QUE “NEGRO” É ESSE NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? UMA ANÁLISE SOBRE O JEREMIAS DE MAURÍCIO DE SOUSA

Elbert de Oliveira Agostinho

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Carvalho Castro

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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QUE “NEGRO” É ESSE NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? UMA ANÁLISE SOBRE O JEREMIAS DE MAURÍCIO DE SOUSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

Elbert de Oliveira Agostinho

Banca Examinadora:

______Presidente, Professor Dr. Alexandre de Carvalho Castro (CEFET-RJ)

______Professora Dra. Maria Cristina Giorgi (CEFET-RJ)

______Professora Dra. Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ)

SUPLENTES

______Professor Dr. Fábio Sampaio de Almeida (CEFET-RJ)

______Professora Dra. Marcele Linhares Viana (UFRJ) ‘

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ

A275 Agostinho, Elbert de Oliveira Que “negro” é esse nas histórias em quadrinhos? : uma análise sobre o Jeremias de Maurício de Sousa / Elbert de Oliveira Agostinho.—2017. 184f. : il. (algumas color.) ; enc.

Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2017. Bibliografia : f. 180-184 Orientador : Alexandre de Carvalho Castro

1. Negros – identidade racial. 2. Histórias em quadrinhos. 3. Jeremias (Personagem fictício). 4. Dialogismo (Análise literária). 5. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975. I. Castro, Alexandre de Carvalho (Orient.). II. Título.

CDD 305.896081

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AGRADECIMENTOS

A construção de todo o caminho que se conclui com a finalização da dissertação, é um momento no qual esbarramos com muitas pessoas, existem as que de alguma forma nos presenteiam com novas referências bibliográficas, e as que se tornam importantes por um abraço, ou um aperto de mão. Então, seria elementar (como diria Sherlock Holmes) compreender que esse momento de agradecimento, apresenta-se como uma prática um tanto quanto injusta, já que as poucas palavras apresentadas aqui não serão suficientes para contemplar todos os que de alguma maneira contribuíram para este trabalho. Mas ainda sim, apresenta-se aqui uma tentativa. Inicialmente desejo agradecer a Deus, por ampliar minha intelectualidade, e ouvir minhas orações nos momentos que pareciam impossíveis sonhar com a possibilidade de estar no mestrado. Agradeço por ter me dado forças, e me fazer vislumbrar caminhos que vão além da graduação. Agradeço a meus pais. Obrigado Mãe por tornar-se o exemplo acadêmico no qual me inspirei desde os momentos em que fazia trabalhos da faculdade e corrigia provas no horário em que todos dormiam, você nunca desistiu, e de maneira nenhuma eu faria o contrário. Obrigado Pai, por me ensinar a ser exemplo de homem, e por me chamar de "mestre" desde o momento em que comentei que consegui entrar no curso de mestrado, saiba que o conhecimento que pude hackerar de você não está em nenhum livro. Agradeço a minha esposa, Vivian Ramos Santos Agostinho, por dividir comigo a jornada do herói, e enfrentar de mãos dadas os possíveis inimigos, compreendendo os momentos em que era necessário me colocar afastado, enclausurado nas cavernas epistemológicas, onde nada se ouve, apenas se escreve. Saiba que você é minha Heroína. Agradeço também, a alguns "sacerdotes do saber", que me apresentaram ferramentas para cavar mais fundo, e pensar e repensar práticas de pesquisa. Ao professor Alexander Martins Viana, meu muito obrigado, por ser o primeiro a me ouvir dizer: "quero estudar a representação do negro nos quadrinhos" e me propor o primeiro repertório bibliográfico, me levando a ter mais sede sobre os estudos culturais e a questão do negro na sociedade. A professora Ana Paula Ribeiro, que me fez refletir sobre a identidade negra nas narrativas cinematográficas, e participou de todo o processo de pesquisa, indicando possíveis caminhos, e questionando possíveis equívocos conceituais deste aspirante a escritor. A professora Alyxandra Gomes por conversar comigo diretamente da UFBA, e discutir sobre representação e representatividade negra, sempre elucidando: “Precisamos de mais Mestres e Doutores Negros”. A professora Cristina Giorgi, que chegou de repente, como um personagem que daria um tom a trama, levando assim a história a um clímax, obrigado por assistir minhas apresentações em eventos e congressos, por se disfarçar de coorientadora, e ainda sim manter sua identidade secreta. Agradeço ao professor Alexandre de Carvalho Castro, meu orientador, em toda minha trajetória de vida conheci mestres fictícios, como o Mestre Yoda (Star Wars), Mestre dos Magos (Caverna do Dragão), Mestre Kami (Dragon Ball Z) e o Mestre Ancião (Cavaleiros do Zodíaco), mas não pude me aproximar de nenhum deles, você Alexandre Castro,

3 realmente reorganizou as possibilidades na qual eu pudesse caminhar, me levando ao conhecimento do Dialogismo, conceito no qual eu desenvolvi minha dissertação, a partir de suas sugestões, pude compreender a importância de aprimorar e ter domínio das questões acerca de minha pesquisa, meu muito obrigado por suas orientações acadêmicas, e seus conselhos sobre a vida. Saiba, como enunciava em todos os e-mails " Você é meu Mestre". Agradeço também a todos os amigos que me acompanharam nessa trajetória, aos que conheci no PPRER, e aos que já faziam parte de minha vida. Agradeço a minha diretora Silvia Meneses por me apoiar em todos os sentidos, e me colocar como um exemplo para os outros professores da escola Tabernáculo Educacional. E em especial agradeço a meus alunos, todos vocês são importantes, vocês são meus super-heróis dos quadrinhos. Então, "se grandes poderes trazem grandes responsabilidades", me torno responsável aqui por todo conhecimento que adquiri nesta jornada, e mais uma vez meu muito obrigado.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo iluminar práticas discursivas que aludem às identidades negras, no Brasil, tendo como ponto de observação o personagem negro Jeremias criado por Maurício de Sousa na década de 1960, e presente nas narrativas atuais da Turma da Mônica. A pesquisa propõe uma abordagem investigativa, observando narrativas nas quais o personagem aparece de forma mais efetiva, verificando que o personagem negro de Maurício de Sousa oscilou entre posições de coadjuvante, figurante, e protagonista temporário, sem assumir uma posição explícita e efetiva de denúncia do racismo e da promoção da igualdade racial.

Palavras-chave: Bakhtin; Dialogismo; Relações Étnico-raciais; História em Quadrinhos; Indústria Cultural

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ABSTRACT

This work aims to illuminate discursive practices that allude to black identities in Brazil, having as a point of observation the black character Jeremias created by Mauricio de Sousa in the 1960s, and present in the current narratives of the Monica's Gang. The research proposes an investigative approach, observing narratives in which the character appeared more effectively, verifying that the black personage of Mauricio de Sousa oscillated between positions of assistant and temporary protagonist, without assuming an explicit and effective position of denouncing the Racism and the promotion of racial equality.

Keywords: Bakhtin; Dialogism; Ethnic-racial relations; Comics; Cultural Industry

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Jeremias, candidato a presidente do clubinho da turma. Revista Cebolinha. São Paulo: Panini, n°30,jun. 2009. (p.58)

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SUMÁRIO

Uma Dissertação em Quadrinhos...... 9

Introdução...... 11

Recordatório...... 14

1. Referencial Teórico e Metodologia de Estudo...... 18 1.1 Análise Bakhtiniana...... 21 1.2 O Conceito de Indústria Cultural...... 26 1.3 O Desenvolvimento Histórico dos Syndicates...... 29

2. O Cenário Brasileiro...... 36 2.1 A produção Cultural de Maurício de Sousa...... 41 2.2 Maurício de Sousa Produções (Ltda)...... 46

3. Periodização – Maurício de Sousa Produções...... 49 3.1 Era dos Esboços (1947- 1961) ...... 63 3.2 Período Pré-Turma (1961 – 1970) ...... 76 3.3 Período Turma (1970 – 2008) ...... 90 3.4 Período Pós-Turma (2008 – 2016) ...... 129

4. Conclusão...... 176

5. Referências Bibliográficas...... 180

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Uma

Dissertação

em

Quadrinhos

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Introdução

Os estudos relacionados a construção, inserção e manutenção da identidade negra sempre me instigaram. Primeiramente porque eu me compreendo como negro, e a maneira como eram construídos os diálogos, os personagens, e os papéis que estes ocupavam na narrativa televisiva, cinematográfica, teatral e até nas histórias em quadrinhos me causavam incômodo. Meus questionamentos giravam em torno da reprodução massiva e posições específicas em que o personagem negro deveria ocupar, ou seja, eram perceptíveis mecanismos comunicacionais de estereotipagem. Papeis subalternos e práticas racistas, recortes pontuais direcionados a identidade negra me levaram a possíveis investigações, tendo como objetivo compreender os motivos de tais repertórios culturais, e suas problemáticas em relação as questões etnicoraciais. A partir destas perspectivas iniciais comecei a pesquisar de maneira mais ampla tais questões, colecionando bibliografias que discutissem mídia e racismo, os objetivos dos estereótipos, o papel da imagem, do discurso e da representação, ou seja, um arsenal particular que me permitisse pensar sobre a posição do negro nas narrativas midiáticas. Foi possível observar que os estudos se debruçavam principalmente pelas questões televisivas, cinematográficas e teatrais. Ao procurar pesquisas sobre negros e histórias em quadrinhos percebi algumas lacunas, então, reorganizei os conceitos, até então absorvidos, e me permiti discutir sobre aspectos representativos da identidade negra, tendo como ponto de observação as histórias em quadrinhos. Propondo diálogos entre as posições que os personagens negros são articulados e as leituras de histórias em quadrinhos, tive contato com a obra “O Gênio e as Rosas (2010)”, uma narrativa construída por Maurício de Sousa e Paulo Coelho, que em uma história intitulada “Conversando com o Mal”, a figura maligna era representada por um personagem negro que reunia uma série de características que fazem parte do imaginário construído em torno do negro, tal leitura me levou a uma abordagem investigativa tendo como referência as narrativas da Turma da Mônica. Tendo as revistas produzidas pela Maurício de Sousa Produções como bibliografia, foi possível identificar dois personagens negros (Pelezinho e Ronaldinho Gaúcho), entretanto, optou-se por questionar tais protagonismos, pois, esses personagens foram criados em contextos específicos para ganhar mercados. Logo, ainda no processo

11 de pesquisa, me deparei com Jeremias, personagem construído na década de 1960, e ainda presente nas narrativas atuais da Turma da Mônica. Iniciei, então, uma espécie de inquérito sobre esse personagem, verificando seu status não fixo, pois, o personagem Jeremias flutua entre protagonismos temporários, coadjuvantes, figurantes. Localizando suas posições, e verificando as relações dialógicas entre as identidades negras no Brasil, não esquecendo de averiguar o papel da indústria cultural neste processo. Inicialmente foi possível notar que no decorrer dos cinquenta e seis anos de existência do personagem, sua palheta de cor originalmente pintada de nanquim, foi adquirindo um tom marrom, e que o personagem era deslocado para narrativas que tinham o seguinte objetivo: Precisa-se de um negro. Então, observou-se que Jeremias tinha posição cativa em narrativas sobre a escravidão do Brasil e cenários africanos, além dessas histórias, sua presença era esporádica, quase inexistente. Uma peça que representava a diversidade dentro de um grupo de histórias em quadrinhos conhecida em toda a sociedade brasileira, e distribuída em alguns países do mundo. Logo, existia um negro nas histórias da Turma da Mônica, entretanto, tal dado não apresenta-se como suficiente. Em suma, a abordagem que se constitui tal trabalho apresenta-se como uma proposta de desvendar as representações imagéticas desse personagem, levando em consideração o aspecto discursivo das histórias em quadrinhos, revelando assim práticas de manutenção do papel do negro na mídia brasileira, evidenciando todo um debate ligado a maneira que a indústria cultural condiciona práticas de estereotipagem, valorizando a importância de se rediscutir o cenário em que são apresentadas as relações etnicoraciais e seus dialogismos no cenário sócio-cultural brasileiro. Ou seja, diante de todos estes apontamentos, configura-se o objetivo desta dissertação: analisar as relações dialógicas implicadas no personagem Jeremias, de Maurício de Souza Produções. Sendo assim, os capítulos a seguir terão a seguinte estrutura. No capítulo 1 serão apresentados o Referencial Teórico e a Metodologia de Estudo, abordando as possibilidades de se problematizar as histórias em quadrinhos, levando em consideração sua multiplicidade, observando também a construção de um arcabouço teórico pautado em uma análise bakhtiniana, ou seja, uma análise sobre o dialogismo, propondo intersecções com o conceito de Indústria Cultural, e a construção histórica dos Syndicates.

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No segundo capítulo haverá o detalhamento da construção do mercado editorial brasileiro de quadrinhos, especificando o cenário no qual surgiram as primeiras revistas, e a introdução de um jovem artista chamado Maurício de Sousa, culminando em um dos maiores estúdios de histórias em quadrinhos da América Latina, a Maurício de Sousa Produções, e toda sua produção cultural. No capítulo 3, a análise dialógica do personagem Jeremias se constitui como abordagem principal, pois, apresenta-se uma investigação sobre as diferentes posições que o personagem ocupa, oscilando entre protagonismos específicos e modelos de estereotipagem, ou seja, evidencia-se como o negro é apresentado nas narrativas construídas pela Maurício de Sousa Produções. Vale lembrar, contudo, que alguns resultados parciais dessas pesquisas foram apresentados em congressos1 e submetidos para publicação, como, por exemplo, o capítulo “Gibi” do livro a ser publicado pela editora Ciranda Cultural, ainda em 2017.

1 Durante o processo de pesquisa foi possível apresentar fragmentos do trabalho em congresso como: Ser Negra (IFB), CONINTER (UNB), ABRALIC (UERJ), JED (PUC-RJ), Torna-se Negro (Pedro II) e JIPP (CEFET- RJ).

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Recordatório

As Histórias em Quadrinhos além de seu aspecto textual e imagético apresentam um recurso específico chamado Recordatório, que funciona como caixas de textos que acompanham os quadrinhos. Os recordatórios servem para explicar, ou introduzir a história, ou seja, funcionam como um texto que propõe uma contextualização, no intuito de situar o leitor. Uma narração particular que pode acrescentar aspectos que não estão nos desenhos, servindo como uma referência dentro das narrativas. Nesse sentido, ao propor um trabalho sobre histórias em quadrinhos, optou-se por utilizar o recordatório na tentativa de situar o leitor, ou seja, a partir deste momento, apresento todos os caminhos percorridos para se chegar na construção deste trabalho. Lembro de meu primeiro contato com a disciplina história ainda na quinta série (hoje sexto ano), um professor de sobrenome Lisboa, era impossível esquecer a capital de Portugal. As aulas pareciam histórias do meu avô, coisas que ninguém entendia, e não davam atenção, talvez por ele apenas ditar as questões e encher o quadro de dever, estamos falando da década de 1990, diálogo com alunos? Essa prática é um tanto quanto contemporânea... Depois das manhãs que aconteciam no universo escolar eu passava as tardes aprendendo outras histórias, estas não estavam no livro didático, mas eu conseguia lembrar exatamente o que tinha lido, ainda de maneira tacanha pensava: poxa, as aulas da escola podiam ser com histórias em quadrinhos. As narrativas foram se alterando, quando olhei a próxima página já estava no ensino médio, os livros tornaram-se mais densos, e em alguns era possível ver tirinhas em quadrinhos, que me impressionavam mais do que o texto, entretanto, me perguntava: por que ao explicar os conteúdos o professor nunca fala das imagens? Eu imaginava que existia algum potencial nelas... Mas quem eu era para questionar o saber oracular do professor? Se eles ignoravam aquelas poucas tirinhas da Mafalda (Quino), é porque realmente não deveriam ser problematizadas. Apesar das escolhas duvidosas dos tais professores, tinha algo na disciplina de História que me fascinava, não sabia se eram as guerras, revoltas, processos de independência, mas, suspeitava que em alguns textos parecia que não estavam relatando os fatos de maneira coerente. A curiosidade sempre acompanhou esse que vos escreve. E

14 pairava pela minha cabeça a seguinte questão: Se um dia eu for professor... Acho que as aulas podem ser diferentes. Em 2004 tive contato com umas edições diferenciadas da DC Comics e da Marvel Comics, conheci os universos alternativos, as leituras apresentavam a ideia de que não existe apenas o espaço que conhecemos e estamos habituados, há um "infinito e além", a narrativa me tomou, chacoalhou as ideias, principalmente por que eu estava em outro universo. Nesse período fui abduzido pela graduação, que realmente parecia fora do meu mundo, entretanto, escutei a frase de um professor que abalou minhas estruturas: "Tudo que você aprendeu sobre história até agora é mentira". O mundo parou, e iniciei minha jornada do Herói, composta por três momentos: O chamado, a imersão e o retorno... E como um idealista pensei em alto e bom tom: "Eu realmente quero me formar em História”. Fui compreendendo a cada capítulo que "história" era um caminho que eu precisava seguir, fui respondendo perguntas, a algumas dúvidas sobre processos históricos que os livros que tinha lido até então não me davam respostas... Encontrei o melhor superpoder de todos: A leitura. Tantas aventuras, mas um episódio em particular me chamou atenção, em uma aula aparentemente inofensiva, aprendi sobre a imagem como fonte histórica. A partir desse momento, iniciou-se meu processo de imersão, leituras e mais leituras no intuito de saciar minha sede de saber... Até um momento que considero o estopim de um grande processo, exatamente quando descobri a seguinte informação: "As histórias em quadrinhos são a 9ª arte”. Como assim? Quadrinhos tem esse título? Quadrinhos são fontes? São imagens? São História? Sim! Histórias em Quadrinhos são documentos históricos. Ainda na graduação pensava nas possibilidades sobre quadrinhos de maneira muito tímida. Então chegou o momento: "O retorno do Herói". Conclui minha saga, coloquei meu diploma no bolso, e então passei a procurar livros que falassem sobre histórias em quadrinhos. Compreendi algumas possibilidades de se lidar com esse tipo de bibliografia, e já exercendo minha profissão, passei a levar as histórias em quadrinhos para meus alunos. A maneira de se trabalhar com os conteúdos de História se tornou mais dinâmica, pois os alunos estavam exercendo a leitura, e tomando gosto por tal prática. Acreditando

15 que a missão já estava completa, no sentido de alterar a forma de ensino dos conteúdos de História, me vi em um sonho estranho, talvez uma viajem no tempo, seria possível? Neste sonho, eu me deparava com todos os super-heróis e personagens dos quadrinhos que eu conhecia, que tinha lido na infância e adolescência. Entretanto, havia um homem que eu não conhecia, me parecia indiferente ao lugar, pois podia perceber nos personagens um tom de ficção, entretanto, aquele homem não tinha uniforme, nem escudos ou espadas... Então perguntei a um dos personagens: "Quem é aquele?" E a resposta veio de imediato: Você não o conhece? Aquele é o Elbert, um dos maiores especialistas em histórias em quadrinhos do Mundo. Acordei eufórico, que sonho era aquele? Seria uma profecia? Passei semanas tentando lembrar de cada detalhe daquele momento, até que percebi algo muito interessante, eu era o único negro naquela cerimônia... Isso desencadeou um incômodo, que se alastrou quando voltei a frequentar as bancas de jornal e não encontrava revistas com super-heróis negros. Minha agonia só diminuiu quando encontrei um personagem negro chamado Jeremias que dizia: Eu tenho um sonho. Seria o mesmo sonho que eu tive? Passei a conversar com Jeremias, e perceber que ele já estava há um tempo nas Histórias em Quadrinhos, e que apesar de muitos não lembrarem, ele está inserido nas narrativas da Turma da Mônica. As conversas que tive com Jeremias, que passou de um personagem a meu objeto de estudo me fizeram refletir sobre a ausência da representação negra nas Histórias em Quadrinhos. No intuito de propor uma investigação sobre essa problemática, iniciei outra caminhada, com o objetivo de compreender as relações dialógicas entre o personagem e as diferentes décadas em que ele aparece. A aventura ainda está em curso, no caminho percebi algumas situações que se repetem e posições que o personagem ocupa. Foi possível notar a relevância de tal pesquisa. E tornou-se interessante compreender que passei a produzir uma história, sou o sujeito, personagem de minha narrativa, que é construída sem estereótipos em torno do negro. Talvez esse seja o registro que deixarei para as futuras gerações... De repente alguns desejam compreender o porquê de o personagem negro estar enclausurado em espaços restritos... Essa história será publicada em breve, e acho que já tenho até título, que tal: Que “negro” é esse nas Histórias em Quadrinhos?

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Referencial Teórico e Metodologia de Estudo

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1. Referencial Teórico e Metodologia de Estudo

O estudo das Histórias em Quadrinhos tem sido realizado de diferentes formas, desde a compreensão de que HQs podem ser consideradas uma forma de literatura (EISNER, 2013), até a concepção de que podem ser utilizadas como recurso pedagógico (RAMOS, 2012), funcionando também como instrumento de análise de imagens (signo) e texto (discurso), pois para se compreender os mecanismos comunicacionais de uma história em quadrinhos torna-se necessário que se saiba ler os componentes sígnicos que forjam a temperatura estética (CIRNE, 1975). Esta leitura propõe a funcionalidade de uma mensagem que estimula (e coordena) uma infinidade de significados, e se coloca portanto, como fonte de informação (ECO, 2004). Seria então, as Histórias em Quadrinhos um tipo de leitura distinta, dotada de recursos próprios e exclusivos (MOYA; D’ASSUNÇÃO, 2002). Portanto, deve-se levar em consideração a multiplicidade de possibilidades de análise das Histórias em Quadrinhos. De fato, do ponto de vista acadêmico, já foi superada a tendência dos anos 1950 que considerava os quadrinhos como subarte ou subliteratura. As HQs marcaram a história do século XX e, para chegar à forma que conhecemos atualmente, acompanharam toda espécie de evolução gráfica, sofreram muitas influências, mas forneceram, nas últimas décadas, subsídios para todos os meios de comunicação e também para as artes (LUYTEN, 1984). Além disso, por retratar hábitos, costumes e formas de consumo de uma dada época, as HQs podem se configurar como uma fonte histórica, pois, “Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história” (Fustel de Coulanges, apud Le Goff,. 2003, p. 530). Nesse sentido, toda produção material humana pode ser pesquisada em contextos mais amplos, evidenciando novas perspectivas analíticas e possibilitando transformações na ótica tradicional de se lidar com documentos (CARDOSO; MAUAD, 2011). Alterar esse tipo de mecanismo de análise de fontes históricas significa a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema,

18 questionando assim, a história das atividades humanas em seus diferentes cenários, buscando novas respostas, tendo como referência diferentes epistemologias (BURKE, 1992) pois, com tudo o que, sendo do próprio homem, dele depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade, gosto e maneira de ser (FEBVRE, 1985). Tendo como referência as distintas possibilidades de se lidar com as Histórias em Quadrinhos, neste trabalho pretendemos propor articulações discursivas entre os conceitos de Dialogismos, Indústria Cultural, e Identidade Negra. Como aporte teórico utilizaremos a análise bakhtiniana, optando pela abordagem de identidade dialógica do personagem, pois identifica-se como adequada para analisar as diferentes posições nas quais o personagem foi inserido desde sua criação até suas representações contemporâneas, ou seja, os discursos surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido (BAKHTIN, 2011). E verifica-se o diálogo entre a 9ª arte e as práticas culturais, pois, todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem (idem, 2011). Nota-se que, para que esse exercício seja feito de forma correta deve-se prestar atenção nas transformações subjetivas e objetivas presentes no contexto sócio-cultural, verificando o desenrolar de eventos que dialogam com as direções escolhidas nas construções de roteiros e composições estéticas dos personagens nas histórias, ou seja, a utilização do dialogismo de Bakhtin é fundamental para tal pesquisa. Portanto, observar um personagem é investigar as realidades que se apresentam e dão o tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis representações, desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, logo, o personagem é um signo, pois, sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2014). Ao observar tais relações dialógicas presentes na Indústria Cultural, evidenciaremos a questão ligada a lógica mercadológica destinada às HQs. Aspecto que envolve uma análise sobre o papel dos Syndicates (apresentando as relações que se articulam e propiciam os mecanismos de produção em massa das Histórias em Quadrinhos) e um olhar sobre a lógica comercial que utiliza as HQs como produtos de consumo almejando a obtenção de lucros. Pois essa é a base para a manutenção da Indústria Cultural. Em tal trabalho, pretende-se também, examinar a construção e representação das identidades negras dentro dos quadrinhos, evidenciando o aspecto signico e sua

19 representatividade, questionando como a presença dos personagens negros são efetivamente configuradas, pois expõe valores, agendas culturais, políticas, expectativas, nesse sentido, os aspectos da identidade cultural formam-se através do pertencimento a uma cultura nacional, e com os processos de mudança as identidades podem ser deslocadas (HALL, 2014). Esses deslocamentos ocorrem também, dentro das histórias em quadrinhos, ou seja, o personagem apresenta uma fluidez, sendo deslocado em diferentes contextos. Entretanto, percebe-se a necessidade de questionar os espaços em que a identidade negra é impressa dentro dos quadrinhos, pois, a identidade é relacional, e existem condições específicas para que ela exista (WOODWARD, 2014). A análise inicial sobre estas questões nos leva a percepção de que a identidade dos personagens negros pode estar enclausuradas em uma objetividade esmagadora (FANON, 2008), ou seja, apesar de se compreender que as identidades se deslocam, observa-se a manutenção dos espaços em que o personagem negro ocupa, sua construção baseia-se em estereótipos que negligenciam o processo de representação identitária, ou seja, não está de acordo com a ideia de assumir plenamente, com orgulho, a condição de negro, em dizer, de cabeça erguida: sou negro (MUNANGA, 1988). Portanto, pretende-se destacar os processos de efabulação e enclausuramento que se articulam em torno das construções sobre a figura do negro (MBEMBE, 2014). Tendo como base todos estes apontamentos, observaremos as HQs como uma forma de leitura e lazer inserida na articulação existente no sistema capitalista, que utiliza ferramentas próprias para produzir representações identitárias que apresentam dialogismos com a identidade negra na sociedade brasileira e conduz as condições de produção cultural provocando a manutenção dos mercados editoriais que produzem histórias em quadrinhos

1.1 Análise Bakhtiniana

Na tentativa de compreender de maneira mais adequada as Histórias em Quadrinhos e propor analises sobre a instrumentalização do personagem Jeremias, optou-se pelo dialogismo bakhtiniano, ou seja, a compreensão das relações dialógicas que se conectam

20 no sentido de dar sentido à construção, inserção e manutenção do personagem nas histórias em quadrinhos. Tais narrativas refletem as condições especificas que culminaram na representação de determinado personagem, e as direções que este toma dentro da história em quadrinhos, neste caso, se ocorrem mudanças na trajetória histórica do personagem, ou seja, se de alguma maneira sua identidade narrativa apresenta-se de maneira diferenciada de sua construção inicial, isso baseia-se nas diferenças discursivas que são apresentadas no personagem, em momentos distintos a identidade do personagem Jeremias dialoga com questões específicas, alterando assim sua estética inicial, ou discursos. Nas palavras de Bakhtin (2014):

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior (BAKHTIN, 2014. p. 31).

Portanto, observar Jeremias é investigar as realidades que se apresentam e dão o tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis representações, desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, ou seja, o personagem é um signo, pois, sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2014). Dentro de uma perspectiva histórica, não a como compreender as formas específicas de utilização do personagem, sem compreender o universo social onde tal obra foi produzida, no sentido de compreender de forma mais plausível as diferentes posições que o personagem ocupa, produziu-se uma periodização, identificando seus pontos de dialogismo, ou seja, as relações dialógicas que posicionam Jeremias na década de 1960, são diferentes das que posicionam o mesmo personagem em 2016, situando assim as narrativas no tempo, entre as relações dialógicas, o cenário social e a indústria cultural, com suas atividades mecânicas de produzir cultura. Ao utilizar Bakhtin, compreende-se as práticas discursivas racistas (ou não), nas quais emergiram certos discursos, e que se constituem ao redor do personagem Jeremias. Portanto, propõe-se uma pesquisa sobre a representação do negro, investigando seus

21 dialogismos, tal prática pretende evidenciar a construção, inserção e manutenção do personagem ao longo de seus cinquenta e seis anos. A partir de tal postura busca-se averiguar também, os instrumentos de produção, as relações que se articulam para que em determinado momento o personagem apareça com mais propriedade, e seu uso torna-se mais preponderante, levando este a ser ressignificado, ou a perder suas nuances estereotipadas, pois o status de produto de consumo do personagem faz com que este possa sofrer constantes transformações, inclusive tornar-se um signo ideológico. Tal perspectiva, posiciona a dimensão ideológica ligada ao personagem e os espaços que este frequenta. Bakhtin sinaliza: “O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico”. (BAKHTIN, 2011. p. 33). Então, compreende-se que torna-se impossível estabelecer o sentido de uma dada transformação, ou seja, das diferentes representações do personagem, sem considerar toda a esfera ideológica no qual tais transformações foram produzidas. Pois, a partir de tais representações é possível enxergar as transformações sociais, portanto, ao se compreender que o personagem existe por um longo período histórico, é possível compreendê-lo como indicador de diferentes momentos sociais. Nesse sentido, ao propor uma pesquisa sobre “O Negro na turma da Mônica”, procura- se encontrar o ignorado, o encoberto, verificando as condições em que as narrativas que o personagem está presente foram construídas, ou seja, tomar como base Bakhtin, é problematizar a estrutura da narrativa, questionar os discursos, observar que existem relações dialógicas que interferem no cenário social, apresentando direções e espaços onde o negro pode ou não estar. Portanto, a análise Bakhtiniana apresenta-se como uma ferramenta fundamental para analisar o Jeremias, um personagem que faz parte de um contexto social, apresentado nas histórias em quadrinhos, que devem ser compreendidas como representações discursivas. Nota-se então que as histórias em quadrinhos funcionam como objeto de discussões ativas em forma de diálogos, através das narrativas é possível compreender as relações dialógicas presentes em torno do personagem. Então, cabe mencionar que o personagem se submete a influência dos sistemas ideológicos estabelecidos, ele comunica, interage socialmente, funciona como um discurso, ele responde a alguma coisa, refuta, confirma. Bakhtin (2014) comenta que a

22 situação e o auditório social obrigam o discurso, o direcionam, fazem com que ele se amplie, ou seja, não se torne fixo, mas sim fruto das relações dialógicas. Nas palavras do autor: “Só se pode falar de fórmulas específicas, de estereótipos no discurso da vida cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias” (BAKHTIN, 2014. p. 130) Portanto, as HQ’s não podem ser compreendidas independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que elas se ligam, e o personagem, imerso nessas narrativas deve ser compreendido da mesma forma. A construção da narrativa faz parte de uma estrutura social, então, se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender as circunstâncias que culminaram na construção da narrativa e na representação do personagem, pois, sua significação é inseparável da situação concreta em que se realiza. Para Bakhtin (2014):

A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida elo tema, e dilacerada por suas condições vivas, para retomar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade em uma identidade igualmente provisórias. (Bakhtin, 2014. p. 141).

O personagem encontra-se então, com uma estabilidade provisória, aguardando sua próxima utilização, pois, a partir do momento que a sociedade se transforma, este não pode permanecer estável, pois é fruto de uma articulação social, faz parte do cenário. Propõe-se então, novas significações, isso faz com que o personagem continue a existir, o personagem continua funcionando como um discurso, ou seja, o discurso citado e o contexto narrativo unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas. É impossível compreender qualquer forma de discurso citado sem levá-las em conta (BAKHTIN, 2014). A partir de Bakhtin, utilizando o dialogismo como arcabouço teórico, problematiza-se a utilização dos instrumentos de produção, as relações que se articulam para que em determinado momento o personagem apareça com mais propriedade, e seu uso torna-se mais preponderante, levando este a ser ressignificado. E por que a observação das relações dialógicas é tão pontual nesta pesquisa? Existe a partir de cada narrativa

23 presente no entrelace de cada quadrinho que compõe uma história a comunicação da vida cotidiana, de modo particular, ou seja, do modo como o autor compreende a sociedade, uma espécie de domínio específico, uma maneira de enxergar o cotidiano por tal criador, tal relação pode ser ressignificada, se outro autor apropria-se do personagem, revelando assim, outras possibilidades e apresentando novas dinâmicas, ou seja, a identidade é dialógica, verifica-se assim que as formas discursivas situam-se de maneira singular em diferentes indivíduos. Verifica-se então, a importância de tal epistemologia, a partir da análise bakhtiniana, evidenciam-se, relações dialógicas, logo, em diferentes períodos poderão ser atribuídos aos personagens valores sociais significativos. Em suma, percebe-se que ao estudar um personagem presente em qualquer tipo de mídia (inclusive nas histórias em quadrinhos), não se deve perder de vista a atividade de interpretação socioideológica, não dissociando o personagem de possíveis fatores sociais, não perdendo de vista a significação e sua representatividade, levando em conta o caráter social do personagem e entendendo que este não é independente, pois, ao ignorar tais fatores, não será possível compreender a realidade social no qual este foi constituído. Ao ignorar tais fatores, nos pautaremos sobre uma interpretação errônea dos mecanismos de produção onde este se insere. Deve-se então, levar em consideração a observação sobre as articulações e situações sociais, evidenciando o valor cultural, reflexo de relações dialógicas presentes em cada contexto especificamente. Portanto, a identidade dialógica do personagem funciona como um registro, apresenta as impressões do discurso presente no curso das relações dialógicas na sociedade, manifestando-se como relevantes para a compreensão do cenário social em que determinada narrativa funciona. A observação sobre os diálogos presentes na estrutura narrativa das histórias em quadrinhos nos leva a percepção de que um dado personagem, ou uma certa identidade transita de uma caracterização para outra. Leva-se em consideração a prática de uma pesquisa específica sobre a funcionalidade da identidade do personagem nas narrativas estudadas, um personagem negro e as problemáticas ligadas a sua funcionalidade, como possibilidade de ruptura de um discurso estabelecido, delimitando assim os espaços que o negro deve ocupar, favorecendo a manutenção de práticas de invisibilização do negro latentes na sociedade brasileira. Nesse sentido, procura-se aqui compreender os dialogismos em torno do personagem negro,

24 verificando as posições que o personagem ocupa, e questionando os discursos presentes nas narrativas observando o papel da indústria cultural neste processo.

