo pseudônimo Julinho de Adelaide a música foi lançada no álbum Sinal Fechado em 1974. 175 apenas as tentações do mercado. Seguia a moda, revolução só na língua”. O discurso da mudança comportamental e o seu suposto caráter revolucionário - mencionados por críticos como Silviano

Santiago e Heloísa Buarque de Hollanda – é formado por imagens de jovens de classe média utilizando-se de gírias da época. A edição é dinâmica e imagens da moda que comentam o jeans -

“vestindo e despindo toda a geração, modelando um corpo unissex, ele e ela” – alternam-se com filmagens dos conflitos em Soweto na África do Sul. Em um momento da narração declara-se que sociólogos decretam a morte do movimento hippie e “o inimigo já não é tão claro, não há bandeiras políticas nem conflitos com os pais. Nem rebeldia. O importante são os amigos, a namorada, o som...”. Luís Carlos Maciel, autor do livro Geração em transe, memórias do tempo do tropicalismo (1996) – que muito contribui para a canonização da tropicália – aparece no vídeo comentando que as manifestações culturais não apresentam nos anos 1970 a mesma vitalidade e o grau de criatividade que apresentaram na década passada. A assunção desse novo tempo se faz com o enterro das questões em aberto, varrendo-se a noção de continuidade para debaixo do tapete da história, enquanto ocorria a partilha dos despojos de uma época.

Percebemos na retrospectiva os traços de uma conformação de uma pedagogia da hegemonia, na formação de uma nova subjetividade que procurava se desvincular dos tempos da ditadura, reatualizando a sua dominação e a consolidação de um novo consenso que pode ser evidenciado em uma entrevista da atriz estadunidense Jane Fonda. A edição do vídeo procurou dar

ênfase em seu discurso destacando uma parte de sua fala

176 sintomática dessa nova sensibilidade. Jane Fonda, apresentada como “a atriz que empunhou as bandeiras do inconformismo político e social”, faz a seguinte declaração:

Eu continuo uma lutadora, só que lutamos diferente agora, na época da guerra do Vietnã não tínhamos muitas opções, éramos forçados a tomar uma atitude de protesto porque o sistema era fechado. Agora, podemos trabalhar dentro do sistema para criar as mudanças necessárias (Jane Fonda; grifos nossos).

Durante a entrevista aparece destacado em caixa alta no vídeo a seguinte frase: “Podemos lutar dentro do sistema pelas mudanças necessárias”. Exibidas após as imagens que mostram manifestações estudantis no contexto de abertura política, a declaração feita pela carismática atriz é um claro recado aos telespectadores. Sobre a mudança desses novos tempos, podemos perceber que:

A nova sociedade, segundo a Terceira Via, abriga outras mudanças significativas, tais como a perda de sentido das ideologias e a redefinição da política. Assim, a divisão entre “socialistas” e “capitalistas” perderia força em favor de outras identidades políticas concebidas como mais importantes, tais como “autoritário” ou “libertário”, “moderno” ou “tradicionalista”. As escolhas políticas tornaram-se motivadas não pelas concepções de mundo, mas sim pelos critérios de eficiência, praticidade e inovação (Chaves, 2010, p. 106).

Como se estivesse corroborando essa colocação, a primeira- ministra de Portugal, Maria de Lourdes Pintasilgo, que esteve no cargo entre julho de 1979 e janeiro de 1980, é apresentada brevemente pelo narrador enquanto declara sorrindo para a câmera de televisão: “mudar um governo pelas ideologias, isso já está, já está completamente ultrapassado”.

177

Ao longo desses anos, esboçou-se um balanço do quadro cultural brasileiro que procurava negar a ideia de “vazio cultural” para os anos passados. Foi em tal contexto que Cacá

Diegues cunhou a expressão “patrulha ideológica” que segundo a

Wikipedia:

Designa uma organização informal de pessoas unidas por laços ideológicos ou religiosos que têm por objetivo impor seus ideais a outro grupo de pessoas, munindo-se de discursos, protestos e reivindicações. Essa atividade se caracteriza por uma vigilância constante do público alvo.118

É na suposta impessoalidade de uma definição da Wikipedia que nos interessa a exploração do termo. O artigo em questão depois de definir o conceito, mostra a origem da expressão, seu modus operandi e exemplos de patrulhamento. Em 1978, em uma entrevista à Folha de São Paulo intitulada “Cacá Diegues: por um cinema popular, sem ideologias”. O cineasta denunciou as

“patrulhas ideológicas” formadas por jornalistas ligados ao

Partido Comunista Brasileiro, que estava na clandestinidade na

época. Caetano Veloso também recorreu ao termo em suas declarações. O objetivo da patrulha seria denegrir o que não fora considerado alinhado ao cânone dos formadores de opinião.

Perigosa e frágil definição que seria usada para qualquer crítica de caráter político vinculada ao artista e sua obra em uma época na qual o clima de abertura lenta e gradual era marcado por uma velada ambiguidade e perseguições políticas.

118 O verbete desse termo na Wikipédia pode ser encontrado em http://pt.wikipedia.org/wiki/Patrulha_ideol%C3%B3gica – Acessado em 29/03/2013. 178

A polêmica em torno da expressão percorreu a intelectualidade brasileira de maneira tão marcante que, em

1980, o livro Patrulha ideológica foi editado pela Brasiliense, tendo Carlos Alberto M. Pereira e Heloísa Buarque de Hollanda como autores.

Experimentemos relacionar o que o conceito de patrulha ideológica representa com uma curiosa organização criada nos anos 2000 chamada Escola sem partido. A apresentação da organização em seu site a define como uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o que eles consideram uma

“contaminação político-ideológica” das escolas brasileiras em todos os seus níveis de ensino. O site propõe a reunião de testemunho dos estudantes que foram vítimas de “falsos educadores”. Assinado por Miguel Agib, o texto tem algumas passagens que merecem ser citadas:

A pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo. [...] Como membros da comunidade escolar – pais, alunos, educadores, contribuintes e consumidores de serviços educacionais –, não podemos aceitar esta situação. [...] Entretanto, nossas tentativas de combatê-la por meios convencionais sempre esbarraram na dificuldade de provar os fatos e na incontornável recusa de nossos educadores e empresários do ensino em admitir a existência do problema (Nagib, Disponível em: http://www.escolasempartido.org/quem-somos/; Acesso em 21/03/2013. Grifos meus).

A leitura das expressões grifadas nos dá uma ideia do lugar de classe em que essa organização se situa. Analisando o site,

179 podemos ver seções com os seguintes títulos: “Defenda seu filho”, “Depoimentos”, “Doutrinação pelo mundo”, “Educação moral”, “Movimento estudantil” e “Síndrome de Estocolmo”. As

últimas duas nos chamam a atenção pelas imagens nelas contidas e por suas respectivas descrições. Em “Movimento estudantil”, o texto de apresentação se encontra ao lado da imagem de um boi mecânico identificado como “brinquedinho”:

O movimento estudantil é aliado histórico dos promotores da doutrinação política e ideológica nas escolas. Sua “rebeldia juvenil” está a serviço dos partidos de esquerda, que dos bastidores o controlam há décadas, como o operador do brinquedinho ao lado. Nesta seção você vai conhecer a verdadeira natureza dessa impostura chamada “movimento estudantil”.119

O curioso título da outra seção, “Síndrome de Estocolmo”, é ilustrado pela imagem do filme A bela e a Fera na cena em que os protagonistas bailam no palácio:

Vítima de um verdadeiro “sequestro intelectual”, o estudante doutrinado quase sempre desenvolve, em relação ao professor/doutrinador, uma intensa ligação afetiva. Como já se disse a propósito da Síndrome de Estocolmo, dependendo do grau de sua identificação com o sequestrador, a vítima pode negar que o sequestrador esteja errado, admitindo que os possíveis libertadores e sua insistência em punir o sequestrador são, na verdade, os responsáveis por sua situação. De modo análogo, muitos estudantes não só se recusam a admitir que estão sendo manipulados por seus professores, como saem furiosos em sua defesa, quando alguém lhes demonstra o que está acontecendo. Divulgaremos neste espaço episódios que ilustram esse curioso fenômeno.120

119 Disponível em: http://www.escolasempartido.org/movimento-estudantil - acesso em 12/03/2013. 120 Disponível em: http://www.escolasempartido.org/sindrome-de- estocolmo - acesso em 12/03/2013. 180

À medida que lemos outros artigos da organização entendemos que estamos lidando aqui com algo mais sério e que o aspecto cômico resultante da leitura dos trechos não pode encobrir o que

é representado por essas linhas. Cabe aqui reconhecermos o autoritarismo latente dos que detém o poder: a classe dominante brasileira.121

Aproximar o conceito de patrulha ideológica à organização

Escola sem partido surgida em 2004 é útil, pois ambos se iluminam e se atualizam, como se um fosse uma espécie de contraface do outro, sendo o segundo o lado obsceno do primeiro.

A atualização de nossa abertura lenta e democrática tem que ser cifrada no nosso agora. O autoritarismo presente na sociedade brasileira é o que está por trás das duas épocas.

O que significava expor sua opinião política em um contexto de abertura, no qual ainda havia velada perseguição e muitos crimes de estado seguiram sendo cometidos?

O que se esconde no desprezo da liberdade de opinião?

Afirmar que alguém pertence ao Partido Comunista em uma

época em que o partido se encontrava na ilegalidade e os assassinatos e perseguições não haviam cessado tem sérias consequências.

Em que medida o conceito de patrulha ideológica se relacionaria com as questões suscitadas pela tropicália?

Se o termo tivesse existido uma década antes como seria utilizado?

121 Sobre as características e mudanças dessa classe dominante, o debate “A ascensão conservadora em São Paulo“ realizado na USP em agosto de 2012 com Marilena Chauí, André Singer e Vladimir Safatle é importante não só para pensarmos o contexto de São Paulo como também do restante do Brasil. O debate pode ser encontrado no Youtube em: http://www.youtube.com/watch?v=2DsAn_98zuY - acesso em 21/02/2013. 181

Poderíamos conjecturar se o conceito seria usado pelos tropicalistas ao rebater muitas das críticas recebidas. É preciso que aproximemos a expressão e sua manifestação artística já que ambos estão inseridos no contexto fortemente marcado pelo debate entre diferentes ideias e interpretações do Brasil.

O tempo pelo qual atravessa o legado da tropicália assiste a mudanças ideológicas importantes. Mais que frutos de uma atitude isolada essas mudanças configuram uma maneira de ver o passado e encarar nossas lutas políticas no presente. A assunção da “intervenção possível”, citada por Heloísa Buarque de

Hollanda122 como uma característica que se acentua em sua categoria de “pós-Tropicalismo”, é um exemplo dessa mudança.

Na proposta de atualização sustentada neste terceiro capítulo, talvez seja necessário submeter nomes como os de

Heloísa Buarque de Hollanda e Cacá Diegues à crítica, aproveitando-se do termo “patrulha ideológica” na tentativa de invalidá-lo ou de ao mínimo questioná-lo e relativizá-lo.

Isso equivaleria a assumir a crítica como, ela própria, uma espécie de patrulha ideológica? Não é a crítica em seu aspecto negativo de construção/desconstrução aquela que nos mostra o dissenso? A inoportuna? A radical? A que desafina o coro dos contentes? Quando a liberdade de opinião e questionamento é cada

122 Trata-se do seguinte trecho: “O empenho da mudança refere-se inicialmente à transformação do artista dentro de suas relações mais gerais com o sistema. Importa a viagem, o percurso, a campanha mais que o resultado. A preocupação é com o aqui e agora e o aqui e agora do pós-tropicalismo é ambíguo, múltiplo, contraditório: a intervenção possível exige a participação, a ‘batalha’ nos próprios circuitos do sistema, sem abrir mão de uma linguagem que se opõe violentamente à ordem desse mesmo sistema” (Hollanda, 2004, p. 86; os últimos dois grifos são meus). 182 dia mais perseguida123 é preciso que o dissenso seja preservado.

Pois que alcemos então muitos dos críticos, intelectuais e artistas à patrulha da ideologia. Para isso, é preciso desnaturalizá-los, inseri-los na história, no nosso tempo presente e acompanhá-los nos percursos de seu legado através da liberdade de citá-los e relacioná-los, questioná-los e dessacralizá-los.

As mudanças ideológicas que conformam o tempo pelo qual atravessa o legado da tropicália podem ser exemplificadas quando comparamos a produção audiovisual Cinco vezes favela, realizada por jovens diretores do Centro Popular de Cultura da União

Nacional dos Estudantes, em 1962,124 com a produção recente, 5x

Favela, Agora por nós mesmos, realizada em 2010 por moradores de comunidade. Considerados como marcos do Cinema Novo, os curtas de 1962 são representativos dos anos que antecederam o Golpe de

1964 e das relações existentes entre política e arte, tendo como intenção promover a conscientização dos problemas sociais e das relações de poder que estão por trás da miséria social. No contexto de euforia econômica e consolidação neoliberal da primeira década do século XXI, Cacá Diegues, um dos diretores da

123 O fechamento do site Viomundo após Luiz Carlos Azenha ter sido condenado a pagar 30 mil reais por ter movido uma “campanha difamatória” ao diretor da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel, é uma evidência da progressiva perseguição à imprensa alternativa e ao dissenso. A matéria de título “Globo consegue o que a ditadura não conseguiu: calar imprensa alternativa“ publicada em 29 de março de 2013 pode ser acessada em: http://www.viomundo.com.br/denuncias/globo- consegue-o-que-a-ditadura-nao-conseguiu-extincao-da-imprensa- alternativa.html - acesso em 29/03/2013. 124 Essa comparação é realizada numa interessante dissertação de mestrado intitulada Audiovisual, memória e política: os filmes Cinco vezes favela (1962) e 5x Favela, Agora por nós mesmos (2010), defendida por Thiago de Faria e Silva, do Departamento de História da Universidade de São Paulo, em 2011. A dissertação pode ser encontrada no endereço: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde- 13092012-093106/es.php - Acesso em 23/03/2013. 183 filmagem dos anos 1960, produziu em conjunto com Renata de

Almeida Magalhães, através da produtora Luz Mágica, o longa- metragem 5x Favela, Agora por nós mesmos, considerado “o primeiro longa-metragem brasileiro totalmente concebido, escrito e realizado por jovens moradores de favelas.”125 Anos depois, em

2012, o filme 5x Pacificação foi realizado com os mesmos diretores e produtores. Podemos perguntar: Que continuidades e descontinuidades percorrem os três filmes?

A exploração e o cotidiano da população pobre em uma sociedade de classes não são uma página virada de nossa história. Há algumas mudanças entre a produção de 1962 e as de

2010 e 2012 que valem como um registro de época. O deslocamento do eixo coletivo para o individual que, segundo Heloísa Buarque de Hollanda e Fernando Gabeira, dá a tônica dos anos subsequentes à década de 1960 é claro quando as três produções são comparadas. É notável como o vínculo mais simples e elementar entre criminalidade, violência, miséria e a situação sociopolítica do país não é o mesmo entre as produções das diferentes décadas. Essa relação, nos curtas do século XXI,

125 Esse trecho foi retirado da apresentação o filme no site: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-180470/curiosidades/. Comentando uma entrevista feita a um dos diretores do filme de 2010, Cadu Barcellos, Thiago de Faria e Silva (2011) aponta algumas contradições dignas de nota. A sua análise da tensão do título “Agora por nós mesmos“ que substituiu o inicial “Agora por eles mesmos“ por sugestão da produtora Luz Mágica nos revela que a 'incômoda distância entre a elite e o povo se repete.' Sobre essa questão o autor diz: “Com o título alterado, deu-se a falsa impressão de que as instituições haviam 'tomado de assalto' o mercado cinematográfico, realizando um longa 'por eles mesmos'. Embora seja uma parceria, na qual as entidades atuaram ativamente e fizeram a diferença, não se pode negar que a iniciativa e o controle final sobre o projeto sempre foi, desde o início, da produtora Luz Mágica e seus proprietários Cacá Diegues e Renata Magalhães, instalando assim uma tensão entre produção e direção que não ocorreu nos filmes anteriores da produtora, pois a produção e a direção de Diegues se confundiam em sua figura de autor, produtor e diretor dos seus filmes.“ (Silva, 2011, p.148) 184 assume quase que uma feição de tabu. Neles, observamos a importância da trajetória individual e a predominância de roteiros com poucos protagonistas, como no episódio “Fonte de renda”, que conta a história de um estudante que após muito esforço e mérito consegue passar pelo funil do vestibular e entrar para a universidade pública. A relação entre miséria e criminalidade é substituída por relações que põem em relevo escolhas morais dos personagens. A questão urgente envolvendo a habitação e a especulação às vésperas dos megaeventos de 2014 e

2016 não são problematizadas nos curtas de 2010. A atualização dessa questão pode ser encontrada no curta Zé da Cachorra (1962) de Miguel Borges. A dimensão de poder econômico por trás da miséria vivida na favela é transmitida no curta pela figura do grileiro e pela especulação imobiliária que ameaça de despejo os moradores que se veem incapazes de pagar o aluguel. Torna-se irresistível não pensar em uma afinidade silenciosa com a presente situação em que áreas como o morro Dona Marta e o

