Desigualdade E Dimensões Culturais Das Trajetórias Juvenis Em Favelas
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1 E os meninos da rua C cresceram: desigualdade e dimensões culturais das trajetórias juvenis em favelas Felícia Picanço1 INTRODUÇÃO No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, as favelas amalgamaram desigualdades socioeconômicas historicamente consolidadas, elementos de geografia social. alianças entre segmentos policiais, poder político e poder econômico coma venda de drogas e armas e produziram uma instituição social: o tráfico de drogas. Desde os anos 1980, com a entrada da cocaína e das armas de fogo modernas no mercado de drogas e ilegal, um novo padrão de organização e violência foi sendo estabelecido. envolvendo a formação de facções, que disputavam territórios entre si, com a polícia e com a população (Zaluar e Alvito, 1998; Leeds, 1998; Misse, 1999). Ao longo do tempo, o tráfico foi se constituindo como uma instituição capitalista e burocrática, com regras, cargos e hierarquias, voltada para a produção do lucro e do domínio do território exercido por meio do poder armado, do monopólio da violência nas localidades, de estratégias de defesa e ataque e, em muitos casos, da liderança carismática, da mediação de conflitos na população e assistencialismo. À essa intrincada teia somam-se as características específicas da geografia, das lideranças e do poder policial e político local, resultando em distintas configurações do tráfico de drogas conforme os territórios onde exerce o domínio e o poder. A formação das facções emerge das disputas por poder e comando entre os próprios traficantes, a partir de uma rivalidade cruel e extremamente violenta. Isto culminou na formação de três grandes facções que dividem e disputam territórios dentro de favelas, bairros e presídios da cidade do Rio de Janeiro. As disputas pelos territórios impuseram às facções a necessidade de um maior estoque de armas e a participação em conflitos armados, bem como levaram ao encastelamento e à ramificação dos traficantes dentro dos territórios, mediante a construção de obstáculos para o acesso de veículos, a apropriação de casas em áreas em posições estratégicas, entre outros controles. A complexificação da estrutura do tráfico, que demanda o envolvimento de muitas pessoas; o sigilo e a confiança requeridos; os ganhos de dinheiro, prestígio e poder; os valores da honra e da moral; e as políticas de segurança pautadas no 1. Professora do Departamento de Sociologia e da Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O artigo foi escrito como notas exploratórias do trabalho de campo da pesquisa ,,,,,, que contou com o financiamento do CNPq e está em fase final de redação do relatório. 2 enfretamento armado tornaram as disputas entre os traficantes, e entre os traficantes e a polícia, mais violentas e frequentes. A favela sob cerco2 econômico, social e simbólico tornou-se ambiente propício para o desenvolvimento dos heróis e das celebridades locais, fundados no poder das armas e, em alguns casos, no carisma, na oferta de presentes, na realização de grandes festas, e em pequenos benefícios locais e individuais. Tais dinâmicas produziram uma nova representação social sobre a favela, bem distante das representações dos anos 1950, 1960 e 1970 (Valladares, 2005). A favela passou a ser vista como lócus de pobreza e violência insolúveis, fonte de todo o mal que assola a cidade do Rio de Janeiro, e seus moradores foram estigmatizados como população de risco, vulnerável e perigosa. Na última década, esse modelo sofreu fortes abalos. Do lado das práticas ilegais e criminosas, o abalo se deu com a entrada das milícias na disputa dos territórios menos protegidos ou menos dominados pelo tráfico; a intensificação das disputas pelos territórios; e a queda na lucratividade, com a entrada maciça das drogas sintéticas. Do lado do Estado, se gestou uma nova política de segurança pública baseada na instalação das unidades de polícia pacificadora (UPPs) nas favelas a partir de 2008. As UPPs foram apresentadas à sociedade como um projeto de policiamento “elaborado com os princípios da polícia de proximidade”, visando à “retomada permanente de comunidades dominadas pelo tráfico”. 3 A “pacificação” produziu mudanças centrais no cotidiano e na lógica de sociabilidade destas comunidades, e na dinâmica e na estrutura do tráfico de drogas. Tais mudanças se tornam visíveis muito mais pelas denúncias de abusos que por efetiva capacidade de resolução de conflitos e de construção de um novo modelo de gestão. A literatura sociológica e antropológica produzida a partir de e sobre o contexto descrito vem se debruçando desde os anos 1980 sobre o mundo do crime, os bandidos e o mercado ilegais de narcóticos na cidade. Os autores que ganharam projeção por estudos empíricos de grande porte, tendo produzido suas chaves interpretativas ainda nos anos 1990, o fizeram com uma questão de fundo que Misse (1999) conseguiu exprimir com muita clareza: enquanto a disseminação do mercado de drogas nas grandes cidades do mundo incidiu no aumento da taxa de crimes violentos ainda na década de 1970, e depois decaiu ou se manteve relativamente estável, no Rio de Janeiro este fenômeno não ocorreu. Soma-se a isso o aumento progressivo da visibilidade da violência, do sentimento de insegurança e da sensação de risco iminente de ser vítima (Machado da Silva, 2008). 