1.2 O Conceito de Indústria Cultural

A opção por Bakhtin traz em seu bojo a necessidade de situar os enunciados em seu contexto sócio-histórico. Nesse sentido, os estudos sobre o conceito de Indústria Cultural se apresentam como indispensáveis para a compreensão da articulação e funcionamento das diferentes instituições que comercializam e produzem bens simbólicos e culturais. É possível perceber a dinâmica de vinculação de arte com o processo de mercantilização do que antes funcionava apenas como manifestação cultural, portanto, a Indústria Cultural apresenta-se como dispositivo unívoco de produção de mercados culturais, e nesse sentido, a mídia ligada aos tentáculos industriais age como porta voz desta lógica que se espalha pelo cenário social, levando aos indivíduos a sensação de felicidade pela obtenção de bens. Dentro desta perspectiva, os produtos confeccionados pela Indústria Cultural apresentam-se como bons para o homem, e adequados ao desenvolvimento das potencialidades e projetos humanos. O aparecimento efetivo da Indústria Cultural inicia-se com os primeiros jornais (COELHO, 2006). A invenção dos tipos móveis de imprensa, feita por Gutenberg no século XV faz com que gradativamente apareça uma cultura de massa, a arte do consumo ganha mais expressividade a partir do contato de produtos específicos, nas palavras de Teixeira Coelho:

Produtos como o romance de folhetim – que destilava em episódios, e para amplo público, uma arte fácil que se servia de esquemas simplificadores para traçar um quadro da vida na época (mesma acusação hoje feita às novelas de TV). Esse seria, sim, um produto típico da cultura de massa, uma vez que ostentaria um outro traço caracterizador desta: o fato de não ser feito por aqueles que o consumiam. (COELHO, 2006. p. 9)

Nota-se a partir deste trecho uma espécie de funcionalidade característica do processo de industrialização da cultura. A cultura antes compreendida como uma singularidade ligada a um tipo de festa organizada por um determinado povo, ou a uma canção entoada por civilizações antigas passa a ser construída por uns e consumida por

25 outros. Compra-se e vende-se, capitaliza-se a arte na intenção de apresentar ao consumidor algo que ele imagina que seja necessário. A indústria cultural nutre a cultura de massa, e esta sente-se satisfeita, até que deseje consumir mais. Coelho (2006) comenta que para se compreender essa estrutura torna-se interessante observar dois processos específicos: A Coisificação e a Alienação. Segundo o autor, a Indústria Cultural transforma tudo em coisa, e após a transformação a tal “coisa” ganha preço, valor monetário, inclusive o homem faz parte deste jogo. E a alienação funciona como instrumento na vida deste homem, que mesmo produzindo, mesmo transformando coisas em produtos que serão consumidos, ele mesmo não pode comprar o que produz. A coisificação e a alienação funcionam em conjunto levando a produção de uma cultura em série, que torna-se perecível, apenas uma peça para se usar ou simplesmente deixar de usar. Existe dentro deste processo uma lógica própria, como por exemplo o fato de um produto cultural considerado como de categoria inferior alterar sua significação e status é uma questão de tempo. “É o caso do jazz, que saiu dos bordéis e favelas negras para as plateias brancas dos teatros municipais da vida” (COELHO, 2006. p. 9) Adorno e Horkheimer foram os primeiros a usar a expressão Indústria Cultural ainda na década de 1940. Na abordagem destes autores, a Indústria Cultural desempenhava as mesmas funções de um estado fascista no exercício de conseguir a alienação do homem, processo esse onde o indivíduo é levado a não meditar sobre si mesmo e sobre a totalidade que o circunda. “Na realidade, é por causa desse círculo de manipulações e necessidades derivadas que a unidade do sistema torna-se cada vez mais impermeável” (ADORNO, 2015. p.9). O fator alienante presente nesta equação faz com que o indivíduo não perceba que o esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados revelam-se no final das contas, como sempre os mesmos. Adorno (2015) ainda comenta que: “A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos, da performance tangível, do particular técnico sobre a obra, que outrora trazia a ideia e com essa foi liquidada”. (ADORNO, 2015. p.14). A falta de percepção do indivíduo sobre o mundo a sua volta tornou-se o grande sucesso da lógica de empreendimento da Indústria Cultural, que fornecia artigos de entretenimento dos quais os indivíduos necessitariam em seu tempo livre, e que seriam consumidos por eles a partir de sua livre escolha, como sugere Rodrigo Duarte (2014):

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De fato a Indústria Cultural nunca deixou de levar em consideração necessidades afetivas (inclusive libidinais) latentes do seu público, fornecendo, entretanto, mercadorias que atendessem a essa demanda sem colocar em risco a ordem estabelecida. DUARTE, 2014.p. 29)

A lógica presente na Indústria Cultural oferece o produto fornecendo também a chave de sua interpretação oficial não deixando lacunas para possíveis questionamentos do indivíduo, um tipo de mensagem subversiva transmitida em um pacote aparentemente inofensivo. A conclusão deste raciocínio é que o significado dos produtos culturais não é inerente aos objetos em si, mas reside fora deles. Nas palavras de Muniz Sodré: “... O produto define-se basicamente como “desejo”, isto é, como noção psíquica que compele a consciência do sujeito na direção de um objeto”. (SODRÉ, 2010.p.101). E o autor continua:

Na realidade são várias as “indústrias da cultura”, com diferentes graus de penetração capitalista. Pode-se mesmo falar em “ramos” industriais (unidades de produção especializadas) na medida em que os produtos audiovisuais, por exemplo, são extensões de indústrias já existentes nos campos editoriais, eletrônicos ou fotoquímicos. (SODRÉ, 2010.p.116-117)

Uma lógica própria, com uma linguagem visando a manipulação, a penetração ideológica que funcionará como veículo de colonização e doutrinamento intelectual. Segundo Dorfman (2010), cujo estudo abordou especificamente a questão das Hqs, “essa tecnologia cultural vai desde a comunicação de massa e seus produtos até as quinquilharias do turismo organizado (DORFMAN, 2010.p. 115). O autor ainda especifica a construção social ligada ao processo de industrialização da cultura:

Em toda sociedade, em que uma classe social é dona dos meios de produzir a vida, também essa mesma classe é proprietária do modo de produzir as ideias, os sentimentos, as instituições; numa palavra, o sentido de mundo. (DORFMAN, 2010.p. 154).

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Nota-se através dessas ideias discutidas até aqui que a cultura transformou-se em produto a ser consumido. A Industria Cultural domina e controla, age na consciência e inconsciência daqueles aos quais se dirige e de cujo gosto ela procede (ADORNO, 2015). Torna-se interessante salientar que o lazer não funciona apenas como simples diversão ou entretenimento, pois, existe uma estrutura que constrói estratégias visando um tipo de comportamento dócil e uma multidão domesticada através da exploração sistemática de bens culturais. Entre as estratégias mercadológicas, sua produção é introduzida como mercadoria e aliada ao espírito de concentração capitalista atingindo assim, um cidadão passivo e conformista, que não percebe a transformação da arte em expressão da racionalidade técnica e ignorando totalmente o status de lazer ou simplesmente entretenimento. O conceito de Indústria Cultural ainda deve ser compreendido como necessário para as características e contradições fundamentais do que compreendemos como sociedade contemporânea. E apresenta-se como fundamental para discutir sobre a mídia, pois a ideia de produzir cultura está atrelada a produção de entretenimento visando a manipulação e o consequente consumo da sociedade como um todo.

1.3 O desenvolvimento histórico dos Syndicates

O século XIX influenciou diretamente a noção do que seria de fato informação, devido à grande evolução dos processos técnicos ocorreram alterações no paradigma de comunicação. Nesse cenário é possível compreender o nascimento das chamadas “Agências Noticiosas” (SILVA, 2002). Este é século em que a comunicação social transforma-se em uma indústria, nota-se o tipo de potencial existente na informação e a possibilidade de seu alcance. Surgem então, agências singulares que direcionam informação a certos públicos, não informando apenas sobre assuntos políticos, econômicos e sociais, mas, construindo conteúdos para alcançar mercados específicos. A imprensa de opinião transforma-se em imprensa informativa, torna-se mais acessível e começa a demonstrar uma nova postura. O grande nome deste novo processo de difusão de informações é Charles – Louis Havas, que em 22 de outubro 1835 cria um tipo de agência para divulgar informações, a Agence des Feuilles Politiques –

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Correspondence Génerale, que ficou conhecida como Agence Havas (SILVA, 2002). Charles Havas inicia essa agência com a criação de um pequeno negócio de venda de notícias, essa tática de manutenção de venda e distribuição de informações transformou Havas no dono de uma das mais importantes agências de notícias internacionais, a France Presse. Nota-se que a comercialização de conteúdos (informações) foi pioneira de Havas, que inicia a história das agências que vendem informações em todo mundo. Um cenário semelhante também foi se desenvolvendo nos Estados Unidos, onde agências com estruturas análogas eram chamadas de Syndicates, e igualmente voltavam ao potencial mercadológico da informação, e a possibilidade de direcionar o conteúdo, o que fizeram inicialmente com as notícias, e depois com as tirinhas em quadrinhos, nesse sentido, é importante salientar que apesar do sucesso internacional dos Syndicates norte- americanos, e a popularização do pioneirismo na comercialização de conteúdos , nota-se que esse processo de produção dentro do mercado editorial, não pode ser visto como uma exclusividade norte-americana. Entretanto, nos Estados Unidos os Syndicates responsabilizavam-se por qualquer tipo de relação mercadológica ligada a possibilidade de negociação de informações, e ainda trabalhavam protegendo os direitos autorais dos artistas e o combatendo a concorrência. É importante salientar portanto, que antes do surgimento das Hqs os Syndicates já existiam como forma de distribuição de material jornalístico em geral, nesse sentido, a lógica mercadológica já existia, entretanto, absorveu as histórias em quadrinhos tendo como objetivo aumentar expressivamente as tiragens, ampliando a produção no intuito de alcançar novos mercados consumidores. Segundo Iannone (1994): “Os Syndicates surgiram por volta de 1840, para abastecer os jornais norte-americanos, geralmente de pequeno porte e sem estrutura para produzir seus próprios artigos e materiais gráficos.” (IANNONE, 1994, p. 44). Os Syndicates apropriaram-se das tiras diárias e redimensionaram seu potencial, compreendo a possibilidade lucrativa das histórias que eram publicadas, multiplicando este tipo de produto cultural, criando assim uma estrutura para produção e reprodução das Histórias em Quadrinhos. Cleide Furlan (1984) ao propor um estudo sobre HQ e os Syndicates norte- americanos nos alerta que para se compreender a construção e a importância dos Syndicates nos EUA é necessário perceber que o primeiro passo para seu

29 desenvolvimento surge em virtude da concorrência entre dois grandes jornais e seus proprietários. Ainda segundo a autora, o New York World e o Morning Journal, de Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst respectivamente, seriam as grandes duas potências no mundo da comunicação estadunidense neste momento.

Pulitzer edita, em 1893, um suplemento dominical no New York World, com a história “Down Hogan’s Alley”, desenhada por Richard Outcault. Em 1896, realizam-se os primeiros testes de cor na camisa da personagem principal, que passou então a ser conhecida como “ Yellow Kid” (“O garoto amarelo”). “Down Hogan’s Alley” pode ser considerada uma predecessora do gênero de HQ, pois utiliza-se do balão, além de, por sua natureza debochada e sensacionalista, ter dado origem à expressão “imprensa amarela” nos EUA (no Brasil, passou a chamar-se “imprensa marrom”). Posteriormente, Richard Outcault e seu “Yellow Kid” passaram ao Morning Journal, de Hearst. Em contrapartida, Pulitzer vem introduzir, em 1897, “Os Sobrinhos do Capitão”, criada por Rudolph Dirks e que, pelo novo tipo de linguagem e de expressão, será chamada de HQ. (FURLAN, Cleide. HQ e os "syndicates" norte-americanos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas. 1984. p. 27.)

Furlan (1984), explica que no início as HQs eram humorísticas, daí surge o termo Comics. Posteriormente todas as revistas que seguiam o mesmo modelo, a mesma estrutura, foram chamadas de Comics, independente da linguagem ou do tipo de história desenvolvida. Neste clima de disputa comercial e comunicacional em 1912 Hearst cria o primeiro Syndicate, o International 28 News Service que, em 1914, deu origem ao King Features Syndicate. Segundo Furlan (1985) “Alguns anos depois, surgiram o Chicago Tribune Daily New Syndicate, o United Press International, além de outros de menor porte”. (Furlan, 1985, p. 27). A autora ainda discute sobre a possível tradução do termo Syndicate:

A palavra “Syndicate”, nos moldes norte-americanos, não encontra similar em nosso contexto. Não se trata de um sindicato e ultrapassa as atribuições de uma associação. Podemos tratá-lo como agência especializada em fornecer matérias variadas, particularmente de entretenimento. (FURLAN, Cleide. HQ e os

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"syndicates" norte-americanos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas. 1984.p.28).

Furlan (1985) e Iannone (1994) concordam que o termo mais adequado para se compreender o que eram Syndicates na língua portuguesa seria “Agência”, Nota-se, entretanto, que o conceito não deve ser simplificado. Trata-se então de uma espécie de agência especializada em desenvolver tarefas específicas. Furlan (1985), explica:

Os “Syndicates”, além de possuir direitos sobre os trabalhos dos desenhistas (direitos sobre a venda e a distribuição), funcionam como agência de veiculação das histórias, preparando e emitindo milhares de matrizes a serem vendidas não só nos EUA como também em outros países. São responsáveis por alguns cuidados, ou seja, devem seguir um código de ética: as histórias não devem ofender nenhum leitor; não devem conter palavrões explícitos, que poderão ser substituídos por sinais convencionais; não devem conter sugestões de imoralidade; devem evitar controvérsias quanto à religião, raça ou política; devem evitar cenas de violência com mulheres, crianças e animais; não devem incentivar o crime, que será sempre punido. (FURLAN, Cleide. HQ e os "syndicates" norte-americanos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas. 1984.p.28).

Deve-se lembrar que a estrutura desenvolvida pelos Syndicates não foi construída especificamente para as Histórias em Quadrinhos, a lógica funcionava inicialmente nos jornais. Furlan (1984) comenta que essas “agências” começam a surgir por volta de 1840, entretanto, neste momento, não possuem a mesma estrutura e dimensão que os Syndicates que são estruturados em torno de 1912. Nesse sentido, toda a lógica que começa a ser articulada por volta de 1840, e apresenta-se como extremamente mais eficaz e estruturada. Por volta de 1912 foi direcionada posteriormente as tirinhas dominicais ou diárias que eram veiculadas nos jornais, pois, este tipo de conteúdo estava se tornando popular, dentro desta perspectiva, as HQs tornaram-se mais um elemento dentro desta percepção lucrativa, ou seja, para a estrutura dos Syndicates as Histórias em Quadrinhos tornam-se mais um produto com potencial de venda, como complementa Vergueiro (2003):

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O componente econômico da equação envolvida na exportação de histórias em quadrinhos que enfocam o ambiente familiar é facilmente compreensível: como grandes distribuidores de quadrinhos, os lucros dos Syndicates eram estabelecidos em proporção direta aos jornais que publicassem cada tira ou página dominical específica; da mesma forma, ao atingir um determinado nível de distribuição, os custos se estabilizavam e os lucros aumentavam exponencialmente. Assim, quanto maior a distribuição, maior o lucro. (Vergueiro, As Histórias em Quadrinhos e seus gêneros IV: os quadrinhos em ambiente familiar. 2003)

Waldomiro Vergueiro (2003), comenta que a ânsia por maiores lucros fez com que os Syndicates, que em geral eram ligados a grandes cadeias jornalísticas, buscassem temas que possibilitassem a mais ampla distribuição possível, inclusive externamente ao país.

Nessa busca de maior aceitação popular, histórias enfocando o ambiente familiar surgiram naturalmente como uma alternativa bastante viável, pois traziam um espaço narrativo com o qual todos os leitores se identificavam e que, ao mesmo tempo, não causava qualquer tipo de rejeição, como poderia acontecer, por exemplo, com histórias que representassem graficamente as minorias ou reproduzissem estereótipos raciais... A fórmula atingiu o objetivo esperado e em pouco tempo os jornais norte-americanos se viram abarrotados de quadrinhos que retratavam o american way of life das mais variadas formas e ajudavam a divulgar os costumes e valores norte-americanos pelo mundo inteiro, com todas as implicações ideológicas que esse fato representava (VERGUEIRO, Valdomiro. As Histórias em Quadrinhos e seus gêneros IV: os quadrinhos em ambiente familiar. 2003)

Então, os Syndicates são responsáveis pela transformação das Histórias em Quadrinhos em produto comercializável internacionalmente, organizando uma estrutura de controle funcional e articulando as técnicas e possibilidades de merchandising, portanto, além da lógica de produção, existem as táticas de comercialização dos personagens ligados as histórias em quadrinhos, como por exemplo, a utilização de personagens em camisetas, brinquedos e produtos em geral.

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Edmilson Marques (2011) apresenta uma crítica a lógica proposta pelos Syndicates. Segundo o autor a mercantilização traz como consequência para as Hqs a transformação dos personagens em propriedade privada, e consequentemente, em mercadoria a partir do momento em que são comercializados através de revistas, jornais, etc. O autor ainda comenta:

Com isso, empresas oligopolistas voltadas para a produção de histórias em quadrinhos começam a utilizar mecanismos para se apropriar daqueles personagens que os desenhistas criam, assegurando assim o lucro com tais produções, mediante a exclusividade no uso dos personagens, após sua divulgação, despertando o interesse de leitores, isto é, além do lucro com a vendagem dos gibis, lucram também com os direitos autorais (MARQUES, E. Super – Heróis: Ficção e Realidade. In: VIANA, N; REBLIN, I. A. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2011. p. 101.).

A análise sobre a atuação dos Syndicates nos faz perceber os sutis mecanismos que são articulados para que se obtenha lucros. Como apropriação de personagens para ganhar contextos específicos, ou a própria construção de personagens para determinados fins. Existe dentro desta prática uma sedução ideológica. Ao se propor uma crítica sobre a participação dos Syndicates na lógica mercadológica de produção das Histórias em quadrinhos é importante notar os contextos, as condições históricas, as relações de produção, os significados culturais, os mecanismos de motivação ligados ao consumo do leitor, e todos estes fatores funcionam como manutenção da Indústria Cultural. É possível compreender que Histórias em Quadrinhos são ferramentas de marketing veiculadas a empresas e produtos. Dentro desta perspectiva, ao compreender as histórias em quadrinhos como uma mercadoria da indústria cultural, torna-se importante notar os valores que difundem, e as ideologias que utilizam em seu processo comunicacional, tendo como objetivo o real significado das mensagens utilizadas nas aparentemente inofensivas histórias em quadrinhos. Nildo Viana e Iuri Andréas Reblin (2011) desenvolveram a obra Super-Heróis, Cultura e Sociedade, selecionando diferentes intelectuais para discutir sobre a temática histórias em quadrinhos. A obra discute as possíveis aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos conectando os elementos ficcionais aos mecanismos reais da sociedade. Entre os temas discutidos, e os autores selecionados, Edmilson Marques

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(2011) evidencia o papel dos Syndicates. Segundo o autor é possível notar a partir dos Syndicates uma intensificação da produção de Histórias em Quadrinhos, uma maneira específica de produzir e distribuir as Hqs, dando a estas o status de produto cultural.

Com o sucesso das tiras diárias, os syndicates proliferaram, contratando desenhistas famosos e difundindo seus trabalhos por todo o território norte- americano. Operando com custos cada vez menores, devido ao enorme volume de reproduções feitas a partir de uma única tira, eles acabaram dominando o mercado editorial internacional. Hoje os syndicates atuam no mundo inteiro e são os grandes responsáveis pelo sucesso das histórias em quadrinhos norte americanas (IANNONE, 1994, p. 44. apud MARQUES, E. Super – Heróis: Ficção e Realidade. In: VIANA, N; REBLIN, I. A. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2011. p. 99.).

A compreensão dialógica dos sentidos da Indústria Cultural, particularmente em relação à dinâmica dos Syndicates norte-americanos, configura-se, portanto, como fundamental para circunstanciar o cenário brasileiro das publicações de Maurício de Sousa, conforme será melhor detalhado no capítulo a seguir.

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O Cenário Brasileiro

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2. O Cenário Brasileiro

No livro “A Guerra dos Gibis” de Gonçalo Junior (2004), o autor apresenta uma pesquisa destinada a mostrar ao leitor a formação do mercado editorial brasileiro, enfatizando a maneira que as Histórias em Quadrinhos chegaram ao país, e com o tempo tornaram-se populares. Segundo o autor, um dos primeiros brasileiros a prestar atenção no potencial mercadológico deste tipo de leitura foi Adolfo Aizen, jornalista que em uma viagem aos Estados Unidos se encantou com um novo formato de leitura aparentemente infanto-juvenil que estava fazendo um enorme sucesso. Gonçalo Junior (2004) comenta que:

Um dos passatempos do jornalista era bisbilhotar os pontos-de venda de jornais e revistas. Encantava-se com o mercado editorial americano, então impulsionado pelas modernas tecnologias de impressão, que possibilitavam triagens cada vez maiores em menor tempo. (JUNIOR, 2004, p. 24).

Adolfo Aizen começou a demonstrar interesse na lógica mercadológica estadunidense. O ato de prestar atenção nos jornais e revistas que eram comercializados funcionou como uma tática para apresentar ao Brasil novas possibilidades de produção. Junior (2004) comenta que nessa viajem Adolfo Aizen notou uma novidade conhecida como suplementos semanais temáticos que eram encartados gratuitamente nos jornais. Entre estes suplementos os comics faziam mais sucesso.

Em conversa com colegas americanos, Aizen descobriu que aqueles suplementos aumentavam substancialmente a venda dos diários, uma vez que muitos leitores compravam o jornal apenas pare tê-los. Notou ainda que nenhum caderno fazia mais sucesso que o infanto-juvenil, que trazia curiosidades, passatempos e muitas histórias em quadrinhos – chamadas comics pelos americanos porque os primeiros artistas exploraram o gênero para fazer graça com o universo miserável dos cortiços das grandes cidades americanas no final do século XX. (Junior, 2004, p. 25).

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Ao ler os suplementos que saiam no jornal e observar e perceber que tratava-se de uma obsessão nacional, Adolfo Aizen começava a compreender as relações específicas de produção que existiam nos Estados Unidos, e as táticas de manutenção destes mecanismos. Adolfo Aizen trouxe para o Brasil a mesma lógica de produção, ou seja, dentro do mercado editorial brasileiro de histórias em quadrinhos, Adolfo Aizen pode ser considerado um dos primeiros a reproduzir, adaptando a lógica dos Syndicates no Brasil. Contudo, o processo não foi tão simples (JUNIOR, 2004). A aplicabilidade da lógica mercadológica estadunidense enfrentou alguns percalços no Brasil.

Aizen procurou ser fiel ao formato dominical americano, o que não seria nada fácil, uma vez que as máquinas de A Nação estavam longe de possuir alguma qualidade gráfica. Os cadernos foram planejados e desenhados numa pequena sala, no ritmo frenético de um jornal com circulação diária. Como estratégia contra a concorrência, somente dois dias antes da estreia os leitores foram informados da novidade. (JUNIOR, 2004, p. 30).

Apesar das dificuldades técnicas que instauravam-se no Brasil, um tipo de mecanismo iria alterar a maneira de se compreender as Histórias em Quadrinhos, até então, observadas em tirinhas nos jornais, então no dia 15 de março de 1934 saiu a primeira edição do suplemento juvenil encartado no jornal A Nação. Segundo Junior (2004), a concorrência ficou boquiaberta, acharam ousado o novo formato apresentado por Aizen, entretanto a repercussão entre os leitores funcionou de forma adequada, Aizen conseguiu reproduzir a maneira de comercializar os exemplares como observou nos Estados Unidos. Mantendo ainda ligação com o país, na verdade com “agências” que representavam o país, Aizen fazia conexões com os Syndicates.

Alimentar cinco edições por semana com notícias e variedades culturais e esportivas se tornou uma tarefa árdua para Aizen. Parte da dificuldade foi resolvida com a compra de textos e desenhos americanos, vendidos no Brasil por representantes de agências conhecidas nos Estados Unidos como syndicates, distribuidoras de features (ilustrações, artigos e reportagens). (JUNIOR, 2004, p. 30).

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Torna-se interessante comentar que não há menção neste texto de que Adolfo Aizen fundou um Syndicate no Brasil, percebe-se que Aizen traz para o país uma maneira de se produzir e reproduzir os suplementos semanais que aprendeu nos Estados Unidos. Apesar de Aizen ser considerado um dos primeiros a utilizar tais técnicas, por observação, outros jornais compreenderiam a lógica mercadológica utilizada por Aizen, e reproduziriam o modelo adequando as suas edições, o que para alguns era compreendido como cópia, como se Aizen tivesse criado esta maneira singular de transformar a leitura de tirinhas ou HQs em produto comercializável. Não se trata apenas de compreender que a lógica proposta pelos Syndicates começou a funcionar no Brasil, além disto, mantinha- se contato com os Syndicates para que se tivesse os direitos de utilização de personagens e histórias. Aizen apresentou sua ideia para que fosse incluída no jornal A nação, nesse sentido, A Nação passava a ter um suplemento infantil, um jornal que tinha sido fundado em 1932, ao incluir a aposta de Aizen em um projeto pioneiro de lançar suplementos diários, teve sua tiragem triplicada.

De repente, um jornal sisudo, de temática quase que exclusivamente política, era disputado no meio da semana por crianças e adolescentes em todos os pontos-de-venda do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o jornalzinho se tornou assunto da garotada nas filas das matinês dos cinemas, até se transformar numa leitura quase obrigatória, em especial para os meninos. A aceitação do tabloide de Aizen foi tão grande que era comum a molecada se dirigir ao jornaleiro toda semana para pedir o caderno de forma peculiar: - Por favor, moço, quero o suplemento que está ai no jornal. (JUNIOR, 2004, p. 33).

Ao fazer tamanho sucesso com os suplementos juvenis, Aizen também levou a concorrência a prestar atenção na nova maneira de conduzir os jornais para o lucro. O mercado editorial brasileiro notou a repercussão dos suplementos juvenis no público. O jornal O Globo, de , passou a planejar um jornal de histórias em quadrinhos para concorrer com diretamente com Aizen, reproduzindo uma concorrência similar aos grandes tabloides norte-americanos. É interessante pontuar que Aizen, ao voltar de sua viagem dos Estados Unidos ofereceu primeiramente a seu chefe e amigo Roberto Marinho as possibilidades de se utilizar a lógica dos Syndicates nos jornais

38 brasileiros. Marinho não achou interessante as ideias de Aizen, entretanto, posteriormente percebeu o potencial dos suplementos juvenis e “copiou” a proposta de Aizen. Em 12 de Junho de 1937 saiu o primeiro número do suplemento juvenil de Roberto Marinho, chamado de O Globo Juvenil. Marinho também fez contato com representantes de Syndicates no Brasil, isso fez com que importasse quadrinhos para incluir em suas edições, 100 % do material de O Globo Juvenil vinha dos Estados Unidos e da Inglaterra. O Suplemento Juvenil de Aizen tinha alguns artistas brasileiros. Nesse sentido, nos parece que Roberto Marinho podia investir mais pesado, e construir melhores acordos com os Syndicates e consequentemente possuir os direitos de mais personagens e histórias. Apesar de se tratar de dois jornais diferentes, Aizen e Marinho reproduziam a mesma maneira de se articular e comercializar os quadrinhos existentes nos Estados Unidos. A aproximação com os Syndicates fazia com que estes usufruíssem das histórias em quadrinhos e dos personagens como produtos, podendo utilizar da melhor forma possível, ou seja, da maneira que mais gerasse lucro. É importante notar que os jornais imersos na concorrência e na articulação ao redor dos direitos de publicar, ou da associação com os Syndicates não estava nem um pouco preocupada com o caráter pedagógico das Histórias em Quadrinhos. As HQs eram um produto, e precisava ser vendido. A lógica proposta pelos Syndicates revela a possibilidade e capacidade de consumo das histórias e dos personagens. O personagem das histórias em quadrinhos, por exemplo, torna-se uma marca que tem os direitos vinculados as tais “agências”, e pode ser vendido, sendo agregado a diferentes produtos. A importância desse cenário histórico para esta pesquisa se deve ao fato de que o personagem que é o foco deste estudo – Jeremias – também se constituiu dentro da mesma perspectiva, pois a Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, tornou-se um fenômeno, sucesso absoluto de vendas, desenvolvendo uma lógica mercadológica muito semelhante à dos Syndicates, da indústria cultural norte-americana.

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2.1 A produção cultural de Maurício de Sousa

Eu faço histórias para contar histórias. Na minha infância ouvi muitas e até hoje meus avós me contam algumas, ou melhor, me ensinam a ser um contador de histórias. (Maurício de Sousa, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, dezembro de 1982).

Mauricio Araújo de Sousa nasceu no Brasil, numa pequena cidade do estado de São Paulo, chamada Santa Isabel, em 27 outubro de 1935. Seu pai era o poeta e barbeiro Antônio Mauricio de Sousa. A mãe, Petronilha Araújo de Sousa, poetisa. Além de Mauricio, o casal teve mais três filhos: Mariza (já falecida), Maura e Marcio. Com poucos meses, Mauricio foi levado pela família para a vizinha cidade de Mogi das Cruzes, onde passou parte da infância. Outra parte foi vivida em São Paulo, onde seu pai trabalhou em estações de rádio. Suas primeiras aulas foram no externato São Francisco, ao lado da Faculdade, no centro de São Paulo. Mas depois continuou estudos no primário e no ginásio, dividindo-se entre as duas cidades. Enquanto estudava, trabalhou em rádio, no interior, onde também ensaiou números de canto e dança. E, para ajudar no orçamento doméstico, desenhava cartazes e pôsteres. Mas seu sonho era se dedicar ao desenho profissionalmente. Chegou a fazer ilustrações para os jornais de Mogi, mas, interessava-se no aprimoramento, no desenvolvimento de técnica e arte. Para isso, precisava procurar os grandes centros, onde editoras e jornais pudessem se interessar pelo seu trabalho. Pegou amostras do que já tinha feito e publicado e dirigiu-se para São Paulo em busca de emprego. Não conseguiu. Mas havia uma vaga de repórter policial no jornal Folha da Manhã. Mauricio de Sousa fez um teste para ocupar a vaga e trabalhou com reportagens policiais durante cinco anos. Após esse período resolveu se dedicar a arte, então, em 1959, criou seu primeiro personagem – o cãozinho Bidu, juntamente com uma série de tiras em quadrinhos e resolveu oferecer seu material para os redatores do Jornal a Folha de São Paulo. As historinhas foram aceitas, iniciava-se então, a trajetória de Maurício de Sousa no ramo dos quadrinhos. Inicialmente as tirinhas de Maurício de Sousa eram calcadas no cãozinho Bidu e no personagem Franjinha, posteriormente outros personagens como Cebolinha, Piteco,

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Chico Bento, Penadinho, Horácio, Raposão, Astronauta, etc. foram sendo inseridos nas Histórias, até que em 1963 surge a Mônica em uma tira de jornal, ainda como personagem da história do Cebolinha (nome da tirinha nos jornais) que passa a ser o principal personagem do desenhista, e ganha uma revista com seu nome em 1970, com tiragem de 200 mil exemplares, pela editora Abril, torna-se a protagonista de “A Turma da Mônica” história em quadrinhos que tornou-se extremamente popular no território nacional e conhecida internacionalmente. No ano de 1986, Maurício saiu da Editora Abril e passou a fazer parte da Editora Globo, onde permaneceu até 2006. Atualmente está na Editora Panini. O autor fundou o Instituto Maurício de Sousa, em 1997, para desenvolver campanhas sociais, realizando assim várias campanhas educacionais e institucionais. Atualmente, entre quadrinhos e tiras de jornais, suas criações chegam a cerca de 30 países. Dentre as revistas de histórias em quadrinhos mas vendidas no Brasil, dez são de Maurício de Sousa – o autor já alcançou o extraordinário número de 1 bilhão de revistas publicadas e é considerado o maior formador de leitores do Brasil. O autor ainda é considerado o mais famoso e premiado autor brasileiro de quadrinhos.

Buscamos sempre estar informados sobre os interesses das crianças. Acompanhamos as mudanças naturais de geração para geração. Por essa razão, acredito que sempre mantemos um público constante sem perda de atualidade. (Entrevista de Maurício de Sousa para revista Literatura da Editora Escala, 2013)

Isso se deve as diversas áreas que Maurício atua, como por exemplo: Livros ilustrados, revistas de atividades, álbuns de figurinhas, espetáculos teatrais, desenhos animados e longas-metragens produzidos pela Maurício de Sousa Produções. Maurício de Sousa, para a distribuição desse material (suas histórias em quadrinhos), criou um serviço de redistribuição que atingiu mais de 200 jornais ao fim de uma década, reproduzindo os mecanismos dos Syndicates em suas produções. Rodrigo Otávio dos Santos em seu artigo “Origem dos Quadrinhos e o Binômio Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates nos ajuda a compreender:

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Sousa percebeu que não poderia concorrer comercialmente com as tiras norte- americanas, vendidas de forma muito barata por meio dos já citados syndicates. Assim, o artista começou a vender a mesma tira para diversos jornais, passando a lucrar não mais com a criação da história, mas sim com sua distribuição pelo maior número de jornais possível. Com este tipo de estratégia, seus personagens ficaram conhecidos do grande público, sendo populares o suficiente para entrar em outro ramo do mesmo negócio, que no final da década de 1960 parecia mais rentável: as revistas em quadrinhos. (SANTOS. Origem dos Quadrinhos e o Binômio Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates. 2010.).