Complexo de Alemão126 assistem à saída de centenas de família por não terem mais condições de arcarem com a alta dos aluguéis ou com as ofertas de compras de imóvel no contexto atual de pacificação. São inegáveis as mudanças pelas quais as questões relativas à favelização passaram nos últimos cinquenta anos. O próprio termo favela já é substituído pelo de comunidade. Tais mudanças, porém, não devem ser usadas como explicações para o fato da produção recente não tratar das questões de classe e da

126 "Preços no Alemão dobram e 417 famílias têm prazo de 15 dias para deixar imóveis" é o título da manchete publicada no site do jornal O Dia: http://odia.ig.com.br/portal/rio/pre%C3%A7os-no-alem%C3%A3o- dobram-e-417-fam%C3%ADlias-t%C3%AAm-prazo-de-15-dias-para-deixar- im%C3%B3veis-1.541575 - Acesso em 23/03/2013. 185 conexão entre a miséria e a realidade política e social.127 Se tal conexão chega a se esboçar, ela é deveras sutil ou inofensiva. Se nos filmes dos anos 1960, os políticos que se aproveitam da realidade da favela figuram como personagens, na produção atual sua presença se torna mais difusa, chegando ao plano da inexistência. Filmes como Cidade de Deus, também da onipresente Globo Filmes - cujo slogan alardeia “O cinema que fala a sua língua” - e séries como Cidade dos homens são influências para os curtas e permitem que pensemos em uma estética compartilhada por essas produções geralmente denominadas Favela Movie.128

Partindo do nexo ideológico da “nova forma de funcionamento do velho sistema” (Cevasco, em texto inédito), Francisco

Alambert ao explorar as apropriações do legado tropicalista no

127 Uma contundente crítica dessa produção é feita por Daniel Fagundes na Revista Vídeo Popular. Essa crítica que representa um necessário dissenso é reproduzida por Thiago de Faria e Silva (2011) em sua dissertação: "5x favela, agora por nós mesmos veio comprovar as expectativas mais pessimistas trazendo uma mistura de humor, problemática social e julgamentos de valor. Tudo mostrado de forma tosca, rasa... Pra exemplificar digo que me senti vendo um episódio da série da Globo Cidade dos Homens, com pitadas de Cidade de Deus e Tropa de Elite. Não é um filme ruim, é um filme muito ruim, apesar de elucidador. Já que nele se revelam nossas velhas feridas aparentemente incicatrizáveis... Perdoem-me os camaradas aí das quebradas do Rio que fizeram parte desse projeto, mas eu entendo "por nós mesmos" uma outra coisa. Tipo reformular os modelos de produção, repensar os de distribuição e mais ainda com quem se faz parceria, quem assina sua obra, quem fica com a grana alta ganha dos rendimentos do filme... E isso não é o que entendo por trabalho qualificado construído pelo povo morador de favelas no Brasil. E, infelizmente, sei que é essa imagem que vai pra fora como produto de exportação da nossa realidade. Aqui mesmo no país eu já imagino que fará muito sucesso nos cinemas e demais espaços de exibição, pois ainda somos muito dependentes dessa representatividade forçada essa cosmética da fome. Mas eu tenho outros propósitos com minha produção e não cheguei a essa ponto de apelar para o discurso corriqueiro em prol de grana e status." (Fagundes, apud SILVA, p.188, 2011) 128 Favela Movie é um termo utilizado por alguns jornalistas e críticos para os filmes que têm a favela como cenário. O nicho de mercado de grande êxito se consolidou a partir de filmes como Cidade de Deus. Há um verbete para a expressão na wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/Favela_movie - Acesso em 25/03/2013. 186 contexto de modernização exclusiva nos dá uma interessante pista para pensarmos a comparação dessas produções audiovisuais inscritas em diferentes décadas e separadas por quase meio século:

Com a globalização e a consolidação do “pensamento único”, uma nova onda de “cosmopolitismo” de fachada surgiu nos anos 1990 para dinamitar, mais uma vez, o novo espírito moderno brasileiro. Aderindo ao regime globalitário que jogou o Estado na era da “privatização” e “flexibilização” da barbárie, a “elite” política, intelectual e financeira bem-pensante garantiu sua hegemonia e repôs, uma vez mais, a modernização exclusiva para si. Do outro lado, os pobres também puderam “avançar” em direção à mendicância, à “terceirização” ou ao assalto à mão armada. E dentro das prisões de segurança cada vez mais “máxima” puderam racionalizar sua ação para dentro do mundo que os excluiu. Do CPC chegamos ao PCC (Alambert, 2012, p. 148).

A euforia do progresso e a conformação da uma nova pedagogia da hegemonia podem ser vistas num trágico exemplo de mercantilização dos bens e direitos públicos e do avanço de sua lógica empresarial. Trata-se de Banco Imobiliário – Cidade

Olímpica, uma versão do clássico jogo de tabuleiro Banco

Imobiliário. A prefeitura do Rio de Janeiro concedeu à empresa

Estrela a liberação da marca Cidade Olímpica e encomendou 20 mil jogos para serem usados nas escolas da Rede Municipal.129 Na caixa do brinquedo lê-se o texto: “O Rio se reinventa, os investimentos se multiplicam, faça os lances certos e seja um vencedor nos negócios”. A Comlurb, a Clínica da Família, o

129 O valor pago pela prefeitura à empresa Estrela referente à compra dos jogos foi de R$ 1.050.748,00. O Ministério Público do Rio de Janeiro abriu ao final de fevereiro um inquérito para apurar o óbvio. Disponível em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/obras-de-paes-viram- pe%C3%A7as-de-banco-imobili%C3%A1rio-distribu%C3%ADdo-em-escolas- 1.551427 – acesso em 20/02/2013. 187

Centro de Operações, BRT'S (corredores de ônibus) e a RioFilme são “empresas que podem proporcionar muitos lucros a seu proprietário”. O secretário de cultura da prefeitura do Rio de

Janeiro e presidente da Rio Filme Sérgio Sá Leitão declarou em seu Twitter sobre o jogo: “Quem teve a ideia de fazer esse Banco

Imobiliário Cidade Olímpica é um gênio. Parabéns! E a Estrela caprichou na execução! Presente do ano!”. Em outra declaração completa “E o melhor... Tem a RioFilme! Sensacional!”.130 A lógica empresarial é recebida aqui de maneira acrítica, sendo celebrada e naturalizada, e atestando como no contexto atual a separação entre os interesses privados e públicos é cada vez mais tênue e possui implicações políticas sérias.

Partindo dessa lógica, como lidar com a crueza da contradição nas produções recentes 5x Favela - Agora por nós mesmos e 5x Pacificação, que contam com o apoio da Globo Filmes,

RioFilme e da Prefeitura do Rio e do Governo do Estado do Rio de

Janeiro? O filme de 2010 recebeu o apoio e patrocínio de empresas como a Globo Filmes, LAMSA-Linha Amarela, Light e as empresas MMX e a OGX do pertencente à EBX, propriedade do grupo empresarial de Eike Batista, conhecido empresário que mantém

130 Os tweets foram publicados no dia 27 de dezembro de 2012. O secretário também publicou em seu Instagram uma foto da capa do jogo. Ambos podem ser vistos respectivamente em: https://twitter.com/sergiosaleitao/status/284293861835169792 e http://instagram.com/p/Tvd6PynXGB/ - acessos em 11/03/2013. 188 boas relações com o governo estadual e municipal131. Nada mais diferente que o contexto de produção de Cinco vezes favela

(1962), realizado por cineastas ligados ao Centro Popular de

Cultura. A produção da UNE costuma ser criticada como uma arte panfletária realizada por jovens de classe média. O tom de valorização presente no subtítulo da película datada de 2010,

“Agora por nós mesmos”, salienta que os realizadores agora não são mais os jovens de classe média: a palavra estaria com os moradores das favelas. Há, contudo, que se desconfiar da autonomia dessa voz, quando a palavra é veiculada por meio de expedientes que afinam o tom com o atual coro dos contentes, como a produtora Luz Mágica, a Globo Filmes e os apoios e patrocínios de empresas como as de Eike Batista. Exigir desses filmes um questionamento sobre as relações entre as grandes empresas, o Estado e o processo de especulação imobiliária, a gentrificação e a criminalização da pobreza que estamos vivendo

é diferente de afirmar que essas contradições são expostas nessas produções. Reside aí um exemplo importante e representativo da declaração de Heloísa Buarque de Hollanda sobre o que seria a “transformação do artista dentro de suas relações mais gerais com o sistema” em que a intervenção possível exigiria que a luta fosse “nos próprios circuitos”.

131 Marco Pestana comenta a relação entre boa parte da burguesia e as UPP's da seguinte forma: "Essa relação é hoje melhor exemplificada pelas empresas do grupo EBX, de Eike Batista, que programou para o período 2011-2014 aportes anuais de R$ 20 milhões para as UPP’s, tendo recebido do governo estadual, em troca, tanto isenções fiscais no valor de R$ 75 milhões em 2009 e 2010, quanto o privilégio de dirigentes seus se reunirem com autoridades para traçar metas de utilização do Maracanã, antes de ser lançado o edital da licitação de privatização do estádio." Retirado do blogue Capitalismo em desencanto disponível em: http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/ - Acesso em 09/04/2013. 189

Trata-se da entrada do artista na complicada e ideológica

“esfera do possível”. A declaração de Jane Fonda na

Retrospectiva da Globo, em 1980 (mesma época em que Heloísa escrevia seu livro) cabe como uma alegoria da formação de um novo consenso de um país que saía da ditadura. É a essa imagem que o legado do tropicalismo é atrelado.

O aspecto da intervenção dentro do possível referido na análise deste capítulo e identificado ao tropicalismo é o que faz com que este se torne um prato cheio para uma apropriação que veja nele a lucidez, uma modernidade que poderíamos identificar a uma lógica cultural de nossos tempos e que necessita de uma postura revolucionária em que o tempero de rebeldia e irreverência disfarce o viés de continuidade e da desigualdade presente. Francisco Alambert diz que o tropicalismo se consolidou “como uma espécie eficiente e reiterada de ‘razão’ dualista para se definir a cultura brasileira e orientar sua produção (tanto estética quanto politicamente)” (2012, p. 139).

Podemos argumentar que o legado do tropicalismo se tornou importantíssimo para o cultivo de um passado radical em que a mistura entre rebeldia, cultura e política estaria na medida certa para o deleite das gerações atuais.

190

O filme 5x Pacificação,132 dos mesmos realizadores da produção de 2010, estreou no final do ano de 2012 com a proposta de mostrar a visão dos moradores da favela sobre a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora. O documentário é pontilhado por depoimentos de figuras conhecidas, como do secretário de segurança José Mariano Beltrame e do próprio governador Sérgio

Cabral. Com o apoio da RioFilmes, da prefeitura do Rio de

Janeiro e do Governo do Estado do Rio de Janeiro o filme contou com os mesmos produtores da obra de 2010: Cacá Diegues e Renata

Barcelos. O logo da prefeitura do Rio é observado muitas vezes entre os depoimentos dos moradores perto de grandes tapumes de obras. Dentre os impactos causados pela implantação da Unidade de Polícia Pacificadora, a valorização dos imóveis, a especulação e o encarecimento da cidade é tratada de forma acrítica e eufórica. Um morador de um prédio perto de uma favela recentemente pacificada comemora a valorização de seu imóvel com um sorriso. Segundos depois o vídeo corta para a paisagem de um dia de sol, céu azul, praia e som de samba. E a discussão sobre valorização se encerra aí. Nas cartas de sorte e revés presentes no jogo Banco imobiliário cidade olímpica há uma em que o jogador pode receber $75 mil referentes à valorização de seu imóvel como consequência da pacificação de uma comunidade

132 É preciso contrastar o clima de euforia em relação à UPP, que é também presente no documentário com os diversos casos de conflitos entre os moradores e os policiais da UPP. A forte tendência à militarização da sociedade e a destruição dos serviços públicos contribuem para um clima de aberto conflito entre os policiais e a população como o de Soweto no final dos anos 1970 na África. Dentre os conflitos, o mais recente em que um jovem foi eletrocutado por PMs e acabou morrendo é representativo. No Youtube, o vídeo do jornal A Nova Democracia, “Manguinhos: Jovem é eletrocutado por PMs e população se levanta contra UPP“, pode ser encontrado no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=6QJcXjOVtas - acesso em 29/03/2013. 191 próxima a ele.133 Seja através de um jogo, de uma propaganda ou de um filme, o componente educativo presente no processo de criação de consenso não pode ser ignorado. Como aponta Roberto

Leher:

A adesão popular ao projeto em curso não significa que a coerção tenha sido abandonada em favor da produção do consentimento, mas que a coerção passa a ter um forte componente educativo e que o consenso não pode abrir mão de dimensões coercitivas. A chamada política de pacificação nas favelas do Rio de Janeiro é ilustrativa. O Estado promove a ocupação por meio de forte aparato policial, não hesitando em promover muitas mortes “educativas”, e alardeia que agora os moradores estão livres do jugo dos traficantes e que finalmente o Estado poderá adentrar o território. Mas o Estado não é o ator principal da governança da pacificação. Uma miríade de ONGs e programas de parceria entre o governo e as empresas é espalhado pelo território dito pacificado, inclusive assumindo as instituições educacionais formais do Estado (Leher, p. 12 In: Neves, 2010).

A transformação ideológica importante entre essas duas

épocas não é uma evolução da sociedade e tampouco suas ideias. A noção de que haja países mais evoluídos e civilizados que os outros é bastante conhecida. O questionamento dessa posição já era conhecida pela tropicália. Frente a uma celebração ingênua ou passiva do novo, é preciso trazer a continuidade através da ideia de percurso e legado. O “nunca antes na história desse país” de Luís Inácio Lula da Silva pretende inaugurar um novo paradigma. O que significaria em tal contexto pensar o legado da tropicália com a chegada de Gilberto Gil ao Ministério da

Cultura? Francisco Alambert, em “A realidade tropical” (2012), afirma que o tropicalismo e sua razão se tornaram a figura

133 Trata-se da carta Sorte, número 32: “Seu imóvel foi valorizado após a pacificação da comunidade vizinha, RECEBA $ 75.000“ A foto pode ser encontrada no endereço: http://rioonwatch.org.br/?p=5120 - acessado em 10/03/2013. 192 dominante na cultura brasileira, chegando a se confundir com ela e tornando-se hegemônica:

O algo desse processo de conquista da hegemonia aconteceu em 2003, exatamente quando o PT, que nunca foi o Partido dos Tropicalistas (e sim, na sua origem, o partido de Mário Pedrosa, Antônio Candido ou Sérgio Buarque de Hollanda, os intelectuais de esquerda que entediavam a nova vanguarda), chegou ao poder. Neste mesmo ano, Caetano Veloso cantou no Oscar. E Gilberto Gil virou ministro da Cultura Brasileira. A compoteira da “Geleia Geral brasileira/ que o Jornal do Brasil anuncia” estava fechada. (Alambert, 2012, p. 143)

Hermano Vianna, por sua vez, prefere insistir no lugar comum de que a complexidade ambígua e confusa da tropicália é que faz com que ela “continue a ocupar um lugar central e fascinante no discurso sobre a - e na prática da - cultura brasileira.” A frase dita por Gilberto Gil antes de se tornar

Ministro da Cultura é comentada pelo sociólogo:

É melhor ouvir bem o que Gil disse nos jornais: o povo sabe que está indo para o governo um tropicalista - em outras palavras (entre muitos outros significados): nunca vou ser um militante de esquerda bem comportado; nunca vou ser um nativo facilmente manipulável por tendências estético- políticas da moda; nunca vou me adequar a uma cartilha (Vianna In: Basualdo, 2007, p. 134).

Ao menos a ambiguidade associada ao tropicalismo por

Hermano Vianna destoa das certezas de Gabeira e Genoino. Há, no entanto, uma importante similaridade entre os três: é desconcertante a associação que é feita de um militante de esquerda bem comportado - o que seria? - com a de um nativo que

é manipulado facilmente, caracterizando o primeiro como alguém que se adequa a uma cartilha. O fato de isso ser relacionado à

193 fala de Gilberto Gil, que reivindicava sua identidade tropicalista prestes a entrar na condição de ministro, remonta a uma continuidade contida no legado do tropicalismo que se tornou vitorioso. A continuidade representada pela mudança é a condição para a formação de um consenso político que agrega pessoas de diferentes áreas e que está presente tanto em nível local quanto nacional: de grandes empresários da área cultural a populares cantores evangélicos; de consagrados artistas do samba a conhecidos formadores de opinião e críticos literários; poetas, políticos, dançarinos e cineastas; do presidente da Riofilme a célebres cantores da música popular brasileira. O consenso pode ser exemplificado por um importante documento do início do século XXI: o manifesto134 “Por um Rio mais justo, humano e feliz para todos” (Anexo C) assinado por profissionais da área da cultura e intelectuais em apoio à reeleição do prefeito Eduardo

Paes - anexado a essa dissertação. O documento é lançado há exatas duas semanas antes do primeiro turno em um contexto de disputa eleitoral e próximo dos megaeventos como 2014 e 2016.