2.Referência ao título do livro organizado por Machado da Silva (2008): Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. 3.Os termos entre aspas são utilizados pela polícia, conforme exposto no site da UPP, disponível em: <http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp>. 3 Misse (1999; 2008) responde à questão acionando dois conceitos ou noções: acumulação social da violência e sujeição criminal. Machado da Silva (1999; 2004; 2008; 2011) vai ao longo dos anos sofisticando sua chave interpretativa por meio do conceito de sociabilidade violenta. Zaluar (1985), pioneira no estudo etnográfico do tema, revirou os espaços e encontrou conexões fundamentais com as disposições de uma hipermasculinidade dos bandidos. Segundo Misse (2008), no Brasil, sempre houve uma justificação habitual para a eliminação física de criminosos comuns, mesmo sem a marca da periculosidade. Isto revela uma tendência a substituir a punição do crime pela punição do sujeito, ao qual é imputado um caráter específico e fixo. O processo de acumulação social da violência, que vem ocorrendo em especial no Rio de Janeiro desde os anos 1950 (Misse, 2008), produz uma afinidade entre certas práticas criminais, especificamente aquelas que provocam um sentimento de insegurança na vida cotidiana das cidades, e tipos sociais de sujeitos socialmente identificados pela marca da condição de pobreza, cor da pele e estilo de vida. O resultado é que os criminosos portadores destes marcadores não são apenas criminosos,mas marginais, violentos, bandidos (Misse, 2010). Os indivíduos que se encontram nas camadas mais pobres são aqueles que correm os maiores riscos de ser atingidos pela sujeição criminal, ou seja, de ser e se reconhecer como bandidos. A sujeição criminal é definida, então, como um processo social pelo qual identidades são construídas e atribuídas para habitar adequadamente o que é representado como um mundo à parte: o mundo do crime, no qual há, então, reprodução destes tipos sociais representados como criminosos, os bandidos (Misse, 1999). Misse procura deste modo, caminhar além dos desafios teóricos provocados pelas teorias do sujeito, do rótulo e do estigma (Becker, Goffman etc.) em, pelo menos, duas direções. Primeiro, enquanto a teoria da rotulação está sustentada pela perspectiva interacionista, o novo conceito busca articular a ação e a estrutura: a sujeição criminal é produto de um longo processo sócio-histórico definidor das normas sociais (componente estrutural) e da formação de identidades e práticas (componentes interacionais) (Teixeira, 2009; Werneck, 2012). Segundo, incriminação e sujeição criminal são vistas como distintas. A incriminação é a tipificação penal, que estabelece o rótulo de criminoso para aquele que se enquadra nos tipos de comportamentos desviantes descritos no código penal em função do desvio da regra. A sujeição criminal é quando a incriminação fixa-se no sujeito. É um tipo específico de incriminação, na qual o criminoso se torna um bandido porque é visto e se percebe como tal, mas nem todo criminoso é percebido (ou se percebe) como bandido (Teixeira, 2009). Em outra perspectiva, Machado da Silva (2011) argumenta que a violência se tornou uma linguagem da sociabilidade da cidade: linguagem em sentido amplo, que 4 configura repertórios de ação, de interpretação e de interação; portanto, prática. Dito de outra forma, a representação social da violência urbana, baseada na regularidade das ameaças à integridade pessoal e patrimonial dos moradores da cidade do Rio de Janeiro, produziu uma forma de vida social na qual a ordem legítima não entra como referência. Nesse sentido, a violência urbana tanto age como categoria de entendimento e referência para modelos de conduta como está no centro de uma formação discursiva que expressa uma forma de vida constituída pelo uso da força como princípio organizador das relações sociais (Machado Silva, 2008). Como linguagem, a sociabilidade violenta se torna um princípio estruturante, daí que imprime uma dimensão integrativa à violência, isto é, ela organiza e dá sentido às práticas dos sujeitos. A violência já não pode ser lida dentro das categorias de crime ou desvio, já que é um princípio estruturador de práticas, em especial nas camadas mais pobres. Segundo Zaluar (2012), enquanto Machado opõe a sociabilidade predominante entre pobres ou favelados ora à ideologia burguesa, ora à ordem convencional e formal, Misse sugere uma dicotomia entre os crimes dos ricos e os crimes dos pobres, defendendo a associação de certo tipo de criminalidade com certos modos de operar o poder das classes subalternas “marginalizadas”. Por diferentes vias, os autores ignoram ou negam a moralidade ou o etos predominante entre trabalhadores pobres, negando, assim, divisões internas do proletariado urbano relativas à moralidade e ao modo de operar o poder.