Apesar de Maurício de Sousa utilizar a lógica proposta pelos Syndicates, nos parece que ele amplia a possibilidade de utilização dos mecanismos utilizados antes por Aizen e Roberto Marinho, Maurício de Sousa cria suas histórias, então, toma para si a lógica de uma forma diferenciada, nos moldes de Walt Disney. Torna-se interessante perceber que a lógica de criação e apropriação das técnicas utilizadas pelos Syndicates é apropriada por Maurício de Sousa, que também se apropria da maneira que Walt Disney conduzia seus personagens, uma espécie de ideologia que se transfere sutilmente, não é explicita, e pretende atingir os leitores. Isso se traduz por exemplo na maneira que as Histórias de Maurício de Sousa são construídas.

História em quadrinhos é, antes de tudo, roteiro. Não é desenho: desenho vem na sequência. O que eu busco é roteiro, história, texto. (SOUSA, Uma conversa com Maurício de Sousa: depoimento. [Dezembro de 1982]. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo.

A Turma da Mônica não possui elementos regionais, que para o sistema mercadológico pode limitar seu potencial de vendas. A História é construída geralmente no Bairro do Limoeiro, que pode ser identificado como qualquer bairro ao redor do mundo, possui uma praça, pessoas aparentemente comuns. E a turma é composta por quatro personagens principais: Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, crianças que podem gerar identificação com leitores de outros países. Nesse sentido, Maurício de Sousa utilizou e continua utilizando a ideia base proposta pelos Syndicates, uma maneira

42 adequada de criar, produzir e reproduzir um produto. Além disso, ainda cria histórias em quadrinhos para ganhar contextos específicos, como é o caso de Pelezinho, personagem que surgiu em 1976 entre conversas de Maurício de Sousa com o jogador Pelé. A proposta era criar um personagem para promover melhor o jogador (e alavancar o mercado de histórias em quadrinhos) que tinha acabado de se tornar um fenômeno na seleção brasileira. A primeira edição da HQ Pelezinho foi publicada em agosto de 1977. Rodrigo Otávio dos Santos também observa o tato de Maurício de Sousa para comercializar seus produtos: “Em 1970, as revistas passam também a ser comercializadas na forma de revistas em quadrinhos, com histórias maiores e mais bem elaboradas, além de uma tiragem inicial de 200.000 cópias. (SANTOS, Origem dos Quadrinhos e o Binômio Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates 2010.). O autor ainda comenta que os gibis da Turma da Mônica tornaram-se os mais vendidos no território nacional. E nos diz que:

Atualmente as marcas de vendagem das revistas chega a atingir 400.000 exemplares para cada edição. Interessante salientar que a tiragem da mais bem vendida revista em quadrinhos nos Estados Unidos na década de 2000 foi a nova edição da revista Wolverine, que, de acordo com Allen (2007) vendeu 163.000 cópias. No entanto, apenas mais 5 títulos venderam acima de 100.000 cópias nesta década, mostrando que as revistas de Sousa são efetivamente muito populares no Brasil, não sendo sequer ameaçadas em sua liderança de vendas por nenhuma outra revista em quadrinhos brasileira ou estrangeira comercializada no Brasil. (SANTOS, Origem dos Quadrinhos e o Binômio Produção Consumo: De Topffer aos Syndicates. 2010.).

O autor apresenta uma interessante pesquisa sobre as relações de produção articuladas por Maurício de Sousa. Como por exemplo, a relação do Universo da Turma da Mônica com o merchandising. Em 1968 Maurício de Sousa fechou contrato com a empresa de alimentos Cica, onde inseria sua personagem Jotalhão, um elefante, para ser o garoto-propaganda do extrato de tomate Elefante. Dentro desta perspectiva, nos parece que esta foi uma das primeiras ações para que se construísse um império ligado ao merchandising, possibilitando nos dias de hoje a ligação direta entre o universo da Turma da Mônica e incontáveis produtos licenciados que vão desde um tipo específico de maçã

43 até alimentos caninos, passando pelos mais diversos tipos de brinquedos e artigos para bebês. Essa maneira de se vincular os produtos, e ganhar mercados específicos, ou seja, a possibilidade de se apropriar do universo das Histórias em Quadrinhos e construir um império apresenta-se como algo ímpar na história dos quadrinhos brasileiros. Paulo Ramos (2012) em sua obra “Revolução do Gibi – A Nova Cara dos Quadrinhos Brasileiros”, analisa a trajetória de Maurício de Sousa, segundo o autor é interessante perceber como Maurício de Sousa conseguiu se manter em um mercado difícil como o território nacional, e transformou suas revistas em líderes de vendas. O autor comenta que:

Não é exagero dizer que a turma da Mônica se tornou sinônimo de publicação infantil. Tanto que Maurício de Sousa foi indicado como um dos dez escritores mais admirados do país, segundo pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2008. Não Bastassem essas conquistas, o Pai de Mônica e Cebolinha soube se reinventar editorialmente na segunda metade da década inicial deste século. Trocou a Globo pela multinacional Panini (RAMOS, 2012, p. 59).

Ramos (2012), ao propor essa análise nos apresenta a maneira que Maurício de Sousa se articula para a utilização de suas Histórias em Quadrinhos. Trocar de editora, por exemplo, é uma estratégia baseada na lógica proposta pelos Syndicates. É compreender quais são os melhores caminhos para o meu produto, ou seja, pra onde devo vender? Portanto, nos parece que dentro do mundo dos quadrinhos Maurício de Sousa foi o que utilizou melhor as técnicas que vieram dos Estados Unidos. Maurício de Sousa conseguiu estruturar suas empresas reproduzindo de maneira muito eficaz os Syndicates norte-americanos tornando-se liderança única dentro da área de Histórias em Quadrinhos no Brasil. Após, aprender os métodos adequados, Maurício de Sousa apenas rearticula as conexões para gerar outros produtos, projetos, e novas propostas lucrativas.

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2.2 Maurício de Sousa Produções (Ltda)

Eu já sabia que queria distribuir para jornais e ter uma equipe grande para aguentar o rojão. Mas não sabia que o que ia acontecer, se teria sucesso. Sucesso não se planeja, só se deseja, se ambiciona. Mas quando se faz um trabalho bem feito, direitinho, organizado, bem montado e administrado, modéstia à parte, se alcança resultados. Depois de poucos anos, eu já estava preparado para fazer as revistas com uma equipe razoavelmente grande. Daí, o processo se espalhou, e já são mais de cinquenta anos de um processo sem volta, sempre crescendo. (Entrevista de Maurício de Sousa ao livro: Universo HQ Apresenta. 2015. p. 356).

A Maurício de Sousa Produções é a empresa responsável pela produção de histórias em quadrinhos, desenhos animados, criação e desenvolvimento de personagens, licenciamento de produtos e todos os demais projetos relacionados com as figuras dos personagens criados por Maurício de Sousa e/ou por funcionários da empresa. Situada na Rua Do Curtume, nº 745 em São Paulo, a empresa ou estúdio, apresenta espaços específicos para diferentes projetos, onde trabalham cerca de 300 funcionários, entre desenhistas, animadores e equipes de produtos e comunicação. A maneira de lidar com os personagens reproduz a estrutura de empresas multinacionais, ou seja, torna-se possível perceber o papel de indústria cultural que o estúdio ocupa, nas palavras de Roberto Civita: “O Brasil é o único país em que um material nativo sobrepujou a Disney em vendas” (CIVITA, apud GUSMAN, 2015. p. 343). A empresa apresenta uma projeção visual, marcando sua identidade em produtos que vão além de histórias em quadrinhos e desenhos animados, como por exemplo em saches de açúcar e adoçantes utilizados no próprio estúdio. Outra característica, interessante é o processo que se destaca no desenvolvimento das atividades exercidas no estúdio2, feita em etapas, por diferentes artistas, perspectiva que representa o conceito de Taylorismo, pois, está ligada ao aperfeiçoamento dos

2 No dia 10 de Outubro de 2016, foi possível conhecer a Maurício de Sousa Produções. Depois de alguns telefonemas e e-mails, a produção deixou claro que valorizava as pesquisas acadêmicas, e se colocaram à disposição para uma visita, onde foi possível verificar de perto o processo de produção das Histórias em Quadrinhos e outros produtos do estúdio.

45 métodos empregados no processo de trabalho, especialmente no tocante aos seus aspectos organizacionais, uma vez que o desenvolvimento dos meios e instrumentos de trabalho foi mínimo (RIBEIRO, 2002), ou seja, a partir de Taylor pode-se compreender que o capital e o trabalho se fortalecem com a prosperidade e a cooperação (HELOANI, 2002). A construção de Histórias em Quadrinhos apresenta-se nas seguintes etapas: Roteiro (é nele que estará descrito cada quadro, como ficam os personagens nele, qual cenário, falas, e como se desenrola toda a história. Desenhista (acompanha as descrições e ilustrar o que roteirista imaginou.); Arte Finalista (reforça e limpa o traço do desenhista, dá textura e profundidade às imagens); Colorista (trabalha com a palheta de cores); Letrista (adiciona os balões e coloca o texto das falas), questões ligadas a impressão e distribuição (no caso da Maurício de Sousa Produções), são atribuídas as editoras nas quais o estúdio tem parceria, atualmente é feita pela Panini Comics. Uma particularidade do estúdio é o fato de a Maurício de Sousa produções trabalhar com uma palheta de cores padronizadas que envolvem a cor de pele dos personagens, suas roupas e também o cenário, e a empresa utiliza uma fonte (formato de letra) própria, chamada “Maurício de Sousa”. Em suma, é possível notar a partir de uma análise sobre a Maurício de Sousa produções, que sua funcionalidade representa os mecanismos comunicacionais baseados no conceito de indústria cultural, ou seja, nas palavras de Maurício:

Não inventei nada. Estava só imitando o que os americanos faziam com redistribuição de tiras com sindicatos. Na redação da Folha de S. Paulo, onde eu trabalhava, recebíamos todo o material dos Syndicates. Então, pedi para o redator-chefe me passar os prospectos, materiais e propagandas que eles mandavam. Era uma espécie de curso, uma pós-graduação de comercialização dos quadrinhos que eu fiz. Passei quatro ou cinco anos na redação aprendendo com esse material e me preparando para fazer esse trabalho no Brasil, guardadas as devidas proporções de nosso país. (Entrevista de Maurício de Sousa ao livro: Universo HQ Apresenta. 2015. p. 346).

A organização Maurício de Sousa produções, portanto, configura uma série de relações dialógicas, algumas delas capturadas em torno do conceito de Indústria Cultural,

46 que permitem uma análise mais consequente do personagem Jeremias, conforme será visto no próximo capítulo.

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Periodização Maurício de Sousa Produções

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3. Periodização Maurício de Sousa Produções

A metodologia a ser desenvolvida levará em conta o fato de que este estudo volta-se para a análise da Identidade Dialógica do personagem, evitando a naturalização de conceitos, e propondo a identidade como fluida, ligada a valores culturais instituídos, evitando, pensar em identidade como estável, estática. Para isso compreende-se como necessário demarcar as circunstâncias e contextos sócio-históricos que possibilitaram a configuração do personagem. Esse estudo e consequente análise sobre o personagem Jeremias perpassa os espaços simbólicos e representacionais, observando as posições que o personagem é direcionado, e percebendo sua funcionalidade. Neste trabalho, o uso deste tipo de estrutura analítica pauta-se sobre a Indústria Cultural, pois, a partir desta instituição alterou-se a noção de entretenimento e lazer, e essa articulação foi construída visando o que deve ser consumido e consequentemente gerar prazer para a sociedade. Destaca-se também, a questão mercadológica existente e os valores atribuídos, relacionando-os com as ideologias presentes e arquitetadas como parte do produto, construindo denúncias sobre o real significado das mensagens, criando-se novas maneiras de se perceber o produto como um problema. A pesquisa sobre personagens que atuam dentro dos universos conduzidos pela Indústria Cultural, ou seja, os personagens presentes no cinema, novelas, nos livros, histórias em quadrinhos ou qualquer universo que funcione de forma narrativa, deve-se pautar por possibilidades metodológicas plurais, para que possamos analisar as articulações e construções simbólicas referentes aos personagens de maneira adequada, nos proporcionando assim novas meditações sobre o objeto de estudo. Para tal, optou-se por observar o trabalho de Dorfman e Matterlart (1971), intitulado “Para ler o Pato Donald”, obra que alcançou notoriedade dentro dos estudos culturais sobre histórias em quadrinhos. Os autores fazem parte de um grupo chileno de análises da área de comunicação, e apresentam como traço marcante abordagens teóricas com certa originalidade, construindo trabalhos que se articulam entre o “real significado das mensagens” e relatórios do exercício concreto do poder editorial na tentativa de transformar conteúdos em mercadorias (Miranda, 1978 apud DORFMAN e JOFRÉ, 1978, p.10).

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Miranda (1978), comenta que tal obra funciona de forma panfletária, dedicando-se ao desmascaramento da sútil forma de abordagem do universo Disney. Os autores negligenciam o papel dinâmico de Pato Donald, analisando várias histórias deste personagem a partir de um único olhar, partindo desta prática, ignorou-se que o personagem foi concebido por diferentes artistas em momentos sociais, políticos e econômicos que se diferem entre si. A obra intitulada “Para ler o Pato Donald”, ensina- nos a prestar atenção na lavagem cerebral que funciona através dos veículos massivos de comunicação, e que na frente deste manifesto está a maquiavélica Disney: “Em consequência, temos no “Para Ler o Pato Donald” um poderoso panfleto (aliás, esta a intenção principal de seus autores, mas um texto de escasso valor teórico, que se limita a denunciar o “imperialismo cultural” e seus efeitos”. (MIRANDA, 1978 apud DORFMAN e JOFRÉ, 1978, p.11). Compreendo a contribuição dos autores para o estudo e análise do fenômeno da comunicação de massa e da ação imperialista articulada pela Indústria Cultural, nota-se que sem a leitura desta obra, algumas considerações presentes neste texto não existiriam, entretanto, torna-se necessário pontuar que a metodologia utilizada deixou lacunas, e a partir destas lacunas, pretendo conduzir a pesquisa sobre meu objeto de estudo de maneira distinta dos autores citados. Esse tipo de prática apresenta-se como um problema, pois, tenta-se fixar o personagem, como se tivesse uma identidade presa, marcada. Tais abordagens funcionam a partir de simplificações banalizadoras costurando uma espécie de esquematismo empobrecedor. Diminui-se o potencial signico do personagem, impossibilitando novas concepções metodológicas e danificando a análise de conteúdo. E ignora-se o fato de que o personagem pode ser compreendido como um ícone, assim sugere Mcclould (1993) “Todavia, nas figuras, o significado é fluido e variável, de acordo com a aparência elas diferem da “vida real” em vários graus” (MCCLOULD, 1993). Mcclould (1993), comenta que as imagens que normalmente compreendemos como símbolos são uma categoria de ícone, e as figuras funcionam como imagens criadas para se assemelharem a seus temas. (MCCLOULD, 1993, p. 27). Vale ressaltar que as diversas formas narrativas podem ser diferentemente interpretadas e significadas, e os personagens compreendidos de uma maneira não fixa estão sujeitos a reinterpretações e ressignificações. Dentro desta perspectiva entende-se

50 como metodologia impropria tornar estático o que é dinâmico, e que o universo das histórias em quadrinhos altera-se constantemente. Então, ao propor uma análise sobre um personagem não podemos cometer o erro de apresentar como unívoco o que é múltiplo. O significado das histórias está ligado a muitos processos, entre eles a questão capitalista de produção que incorpora as contradições inerentes às relações produtivas, e como sinaliza Eisner (2013): “A arte dos quadrinhos lida com reproduções facilmente reconhecíveis da conduta humana”. (EISNER, 2013, p. 21). Observando o personagem Jeremias como objeto de estudo, pretende-se problematizar o universo construído por Maurício de Sousa, demarcando as utilizações do personagem negro nas histórias em quadrinhos, analisando a funcionalidade da identidade narrativa em articulação com a identidade negra. Evidenciando os possíveis estereótipos e arquétipos, e questionando a instrumentalização do personagem Jeremias e suas formas de representação articuladas pela Maurício de Sousa Produções, tendo como ponto de observação, também, as condições históricas no qual este foi concebido, dando atenção as transformações sociais e seus efeitos. Em outras palavras, o personagem deve ser analisado e compreendido de forma não linear, se possível, tridimensional, ou polivalente, pois em sua construção a uma série de fatores envolvidos que implicam em mudanças em seus conteúdos, que estão vinculadas ao desenvolvimento da sociedade capitalista e às necessidades de valorização do indivíduo com determinadas características. (SILVA, 2005 apud VIANA, 2005, p.9). Sobre a construção do personagem, nota-se que os seres sociais e conscientes que escrevem (e desenham) fazem de uma determinada forma, portando determinadas concepções, valores, sentimentos, justamente com determinada relação com o tema que abordam (VIANA,2011). Nesse sentido, Viana (2011), complementa “Um texto, assim como um livro de textos, é a manifestação de uma relação social” VIANA (2011 apud VIANA e REBLIN, 2011, p.11.) Pontuo então, que as HQ’s apresentam esta manifestação de relações sociais, e nas palavras de Eisner (2013): “O processo de leitura dos quadrinhos é uma extensão do texto” (EISNER, 2013, p.9). Portanto, um personagem, além de sua representação visual e narrativa contém um grau de comunicabilidade, é um produto atrelado a significações. O Personagem Jeremias de Maurício de Sousa será analisado levando em consideração estes fatores, como por exemplo, o processo de construção e significação

51 do personagem que data da década de 1960, e suas alterações estéticas que ocorreram nas décadas subsequentes, levando o personagem a estar presente nas histórias em quadrinhos até os dias atuais. Pretende-se também, verificar os protagonismos específicos do personagem, que geralmente funcionam em ambientes temáticos ligados a África, a escravidão, ou a posições subalternas, sempre destacando o deslocamento do personagem, e nunca compreendendo este de forma fixa, imutável. Pois, os personagens podem alterar-se de geração em geração, e a medida que são transmitidos, mudam sobre novas pressões. Para O’Neil (2009):

Isso acontece... bem, por uma série de razões. Os criadores tem novas ideias, ou são forçados a ter novas ideias porque o mercado faminto exige novas histórias... ou os criadores envelhecem e aos poucos começam a pensar no mundo de um jeito diferente, e essas mudanças refletem-se de um modo sútil no trabalho deles. (O’NEIL, Dennis. O Crimson Viper versus a Manyaca Meme Metamorfica. In: IRWIN, William (org.) Super-Heróis e a Filosofia: Verdade, Justiça e o Caminho Socrático. Tradução: Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2009.

Partindo deste pressuposto, a metodologia utilizada se baseia na análise de um grupo específico de Histórias em Quadrinhos, propondo uma leitura flutuante sobre narrativas em que o personagem Jeremias está localizado, mapeando assim, as posições e deslocamentos do personagem dentro das histórias em quadrinhos. Nota-se que existe certa dificuldade em mapear todas as aparições do personagem, levando em conta o pioneirismo de tal pesquisa, pois, nenhuma outra até então, pautou- se sobre estudos específicos do personagem Jeremias, nesse sentido, pretende-se capturar as histórias em quadrinhos em que a presença do personagem se torna mais efetiva, para que se possa examinar a identidade narrativa do personagem de maneira mais eficaz. Tendo como referência este material, a análise será construída observando a narrativa gráfica no âmbito do diálogo (textos presentes nas Hqs) e a representação estética do personagem no intuito de perceber a articulação entre esses dois campos (a questão narrativa e a visual), propondo releituras, pois a leitura do texto não pode ser dissociada da leitura do mundo, já que os sentidos de dado discurso circulam na consciência de um leitor a partir de formações discursivas muitas vezes vinculadas a outras esferas da vida

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social (CASTRO; ALCANTARA, 2007). E de que forma funciona a representação do personagem a partir da compreensão de sentidos que a história em quadrinhos produz. No sentido de propor um recorte temporal, pontuando uma abordagem histórica, construiu-se uma periodização3, evidenciando os diferentes momentos da produção cultural de Maurício de Sousa, localizando a posição do personagem Jeremias.

Periodização

Maurício de Sousa Produções

Período Turma Era dos Esboços Período Pré – Turma Período Pós-Turma

(1947- 1961) (1961 – 1970) (1970 – 2008) (2008 – 2016)

3.1 Era dos Esboços (1947- 1961)

Consideramos “Era do Esboço” período em que Maurício de Sousa inicia sua prática de desenho e consequentemente carreira como desenhista. Nesse período apresenta-se o primeiro personagem de Maurício de Sousa, o Capitão Picolé (1947) foi apresentado em uma edição de Mônica 35 anos (1998), como o primeiro personagem criado por Maurício de Sousa (até então, o cãozinho Bidu era apresentado nas HQ’s como o primeiro

3 Em “Maurício 80” revista lançada em 2015 como proposta de comemoração aos 80 anos do autor, apresenta-se nesta publicação uma periodicidade de cunho ficcional. O autor aponta seis períodos, que se dividem entre sua infância e sua fase adulta. Esses períodos são divididos por seis gênios da inspiração que Maurício de Sousa encontrou durante sua vida. São eles: Fantasia, Aventura, Terror, Ficção, Juventude e Inspiração Filosófica. O autor ainda pontua que sua produção baseia-se em 19 universos.

53 personagem de Maurício de Sousa), o autor reapresentou o personagem nas revistas Lostinho (2006), Os 12 Símbolos do Natal (2009), MSP 50 (2009) e Uma Aventura Olímpica (2012). Dentro de um ponto de vista histórico torna-se importante pontuar o início da trajetória editorial de Maurício de Sousa nos Quadrinhos. Em 1959 Maurício de Sousa apresenta o personagem Bidu nas tirinhas de jornais na Folha de São Paulo. A tirinha alcança visibilidade, e a editora Continental lança o gibi Zaz Traz, Bidu e Franjinha (outro personagem de Maurício de Sousa) figuram as páginas da revista. Mauricio entrou na Continental pelas mãos do desenhista Jayme Cortez, um dos mandachuvas da editora, e logo se tornaria seu amigo (nos gibis da Abril, por sinal, Cortez era o único ‘autorizado’ a desenhar as criações de Mauricio em estilo próprio). Devido ao sucesso das histórias em quadrinhos, Bidu logo ganhou título próprio, que durou oito edições. A partir do número 5, contudo, o gibi passou a trazer quadrinhos também de outros autores, já que Mauricio não conseguia tempo para produzir as tiras diárias e o material para a revista simultaneamente. Atualmente Bidu, continua fazendo parte das HQ’s do universo de Maurício de Sousa, e é o símbolo da empresa de Mauricio, a Mauricio de Sousa Produções. Nesse período o personagem Jeremias aparece pela primeira vez, na revista Bidu, e analisaremos as histórias em quadrinhos:

 O Ovo da discórdia. Revista Bidu nº 1. Ed. Continental. 1960.  Um Rapaz do Outro Mundo. Revista Bidu nº 1. Ed. Continental. 1960.

3.2 Período Pré – Turma: (1961 – 1970)

Com a popularização do personagem Bidu, Maurício de Sousa começa a criar outros personagens, e inicia algumas articulações distribuindo seu material. Em 1963, Mauricio de Sousa cria junto com a jornalista Lenita Miranda de Figueiredo, Tia Lenita, a Folhinha de S. Paulo. Sua principal personagem a Mônica foi criada neste ano. A Folhinha apresentava um formato diferenciado, não se parecia com nenhum desses suplementos que circulam nos jornais de hoje — todos, ainda assim, derivados dela. Da

54 primeira à última página, o jornalzinho era fartamente ilustrado com os personagens da Turma. As tiras de Mauricio eram publicadas na Folha (Bidu, Franjinha e Cebolinha) e no Diário da Noite (Astronauta, Piteco, Zé da Roça & Hiro). Pois foi com esses personagens que o quadrinista lançou, em 1965, pela Editora FTD, três livros ilustrados. Maurício de Sousa atuava em diferentes plataformas, oferecendo diferentes personagens e iniciando a construção de seu universo. Deste período será analisada a história em quadrinhos:

 “Quem conta um conto”. Revista Mônica nº 2. Editora Abril, 1970.

3.3 Período Turma – (1970 – 2008)

Período em que cria-se se a revista Mônica e sua turma, primeira revista seriada apresentando o universo construído por Maurício de Souza com a protagonista Mônica. Nesse momento Maurício constrói as relações entre os personagens, inserindo estes em um mesmo espaço que será chamado de “Bairro do Limoeiro”, e paralelamente constrói universos distintos distribuindo seus personagens entre o espaço, a pré-história, a selva, etc. Esse período se desdobra em cinco plataformas diferentes, articulando-se em cinco fases.

Fase1: Início do Universo Maurício de Sousa

Entre 1970 e 1986, já como Turma da Mônica, as revistas passaram a ser publicadas pela Editora Abril. Pela Abril Maurício publicou 200 edições (1-200). No ano seguinte (1987), a turma da Mônica passou a ser publicadas pela Editora Globo, onde ficou até 2006 e totalizou 246 edições (1-246). A partir de 2007 A turma da Mônica e os outros produtos editoriais de Maurício de Sousa começaram a ser publicados pela editora Panini, que atualmente ainda publica os produtos de Maurício de Sousa. Nessa fase serão analisadas inicialmente as histórias em quadrinhos:

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 “Fumando” – Revista Cebolinha 121, Ed Abril. 1983  “Jeremim – O Príncipe que veio da África” - Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo.1987  “Os Novos Donos da Rua” - Almanaque da Mônica nº 1 - Ed. Globo, 1987  “A raça do Floquinho” - Revista Cebolinha nº 107. Globo, 1995.

Fase 2: Produção Audiovisual

Os personagens da Turma da Mônica também são os protagonistas da que pode ser considerada a primeira série de animação brasileira. Após ser introduzida na televisão como garotos-propaganda em comerciais a partir de meados dos anos 1960, histórias completas começaram a ser produzidas em 1976 e distribuídas através de filmes- coletâneas durante os anos 1980 e 1990 (lançados inicialmente nos cinemas e depois em diretamente em vídeo) A coleção audiovisual possui até o ano de 2015 vinte e três títulos, segue abaixo:

 As Novas Aventuras da Turma da Mônica (1986, cinema e vídeo)  A Fonte da Juventude e Outras Histórias (1986)  Mônica e a Sereia do Rio (1986, cinema e vídeo)  O Bicho-Papão e Outras Histórias (1987, cinema e vídeo)  A Estrelinha Mágica (1988, cinema e vídeo)  Chico Bento, Óia a Onça! (1990, vídeo)  O Natal de Todos Nós (1992, vídeo)  Turma da Mônica Quadro a Quadro (1996, vídeo)  Videogibi Turma da Mônica: O Mônico (1997, vídeo)  Videogibi Turma da Mônica: O Plano Sangrento (1997, vídeo)  Videogibi Turma da Mônica: O Estranho Soro do Dr. X (1998, vídeo)  Videogibi Turma da Mônica: A Ilha Misteriosa (1998, vídeo)  Coleção Grandes Aventuras da Turma da Mônica (2003, relançamento em DVD incluindo novos episódios)  Cine Gibi - O Filme (2004, cinema, vídeo e DVD)  Cine Gibi 2 (2005, DVD)  Cine Gibi 3: Planos Infalíveis (2008, DVD)  Cine Gibi 4: Meninos e Meninas (2009, DVD)  Cine Gibi 5: Luzes, Câmera, Ação! (2010, DVD)  Se Liga na Turma da Mônica - Volume 1 (2011, DVD)  Se Liga na Turma da Mônica - Volume 2 (2012, DVD)

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 Cine Gibi 6 - Hora do Banho (2013, DVD e Blu-Ray)  Cine Gibi 7 - Bagunça Animal (2014, DVD)  Cine Gibi 8 - Tá Brincando? (2015, DVD)

Entre os 23 títulos destacados, o personagem Jeremias aparece apenas em dois momentos, nas produções: A Fonte da Juventude e Outras Histórias (1986) e Se Liga na Turma da Mônica - Volume 1 (2011).

Fase 3: Turma da Mônica Baby (1990)

A Turma da Mônica Baby é a versão bebê da Turma da Mônica, que foi criada por Mauricio de Sousa e surgiu no início do ano de 1990, também é chamada de Turminha Baby e aparece com frequência nos pacotes de fraldas descartáveis, em babadores, em brinquedos e outras coisas direcionadas para o público da primeira infância de 0 a 3 anos. Constantemente, nas historinhas da "Turma da Mônica Baby" aparecem crianças (bebês) reais que foram desenhadas pela MSP (as crianças foram sorteadas pela antiga promoção "Seu Bebê no Meu Gibi"). A Turma da Mônica Baby é composta por um pequeno grupo de personagens, e não inclui o personagem Jeremias. Fazem parte os seguintes personagens: Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Mingau, Bidu e Anjinho.

Fase 4: Você sabia? (2003) E Saiba Mais (2007)

As publicações Você sabia? (2003) e Saiba Mais (2007) apresentam temáticas educacionais no sentido de apresentar histórias em quadrinhos que ensinem além de divertir. Essas revistas discutem assuntos ligados às áreas de ciências, história, saúde, comunicações, folclore, datas específicas e biografias de personalidades da história brasileira. Este tipo de história em quadrinhos não representa algo novo para os Estúdios de Maurício de Sousa, que há muitos anos possuem um ativo e eficiente departamento voltado para projetos especiais, com o propósito de elaborar histórias em quadrinhos com finalidades específicas. Desta Fase será analisada a revista:  Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição da Escravatura (2007)  Saiba Mais sobre o Descobrimento do Brasil (2008)

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Fase 5: Clássicos do Cinema (2007)

A série Clássicos do Cinema da Turma da Mônica possui até fevereiro de 2016 cinquenta e uma edições. Neste tipo de histórias em quadrinhos, os personagens de Maurício de Sousa representam histórias do cinema consagradas pela crítica e consideradas produtos da cultura pop. Nesta fase analisaremos a revista:

 Os Vingadoidos – Clássicos do Cinema Turma da Mônica. Panini Comics. 2013.

3.4 Período Pós-Turma (2008 – 2016)

Período em que a Turma da Mônica já é conhecida em todo território nacional, e internacionalmente, e se diversifica, a Maurício de Sousa Produções articula novas possibilidades e amplia suas plataformas. Para as plataformas deste período pretende-se verificar as aparições do personagem Jeremias, pensando em suas representações na fase “Pós-Turma” da Mônica em diferentes séries. Torna-se importante salientar que as revistas da Turma da Mônica continuaram a ser produzidas e ganharam a titulação de “Clássicas”. Em relação as revistas da “Turma da Mônica Clássicas”, analisaremos:

 Jeremias presidente da turma. Revista Cebolinha nº 30. Ed. Panini. 2012.

Turma da Mônica Jovem (2008)

A Turma da Mônica Jovem é uma publicação mensal dos Estúdios Mauricio de Sousa lançada em agosto de 2008. Trata-se de uma releitura dos personagens da Turma da Mônica em versões adolescentes, em traços e linguagem que remetem aos mangás japoneses e histórias que buscam dialogar com o público pré-adolescente. Com edições que já chegaram a atingir tiragens superiores a 400 mil exemplares, é uma das séries de histórias em quadrinhos mais vendidas no mundo. Desta série serão analisadas inicialmente as Histórias:

 Edição nº 4: Fortes Emoções – Primeira aparição do personagem Jeremias na Turma da Mônica Jovem

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 Edição nº 11: Ser ou Não ser – Primeira vez que o personagem apresenta diálogo na Turma da Mônica Jovem

Clássicos Ilustrados Turma da Mônica (2008)

Os clássicos ilustrados da Turma da Mônica, foram lançados pela RBS Publicações. São 14 livros na coleção, e cada um deles traz um conto clássico como, por exemplo, Cinderela, Branca de Neve e Rapunzel, representado pelos personagens da Mônica, e assinado pelo pai da turminha, Mauricio de Souza. O objetivo da coleção é incentivar o aprendizado, dos valores abordados nas histórias, com diversão através da releitura dos clássicos. Nesta série será analisada a história:

 A Roupa Nova do Rei

MSP 50 (2009 – 2012)

MSP 50 é uma série de quatro livros de quadrinhos desenvolvido pela Mauricio de Sousa Produções no qual artistas brasileiros foram convidados a elaborar histórias em que fizeram uma releitura dos personagens clássicos de Mauricio de Sousa em homenagem aos 50 anos da carreira do quadrinista, completados em 2009. A série deu origem ao projeto Graphic MSP, iniciado em 2011. Desta série será analisada a história:

 A Lenda de Jeremiwazi. André Diniz. MSP+50 – Maurício de Sousa por mais 50 artistas. Editora: PANINI LIVROS. Edição: 2. 2011

Histórias em Quadrões (2010)

Com 'Histórias em Quadrões', o autor tem como objetivo atrair as crianças aos museus, e usa a turminha das histórias em quadrinhos para difundir o universo das artes plásticas. Desta série será analisada a pintura:

 Primo Mestiço do Jeremias

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Lendas Brasileiras (2010)

Livros que apresentam algumas das lendas mais conhecidas do folclore popular brasileiro, representadas pelos personagens da Turma da Mônica lançado em 2010 pela editora Girassol. Desta série será analisada a História:

 Turma da Mônica: Negrinho do Pastoreio

Mônica Toy (2013)

Mônica Toy é uma série derivada lançada em maio de 2013 e distribuída via internet, pelo canal oficial do Youtube da Turma da Mônica. Os personagens da Turma da Mônica são reapresentados em traços chibi e vivem situações cômicas através de histórias mudas, de 30 segundos cada. A série está em sua quarta temporada e também chegou a ser episódios apresentados na programação dos canais TBS e Cartoon Network.

Edições Especiais

Durante este período (Pós-Turma, entre 2008 e 2016) foram lançadas diversas edições especiais em comemoração aos Aniversários de Maurício de Sousa e dos primeiros personagens da Turma da Mônica. Pretende-se também observar a posição do personagem Jeremias nas edições especiais, verificando a presença ou ausência do personagem nas “comemorações” da Maurício de Sousa Produções.

Tendo como referência a periodização e as fases e séries destacadas pretende-se avaliar como a identidade narrativa de Jeremias funciona em cada espaço, e caracteriza- se efetivamente, articulando tal narrativa com a temporalidade, num quadro de interações distintas. A partir daí será possível compreender que a construção e deslocamento do personagem dependerá das transformações subjetivas e objetivas que ocorrem na Indústria Cultural, frente ao desenrolar dos eventos sociais. Se debruçar sobre a noção de identidade é apresentar um tom reflexivo, direcionando os estudos das histórias em quadrinhos a uma compreensão de temporalidade. Isso nos ensina que: Para se estudar um personagem que consequentemente possui uma identidade narrativa não se deve usar categorias monolíticas e essencialistas, pois o caráter não fixo da identidade torna instáveis as fronteiras (CASTRO, 2012).