Após a vitória de Eduardo Paes, o manifesto foi retirado da internet. A página onde se encontrava o manifesto ainda existe até a presente data135, porém o texto e o nome das pessoas que o assinaram foram removidos, restando apenas seu título como único

134 É preciso contrastar o tom otimista e eufórico do manifesto com o documentário Distopia::021 – Um projeto de cidade global. No horizonte dos megaeventos que se aproximam a revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro pode ser vista como uma metáfora que exemplifica o que está acontecendo em muitas capitais brasileiras no contexto de mito do progresso. O documentário foi disponibilizado no youtube em maio de 2012: http://www.youtube.com/watch?v=87VXFGWGv0w – Acesso em 30/03/2013 135 O manifesto é encontrado no seguinte endereço: http://www.eduardopaes15.com.br/manifesto/ - Acesso em 29/03/2013. 194 conteúdo do endereço. Por qual razão? O que representa tal desaparecimento repentino? Haverá causado ele um mal estar em uma época alérgica ao dissenso? Ler o texto de apresentação é deparar-se com o mito que dá título ao presente capítulo. As palavras de ordem são o avanço e a mudança. No novo momento a

“saúde e a educação melhoraram substancialmente”. Partindo do fato de que “o astral do Rio mudou radicalmente”, o texto declara que a população finalmente recuperou o orgulho de viver em um Rio que voltou a ocupar as manchetes, agora devido às suas

“virtudes”. Talita Tibola (2012) comentando o manifesto e o nome da coligação “Somos um Rio” lança um questionamento ao qual fazemos coro: “Me pergunto, e acredito que muitos junto de mim, quantos Rios precisam ser silenciados e invisibilizados não ditos, não ouvidos, para sustentar UM RIO?”.136

Aqueles que se utilizam do termo “patrulha ideológica” referem-se ao caráter de caça às bruxas das opiniões contrárias, condenando assim a possibilidade de dissenso. É preciso refutar essa visão, pois não devemos nos isentar do imperativo crítico de traçar linhas entre os nomes presentes no manifesto encontrando possíveis afinidades, conflitos e contradições, pensando a nossa época com suas derrotas e principalmente com suas vitórias. Partindo do fato de que esse foi um manifesto que se pretendeu público - ao menos até os dias da votação - devemos tornar públicos também nossos questionamentos sobre as

136 Esse questionamento se encontra na versão escrita da fala de Talita Tibola “O novo astral do Rio: uma estética policial“ no colóquio “Desincubando a criatividade da metrópole“, do ciclo co-organizado pela Universidade Nômade “Brasil menor, Brasil vivo“, à casa de Rui Barbosa, em 4 de outubro de 2012. O artigo pode ser encontrado no site da Universidade Nômade, disponível em: http://uninomade.net/tenda/o- novo-astral-do-rio-uma-estetica-policial/ – acesso em 30/03/2013. 195 assinaturas e estabelecermos relações entre os nomes e o momento político atual. Os intelectuais, é sabido, não operam em uma esfera desligada da sociedade. Inspirados no preceito benjaminiano de que a disposição de citações nos traz um significado novo, podemos entender que os nomes citados àquela maneira configuram a forma de um desenho que devemos interpretar em nossa qualidade de críticos. A simples evidência das contradições e das disputas ideológicas de nossa época torna-se cada vez mais uma tarefa considerada radical ou sectária. A defesa da autonomia da arte não inclui que joguemos no lixo a discussão da responsabilidade e do papel do intelectual e do artista na sociedade. As Organizações Sociais (OS)137 na saúde, o processo de desmonte da educação pública, as violações dos direitos humanos nas internações compulsórias dos usuários de crack e nas remoções ilegais que pululam pela cidade, assim como a dinâmica de privatização do espaço público, do direito de ir e vir e da gentrificação não podem passar como problemas silenciosos e invisíveis. Os problemas podem ser sentidos em diversas capitais brasileiras. Na comemoração dos 448 anos da cidade do Rio de Janeiro, em março de 2013, no Largo da Carioca,

137 O Coletivo de Estudos de Política Educacional enquadra o surgimento das Organizações Sociais no Brasil no contexto de conformação de uma direita para o social sob direção estatal: “Criadas a partir de estímulos fiscais (isenções) para partilhar, por meio de parcerias, responsabilidades com a aparelhagem estatal nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social. Essa nova arquitetura da sociedade civil conformou ‘um associativismo prestador de serviços sociais de ‘interesse público’, em oposição ao associativismo majoritariamente reivindicativo dos anos 1980’ (Neves, 2005, p.95)” (Neves, 2010, p.88). 196

Fantasmas de Euforia seguravam placas com a seguinte mensagem:

“Em tempos de euforia problemas reais viram fantasmas." 138.

Os intelectuais e críticos de nossa cultura assumem posições quer queiram quer não. Afirmar que essas posições são neutras e isentas é antes de tudo um erro crítico preocupante.

Se há algo que a análise do legado do tropicalismo nos proporciona, ele está cifrado na disposição de todos aqueles nomes, de cineastas, a atores e empresários da cultura; de cantores populares a críticos literários.

O campo da cultura tanto hoje quanto naquela época está permeado por uma dimensão em que artistas, intelectuais e o

Estado brasileiro se relacionam com seus apoios ou resistências, com as verbas e investimentos que se fazem presentes na produção artística. Os comentários do final dos anos 1970 soavam também como estraga-prazeres, pois afetavam muita gente que a sua maneira começava a se beneficiar do contexto de investimento do governo Geisel na área cultural. A polêmica entre as chamadas patrulha ideológica e patrulha odara139 deve partir do referido contexto.

A campanha para prefeito em 2012 na cidade do Rio de

Janeiro suscitou muitas discussões. As redes sociais repercutiram o debate de oposição à candidatura de Paes. Os

138 As imagens dos fantasmas da euforia podem ser vistas na página do Facebook do artista Batman POBRE. Link para as fotos: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=275530265911800&set=a.27542408 2589085.1073741825.266393826825444&type=1&theater - acesso em 30/03/2013. O movimento “Eu amo o Rio, mas não sou correspondido, um manifesto contra a euforia” foi fundado pela professora universitária de design Cláudia Bolshaw. “Menos, menos” - O Globo, 12 de março de 2013 139 O termo “patrulha odara“ foi cunhado por em resposta ao termo “patrulha ideológica“. O título remete à canção de Caetano que repetia os seguintes versos: “Deixa eu dançar/ Pro meu corpo ficar odara“. Odara significa bonito, lindo, no idioma yorubá. 197 movimentos sociais de esquerda que se opunham ao consenso formado entre o município, o estado e governo federal concentraram boa parte de seus votos em Marcelo Freixo, do PSOL e em menor medida em Ciro Garcia, do PSTU. O argumento dos que estavam ligados à base governista sustentado por muitos militantes do Partido dos Trabalhadores140 era o de que Marcelo

Freixo representava um elitismo141 da zona sul e que suas políticas e demandas impediriam uma real harmonia entre os governos e atrapalharia o momento tão especial e eufórico que o

Rio de Janeiro vivia.

Uma advertência para identificarmos o tipo de retórica que se esconde atrás do mito do progresso que muito influencia o discurso de uma esquerda para o capital é ver na leitura dos textos que argumentam pela existência de conquistas populares importantes expressões como “ainda”, “ainda não foi, mas será” e

“já”. As palavras, à primeira vista inocentes, escondem o mito do progresso e estão por trás de um perverso consenso em que qualquer colocação crítica ou contrária é taxada de sectária, radical ou inconsequente. Aqui o epíteto “esquerda progressista” ou “governo progressista” ganha outras proporções.

Algumas pessoas foram questionadas pela assinatura no manifesto nas redes sociais. Dentre eles, o poeta Chacal que

140 Nem todos os petistas apoiaram a coligação “Somos um Rio”. É expressivo nesse caso o “Manifesto do movimento petista com Freixo”. Esse manifesto constitui-se como um importante documento que expressa as transformações pelas quais o partido vem passando. A visão expressa no manifesto em relação à cidade do Rio não é a mesma expressa em grau nacional, uma contradição digna de nota. O manifesto está disponível em: http://petistascomfreixo.blogspot.com.br/2012/07/manifesto-do- movimento-petista-com.html - acesso em 19/03/2013. 141 Miguel do Rosário, em seu blog O cafezinho, possui um texto cujo título é “O neofascismo playboy de Marcelo Freixo”. Disponível em: http://www.ocafezinho.com/2012/09/14/o-neofascismo-playboy-de-marcelo- freixo/ - acesso em 20/03/2013. 198 está presente na conhecida antologia 26 poetas hoje (1976), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, que também assina o manifesto. No debate que se seguiu em sua página do Facebook, algumas pessoas argumentaram que os que se indignaram pela assinatura de Chacal estavam fazendo uma patrulha ideológica. A reutilização do termo no contexto atual soava como mais uma prova de que as questões mal resolvidas do final da década de

1970 e início da de 1980 - a relação do artista com a sociedade na formação de um novo consenso, por exemplo - não haviam perdido a vitalidade e voltavam para nos assombrar.

O manifesto reúne assinaturas de personalidades tão díspares na cena cultural que vão de Roberto Medina a Antônio

Cícero, de um Isaac Karabtchevsky a uma MC Anitta, de duas gerações da família Severiano Ribeiro ao fundador do grupo de teatro popular Tá na rua, Amir Haddad.142 É interessante notarmos que não opera aqui uma distinção entre os rótulos enferrujados de alta e baixa cultura. Diversas áreas se encontram representadas: teatro, música, dança, cinema, moda, literatura, entre outras. Tanto consenso nos faz perder a necessária dimensão do dissenso e da discussão, imprescindíveis para todos os ofícios, mas que na esfera cultural assumem uma maior importância justamente por nos permitirem desenvolver ideias e opiniões como as que afirmam o caráter político da cultura e da atuação do artista. A dimensão do dissenso e do debate no plano

142 Uma frase de Amir Haddad, apresentando o grupo Tá Na Rua em seu site, vem muito bem a calhar em tempos de alta concorrência por editais de cultura e assinatura de manifesto: “Nós saímos das camisas- de-força da ideologia e começamos a vestir os trapos coloridos da fantasia, da possibilidade, da transformação, da beleza, do nada pronto, nada definitivo e do eterno movimento”. Proferida no contexto vivido pela cidade do Rio de Janeiro atualmente, a frase soa como excelente mote para um exercício crítico. 199 cultural nos permite pensar as diferentes interpretações da realidade ao nosso redor a partir de um viés que não esteja pautado pela destotalização e pelas ilusões do progresso. As relações dos artistas de rua com a administração de Eduardo Paes são um interessante campo a ser pesquisado.

É preciso recuperar o gesto que está por trás dos versos

“Se o senhor não está lembrado, dá licença de contar” que iniciam a canção “Saudosa Maloca”143, cantada por Adoniran

Barbosa. É através de sua ótica que precisamos analisar o legado do tropicalismo. Não com o afã ilusório de mostrar o que verdadeiramente aconteceu, mas sim com a necessidade de deixar em aberto o passado. A “casa veia”, o “palacete assobradado” que havia onde agora está “o edifício arto” da canção são testemunhas da lógica destrutiva do mito do progresso que apaga as lutas e suas memórias como quem derruba casas antigas. Hoje, as casas derrubadas são materiais e imateriais. O X vermelho144 pichado no muro pelos funcionários da prefeitura surpreende os moradores que terão que deixar suas casas. A violência desse ato e tantos outros como a privatização dos bens públicos não é capaz de se sobrepor ao coro dos contentes. As outras casas e

143 A canção foi composta por Adoniran Barbosa, em 1951. “Os mimosos colibris/ Saudade da Maloca“ (1951), Continental 78. 144 Faço referência aqui à marcação feita pelos funcionários da prefeitura nas casas das famílias que terão que ser removidas. Sobre essa urgente questão há muitos documentários no Youtube. Dentre eles destaco: “O legado somos nós: a história de Elisângela (2012)”, disponível em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&list=UUy9baEwejuD 1o-HxKbRrhKg&v=bB8J0gWTopE – acesso em 29/03/2013. Dois vídeos da agência de notícias A Nova Democracia são pertinentes neste caso: “Moradores de Vila Taboinha resistem” e “Remoções no Rio de Janeiro”, ambos disponíveis, respectivamente, em http://www.youtube.com/watch?v=R3T9c0fNBP0 e http://www.youtube.com/watch?v=cS2wM530s2g&feature=player_embedded – acessos em 29/03/2013. 200 palacetes derrubados estão nos inúmeros jovens que tem negado o acesso à educação pública, gratuita e de qualidade. A memória da luta é cada vez mais apagada na inegável escalada do autoritarismo do estado em relação aos movimentos sociais observada em todo o país. O governo do estado do Rio de Janeiro entregou no início do ano letivo de 2013 uma cartilha para o servidor com seus deveres, cujos temas abordados eram

“Proibições, Responsabilidades, Penalidades, Sindicância e

Processo administrativo”, sendo que não há um tópico com o título “Direitos”. Se posto em competição, o texto não perderia em nada para um documento saído dos anos de chumbo. O perigo aqui é descrito na tempestade do progresso que pode se apropriar também de nosso passado e de nossas heranças culturais. E nesse sentido a fala de Wilson Risolia, secretário da educação do estado do Rio de Janeiro, sobre a inauguração do Colégio

Estadual Stuart Edgar Angel Jones é emblemática.145 A memória de

áreas culturais como o do porto do Rio não está segura, assim como as referentes às nossas disputas e manifestações artísticas.

Por essa razão, mais do que nunca é preciso que hoje questionemos a consagração acrítica que há em torno da tropicália. Se a estetização da política é um fato que se evidencia em todos os níveis (seja no da propaganda celebrando a

145 Comentando sobre o nome da escola, Wilson Risolia declarou: “Foi uma decisão muito apropriada para esta escola. Não há maneira mais especial de lembrar a luta de um estudante comprometido com o destino de seu país. Espero que os alunos aproveitem muito essa nova escola e que se interessem em conhecer essa história que, decididamente, não foi em vão – afirmou o secretário”. Matéria de Michelle Lorencini (25/02/2013) nas notícias do site da secretaria de educação do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=1456511 - acesso em 11/03/2013. 201 paz nas favelas146, seja no da integração da cidade partida resumidas nos versos “Eu moro no morro, ela na zona sul...”),147 por que à politização da estética é vedada a sua possibilidade de existir?

O desafio de pensá-la não pode ser invalidado de antemão.

Não se trata de negar a autonomia da arte, mas sim de reconhecer um fato que não pode ser questionado: o de que os artistas estão inseridos em uma realidade política concreta. E hoje é isso que nos é negado. O establishment procura justamente condenar qualquer dimensão política de questionamento efetivo ao

146 Faço referência aqui a duas propagandas do governo do estado do Rio de Janeiro exibidas para milhões de pessoas através da televisão. Um destacando as UPP's, em que o clássico e tocante “Rap da felicidade”, dos MC’s Cidinho e Doca, ao ser cantado por moradores em situações cotidianas é acompanhando pelas legendas: “A pacificação já libertou 17 comunidades do domínio de criminosos e devolveu a milhares de famílias o direito de serem felizes”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=kPIA8WKSV1c – acesso em 11/03/2013. A outra propaganda é um comercial de fim de ano exibido perto do natal de 2011 com outra expressiva canção, “Juízo Final“, de , também cantada pelos moradores das comunidades pacificadas. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=yI-j_aYpLQM – acesso em 11/03/2013. 147 O verso pertence à canção “Patricinha do olho azul”, do grupo Bom Gosto que também assinou o manifesto. É interessante registrar que a composição foi adaptada para a propaganda política da coligação “Somos um Rio”, na campanha pela reeleição de Eduardo Paes à prefeitura. Comparar as duas letras é um exercício interessante para uma prática comum que é a domesticação de determinadas peças de nosso cancioneiro para interesses do governo. Na canção original os versos se iniciam da seguinte maneira: “De black ou nagô, relógio paraguaio/ Eu já tô quase atrasado pra sair com ela/ Tênis do camelô, um perfume de caô/ Sem dinheiro na carteira pra sair com ela/ Eu preciso de um favor/ Mas tem que ser no amor/ Não tenho um real pra sair da favela/ Dia 5 não chegou, meu patrão não me pagou/ Meu cartão já estourou e meu rolê já era”. Na versão da propaganda política, tal trecho ficou da seguinte maneira: “De black ou nagô, nossa gente tem valor/ Nosso povo tem orgulho e ama essa cidade/ Sem distinção de cor/ Eu sei que demorou/ Mas o Rio hoje voltou a ter dignidade/ Parabéns a quem lutou/ Força a quem acreditou/ Hoje o Rio brilha mais forte, tem mais igualdade/ Nosso povo tem calor/ Nesse solo nasce flor/ Hoje o Rio é um só Rio, tem mais qualidade”. Não há informação a respeito do autor da paródia. As duas canções estão disponíveis no Youtube e podem ser encontradas respectivamente em: http://www.youtube.com/watch?v=1hkf-46m6uM e http://www.youtube.com/watch?v=8o1AMqIIxYg - acessos em 03/04/2013.

202 status quo, por mais que ele passe a impressão de estar questionando a ordem.

O mapa, a moda e o mito aqui apresentados se articulam e se sustentam a partir da argamassa do consenso. Intelectuais pensam o Brasil e há muito de criação nesse pensamento. Eles pensam enquanto contam, declamam, escrevem ou cantam o país.

A chamada explosão da nação e a impossibilidade de se concebê-la – características que Favaretto atribui ao tropicalismo, mantiveram-se, acentuaram-se ou retraíram-se nos tempos atuais? A condição de latinoamericanidade148 do tropicalismo que Schwarz comenta ainda em 1969 assume quais dimensões num contexto em que desde a década passada boa parte dos países latino-americanos buscam novas estratégicas de integração? A execução de “Soy loco por ti America” melhor se traduz na voz de Ivete Sangalo na abertura da novela das oito149 ou nas aflições do Paraguai pós-golpe? Ou será que é na escola de samba de Martinho da Vila – ele, aliás, também assinante do manifesto “Somos um Rio” – cantando em 2006 o samba-enredo “Soy loco por ti américa – A Vila canta a latinidade”? O mesmo

Martinho que fez as vezes de Zeus abençoando a cidade no vídeo das olimpíadas é outro artista que nos interessa nesse legado que estamos comentando.

148 Sobre a relação entre a tropicália e a condição latino-americana vale conferir o trabalho de Jorge Evandro Lemos Ribeiro, Viva Iracema, viva Ipanema: o tropicalismo (ouvido) à luz do dilema latino-americano (2007). Ainda que considere o tropicalismo como um dos pontos luminosos de um processo de amadurecimento da formação cultural do Brasil, a dissertação é interessante por querer aproximar a problemática tropicalista ao contexto do continente. 149 Trata-se da novela América, escrita por Glória Perez e exibida na rede Globo no horário das 21h, de março a novembro de 2005. 203

É curioso pensar nas mudanças pelas quais as escolas de samba passam. No contexto marcado de mercantilização, o samba agora fala do guerreiro e não mais da guerra.150 Em tempos de desfiles patrocinados, o refrão do samba-enredo de 2013 da

Mocidade de Padre Miguel parte justamente da mescla de samba e rock, uma união cara ao tropicalismo e que vale aqui como um registro de nosso início de século:

Uma onda me embala, invade a alma No peito explode a minha paixão Um mundo melhor... que felicidade No Rock in Rio eu vou de Mocidade

A assunção de um mundo melhor alardeada pelo enredo da

Mocidade151, em que “um sonho de amor à liberdade” canta a paz e a igualdade, abre uma instigante problematização de como os motes acima são cantados em nossos tempos de mercantilização.

Enaltecer palavras como a cidadania, o coletivo e a educação em seu aspecto vago sem sua significação política é uma estratégia que não deve ser ignorada. Igualdade aqui é outro substantivo que não deve nos escapar.

A pergunta sobre que tipo de politização queremos na estética remonta ao que entendemos como política no nosso contexto atual. Por tal razão, os discursos que proclamam um mundo novo em que a noção de direita e esquerda não correspondem mais à realidade encontram na época percorrida pelo legado do

150 Agradeço a Raquel Sant'Ana da Silva que, em uma conversa, disse-me essa frase tão pertinente. 151 Trata-se do samba enredo “Eu Vou de Mocidade Com Samba e Rock in Rio Por Um Mundo Melhor da Mocidade”. A escola ficou em 11º lugar e por muito pouco não foi rebaixada.

204 tropicalismo uma instigante conexão que este capítulo tentou demonstrar.

205

5. Considerações finais

Referindo-se ao seu livro Música popular: de olho na fresta, escrito em 1977, Gilberto Vasconcellos declarou em entrevista de 2012:

Depois de De olho na fresta eu virei um “defunto autor” ou um autor defunto. Acho que a academia entendeu o livro em função da importância dada à música popular como uma radiografia do Brasil. [...] Renego esse livro. Todo autor tem que ter um livro renegado, a não ser por um capítulo sobre Noel Rosa: “Yes, nós temos bananas”, ali é bom. Mas eu sei é que toda hora dizem: “Ah! mas e o De olho na fresta?” (Vasconcellos, 2012).

Renegar livros talvez seja a prova mais contundente da importância das conclusões. Apesar de necessárias, as considerações finais não são provas do fim de uma pesquisa e tampouco de que as ideias defendidas são um fato dado. Nas condições atuais de pós-graduação em que o prazo de escrita de uma dissertação é de dois anos, a asserção torna-se mais evidente. Uma conclusão em tal contexto – e para além deste – constitui-se como um boletim das questões suscitadas pela pesquisa que devem ser trabalhadas, questionadas, confirmadas ou abdicadas em um processo que nunca cessa.

Respondendo a uma pergunta central para a presente dissertação: Por que o tropicalismo hoje? - Gilberto

Vasconcellos é enfático:

A tropicália é o triunfo do rico, do cara que venceu, e indiretamente é o aplauso do genocídio. O que a tropicália fez? Aprovou o quê? A

206

multinacional é que é o quente, que ganhou, venceu a burguesia gostosa. É a valorização da multinacional como motor do desenvolvimento. Por isso que eu digo que a tropicália é a transfiguração sonora da economia política do automóvel trazida pelo Juscelino Kubitschek (Vasconcellos, 2012)

A colocação de Gilberto Vasconcellos pode se relacionar à opinião de José Ramos Tinhorão de que a tropicália teria realizado no plano cultural o que a ditadura fizera no plano econômico. Deixando de lado as simplificações - seriam aparentes? - por trás das colocações, a associação da tropicália a um período como o de JK - um período “democrático” como se considera o governo atual - deve funcionar como uma provocação profunda para o pensamento sobre o assunto.

Nesta dissertação, tentamos não deslocar os críticos e suas reflexões do contexto político e econômico, na tentativa de evitar uma visão que procurasse uma imanência, uma raiz ou uma origem imaculada do tropicalismo. Propagar uma possível desvirtuação seria uma saída muito simples. A existência, porém de um conflito de opinião por mais que seja progressivamente marcado por um consenso, deve ser garantida. O perigo maior é que o embate intelectual se anule ou desague no mar da opinião hegemônica. Nesse cenário, as análises que se opusessem ao mainstream se tornariam meras patrulhas ideológicas. Tudo indica que o termo se manterá, assim como a tropicália, numa importante posição nos contornos dos embates futuros. Nas discussões acerca do jogo Banco Imobiliário – Rio Cidade Olímpica, o atual secretário de cultura e presidente da Riofilme, Sérgio Sá

Leitão, fez uma declaração em seu Twitter que caberia como uma epígrafe a respeito da reutilização do termo patrulha nos dias

207 atuais. Quando questionado mais uma vez por defender um jogo que apresenta aparelhos e serviços públicos como “empresas lucrativas”, foi enfático: “@orafaelcesar Mais q normal. É uma iniciativa fantástica de promoção da cidade. Inovadora e com amplo alcance. Chega de patrulha e caretice!”.152

A utilização do termo “caretice” é significativa do embate referido no primeiro capítulo entre “racionalidade careta” e

“modernidade inovadora” em que o legado do tropicalismo se inscreve. Entende-se que o uso de “caretice” não se define como direita e tampouco esquerda. Apresenta-se como uma retórica conservadora cuja origem se embasa em argumentos que dizem que determinadas categorias não dão mais conta de nossa realidade.

A resposta de Gilberto Vasconcellos que define a tropicália como o “triunfo do rico” deve ser revalorizada assim como a fortuna crítica de Tinhorão. Vale dizer que isso não equivale a incorrer numa visão elitista do gosto. Associar a esquerda a um elitismo cultural, a um determinado folclorismo identificado a um caretismo nas artes tornou-se uma estratégia do pensamento político hegemônico.153

Nesta dissertação tentou-se argumentar na direção contrária

à consagração, fruto da imposição de uma lógica conservadora e

152 A declaração, escrita no dia 21 de fevereiro de 2013, pode ser encontrada no Twitter do secretário, disponível em: https://twitter.com/sergiosaleitao - acesso em 20/03/2013. 153 Esse discurso, que numa avaliação histórica não pode ser considerado infundado, é hoje amplamente questionado. Na monografia de conclusão de curso de Ohana Boy intitulada Esquenta! - Mediação cultural: tudo junto e misturado, a autora reflete sobre uma entrevista realizada com a apresentadora do programa Esquenta! Regina Casé: “Segundo Regina Casé, houve uma mudança na visão de mundo das pessoas em relação à cultura com o passar do tempo. Segundo ela, muita gente diz que gosta do povo, mas não gosta do que ele faz, do que ele produz culturalmente, ou seja, muitas pessoas engajadas - de esquerda - são contra funk e pagode, por exemplo“ (Boy, 2011, p. 56). 208 acrítica. As colocações de Gilberto Vasconcellos, Francisco

Alambert, Pedro Alexandre Sanches, dentre outros que não contribuem para a canonização e a consagração que compartilham do coro dos contentes, repercutem de forma incisiva no início da atual década de 2010.

O quadro existente beira o marasmo. Muitos pesquisadores da tropicália se debruçam sobre seu objeto de estudo com o objetivo de provar o aspecto revolucionário ou a importância em anunciar as mudanças de nosso momento atual. A identificação do tema e dos artistas com os pesquisadores é evidente. Associa-se o tropicalismo à pós-modernidade, fala-se de alguns de seus autores, da representatividade do movimento para uma lucidez dos novos tempos e ponto. Quando a situação chega a esse limite é preciso que questionemos o que para muitos é considerado natural. É por isso que o título desta dissertação se constitui como uma provocação àqueles que advogam a separação entre política e estética e declaram, apressadamente, que vivemos em uma nova época em que as ideologias não mais existem.

Em 2008, passados 40 anos desde 1968, foram organizados no

Rio de Janeiro dois congressos. Em vias de reiterar o quadro de consagração e institucionalização ao redor do tema, torna-se imprescindível ressaltar a diferença entre os dois eventos. Um, intitulado “2008-1968: Memória e História”, foi realizado no

IFCS e organizado por Maria Paula Araújo e Carlos Fico, professores e pesquisadores do instituto de história da UFRJ. O título “Memória e História” nos mostra o peso que a categoria de

209 memória154 tem para a questão. Há um risco de perdermos de vista as continuidades que podemos traçar entre as lutas daquela época e as atuais. Tal questão, no entanto, assume no contexto latino- americano uma importância muito grande que será posta em prova nas próximas décadas, pois é a própria universidade enquanto espaço público e sua trajetória de lutas que estão ameaçadas. A domesticação operada pela categoria de “memória” e “história” é evidente quando os historiadores arvoram-se, muitas vezes, como guardiões dos eventos passados e contribuem para uma reflexão que rompe com a continuidade. No endereço eletrônico do evento encontramos a seguinte definição do referido congresso:

O Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, com o apoio do CNPq, promoverá, entre os dias 6 e 9 de maio, um seminário a propósito dos 40 anos do emblemático ano de 1968. Historiadores e cientistas sociais brasileiros, norte-americanos e argentinos abordarão temas como o movimento estudantil, as expressões artísticas, a luta armada, o movimento operário, o impasse político que culminou na decretação do AI-5 e as diversas memórias construídas sobre o período (disponível em: http://www.ifcs.ufrj.br/eventos/1968.htm - acesso em 30/03/2013).

O outro foi organizado por um coletivo formado pelos centros acadêmicos de história da UFF e UFRJ, os diretórios acadêmicos das duas instituições assim como partidos de esquerda como o PCB, PSOL, PSTU e organizações como o MST e o SEPE, sindicato dos professores dentre outras organizações ligadas à luta popular. O congresso teve como título “Nós que amamos a revolução”. O verbo amamos carrega em si uma ambiguidade, porque

154 A ideia de memória deve ser entendida aqui como algo que é compartilhado por indivíduos, grupos e classes que se constitui como um instrumento e objeto de poder (Le Goff, 2003). A memória acima de tudo é uma construção social e está ligada à identidade, tanto individual, quanto coletiva, nacional (Menezes, 1992). 210 quando conjugado na primeira pessoa do plural se remete tanto ao presente quanto ao passado. Talvez seja uma fortuita forma que nos exemplifica a ideia de tempo-de-agora e de continuidade das lutas contra a ordem capitalista que não separa o passado e o presente como se evidencia no trecho abaixo:

A ideia do “Nós que amamos tanto a revolução!” é ser a primeira de uma série de eventos de resgate de 68, sob uma perspectiva de classe. É preciso compreender esse processo como um momento vivo, que não é um fato concluso e estanque, pelo contrário, se comunica conosco e pensa os reflexos nas lutas sociais de hoje. (...) Conseguimos unificar muitos atores sociais na elaboração do seminário, isso foi bastante importante. Optamos por um processo amplamente democrático, horizontal, coletivo, que é mais difícil, mais demorado, mas que tem um resultado bem mais positivo.155

Estabelecida a comparação entre os dois eventos, não espanta saber que, durante a grande greve das universidades federais em 2012, os professores do Instituto de História da

UFRJ mantiveram, em sua maioria, uma posição relutante em relação à mobilização dos servidores federais, tendo tentado sair da greve ainda em agosto, antes dos professores da UFRJ como um todo. Semelhanças com a história cortesã ou até mesmo a positivista que se encastela em suas fontes e nos muros da universidade não pode ser mera coincidência. Aqui os termos do congresso “memória e história” se traduzem na rememoração e na atualização das lutas. Lançar o olhar ao passado, seja ele uma retrospectiva ou uma análise crítica, implica em repensarmos o presente. Em seu álbum Abraçaço, lançado no final de 2012, que juntamente com Cê (2006) e Zii e Zie (2009) aponta para uma

155 Disponível em: http://www.sindpdpe.org.br/get.php?arg=00000004377acesso em 29/03/2013. 211 direção mais ligada ao rock, Caetano Veloso canta na canção “Um comunista” - uma homenagem a Carlos Marighela - o que poderia ser a epígrafe para a conformação ideológica de nosso começo de século. “Os comunistas guardavam sonhos, os comunistas! Os comunistas!”. Conjuga o baiano os sonhos dos comunistas num pretérito imperfeito, tempo verbal que, segundo Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso (2007, p.237) está presente nos discursos daqueles que rememoram um objeto, uma cena ou um gesto ligados ao ser amado. É o imperfeito que habita a frase de

Gabeira “no tempo em que éramos marxistas” (Gabeira, 2000, p.

81). É esse a temporalidade do verbo que assalta o questionamento da ordem e que pode transformar o “amamos a revolução” por “amávamos”. Adentramos aqui em um conflito em que a diferenciação entre os dois congressos tem muito a nos dizer.

A tentativa de mapeamento aqui deve ser reavaliada e retomada em trabalhos posteriores, assim como comparadas com inúmeras teses e dissertações já escritas sobre o assunto. As diferenças, afinidades, contradições e lacunas devem nos auxiliar na exploração de pontos como o conflito entre racionalidade e irracionalidade no estudo do tropicalismo, assim como as dinâmicas de canonização e a marginalização de algumas opiniões.

A exploração da moda que - relacionada ao momento político e à apropriação de alguns autores como Walter Benjamin - paira sobre o tropicalismo, foi o objetivo do segundo capítulo.

Evidenciar e fazer um balanço de tal quadro é uma tarefa ideológica. As mudanças que encobrem as continuidades do sistema

212 político não são inseparáveis das manifestações artísticas como literatura e música.

As mudanças pelas quais as universidades tem passado seja em seu quadro de professores, em suas linhas de pesquisa ou seus currículos acadêmicos devem ser considerados num estudo crítico que tenha como foco a crítica acadêmica. A despolitização que o espaço universitário enfrenta e o recrudescimento da perseguição ao movimento estudantil - exemplificado pela denúncia de formação de quadrilha realizada pelo Ministério Público de 72 alunos da USP156 - não são atitudes isoladas. Calar-se diante dessas situações é mais que uma simples ausência. É compactuar com toda uma série de medidas que atacam seriamente a organização popular e os serviços públicos. Os comentários realizados escritos por internautas nos diversos canais em que a notícia dos estudantes da USP foi publicada vociferavam algo entre “revolucionários de araque” e “filhinhos de papai querendo fazer a revolução." O desmerecimento da ideia de revolução e, consequentemente, da organização estudantil é fruto da consolidação de uma visão conservadora que muitos críticos consciente ou inconscientemente terminam por contribuir.