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Pretende-se então, posicionar e contextualizar as HQs em seus horizontes socioculturais, pontuando o processo de mudanças onde um dado personagem, ou uma certa identidade, transita de uma caracterização preliminar até um momento posterior, com caracterização totalmente diferente, portanto, a identidade do personagem pode se transmudar assumindo contornos que fragmentam o sujeito e se articulam de diferentes formas nas relações presentes no texto. A pesquisa possui um caráter de reflexão sobre as questões étnico-raciais, não observando apenas as narrativas propostas por Maurício de Sousa, mas também o campo social que conduziu, no Brasil, a maneira que se localiza o negro dentro do campo de representação, verificando os modos de produção e manutenção de estereótipos e estigmas em torno do negro (BORGES, 2012). Refletindo sobre a instauração de outras narrativas capazes de abordar dimensões diferentes sobre a temática racial dentro das HQ’s. Citando Rosane Borges (2012) “As formas de emoldurar o Outro, de fundi-lo em figuras restritas, é prática recorrente nos sistemas midiáticos que se nutrem, em grande medida, do discurso imagético”. (BORGES, 2012). Portanto, pretende-se questionar posições que acentuam uma imagem deformante do negro – sempre caminhando no sentido de marginalizá-lo de uma maior participação nos destinos da sociedade global (LUZ, 2010). A partir da compilação desses dados será possível afirmar o quanto de estereótipos e arquétipos existem no personagem Jeremias, e de que forma a Indústria Cultural manipula o personagem negro nas histórias em quadrinhos, nas palavras de CIRNE (1982): “A verdade é que nossa galeria de personagens negros é bastante pequena”. (CIRNE, 1982, p.53.). Nesse sentido, a partir das Histórias em Quadrinhos da Turma da Mônica propõe- se uma leitura crítica sobre as relações presentes na identidade narrativa que consequentemente servirá de pano de fundo para a discussão de questões atuais, ligadas a identidade negra, colocando em xeque as estruturas temporais e evitando que a identidade (narrativa e negra) venha a ser interpretada em termos rígidos, naturalizados e permanentes. Portanto, compreender o Jeremias como objeto de pesquisa é propor uma análise sobre a maneira que o personagem negro é construído e articulado dentro das histórias em quadrinhos, pensando as coincidências na qual o negro é submetido na

61 sociedade brasileira nos diferentes momentos e histórias em que o Jeremias está presente são produzidas e comercializadas. Em suma, os mecanismos funcionais de análise de personagem elaborados por estudos como os de Dorfman e Matterlart (1971), podem funcionar como referência, entretanto, pretende-se seguir caminhos distintos, propondo novas leituras e formas de contextualização, evidenciando o status móvel do personagem, propondo assim, um estudo analítico e consequentemente plural, no sentido de evidenciar as utilizações do personagem (negro) Jeremias, as articulações e mecanismos gerados pela Indústria Cultural com objetivo de produção e comercialização direcionada a obtenção de lucros.

Era dos Esboços (1947- 1961)

O período entre 1947 e 1961 apresenta-se como um recorte inicial, servindo como base para identificar os primeiros passos de Maurício de Sousa. Apesar de ser entendido com um período onde seus primeiros personagens foram surgindo, o exercício analítico se pautará pelas questões que evolvem o personagem Jeremias, que representa o objeto específico deste trabalho. Portanto, para tal perspectiva, optou-se por apresentar em um primeiro momento as referências que fizeram com que o pai da Turma da Mônica construísse um repertório estético de como se desenha, ou seja, como se constrói esteticamente um personagem negro. Nota-se que, as narrativas apresentadas como referência para se compreender o personagem estudado funcionam como importante referencial teórico, pois, apresentam-se como mediadoras dos valores latentes na sociedade brasileira (BAETA, 2009). Dentro desta análise, observa-se possíveis perspectivas recorrentes no discurso das histórias em quadrinhos, leva-se em conta, então, o fato de que os discursos surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido (BAKHTIN, 2011). Tais perspectivas nos levarão a conclusão de que nenhum personagem surge por acaso, ou seja, todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem (idem, 2011). Pontua-se então, a observância de padrões relativamente comuns nos diferentes estratos da sociedade, padrões estes que configuram as tentativas de fixar determinadas posições, ou seja, o personagem pode estar ligado a estereótipos, um modelo de representação unívoca, que funciona como um

62 conhecimento instituído (DIAS, 2010). A partir desses dados, identificaremos inicialmente o contexto sócio-cultural, no qual, mediante relações dialógicas, Maurício de Sousa construiu seu personagem negro chamado Jeremias.

O Contexto sócio-cultural: Como se desenha um Negro?

Os traços que identificam um personagem surgem de um imaginário social, nesse sentido, nota-se como importante, evidenciar quais cenários direcionaram o artista que desenhou o personagem Jeremias, ou seja, ao analisar um personagem, deve-se levar em conta o ambiente social no qual estava inserido. A adequação e construção dos personagens estão vinculadas ao contexto social. Para tal, perceber algumas das histórias em quadrinhos que Maurício de Sousa leu, e consequentemente se afeiçoou, amplia a perspectiva dialógica, indicando o caminho por onde a construção imagética do autor- desenhista se fundamentou. Em entrevista a série “HQ Edição Especial”, transmitida pelo canal HBO em julho de 2016, Maurício de Sousa apresenta suas referências mais importantes, segundo o autor:

Tinha príncipe valente que era um clássico né? Um clássico world, tinha Mandraque, Tarzan, Ferdinando e tinha o Espirito. Que é a história em quadrinhos que mais me impressionou e mais me influenciou como narrativa, como ousadia criativa, desenho eu não puxei Will Eisner, puxei roteiro, mas em desenho eu gostava do Teréré, eu gostava do Popeye antigo e também a Luluzinha -Bolinha que influenciou milhões de pessoas ai com desenhos simples né, e chutinho, e tudo mais então eu fui puxando esses dados das histórias e criando meu estilo que é uma colcha de retalhos, tudo que eu fui apreendendo juntei ali, fui desenhando. (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

A partir das palavras do autor é possível compreender o cenário social no qual este estava inserido. Portanto, a construção de seus personagens se relacionam, ou seja, dialogam com referências iniciais, percebe-se então, que as relações dialógicas se conectam no sentido de dar sentido a construção, inserção e manutenção do personagem nas histórias em quadrinhos. Para se compreender melhor as referências de Maurício de Sousa, construiu-se uma tabela, indicando se tais narrativas possuíam algum personagem

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negro em seu elenco principal. A tabela foi construída de acordo com a ordem de referência que o autor apresentou, não seguindo portanto, a ordem cronológica da construção de cada história em quadrinhos. Nota-se que todo material pertencia aos Estados Unidos, chegando ao Brasil pelos Syndicates.

Repertório Cultural de Maurício de Sousa baseado nos Quadrinhos

Príncipe Mandraque Tarzan Ferdinando Espirito Teréré Popeye Luluzinha- Valente (1934) (1929) (1934) (1940) (1935) (1929) Bolinha (1937) (1935) Nenhum Um Nenhum Nenhum Um Nenhum Nenhum Nenhum personagem Personagem personagem personagem personagem personagem personag personagem Negro no Negro no Negro no negro no negro no Negro no em Negro no elenco elenco elenco elenco elenco elenco Negro no elenco principal principal principal principal principal principal elenco principal. chamado: chamado: principal Lothar. Ébano White.

Foram apresentadas oito referências, que datam de 1929 – 1940. Tais datas representam os lançamentos das tirinhas dominicais nos Estados Unidos. De todas as histórias em quadrinhos, apenas duas apresentam personagens negros. Percebe-se então, uma prática comum de não utilizar personagens negros advinda dos Estados Unidos, e sendo veiculada na mídia nacional, ou seja, ao se compreender o contexto apresentado na lógica estadunidense, percebe-se que as identidades dos personagens negros possam estar enclausuradas em uma objetividade esmagadora (FANON, 2008). Nos concentraremos então, nos dois personagens que fizeram parte do imaginário simbólico do criador de Jeremias, direcionando como deveria ser o negro dentro das narrativas quadrinizadas. Lothar, é um personagem criado em 1934 por Lee Falk, ajudante do personagem título da série, o Mandraque. Lothar é o típico personagem negro que vem da África, tem força bruta, porém não consegue pensar sozinho, sendo sempre direcionado pelos conhecimentos do mágico Mandraque.

No início, Lothar era uma espécie de “Bom Selvagem”, mas com o tempo, Falk para adaptar as tiras aos novos tempos, o fez um homem sofisticado e boa pinta. (Artigo publicado no site Guia dos Quadrinhos por Antônio Luiz Ribeiro em setembro de 2007.)

Ébano White, criado por Will Eisner em 1940 é um taxista, que tenta ajudar Espirito (Spirit no original) a ir a certos lugares, ou a fugir deles se for necessário, não

64 consegue falar inglês direito, sendo sempre corrigido por ter um vocabulário deficiente, um verdadeiro estereótipo. O próprio Eisner admitiu os problemas na estética de seu personagem, nas palavras de Eisner:

Em julho de 1940, comecei uma tira de jornal, chamada Spirit, sobre um herói mascarado, que punha em cena, como contraponto cômico, um jovem afro- americano de nome Ébano. Isso não era nenhuma inovação. Jack Beny tinha Rochester, o cinema tinha Stephin Fretchit, o rádio tinha Amos e Andy. Tais eram as caricaturas estereotipadas aceitas na época. Naquele estágio de nossa história cultural, o uso deformado do inglês, com base na origem étnica, era considerado humor. Ébano falava o dialeto ‘negro’ convencional, e seu humor leve contrabalançava a frieza das histórias de crime. Na minha ânsia de atrair mais leitores, achei que tinha descoberto um bom filão. (EISNER, 2011. p.3).

Eisner ainda comenta que tomou consciência da gravidade do estereótipo posteriormente, percebendo as implicações sociais dos estereótipos de raça. O autor pontua que “com a emergência dos movimentos pelos direitos civis, criei um detetive negro de linguagem impecável e passei a tratar o assistente de meu herói com mais cuidado” (EISNER, 2011. p. 3). Então, percebe-se que havia dois apenas dois personagens negros no repertório de quadrinhos que Maurício de Sousa consumiu entre as décadas de 1940 e 1950, culminando na criação de seu primeiro personagem negro em 1960, verificaremos agora se o personagem Jeremias dialoga com as referências de seu criador, pontuando a identidade dialógica do personagem, e se este apresenta possíveis estereótipos.

O Negro por Maurício de Sousa

Corria o ano de 1960. Haviam se passado apenas alguns meses, desde que Maurício de Sousa tomara a decisão de deixar de ser repórter policial da Folha de S. Paulo para arriscar tudo e se dedicar à sua paixão, as histórias em quadrinhos, fazendo as tiras do cãozinho Bidu e seu dono Franjinha, no mesmo Jornal. (Sidney Gusman, depoimento para o livro Coleção Histórica Maurício, 2015).

As tirinhas de Maurício de Sousa começaram a fazer parte dos jornais ainda em 1959, com a criação do Cãozinho Bidu e de Franjinha, o autor-desenhista começou a

65 construir mais personagens ao iniciar o ano de 1960, construindo assim um universo particular. Sobre o início de seu primeiro personagem famoso, o Bidu, o autor comenta:

Chegou um dia em que eu senti que tava na hora de sair da reportagem policial, eu vou fazer minha historinha, vou montar a história em quadrinhos que eu queria fazer, acho que eu to mais preparado, e voltei pra casa e desenhei a minha primeira historinha do Bidu, Bidu e Franjinha, tiras de jornal, seriadas, e levei pra redação, olharam, ah desenha bem, podemos publicar pô, se aceita publicar? Lógico”. (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

Maurício de Sousa publicou suas primeiras histórias mais longas, fora do formato de tira pela Editora Continental, liderada por Jayme Cortez, que anos depois tornou-se o diretor de arte da Maurício de Sousa produções. Entre essas histórias surgiu sua primeira turma, na qual faziam parte Franjinha (e seu cãozinho Bidu), Titi, Manezinho, Humberto e Jeremias, seu primeiro personagem negro. Nota-se que cada personagem apresenta um tom de significações, o personagem é um signo, então, verificaremos as significações que envolvem o personagem Jeremias, observando a posição de sua identidade dialógica. Segundo os registros do livro “Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras das revistas BIDU e ZAZ TRAZ!”, publicado em 2015, a primeira história4 em que Jeremias aparece chama-se “Um Rapaz do Outro Mundo”. A narrativa apresenta o personagem Franjinha comprando um capacete de Astronauta, e quando seus amigos encontram Franjinha com o novo adereço, pendem emprestado, entretanto, Franjinha não consegue escutar nada, o capacete abafa sua audição. Seus amigos acreditam que ele não quer emprestar, isso desperta a ira do grupo. Jeremias é bem presente nesta narrativa, tendo diálogos próprios, e apresentando discursos de maneira bastante interessante.

4 Todas as Histórias em Quadrinhos utilizadas nesta periodização foram lançadas originalmente entre 1960 e 1961, sendo republicadas em 2015 na Obra “Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras das revistas BIDU e ZAZ TRAZ!

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Figura 1. Primeira Aparição de Jeremias, 2015. p. 11.

A história ainda com formato parecido com as tirinhas de jornal, apresentava apenas duas palhetas de cor, entre o branco e o preto é possível identificar de maneira bem visível o personagem, que aparentemente não apresenta estereótipos específicos como no caso de Lothar e Ébano White. O discurso do personagem apresenta-se de modo diferente dos outros da turma, Jeremias parece ter ficado mais ofendido do que os outros pelo fato de Franjinha não ter emprestado o capacete de astronauta.

Figura 2. Personagem Jeremias na História: Um rapaz do outro mundo. 2015. p. 11. Figura 3. Personagem Jeremias na História: Um rapaz do outro mundo. 2015. p. 11

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Apesar de todos ficarem chateados com a situação, Jeremias é o único que chama Franjinha de “Gorduchão”, apelidando o suposto amigo. No quadro adiante, Jeremias faz um tipo de ameaça a Franjinha, quando comenta: “Aquele cara está marcado comigo”.

Figura 4. Personagem Jeremias na História: Um rapaz do outro mundo. 2015. p. 12.

Então, ao verificar o discurso do personagem, verifica-se que sua postura em relação a “não conseguir o que deseja” apresenta-se de modo bem evidente. Jeremias foi o personagem que ficou mais indignado com a situação. Apesar de sua manifestação de ira, Titi que pensa em um plano para se vingar, e o executa sozinho, pintando o capacete de Franjinha de tinta preta, e fazendo com que o amigo não consiga enxergar ao andar, e tenha possíveis problemas. Seria esse o negro que faz parte do universo simbólico de Maurício de Sousa? Pois, ao construir tal narrativa midiática, o autor, refletiria de algum modo, representações sociais vigentes (MONNERAT, 2010). Ou seja, a identidade do personagem Jeremias dialoga com questões específicas, pois, o personagem funciona como um produto ideológico, ao se ter contato com tal narrativa quadrinizada, compreende-se o negro como representação ideal, como se não pudesse ser desenhado de outra maneira. Nas palavras de Bakhtin (2014):

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Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. (BAKHTIN, 2014. p. 31).

Entende-se então, o potencial ideológico do personagem, que funciona como um signo, e apresenta significações sobre a ideia de “ser negro”. Barbosa (2009), comenta que a narrativa das histórias em quadrinhos está envolvida em três pilares: cotidiano, realidade e ficção. Nesse sentido, ao propor que um produto ideológico faz parte de uma realidade, Bakhtin (2014), nos ajuda a compreender a posição do personagem, pois, ao refletir e refratar outra realidade, o personagem apresenta-se imerso entre universos ficcionais que funcionam como representação do cotidiano, tendo como referência a compreensão do real do artista. Nas palavras de Barbosa (2009):

Presumimos que as histórias em quadrinhos podem assumir um fator importante na construção da realidade por alguns motivos: elas trabalham com a ficção, mas carregam em si todos os elementos que constatam a realidade, tanto no discurso da escrita como no discurso visual; e autor de quadrinhos – principalmente aquele que trabalha com os chamados quadrinhos históricos – remete o leitor a documentos que são tidos como verdadeiros, por uma visão subjetiva, que é aquela dada pelo artista; dessa forma, ele constrói a cada momento uma nova história, com um olhar cotidiano, influenciado pelos novos estereótipos ou por ícones da culturas de massa (BARBOSA, 2009. p. 105 - 106).

Quando Barbosa comenta que “ele constrói cada momento uma nova história, com um olhar cotidiano”, o autor (intencionalmente ou não) remete aos estudos de Bakhtin, pois, apresenta as relações dialógicas, ou seja, o personagem não é fixo, ele dialoga com as questões que estão em pauta no início da década de 1960, período em que ele é construído. Portanto, observar Jeremias é investigar as realidades que se apresentam e dão o tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis representações, desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, levando em consideração as questões mercadológicas que estão impregnadas neste cenário cotidiano, como comenta Vergueiro (2009):

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“Na sua grande maioria, as histórias em quadrinhos da indústria massiva do mundo comercial ocidental estão relacionadas com a necessidade de diversão e entretenimento de seus leitores”. (VERGUEIRO, 2009. p. 83).

De que maneira o personagem negro entretém o leitor? Sendo construído de forma estereotipada? Barbosa (2009) comenta que todos os homens, qualquer que seja a sua posição na hierarquia social, vivem as cotidianidades. Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. Por meio deste mecanismo, podemos entender novas informações que chegam até nós. Nesse sentido, ao desenvolver a construção de um personagem, seu autor-criador, torna-se responsável, pelo campo de representação que envolve tanto o personagem, quanto a narrativa em que este está presente. Tendo em mente o posicionamento do personagem Jeremias nas diferentes narrativas, analisaremos agora sua próxima história: O ovo da discórdia. Em O ovo da discórdia, enquanto, a Turma (do Franjinha) está brincando no lago, o cãozinho Bidu acha um ovo que estava enterrado. Quando os meninos encontram o ovo, cada um fica imaginando como poderia lucrar com a venda do tal ovo, e o que fariam com o prêmio em dinheiro. Entre os sonhos de comprar um cavalo e virar caubói (Titi), de comprar ingressos para o cinema pelos próximos três anos (Humberto), de esconder o dinheiro embaixo do colchão (Manezinho), e o de aquecer o ovo até chocar, e sair um dinossauro (Franjinha), apresenta-se o sonho de Jeremias.

Figura 5. Jeremias na História em Quadrinhos “O Ovo da Discórdia”. 2015. p. 50.

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Segundo Jeremias, se ele ficasse milionário, compraria um avião, ou seja, se tornaria um piloto, em relação a construção imagética dos sonhos, o sonho de Jeremias particularmente, apresenta-se como um sonho nobre, a oportunidade de voar, conhecer os céus, como se pode verificar na continuação do quadrinho abaixo:

Figura 6. Jeremias na História em Quadrinhos “O Ovo da Discórdia”. 2015. p. 50.

Jeremias alça voo, e faz piruetas, enquanto seus amigos observam sem dizer nada. A nível de comparação, o sonho de Jeremias apresenta-se como menos usual, essa é uma postura interessante por parte de seu criador. Levando em consideração as relações dialógicas presentes na narrativas, o sonho de Titi, por exemplo, dialoga com o fenômeno de faroeste que invadiu o cinema entre as décadas de 50 e 60, filmes como Matar ou Morrer (1952), Rastros de Ódio (1956), Homem sem Lei (1958), e a própria aparição do ícone do velho oeste “Clint Eastwood”, pavimentaram um imaginário social, onde tornar- se um xerife de faroeste equivaleria a um super-herói nos dias atuais, portanto, não era algo estranho, desejar comprar um cavalo, e cavalgar “por aí”, como na representação apresentada no sonho de Titi, pois, a partir do Velho Oeste os meios de massas prepararam uma mitologia substitutiva que ninguém confronta com os fatos de um passado tão remoto. Os astros do cinema, os hits, suas letras e seus títulos doam um brilho igualmente calculado. Palavras, sob as quais o próprio, mitológico, man on the street dificilmente poderia pensar algo, adquirem, com isso popularidade”. (Theodoro Adorno, apud DUARTE, 2003. p. 97), nas palavras de Antonio Mendonça (2013): “50 anos atrás, sucessos na TV eram o Pica-pau e os filmes de caubói” (MENDONÇA, 2013. p. 22). Nesse sentido, o sonho de Jeremias, apresenta-se como uma postura insólita, não imagina-

71 se, com base nas representações midiáticas do negro na década de 1960, que um personagem negro teria o sonho de se tornar um piloto de avião. Entretanto, há uma particularidade entre os sonhos dos personagens, no sentido narrativo, alguns sonhos ocupam mais a história do que outros, nota-se que, a projeção do sonho de Jeremias apresenta-se como menor, pois este, tem o seu sonho dimensionado em apenas dois quadrinhos. O curioso, é que o sonho deste personagem, não equivale nem a uma tirinha, que possui início, meio e fim, sendo compilada em três quadrinhos. O sonho de Titi se resolve em quatro momentos, o de Manezinho em nove momentos, o de Franjinha (que se compreende como protagonista das histórias) se resolve em oito momentos, e o de Humberto apresenta-se em apenas um momento. O sonho de Manezinho apresenta-se como uma prática recorrente, ainda nos dias de hoje, “esconder o dinheiro no colchão”, entretanto, foi-se construída uma narrativa em que para a história apresentar-se como concisa, necessitou-se de mais espaço, ou seja, de mais momentos narrativos. Isso nos leva a percepções em torno de como se contar a história de um negro, na verdade, como exercício podemos pensar: É mais interessante contar a história de alguém que esconde o dinheiro no colchão, ou alguém que se torna um piloto? Entretanto, dentro de um roteiro, qualquer uma das histórias podem gerar problematizações interessantes, dependendo da temperatura estética que o autor situa os horizontes que deseja, a pergunta mais específica para tal análise é: Qual é a maneira mais adequada de se contar a história sobre um negro? Um item importante na caracterização do personagem é o seu boné, entretanto, é possível dizer que nem sempre o personagem utiliza tal adereço, porém, seu uso costuma ser frequente. Nas narrativas que se apresentam entre 1960 – 1961, conhecemos o personagem a partir da História “Magriço O Terrível”.

Figura 7. Jeremias na História em Quadrinhos “O Magriço Terrível”. 2015. p. 140.

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O Boné faz parte do personagem desde sua construção inicial, entretanto, tal item não deve ser considerado essencial para se conhecer o Jeremias, pois o personagem não é fixo, e pode apresentar contornos ideológicos diferenciados. Em uma das contra capas, apresentada pela revista ZAZ TRAZ, o personagem é apresentado em versão colorida, ainda no início da década de 1960, como é possível verificar na Figura 8. Nesta figura específica o personagem é apresentado com seu característico boné, na cor vermelha, e ao seu lado, outros personagens da ZAZ TRAZ que não eram desenhados por Mauricio de Sousa, pois existiam diferentes histórias construídas por outros desenhistas.

Figura 8. Jeremias na Contra capa da revista ZAZ TRAZ. 2015. p.214.

O negro que Maurício de Sousa apresenta se configura como parte de um cenário social, quer dizer, apesar de o autor construir o personagem, ele não criou a maneira de ser negro nos quadrinhos, por isso, sua abordagem dialoga com questões culturais. Tal perspectiva nos leva a pensar que seu repertório Cultural parte de suas influências, ou seja, dos autores-desenhistas que Maurício se inspirou para construir seu estilo. Nesse sentido, a estética apresentada pelo autor é além de uma representação, uma reprodução baseada em modelos pré-estabelecidos, ou seja, o negro de Maurício de Sousa apresenta- se como a manutenção de um estereótipo.

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As primeiras aparições se Jeremias, ainda no momento em que os quadrinhos eram construídos em Preto e Branco, mostra o personagem pintando de Nanquim. Deve-se levar em consideração a importância de um personagem negro no primeiro leque de personagens do autor, Jeremias, ainda apresentado de maneira tímida, fazia parte da turma principal de Maurício de Sousa, pois no início da década de 19605 era possível contar nos dedos os personagens do autor, nesse sentido o personagem “dava as caras” com mais frequência, posteriormente ele passou de coadjuvante a figurante, perdendo o título de membro da turma, e sendo utilizado conforme as necessidades de pontuar um personagem negro na narrativa. Levando em consideração as referências citadas, quer dizer ao citar os personagens Lothar e Ébano White como signos de referência de Maurício de Sousa, nesse ponto, o personagem de Maurício de Sousa leva vantagem, Jeremias fala bem, ou seja, utiliza a linguagem que os outros de sua idade usam. Maurício de Sousa acertou na inversão do personagem, porém, não soube lidar com a manutenção, na verdade, dentro de uma perspectiva da Indústria Cultural, em alguns momentos o personagem não era útil, então, era inviabilizado, colocado de lado, até que houvesse a necessidade de um negro na história. Portanto, observar Jeremias é investigar as realidades que se apresentam e dão o tom de seu discurso, verificando tais reflexos e questionando possíveis representações, desvendando os aspectos ideológicos e suas significações, ou seja, o personagem é um signo, pois, sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2014). A partir de tal postura busca-se averiguar também, os instrumentos de produção, as relações que se articulam para que em determinado momento o personagem apareça com mais propriedade, e seu uso torna-se mais preponderante, levando este a ser ressignificado, ou a perder suas nuances estereotipadas, pois o status de produto de consumo do personagem faz com que este possa sofrer constantes transformações, inclusive tornar-se um signo ideológico. Tal perspectiva, posiciona a dimensão ideológica ligada ao personagem e os espaços que este frequenta. Bakhtin sinaliza: “O domínio do

5 Deve-se pontuar que entre 1960 e 161, Maurício de Sousa criou dois de seus personagens mais conhecidos, Cebolinha e Cascão. Em 1960 surgiu o personagem Cebolinha, segundo o autor, a referência foi um amigo de seu irmão que falava errado e tinha um cabelo que lembrava uma cebola. Cascão foi construído em 1961, também, tendo como referência um garoto que jogava bola com seu irmão, não gostava de tomar banho, e de vez em quando estava fedendo.

74 ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico”. (idem, 2011. p. 33). Em suma, após observar a “Era dos Esboços”, pretendemos pontuar, as utilizações posteriores do personagem, que passa a ser desenhado em cores, e que a partir deste momento se relaciona dialogicamente com um estereótipo conhecido como Black Face, portanto, é a partir deste ponto que iniciaremos a construção do “Período Pré-Turma”.

Período Pré-Turma (1961 – 1970)

O período estabelecido como “Pré-Turma”, é compreendido como o momento em que Maurício de Sousa pavimenta seu caminho como ícone de Histórias em Quadrinhos no Brasil, tornando-se um caso ímpar na história dos quadrinhos brasileiros (RAMOS, 2012). Nota-se que a fama do autor amplia-se nos períodos posteriores, entretanto, as articulações construídas nesse momento, funcionaram como pilares, para as opções que o autor fez ao lidar com seus personagens. Compreende-se que os personagens funcionam como signos, ou seja, todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. (BAKHTIN, 2014). Essa interação foi sendo compreendida pelo quadrinista, e sendo moldada e posicionada para adequação de seus personagens. Percebe-se então, um conjunto de práticas discursivas (GOMES, 2013), uma leitura da sociedade em que o criador das histórias está inserido, nesse panorama, vale ressaltar que, as identidades, é sempre bom lembrar, também são “inventadas” e surgem em decorrência dos estabelecimentos de fronteiras e não como causa destas (FERNANDES, 2013). Ao construir tais identidades, utiliza-se elementos da vida comum, podendo fazê-lo de modo alienado e alienante (COELHO, 2006). Constrói-se a partir dos roteiros presentes nas histórias em quadrinhos um mundo através da linguagem, e a linguagem como parte deste movimento é redistribuída, e essa redistribuição se faz sempre por corte (BARTHES, 2015). Portanto, tais cortes, apresentam a opção narrativa do autor, que opina sobre o direcionamento que seus personagens poderão dialogar. Percebe-se então, que a construção do personagem está atrelada a uma série de significações pré-estabelecidas, e neste sentido, verifica-se que sua utilização apresenta-se condicionada a certos repertórios culturais, não impossibilitando determinadas rupturas, pois este não deve ser

75 compreendido de forma fixa e imutável, entretanto, o personagem dialoga, então, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e grupo determinado (BAKHTIN, 2014) Nesse jogo de significações pretende-se verificar possíveis estereótipos em torno do personagem Jeremias, pois, a característica do estereótipo é justificar a exploração e a opressão pelo índice imaginário de superioridade de um grupo humano sobre outro, recalcando todo o processo histórico que engendrou esta determinada situação (LUZ, 2010), pois, se for evidenciado algum tipo de estereótipo, há a ser realizada uma tentativa de desalienação em prol a liberdade (FANON, 2008). Diante de tais questões apresentadas, a análise observará o início da formação do império de Maurício de Sousa, que na década de 1970, se posiciona em três espaços distintos: As tirinhas em quadrinhos (publicadas nos jornais), As histórias em quadrinhos, e a publicação de seus primeiros livros infantis.

Construção e Redistribuição dos Personagens: Por onde anda o Jeremias?

Fazer uma tira só pagava um salário mínimo, eu tava casado, eu falei: Preciso ganhar mais, então eu tirei o Cebolinha da história do Bidu e Franjinha e criei uma segunda tira, mas ai eu descobri que duas tiras também não tava dando aí pra feira, daí eu precisava fazer a terceira tira, criei o Piteco, o lado pré- histórico, mas daí não dava tempo de criar três tiras por dia, daí eu contratei um auxiliar pra me ajudar, daí pra pagar o auxiliar, eu precisava criar mais uma tira, e assim, foi indo, foi indo, foi indo, e eu fui sendo conduzido a necessidade de criar a equipe, administrar o esquema maior e buscar sustentabilidade na redistribuição, a utilização da mesma tira em diversos jornais. (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

A obra construída por Maurício de Sousa apresenta relações dialógicas com o cenário cultural, ao mesmo tempo em que o autor percebia a necessidade de construir novos personagens, preocupado com a questão econômica, elaborava seus desenhos tendo como referência o auditório social que estava vivenciando

“Quando eu comecei a pensar em aumentar a nossa produção em enfrentar a história em quadrinhos estrangeira, eu estudei quais os gêneros de história em quadrinho, dos que havia e que dominavam o mercado” (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

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Ao prestar atenção no cenário social, o autor, direcionou a posição e a construção de seus personagens, alguns destes, o autor até comenta qual foi sua referência. Segundo a Maurício de Sousa Produções, o personagem Chico Bento, por exemplo, nasceu das observações do Mauricio junto ao homem do campo, morador do alto do Tietê, área próxima à Mogi das Cruzes e ao Vale do Paraíba, na sua porção paulista. O nome do personagem foi emprestado de um tio-avô de Mauricio, que ele nem chegou a conhecer, mas sobre o qual ouviu muitas histórias engraçadas, contadas por sua avó – a vó Dita, também retratada nos quadrinhos do Chico. Apesar de tal explicação, nota-se também, que o personagem dialoga com outro caipira conhecido como “Jeca Tatu”, criado por Monteiro Lobato em 1914, e apresentado no cinema em 1959, Mazzaropi interpreta o personagem Jeca Tatu, e é com esse nome que vai protagonizar a maioria das películas que se seguem até 1981 (D’Oliveira, 2009). O estereótipo de caipira já fazia parte do repertório cultural dos brasileiros quando surge Chico Bento.

Pois é, muita gente não sabe, mas o Chico nasceu como coadjuvante. Ele estreou em 1963, na tira Hiroshi e Zezinho (O Hiro e o Zé da Roça), publicada na revista da cooperativa Coopercotiva. Ele era quase uma versão mirim do Jeca Tatu, personagem clássico de Monteiro Lobato” (SOUSA, 2015)

Percebe-se então que, a partir do estereótipo de caipira que figurava na literatura e no cinema, tal personagem chega aos quadrinhos. Ao exemplificar como compreendia o mundo a sua volta e representava tal mundo em suas histórias em quadrinhos, o autor apresenta um esquema, que utilizou na década de 1960:

Histórias Homem das de Crianças Cavernas

Astronautas Terror

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O esquema construído foi elaborado com base na explicação feita pelo autor, para apresentar uma compreensão melhor da estratégia utilizada. Maurício observou estes quatro domínios dialógicos presentes na sociedade, e funcionais, a partir da indústria cultural, e então, criou seu repertório. Tinham várias séries espaciais, ele criou o astronauta, tinha série de fantasmas, ele criou o Penadinho, tinha homem das cavernas, o Brucutú, ele criou o Piteco. (GUSMAN, 2016). Nas palavras do criador:

Quando eu comecei a pensar em aumentar a nossa produção em enfrentar a história em quadrinhos estrangeira, eu estudei quais os gêneros de história em quadrinho, dos que havia e que dominavam o mercado. Tinha história infantil, tinha do fantasminha, tinha história espacial, então eu fiz um círculo, fiz uma pizza né, e pûs ali em cada pedaço, o gênero que dominava. (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

E dentro de toda esta trajetória, por onde andava Jeremias? Apesar de observar sobre referências citadas por Maurício de Sousa, não foi encontrada nenhuma explicação para a composição do personagem Jeremias, ou seja, não é possível compreender a construção do personagem pelas palavras do autor, entretanto, pode-se compreender de acordo com as relações dialógicas presentes nas narrativas. Pontua-se que os personagens utilizados pelo autor, reproduzem estereótipos, prática utilizada de maneira frequente nos quadrinhos, ele é uma necessidade maldita – uma ferramenta de comunicação da qual a maioria dos cartuns não consegue fugir. Dada a função narrativa do meio, isso não é de se surpreender (EISNER, 2013). Ainda sobre estereótipos, Eisner (2013) continua:

A arte dos quadrinhos lida com reproduções facilmente reconhecíveis da conduta humana. Seus desenhos são reflexo no espelho, e dependem de experiências armazenadas na memória do leitor para que ele consiga visualizar ou processar rapidamente uma idéia. Isso torna necessária a simplificação de imagens transformando-as em símbolos que se repetem. Logo, estereótipos” (EISNER, 2013. p. 21).