Os questionamentos apresentados pela pós-modernidade não podem ser recusados automaticamente ou ignorados. Concluindo uma discussão sobre o teorema: “a política é irredutível à ética e à

156 Na grande imprensa a notícia dessa denúncia pode ser encontrada em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/02/mp-denuncia-justica-72- estudantes-da-usp-por-formacao-de-quadrilha.html. No final do mês de maio de 2013 a denúncia foi rejeitada pelo juiz Antonio Carlos de Campos Machado: http://educacao.uol.com.br/noticias/2013/05/28/juiz- rejeita-denuncia-contra-alunos-que-invadiram-a-reitoria-da-usp.htm. - Acessos em 29/05/2013. 213 estética”, Daniel Bensaïd chega à seguinte conclusão, convidando os leitores a tratarem com seriedade um debate subestimado:

O jargão filosófico da pós-modernidade realmente significa, em suas versões dominantes, um adeus à luta de classes e ao projeto de emancipação comunista. No entanto, um marxista heterodoxo e crítico deveria levar a sério sua interpelação, insistindo em novos encargos relativos à dialética do universal e do singular, da diferença e da alteridade. Deveria também considerar a produção dos discursos e das imagens uma dimensão essencial da reprodução social e da dominação simbólica. Enfim, deveria se dedicar a uma análise aprofundada das relações espaciotemporais da democracia política (Bensaïd, 2008, p. 34).

No documentário157 da BBC chamado Brasil Brasil, o último episódio, “Uma história de quatro cidades”, tem como tema a produção musical contemporânea em quatro cidades como Rio de

Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador. O fenômeno do axé, tão caro ao tropicalismo, é discutido na última parte sobre a capital baiana retratada com seus trios elétricos que arrastam multidões no carnaval. Nele, a prática da corda que separa os pagantes numa zona confortável dos que não pagaram pelo abadá nas laterais apertadas é discutida pela narradora. Sobre isso a cantora Virgínia Rodrigues declara no documentário:

A Bahia é um estado negro. Oitenta ou noventa por cento da Bahia são negros. E você não vai ver isso no carnaval da Bahia, o que você vai ver no carnaval da Bahia são os negros tomando empurrão e se digladiando para não encostar nas pessoas que vão sair nos blocos de carnaval. Esse tempo da Bahia do carnaval sem apartheid já acabou, já existiu nos anos 70 até nos 80, mas agora já era. (Virgínia Rodrigues).

157 Informações sobre o documentário podem ser encontradas no site da BBC. http://www.bbc.co.uk/musictv/brasilbrasil/episodes/ - acesso em 31/03/2013. 214

Há uma imagem, que circulou muito pelas redes sociais, em que se mostra uma fotografia aérea de um desses blocos em

Salvador. Ali se vê, claramente, que entre a corda predominam pessoas de pele mais branca vestidas de forma padronizada com os seus abadás enquanto que no espaço denominando como “pipoca”, estão as pessoas de pele mais escura. Ao olharmos a foto temos a impressão de que há uma faixa branca em meio a um fundo negro.

Reside nessa imagem uma força muito grande. A imagem se assemelha a uma alegoria na qual se condensa a segregação racial existente em nosso país.

Após a declaração de Virgínia Rodrigues, a narradora diz que Gilberto Gil discorda da visão da cantora. E então o ministro tropicalista resume o que poderia ser a lógica hegemônica vitoriosa conhecida de nosso presente de ataque ao bem público, que se traveste na crença de uma sociedade harmônica e sem classes:

A totalidade da população, as diferentes camadas sociais, todas elas contribuem e participam, sabe, e o governo também está envolvido, os setores privados através das empresas todos envolvidos, é muito pop e contemporâneo, né? (Gilberto Gil; tradução minha).158

Sua declaração, na qualidade de ministro, é bastante expressiva do entendimento atual da realidade e de nossos problemas sociais. O aprofundamento da lógica de privatização, a não crítica sobre uma manifestação cultural se faz a partir de

158 A frase é dita originalmente em inglês: “The whole of the population, the different social layers, they all contribute and participate, you know, and the government is also involved, the private sectors through the enterprises all involved, it is very pop and contemporary, you know“.

215 um discurso da diversidade que é muito importante para a retórica presente na lógica expressa por Gilberto Gil.

O cantor em seu discurso conecta a prática do carnaval à qualidade do pop e contemporâneo - para o mesmo efeito ele poderia também ter usado o termo “moderno”. A apropriação da verdade do tropicalismo como hegemônica se dá a partir do discurso da diversidade, de uma suposta totalidade que abarca o conjunto da população. No momento atual de euforia e de forte consenso podemos encontrar essa visão na propaganda da Coca-Cola sobre “A Copa de Todo Mundo” narrada por Tom Zé.159 Numa propaganda160 amplamente veiculada na televisão e na internet Tom

Zé narra um manifesto de como será a copa próxima, uma copa de todos:

Muita gente se pergunta como vai ser a Copa do Mundo. A Coca-Cola vai falar como ela não vai ser. Não vai ser só a Copa da vuvuzela, da celebridade, da menina bonita, dos jogadores ou do cabelo da moda nem de quem tem ingresso, de quem ganhou, de quem perdeu, ou do jogador galã: isso é pouco.

159 Tom Zé rebateu as críticas recebidas pela campanha publicitária com o seguinte texto publicado na sua página do Facebook que se inicia da seguinte maneira: “Pois é, pessoal, estou preocupado. Eu dou importância à opinião de vocês. Essa alegria sempre me acompanhou. Quando o anúncio saiu na tv, imaginei que até as opiniões contrárias eram uma espécie de comemoração por eu aparecer com status de locutor de uma propaganda grande. Mas agora, quando perco o sono por causa do assunto... não, agora eu estou preocupado! O apoio de vocês sempre foi uma base de sustento. Será que uma alegria nascida do privilégio de até hoje, aos 76, ter vivido dessa profissão de músico e cantor, me fez pensar que eu poderia afrontar essa sustentação?“. O texto pode ser acessado em: https://www.facebook.com/tomze/posts/10151297893292066 - acesso em 31/03/2013. 160 "Aqui copa coca acolá / Fazendo propaganda do Tom Zé" - Inverte Tom Zé em sua composição feita juntamente com Marcelo Segreto e Tim Bernardes. Aqui não é Tom Zé que faz a propaganda para a Coca Cola e sim a Coca Cola que faz a propaganda sobre o artista. A canção de título "Zé a zero" encontra-se no disco lançado no dia 22 de abril de 2013 na internet. O título do disco é sugestivo: Tribunal do Feicebuqui e reflete as críticas que o cantor recebeu nessa rede social. O artista declarou depois que doaria o cachê de R$ 80 mil para a Sociedade Litero-Musical 25 de Dezembro de Irará. 216

Muito pouco para um país que tem tanto. Porque o Brasil não é um país, é um caldeirão e aqui a gente põe mais água no feijão. É por isso que a gente vai fazer uma Copa de todo mundo, feita por todo mundo, e quando a gente fala todo mundo é todo mundo mesmo. Uma Copa de um país que vive de braços abertos e uma coisa é verdade: onde cabe mais um, cabem mais 200 milhões! Porque o Brasil é o país de todo mundo, o futebol é o esporte de todo mundo e a Coca-Cola é a bebida de todo mundo. Juntos vamos fazer a Copa do Mundo da Fifa ser a Copa de todo mundo.161

Ironicamente, em outubro de 2012 no encerramento do XIX

Porto Alegre em Cena, o show de Tom Zé terminou com mais um conflito entre a população de e a polícia no auditório Araújo Viana. Os seguranças da Oppus - empresa que na parceria público privada passaram a controlar o lugar - expulsaram violentamente as pessoas que assistiam ao show na grama ao redor do espaço público. O episódio que reflete o processo de abandono e privatização dos aparelhos públicos terminou com as pessoas incendiando uma lata inflável da Coca-

Cola. Na mesma época o Tatu Bola mascote da Copa do Mundo foi destruído em Porto Alegre num violento conflito com a tropa de choque. É o mesmo tatu que aparece nas charges de Carlos Latuff com as roupas do Choque, com uma arma na mão retratando a violenta expulsão e repressão aos índios e manifestantes da

Aldeia Maracanã.162

Sendo a definição do que consistiu o tropicalismo uma tarefa de interpretação, não se deve ignorar a existência e a unanimidade que o seu legado representa nos dias atuais. A

161 A propaganda está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=u- tp3SwitMY - acesso em 03/04/2013. 162 Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=221772954627996&set=a.16783636 6688322.37004.100003858796537&type=3&theater - acesso em 31/03/2013. 217 conexão de tal unanimidade com o momento político é uma tarefa coletiva que essa dissertação procurou contribuir.

É preciso que a crítica problematize a consagração progressiva observada nas efemérides. Os desafios da década atual para o conjunto dos trabalhadores não devem ser subestimados. O recrudescimento da violência policial e da repressão aos movimentos sociais não pode ter seu alerta ignorado. O acordo coletivo especial,163 as remoções, a lei da copa se tornam problemas urgentes para os anos atuais e os próximos. Nesse sentido, devemos nos munir para o que 2017 representará, quando o tropicalismo comemorará seus 50 anos. O interesse não se dará somente por causa do quinquagenário do tropicalismo. No mesmo ano, em outubro – mês, alias, em que

Gilberto Gil e Caetano Veloso se apresentaram no III Festival da

Canção – a Revolução Russa completará um século.

Dado o panorama atual da crítica, podemos lançar o questionamento sobre como em que medida as duas efemérides se relacionarão?

163 Proposto pela CUT tal acordo representa um grave retrocesso das lutas trabalhistas. Com a retórica de “É preciso modernizar as relações de trabalho” conhece-se bem o que tal acordo pode vir a representar. O texto de apresentação na cartilha feita pela CUT fala em “resgate do otimismo” frente ao “velho lamento de que tudo vai mal”. Na cartilha lê-se o otimismo da terceira via pronta a retirar dos trabalhadores os direitos conquistados: “O velho espírito derrotista deu lugar a um sentimento de autoconfiança. o Brasil assume um novo lugar no mundo. Problemas como o desemprego crônico, a dívida externa ou a fome endêmica começam a ser enfrentados com mudanças positivas em todos os indicadores. Restam ainda desafios enormes para se comemorar a conquista de uma sociedade justa e equilibrada. Mas a rota foi encontrada. Retomada do crescimento, distribuição de renda, responsabilidade social, valorização do trabalho, soberania nacional, democracia, consolidação das instituições republicanas e respeito aos direitos de cidadania compõem a sinalização dessa estrada. Perde força o velho lamento de que tudo vai mal.“ A cartilha pode ser acessada em: http://www.smabc.org.br/interag/temp_img/%7B38809CF7-87DA-4312-A498- 5398482D1DE8%7D_cartilha_ace_v4_nova.pdf - acesso em 31/03/2013. 218

A visão que associa a esquerda a uma espécie de folclorismo cultural ainda rende muitos frutos. É cômodo que se classifique o pensamento que se opõe ao capitalismo como ingênuo ou limitado no campo das artes e das manifestações populares. Nesse estereótipo a visão de arte taxada de esquerda é associada a um elitismo que repudia o funk. É preciso enfatizar o quanto essa visão não se comprova. No site da APAFunk,164 os projetos e a atuação para promoção desse gênero musical à categoria de manifestação cultural reconhecida pelo Estado devem ser sublinhados. A canção “A guarda toma e o choque mata”165 assim como outras do coletivo Anarcofunk também são provas contrárias a essa noção. É preciso marcar a diferença para recusarmos um rótulo tão caro à lógica tropicalista que procura ter o monopólio do discurso da diversidade e do reconhecimento de outras manifestações culturais.

As políticas culturais do governo, tanto do estado quanto da prefeitura do Rio, encontram o seu lado obsceno na bárbara e truculenta desocupação da Aldeia Maracanã166 e no discurso do

164 No site da APAFunk encontramos a seguinte apresentação: "'A APAFunk não é modismo, é uma necessidade...', A APAFunk foi fundada em 10 de dezembro de 2008, por profissionais e amigos do funk cansados de assistir à discriminação sem fazer nada. O intuito é defender os direitos dos funkeiros e lutar pela Cultura Funk, contra o preconceito e a criminalização. Para isso, a Associação promove debates na sociedade sobre a situação dos artistas do funk, bem como atividades de conscientização dos funkeiros sobre seus direitos. Rodas de funk, palestras e videos são alguns instrumentos utilizados pela associação para levar a mensagem da Associação para universidades, escolas, cadeias, favelas, praças, ruas e todas as instituições da sociedade que abram espaço para debater a nossa cultura." http://www.apafunk.org/ - acesso em 31/03/2013. 165 A canção podes ser ouvida no Youtube. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Zvz_VMUOJ8U - acesso em 31/03/2013. 166 Essa violência pode ser ilustrada pela truculência da repressão policial a uma manifestação ocorrida quando da reabertura do estádio Maracanã no dia 27 de abril de 2013. O canal A Nova Democracia possui 219 secretário de cultura da cidade do Rio de Janeiro, Sérgio Sá

Leitão. Um dado novo, porém se apresenta: a prefeitura e o governo do estado não ignoram a importância do funk como manifestação cultural evidenciada no “Rap da felicidade” e no fenômeno da batalha do passinho em suas propagandas.

Em momentos de incerteza em que o perigo vem de variados lados, é preciso que, como críticos, miremos para variados alvos. Dessa forma, optei por espraiar o meu corpus de forma que se revelasse a disseminação do consenso, de um pensamento que é para ser crido e não submetido ao dissenso. A suspensão do tempo ou da historicidade é também um outro lado do mito que despolitiza a realidade.

A crítica à celebração da tropicália e o seu questionamento não correspondem a uma negação do que ela representou na cultura brasileira.

No mês de março de 2013 o evento “Brasil de Lá Brasil de

Cá” reuniu duas bandas que trabalham de forma híbrida o nosso folclore. No grupo Lá e Cá e na Orquestra Popular Brasil de

Cara, a presença de guitarra elétrica – algo decisivo nos tempos do tropicalismo – é um detalhe. O evento foi localizado na Pedra do Sal167, lugar simbolicamente importante para a cultura do Rio

um vídeo no youtube sobre o ocorrido: http://www.youtube.com/watch?v=LbHUE499QUk - Acesso em 29/04/2013. 167 O verbete da wikipedia sobre a Pedra do Sal diz o seguinte: "Pedra do Sal é um monumento histórico e religioso localizado no bairro da Saúde, perto do Largo da Prainha, na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. É onde se encontra a Comunidade Remanescentes de Quilombos da Pedra do Sal. Foi tombada em 20 de novembro de 1984 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural. É um local de especial importância para a cultura negra carioca e para os amantes do samba e do choro. Pode ser considerada como o núcleo simbólico da região chamada de Pequena África, que era repleta de zungus, casas coletivas ocupadas por negros escravos e forros. Na Pedra do Sal, que fica a 100 metros do Largo da Prainha, reuniam-se grandes sambistas do passado, como , João da Baiana, Pixinguinha e Heitor dos 220 de Janeiro, situado na área atualmente chamada de Porto

Maravilha. Admirar os prédios e ruas dessa região é admirar ruínas.

Mais uma vez o mito do progresso traz a sua temporalidade do inferno a se conformar ao tempo frio do calendário. Os despojos culturais do vencedor assim como o grito dos vencidos não podem ser ignorados pelo crítico e seu tempo.

Foi a tal premissa coletiva que esta dissertação procurou seguir. Que as críticas provocadas por este trabalho contribuam para uma discussão do Brasil contemporâneo que não seja vazia, mas questionadora tanto da euforia atual, quanto da separação entre arte e política imposta como consenso.

Prazeres." Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedra_do_Sal - Acesso em 29/04/2013.

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Álbums

AMARANTOS, Gaby. Treme. Som Livre, 2012.

BARBOSA, Adoniran. Os mimosos colibris/ Saudade da Maloca, Continental 78, 1951.

BUARQUE, Chico. Sinal Fechado. Philips, 1974.

KIMBUTA, Ba. Universo Preto Paralelo, 2012.

O RAPPA. Lado B Lado A. Warner Music, 1999.

REGINA, Elis. Em Pleno Verão. Philips, 1970.

VELOSO, Caetano. Muito. Philips, 1978.

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Zé, Tom. Tropicália Lixo Lógico. Independente/Natura Musical, 2012.

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NUNES, Clara. As forças da natureza. Odeon gravadora: EMI music, 1977.

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Filmes e Videoclips

BRASIL, BRASIL. (2007). Títulos dos episódios: Samba to Bossa. Tropicalia Revolution. A Tale of Four Cities. Diretor: Robin Denselow. BBC.

CINCO VEZES FAVELA. (1962). Títulos dos episódios: UM FAVELADO (Marcos de Faria); ZÉ DA CACHORRA (Miguel Borges); ESCOLA DE SAMBA ALEGRIA DE VIVER (); COURO DE GATO (Joaquim Pedro de Andrade); PEDREIRA DE SÃO DIOGO (Leon Hirszman). Produção: Centro Popular de Cultura da UNE. Diretor de produção: Leon Hirszman e Marcos de Faria. Assistência de produção: Ezequiel do Nascimento e Lídio Francisco da Costa. Gerente de produção: ; Fernando Drummond e Ivan de Souza. Distribuição: Tabajara Filmes Ltda, Paris Filmes Produção e Distribuição Cinematográfica Ltda, Seleção de Filmes.

FUTURO DO PRETÉRITO: TROPICALISMO NOW! (2011). Direção: Ninho Moraes e Francisco César Filho. Roteiro: Ninho Moraes. Brasil, documentário, cor, 75min.

OS DEUSES DO OLIMPO VISITAM O RIO DE JANEIRO. (2012). Produção: Pindorama e Kassin. Gravado e mixado por Eduardo Costa. Produção executiva: Joana Hime. Canção composta por Arlindo Cruz, Arlindo Neto e Rogê. Direção: Estevão Ciavatta. Gravado nos estúdios Ciatec e Mega.

TROPICÁLIA (2012). Direção: Marcelo Machado. Roteiro: Di Moretti, Marcelo Machado. Brasil, documentário, cor, 82 min.

5X FAVELA, Agora por nós mesmos (2010). Produção: Cacá Diegues e Renata Almeida Magalhães. Estúdio: Luz Mágica Produções / Globo Filmes / Videofilmes / Quanta / TeleImage. Distribuidora: Sony Pictures Entertainment / RioFilme. Direção: Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcellos, Luciano Bezerra, Manaíra Carneiro. Roteiro: Rafael Dragaud (coordenação), José Antônio Silva, Vilson Almeida de Oliveira, Rodrigo Cardozo, Cadu Barcellos e Luciana Bezerra. Música: Guto Graça Mello. Fotografia: Alexandre Ramos. Direção de arte: Pedro Paulo de Souza e Rafael Cabeça. Figurino: Inês Salgado. Edição: Quito Ribeiro.

5X Pacificação (2012). Produção: Cacá Diegues e Renata Almeida Magalhães. Dirigido por Cadu Barcellos, Luciano Vidigal, Rodrigo Felha e Wagner Novais.

237

7. Anexos

(Anexo A: Depoimento - José Genoino)

A mistura de política com o Tropicalismo, que está refletida nesta mesa, é que dá a dimensão do sentido revolucionário que teve esse movimento. É interessante, pois eu estava outro dia em um debate sobre os 30 anos da morte do “Che” e comentava com alguns amigos que a geração que reconstruiu o movimento estudantil – que teve marcas profundas na Universidade de Brasília – fez uma reunião, um Seminário e uma festa e estavam todos lá, de todas as tendências. Eu comentava que a riqueza, a explosão, a pluralidade do fenômeno político e cultural dos anos 60 não nos permitia juntar toda a geração num banquete, nem numa festa, nem numa sala, porque ela foi tão grande que até hoje as pessoas têm dificuldades de encontrar uma linguagem comum, tanto na política, quanto na cultura sobre esse fenômeno. É muito difícil pra nós, e eu vou entrar com o lado político para temperar um pouco esse debate. Para mim houve três datas importantes de contato com o fenômeno do Tropicalismo, do qual os principais protagonistas foram o Caetano e o Gil. Em 68 eu era presidente do DCE do Ceará e acabava de dirigir uma passeata onde houve tiro, cassetete, bomba de gás lacrimogêneo, corrida de polícia e eu ia à noite para a Faculdade de Direito para um debate num grande auditório, com Gilberto Gil. Nesse debate, aquela nossa geração das passeatas da UNE, questionava o movimento de Gilberto Gil e Caetano. E era um questionamento em que não existia uma interlocução, porque todos eles foram filhos da nossa geração e todos nasceram da Universidade: Caetano, Gil, Gal, Bethânia, Chico Buarque, Vandré. Nós começávamos a questionar aquele fenômeno: o Gil falava que o que ele estava produzindo era revolucionário e a gente dizia, por outro lado, que o revolucionário era a música “Roda Viva”, a música do Vandré e a do Chico. Vivíamos dentro da liderança da UNE aquela polêmica que existia no mundo artístico. Em 78, dez anos depois eu estava dando aula em um cursinho, ainda meio clandestino, porque eu não podia dizer que tinha sido preso político e o Serginho Groissman, quando chegou ao Brasil com o disco a que você se referiu, promovia shows e o Equipe era o único colégio em São Paulo que apresentava shows com o Caetano e com o Gil, sábado à noite. Normalmente eu conversava com o Serginho (foi nessa época que estabeleci uma relação de muita amizade com ele) e lhe disse que queria falar pessoalmente com o Gil e o Caetano. Terminou o show e, na conversa com o Gil, eu disse que tinha estado em 68 na Universidade Federal do Ceará, na Faculdade de Direito e que queria dizer: - vocês também tinham razão. Anos mais tarde, em 92 eu estava no Anhangabaú, com Caetano cantando para uma multidão uma música dos anos 60, do Tropicalismo, e um estudante, militante político de esquerda, me questionava porque eu estava ouvindo aquela música, se eu tinha com a mudança das minhas posições traído o que era a luta armada, o que era guerrilha. Eu tentava dizer para ele que o Caetano cantava aquela música que era universal, como cantava outras músicas de 92 que também eram universais. E eu procurava dialogar, mas não 238 houve jeito. Isso gerou um episódio em que ele foi detido pela guarda municipal e gritava que eu, que tinha lutado contra ditadura, que tinha sido preso político, o estava prendendo pela guarda municipal de Luíza Erundina. Era um diálogo difícil, mas terminou com ele me abraçando e chorando. Eu quero dizer com isso que a geração política dos anos 60 foi apartada num processo explosivo do ponto de vista político e do ponto de vista cultural. Quando tive a oportunidade de discutir direitos autorais, em 92, junto com Gilberto Gil, com Caetano, com Djavan, com Chico Buarque, com Paulinho da Viola, na casa de Chico Buarque, eu dizia: eu quero discutir uma parte aqui sobre o direito autoral, mas quero ter o direito de dialogar agora, como um cara que admira vocês. Estou colocando tudo isso para dizer que o Tropicalismo marcou a nossa geração política. Qual era o impasse da geração dos anos 60? Era uma geração libertária, essencialmente libertária em relação à família, em relação à universidade, em relação ao padrão cultural da época, ao status quo, à ditadura. O Tropicalismo, do ponto de vista cultural, era a sinalização do impasse, do ponto de vista da cultura. Nós, que fazíamos política, fomos gerados por um movimento cultural que nos antecipou, um movimento mundial e, no Brasil, nós fomos impulsionados por esse movimento, fomos filhos dele. Mas os impasses da nossa geração nos anos 60, com o Congresso de Ibiúna, com as grandes passeatas, com os primeiro confrontos armados, era o impasse de uma separação política da liderança da geração ’60 com o que a gente chamava a massa estudantil; e o Tropicalismo foi exatamente a sinalização deste impasse no plano cultural. Nós não entendíamos a universalidade do Tropicalismo: uma universalidade na forma e no conteúdo; e esse diálogo era muito difícil. Depois eu dizia para o Caetano e o Gil: - quando na cadeia cantávamos as músicas de vocês, os agentes da repressão batiam na gente, porque eles não queriam ouvir aquelas músicas, como eles não queriam ouvir as músicas do Chico Buarque. Uma maneira de afrontar os carcereiros, então, era cantar. E me lembro que o Gilberto Gil disse: - por isso eu te falei naquela época que a nossa postura era revolucionária, porque o Tropicalismo radicalizou no plano cultural. Na minha avaliação, aquela rebeldia ampla e irrestrita da geração política, geração dos anos 60, foi uma rebeldia que depois se materializou, inclusive, no padrão das organizações de esquerda: em puxar estátua do reitor com corda, em ocupar as universidades e colocá-las de cabeça para baixo. A ideia da rebeldia como um valor intrínseco a nossa geração teve no Tropicalismo uma correspondência com esse nível de universalidade. E, no meu entendimento, foi naquele momento, principalmente a partir do AI5, quando a geração libertária dos anos 60 optou pela luta armada, forçada por um processo político violento, terrorista, de repressão, de medo e de tortura. Essa geração foi para o “tudo ou nada” e foi colocada numa espécie de beco sem saída. O mais importante é que era uma geração que, a partir de um certo momento, lutava não pelos que deveriam existir no futuro, mas pelos que tinham morrido. Tínhamos que lutar porque tinham matado um companheiro, tínhamos que fazer a guerrilha porque tinham matado companheiros. A ideia libertária de um futuro, materializado na música “É proibido proibir”, materializou-se depois na nossa militância política; não numa liberdade para 239 pensar o futuro, já que tínhamos que lutar porque outros morreram. Era uma geração que pagava pelo que fizeram com a própria geração, e, nesse sentido, entendo que foi esse impasse, essa espécie de corte, que fez com que, por exemplo, nas vésperas do Congresso de Ibiúna, quando ia clandestinamente para São Paulo, para depois ser preso no dia 12 de outubro (eu já andava clandestino, pois tinha minha prisão preventiva decretada), de passagem clandestina pelo Rio de Janeiro, tentava entender aquele impasse no Festival de Música Popular, o famoso discurso de Caetano Veloso sobre a nossa geração, e aquele discurso estava antecipando uma crítica a uma posição autoritária de uma geração que nasceu contra o autoritarismo, quando ele fala que é “Proibido proibir”, diz: “- como é que vocês que querem fazer isso... como é que vocês que querem uma sociedade justa, como é que vocês que lutam contra a ditadura, como é que vocês querem representar o povo, têm uma postura assim?” Era um gritou que não chegou a nós, pois o que nos chegava no Congresso de Ibiúna era a música “Caminhando”, do Vandré. E nós vivíamos o centro desse processo de explosão na relação da música com a política. Nós acompanhávamos esse processo explosivo, mesmo quando estávamos na guerrilha e ficávamos no meio da selva ouvindo o rádio (pois só tínhamos rádio lá), as músicas que eram censuradas, mas ouvíamos na rádio de Cuba, na Voz da América, na BBC de Londres. A gente buscava encontrar uma volta a isso que você falou do passado, mas não era um passado, no sentido da canonização, que a gente adora como se fosse nicho, mas de um passado que é ao mesmo tempo passado e futuro. A gente voltava naquela música para encontrar o quê? Para encontrar, diante daquela hegemonia do Brasil “ame-o ou deixe-o”, de Dom e Ravel, a universalidade que representavam, exatamente, o Caetano e o Gil. E por que, quando essa geração retoma o processo de democratização e o processo de construção de utopia ela vai estabelecer um diálogo muito mais direto, muito mais frontal e transparente com a criação do Caetano, marca do Tropicalismo? Exatamente porque eu entendo que foi um movimento de rebeldia contra um engajamento político de uma geração musical e artística que estava umbilicalmente vinculada à geração política. Por isso, “Caminhando” era o hino da geração dos anos 1960. Era o hino para aquele momento, mas não era o hino para a universalidade que o Caetano colocou no movimento tropicalista. E foi exatamente esse corte, esse distanciamento, a marca principal desse fenômeno revolucionário que misturou forma e conteúdo numa reinterpretação de valores que, na clandestinidade, na repressão ditatorial, na tortura, nas prisões, nós não podíamos viver. No final, em meados de 68, já havia uma certa crise política naquele movimento exuberante de 67 a 68; quando acontece a prisão dos delegados de Ibiúna. O movimento estudantil de 67, 68, 69 já estava num descenso que aquela prisão acentuou. Quando veio o AI-5 a gente já estava no descenso, e aquele corte de uma vanguarda de um movimento estudantil com a base da universalidade. Esse corte a gente viveu de maneira crucial, porque nessa época, em que eu era da diretoria de UNE, não podia entrar na universidade de maneira legal, eu entrava clandestinamente e presenciava esse corte. Entendo que esse bisturi que foi usado do ponto de vista cultural, pela ditadura militar, através da repressão, da 240 censura e do exílio, as gerações futuras tentaram recompor na continuidade histórica, trazendo os valores do Tropicalismo para a sua universalidade, em que o belo universal, a felicidade, o prazer se incorporam na política de fazer, quando optamos, necessariamente, por uma questão de sobrevivência, pela clandestinidade, pela luta armada e depois pelas prisões. Eu costumo dizer que quem viveu a exuberância política e cultural dos anos 1960, viveu este funil de lutar pelos que morreram, e não pelos que viriam depois, que foi o que o Apolônio chama de protesto armado, e depois viveu os anos de destruição. Nós somos sobreviventes sim, e sobreviventes de um tipo especial, porque não é um privilégio, mas é uma responsabilidade. Depois, reconstruir este país e estar participando desta reconstrução que nós vivemos hoje, seja do processo democrático, seja da luta por igualdade social, por direitos sociais, são a marca desta continuidade e desta vinculação com a cultura que eu gostaria de deixar claro aqui para vocês. Só assim vale a pena, e muito a pena recuperarmos momentos históricos do nosso país. Por quê? Porque esses momentos históricos geraram uma força transformadora do presente e do futuro. E é essa continuidade que todo Estado repressivo, ditatorial e terrorista tenta cortar, porque essa continuidade constitui a existência individual e coletiva dos sujeitos que têm passado, que têm saudade, que têm presente, que têm futuro. Como nós vivemos hoje uma crise de esperança, como nos vivemos hoje uma crise de futuro, eu acho que é muito atual e importante participarmos deste evento e olhar para a obra dos protagonistas do Tropicalismo como a antecipação dessa ideia de que o belo, a felicidade, o prazer, a alegria têm que se incorporar a uma luta política revolucionária. A gente às vezes tinha dificuldade em imaginar como uma coisa tão exuberante, tão bela, virava dentro das organizações de esquerda uma coisa fechada, carrancuda, pesada, feia, sectária, agressiva, quando o processo libertário é um processo de irreverência, de rebeldia, de insubordinação. Quando eu dialogava sobre isso, em 78, com eles, lá no Equipe, eu dizia: -agora que eu entendo porque vocês foram os únicos que tiveram a sensibilidade de, no momento em que o “Che” morreu, comporem aquela música “Soy loco por ti, America”. Exatamente porque refletia, naquele momento, uma morte que a nossa geração não queria a derrota. Era uma geração tão cheia de esperança que não queria a derrota e foi exatamente através daquela simbologia que não era uma saudade no sentido do passado, era uma saudade no sentido do presente e do futuro. Assim, meu querido professor, vale a pena uma saudade com cheiro e com amor ao presente e ao futuro.

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(Anexo B: Depoimento - Fernando Gabeira)

Eu queria dizer que tenho uma dívida muito grande com o Tropicalismo. Na época em que o Tropicalismo aconteceu eu não o entendi. E não o entendi e fui daqueles pessoas dentro da esquerda que o consideravam um movimento irrelevante. Lembro-me que uma das coisas mais características daquele momento foi um debate que realizamos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sobre o filme “Terra em transe”. Eu era, entre todos os membros da mesa, o único que não gostou do “Terra em transe”. Mas, não gostei do “Terra em transe”, dizia eu para as outras pessoas (eram o Joaquim Pedro de Andrade, já morto, Hélio Pelegrino... não vou citar porque todos já morreram e eu com essas flores aí vou achar que também já morri). Mas na verdade o que nós discutimos no “Terra em transe”, naquele momento, foi justamente a proposta política do filme “Terra em transe”. Naquele momento, quando estávamos nos preparando para fazer a luta armada contra a ditadura militar, éramos talvez muito radicais e muito estreitos na nossa compreensão do mundo. Nós gostávamos de arte desde que a arte tivesse as nossas posições políticas. Mais ainda: nós gostávamos muito da arte desde que ela fosse um quase panfleto. Daí, por exemplo, o sucesso do espetáculo “Opinião”, onde a Maria Bethânia veio da Bahia cantar substituindo a Nara Leão e cantava o “Carcará”, que era uma música de protesto, e entremeava a música de protesto com vários dados sobre as mortes e a miséria. E tudo aquilo nós aplaudíamos com muita emoção porque era um momento em que nós revelávamos a nossa posição política quanto à ditadura militar. Nós éramos tão obcecados pela ditadura militar e pela necessidade de combate-la que fomos incapazes, por exemplo, no festival do Maracanãzinho, de compreender que a música de Tom Jobim chamada “Sabiá”, feita em parceria com Chico Buarque de Hollanda, era melhor do que “Para não dizer que não falei de flores”, do Geraldo Vandré. Nós aplaudíamos a música do Geraldo Vandré porque nós considerávamos que era uma música que conduzia à luta. Era uma música que levava à oposição contra a ditadura. E esse era praticamente o nosso único critério. Então hoje, trinta anos depois, quando eu passei a sofrer também várias das hostilidades que o Gil, Caetano e outros tropicalistas sofrem, quando passei, de uma certa maneira, a representar algumas atitudes políticas que não são bem entendidas... hoje eu me identifico e compreendo melhor o Tropicalismo. Portanto, essa minha intervenção é quase um pedido de desculpas histórico. Mas, naquele momento, se nós consideramos, por exemplo, a exposição que designou o Tropicalismo, “A Tropicália”, do Hélio Oiticica, que possivelmente será mencionada aqui pelo Xico, nós vemos que a afirmação do Tropicalismo ali era uma afirmação que podemos encampar hoje. Ele dizia o seguinte: “Eu quero combater essa visão universalista da cultura brasileira, como se ela fosse uma extensão da cultura norte-americana ou da cultura europeia. Nós temos os índios, temos os negros, temos esses componentes na nossa cultura, e isso é que faz, de uma certa maneira, a nossa identidade. Eles resistiram à ideia de serem pura e simplesmente uma cópia dos europeus”. 242