Observa-se que a construção do personagem de quadrinhos baseia-se na simplificação de certas imagens, entretanto, deve-se olhar com cautela o “reflexo no espelho” exemplificado por Eisner, pois, se o negro é desenhado de certa forma, qual foi

78 o espelho utilizado como referência? Se o desenhista do personagem negro não é negro, que imagem está refletida? Nesse sentido, deve-se questionar determinados esquemas estéticos atribuídos a certos personagens, pois a partir da representação, influencia-se o leitor, fazendo com que este enxergue a todos da forma como estão desenhados nos quadrinhos. A partir de tais análises entende-se que Jeremias de vez em quando apresenta-se em determinadas narrativas que são construídas entre 1961 e 1970, observaremos agora entre as três dimensões que o autor trabalha (tirinhas em quadrinhos, histórias em quadrinhos e livros infantis), em que momentos o personagem evidencia-se de maneira mais pontual.

As Tirinhas em Quadrinhos

A construção das tirinhas em quadrinhos, que faziam partes dos jornais, eram construídas tendo certos esquemas estéticos, o jornal era uma forma de comunicação popular, então, embora os negros e as tradições e comunidades negras apareçam e sejam representados na cultura popular sob forma de deformados, incorporados e inautênticos, continuamos a ver nessas figuras e repertórios, aos quais a cultura popular recorre, as experiências que ficam por trás deles (HALL, 2014.) O negro que se apresenta nestes espaços como personagens, pode apresentar características que fazem com que este não seja identificado pelos leitores negros. Observou-se as tirinhas clássicas6 publicadas por Maurício de Sousa entre 1961 e 1970, e em nenhuma destas verificou-se a presença de Jeremias, entretanto, foi possível verificar a presença de personagens coadjuvantes negros, nota-se que alguns outros personagens que faziam parte da primeira “turma” em que Jeremias estava presente, também não estão nas tirinhas, ou seja, o autor optou pela utilização de certos personagens em detrimento de outros. Um aspecto curioso das tirinhas distribuídas nos jornais, é que o conteúdo dialogava de maneira mais particular com os acontecimentos culturais do período, então,

6 "As Tiras Clássicas da Turma da Mônica" é uma coleção da Editora Panini, lançada em 2007, que compila as tiras da turma que saíram no jornal "Folha de são Paulo" em ordem cronológica, desde os primórdios dos anos 60. Foram analisadas 6 edições que datam de 1960-1970.

79 entre as tirinhas apresentadas entre 1961-1970, é possível encontrar referência a episódios como a eficiência dos correios, enchentes, conflitos no Vietnã, Jovem Guarda, Tropicalismo, Super-Heróis, ou seja, a partir das tirinhas é possível compreender as relações dialógicas entre quadrinhos e o ambiente sócio-cultural. Para tal análise destacam-se duas tirinhas que foram publicadas entre 1968-1970, por perceber a utilização de personagens negros na narrativa.

Figura 9. Tirinha do Cebolinha, publicada em Tirinhas Clássicas da Turma da Mônica nº5, 2009. p.21

Na tirinha em questão, Cebolinha está tocando samba, e impressiona Cascão, que comenta: “Puxa, Cebolinha! Como você consegue batucar tão bacana assim numa caixa de fósforo?”. A Tirinha dialoga uma prática recorrente entre os encontros de grandes sambistas, então, Cebolinha mostra a Cascão o grande segredo: Dois personagens negros estavam escondidos dentro da caixinha de fósforo. Então, os personagens negros estavam presos na caixinha de fósforo? A tirinha apresenta a utilização da cultura negra, sem necessariamente dizer que pertence aos negros. A apropriação da música por parte de interesses próprios. Neste caso, Cebolinha sabia tocar bem, porque utilizava o talento dos negros sambistas.

Figura 10. Tirinha do Cebolinha, publicada em Tirinhas Clássicas da Turma da Mônica nº5, 2009. p.17 80

Na tirinha (Figura 10), Cebolinha questiona Mônica7, por ter falado que ele tinha medo do escuro. Mônica chama Tião, que representa o “escuro”, o personagem é negro, e Mônica ainda comenta que Cebolinha estava falando mal dele. Então, ao se chamar um negro o que ele fará? Vai bater no Cebolinha? O apelido de Tião era “Escuro”? As tirinhas sempre apresentam-se de forma muito rápida, ou seja, geralmente o leitor não pensa muito para compreender, então, todo negro é compreendido como “Escuro”, e consequentemente deve ser temido? A expressão de Cebolinha é de medo, ao ver Tião chegar. Nas duas tirinhas apresentadas, o negro figura como instrumento, sendo utilizado quando é necessário, entre a musicalidade e a força bruta, estereótipos clássicos do negro na narrativa midiática, ou seja, na ficção brasileira, no cinema ou fora dela, todos os personagens negros pertencem a classificações específicas, ou se não, uma mistura de várias delas (RODRIGUES, 2011). Nota-se que nas tirinhas apresentadas o personagem negro não era totalmente pintado de nanquim, como nas aparições de Jeremias, mas sim com riscos no rosto que identificavam sua face mais escura. Nesse sentido, as narrativas produzidas por Maurício de Sousa estavam permeadas de estereótipos, reflexos de todo aparelho midiático da época. Isso não significa que a maneira de se construir o negro sempre funcionará desta forma, pois, em diferentes períodos poderá ser atribuído aos personagens valores sociais significativos, Bakhtin (2014).

A História em Quadrinhos: “Quem conta um conto...”

A História em questão apresenta uma narrativa onde os personagens representam a confusão entre “ouvir e dizer”, distorcendo a informação. Enquanto Franjinha está caminhando, um senhor ao explicar ao filho o que significa “supérfluo”, comenta que a barriga de Franjinha é supérflua, fazendo com que o protagonista sinta orgulho, pois este não sabe o significado da palavra. Ao encontrar os amigos, Franjinha conta a informação como algo muito importante, fazendo com que estes redistribuam a informação a sua

7 A personagem Mônica foi criada em 1963, tendo como inspiração a filha de mesmo nome de Maurício de Sousa. Devido a importância da personagem no universo construído pelo autor, trataremos desta personagem, especificamente no Período Turma que data de 1970 – 2008. Período que se inicia com a revista turma da Mônica.

81 maneira, fazendo com que cientistas venham verificar o que existe na barriga de Franjinha, até descobrirem que foi um mal-entendido. Na narrativa Jeremias tem aparição de acordo com a maioria dos personagens, destaca-se em tal história apenas Cebolinha, que neste momento (1961), já faz parte do grupo. Entretanto, verificou-se que a história foi publicada originalmente em 1961, e publicada posteriormente em cores em 1970, portanto, será apresentado as alterações feitas no personagem Jeremias entre as duas edições.

Figura 11. Personagem Jeremias na década de 1960. Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras das revistas BIDU E ZAZ TRAZ.2015. p. 209

Figura 12. Personagem Jeremias na década de 1970. “Quem conta um conto”. Revista Mônica nº 2. Editora Abril, 1970 p. 23.

Acima apresentam-se as duas versões da mesma história, torna-se interessante dizer que nesta narrativa, alterou-se praticamente apenas as cores, o que torna curioso pensar: Se a palheta de cores tinha aumentado, porque Jeremias continuava sendo pintado de nanquim? A alteração de Jeremias representava o estereótipo conhecido como

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blackface8, pois, para se estabelecer a origem da representação gráfica que se tornou o estereótipo do negro nos desenhos humorísticos, é possível traçar uma linha evolutiva que começa com os primeiros artistas itinerantes que se apresentavam em salões de bailes e praças públicas: os menestréis (CHINEN, 2013). A partir de tal perspectiva, compreende-se que as diferentes representações de Jeremias, indicam uma linha, uma direção do imaginário social, e das questões que dialogam em torno do negro. Muitas das configurações e ideias sobre os negros eram sintetizadas pela figura do menestrel, que ajudaram a massificar e reforçar estereótipos raciais sobre os negros ao satirizar seu modo de vestir, suas maneiras e seu linguajar incorreto (CHINEN, 2013).

Figura 13. Personagem Jeremias na década de 1960. Figura 14. Personagem Jeremias a década de Coleção Histórica Maurício: As clássicas aventuras 1970. “Quem conta um conto”. Revista Mônica das revistas BIDU E ZAZ TRAZ.2015. p. 209 nº 2. Editora Abril, 1970 p. 23.

Tal representação, advinda dos menestréis, também figurou nas representações de Jeremias, como é possível perceber nas narrativas apresentadas, principalmente, nas da década de 1970, onde o personagem apresenta a boca construída esteticamente de maneira estereotipada, remontando a vermelhidão nos lábios, presente nas construções estéticas do blackface. Quais são os problemas dos estereótipos em torno do negro? Nas palavras de Fanon (2008): "E o Lobo, O Gênio do Mal, o Mal, O Selvagem, são sempre representados por um Preto..." (Fanon, 2008. p. 130).

8 Blackface é o nome dado para a caracterização de personagens do teatro com estereótipos racistas atribuídos aos negros. Na tradução literal do inglês, blackface significa “rosto negro”, em português. Os blackfaces surgiram no começo do século XIX nos Estados Unidos, como uma das atrações dos Minstrel Shows (shows de menestréis ou jograis), que eram bastante populares naquela época.

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Fanon, fala sobre as narrativas ficcionais que geralmente estão nas revistas ilustradas para jovens, pois ao observar tais revistas, algumas pessoas poderão pretender que isso não é muito importante, porque não refletiram sobre o papel dessas revistas ilustradas (FANON, 2008). Então, esse é nosso papel, tal reflexão apresenta-se como essencial para se compreender a identidade dialógica do personagem negro, e o exercício apresenta-se como importante, pois, há uma constelação de dados, uma série de proposições que, lenta e sutilmente, graças às obras literárias, aos jornais, a educação, aos livros escolares, aos cartazes, ao cinema, a rádio, penetram no indivíduo - constituindo a visão do mundo da coletividade a qual pertence (FANON, 2008), nesse sentido, as histórias em quadrinhos se encaixam nesta coletividade, funcionando como veículo midiático. No caso de Jeremias não há um linguajar incorreto, nem um modo de vestir que o difere dos meninos de sua turma, mas há, a questão da invisibilidade que o torna um personagem menos expressivo, na maioria das vezes com menos diálogos que outros personagens, e torna-se importante comentar que, conforme o leque de personagens de Maurício de Sousa foi aumentando, o personagem negro foi tornando-se menos usual, na verdade, dos personagens que “andavam” com Jeremias, apenas Franjinha e Titi continuam presentes nas narrativas da Turma da Mônica, além de Cebolinha e Cascão que chegaram depois, e fazem parte da turma principal, personagens como Manezinho e Humberto, tornaram-se completamente invisíveis, na verdade, inexistentes nas narrativas das décadas posteriores. Nesse sentido, Jeremias apresenta-se com um personagem que resistiu as alterações propostas pelo artista, e consequentemente, as alterações socioculturais que culminam no imaginário sobre o negro. Nas palavras de Maurício de Sousa: “Não sou eu que dirijo a perpetuidade do personagem, é o público, o personagem que aparece, que deixa de ser coadjuvante e vira principal, é puxado pelo público” (SOUSA, 2016). Ou seja, o consumidor torna-se o álibi da indústria do divertimento, cujas instituições ele não pode subtrair (ADORNO, 2015). E para tal, esta narrativa, portanto, é executada por adultos que justificam seus motivos, estrutura e estilo em virtude do que pensam que deve ser uma criança (DORFMAN; MATTERLART, 2010). Portanto, as opções do autor apresentam uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre tem uma expressão verbalizada (BAKHTIN, 2011).

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Observaremos agora, a posição do personagem Jeremias nos primeiros livros infantis com os personagens de Maurício de Sousa.

Novas Perspectivas: O Negro nos Livros Infantis é diferente do Negro nos Quadrinhos.

Observaremos agora, a posição do personagem Jeremias nos primeiros livros infantis com os personagens de Maurício de Sousa. A partir das análises sobre as narrativas em que Jeremias está presente, foi possível perceber que existe a partir de cada narrativa presente no entrelace de cada quadrinho que compõe uma história a comunicação da vida cotidiana, de modo particular, ou seja, do modo como o autor compreende a sociedade, uma espécie de domínio específico, uma maneira de enxergar o cotidiano por tal criador, tal relação pode ser ressignificada, revelando assim, outras possibilidades e apresentando novas dinâmicas atreladas a identidade dialógica, verifica-se assim que as formas discursivas podem situar-se de maneira particular em diferentes esferas, e é a partir desta perspectiva que observaremos como se situa a identidade dialógica do personagem Jeremias no livro infantil9 lançado por Maurício de Sousa. Os personagens de Maurício de Sousa estavam se tornando populares, então, surgiu o projeto do livro, neste momento (1965), o autor trabalhava com três jornais: Folha de São Paulo, Diário de São Paulo e Diário da Noite. A FTD investiu na ideia, propondo um livro de 64 páginas.

Eu não tinha nada! Nunca tinha feito aquilo. Quando o Moacir trouxe o desafio, chamei minha equipe de artistas para conversar. Ainda era pouca gente, mas conseguíamos manter as tiras de páginas semanais dos jornais com muito esforço e competência. Às vezes, à custa de noites em claro. Mas os livros eram uma deliciosa tentação. A oportunidade de ver meus personagens saltarem das histórias em quadrinhos e ganharem o texto colorido, a ilustração colorida, a capa dura... Então, eu e minha pequena equipe decidimos que valeria a pena o desafio. Reuni os artistas e disse: “Vamos fazer bastante café para todos aguentarem. Eu vou escrevendo e desenhando e vocês vão fazendo a arte-final”. (SOUSA, 2015).

9 Em 1965 Maurício de Sousa publicou três livros pela editora FTD, que foram relançados em 2016 na coletânea “Maurício O Início”.

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Apesar de o autor trabalhar com quadrinhos, adaptou seus personagens para os livros infantis, isso mostra que existe fluidez, tais personagens não estão presos no universo dos quadrinhos, podem, como disse o autor: “saltarem das histórias em quadrinhos”, percebe-se então, que nesta alteração, nas representações apresentadas pelo autor para os livros infantis, a composição estética do personagem Jeremias foi mais alterada, compreende-se que torna-se impossível estabelecer o sentido de uma dada transformação, ou seja, das diferentes representações do personagem, sem considerar toda a esfera ideológica no qual tais transformações foram produzidas. No entanto, presume- se que a representação estética que figurava nos quadrinhos tendo como referência a blackface, não era usual nos livros infantis, considerados meios educacionais legítimos, já que na década de 1960, os quadrinhos não eram bem vistos, funcionavam apenas como um tipo de entretenimento barato destinado as crianças.

Naquele tempo, eu tinha os personagens divididos em dois blocos: na Folha, saíam as tiras do Bidu e Franjinha, do Cebolinha, do Piteco, do Penadinho e do Raposão. Nos Diários Associados, vinham Hiro e Zé da Roça, do Astronauta e do Chico Bento. Só não usei os personagens no núcleo principal, com Cebolinha, Franjinha, Bidu e a Mônica, que começava a ganhar notoriedade, porque eu tinha planos de fazer livros com eles também. (SOUSA, 2015).

O autor estrategicamente optou por utilizar seus personagens iniciais, pois, se tal proposta funcionasse, poderia lançar seus personagens que estavam mais populares. Em “Chico Bento”, uma das histórias do livro, a narrativa se pauta pelo ambiente rural, local onde o personagem Chico Bento vive. Na história apresenta-se o núcleo familiar de Chico Bento, o rancho onde vive, e o fato de que aos sábados ele visita sua avó, e ouve histórias e contos, histórias do tempo em que os bichos falavam, de reis e rainhas, dos tempos da escravidão (SOUSA, 2015). Sua avó, ao contar histórias do folclore brasileiro, de Saci, Mula sem cabeça e lobisomem, fez com que Chico Bento ficasse impressionado, tanto que, ao ouvir qualquer barulho o personagem ficava assustado e pensava: “Só pode ser o Saci”, ou “Deve ser a Mula sem cabeça”. Para completar sua angústia, ao amanhecer, sua avó comenta que os cavalos do sítio acordaram com o rabo trançado. “Arte do Saci”. Após tal episódio, Jeremias começa a fazer parte da narrativa, pois, é o amigo que ouve as histórias de Chico Bento.

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Figura 15. Personagem Jeremias em 1965. História “Chico Bento”. 2015.

Na narrativa, Jeremias é um amigo que mora em um rancho vizinho, nota-se que pela primeira vez, Jeremias mora em algum lugar, em relação as narrativas observadas até então, Jeremias apenas aparece nas histórias em Quadrinhos, não sabemos de onde ele vem, e pra onde ele vai quando acaba as histórias. Nesta história publicada no livro infantil, Jeremias vive em algum lugar, sua representação estética, se diferencia dos referenciais utilizados nos quadrinhos, ele não usa boné, não apresenta traços estereotipados, e é pintado de marrom, e não preto. Isso nos leva a percepção de que a representação utilizada nos quadrinhos não condizia com a maneira de se representar o negro nos livros infantis, pois, sua circulação era maior, ou seja, através de um meio considerado educacional não cabia um “negro da cor de carvão”, em contrapartida, por apresentar um viés humorístico, o estereótipo era permitido e bastante usado nos quadrinhos. Na História, Jeremias fica rindo de Chico Bento, aparentando não acreditar muito nos contos do amigo. Deve-se observar que da mesma forma que Chico Bento faz parte das relações dialógicas pautadas na representação do caipira, a popularização de um imaginário

87 pautado na figura mítica do Saci10, foi utilizado anteriormente por Monteiro Lobato (1918), em Ziraldo (1959) e em Maurício de Sousa (1965). O autor de Turma da Mônica, apresentou relações dialógicas com o folclore nacional, relações apresentadas antes por outros autores, e rearticulou a posição do Saci nas narrativas, na história de Maurício de Sousa, Saci é o pai de Jeremias.

Figura 16. Personagem Jeremias em 1965. História “Chico Bento”. 2015.

No fim da História, Jeremias conta o que ouviu de seu amigo para seu pai em tom repreensivo, e seu pai (o Saci), promete que não voltará mais a assustar ninguém nas

10 Sobre a figura e representação do Saci, deve-se levar em consideração que "O Sacy-Pererê: Resultado de um Inquérito" é o primeiro livro do escritor Monteiro Lobato, publicado em 1918, a partir de uma série de depoimentos reunidos pelo autor e publicados no jornal "O Estado de S. Paulo" sob o título: "Mitologia Brasílica – Inquérito sobre o Saci-Pererê". Este material depois se converteu no primeiro livro a tratar da crença no Saci, um dos personagens mais conhecidos do folclore brasileiro. Lobato, porém, não assinou a obra como autor, considerando que seu papel havia sido de editor dos textos enviados. Esse trabalho estendeu-se ao público infanto-juvenil, com a publicação, em 1921, do livro "O Saci", inscrito no universo do "Sítio do Pica-pau Amarelo”.

88 redondezas. Nota-se que a figura do Saci apresenta certos estereótipos, sua composição estética diferencia-se de seu filho Jeremias. Em suma, observou-se até então, duas periodizações, e neste período temporal discutido até agora foi possível notar três representações diferentes do personagem Jeremias, como é possível observar na linha do tempo a seguir:

Personagem Jeremias entre 1960 e 1970

1960 1965 1970

A partir desses estudos iniciais, já foi possível notar como o personagem torna-se flexível, dependendo de qual plataforma este será posicionado, portanto, o personagem é fruto de relações dialógicas, este funciona como um signo, propondo diferentes significados. Jeremias pode ser o menino que sonha em ser piloto de avião, ou o filho do Saci que mora em um rancho. A investigação sobre o personagem deve continuar, observando a maneira que este é direcionado, a partir destes resultados, passaremos para a próxima periodização, notando assim, as diferentes utilizações do personagem em consonância com as relações dialógicas, e as direções escolhidas pela Indústria Cultural.

Período Turma – (1970 – 2008)

As análises apresentadas até aqui evidenciaram três representações do personagem Jeremias, tratando este como objeto, e discutindo sobre sua composição estética. A partir de agora, apresentaremos a ampliação do cenário construído por Maurício de Sousa, ou seja, as novas articulações e consequentes configurações das

89 narrativas, verificando sempre, o papel de Jeremias em cada universo simbólico expresso nas histórias em quadrinhos, levando em consideração que, as histórias criadas expressam o contexto histórico que as cercam, são expressões da realidade (MARQUES, 2011). Nota-se que a década de 1970 apresenta-se como importante para o desenrolar de seus personagens, pois, nesta década, cria-se a revista Turma da Mônica, então, constroem-se elementos que giram em torno da protagonista, como uma relação mais próxima entre personagens, e torna-se evidente a compreensão de um núcleo principal, coadjuvantes e figurantes, ou seja, compreende-se tais personagens como um elenco, surge assim um cenário específico chamado “Bairro do Limoeiro”, a partir desta opção narrativa, os personagens principais ganham família, casa, e até constroem-se bairros vizinhos, ou seja, o que era uma noção... virou uma explosão criativa... surgiram novos mundos, personagens, turmas... (SOUSA, 2015). Além disso, o autor associa seus personagens ao marketing, dialogando entre alimentos e brinquedos, também conquista um “Yellow Kid”, o Oscar das Histórias em Quadrinhos, em 1971 (IAONNE, 1994). A partir de sua própria agência, o autor ultrapassa os obstáculos enfrentados pelos quadrinistas brasileiros e compete com as histórias em quadrinhos estrangeiras. Portanto, apresenta-se todo um cenário onde a identidade dialógica do personagem surge, e é reinterpretada, reconfigurada, dialogando entre o imaginário, assim como no simbólico (HALL, 2014). Então, percebe-se que a identidade dialógica é construída dentro de um discurso, e a ampliação e utilização de personagens, apresentam relações dialógicas com discursos presentes na sociedade. Para se discutir sobre o “Período Turma”, construiu-se uma divisão em cinco fases: Início do Universo Maurício de Sousa, Produção Audiovisual, Turma da Mônica Baby, Revistas: Você sabia? E Saiba Mais, e Clássicos do Cinema. Em cada fase, verificaremos as aparições e ausências do personagem Jeremias, verificando os discursos e os cenários em que o personagem é apresentado, e dando atenção ao fato de que, todo meio de representação, ao propor uma narrativa, funciona como a tradução de eventos (HALL, 2014). Eventos estes, que se relacionam dialogicamente com a sociedade.

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Fase1: Início do Universo Maurício de Sousa

Criei o Bidu, Franjinha, Cebolinha, Cascão, Manezinho, Jeremias e assim por diante, e daí alguém da redação falou: Cadê as mulheres da sua história? (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

A partir da década de 1960, é possível compreender que partes do repertório cultural produzido por Maurício de Sousa foram compondo o que compreendemos seu universo ficcional, entretanto, pontua-se aqui, especificamente nessa periodização, como início do universo, pois, a partir da década de 1970, e consequentemente da revista Turma da Mônica, o autor organiza todo o seu leque de personagem, e o projeta em um só cenário, ou seja, suas narrativas passam a girar em torno da Mônica, e seus personagens anteriores, passam a funcionar nas narrativas em que ela ou sua turma estão presentes. A partir da perspectiva de demanda, ou seja, o fato de não haver nenhuma personagem feminina, Maurício construiu a Mônica como mais um personagem, nas palavras do autor: “Eu não planejei a Mônica para ser tudo isso, ela entrou, e o público é que alçou, que elegeu a Mônica como carro chefe” (SOUSA, 2016).

Figura 17. Primeira aparição da Mônica no Universo Maurício de Sousa, publicada

em 3 de março de 1963 no Jornal Folha de São Paulo.

Ao iniciar a construção de sua nova personagem, o autor observou os traços de sua filha, e com o tom de sua personalidade, projetou tais características na nova personagem, então, em 1963 época em que sua filha tinha mais ou menos três anos, a personagem Mônica passou a fazer parte das tirinhas de jornais juntamente com seus

91 outros personagens. Na década de 1960, as cartas funcionavam como termômetro ou seja, a partir delas o autor sabia os personagens que faziam mais sucesso. Entre as opiniões e sugestões, Maurício percebeu que o público desejava ver mais a aparição da nova personagem. O sucesso da personagem fez com que em 1970 ela tivesse sua própria revista em quadrinhos, onde os outros personagens foram sendo posicionados de acordo com narrativas em torno da Mônica.

Durante muitos anos a tira em quadrinhos onde sai a Mônica, saiu com título de Cebolinha. Não existe na história nossa, uma tira chamada Mônica, existe história em quadrinhos, existe revista, mas na tira, talvez o meu lado, Cebolau, tenha mantido lá o Cebolinha pelo menos dono do título da Tira. (Depoimento de Maurício de Sousa a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

Em pouco tempo a personagem tornou-se o elemento mais importante de suas criações, fazendo com que o autor reorganizasse a direção de seus personagens e seus roteiros, nas palavras de Sidney Gusman:

A Mônica é a primeira dama do quadrinho brasileiro, qual o maior personagem da França? Asterix. Da Bélgica? Tim Tim. Do Japão? Sei lá, Dragon Ball ou um personagem do Tezuca. Estados Unidos? Super-Homem, Homen Aranha, Batman. Qual desses países tem uma mulher como a maior personagem de seu país? Ah! Talvez a Mafalda na Argentina, mas também tem o Internauta que é pau a pau. Agora o único lugar que é unanime é no Brasil, o único lugar do planeta que a principal personagem de quadrinhos do seu mercado é uma mulher é o Brasil. Uma doce garotas de sete aninhos que com seu coelinho fez o mercado acontecer no nosso País. Ela é um ícone da cultura pop brasileira, é incrível, eu viajo muito com o Maurício, o tanto de gente que se chama Mônica por causa dele, é assustador... (Depoimento de Sidney Gusman a série “HQ Edição Especial”, no canal HBO em julho de 2016).

Tendo como referência o sucesso de sua primeira personagem feminina, ainda em 1963, o autor criou a Magali, sua segunda personagem feminina, também inspirada em uma filha, e assim o autor construiu a “Turma”, entre 1960 e 1963, Maurício criou Cebolinha, Cascão, Mônica e Cebolinha, que acabou se tornando sua turma principal nas narrativas produzidas por ele.

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Percebe-se então que ao estudar um personagem presente em qualquer tipo de mídia, não se deve perder de vista a atividade de interpretação socioideológica, não dissociando o personagem de possíveis fatores sociais, não perdendo de vista a significação, e levando em conta o caráter social do signo (personagem) e entendendo que este não é independente, pois, ao ignorar tais fatores, não será possível compreender a realidade social no qual este foi constituído, ignorar tais fatores, nos leva a uma interpretação errônea dos mecanismos de produção onde este se insere. Portanto, ao inserir suas filhas nas Histórias em Quadrinhos o autor dialoga com as questões culturais que presencia, a partir de tais dados, deve-se então, levar em consideração a observação sobre as articulações e situações sociais, evidenciando o valor cultural, reflexo de uma ideologia presente em cada contexto especificamente. Nas palavras de Bakhtin (2014): “O signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente ligados. O Signo não pode ser separado da situação social sem ver alterada sua natureza semiótica”. (idem, 2014. p. 63). Tendo como referência as novas articulações construídas a partir da presença da Mônica, verificaremos agora histórias em quadrinhos em que o personagem Jeremias está presente.

Um personagem, diferentes representações

E na Turma da Mônica não existe negro? Não tem? Tem sim. É o Jeremias (personagem criado em 1960, que durante... por muito tempo foi o único menino negro da turma. Usa sempre um boné que foi de seu avô, para esconder a falta de cabelo, embora todos saibam disso...). Não faço diferença de cor de personagem, porque todos eles funcionam da mesma maneira nas historinhas (Entrevista de Maurício de Sousa ao programa Roda Viva, exibido em 9 de outubro de 1989.

A partir das perspectivas discutidas até então, percebe-se que as relações socioculturais se apresentam como panorama para as articulações impressas nas histórias em quadrinhos, partindo desse ponto, percebe-se que entre as décadas de 1980 e 1990, entra em pauta toda uma discussão sobre as ações afirmativas, ocorre no Brasil uma intensificação nas ações do Movimento Negro, que se voltam cada vez mais, em defesa de seus interesses, ou seja, a partir dessas ações, questiona-se os direitos dos negros no

93 país, reivindica-se sua história, e ancestralidade, questiona-se também, a maneira que o negro é representado na mídia.

Alguns pontos desta histórica reivindicação dos movimentos sociais negros foram atendidos pelo governo brasileiro na segunda metade da década de 1990, como, por exemplo, a revisão de livros didáticos ou mesmo a eliminação de vários livros didáticos em que os negros apareciam de forma estereotipada, ou seja, eram representados como subservientes, racialmente inferiores, entre outras características negativas. (Santos, 2005. p. 25)

Tendo perspectivas em torno do âmbito cultural e social, ideias transformadoras se expandem, rompendo barreiras e concedendo maior visibilidade ao negro no Brasil. Observa-se então que, o Movimento Negro engloba um conjunto das organizações negras do tipo sociedade recreativa, associações comunitária ou cultural, instituto de pesquisas, grupo e organizações não governamentais – além de personalidades e indivíduos engajados em ações políticas, culturais, sociais, religiosas, recreativas e desportivas – que lutam para promover a igualdade racial. Seu objetivo é combater o racismo manifesto nas relações sociais brasileiras marcadas pelo preconceito, a discriminação e o racismo, defender os direitos da população negra e empoderar sua presença nas instancias jurídico- politicas (SANTOS, 2010). Portanto, a partir deste cenário que era vivenciado no país, surge a primeira história em que o personagem Jeremias é protagonista, uma narrativa construída apenas sobre o personagem negro, explicando o processo de escravidão, e de certa forma a herança cultural que veio da África.

Figura 18. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 66

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Em Jeremim, O Príncipe que veio da África, história criada em 1987, Jeremias é da família real, um príncipe, esbelto e corajoso, conhecedor das selvas africanas, cobiçado pelas meninas de sua idade, e que curte bastante a liberdade. Dentro da narrativa, nota-se que as características apresentadas inicialmente, que direcionam o leitor, são apresentadas pelo narrador, e curiosamente, a primeira fala do personagem é: “Oh, não! Caçadores de Escravos!”

Figura 19. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 67 O principado do personagem dura apenas uma página, a história de sete páginas, se concentra em mostrar como os negros foram escravizados, como trabalhavam de maneira forçada, seus momentos de fuga, e por fim foram agraciados com a liberdade.

Figura 20. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 67 A narrativa deixa claro que os negros foram vendidos como bichos, e transportados em navios pra longe da África. A presença do dono do escravo, manuseando sua propriedade, ou seja, utilizando o chicote, e alimentando mal seu escravo para que este não dê prejuízo.

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Figura 21. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 68.

Além do fato de posicionar a maneira como os negros sofriam no período escravista.

Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 69.

A narrativa pauta-se também, pelos momentos de resistência dos escravos, onde Jeremim, é o protagonista, e livra seus amigos do cativeiro, escondendo-se na floresta.

Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 70.

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Por fim, a liberdade foi concebida aos negros, como se estes não tivessem importância neste processo.

Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 72.

O Narrador propõe que um dia alguém resolveu dar um basta naquela situação, e que esse foi o primeiro passo para que todos se tornassem iguais, independentemente de cor de pele ou lugar de nascimento. Ao chegar no final, percebemos que o Avô de Jeremias que lhe contava essa história.

Figura 22. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 73.

Uma História ancestral, de seu Tataravô. Jeremias sente orgulho por saber do que aconteceu com seu antepassado. Entretanto, o protagonista, aparentemente não compreendeu de maneira adequada o contexto da história que seu avô lhe contou e o contexto em que vivia naquele momento. Após ouvir a história, Jeremias vai jogar bola com seus amigos, e apresenta muita habilidade e talento, enquanto demonstra suas

97 proezas, o jogador é observado por um agente de futebol, que fica impressionado e vislumbra planos para o novo talento.

Figura 23. Jeremim em O Príncipe que veio da África. Revista Turma da Mônica nº 5.Editora Globo, 1987. p. 73.

Quando o agente elogia Jeremias, e menciona “quero comprar você! Quanto custa?” Jeremias interpreta a afirmação e relaciona com o contexto de escravidão, o quadro seguinte apresenta o olheiro tonto no chão, como se tivesse tomado uma bolada de Jeremias. Então, o personagem não conseguiu diferenciar o contexto escravocrata de sua realidade social, fazendo com que seu colega Cascão também apresentasse um olhar de espanto. Vale ressaltar que apesar de o personagem ganhar uma história, toda a condução do personagem é feita pelo narrador, Jeremias se passando por “Jeremim” tem poucas falas, então, o narrador nos revela todas as relações presentes na narrativa, ou seja, mesmo em sua própria história o personagem não tem voz. Nota-se também, que existem diferenças estéticas entre o príncipe Jeremim, e Jeremias, na narrativa que trata do príncipe, este é apresentado com lábios, já no momento em que Jeremias aparece, é desenhado com círculo rosado na boca. Outra questão importante, é que os traços de Jeremias se modificaram, sua cor tornou-se marrom, esta é uma das expressões estéticas

98 do personagem na década de 1980, onde sua representação11 oscilou entre diferentes tons, como é possível perceber na história “Os Novos Donos da Rua”, publicada no primeiro almanaque da Mônica da editora Abril, em 1987.

Figura 24. Jeremias na história “Os Novos Donos da Rua”, Almanaque da Mônica, Abril. 1987. p. 51

Jeremias aparece ainda no formato “blackface”, torna-se interessante perceber que no mesmo ano, a estética do personagem foi modificada, apresentando seu caráter não fixo, pontua-se então que, não seria apropriado apresentar o personagem repleto de estereótipos para contar um pedaço da história dos negros, ou seja, para se contar sobre a herança africana, e consequentemente o processo de escravidão e a liberdade, o personagem sofreu alterações estéticas, pois foi representado de maneira a propor novas significações. Na história “Os Novos Donos da Rua”, Mônica desiste do título e resolve nomear Cebolinha e Cascão como seus sucessores, com tal título os personagens começam a brigar, querendo a conquista sem nenhum tipo de divisão, até que Mônica volta atrás e toma o título de volta. Jeremias aparece de maneira muito pontual, para parabenizar os amigos pela conquista, e visualiza toda a briga.