Então eu creio, se nós consideramos esse texto de Hélio Oiticica como um texto fundador, a base do Tropicalismo era absolutamente correta e hoje deveria ser repensada quando vivemos esse momento de globalização. Porque ela é absolutamente correta? Porque a questão da identidade é fundamental não só para o indivíduo como também para uma cultura. E essa identidade de um modo geral se faz no diálogo. Num diálogo permanente com outras culturas. E aqui no Brasil normalmente, a nossa identidade sempre se afirma em relação ou num diálogo com a cultura ocidental. A cultura ocidental é nossa referência. Foi assim também na Semana de Arte Moderna, quando nós decidimos que íamos comer a cultura ocidental e utilizá-la da maneira que quiséssemos. Tanto que o Tropicalismo é considerado, hoje, uma continuidade, uma continuação, da Semana de Arte Moderna de 1922 - uma nova ruptura da cultura brasileira. Tanto que uma das peças que marcaram aquele período foi precisamente “O rei da vela”, texto de Oswald de Andrade, que foi encenado pelo José Celso Martinez e que deu toda confusão na época. Repressão e contestação sobre a peça. Essa busca de identidade, essa busca do Brasil, o que é o Brasil, quem somos nós, porque nós somos diferentes e o que caracteriza a nossa diferença, no meu entender estava presente no Tropicalismo. Estava presente e era um afastamento da cultura ocidental. Era uma incorporação de elementos negros, uma incorporação de elementos indígenas, uma, de uma certa maneira, uma crítica da linearidade, do cartesianismo, de todas aquelas visões bem organizadas que nos vinham da Europa. Enfim, era uma explosão. Era uma explosão de brasilidades. Uma tentativa de localizar o que era a brasilidade. No entanto, se nós consideramos também as reações que houve ao Tropicalismo, nós vamos ver que essas reações são contra o progresso também. Porque ao mesmo tempo que o Tropicalismo reivindicava através de Hélio Oiticica a sua característica brasileira, a sua brasilidade, ao mesmo tempo ele tratava na música a batalha pela introdução da guitarra elétrica. Ali na introdução da guitarra elétrica nós estávamos cometendo - nós não, porque eu não era músico - mas os brasileiros que faziam estavam cometendo diante de outros brasileiros que também estavam interessados na questão da identidade, uma traição. Ali, a música para eles não era mais brasileira porque estávamos introduzindo um elemento tecnológico, um elemento da cultura norte-americana, que ia desfigurar e arruinar a identidade da nossa música. Então, praticamente, a grande crítica que se fazia ao Tropicalismo naquele momento também era essa: a introdução da guitarra elétrica. É um pouco como o Juruna mais tarde fez, trazendo o gravador para sua luta política. Quando Juruna trouxe o gravador para sua luta política de uma certa maneira estava continuando aquele gesto político de introduzir a guitarra elétrica na música popular brasileira. O Juruna é um índio. O gravador não estava no seu horizonte tecnológico. Mas uma vez que ele constatou que o gravador existia e poderia ter uma função no seu trabalho político, incorporou o gravador. Da mesma maneira, os músicos, sobretudo Os Mutantes, naquele momento, sabendo que a guitarra elétrica existia, que dava à música um enorme potencial e ampliava suas 243 possibilidades de uma maneira extraordinária, eles a incorporaram. Não importava a eles se era uma coisa de fora. E mais uma vez nós vemos aí esse diálogo entre o dentro e o fora. Na Semana de Arte Moderna era a antropofagia. Aqui, em 1967, já não era mais só antropofagia: era a afirmação de uma cultura brasileira mas também uma necessidade de incorporar uma série de elementos tecnológicos que não eram ainda típicos da indústria brasileira. Portanto, é uma inovação extremamente importante. Porque, naquele contexto político, nós não compreendemos bem o que se passava? Na verdade, nós queríamos panfletos bem lineares, bem cristalinos (“abaixo a ditadura” e “vamos para a luta armada”). É isso que nós esperávamos. E o que a música tropicalista trazia, sobretudo “Alegria, alegria” e depois “É proibido proibir” do Caetano Veloso, que foi vaiada num determinado momento, era uma coisa muito mais sutil. Os membros participantes do Tropicalismo, afirmam que eles não estavam interessados na política diretamente e estavam apenas fazendo uma afirmação estética. Mas a verdade é que o “É proibido proibir”, do Caetano Veloso, apareceu de uma certa maneira nos muros da França e foi uma das palavras de ordem do movimento de 68. Ele foi para os muros naquele momento em que os estudantes na França se rebelaram e fizeram todas aqueles demonstrações no Quartier Latin. O que significa talvez naquele momento, do ponto de vista político (não conversei com Caetano, não tive oportunidade), mas o que eu entendo é que do ponto de vista político o Caetano não era alienado e não ignorava o que estava se passando. É que ele queria dizer algo mais. Não queria expressar pura e simplesmente a revolta que nós estávamos preparando. A revolta que nós estávamos preparando não atingia os costumes, não atingia a arte, não atingiria a superestrutura cultural. Era destinada a derrubar a ditadura, ao passo que o movimento, na França, já expressava um momento muito mais avançado do capitalismo, em que os estudantes não se rebelavam apenas contra a falta de verbas e contra a falta de democracia. Eles colocavam questões novas: colocavam a questão da imaginação no poder, colocavam a questão do questionamento da arte tal como ela existia. Era um movimento de um país mais maduro do ponto de vista político e mais maduro do ponto de vista do próprio capitalismo. Portanto, na verdade, “É proibido proibir” era uma música política, e era uma música política talvez tão pobre quanto as outras músicas políticas colocadas naquele momento. O que ela tinha de diferença, na minha opinião, é que expressava uma palavra de ordem que não estava no horizonte mental dos estudantes brasileiros, que era a palavra de ordem anarquista “é proibido proibir”, quando na verdade nós estávamos vivendo ainda palavras de ordem tal como “só a luta armada derruba a ditadura”, “o povo organizado derruba a ditadura”, ou então “viva a guerra de libertação nacional”, “viva a guerra socialista”. Categorias diferentes que entravam - e o Caetano entrou com uma categoria totalmente nova - não estavam no horizonte que nós estávamos acostumados a pensar. Essa presença de uma posição nova também aparecia, ou de uma posição, não digo nova, mas de uma posição importante, aparecia no “Terra em transe” como uma proposta de luta armada. 244

No caso do “Terra em transe”, o que havia de revolucionário no filme era a forma como era dirigido, a maneira como era concebido, mas o filme desembocava numa proposta de luta armada. Eu me lembro que ironicamente eu fui o único contra a todos os outros foram a favor porque eu era contra a luta armada. Meses depois eu fui o único a entrar na luta armada e todos ficaram observando aquela situação. Talvez eu tenha sido contra o “Terra em transe” naquele momento porque ele tocava em alguma coisa que eu mais temia em mim, que era a decisão de partir para a luta armada. Uma decisão que eu acabaria tomando em seguida. Mas, eu quero apenas dizer que esses elementos foram muito importantes. Primeiro, uma tentativa de reestruturar e redefinir a cultura brasileira, de introduzir elementos tecnológicos que pela nossa visão estreita não precisava e não concebia como participantes da música popular brasileira. Mas havia também no Tropicalismo um terceiro elemento que mais tarde acabou se desdobrando e hoje ainda vemos também estilhaços dele. Era uma tentativa muito mais do Caetano que do Oiticica e muito mais dos músicos que dos pintores, ou dos outros artistas, do Zé Celso ou do próprio Glauber Rocha, de popularização. Os tropicalistas estavam procurando também alguma coisa que fosse absolutamente não séria, alguma coisa que de certa maneira sacudisse a estrutura mental europeia que os dominava. Acharam isso. Acharam na televisão também. Acharam na personagem do Chacrinha. Chacrinha era o carnavalesco. Ele apresentava uma característica muito importante da cultura brasileira que é carnavalizar certas situações, de transformar certas situações aparentemente sérias em situações risíveis. E o Chacrinha apareceu como uma possibilidade também de colocação da proposta tropicalista. Nesse momento, e foi um passo adiante, tornaram-se mais populares as músicas de Caetano e tornaram-se mais populares os baianos que chegavam ao Rio e que estavam começando a se estruturar. Nesse momento também eles procuraram uma imagem popular. Uma forma de dizer à população o que eles queriam dizer e que fosse rapidamente inteligível e não passasse por todas essas mediações teóricas que estou fazendo aqui. No programa do Chacrinha, eu me lembro, e vi também num livro do Luiz Carlos Maciel, a roupa do Caetano vestido de banana cantando no Chacrinha e ele jogando banana para o auditório, e, na porta da televisão vários caminhões distribuindo banana para o público. O que eles queriam dizer com aquilo? Primeiro, queriam popularizar a ideia do Tropicalismo. Segundo, queriam, de certa maneira, se aproximar do Chacrinha, mais tarde celebrizado na música do Gil “o velho guerreiro”, como Gil cantava em “Aquele abraço”. Ele fala do Chacrinha como “o velho guerreiro”, que foi um elemento que de uma certa maneira contribuiu com a luta deles e com as propostas que eles trouxeram. Então, naquele momento, o Caetano vai ao programa do Chacrinha vestido com uma roupa de banana, canta no programa e passa também a cada vez mais popularizar essa perspectiva tropicalista. Aí, nesse caso, já não tão mais preocupada com a busca desse conteúdo singular da cultura brasileira, mas uma tentativa de popularizar. Uma tentativa de mostrar à população o que era isso, o que era o Brasil. Então o Brasil não é sério, tal como o Chacrinha. O Brasil é a banana. E o Brasil é mais divertido, é mais animado, é mais interessante do que esses 245 caretas gostariam que fosse. Pelo menos era assim que eu sentia a mensagem. No entanto, tenho impressão de que, colocado assim, o Tropicalismo progressivamente, na medida em que procurou alguma coisa exótica que imediatamente comunicasse às pessoas o que ele era, progressivamente foi confundido pela sua forma. Progressivamente foi tomado pela sua forma e passou a ser também um maneira pura e simplesmente de rir, pura e simplesmente de se divertir, mas perdeu a força e o conteúdo contestador. Eu vejo hoje, e isso é que me interessa mais, quer dizer, eu já não me interesso tanto pelo Tropicalismo a não ser como me interesse pelos grandes momentos da histórica do Brasil, como me interesse pelos dois ou dez artistas que participaram, quase todos meus amigos, alguns pelos quais tenho uma grande simpatia. Na verdade o que me interessa hoje, o que essa mesa poderia discutir em “Tropicalismo e contexto político” não é só como o Tropicalismo se desenvolvia naquela época, as disputas que nós tínhamos não entendendo a mensagem indireta do Tropicalismo, nós que queríamos a luta armada. Na verdade o que nós podemos discutir é como o Tropicalismo pode nos ajudar a nos redefinirmos como cultura num momento de globalização. Eu noto, por exemplo, eu tenho escrito alguns artigos sobre isso, hoje estou muito mais atento, porque naquela época eu estava envolvido na luta armada, não podia me dar ao luxo de ficar tão atento a todos os movimentos culturais. Mas, hoje em dia, estou muito mais atento. Tive a oportunidade de escrever um pouco sobre os Mamonas Assassinas e o Falcão. Entendo na verdade o que os Mamonas são e o Falcão ainda é na cultura popular brasileira, uma tentativa de redefinição tropical do Brasil num contexto de globalização. Só que é uma tentativa, no meu entender, muito menos bem sucedida do que foi aquela tentativa há trinta anos. Porque se nós observarmos, eles mantêm diante do mundo aquele mesmo medo que o Oiticica tinha, que o Gil e o Caetano teriam, de serem golfados pela cultura do exterior. De serem pura e simplesmente repetidores de uma cultura que vem de fora. Eles estão buscando também sua identidade. Mas, no momento em que buscam a identidade procuram também dialogar naquele idioma, que é o idioma que passa a ser o dominante hoje: o inglês. Nós observamos que tanto no caso dos Mamonas quanto no caso do Falcão, com esse “I'm not dog não”, é uma tentativa talvez até um pouco infantil de comer o outro. Se nós observarmos essa antropofagia 70 e poucos anos depois da Semana de Arte Moderna, ela já não funciona mais. Ela já é uma antropofagia absolutamente infantil, de você pegar a língua inglesa como se o inglês fosse uma decorrência do português, como se a língua inglesa fosse fácil de falar desde que você utilize todas as categorias do português. Essa tentativa de comer dessa maneira não funciona, no meu entender. Esses movimentos, ao afirmarem uma identidade, dizem o seguinte: “olha, nós não somos o que vocês dizem; nós não somos os europeus e os americanos do norte que vocês querem fazer; os copiadores dos europeus e americanos; nós somos isso.” Mas no momento em que você diz “nós não somo suma coisa, somos outra” imediatamente cria uma série de normas e padrões através dos quais é preciso se definir. E hoje eu sinto que os artistas são muito mais livres de movimento. Eles são muito mais individuais. 246