11 Sobre as representações de Jeremias da década de 1980, a figura 24 corresponde a uma representação utilizada inicialmente entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980, alguns arquivos da internet pontuaram essa utilização do personagem, entretanto, não foi encontrada histórias em quadrinhos com o personagem representado desta cor na data sugerida, portanto, em 1987 provavelmente a história “Os Novos Donos da Rua foi republicada, fazendo com que o personagem apresenta-se a tonalidade anterior, já que em 1987, Jeremias já era pintado de marrom, entretanto, existe a possibilidade de o personagem ter sido pintado de maneira errada, ou diferente, levando em consideração o fato de que as histórias de Maurício de Sousa funcionavam em diferentes plataformas.

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Figura 25. Jeremias na história “Os Novos Donos da Rua”, Almanaque da Mônica, Abril. 1987. p. 52

Torna-se interessante pontuar que as alterações de cor do personagem Jeremias não foram feitas por mero acaso, e sim com relações dialógicas, de acordo com as alterações socioculturais em torno da figura do negro, portanto, a partir de tal perspectiva, é possível compreender que mesmo no ano de 1987, o personagem figurou de maneiras diferentes nas histórias em quadrinhos. É possível perceber também o personagem representado de outra forma na mesma década:

Figura 26. Representação de Jeremias na década de 1980.

Em “Fumando”, história que tem como protagonista o Cebolinha, Jeremias aparece como coadjuvante, fazendo parte de toda a narrativa. O Personagem vê Cebolinha saindo da loja com um maço de cigarro e acredita ser de verdade, como bom amigo,

100 aconselha Cebolinha a não utilizar os cigarros, até descobrir que são cigarros de chocolate.

Figura 27. Representações de Jeremias na década de 1980 na história “Fumando”, publicada em Cebolinha 121, Ed Abril. 1983, p. 36

Não é Incomum dentro das narrativas que Jeremias está presente, o personagem entender os acontecimentos de forma equivocada, como é possível notar na continuação da história logo abaixo.

Figura 28. Representações de Jeremias na década de 1980 na história “Fumando”, publicada em Cebolinha 121, Ed Abril. 1983, p. 39

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Apresentam-se então, diferentes nuances, Jeremias dialoga com diferentes momentos culturais do País, sendo representado entre o nanquim e o marrom, tornando- se fruto das relações dialógicas. O personagem funciona como um signo, propondo inter- relações com o contexto no qual foi concebido. Na história “A raça do Floquinho”, publicada na década de 1990, Jeremias aparece em apenas um quadro, demonstrando que não compreende o que Cebolinha diz, como é possível observar abaixo:

Figura 29. Jeremias. Revista Cebolinha nº 107. Globo, 1995.

Observa-se que em algumas narrativas Jeremias aparece como um personagem que não compreendesse a narrativa em que está presente, um desconhecedor do discurso. Então, o personagem situa-se entre a ausência de falas e a falta de compreensão do que está acontecendo. Apesar de sua alteração estética, sua posição discursiva não sofreu grandes alterações, na verdade, é possível perceber que na década de 1960, quando o leque de personagens de Maurício de Sousa era menor, o personagem era posicionado de maneira mais presencial, ou seja, como parte da turma, tinha trechos específicos em que eram apresentados suas opiniões, seus sonhos, o personagem era parte do discurso, e compreendia a narrativa que funcionava ao seu redor. No entanto, com a chegada de novos personagens, seu posicionamento tornou-se limitado, figurando entre personagem secundário e terciário. Em “O Chapéu do Contrário” publicada em 2005, é possível ver o personagem reivindicando a utilização do chapéu pelos outros personagens, já que é um item que Jeremias usa desde sua primeira aparição. Nas palavras do personagem: “Ué! Agora, todo mundo deu pra imitar?” É possível compreender uma atitude tomada pelo personagem,

102 ou seja, o personagem posiciona o seu lugar de único usuário de boné da Turma, e apresenta um discurso no momento em que ninguém fala.

Figura 30. Jeremias em “O Chapéu do Contrário” Publicada no almanaque do Cebolinha nº 89, ed. Globo, 2005. p. 33

Nota-se que na década de 1980, a composição estética de Jeremias se alterou em vários momentos, e no final desta década o personagem assumiu a representação que figura até os dias de hoje na Turma da Mônica Clássica, portanto, a partir desta década é possível traçar o seguinte panorama:

Personagem Jeremias na Década de 1980

1989 1980 1982 1987

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Tendo como referência as histórias em quadrinhos analisadas foi possível observar as alterações feitas no personagem, e seus dialogismos. Ao propor a linha do tempo como exercício analítico, é possível compreender que o personagem passou por quatro estágios na década de 1980, e ao comparar com a linha do tempo apresentada no período chamado “Pré-Turma”, nota-se que entre 1960 e 1989 Jeremias12 é representado de sete maneiras distintas, ou seja, o personagem não funciona de maneira fixa, este funciona como signo, discurso e dialoga com a sociedade em que está inserido.

Um Protagonista Negro: Surge o Pelezinho

“De início, Pelé relutou muito em aceitar a ideia, ver sua imagem ligada a um personagem com feições estritamente infantis...” Entrevista de Maurício de Sousa ao jornal Folha de São Paulo, 1976).

Na década de 1970, Maurício de Sousa articulava seus personagens de acordo com as possibilidades mercadológicas, e o autor foi percebendo que os personagens funcionavam, dialogando com marketing, diferentes mídias, ou seja, o autor foi repetindo uma lógica que conseguiu administrar, e que ainda é utilizada nos dias atuais. Maurício compreendeu a forma que os Syndicates funcionavam nos Estados Unidos, e reproduziu as articulações com a Indústria Cultural. A partir de tal percepção, o autor propôs um diálogo com a cultura futebolística, criando a partir de um grande atleta, sua representação nos quadrinhos.

Sobre a minha impressão do Pelezinho, no início quando o Maurício veio com a ideia, eu não tinha nenhuma experiência também, era tudo novo, a única coisa que eu não gostei e que hoje é a marca real do Pelezinho, a única coisa que eu não gostei foi o cabelo, o topete... Falei mas Maurício... Não dá pra arrumar... (Depoimento do jogador Pelé no relançamento do personagem Pelezinho para Copa do Mundo de 2014).

12 Em algumas histórias em quadrinhos produzidas na década de 1990 Jeremias fazia parte da “Turma do Bermudão”, com Manezinho, Titi e Franjinha. A tal turma aparecia em poucas narrativas, e o “bermudão” servia para identificar o fato de estes personagens serem mais velhos que Mônica, Cebolinha e os outros personagens criados posteriormente.

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O personagem foi criado em 1976, e foi publicado inicialmente nas tiras de Jornal do Folha de São Paulo, Maurício de Sousa acreditava que as narrativas deveriam ser baseadas nas histórias que Pelé viveu quando era pequeno. Entretanto, o jogador acreditava que seria melhor uma versão adulta em quadrinhos. Segundo Maurício, a continuidade da marca do rei do futebol estaria garantida se os quadrinhos fossem destinados ao público infantil.

Figura 31. Divulgação do personagem Pelezinho no Jornal Folha de São Paulo, 5 de Outubro de 1976.

Pelezinho tinha uma turma, os personagens coadjuvantes eram todos baseados em sua infância, Maurício de Sousa e Pelé mantinham diálogos, e a partir daí, as tirinhas eram criadas. Em 1977, devido ao sucesso da tirinha, Pelezinho ganhou uma revista publicada pela editora Abril.

“Frangão; Teófilo; Cana Brava; Bonga; Rex, o cavador e Samira serão os primeiros da “turminha do Pelé” a entrarem em ação. Para isso foram feitas algumas subtrações dos personagens inicialmente indicados por Pelé”. (Divulgação dos personagens no Jornal Folha de São Paulo, 5 de Outubro de 1976)

Em relação a composição e características dos personagens coadjuvantes da “turminha do Pelezinho”, torna-se interessante destacar dois deles, e a maneira como eles foram descritos. A descrição apresentada no jornal Folha de São Paulo mostrava “Teófilo” como um goleiro “criolão”, que jogava no São Paulinho de Curuçá. Por ser forte andava sempre de camiseta bem apertada para mostrar o físico. E “Bonga”, apelido de uma crioulinha com seios grandes, que brigava muito quando a chamávamos assim.

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Figura 33. Personagens Teófilo e Bonga

As características dos personagens foram apresentadas por Pelé, indicando como eram seus amigos de infância, então, tal descrição foi feita pelo jogador, ou pelo autor das representações? A questão aqui, é compreender como era o pensamento social no momento em que as tirinhas foram criadas, percebe-se que os personagens dialogam com o futebol, como tirinhas construída especificamente para mercados específicos, com fins lucrativos. A construção de narrativas sobe Pelé deve-se ao fato de o jogador ser muito habilidoso e ter se tornado um fenômeno nacional e internacional, nas palavras do jornalista esportivo Luís Mendes13:

O Pelé foi maior jogador do mundo por causa do comportamento pessoal que agradava a todos. Sempre foi muito cordial, era um homem completo, sempre muito profissional. Vou usar a frase do Johan Cruyff: 'Para surgir alguém

13 Luís Mendes começou a trabalhar na rádio globo em 1950, foi um dos criadores do debate esportivo chamado de “mesa redonda” na televisão brasileira, ficou conhecido como o comentarista da palavra difícil.

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como Pelé, só de cem em cem anos'. Depois ele se corrigiu, ainda bem. 'Talvez nunca mais'. Foi uma coisa fora do normal (Entrevista de Lupis Mendes ao jornalista Lucas Moretti, em 2010).

Quando o personagem transformou-se em personagem de quadrinhos, Pelé (Edson Arantes do Nascimento) já tinha participado de três copas do mundo ( 1958, 1962 e 1970), e o jogador já tinha feito mil gols (o milésimo ocorreu em 1969), fato inédito na história do futebol, ou seja, colocá-lo nas histórias em quadrinhos era uma fórmula lucrativa, pois, o jogador, já era conhecido em diferentes mídias, faltava apenas as histórias em quadrinhos. Nesse sentido, percebe-se a proposta e articulação de Maurício de Sousa, que ao compreender a lógica existente no mercado, posicionava suas ideias em direções lucrativas, construindo assim um novo personagem negro que tornou- se mais famoso que Jeremias.

Figura 34. Primeira capa da revista Pelezinho, 1977. Apesar do sucesso das histórias em quadrinhos, as publicações feitas pela editora duraram até 1982, e alguns almanaques ainda continuaram sendo publicados até 1986. Em 1988, Maurício de Sousa trabalhava coma editora Globo, então, Pelezinho foi republicado em uma coleção de histórias antigas. O personagem ainda teve algumas aparições posteriores, chegando a ser relançado em 2014, como possível mascote da Copa do Mundo no Brasil, pois, segundo Maurício de Sousa “Pelé continua representando o Brasil no mundo todo, mesmo não entrando em campo” (Sousa, 2009), e o autor teve o apoio do Rei do Futebol: ‘Hoje tudo que se respira é futebol. Temos a Copa do Mundo, a

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Copa das Confederações, etc… O Pelezinho serve como mascote da Copa no Brasil de maneira informal” (Pelé, 2002). Em suma, foi possível perceber que no decorrer dos anos, a Maurício de Sousa Produções tornou-se uma potência, entre tirinhas, histórias em quadrinhos, livros infantis, e representações de ícones da cultura pop, os personagens de Maurício de Sousa deixaram as narrativas gráficas, e funcionaram como signos, propondo diferentes diálogos com a Indústria cultural. Nota-se que nesse fluxo, Jeremias não tornou-se um personagem fixo, mesmo com aparições pouco expressivas, o personagem foi sendo alterado de acordo com as demandas apresentadas pela sociedade. Em relação as alterações estéticas, o autor comenta: “Quanto às mudanças, todo mundo muda um pouco hoje em dia, todo mundo quer dar uma mudadinha de visual, eu, enquanto desenhista, tenho essa vontade também” (SOUSA, 2007). Entretanto, percebe-se que os desenhos de Maurício são direcionados pelo auditório social em que o autor está vivenciando, logo, é preciso focar uma área do público e ir em direção a essa faixa (SOUSA, 2014), percebe-se então que suas opções são dialógicas. Dentro desta perspectiva, observaremos agora, a identidade dialógica do personagem, dialogando com outra mídia que Maurício de Sousa passou a utilizar. Analisaremos a produção audiovisual construída pelo autor, ou seja, o universo cinematográfico que se inicia na década de 1980, percebendo em que narrativas Jeremias está presente, e de que forma o personagem é posicionado.

Fase 2: Produção Audiovisual

Os estudos sobre o personagem Jeremias nos levam a compreensão de que o personagem inicialmente é construído de uma certa forma, entretanto, este pode ser utilizado de acordo com os interesses de seu criador, os dialogismos em torno do personagem fazem com que este seja posicionado em diferentes mídias, ou seja, pode estar atrelado a outras significações em momentos específicos distintos, portanto, a situação social determina que modelo, que metáfora, que forma o personagem poderá assumir, representar. Nas palavras de Bakhtin (2014):

Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez

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sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. (BAKHTIN, 2014. p. 123).

Dentro desta perspectiva, observou-se que a inserção dos personagens na mídia televisiva e cinematográfica inicia-se na década de 1960, com comerciais, onde seus personagens tornavam-se garotos propagandas, ou dialogavam com algum ator. As Histórias completas, no formato curta metragem, começaram a ser produzidas em 1976, e distribuída através de filmes coletâneas durante os anos 1980 e 1990, lançadas no cinema inicialmente, e depois em vídeo. O repertório audiovisual cinematográfico da Maurício de Sousa Produções possui até o ano de 2015 vinte e três títulos. Após ser introduzida na televisão como garotos-propaganda em comerciais a partir de meados dos anos 1960, histórias completas começaram a ser produzidas em 1976 e distribuídas através de filmes-coletâneas durante os anos 1980 e 1990 (lançados inicialmente nos cinemas e depois diretamente em vídeo) A coleção audiovisual possui até o ano de 2015 vinte e três títulos, entre eles, Jeremias aparece em apenas dois. O filme A fonte da Juventude e outras histórias (1986), vem com oito episódios, onde apresentam-se os personagens de Maurício de Sousa distribuídos nas narrativas. O Episódio “A fonte da Juventude”, apresenta alguns dos primeiros personagens de Maurício de Sousa, estão presentes, Franjinha (e o cãozinho Bidu), Titi, Jeremias e Cebolinha. A narrativa se passa em uma ida dos amigos a uma floresta, onde estes desejam acampar.

Figura 35. Jeremias em “A Fonte da Juventude”, 1986

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Cebolinha deixa os amigos para procurar água e encher o cantil, sem saber, Cebolinha enche o cantil e dá para seus amigos, eles fazem um café com aquela água e bebem. Todos transformam-se em bebês, menos Cebolinha, pois esse não queria beber café, e sim refresco.

Figura 36. Jeremias Bebê em “A Fonte da Juventude”, 1986

Após perceber que os amigos tornaram-se crianças, Cebolinha é instruído por um senhor que conhecia a floresta a leva-los na “fonte da velhice”, e assim, após algumas horas, seus amigos voltariam ao normal. Observa-se que em toda narrativa Jeremias é o único que não fala, limita-se a chorar quando se torna criança. O personagem é construído com base nas referências da década de 1980, ou seja, lhe são atribuídos os estereótipos que eram considerados úteis para representar o negro naquele momento. Sua posição na narrativa difere-se dos momentos anteriores em que existiam apenas esses personagens, no filme o personagem aparece em diferentes cenas, entretanto, passa como invisível, sem apresentar nenhum discurso, utilizado como figuração. Em Se Liga na Turma da Mônica - Volume 1 (2011), Jeremias aparece no episódio “A Aposta”, em que Cebolinha e Mônica fazem uma aposta, onde o prêmio seria um sorvete.

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Figura 37. Jeremias em “A Aposta”, 2011.

Nesta narrativa, Jeremias estava jogando bafo (cartas) com Cascão, quando

Cebolinha passa correndo e atrapalha a brincadeira das crianças. Jeremias indignado diz: O que foi isso? Cascão responde: Foi o Cebolinha, então Jeremias comenta: Ah! Aquela aposta ridícula. O personagem está caracterizado com a composição estética construída no final dos anos 1980, e que passou a ser utilizada na maioria das histórias posteriores. Entre um filme e outro é possível notar diferenças estéticas, e o fato de que em um o personagem funciona como figurante, e no outro como coadjuvante, chegando a ficar indignado pelo fato de Cebolinha atrapalhar o jogo.

Figura 38. Jeremias em “A Aposta”, 2011. O personagem apresenta personalidade, questionando o fato de alguém ter atrapalhado a brincadeira dele, tal postura, não é comum nas aparições de Jeremias, que se apresenta como passivo em muitas das narrativas onde está presente. Outro aspecto interessante é o fato de que o personagem funciona além do grupo onde quase sempre é apresentado, ou seja, nesta história, Jeremias é apresentado isoladamente com Cascão, os

111 dois brincam independentemente das coisas que estão acontecendo. Isso mostra a fluidez do personagem. Nota-se que mesmo em diferentes plataformas, a identidade dialógica do personagem se mantém de forma fluida, entre protagonismos e invisibilidades, entretanto, é possível perceber também, que independente das nuances do personagem, este permanece nas narrativas, sendo posicionado conforme os interesses de produção, ou seja, ter um personagem negro tornou-se relevante. Entretanto, percebe-se também, que em algumas plataformas específicas são escolhidos determinados personagens, não utilizando perspectivas ligadas a diversidade, mas sim a obtenção de lucros, como é possível perceber no próximo tópico que trabalharemos.

Fase 3: Turma da Mônica Baby (1990)

As análises propostas até então, pautaram-se sobre o dialogismo, verificando os pontos em que ocorrem relações dialógicas entre a produção de personagens e o ambiente sociocultural, partindo desta perspectiva, construiu-se na década de 1990 uma versão bebê para a turma da Mônica, a “Turma da Mônica Baby”, que foi direcionada como proposta de marketing para pacotes de fraldas descartáveis, babadores, brinquedos, ou seja, foi criada especificamente para o universo infantil da primeira infância, de 0 a 3 anos.

Figura 39. Turma da Mônica Baby

A Turma é composta pelo elenco principal de Maurício de Sousa (Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali), com os mascotes Bidu e Mingau, e também com o

112 personagem Anjinho. Alguns comerciais foram vinculados na década de 1990, onde apareciam os personagens juntamente com crianças pequenas. Ainda hoje são lançados produtos específicos direcionados produzidos com a temática da turma baby. Mesmo com a linha de mercado lucrativa, não há uma preocupação da empresa em propor diversidade entre os personagens, nesse nicho específico Jeremias não está presente. Ou seja, não há nenhum bebê negro. Recentemente saíram alguns livros temáticos para crianças, com histórias ligadas a rotina dos bebês.

Figura 40. Turma da Mônica Figura 41. Turma da Mônica Baby em Hora do Banho, 2008. Baby em Hora da Papinha, 2013.

Fase 4: Você sabia? (2003) E Saiba Mais (2007)

As Histórias em Quadrinhos publicadas em: Você sabia? (2003) e Saiba Mais (2007), dialogam com questões educacionais, discutem assuntos ligados às áreas de ciências, história, saúde, comunicações, folclore, datas específicas e biografias de personalidades da história brasileira. Dentro deste repertório foram escolhidas as revistas Você Sabia? Turma da Mônica - Abolição da Escravatura (2007) e Saiba Mais sobre o Descobrimento do Brasil (2008)

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A Abolição da Escravatura em Quadrinhos

Na opção narrativa proposta pela Maurício de Sousa Produções, a história se inicia com a indignação de José do Patrocínio, que nessa história é tio da Mônica. O abolicionista não aguenta mais o processo de escravidão no Brasil, e conta para a sobrinha como se iniciou tal processo no Brasil.

Figura 41. Turma da Mônica em Abolição da Escravatura.

Na história aparecem personalidade como Castro Alves, Rui Barbosa e Princesa

Isabel, entretanto, Jeremias não faz parte da narrativa, apesar de aparecerem personagens negros e até indígenas. Jeremias apresenta-se apenas na seção “passatempo”. Curiosamente o personagem aparece sete vezes, não tendo diálogo, ou seja, mesmo na história que fala-se sobre o negro e o processo de escravidão, o personagem não foi utilizado dentro da narrativa, provavelmente por já ter feito parte de história semelhante em Jeremim, o príncipe que veio da África (1987). Entre as sete representações apresentadas em “Passatempo”, em apenas uma delas Jeremias é escravo, em cinco ele é um homem livre, e em uma delas Jeremias apresenta-se como um navegante.

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Figura 42. Jeremias como Navegante, Aproveitando a liberdade após a libertação dos Escravos, e como escravo. 2007.

Outro aspecto interessante da narrativa, é que a princesa Isabel, só assina a Lei Áurea porque a Mônica fez um pedido a ela.

Figura 43. Mônica e a Princesa Isabel. 2007

Através das leituras e análises dessa história em quadrinhos, percebeu-se que mesmo se a temática tratar de uma parte da história em que os negros viveram, isso não significa que Jeremias será utilizado dentro das narrativas, mesmo sendo o único personagem negro da Turma da Mônica (Pelezinho não faz parte da Turma, esse personagem tem revista própria), então, percebe-se que a utilização do personagem está atrelada a lógica mercadológica de produção, este pode ser utilizado ou não, dependendo do contexto, como por exemplo, o fato de Jeremias aparecer como um navegante, um leitor de mapas, representação inédita até este momento.

O Descobrimento do Brasil em quadrinhos

Em saiba mais sobre o descobrimento do Brasil (2008), o personagem Jeremias aparece na capa da revista como um dos navegantes.

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Figura 44. Capa da Revista Saiba Mais sobre Descobrimento do Brasil

A revista propõe diálogo com a publicação do ano anterior (Você sabia –

Escravidão do Brasil). Onde o personagem apareceu pela primeira vez como navegante. Apesar do cargo de ajudante do capitão, Jeremias não apresenta nenhum diálogo nesta narrativa, é apenas uma representação figurativa.

Figura 45. Jeremias o navegante, 2008.

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Um fato curioso sobre a aparição do personagem nesta narrativa, é que quando o Navio chega as terras brasílicas, uma pequena equipe sai para averiguar o local que “descobriram”, tendo Cebolinha como capitão, e representando Pedro Alvares Cabral na narrativa quadrinizada. Neste momento específico Jeremias fica no navio, e não tem contato com os habitantes do país, não participa dos contatos culturais, e não aparece mais na história. O personagem volta a aparecer na seção passatempo.

Figura 46. Jeremias é Aires Gomes da Silva, 2008.

Jeremias como Aires Gomes da Silva, aparece como “os 13 mais mais da marinha portuguesa”, importantes por comandarem uma grande exposição, com 10 naus e 3 caravelas escolhidos por Dom Manuel, como um dos 13 comandantes. Apesar de tal prestígio e titulação, o personagem mais uma vez é invisibilizado dentro da narrativa. Ainda na mesma revista, Jeremias aparece como parte importante da diversidade.

Figura 47. Jeremias é parte da diversidade do país, 2008. 117

É exatamente pelas questões apresentadas até aqui que as HQ’s não podem ser compreendidas independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que elas se ligam, e o personagem, imerso nessas narrativas deve ser compreendido da mesma forma. A construção da narrativa faz parte de uma estrutura social, então, se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender as circunstâncias que culminaram na construção da narrativa e na representação do personagem, pois, sua significação é inseparável da situação concreta em que se realiza. Sua significação é diferente a cada vez, de acordo com a situação (BAKHTIN, 2014). Se o personagem muda sua significação, quer dizer, a mudança de significação apresenta-se como uma reavaliação, um deslocamento possibilitando novas representações. Para Bakhtin (2014):

A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida elo tema, e dilacerada por suas condições vivas, para retomar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade em uma identidade igualmente provisórias. (BAKHTIN, 2014. p. 141).

Na tentativa de mapear as aparições do personagem, apresentam-se nuances, representações que podem ser consideradas positivas, estereótipos e processos de invisibilidade, onde o personagem não tem voz, ou simplesmente desaparece da narrativa. Isso mostra que o personagem existe, mas não é estável, pode ser situado em diferentes fronteiras de formas distintas, não sendo posicionado de maneira fixa.

Fase 5: Clássicos do Cinema (2007)

As análises apresentadas até então, nos levam a percepção de que a identidade dialógica do personagem funciona como um registro, apresenta as impressões do discurso presente no curso das relações dialógicas na sociedade, manifestando-se como relevantes para a compreensão do cenário social em que determinada narrativa funciona. Dentro desta perspectiva, apresentaremos as posições do personagem Jeremias na série Clássicos do Cinema, publicada inicialmente em 2007. Nota-se que até junho de 2016 foram lançadas cinquenta e uma edições, as narrativas presentes nessas histórias dialogam com o cinema, filmes que obtiveram certo prestígio, ou seja, tornaram-se

118 sucesso, e transformaram-se em produtos da cultura pop. Nesse sentido, os personagens da Turma da Mônica ocupam os lugares dos atores, propondo uma espécie de sátira. Observou-se que entre as edições publicadas Jeremias apareceu na capa de cinco edições: Comandante Gancho (2008), O Feio Contra-Ataca (2008), Esse Espelho é Meu (2013), Os Vingadoidos (2013) e Gamebusters (2016). Observou-se também um fato curioso na revista Star Treko (2012), onde o objetivo da narrativa era propor um diálogo com a série Star Trek14 (Jornada nas Estrelas), lançada incialmente em 1966.

Figura 48. Mônica é Uhura em Star Treko, 2012.

Como parte da frota estelar, e do elenco principal, existe na série original uma personagem chamada Uhura, oficial-chefe de comunicações, com representatividade significativa na série. Na versão produzida pela Maurício de Sousa Produções, a personagem Uhura é representada pela Mônica. Em relação a posição da Mônica nesta revista específica, dois fatores devem ser levados em consideração, o primeiro é o fato inegável de que a personagem Mônica é o ícone mais importante da Maurício de Sousa Produções, como foi possível observar nas discussões propostas anteriormente, outra questão relevante, é que apresentar a Mônica

14 Star Trek é uma franquia de entretenimento norte-americana criada por Gene Roddenberry. A franquia iniciou-se como uma série de televisão em 1966, originalmente chamada Star Trek mas posteriormente renomeada para Star Trek: The Original Series.

119 neste papel evidencia o fato de que aparentemente não existe personagem feminina negra no universo da Turma da Mônica. Falamos anteriormente sobre a personagem Bonga, que é específica do universo em que Pelezinho existe, apesar de que recentemente a personagem está sendo reapresentada na campanha “Somos todas donas da rua”, veiculada pela Maurício de Sousa Produções em 2016.

Figura 49. Bonga é uma das Donas da Rua, 2016. Para a campanha alteraram a composição estética da personagem, processo similar ao de Jeremias. Entretanto, a personagem Bonga, limita-se exclusivamente as narrativas de Pelezinho, apesar de isso não significar que a personagem é fixa, os dialogismos ligados a personagem Bonga podem leva-la a ser “Dona da Rua”. Porém, imagina-se que a falta de popularidade da personagem fez com que não se tornasse interessante mercadologicamente para figurar “Uhura” na revista em quadrinhos.

Figura 50. Aninha é “Chuvinha” em X-monicos, (2015).

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Tal questão apresenta-se também, em X-Monicos (2015), a série inspirada nos X- Men15, que desde a década de 1970 tem em seu uma protagonista negra chamada Ororo Munroe16 (Tempestade), que na versão turma da Mônica foi interpretada por Rosinha (Chuvinha). Observa-se que Rosinha faz parte de um universo rural, uma personagem frequente nas narrativas de Chico Bento, que, na ausência de uma protagonista negra, teve sua identidade deslocada, ou seja, Rosinha tornou-se negra, mas uma vez é possível compreender que os personagens não possuem identidades estáveis, ou seja, suas identidades flutuam de acordo com os interesses de seus criadores.

Figura 51. Aninha (Chuvinha) utilizando seus poderes (2015).

Portanto, observou-se que não só a identidade dialógica de Jeremias pode mudar, mas de todos os personagens que fazem parte da Maurício de Sousa Produções, pois, a questão mercadológica direciona as utilizações dos personagens, então, a Mônica (ou a Rosinha) podem se tornar personagens negras, se for de interesse dos meios que produzem as revistas em quadrinhos.

Jeremias, um Agente Secreto

Até o presente momento, as narrativas em torno de Jeremias o apresentavam como uma criança, um príncipe africano, um escravo, e até um navegante. Em Os Vingadoidos

15 X-Men é uma equipe de super-heróis de histórias em quadrinhos épicas publicadas nos Estados Unidos pela Marvel Comics. Criados por Stan Lee e Jack Kirby, estrearam em The X-Men #1, publicada em setembro de 1963 16 Ororo Monroe é Tempestade em X-Men, uma personagem fictícia de história em quadrinhos do Universo Marvel Comics. Sua primeira aparição foi em Giant-Size X-Men #1 (Maio de 1975). Uma das primeiras personagens femininas negras a fazer parte do universo das histórias quadrinhos.

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(2013), Jeremias obtém seu papel mais representativo, até este momento. Jeremias tornou-se agente especial, figura importante na espionagem mundial.

Figura 52. Jeremias em Vingadoidos, 2013.

Em Vingadoidos Jeremias é o agente responsável por reunir os super-heróis mais poderosos da terra. A narrativa inspira-se no filme Vingadores lançado pela Marvel17 Studios em 2012. Devido a uma grande ameaça alienígena, o agente Nick Furo (Jeremias), prepara um plano de contenção para livrar o planeta terra do mal.

17 Marvel Studios (originalmente conhecida como Marvel Films entre 1993-1996) é um estúdio de televisão e de cinema, subsidiário da Marvel Entertainment, responsável por produzir filmes, desenhos animados e séries.

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Figura 53. Jeremias e sua equipe de Agentes Secretos, 2013.

Nas palavras de Jeremias “Só mesmo os Vingadoidos”, o agente articula situações para conseguir conversar com os super-heróis e convencê-los sobre a importância de trabalharem juntos. Nota-se que nessa narrativa, a representação de Jeremias é bastante significativa, tornando-se o articulador de um grupo de pessoas com superpoderes, e convencendo estes a usarem tais poderes pelo bem da humanidade.

Figura 54. Representação da autoridade de Jeremias

A posição da identidade dialógica do personagem nesta história é mais evidenciada do que em Jeremim, O Príncipe que veio da África (1987), Apesar da história resgatar elementos da herança africana, o personagem passa a maior parte da narrativa em silêncio, já em Vingadoidos, o personagem protagoniza certos momentos, posiciona- se em determinados aspectos, ou seja, torna-se presente, não sendo possível passar despercebido. Em Gamebusters (2016), Jeremias também participa de uma narrativa onde

123 salva o mundo. A revista, apresenta uma versão de Caça-Fantasmas18 (1984), entretanto, foi produzida devido ao fato de que em 2016 estreou um remake19 do filme, logo a Maurício de Sousa Produções, lançou a história em quadrinhos antes da estréia do filme 2016, dialogando com a indústria cultural, e posicionando Jeremias na narrativa, pelo fato de ele ser um personagem negro. Foi possível notar que a maneira de conduzir o personagem alterou-se, desde sua aparição inicial, em um primeiro momento, Jeremias era integrante da turma, coadjuvante presente nas histórias de Bidu e Franjinha, com a construção da “Turma Oficial” composta por Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, o personagem foi perdendo espaço, fazendo aparições restritas, entretanto, com a construção de Clássicos do Cinema, Jeremias apresenta-se como pontual, quando deve ser feita uma representação de um personagem negro, ou seja, é possível compreender que, nessas narrativas, Jeremias aparece quando precisa-se de um negro, o personagem é uma proposta de diálogo com a representatividade negra no cinema, este, apresenta-se sozinho, como o único personagem negro que se apresenta na Turma da Mônica.

Figura 55. Jeremias em Gamebusters, 2016.

18 Ghostbusters (Os Caça-Fantasmas) é um filme americano de 1984, do gênero comédia, dirigido por Ivan Reitman. 19 Refilmagem é o termo em português equivalente ao inglês remake (tradução literal: "refazer") e é a designação usada para novas produções e regravações de filmes, telenovelas, jogos, seriados ou outras produções do gênero de ficção.

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A observação sobre cada fase presente no “Período Turma”, nos levou a percepção de que no decorrer das décadas, o personagem Jeremias esteve ligado a diferentes contextos de significação, ou seja, é perceptível seu caráter fluido. Onde antes, eras possível observar as alterações estéticas do personagem, com o passar dos anos foi possível identificar que o personagem estava inserido em contextos ligados a história do Brasil, e em diferentes profissões.

Nasce outro jogador (negro), a Turma de Ronaldinho Gaúcho

Além de todas as questões abordadas no “Período Turma”, deve-se evidenciar a construção de mais uma narrativa particular, onde a figura do jogador de futebol é utilizada mais uma vez por Maurício de Sousa. Depois da revista Pelezinho (1977), a indústria responsável pela Turma da Mônica repete a dose e constrói um universo particular onde vive o novo personagem com habilidades futebolísticas: Ronaldinho Gaúcho. Nas palavras de Maurício de Sousa: “Ronaldinho me pareceu a chave ideal para fazer uma entrada no mercado internacional. Serviu para melhorar nossa estratégia” (Sousa apud RAMOS, 2012). Observa-se então que, de maneira similar a proposta que envolvia Pelezinho, as articulações que envolveram a construção do personagem, visavam um contexto mais abrangente, uma publicação internacional, Ronaldinho é o cartão de visitas. Só que junto com ele, estavam também os outros personagens da empresa, como Mônica e Cebolinha (Ramos, 2012).

Figura 56. Primeira edição da revista Ronaldinho Gaúcho, editora globo, 2006. 125

Observa-se que Jeremias está presente na capa da primeira edição, pois, o personagem geralmente faz parte do núcleo futebolístico das histórias da turma da Mônica. Entretanto, Ronaldinho Gaúcho tem sua própria turma, com histórias que se articulam além de Mônica e seus amigos.

Figura 57. Ronaldinho Gaúcho com Dona Miguelina (sua Mãe), Diego, Assis e Deisi, 2006.

Nota-se que no núcleo de personagens das histórias de Ronaldinho Gaúcho, existem duas meninas negras, Deisi é irmã do meio de Ronaldinho Gaúcho, e Marilu é sua amiga, esse fato nos faz contatar que no universo de Maurício de Sousa existem três personagens femininas negras (sem contar a Mãe de Ronaldinho), Além de Deisi e Marilu, Bonga faz parte das histórias de Pelezinho, logo, na série “Clássicos do Cinema” (2007), a utilização de personagens como Mônica e Rosinha para interpretarem personagens negras do cinema, não é por falta de personagens, mais uma opção estratégica, mecânica, para que a aceitação do público funcione de forma sistemática.

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Figura 58. Marilu na capa de Ronaldinho Gaúcho nº 49, 2006.

O contrato de Maurício de Sousa foi feito com a empresa americana Universal, que mantém uma rede de 4. 700 jornais, e tornou-se responsável pela distribuição de tiras e histórias em quadrinhos de Ronaldinho Gaúcho e da Turma da Mônica. Nota-se então, que cada produção construída pela Maurício de Sousa Produções, apresenta relações dialógicas com o cenário cultural, enfatizando o aspecto industrial, ou seja, a criação de personagens específicos para sua utilização mercadológica. Partindo destas perspectivas, a análise a partir de agora se pautará pelas articulações feitas em torno do personagem no período conhecido como “Pós-Turma”, período onde a Turma da Mônica já tem um mercado específico, os personagens tornam- se adolescentes, a Maurício de Sousa Produções continua dialogando com várias mídias, inclusive com a internet, onde foram criadas histórias específicas para essa plataforma, e suas publicações são comercializadas visando a comemoração de aniversário dos personagens e do autor.

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Período Pós-Turma (2008-2016)

O período Pós-Turma é compreendido como o período que se inicia em 2008, e funciona até os dias atuais, a Maurício de Sousa Produções já possui mercado específico nacional e internacional, e continua propondo novas articulações, construindo mecanismos para que seus personagens possam ser posicionados em diferentes plataformas, sendo responsável por império cultural que movimentam representações e identidades, assim, nossos contextos culturais agregam infinitas tendências, estilos, características, que interferem nos processos de identidade dos indivíduos de modo complexo e peculiar (GONÇALVES, 2016). Nota-se em tal período os usos da identidade dialógica do personagem Jeremias, investigando seus deslocamentos, e suas inserções específicas em determinados contextos. Em tal período verificou-se publicações distintas, reconfigurando certos personagens, entre o que compreendemos como “Turma da Mônica Clássica” e “Turma da Mônica Jovem”, levando em consideração, também, uma série de publicações de aniversário, com objetivo de homenagear o Maurício de Sousa e seus personagens. Constroem-se então, perspectivas, evidenciando o dialogismo presente nas histórias em quadrinhos que serão analisadas, percebendo a linguagem, ou seja, o discurso presente, e sua significância narrativa, levando em consideração seu status de produto cultural que dialoga com o cenário social. Em suma, pretende-se então, pontuar especificamente a posição do personagem Jeremias em todo este processo que data de 2008 -2016, discutindo as relações dialógicas, e a manutenção da indústria cultural, pois, todos os aspectos dos quadrinhos tem sido afetados pelo comércio (MCCLOUD, 2005), e compreender tais relações são essenciais para propor de maneira coerente tal periodização.

Jeremias, o Presidente da Turma

A compreensão das relações dialógicas nos leva a uma análise mais elaborada sobre a construção narrativa, e a inserção do personagem em cenários específicos, nota- se então, a observância de relações dinâmicas, complexas e tensas. Logo, é impossível compreender qualquer forma de discurso citado sem levar tais relações em conta (BAKHTIN, 2014).

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Optar pelo dialogismo como ponto epistemológico específico para análise das narrativas em que Jeremias está presente, é propor uma leitura, percebendo assim, pontos de comunicação com o cenário social, ou seja, a percepção das relações dialógicas. Dentro desta perspectiva, nota-se que as construções da identidade dialógica de Jeremias flutuam, apresentam-se de formas distintas, assim o personagem ocupa diferentes posições. Um exemplo disso é a narrativa que foi construída especificamente no ano de 2009, onde Jeremias concorre a presidência do “clubinho”. Jeremias tem como candidato de oposição Cebolinha, com um discurso pautado na igualdade, o personagem convence os eleitores e vence a eleição. Nas palavras de Jeremias: “Sonho que se sonha só é um sonho igual, mas sonho que se sonha junto vira uma coisa real”.

Figura 59. Jeremias, presidente da turma, 2009. Observa-se que tal narrativa que transforma Jeremias a candidato à presidência e consequentemente, o presidente do clubinho, não foi construída de maneira aleatória. Em 20 de Janeiro de 2009, Barack Hussein Obama tornou-se o 44º presidente dos Estados Unidos. Em Junho de 2009, Jeremias diz: “Eu tenho um sonho”. Toda a narrativa em torno de Jeremias teve como referência, ou seja, dialogou com o cenário político dos Estados Unidos, onde pela primeira vez um negro tornou-se presidente. Jeremias, representa obama, e o bairro do Limoeiro simboliza os Estados Unidos. Este dialogismo presente, verifica-se a partir da maneira como a identidade dialógica do personagem é posicionada ou reposicionada, onde este, ocupa o lugar do negro na sociedade. Um fato curioso dentro da análise narrativa é a aparição do personagem Louco no final do discurso de Jeremias. Tal personagem costuma aparecer quando a narrativa “não

129 faz sentido”, ou seja, o Louco20 que comunica a todos que Jeremias ganhou a eleição. Então, Jeremias cadidatar-se a presidencia do clubinho e consequentemente vencer faz parte de um discurso delirante ou esquizofrênico? Nota-se que mesmo nos esparsos momentos de protagonismos do personagem, há uma ausência de legitimidade na figura de Jeremias, percebe-se também, a expressão do rosto de Cebolinha, quando Jeremias emociona os outros personagens com suas palavras, Cebolinha ao “pôr a lingua pra fora”, demonstra um dilogismo comas práticas culturais hegemônicam que descaracterizam o discurso do negro, na tentativa de desconstruir toda uma história, subjulgando, ou seja, não legitimando a posição do sujeito negro em cenários sociais que se diferem do imaginário de estereótipos construido ao longo dos anos. Em 2012, é possível notar também relações dialógicas entre a representação de Jeremias e as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, quando o presidente Barack Obama se reuniu com a presidenta Dilma Rousseff, o desenhista e ilustrador Ismael Martinez, evocou Jeremias em uma ilustração, onde este, mais uma vez apresenta- se como presidente, ao lado de Mônica, que representa a presidenta brasileira.

Figura 60. Jeremias Obama e Mônica Rousseff por Ismael Martinez. 2012.

Nota-se que Ismael Martinez não representa a Maurício de Sousa Produções, entretanto, o desenhista repete a construção narrativa apresentada em 2009 na revista Cebolinha. Ou seja, por mais um momento o personagem ocupa a posição de presidente,

20 O personagem Louco da Turma da Mônica foi criado em uma parceria de Márcio Araújo (roteirista) e Sidnei Lozano (artista). Márcio é irmão de Maurício de Sousa. Louco estreou na primeira edição da revista Cebolinha em janeiro de 1973, em “Uma história muito louca”, o personagem foge do hospício e se encontra com Cebolinha.

130 que é transitória, flutuante, pois, especificamente na narrativa proposta pela Maurício de Sousa Produções, a história tem um fim, então, não é possível compreender se Jeremias tornou-se um bom presidente, ou se por acaso chegou a exercer o cargo, a narrativa de maneira pontual apenas incorporou os aspectos culturais e deu voz ao personagem por um único momento específico. Bakhtin (2014), comenta que a sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nesse sentido, a sociedade construída nas narrativas dos quadrinhos reproduz esse exercício., pois o Bairro do Limoeiro, pode tornar-se mais amplo, e Jeremias pode ser o protagonista de uma narrativa, entretanto, é possível observar, que de maneira pontual o personagem é inserido nas narrativas, que nunca estão separadas das relações sócio-culturais. Logo, as HQ’s não podem ser compreendidas independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que elas se ligam, a construção da narrativa faz parte de uma estrutura social.

Turma da Mônica Jovem (2008)

Mônica mantém os dentões e o coelhinho, mas não é mais uma menina gorducha, como diziam Cebolinha e Cascão. Os dois também mudaram... Magali continua comilona. Mas controla o que come para se manter esbelta. (RAMOS, 2012. p. 64).

Em 2008 a Maurício de Sousa Produções, lançou a Turma da Mônica Jovem, publicações em que ocorreu mudança no perfil de seus personagens, onde tornaram-se adolescentes. A proposta dessa nova cara da Turma da Mônica, seria atrair um leitor mais jovem, diferente do que tradicionalmente lê as revistas infantis (RAMOS, 2012). A revista foi produzida no estilo mangá (quadrinho japonês), gênero muito popular entre a faixa etária adolescente, chegando a dividir espaço com as revistas de super-heróis. Para promover a nova publicação, a Maurício de Sousa Produções distribuiu gratuitamente uma revista especial de seis páginas em um evento chamado Anime Friends.

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Figura 61. Capa da Edição nº 1 da Turma da Mônica Jovem. 2008. Nota-se que a MSP (Maurício de Sousa Produções), não tinha nenhuma publicação nesse formato, logo, percebendo o mercado específico onde adolescentes consumiam os quadrinhos japoneses, a MSP se articulou e construiu narrativas em que seus personagens tornaram-se jovens, para se inserir em um tipo diferente de nicho de mercado. Observa-se que tal articulação dialogou diretamente com a indústria cultural, pois, a disputa mercadológica fez com que construíssem publicações específicas para tal público. A construção de tal narrativa representa um discurso, parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala (BAKHTIN, 2014).

Há um incômodo estranhamento na leitura do primeiro número de “Turma da Mônica Jovem”, que já é vendido em lojas de quadrinhos paulistanas (Panini, 132 páginas). Demora um pouco para assimilar as duas principais mudanças da obra. A primeira e mais evidente é aceitar que os personagens cresceram e estão na adolescência. A segunda é constatar que o novo projeto dos Estúdios Maurício de Sousa faz uma radical mudança de gênero. Sai o quadrinho infantil, entra o Mangá. (RAMOS, 2012. p. 65).

Em a Turma da Mônica Jovem, além dos quatro protagonistas, o universo construído por Maurício de Sousa, também é reapresentado nesta nova caracterização, a volta de antigos personagens, a interação com a turma do fantasma Penadinho e do Elefante Jotalhão, então, dentro dessas novas relações dialógicas, por onde anda Jeremias?

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O Jovem Jeremias

As perspectivas apontadas nesta pesquisa nos mostram que as relações dialógicas estão vinculadas a processos de produção e articulam-se com práticas discursivas, especificamente, evidenciam-se tais questões nas narrativas gráficas escolhidas para observação, e de que maneira se posiciona a identidade dialógica do personagem Jeremias. A partir das novas produções da MSP, verificou-se que Jeremias também está presente nesse universo remodelado, e observaremos se as discussões acerca de sua inserção e manutenção de alguma maneira se alteraram.

Figura 62. O Jovem Jeremias. 2008.

A versão Jovem de Jeremias se diferencia das versões analisadas anteriormente, o personagem, que dialoga com o perfil do adolescente negro, tem roupas estilosas, uma possível referência ao street style21 advindo da cultura hip hop. Jeremias agora usa um boné azul, entretanto, nas histórias da Turma da Mônica clássica ainda permanece com o boné vermelho.

21 O street style é uma tendência de moda que surge nos centros urbanos, uma proposta de valorização do indivíduo, onde este através das roupas reproduz sua identidade, independente de classe social dos indivíduos, cultura ou etnia, e não das marcas ou semanas de moda.

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Apesar das alterações em torno do personagem, suas posições nas narrativas continuam esparsas, o personagem tem sua primeira aparição em Turma da Mônica Jovem nº 4 “Fortes Emoções...” (2008).

Figura 63. Primeira aparição de Jeremias na Turma da Mônica. 2008.

Jeremias faz sua primeira aparição com grande parte do elenco, quando Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali precisam de ajuda para derrotar um vilão. Apesar da cena demonstrar que todos apareceram no momento exato para derrotar o vilão, a aparição de Jeremias se resume apenas a esse momento. Na continuação da narrativa Jeremias não está mais presente, o personagem tornou-se invisível, ou seja, para o desenrolar da história, ele não era essencial. Ocorre então um processo de invisibilização, onde nesse momento, o personagem é deslocado, não precisa mais estar presente. Observa-se então, que apesar de sua nova composição estética, o personagem ainda ocupa uma posição subalterna, onde sua presença não é pontual na narrativa.

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O personagem aparece novamente na edição nº 11 “Ser ou não ser?” (2009), onde faz parte do time de futebol do colégio. Esta é a primeira narrativa em que o personagem apresenta diálogos.

Figura 64. Jeremias, Do Contra e Titi (2009).

Apesar de Jeremias fazer parte do time que está em um campeonato escolar, o personagem é invisibilizado, e não aparece no campo como um elemento importante do grupo, suas aparições são pontuais quando os personagens estão no vestiário, e isso é apresentado no discurso do treinador do time.

Figura 65. Jeremias e Nimbus (2009).

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Entre as histórias que foram observadas até então, nenhuma tinha apresentado tal discurso, essa opção “irônica” do roteirista revela que ele compreende bem o papel que Jeremias ocupa nas narrativas da Turma da Mônica, ou seja, não trata- se apenas de um processo invisibilidade aleatório, a narrativa é um discurso, e neste discurso produzido pela MSP o negro torna-se invisível, e em momentos específicos são construídas posições de visibilidade temporária, onde Jeremias faz parte de um contexto, e é presente na história, até que seja deslocado para uma posição subalterna novamente. Nota-se que Jeremias oscila entre o coadjuvante, o figurante, e o protagonista temporário, entretanto, percebe-se também, que em alguns momentos, o personagem é desconstruído dentro da narrativa, passando a não existir, ou a não ser mais importante. Na tentativa de um exercício analítico mais preciso, foram analisadas as revistas da turma da Mônica Jovem de agosto de 2008 a agosto de 2009, observando um recorte especifico de um ano de produção, entre as revistas em quadrinhos foi possível notar que Jeremias aparece apenas em duas edições (nº 4 e nº 11), e que em tais narrativas gráficas, sua presença não é pontual, ou seja, se o personagem não estivesse presente, aparentemente não faria diferença. A partir de tais perspectivas, observa-se que apesar deste universo jovem criado pela MSP, o personagem Jeremias é posicionado da mesma maneira que nas narrativas da Turma da Mônica clássica.

Clássicos Ilustrados Turma da Mônica (2008)

Em 2008 a Maurício de Sousa Produções construiu narrativas pautadas em clássicos da literatura, as revistas foram lançadas pela RBS Publicações. Os personagens da Turma da Mônica se dividiram em 14 histórias, e cada uma delas trazia clássicos como Cinderela, Branca de Neve e Rapunzel. Entre as histórias Jeremias aparece em “A Roupa nova do Rei22”. A narrativa é apresentada de maneira semelhante a história original, os personagens não apresentam falas, apenas compõem a cena, uma espécie de livro ilustrado.

22 A roupa nova do rei (em dinamarquês Kejserens nye Klæder) é um conto de fadas de autoria do dinamarquês Hans Christian Andersen, e foi inicialmente publicado em 1837.

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Figura 66. Jeremias é um súdito do Rei (2008). Jeremias é um súdito real do rei Cebolinha, o personagem aparece duas vezes na narrativa, e também está presente na capa da história. Apesar de aparições pontuais, Jeremias se mostra alegre em desempenhar suas funções. Observa-se que entre as 14 narrativas produzidas, na única em que Jeremias está presente, o personagem apresenta- se em posição de subalternidade.

MSP 50, MSP + 50, MSP 50 Novos Artistas e Ouro da Casa

Em 2009, a Maurício de Sousa Produções criou um novo projeto, em homenagem aos 50 anos de carreira de Maurício de Sousa, a proposta era uma releitura do universo criado pelo autor, ou seja, os desenhistas convidados teriam liberdade para reelaborar a Turma da Mônica. A obra se dividia entre cartuns, tiras e quadrinhos feitos por um rol de desenhistas e roteiristas nacionais. A ideia era mesclar diferentes autores, cada um com uma versão pessoal de dado grupo de personagens.

MSP 50 – Maurício de Sousa Por 50 artistas foi um projeto bem sucedido. Termômetro disso pôde ser percebido na premiação do Troféu HQMix do ano seguinte. A obra venceu três categorias: melhor edição especial nacional, projeto editorial e publicação mix (reunião de histórias de diferentes autores). (RAMOS, 2012. p. 70).

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Do ponto de vista mercadológico, a obra também tornou-se interessante, gerando mais duas continuações “MSP + 50 Maurício de Sousa por mais 50 artistas (2010)” e “MSP 50 Maurício de Sousa por 50 novos artistas”. Em 2012 a Maurício de Sousa resolveu fazer uma obra específica intitulada “Ouro da Casa”, que seguia o mesmo formato das três edições citadas, entretanto, a homenagem foi feita pelos profissionais que trabalham em seu estúdio. A inspiração veio da clássica “Mônica 30 anos”, em que vários artistas brasileiros e estrangeiros desenharam a “dona da turma”, e do álbum “Asterix e seus Amigos”, no qual 34 artistas do mundo todo fizeram histórias do baixinho gaulês para comemorar os 80 anos de Albert Uderzo que criou o personagem junto com o roteirista René Goscinny (GUSMAN, 2009). Ou seja, as obras reunidas totalizaram 200 novas representações do universo da Turma da Mônica, e dentro destas releituras, nos interessa saber a posição do personagem Jeremias. Nesse sentido, destacaremos as narrativas em que Jeremias está presente.

Cebolinha em: Ele está Chegando (MSP 50 – 2009)

A Narrativa criada por Luciano Félix, apresenta uma rotina aparentemente normal no bairro do Limoeiro, Cebolinha mais uma vez arquiteta um plano para pegar o coelhinho da Mônica, até que o personagem Louco diz para as crianças se esconderem, pois, “ele está chegando”. A história é a única de MSP 50 em que Jeremias aparece.

Figura 67. Jeremias na História “Ele está chegando” (2009). Apesar de uma releitura, o personagem apresenta-se como em algumas narrativas anteriores, sem falas, nos dando a impressão de que se não estivesse neste quadro específico não faria falta, pois a cena poderia ser construída com qualquer outro

138 personagem, já que apenas o personagem Louco apresenta um discurso. Jeremias ainda encara o leitor, o personagem foi construído com uma expressão de que não compreende nada do que está acontecendo. Depois desse quadro o personagem não aparece mais, e a narrativa termina com um tom de suspense, pois “ele” não revela sua aparência.

Sessão da Tarde – Parte 1: Recreio (MSP + 50 - 2010)

A narrativa de Mateus Santolouco apresenta as crianças no ambiente escolar, onde todos temem a Mônica, e Cebolinha tenta subornar as crianças para que tentem dar um susto na Mônica.

Figura 68. Jeremias na História “Recreio” (2010). Nesta história, Jeremias tem um momento de fala, o personagem nega qualquer possível favor a Cebolinha, mesmo em troca do “álbum completo do campeonato blasileilo”.

Sessão da Tarde – Parte 2: Primeiro Período (MSP + 50 - 2010)

A história apresenta-se como uma continuação indireta da narrativa anterior, pelas mãos de Rafael Albuquerque, Jeremias é retratado com uma das crianças que tem pavor da Mônica.

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Figura 69. Jeremias e Titi na história “Primeiro Período” (2010).

Mônica por Romahs (MSP + 50 – 2010)

Nesta narrativa, a história gira em torno de um trauma que a Mônica sofre após um tombo, e fica com medo. Jeremias aparece como parte de uma cena onde os meninos estão jogando bola.

Figura 70. Franjinha, Cebolinha, Cascão e Jeremias. (2010).

A lenda de Jeremiwazi (MSP + 50 – 2010)

Na edição publicada em 2010, segundo número da trilogia, Jeremias ganha uma história onde se torna o protagonista, um herói que deseja salvar seu povo. A narrativa

140 dialoga com a identidade negra, pois se trata de uma lenda africana transmitida por seu avô, e Jeremias dividi com seus amigos. A construção foi feita pelo artista André Diniz, que já trabalhou com outras narrativas tendo a cultura negra como elemento central. Em 2010 Diniz lançou “O quilombo Orum Aiê”, e em 2011 a história “Morro da Favela”.

Figura 71. Jeremias por André Diniz (2010). No início da história os garotos estão discutindo sobre qual o melhor herói, Jeremias aparece e diz: “Humpf... Que heróis mais manjados! Aposto que vocês nunca ouviram falar do meu herói preferido”. Jeremias em seu discurso questiona o padrão tradicional de herói, e mostra aos colegas um herói que dialoga com sua tradição identitária. Jeremiwazi é um ancestral de Jeremias, uma lenda passada por gerações em contação de histórias. Nesta narrativa específica Jeremias com orgulho conta sobre uma representação que apresenta significações especificas com sua família e consequentemente sua identidade étnica. Jeremiwazi representa a narrativa mítica e passa pela jornada do herói, ou seja, alguém que arrisca ou dá a própria vida em favor de algo maior que ele mesmo (SCHAPER, 2011). A chamada trajetória do herói é pautada em uma estrutura, onde existe a partida, a iniciação e o retorno (CAMPBELL apud SCHAPER, 2011). O personagem do conto lembra o que é compreendido nas histórias em quadrinhos como o Messias, um nobre herói que se sacrifica em nome do altruísmo para salvar os outros (KNOWLES, 2008).

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Então, observa-se que Jeremwazi inicialmente “morre”, por ter engolido um pedaço de osso de boi que ficou entalado em sua garganta, o que poderia ser compreendido como uma espécie de partida, já que posteriormente o personagem retorna de maneira épica da morte.

Figura 72. A “morte” de Jeremwazi (2010).

Enquanto o herói está “morto”, Kammapa, um monstro gigante se aproxima da aldeia e engole todos os que vivam nela, exceto Jeremiwazi. O processo de iniciação, é percebido quando o personagem retorna da morte, pega uma lança e vai atrás do monstro, um longo caminho até cumprir seu objetivo.

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Figura 73. A Iniciação de Jeremwazi (2010).

Jeremiwazi encontra o monstro, é engolido por ele, e percebe que toda sua aldeia ainda está no estômago do monstro. O personagem ajuda todos a escaparem, e derrota o monstro concretizando o que poderíamos compreender como o retorno, pois, a partir desse momento Jeremiwazi se transformou em herói, e é recompensado pela linda jovem da aldeia.

Figura 74. O Herói Jeremwazi (2010).

Uma particularidade desta narrativa é que o personagem Cebolinha apresenta um discurso em que questiona a posição do herói Jeremiwazi. Ao ouvir a história de

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Jeremias, Cebolinha compara a história com as narrativas que conhecia sobre os heróis, e logo, aparentemente para ele, a história de Jeremias não se apresenta como possível.

Cebolinha se posiciona em quatro momentos:

1. “Mas que laio de helói é esse que mole no plimeilo quadlinho?”

2. O Helói moleu e todo mundo foi engolido. Não achei muito helóica essa histólia...

3. Plonto, quando tava ficando bom, o “Helói” moleu de novo...

4. Achei meio estlanha essa histólia... Difícil de acleditar num monstro devorador que come tudo o que vê”.

Figura 75. Cebolinha questiona a História de Jeremias (2010).

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“Fica quieto e escuta”, foram as palavras de Jeremias, depois de algumas interrupções de Cebolinha. Os questionamentos de Cebolinha dialogam com uma visão unilateral de heróis, onde qualquer narrativa com elementos distintos parece menos razoável. Ou seja, a visão de Cebolinha, um símbolo da Turma da Mônica, mas conhecido que Jeremias, reflete o pensamento mercantilista da indústria cultural, estruturado em construções ideológicas que são mantidas, apresentando um herói clichê, e elaborado principalmente nas formas do heroísmo das HQ’s norte americanas. No início da história Cebolinha diz: “Meu helói plefelido é o supelomão”, o que poderíamos compreender como referência ao Super-homem23. Logo, Jeremiwazi não se parece com o herói que faz parte de seu imaginário, assim, não deve ser compreendido como real. André Diniz ao construir essa história, e escolher entre o universo da Turma da Mônica o personagem Jeremias rompe com os estereótipos massificados em torno de personagens negros, e constrói uma narrativa que figura a representação da identidade negra, ou seja, o autor mostra que a identidade dialógica do personagem é fluida, e não deve ser vista como estática, imóvel, podendo assim ser essencial em uma narrativa. Observa-se que, até a análise dessa história específica, Jeremias só teve uma outra narrativa longa dentro do universo de Maurício de Sousa, ou seja, “Jeremim, o Príncipe que veio da África” foi publicada em 1987, e entre a década de 1980 e 2010, não houve outro momento em que uma história e toda sua construção estivesse baseada especificamente em Jeremias. Portanto, nota-se que é possível deslocar a identidade dialógica do personagem, para que esse apareça em diferentes cenários e posições, entretanto, esse deslocamento não costuma ser representado de forma positiva, visto que, entre 1960 e 2010, Jeremias é especificamente protagonista de apenas duas narrativas.

Cebolinha em: Nó (MSP 50 Novos artistas – 2011)

Em “Nó”, João Montanaro constrói uma narrativa pautada em Cebolinha, e nas explicações psicológicas relacionadas ao fato de o personagem sempre querer roubar

23 Superman ou Super-homem é um super-herói fictício de histórias em quadrinhos, criado por Joe Shuster e Jerry Siegel na década de 1930, sua primeira aparição foi na revista americana Action Comics, que fazia parte da editora DC Comics.

145 o coelhinho e dar nó em suas orelhas. Jeremias aparece jogando bola com os amigos, sem falas. O núcleo futebolístico das histórias da turma frequentemente reflete a presença de Jeremias.

Figura 76. Jeremias jogando bolas com os amigos (2011). A Turma em: Dia de Pagamento no Bairro do Limoeiro (MSP 50 Novos artistas – 2011) A história construída por Samuel Fonseca, evidencia o protagonismo do personagem Zé Luís. Jeremias aparece em quatro momentos na narrativa, entretanto sua fala se resume a: “Sei lá... Bem no melhor da festa...”. O personagem questiona o fato de Cebolinha deixar a comemoração e ir embora.

Figura 77. Jeremias e os amigos (2011). 146

O Dono da Lua (MSP 50 Novos artistas – 2011)

Os artistas Hector Lima e George Schall produziram uma história em que se o Cebolinha se tornar o dono da rua pode causar alguma confusão, já que normalmente o personagem não ocupa este cargo. Nesta narrativa Jeremias e Humberto estão jogando bola com Bernardão, um personagem que era utilizado no início da trajetória de Maurício de Sousa. Neste momento aparece o personagem Louco. Jeremias alerta Humberto: “Hã, Humberto vamos nessa, minha mãe tá chamando. Tchau Bernardão!”. E continua: “Sabia que jogar com ele dava azar”. Observa-se que para Jeremias a aparição de Louco não é algo positivo. Nessa história, Jeremias apresenta seu ponto de vista sobre alguma questão específica, sugerindo ao amigo que eles saiam da rua e voltem para casa. Outra questão pertinente, é o fato de o personagem evocar “sua mãe”, outra prática pouco usual nas narrativas em que Jeremias está presente.

Figura 78. Jeremias, Humberto e Bernardão (2011).

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A Turma da Mônica por Will Leitte (MSP 50 Novos artistas – 2011)

O Ilustrador Will Leite apresenta uma espécie de painel, retratando a Turma da Mônica com seus traços, entre os personagens está Jeremias.

Figura 79. Turma da Mônica por Will Leite (2011).

O Primeiro Dia (MSP 50 Novos artistas – 2011)

O primeiro dia é uma história construída por Estevão Ribeiro e Leo Finocchi, a narrativa se baseia no primeiro dia de aula de Cebolinha. A aparição de Jeremias se resume a sua caminhada em direção a porta da Escola Municipal Maurício de Sousa.

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Figura 80. Jeremias indo a escola (2011).

Uma Tarde de Outono (MSP 50 Novos artistas – 2011)

A narrativa apresenta um questionamento sobre a industrialização, a chegada de prédios e a possível perda do Bairro do Limoeiro, já que a cidade está crescendo.

Figura 81. Jeremias e Franjinha (2011).

Franjinha e Jeremias enfatizam que são mais velhos, e que tem mais responsabilidade “escola de manhã e curso técnico a tarde”. Jeremias está presente em quatro momentos, e suas falas são: “Pode crer Franja”, em concordância com o amigo; “Falando nisso, vamos nessa senão perdemos o ônibus...”, indicando suas

149 responsabilidades; e “Falou moçada!”, evidenciando a diferença de idade entre ele e as crianças (Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali). Apesar de sua aparição se remeter a pequenos momentos, o personagem apresenta um perfil responsável, outra prática incomum nas narrativas, pois, mesmo na análise específica da Turma da Mônica Jovem (2008), em nenhum momento o personagem evocou suas responsabilidades, ou o fato de ser mais velho que as crianças.

Dia em que voltei a ser Criança (Ouro da Casa – 2012)

O artista João Marcos apresenta uma história aparentemente baseada em sua experiência ao fazer parte da Maurício de Sousa Produções. No final da História, o desenhista apresenta os personagens da Turma da Mônica. Nesta ilustração, apesar de aparecer apenas uma vez, Jeremias faz parte do núcleo central.

Figura 82. Jeremias e a Turma da Mônica (2012).

O Homem sem pressa (Ouro da Casa – 2012)

A narrativa proposta por Bruno Honda Leite, apresenta uma estrutura diferente de histórias, como uma espécie de recortes misturando ficção com vida real. A história apresenta a perspectiva de Horácio sobre o mundo. Jeremias tem apenas uma aparição.

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Figura 83. Horácio observando Jeremias (2012).

A Turma da Mônica por 200 artistas

A análise objetiva sobre o material produzido pela Maurício de Sousa produções onde outros artistas apresentaram sua maneira particular dos personagens de Maurício de Sousa apresentou-se como um exercício interessante, pois, foi possível perceber que os personagens não possuem uma identidade fixa, suas posições podem oscilar, dependendo contexto sócio-cultural, ou seja, a identidade dialógica dos personagens pode ser deslocada, logo, nesta análise, pontuou-se os deslocamentos do personagem Jeremias, e as maneiras em que este produzia algum tipo de discurso, ou apenas funcionava como parte do cenário. A partir desta análise foi possível compor o seguinte quadro:

Personagem Jeremias (2009 – 2012)

MSP 50 (2009) MSP + 50 (2010) MSP 50 Novos Ouro da Casa Artistas (2011) (2012)

1 aparição 4 aparições 6 aparições 2 aparições

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Em 200 representações da Turma da Mônica, Jeremias apareceu 13 vezes, e em apenas uma delas foi o protagonista. Uma questão curiosa a se destacar é que em “Ouro da Casa”, no qual os artistas que trabalham no estúdio apresentaram as releituras da Turma da Mônica, tendo em suas mãos a liberdade de criação, o personagem manteve-se inexistente na maioria das narrativas, entretanto, na “MSP 50 novos artistas” Jeremias apareceu 6 vezes. Nota-se também que, no primeiro projeto (MSP 50 – 2009) o personagem aparece apenas uma vez. Toda essa análise reflete um imaginário social, onde o negro é invisibilizado, ou seja, as histórias em quadrinhos apresentam relações dialógicas com a sociedade. E dentro dessa produção cultural, o protagonismo do personagem negro tornou-se uma exceção, algo quase irreal como sinalizou o personagem Cebolinha na narrativa construída por André Diniz. Devido a estes apontamentos, a observação sobre a representação do negro nas histórias em quadrinhos apresenta-se como um exercício essencial, pois, a partir dos resultados obtidos, será possível compreender que a construção do personagem negro nas narrativas gráficas faz parte de um processo mercadológico, onde apesar dos deslocamentos do personagem, suas posições são construídas de maneira subalterna, ou se refletem ausências, onde o negro não tem necessidade de fazer parte da narrativa.

Histórias em Quadrões (2010)

Na década de 2000 os personagens de Maurício de Sousa saltaram das histórias em quadrinhos e foram parar nas galerias de Museus. O projeto “Histórias em Quadrões” fez parte de uma exposição que ficou em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo, de outubro a dezembro de 2001. Os quadros apresentavam releituras das principais obras da pintura brasileira e internacional.

Tudo surgiu no início da década de 80, quando visitei o Museu do Louvre. Lá, deparei-me com crianças sentadas no chão, fazendo desenhos, que reproduziam obras de artistas famosos. (Entrevista de Maurício de Sousa ao site acessa.com, 2011)

A exposição composta de 47 obras, tinha como destaque a Mônica Lisa, que relembra a imortal obra Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Monet, Botticelli, Van Gogh,

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Degas, Michelangelo, Toulouse-Lautrec, Renoir, Portinari, Almeida Júnior e Anita Malfatti. A exposição também esteve presente no museu de Belas Artes no Rio de Janeiro, de março a maio de 2002; no Conjunto Cultural da Caixa, em Salvador, de julho a Setembro de 2002; em Curitiba, no Museu Metropolitano de Arte, de Setembro a novembro de 2002 e em Brasília, no Conjunto Cultural da Caixa, de agosto a Setembro de 2003.

. Figura 84. Jeremias em Independência da Turma (2010).

As pinturas foram analisadas de maneira mais atenta devido a um catálogo que saiu em 2010, pela editora globo. O personagem Jeremias aparece em duas representações, a primeira (figura 81), chamada “A Independência da Turma” é uma releitura da obra “Independência ou Morte” pintada por Pedro Américo entre 1886 e 1888. O protagonismo do personagem Jeremias aparece na segunda pintura, “O Primo Mestiço de Jeremias”, é uma releitura da obra “Primo Mestiço” de Cândido Portinari, pintada em 1934.

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Figura 85. Primo Mestiço de Jeremias (2010).

Em suma, “Histórias em Quadrões”, apresenta-se como mais uma plataforma utilizada pela Maurício de Sousa Produções para popularizar seus personagens. Entre as 47 obras, Jeremias é representado em dois momentos, e em um destes o personagem é protagonista de seu próprio quadro. Nota-se que dentro da compreensão das relações dialógicas e dos deslocamentos da identidade dialógica do personagem, Jeremias torna- se mestiço, ou seja, nem sua caracterização como negro é fixa, logo percebe-se que sua posição continua a ser oscilante, e funciona de acordo com as articulações da Maurício de Sousa Produções.