Na medida em que o capitalismo avançou e na medida em que o individualismo avançou, acredito menos nesses movimentos e acredito mais numa identidade pessoal. Os indivíduos buscando a sua identidade, trabalhando a sua própria identidade. Mas acho difícil hoje nós encontrarmos um movimento que vai perpassar toda a arte, que vai orientar toda uma geração, e que vai funcionar. Mas o fato de eu achar difícil não significa que ele não pode existir. Portanto, acho importantíssimo que a gente aproveite o Tropicalismo. Acho importantíssimo que a gente aproveite a Semana de Arte Moderna. Como acho importante também que a gente aproveite o Concretismo e todos os outros movimentos que surgiram. Mas, hoje, se é que eu posso fazer (não quero cair no erro que eu caí há trinta anos de transplantar da política para a arte algumas ideias), mas hoje, por exemplo, o que nós vemos é uma decadência da vanguarda na política. A ideia de revolução como uma utopia, um processo acabado, com uma série de degradações através das quais chegaremos a um mundo absolutamente novo, está em decadência. Hoje não se luta mais contra o capitalismo apresentando um modelo acabado de alternativa. Não existe isso. Hoje nós lutamos por verdades parciais. Ninguém mais se considera o dono da verdade, ninguém mais trabalha com um script da história como nós trabalhávamos no tempo em que éramos marxistas, pois o marxismo era o script da História. Ele dizia que depois do capitalismo viria o socialismo e depois viria o comunismo. Todas as etapas já estavam planejadas. Não temos mais o script da História. E, ao não termos mais, a História não tem mais quem a conduza olimpicamente como vanguarda. Da mesma maneira creio que hoje, nas artes também, esse estilhaçamento (não sei se a expressão colocada tinha essa intenção) é uma realidade. Não existe mais uma vanguarda que diga “o caminho é por aqui”, ou “nós vamos fazer o Tropicalismo no teatro, no cinema, na música e nas artes plásticas”. Já não sinto mais isso. Não vejo mais possibilidades históricas para isso. Mas naquele momento havia. Tanto nós tínhamos a pretensão histórica de sermos a vanguarda do proletariado e conduzirmos o Brasil “nos amanhãs que cantam”, quanto eles também tinha a pretensão de construir ou de elaborar uma identidade cultural nacional e de oferecer a possibilidade para que outras pessoas se inspirassem também na sua experiência. O que nós víamos na trajetória tanto de Gil quanto do Caetano foram caminhos individuais, todos muito brilhantes, mas sem a pretensão de estarem juntos produzindo um novo movimento. O que não quer dizer que não possa surgir gente fazendo um novo movimento. Mas as condições históricas que permitem aquele movimento não estão mais dadas. E o que eu estou falando aqui hoje é uma outra coisa. As condições históricas que permitem a existência de um movimento globalizante no meu entender não estão mais dadas. Não é só que aquele movimento não pode se repetir. A minha ideia é que pouquíssimos movimentos teriam condições de se repetir hoje no contexto em que nós vivemos. Mas isso não quer dizer absolutamente que nós não devamos um grande respeito por esse trabalho, uma grande admiração, que nós não possamos colocar o Tropicalismo no mesmo pé em que foi colocada a Semana de Arte Moderna de 1922. Uma ruptura sensacional nas 247 artes brasileiras. Uma espécie de desencaretada violenta que permitiu que nós pudéssemos nos ver um pouco mais como somos de fato. Que pudéssemos nos livrar... mas em termos, porque amanhã vou para a Câmara dos Deputados de gravata. Eu tenho que me vestir como europeu. Tenho que entrar lá de gravata e fazer meu trabalho. Quer dizer, o Brasil ainda é muito careta e não foi sacudido em todas as suas possibilidades. Ainda há muitas possibilidades de sacudir o Brasil. Mas o que foi feito ali naquele momento foi fundamental. Tanto fundamental, e mais uma razão de nós nos sentirmos hoje culpados (no bom sentido) por não termos entendido, é que a própria ditadura militar compreendeu isso. A própria ditadura militar compreendeu que aquele movimento com a sua capacidade de unificação de uma visão brasileira, com a sua capacidade de contestação da seriedade, era um movimento ameaçador. E foi por isso também que a ditadura militar prendeu Gil, foi por isso que prendeu Caetano, foi por isso que prendeu Luiz Carlos Maciel, foi por isso que prendeu todas as pessoas que de uma certa maneira estavam ligadas a esse movimento; porque a ditadura reconheceu ali um adversário. Não era o mesmo adversário que nós imaginávamos. Na verdade esse conflito era um conflito muito duro para todos. Eu me lembro que o próprio Caetano quando foi vaiado cantando o “É proibido proibir” ficou muito sentido porque sabia que estava cantando alguma coisa de esquerda. Ele sabia que estava de certa maneira expressando a palavra de ordem mais avançada possível naquele momento. E no entanto ele absolutamente não era entendido. Ele era vaiado. Então ele disse “vocês são uns fascistas”, “vocês não entendem o que está se passando”. E ele tinha razão porque a visão de arte da esquerda brasileira, naquele momento, e, de modo geral, a visão de arte da esquerda, até hoje, é muito limitada. Eu me lembro agora que tive a oportunidade de discutir com a esquerda o filme “O que é isso companheiro?”. Vivi praticamente os mesmos problemas ao falar da autonomia da estética em relação à política. O que eu queria dizer ali, agora, foi a lição que aprendi naquele momento, o que aprendi há trinta anos eu estava tentando dizer agora. O que eu queria dizer era “Olha, os políticos e as pessoas que se consideram donas de uma boa visão política não tem o direito de dizer que uma obra de arte deveria seguir esse ou aquele caminho. Elas não têm o direito de impor a uma obra de arte o seu caminho, porque a estética tem a sua autonomia em relação à política. O que acontece muitas vezes é que a estética diz coisas políticas muito mais avançadas do que os próprios políticos. E você precisa passar dez, vinte, trinta anos para absorvê-la. Hoje, por exemplo, na minha condição de deputado federal, trabalhando com vários temas, eu me identifico e me inspiro talvez muito mais nas propostas do Tropicalismo do que nas propostas que nós apresentávamos naquela época. Quer dizer, o Tropicalismo foi a vanguarda de hoje sob muitos aspectos. E isso as pessoas não entendem: que muitas vezes as coisas acontecem no campo da estética muito antes de acontecerem no campo da política. Na minha luta eu vejo coisas acontecerem até no cotidiano. Eu costumo dizer que grande parte das minhas lutas começaram nos banheiros públicos. Por exemplo, a questão 248 homossexual. Você vai nos banheiros de antigamente e estava lá “o comandante Teles ama o radiotelegrafista Cardoso”, ou então “liberem a maconha”... Há anos estava nos banheiros públicos e depois é que chega realmente na mesa dos ministros. E também na nossa vida muitas vezes os grandes temas estão na estética e depois de muito tempo é que a política tem condição de absorvê-lo. Porque a política está presa Às suas determinações concretas, tão presa às suas determinações concretas, tão presa às suas correlações de força, tão presa à sua imagem que não pode ser abalada, que ela não pode entender esse mecanismo. Agora, trinta anos depois, eu digo que o Tropicalismo ainda ilumina muito das nossas posições políticas. Com a diferença, se nós voltamos aos textos de Hélio Oiticica, que naquele momento ele propunha, se eu entendo bem o que ele disse, ele falou “O Brasil precisa romper com a visão universalista da cultura”. Baseado nos Estados Unidos e na Europa. Acho que ele estava enganado com essa expressão universalista. Acho que ele queria dizer provinciana, porque na verdade a visão inspirada na Europa e Estados Unidos é provinciana se nós considerarmos uma visão nossa inspirada na Europa, Estados Unidos, na África e nos índios. Nós aí teríamos uma visão muito mais cosmopolita do que propriamente aquela visão. Então o que nós estávamos rompendo naquele momento não era com a visão universalista. Estávamos rompendo com uma visão provinciana, estávamos nos aproximando de uma visão mais universal. Me lembro no livro de Luiz Carlos Maciel, que eu li e creio que no livro do Caetano também há uma referência, que naquela época chamavam de som universal o som que fazia o Tropicalismo. Havia uma referência ao som universal. Hoje nós vamos à França, com um processo intenso de globalização e de intercâmbio cultural, e você localiza lá o som universal. O som universal existe, mas nele você já não distingue mais o país de origem. Você distingue o som. Os músicos estão juntos e fazem um som universal, mas você necessariamente não distingue o país de origem. Voltando ao texto do Hélio Oiticica hoje (eu tive que voltar para vir falar com vocês), o que eu sinto é que o que ele propunha como identidade nacional hoje está muito mais fragmentada porque hoje nós não reivindicamos só que o Brasil seja também negro e também índio. Temos uma reivindicação específica do reconhecimento da cultura negra e temos uma reivindicação específica do reconhecimento da cultura indígena na sua singularidade. “Viu como as coisas avançaram? E como as coisas avançam?” Essa coesão nacional hoje já começa a ser questionada também através da existência de culturas que pedem o mesmo que nós pedimos naquela época: o reconhecimento e a singularidade, culturas como a negra e a indígena. Portanto, o processo avançou muito mais. O Brasil continua sendo esse sincretismo, essa síntese de culturas, mas dentro dele algumas culturas já começam a reivindicar a sua singularidade. O tempo passou e avançou, e o Tropicalismo passa a ser também uma referência para todas essas lutas que estamos fazendo. Agora no Congresso vamos iniciar um seminário sobre a cultura negra. A presença da cultura negra no Brasil. Uma coisa que naquela época era impensável. Naquela 249

época o que nos era permitido era dizer apenas “os negros e os índios também são a cultura brasileira, os negros e os índios são parte da cultura brasileira que não se entregou”. Hoje vemos que é mais do que isso. Os negros e os índios dizem “somos partes da cultura brasileira, mas somos e reivindicamos a identidade e a singularidade”. Portanto, é extraordinário o caminho que tudo isso percorreu e, hoje, voltando atrás só para finalizar (eu tenho pena de falar muito), voltando atrás ao “É proibido proibir” e examinando a revolução tecnológica que nós assistimos nas comunicações e na indústria de computadores, eu sinto que a Internet é um produto muito mais forte do anarquismo que do socialismo científico que nós propugnávamos. A Internet hoje é um espaço onde o anarquismo existe e onde é realmente proibido proibir. Talvez o Caetano não percebesse naquela época, e talvez nem perceba hoje, que, quando ele falou “é proibido proibir” existiria um espaço onde realmente hoje é proibido proibir, que é a Internet: o suprassumo do desenvolvimento tecnológico e intelectual da humanidade. O suprassumo do intercâmbio de pessoas internacionalmente interessadas em trocar ideias e informações, é uma expressão do anarquismo. Portanto, mas uma razão pela qual o “É proibido proibir” tinha um conteúdo político mais avançado e mais promissor do que o que nós apresentávamos naquela época.

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(Anexo C: Manifesto Somos Um Rio: “Por um Rio mais justo, humano e feliz para todos”)

Por um Rio mais justo, humano e feliz para todos

O Rio avançou muito nos últimos quatro anos. E avançou para todos. Em todas as regiões. A cidade deixou de ser uma trincheira de embate político. A Prefeitura finalmente entrou em sintonia com o Estado e o Governo Federal. Com isso, a cidade voltou a ser gerida de acordo com os interesses dos seus cidadãos. A Zona Norte e a Zona Oeste foram valorizadas. A revitalização do Porto saiu do papel. A saúde e a educação melhoraram substancialmente.

Na cultura, o orçamento foi duplicado. A cidade ganhou teatros, cinemas populares e arenas. A economia criativa foi reconhecida como um setor estratégico. O Rio se tornou a capital que mais investe em audiovisual, com resultados expressivos. Os editais de fomento ao teatro, à dança, ao design, ao cinema, à música e às artes visuais movimentaram a cena carioca. A cidade recebeu da Unesco o título de Patrimônio da Humanidade.

Acima de tudo, o astral do Rio mudou. Radicalmente. A cidade voltou a ocupar as manchetes por suas virtudes. A população recuperou o orgulho de viver no Rio. A cidade partida começou a se unir. Trata-se de um momento especial, compartilhado por muitos. E a gestão de Eduardo Paes foi fundamental para isso. Ele tem a alegria, a energia e o entusiasmo que o prefeito de uma metrópole global como o Rio precisa ter.

Ainda há muito por fazer. Os Jogos Olímpicos de 2016 abrem um vasto rol de oportunidades. O Rio tem tudo para se consolidar como o principal polo de economia criativa da América Latina. Podemos (e devemos) expandir o acesso ao consumo e à produção de bens culturais, com novos cinemas populares, arenas, bibliotecas, pontos de cultura, praças do conhecimento e teatros. Podemos (e devemos) ter uma cidade mais justa, humana e feliz.

Por tudo o que realizou desde 2009, pela capacidade de trabalho e de diálogo que demonstrou, e por sua conduta ao longo de vinte anos de vida pública, Eduardo Paes é o nome mais indicado para liderar o Rio nos próximos quatro anos. Somos cidadãos cariocas. Somos apaixonados por esta cidade. Somos um Rio. E queremos a reeleição de Eduardo Paes.

Adailton Medeiros Afonso Tostes

Adair Rocha Alcione

Adil Tiscatti Alessandra Reis

Adriana Rattes Alex Varella

251

Alicinha Silveira Betse De paula

Aline Barros Bianca Costa

Almir Guineto Bianca de Felippes

Aluizio Abranches Binho

Amir Haddad Brenda Valansi

Ana Botafogo

Ana Lúcia Pardo Bruno Wainer

Ana Luísa Lima Buchecha

Ana Maria Andrade de Laet Cacá Diniz

Ana Veloso Cahê Rodrigues

André Breitman

André Midani Carla Esmeralda

André Pellenz Carla Faour

Andrucha Waddington Carla Niemeyer

Aniela Jordan Carlinhos de Jesus

Anna Bella Geiger Carlos Alberto Chateaubriand

Antônio Carlos Fontoura Carlos Alberto Messeder

Antonio Cicero Carlos Diegues

Antônio Grassi Carlos Fernando Andrade

Antônio Pedro Carlos Gregório

Antonio Pitanga Carlos Janan

Armando Mariante Carvalho Carlos Lyra

Arnaldo Niskier Carlos Maximiliano Mafra de Laet

Augusto Casé Carlos Moletta

Batman Zavareze Carlos Prazeres

Beatriz Caiado

Bebel Gilberto Carmen Mello

Belo Cesar Augusto

Bernardo Amaral Chacal

Beth Carvalho Charles Möeller

Beto Silva Christian de Castro

252

Christiane Torloni Eliane Costa

Christina Gabaglia Penna Elisângela Valadares

Clara Sverner Elymar Santos

Claudia Cabral Emilio Kalil

Claudia Saldanha Eva Dóris Rosenthal

Cláudio Botelho Evandro Mesquita

Claudio Domenico Evangelina Seiler

Claudio Manoel Fábio Lima

Clélia Bessa Fábio Porchat

Cristina Braga Felipe Bronze

Cristina Ferrão Felipe Llerena

Dalal Achcar Felipe Murray

Daniel de Souza Felipe Prazeres

Daniela Christoffer

Daniela Guaraná Fernando Libonati

Daniela Thomas Ferreira Gullar

David Zylberstein Flora Gil

Deborah Secco Frederico Reder

Didu Nogueira Gabrielzinho do Irajá

Diler Trindade Geiza Nogueira

Diogo Nogueira Gilberto Braga

DJ Saddam Gilson Martins

Dodô Brandão Glaucia Camargos

Domingos Oliveira Gloria Demetrio

Dudu Nobre Gringo Cardia

Eduardo Lages Grupo Bom Gosto

Eduardo Wotzik Grupo Clareou

Eleazar de Carvalho Filho Grupo Fundo de Quintal

Eliana Braga Grupo Revelação

Eliana Caruso Gustavo Ariani

Eliana Sampaio Guti Fraga

253

Hamílton Casé Julinha Serrado

Hamilton Vaz Pereira Júnior Perim

Haroldo Costa Karen Acioly

Heloisa Buarque de Hollanda Lauro Cavalcanti

Heloisa Seixas Lawrence Magrath

Henrique Tavares Lena Brito

Iafa Britz Lenny Niemeyer

Ilda Santiago Leo Feijó

Irene Ferraz Leonardo DouradoLeonardo

Isaac Karabtchevsky Monteiro de Barros

Ito Melodia Leonel Kaz

Ivan Fortes Letícia Fontoura

Izabel Jaguaribe Liège Monteiro

Jair de Souza Ligia Canongia

Jal Guerreiro Lilian Barreto

Joana Henning Línox

João Louise Cardoso

João Guilherme Ripper Luciana Boal Marinho

João Jardim Luciano Figueiredo

João Luiz de Souza Lucinha Araújo

João Niemeyer Lucy Barreto

João Sattamini Lui Farias

Joaquim Vaz de Carvalho Luís Carlos Melim

Jorge de Sá Luís Felipe Murray

Jorge Peregrino Luis Marcelo Mendes

Jorge Salomão Luís Vidal

Jorginho do Império Luísa Chaves de Melo

José Bechara Luísa Jucá

José Mauricio Machline Luiz Calainho

José Paulo Monteiro Soares Luiz Carlinhos

Juliana Diniz Luiz Carlos Barreto

254

Luiz Eduardo Índio da Costa Maria Luísa Mendonça

Luiz Fernando Guimarães Maria Luísa Noronha

Luiz Fernando Lobo Maria Luiza Nobre

Luiz Henrique Severiano Ribeiro Maria Zilda

Luiz Mariana Zahar Ribeiro

Luiz Roberto Cunha Mariza Leão

Luiz Severiano Ribeiro Neto

Luiza Marcier Marquinhos de Oswaldo Cruz

Magaly Cabral Martha Ribas

Magda Botafogo Martinho da Vila

Malu Barreto Mart'nália

Maneco Quinderé Mary Marinho

Marcelo do Rio Maurício Andrade Ramos

Marcelo Madureira Mauricio Baia

Marcelo Pies Mauro Diniz

Márcia Dias Mauro Farias

Márcia Milhazes MC Anitta

Márcio Garcia Miguel Falabella

Marcio Kieling Miguel Faria Jr.

Márcio Libar Miguel Pinto Guimarães

Marco Altberg Mini Kerti

Marco Aurélio Marcondes Miriam Dauelsberg

Marco Nanini Monarco

Marco Rodrigues Murilo Salles

Marcos André Carvalho Nelson Pereira dos Santos

Marcos Didonet Nelson Rodrigues Filho

Marcos Frota

Marcos Sampaio Ney Latorraca

Marcus Montenegro Noca da Portela

Maria Helena Karabtchevsky Olga Campista

Maria Juçá Olga Dalsenter

255

Oscar José Gonçalves Ricardo Amaral

Oscar Niemeyer Ricardo Cota

Oskar Metsavaht Ricardo Cravo Albin

Paula Barreto Ricardo Kosovski

Paula Sattamini Ricardo Levisky

Paulo Casé Ricardo Nauemberg

Paulo Halm Ricardo Rangel

Paulo Herkenhoff Robert Guimarães

Paulo Mendonça Roberta Medina

Paulo Niemeyer Roberto Berliner

Paulo Thiago Roberto Faith

Paulo Venâncio Filho

Paulo Vidal Roberto Medina

Pedro Buarque de Hollanda Roberto Menescal

Pedro Ernesto Roberto Minczuck

Pedro Geiger Roberto Tibiriçá

Pedro Pederneiras Rodrigo Bittencourt

Pedro Rovai Rogê

Perfeito Fortuna Romaric Büel

Philip Carruthers Rômulo Costa

Preto Jóia Rosa Maria Araújo

Priscilla Rozenbaum Rosana Lanzelotte

Rafael Dragaud Rosane Svartman

Raquel Coutinho Sandra de Sá

Raul Mourão Sandro Chaim

Regiana Antonini Sérgio Besserman

Regina Miranda Sérgio Cabral

Renata Almeida Magalhães Sérgio Rezende

Renata Boldrini Sérgio Sá Leitão

Renatinho Partideiro Seu Jorge

Renato Ferreira Sidney Sampaio

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Sílvia Rabello

Sílvio Guindane

Sílvio Viegas

Siomara Tauster

Steffen Dauelsberg

Sylvia Sattamini

Tadeu Aguiar

Tania Brandão

Tia Surica

Tim Rescala

Tizuka Yamasaki

Toni Garrido

Toni Platão

Tuca Moraes

Vanda Klabin

Vera Niemeyer

Vicente Amorim

Vik Muniz

Vilma Lustosa

Vinicius Daumas

Viviane Matesco

Walkiria Barbosa

Washington Fajardo

Zeca Pagodinho

Zezé Motta

Zilka Fortes

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