Lendas Brasileiras (2010)

A série “Lendas Brasileiras”, produzida em 2010 se assemelha ao formato apresentado em Clássicos Ilustrados Turma da Mônica (2008), entretanto, as narrativas pautam-se nos mitos brasileiros. Os livros foram lançados pela editora Girassol, e entre as histórias, Jeremias torna-se protagonista em “O Negrinho do Pastoreio24”. A narrativa também funciona como livro ilustrado, os personagens figuram as páginas ao lado de textos que contam a história.

24 O Negrinho do Pastoreio é uma lenda afro-cristã muito contada no final do século XIX pelos brasileiros que defendiam o fim da escravidão, sendo muito popular na região Sul do Brasil.

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Figura 86. Jeremias é o Negrinho do Pastoreio (2010).

Vale ressaltar que “Negrinho do Pastoreio” é a terceira narrativa pautada no personagem Jeremias, antes o personagem figurou como protagonista em “Jeremim, o príncipe que veio da África” (1987) e “A lenda de Jeremiwazi” (2010). Portanto, percebe- se que desde sua construção em 1960 até 2010, Jeremias tornou-se essencial em três narrativas, em algumas outras como “Os Vingadoidos” (2013) e “Gamebusters” (2016), o personagem faz parte do núcleo central da narrativa, entretanto, não protagoniza a história sozinho, logo, esses três momentos devem ser compreendidos como importantes para a trajetória do personagem, pois, apresentam relações dialógicas que rompem com as construções rotineiras dos desenhistas e roteiristas. Entretanto, cabe mencionar também, que tais narrativas só poderiam ser protagonizadas por um personagem negro, ou seja, aparentemente, a identidade dialógica de Jeremias é reposicionada para o protagonismo, apenas quando há uma necessidade específica de utilizar um negro na história.

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Figura 87. Jeremias em o Negrinho do Pastoreio (2010).

Mônica Toy (2013)

Em 2013, a Maurício de Sousa Produções lançou a web-série “Mônica Toy”, os personagens da Turma da Mônica são apresentados em animações de 30 segundos, sempre em situação cômica. As histórias são mudas, e apresentam alguns sons ambientes, além da internet, a série também é veiculada nos canais TBS e Cartoon Network. A série teve boa aceitação de pública e já está em sua quarta temporada. As narrativas são pautadas apenas nos personagens Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, entretanto, já apareceram em alguns episódios Chico Bento (Dupla maluca, sô! – 4ª Temporada, Episódio 05) e o próprio Maurício de Sousa (Mauricio 80, Especial de aniversário 3ª Temporada, Episódio 06). Monica Toy apresenta relações dialógicas com a cultura pop, apresentando em seus episódios referências a filmes, eventos, ou seja, um diálogo com as relações sociais, como é possível notar nos episódios Presentes curiosos (Especial de Natal 2015) e Toylimpíadas (4ª Temporada, Episódio 17).

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Observou-se então, que as narrativas são pontuais, e são utilizados personagens específicos, ou seja, Jeremias não faz parte desta plataforma, levando em consideração o sucesso da série, existe a possiblidade de outros personagens aparecerem futuramente, portanto, não é possível dizer que Jeremias nunca participará desta série.

Edições Especiais

As narrativas produzidas por Maurício de Sousa Produções costumam ser seriadas, isto porque a fabricação em edições faz com que o público acompanhe as revistas, ou seja, cria-se um mercado específico. Entretanto, são lançadas também, narrativas particulares, edições especiais que apresentam relações dialógicas entre os personagens da Turma da Mônica e outros cenários culturais. Dentro desta perspectiva, optou-se por observar algumas edições lançadas entre a década de 2000 - 2016, verificando as posições da identidade dialógica de Jeremias, suas representações e ausências. Ou seja, uma investigação sobre os espaços que o personagem é inserido, sua funcionalidade, articulando tais narrativas com a temporalidade, num quadro de interações distintas, dando atenção a construção e o deslocamento do personagem dependerá das transformações subjetivas e objetivas que ocorrem na Indústria Cultural, frente ao desenrolar dos eventos sociais. Ou seja, propor um tom reflexivo, direcionando os estudos das histórias em quadrinhos a uma compreensão de discursos que se articulam na nas narrativas. Logo, para tal, não se deve usar categorias monolíticas e essencialistas, pois, a identidade flutua, se desloca, então, o caráter não fixo da identidade torna instáveis as fronteiras.

O Mau é Negro

Em 2004, Maurício de Sousa lançou juntamente com Paulo Coelho um livro ilustrado chamado “O Gênio e as Rosas”, onde alguns contos que circulam o mundo são representados pelos personagens da Turma da Mônica. Entre as narrativas, uma que nos chama atenção, é intitulada “Conversando com o Mal”, onde o Mal fica rondando o guerreiro, esperando um momento em que este se enfraqueça para que seja derrotado, entretanto, a astúcia do guerreiro faz com que Mal se canse e vá embora. Nesta história,

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Cascão é o guerreiro da luz, e o personagem que representa o mal foi construído especificamente para este conto.

Figura 88. Conversando com o Mal, 2ª edição (2010). O mal, um dos dois personagens negros do livro ilustrado (o outro é Jeremias), reflete as relações dialógicas que influenciam os autores a produzirem tal narrativa. Por que o Mal é negro? O conto apresenta de maneira negativa o personagem para as crianças, não dialogando com todas as crianças que leem a Turma da Mônica, uma opção equivocada, já que se trata de um conto, o personagem poderia ser construído com qualquer cor, entretanto, optou-se pelo tom marrom, representando de maneira negativa a identidade negra na história. Em contrapartida, Jeremias aparece em 2 dos 62 contos, em “Olhando os Outros”, Jeremias e toda a turma carregam sacolas, na frente estão as qualidades e atrás os defeitos.

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Figura 89. Jeremias em “Olhando os outros”, 1ª edição (2004).

Levando em consideração o leque de personagens de Maurício de Sousa, um fato curioso é que Jeremias é o 9º da fila, e que nesta narrativa, o personagem é apresentado de maneira igualitária aos outros que também fazem parte da história, ou seja, Jeremias participa da jornada da vida como todos os outros personagens. Em “Por que deixar o homem para o sexto dia?”, um grupo de sábios se questiona sobre a criação do homem, nesta narrativa Jeremias é um dos sábios, posição que o personagem ainda não tinha ocupado nas histórias em que costuma aparece.

Figura 90. Jeremias em “Por que deixar o homem para o sexto dia?”, 2ª edição (2010). 159

A análise sobre “O Gênio e as Rosas”, evidencia as relações dialógicas e o imaginário social que funciona na construção dos personagens e narrativas. Observa-se que nessa publicação específica Jeremias foi posicionado de maneira similar aos outros personagens, e não foi apresentado de maneira subalternizada, postura considerada insólita, já que o personagem, mesmo com sua identidade dialógica deslocada, funciona em cenários característicos, com aparições e posições que se repetem.

Maurício de Sousa é homenageado, e Jeremias não é convidado

Em setembro de 2007, Maurício de Sousa lançou pela Panini Comics “Maurício de Sousa - Biografia em Quadrinhos” A narrativa é inspirada em premiações de cinema, onde os personagens muito bem vestidos, vão ao Cineteatro Limoeirão, e prestam homenagens a Maurício de Sousa, contando sua trajetória desde a infância até a criação da Turma da Mônica. É interessante pontuar que os personagens organizam a homenagem, entretanto, em tal narrativa Jeremias não está presente.

Figura 91. Maurício de Sousa – Biografia em Quadrinhos. Panini Comics, 2007.

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Observa-se que nesta história, evidencia-se a presença de personagens negros, construídos especificamente para esta narrativa, entretanto, o único personagem negro que está na história e já faz parte do universo de Maurício de Sousa é Ronaldinho Gaúcho.

Figura 92. Ronaldinho Gaúcho em Maurício de Sousa – Biografia em Quadrinhos. 2007.

A história apresenta certas “posições clichês” que personagens negros costumam ocupar nas narrativas midiáticas, como por exemplo o papel de segurança, e o sambista.

Figura 93. O Segurança

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Figura 94. O Sambista

O Destaque na narrativa, está na representação de Mário Cartaxo, o jornalista que aconselhou Maurício de Sousa a continuar no jornal e melhorar seus traços, o personagem deve ser entendido como uma representação positiva, pois é apresentado como alguém influente na narrativa.

Figura 95. Mário Cartaxo e Maurício de Sousa Em suma, o grande problema da narrativa, é a ausência do personagem Jeremias, pois, nos dá a impressão de o fato de o personagem ser invisibilizado na maioria das narrativas fez com que se tornasse invisível por completo. Por que Jeremias não está na

162 narrativa? Essa é uma questão difícil de responder com exatidão, entretanto, de acordo com as análises propostas até então, nos parece que entre os deslocamentos que o personagem sofreu, este foi deslocado para fora da narrativa.

MSP e as Grafic Novels

A série MSP 50 fez grande sucesso, e a partir da compreensão de mercado, e das relações dialógicas que tornavam a Turma da Mônica um sucesso não apenas para crianças, ou seja, a partir de novas releituras, Maurício de Sousa reconquistou antigos fãs, e então, lançou o projeto Grafic MSP, que consiste em histórias dos personagens do estúdio desenhadas e roteirizadas por artistas brasileiros com certo prestígio na indústria de quadrinhos. O nome vem do termo Grafic Novel25. A primeira edição foi lançada em 2012, Astronauta – Magnetar, por Danilo Beyruth e Cris Peter. Até o presente momento foram lançadas 12 histórias neste formato. Em Turma da Mônica Laços (2013), Lu Cafaggi e Vitor Cafaggi, apresentam pela primeira vez a turma em uma Grafic Novel, já que a primeira edição explorava o universo das narrativas sobre o Astronauta. Os autores constroem uma história sobre o desaparecimento de Floquinho, o cachorro de Cebolinha. A narrativa pontua a importância da amizade, e mostra o início dos “laços” entre a turminha, roteirizando como se conheceram. Jeremias apresenta-se como um personagem que compõe o cenário, este não te fala, mas alguns outros também são posicionados da mesma forma.

25 Grafic Novel, ou romance gráfico é uma espécie de livro, normalmente contando uma longa história através de arte sequencial (banda desenhada ou quadrinhos), e é frequentemente usado para definir as distinções subjetivas entre um livro e outros tipos de histórias em quadrinhos. O termo foi popularizado por Will Eisner.

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Figura 96. Jeremias em Turma da Mônica Laços (2013).

Uma particularidade interessante no trabalho de Lu Cafaggi e Vitor Cafaggi, é que pela primeira vez desde a construção inicial do personagem Jeremias, é apresentado um esboço de sua composição estética, quando os autores ainda estavam pensando na maneira que o personagem seria representado.

Figura 97. Esboço do personagem Jeremias por Lu Cafaggi e Vitor Cafaggi (2013).

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Maurício de Sousa faz 80 anos

Em 2015, Maurício de Sousa completou 80 anos, e a Panini Comics publicou uma história em quadrinhos chamada Maurício 80. A narrativa apresenta a trajetória de Maurício de Sousa desde o nascimento até os dias de hoje, em uma mistura de ficção e realidade. Maurício apresentado como personagem na história, revive todo seu passado, relembrando os momentos mais importantes de sua vida. A história é construída com uma série de relações dialógicas, entretanto, algumas referências só são compreendidas por quem já conhece as histórias da Turma da Mônica, como a primeira aparição da Mônica, do Bidu, e alguns outros personagens que nem são mais utilizados no universo produzido por Maurício de Sousa. O personagem Jeremias aparece de forma tímida, relembrando sua representação da década de 1960, em uma referência a Mogi das Cruzes em 1941, época em que Maurício tinha 6 anos, ou seja, pela narrativa, supõe-se que quando Maurício de Sousa era pequeno, alguns meninos viviam brincando pelo bairro, e um deles era negro.

Figura 98. Jeremias, Titi e Humberto em Maurício 80 (2015) Uma parte interessante da narrativa é que em toda sua vida Maurício de Sousa foi visitado por seis gênios da inspiração, são eles: Fantasia, Aventura, Terror, Ficção, Juventude e Inspiração Filosófica. Todos os personagens foram construídos especificamente para esta narrativa, e o personagem Aventura é um homem negro.

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Figura 99. O Personagem Aventura e Maurício de Sousa (2015)

O personagem Aventura surge quando Maurício de Sousa tem 14 anos, é o segundo gênio da inspiração, e mostra a Maurício como é interessante viver uma aventura, e a coragem necessária para conhecer mundos diferentes. O Gênio da aventura é um personagem importante dentro da representação do negro no universo da Turma da Mônica, pois, a narrativa mostra que a partir dele, Maurício construiu universos além de Mogi das Cruzes, ou seja, sua aparição inicial como personagem negro, funciona como uma representação positiva, a posição que este personagem especifico ocupa, apresenta-se mais pontual do que as aparições recentes de Jeremias.

Jeremias e a Discriminação Étnica

O que seria do mundo sem as cores, olha, com certeza teríamos um mundo pálido, sem graça, sem brilho, sem alegria, não acham? Olha, as cores estão presentes em todos os lugares... As cores estão presentes também nas pessoas, tem gente que é branquinha como fantasma, e não estou falando do Penadinho, tem gente moreninha cor de canela, amarelinha, vermelhinha, e são essas cores que deixam as pessoas mais bonitas. (Sousa, 2009).

Em 2009 a Maurício de Sousa Produções publicou na internet um vídeo no intuito de discutir questões relacionadas a discriminação étnica. No vídeo, inicialmente Maurício de Sousa fala sobre a importância das cores, propondo um diálogo sobre a diversidade, e então, o autor-desenhista conversa com o personagem Jeremias, pois este, tinha acabado de sofrer preconceito.

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Figura 100. Jeremias em Discriminação Étnica (2009).

Após o autor falar sobre a importância das cores, Jeremias chega e os dois começam a conversar:

Jeremias: É verdade, mas não é bem assim Maurício Maurício: Oi Jeremias, ué que carinha triste é essa? Jeremias: Ah! Deixa pra lá Maurício: Não! Não! Não! Agora eu quero saber Jeremias Jeremias: Eu fui convidado pra festa da Carminha Frufru, sabe? Maurício: Ah! Toda turminha foi convidada, Mônica falou que a Carminha tava toda proza, mas você não foi na festa? Jeremias: Eu fui, mas quando eu cheguei lá, o parente da Carminha não me deixou entrar Maurício: Não deixou você entrar? Jeremias: Ele disse que a festa não era pra gente da minha cor, e depois ficou contando um montão de piadas Maurício: Oh meu Deus! Preconceito. É tão feio esse negócio de preconceito Jeremias. É tão errado. Jeremias: Preconceito? É, eu sempre ouço falar, mas não sei direito o que é Maurício

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Maurício: Preconceito é quando alguém faz um julgamento antecipado de outra pessoa Jeremias, é quando alguém não gosta de você por causa da sua religião, da sua idade, da sua cor. Ah! Mas peraí, eu vou mostrar uma história que vai explicar muito bem pra você e pra turminha toda.

No primeiro momento da conversa é possível notar que Jeremias sofreu uma atitude preconceituosa, talvez a primeira explicita, apesar de tal situação não ser encenada, o personagem não entende o motivo da rejeição. Deve-se levar em consideração que esta é a primeira narrativa que pontua tal questão de maneira mais clara e evidente, em que o personagem diz o que sofreu e como passou pela situação, ou seja, o personagem apresentou o discurso. Observa-se também que Jeremias não sabe o que é preconceito, então Maurício explica para o personagem. Nota-se que como Jeremias ainda é uma criança (mesmo sendo mais velho que Mônica, Cebolinha e os outros), torna- se aceitável o fato de que nunca tenha se deparado com a questão do preconceito. E observa-se também como o personagem é afetado pela negação de sua entrada na festa. Maurício apresenta a animação “Os Azuis” (2009), em que em um dia qualquer, Mônica acorda e sai para brincar, quando nota que todos os seus amigos inexplicavelmente estão azuis. Inicialmente achando que é um plano infalível do Cebolinha, a garota se surpreende ao notar que não só eles, mas todas as pessoas do mundo estão azuis - menos ela. E o que parecia brincadeira vira um pesadelo quando Mônica passa a ser hostilizada e perseguida apenas por sua cor. A narrativa se resolve quando aparentemente Mônica foi teletransportada para uma outra dimensão, e então, volta a sua realidade e encontra todos de sua cor habitual. Mônica feliz por tudo voltar ao normal diz: “Gosto muito de vocês, de qualquer jeito, de qualquer cor”.

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Figura 101. Os Azuis (2009).

A história que tem a pretensão de discutir um tema sério, apresenta uma resolução sem consistência, pois, a narrativa indica que apenas em outra dimensão haveria tal preconceito, logo, a sociedade “real” não tem esse tipo de problema. Na verdade, ao apontar a animação como interessante para se perceber este problema, Maurício de Sousa em seu discurso, aponta que no universo criado por ele não há preconceito, apesar do fato de Jeremias aparecer na animação com lábios característicos de representações dos anos 1970 -1980.

Figura 102. Jeremias em “Os Azuis” (2009).

Depois da apresentação do vídeo Jeremias e Maurício voltam a conversar:

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Jeremias: Puxa, mas é chato a gente se sentir assim Maurício: É claro né, as pessoas preconceituosas magoam muito as outras pessoas Jeremias: Nem me fale, mas será que dá para mudar isso Maurício? Maurício: Bem, na verdade as pessoas deveriam valorizar seus traços físicos, sua cor, conhecer sua origem, sua cultura, tudo isso é muito importante, são essas diferenças que fazem a riqueza e a beleza de um povo. Jeremias: Assim como a turminha né? A Mônica é dentucinha, a Magali é magrinha e comilona, o Cascão é sujinho, o Cebolinha é quase carequinha e fala errado, e eu sou negro. Maurício: É isso mesmo Jeremias, na minha turminha por exemplo tem o Hiro, o japonesinho, tem o indiozinho Papa-capim, tem o Nimbus, o Do Contra. E tem até o pessoal da roça lá, do Chico Bento. Tá vendo como é bom ser diferente? E são essas diferenças que nos tornam únicos. Já pensou se fossemos todos iguais?

No fim da história Mônica e seus amigos chegam e convidam Jeremias a voltar a festa, pois a Carminha Frufru estava perguntando por ele, e o tal primo preconceituoso estava impedindo a entrada de todos, até quase apanhar da Mônica por chamá-la de dentuça. O discurso de Jeremias ao “aprender” sobre as diferenças é um tanto quanto curioso, pois, ao perceber a diferença de cada um dos personagens cita características que são compreendidas como negativas pelas crianças como por exemplo, ser sujo, dentuço, e falar errado, ou seja, ser negro tem a mesma dimensão das outras características citadas? Observa-se que o personagem citou referências próximas, e que sua interpretação sobre o mundo é de uma criança. Entretanto, não há motivo para problematizar tal questão, deve-se levar em consideração também, que nesta narrativa específica foi a primeira vez que o personagem usou a expressão: “Eu sou negro”. Observa-se que mesmo sendo criança, Jeremias entende que é negro, mas não compreendia o que era preconceito. Ou seja, as narrativas construídas pela Maurício de Sousa Produções apresentam um mundo diverso, com personagens que apresentam características pessoais, uma proposta de que cada personagem tem uma identidade, entretanto, compreendendo que a identidade é fluida, tal perspectiva apresenta-se como um discurso incoerente, pois, foi

170 constatado que qualquer personagem pode “tornar-se negro”, entretanto, Jeremias costuma ser posicionado em narrativas em que apenas um negro poderia participar.

A Identidade (negra) de um Personagem

A construção da trajetória histórica de um personagem é um exercício que tem por objetivo os perceber os aspectos dialógicos que fazem com que o personagem continue a existir, e as diferentes posições que este ocupou desde que foi criado. A partir de tal panorama, percebe-se a importância de refletir sobre as questões étnico-raciais evidenciadas (ou não) nas histórias em quadrinhos, tendo como referência o campo social que conduziu, no Brasil, a maneira que se localiza o negro dentro do campo de representação, pois, a composição estética do personagem das HQ’s dialoga com outras mídias. Verifica-se então, a partir de tal pesquisa, uma linearidade em torno dos espaços que o negro pode ocupar no discurso midiático, os modos de produção e manutenção de certos estereótipos, no caso de Jeremias, o súdito, o escravo, o invisível, aquele que não tem o que dizer, ou será que não pode dizer? Tal, postura epistemológica propõe reflexões específicas sobre a instauração de outras narrativas capazes de abordar dimensões diferentes em torno da temática racial. Ou seja, não deve existir apenas uma forma de emoldurar o outro. Logo, tal trabalho questiona posições, interpreta certos usos da identidade dialógica de Jeremias como equivocadas, pois, os dados mostram as raras exceções em que o negro é protagonista, dono de sua história. Entre as relações dialógicas, nota-se nitidamente o papel da Indústria Cultural, como responsável pela manipulação do personagem negro nos diferentes domínios representacionais. Portanto, propõe-se a partir da leitura de diferentes histórias da Turma da Mônica, uma análise crítica sobre os usos (e desusos) da identidade dialógica que consequentemente servirá de pano de fundo para a discussão de questões atuais, como por exemplo, a construção social da identidade negra nos meios de comunicação, colocando em xeque as estruturas temporais e evitando que a identidade (narrativa e negra) venha a ser interpretada em termos rígidos, naturalizados e permanentes. Portanto, compreender o Jeremias como objeto de pesquisa é propor uma análise sobre a maneira que o personagem negro é construído e articulado dentro das

171 histórias em quadrinhos, é refletir sobre minha própria condição, ou seja, quais referências dialogaram com minha compreensão do que é ser negro? Como leitor assíduo de histórias em quadrinhos, as memórias que se relacionam com a presença de Jeremias nas aventuras da Turma da Mônica são esparsas e as vezes incoerentes. Portanto, deve-se problematizar as coincidências na qual o negro é submetido na sociedade brasileira nos diferentes momentos e histórias em que o Jeremias está presente são produzidas e comercializadas. Denunciando os estigmas funcionais que operam na construção, inserção e manutenção do personagem, propondo novas leituras e formas de contextualização, evidenciando o status móvel do personagem, propondo assim, um estudo analítico e consequentemente plural, no sentido de evidenciar as utilizações do personagem (negro) Jeremias, as articulações e mecanismos gerados pela Indústria Cultural com objetivo de produção e comercialização direcionada a obtenção de lucros. Observa-se então uma série de protagonismos específicos, como é possível notar na figura26 abaixo, que propõe uma homenagem ao dia da consciência negra.

Figura 103. Personagem Jeremias representando o Dia da Consciência Negra, 2012. A imagem acima representa o poder cultural do personagem, como signo, que dialoga com questões sociais. Neste caso, verifica-se a articulação do personagem com a o Dia da Consciência Negra, ou seja, sua identidade negra foi evidenciada para que este fosse compreendido como símbolo de uma data. Essa articulação não ocorre de maneira ingênua, pois, o personagem da voz a lógica proposta pela indústria cultural, ou seja, a

26 Apesar de a imagem estar vinculada na internet não foi possível encontrar a data exata de sua construção, a datação de postagem encontrada foi Novembro de 2012.

172 partir da inserção dessa imagem nos diferentes espaços midiáticos, Jeremias passa a ser visto como importante para a Consciência Negra, ou seja, o acesso desse tipo de informação geralmente é visto pelo público infantil, que associará diretamente tal imagem ao dia 20 de novembro, possibilitando assim a Maurício de Sousa Produções veicular produtos específicos para tal data, construindo e separando mercadorias para serem lançadas especificamente no dia 20 de Novembro. Então, todo o mapeamento proposto, notando as oscilações da identidade dialógica do personagem Jeremias, funciona como um exercício de reflexão, e uma proposta de reivindicação do lugar ocupado pelo negro, pois, o personagem negro, não deveria ser utilizado apenas quando se precisa de um negro, suas invisibilidades, seus discursos incoerentes, e suas representações subalternizadas tem sido notadas, e evidenciar isso é exatamente a proposta de tal pesquisa, pois, a análise das diferentes representações de Jeremias é um exercício que detém relevância, pois, a partir desta construção inicial, poderá se questionar qualquer tipo de composição estética e discursiva do negro independente do meio de comunicação que este for construído e inserido.

Que Negro é esse nas histórias em Quadrinhos?

O exercício de situar o personagem Jeremias no contexto sociocultural norteou toda esta pesquisa, tendo como ponto de referência a maneira de pensar identidade negra a partir das perspectivas de Stuart Hall, observou-se os aprisionamentos ligados a construção da estética negra nos veículos midiáticos, e a dificuldade de escapar das políticas de representação (HALL, 2006). Nesse sentido, observou-se que o personagem Jeremias propõe significados, possui uma identidade dialógica, e que não se deve observar tal objeto de pesquisa sem prestar atenção na maneira como este é conduzido, pois tal significado pode ser arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político e ser alojado em outras categorias (idem, 2006). Nota-se então, a possibilidade de verificar as posições e os deslocamentos do sujeito negro, propondo uma análise bakhtiniana. A apropriação do conceito de dialogismo nos permitiu compreender a construção histórica do personagem que apresentou diálogos com o cenário social desde sua criação

173 em 1960 até as narrativas contemporâneas27, levando em consideração o papel da Indústria Cultural em todo este processo. O negro representado nas HQ’s não se diferencia dos outros veículos midiáticos, as articulações propostas por um sistema hegemônico construíram um imaginário onde o negro foi subalternizado em diferentes plataformas. No entanto, se a representação apresenta-se como uma figuração embaraçada (BARTHES, 2015), então, vale o exercício de questionar, desconstruir, pois, observa-se um conjunto de práticas que remetem o negro a um único papel, na tentativa de fixar este em camadas de estereotipagem, este é um exercício de denunciar os significados produzidos, observando relações dialógicas e possíveis praticas racistas em torno do negro. Segundo Hall (2016), existem práticas centrais que produzem a cultura e seus significados que são intercambiados, então, nos debruçamos sobre o sentido de cada narrativa onde Jeremias foi encontrado, e investigamos os aspectos representativos de cada imagem e discurso, pois, em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos (FOCAULT, 2014). Dentro do campo produzido pela Maurício de Sousa produções Jeremias é um personagem negro, e costuma ocupar somente este papel, existem oscilações, momentos em que são possíveis notar que a identidade dialógica do personagem flutua, e se encontra-se entre protagonismos específicos, coadjuvante e figurante, ou seja, certos estereótipos pertencem a um contexto social ou histórico específico, que em novas circunstâncias, desaparecem (SANTOS, 2015), entretanto, constatou-se que Jeremias se torna presente quando “Precisa-se de um Negro”, ou seja, dentro da perspectiva de indústria cultural, há formas típicas de práticas representacionais, então, há espaços específicos de se utilizar o personagem negro. Nas palavras de Stuart Hall:

O significado “flutua”. Não há como mantê-lo fixo. Acontece que a tentativa de “fixação” é o trabalho de uma prática representacional que intervém nos vários significados potenciais de uma imagem e tenta privilegiar um deles. (HALL, 2016. p. 143).

27 Em dezembro de 2016 a Maurício de Sousa Produções anunciou uma Graffic Novel do personagem Jeremias, que será construída pelos artistas Rafael Calça e Jefferson Costa. Foi possível entrar em contato com os autores, entretanto, por questões contratuais eles não puderam revelar detalhes sobre a arte ou o roteiro. A Graffic Novel será lançada em 2018.

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Em suma, propondo o dialogismo de Bakhtin como arcabouço teórico, foi possível apresentar diálogos entre as Histórias em Quadrinhos, o contexto sociocultural, a indústria cultural, e a identidade negra, observando a construção, inserção e manutenção do personagem Jeremias de Maurício de Sousa.

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Conclusão

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CONCLUSÃO

Os questionamentos em torno de representações típicas de personagens negros em espaços midiáticos culminaram nesta pesquisa, cujo objetivo foi analisar as relações dialógicas implicadas no personagem Jeremias, de Maurício de Souza Produções. Um personagem negro que dentro do ponto de vista epistemológico nunca tinha sido levado a sério, entretanto, a partir de Jeremias é possível ressaltar questões relativas as práticas discursivas que aludem as identidades negras no Brasil. Logo, a construção de tal trabalho, ao abordar um personagem se apresentou como um desafio, entretanto, vale ressaltar o prazer de utilizar como referência histórias em quadrinhos, pois, tal veículo midiático já fazia parte da vida deste pesquisador, mesmo antes das experiências acadêmicas. Construir uma pesquisa pautada, em um personagem negro, ainda hoje, é considerada postura insólita, devido ao número limitado de trabalhos que se desenrolam sobre as relações étnico-raciais tendo como ponto de observação as narrativas gráficas. Entre conceitos pertinentes e leituras divertidas foi possível compreender o melhor caminho para problematizar as posições ocupadas pelo personagem Jeremias ao longo de seus cinquenta e seis anos de existência, possibilitando um exercício metodológico, no intuito de problematizar posições frequentes de personagens negros na mídia, ou seja, se era possível perceber estereótipos nas narrativas televisivas, cinematográficas e teatrais, tais construções estéticas funcionavam nas histórias em quadrinhos? Partindo deste pressuposto, levou-se em consideração a instrumentalização das histórias em quadrinhos como bibliografia relevante para as ciências humanas e sociais, sendo observadas como literatura, recurso pedagógico, e como fonte de informação e significados, evidenciando seu papel histórico e negligenciando o status de subliteratura ou material irrelevante. Dentro de uma postura teórica, observou-se incialmente o status de Indústria Cultural, verificando a maneira mecânica na qual são utilizados os veículos midiáticos, e a posição capitalista impressa no mercado, para tal, verificou-se a construção dos Syndicates, e sua atuação no cenário das histórias em quadrinhos. Logo, foi possível notar de que maneira a lógica dos Syndicates foi inserida no cenário brasileiro, possibilitando articulações similares a de países como Estados Unidos, e sendo utilizada posteriormente

177 por Maurício de Sousa na construção de todo um repertório cultural, conhecido nacionalmente e internacionalmente como Turma da Mônica. A partir de tais perspectivas surgiu a Maurício de Sousa Produções. Observou-se então, cada passo do personagem Jeremias, construindo periodizações onde foi possível averiguar os imaginários construídos e a manutenção da estereotipagem, nos espaços onde o personagem foi aprisionado e evocado por ser negro. Esse exercício analítico foi essencial para propor uma investigação sobre tal personagem, pois, ao observar os períodos: “Era dos Esboços”, “Pré-Turma”, “Turma” e “Pós-Turma”, foi possível mapear a presença de Jeremias desde a década de 1960 até as narrativas atuais da Turma da Mônica. Portanto, Levou-se em consideração que a construção de uma narrativa por parte da indústria cultural dialoga com a estrutura social, nesse sentido, o que há, portanto, em relação a Jeremias e ao negro brasileiro, são representações cambiantes de identidades igualmente provisórias. Tal pesquisa evidencia a necessidade de enfrentamento em torno de práticas racistas na sociedade brasileira e da questão da mídia majoritariamente negligenciar o processo de representação identitária do negro em suas práticas discursivas. Propor um inquérito sobre o papel de Jeremias nas narrativas gráficas permite pensar não só a relação dialógica entre diversos discursos que deram, ou não, visibilidade ao negro no Brasil. Para elucidar tais perspectivas optou-se por uma análise Bakhtiniana, porque “Jeremias” consiste em um personagem que faz parte de uma dada prática discursiva – representada pelas e nas HQs – aqui compreendida como eminentemente dialógica. Então, não foi o caso, cabe enfatizar, de se conceber a identidade negra de Jeremias como algo fixo, ou elemento essencializado pela intenção de um suposto autor: Maurício de Sousa. Tal demanda seria equivocada, sobretudo porque quando se considera um personagem (ou os temas a ele vinculados) como sendo estático, acaba por fixar-se na mediação que uma pretensa materialidade do signo supostamente oferece, e assim perde o dado analítico que seria o mais importante: as mudanças de sentido capazes de mostrar as dinâmicas das transformações sociais. Desse modo, ao se analisar algumas histórias representativas de quatro periodizações distintas, verificou-se nuances racistas, representações que podem ser parcialmente consideradas positivas, estereótipos e até processos de invisibilidade social do negro, onde o personagem não tinha voz, ou simplesmente desaparecia da narrativa.

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A identidade de Jeremias manteve dialogismos perceptíveis com os cenários sócio-políticos, oscilando entre um presidente que propõe que todos são iguais e personagens construídos nos moldes da blackface. Por ser um trabalho que propõe um exercício analítico sobre histórias em quadrinhos, optou-se por elucidar alguns momentos relevantes da pesquisa de forma quadrinizada, onde este pesquisador torna-se um personagem de histórias em quadrinhos, e de maneira narrativa apresenta momentos específicos da construção e das considerações finais desta dissertação. Em suma, tal prática apresentou-se como relevante para se colocar em pauta a construção de personagens dentro das narrativas midiáticas, verificando as conotações discursivas e estéticas utilizadas para posicionar o personagem negro, tal exercício nos mostra que a sociedade contemporânea ainda aciona mecanismos de subalternidade e invisibilidade em torno de personagens, que representam as identidades negras, omitindo quaisquer tipos de protagonismos, ofuscando representações positivas, ou seja, o negro dos quadrinhos é construído com referências de práticas racistas, onde persistem tentativas de fixar atributos e discursos em torno da negritude. Portanto, tendo em vista os dados obtidos nesta pesquisa, é possível responder: Que negro é este nas histórias em quadrinhos? Este negro chama-se Jeremias, e foi observado a partir de sua identidade dialógica, que oscilou entre estereótipos clássicos em torno do negro, ou seja, narrativas que evidenciavam aspectos da África, sociedades escravocratas, e profissões subalternizadas e protagonismos específicos onde o personagem tornou-se agente secreto, caçador de fantasmas, e um herói. No entanto, as representações cambiantes do personagem, ainda sim, fazem parte de uma estrutura massiva, onde o negro é reproduzido com base em nuances estereotipadas, postura construída e mantida pela mecânica da Indústria Cultural, sendo reproduzida, ainda hoje, pela Maurício de Sousa Produções.

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