ARTIGO Roberto Campos: um desenvolvimentista pragmático

Roberto Campos é um personagem que consegue, criação do Banco Nacional de Desenvolvimento no centenário do seu nascimento, alimentar polê- Econômico (BNDE, inicialmente sem o “S”), com mica sobre sua ação política. A partir da década de a missão de financiar e gerir os recursos captados 1970 se tornou mais conhecido por suas ideias li- no exterior ou no país, que viriam principalmente berais a favor do livre mercado. Foi um crítico en- do Fundo de Reaparelhamento Econômico, cons- fático do monopólio da Petrobras. Combateu com tituído por uma taxa adicional sobre o imposto de fervor a política de Informática. Durante este pe- renda de pessoa física e jurídica. ríodo de sua vida política não ocupou cargo algum no Executivo. Mas destacou-se como embaixador FUNDAÇÃO DO BNDE na Inglaterra na década de 1970 e parlamentar Para a direção do BNDE, foram indicados três nas décadas seguintes como representante no membros da Comissão: Ari Frederico Torres, Congresso Nacional dos estados do engenheiro do IPT de São Paulo para o cargo de e . presidente, Glycon de Paiva, geólogo que ocupou Nas décadas de 1950 e 1960, no entanto, Cam- a diretoria técnica, e Roberto Campos, responsá- pos teve uma atuação completamente distinta. vel pela área econômica. Participou também des- Notabilizou-se como um executivo pragmático, sa diretoria, a partir de 1953, Cleanto Paiva Leite, atuando com intensidade no projeto de moder- um dos componentes da Assessoria Econômica nização da sociedade brasileira, tanto no período do presidente Getúlio Vargas, que fazia parte do democrático como durante o regime militar. Fez grupo que Bielschowsky denominou “economis- jus ao título de principal “economista desenvol- tas desenvolvimentistas nacionalistas”. vimentista não-nacionalista” atribuído a ele por Durante a montagem da primeira diretoria, Ricardo Bielschowsky em seu livro O Pensamento Roberto Campos foi ao Chile, autorizado por Ari Econômico Brasileiro: o Ciclo Ideológico do Desen- Torres, convidar , que trabalhava volvimentismo. na Comissão Econômica para a América Latina e Começou a se destacar como desenvolvimen- o Caribe (Cepal), para participar do colegiado. O tista ao participar da Comissão Mista Brasil-Es- secretário-executivo Raúl Prebisch não o liberou, tados Unidos, decorrente de negociações entre mas aceitou que se formasse no Brasil o Grupo os dois países ainda no governo Dutra, embora os Misto Cepal – BNDE, sob a direção de Furtado. trabalhos só tenham se iniciado em julho de 1951, Passavam a influir na estratégia do BNDE com já no mandato do presidente Getúlio Vargas. Um mais destaques dois dos mais renomados econo- dos principais legados desta Comissão foi a defi- mistas brasileiros: Roberto Campos e Celso Fur- nição de 41 projetos que integraram o Plano de tado, este também um “economista desenvolvi- Reaparelhamento Econômico, cuja execução se- mentista nacionalista”, que assumiu a liderança ria financiada pelo Banco Mundial (Bird), ou pelo do grupo nacionalista, com a volta para a Bahia, Eximbank, dos Estados Unidos, em montante en- após a morte de Vargas, do chefe da Assessoria tre US$ 400 e US$ 500 milhões. A segunda contri- Econômica da presidência, Rômulo Almeida, lí- buição importante da Comissão foi a sugestão de der inconteste anterior. São esses dois executi-

28 MAIO | JUNHO 2017 vos que vão formular o Plano de Metas de Juscelino seria enviado para decisão da diretoria. Estava cria- Kubitschek. Furtado, com sua visão de planejamento do o grupo de trabalho no BNDES, método que tem global, e Roberto Campos, com a teoria dos pontos incentivado o debate internamente e que permanece, de germinação, que se assemelhava ao conceito de até a atualidade, como uma contribuição inestimável Albert Hirschman, que sugeria a prioridade para pro- à independência dos técnicos do Banco e à qualidade jetos com “encadeamentos” para a frente e para trás. de suas propostas. Roberto Campos não se limitou a definir estraté- gias para o Banco. Preocupou-se também em montar FINANCIAMENTO DE LONGO PRAZO uma organização que primasse pela qualidade técni- O Banco foi criado, mesmo sem a destinação total dos ca e independência. Embora não tenha conseguido recursos externos prometidos pelo Banco Mundial e inicialmente instituir o concurso Eximbank, que liberaram apenas público como processo de seleção, US$ 181 milhões, segundo o CPDoc. Campos nunca deixou de acalen- Roberto Campos não Nem todos os projetos foram im- tar a implantação deste processo se limitou a definir plantados, mas a nova tecnologia administrativo. A oportunidade estratégias para o de apoio a investimentos por meio surgiu quando foi convidado por Banco. Preocupou-se de projetos se consolidou no país. Lucas Lopes, ministro da Fazen- Com o Plano de Metas, o BNDES da, para compor a diretoria no também em montar não só participou como protago- governo de Juscelino, ocupando uma organização nista das definições dos principais o estratégico cargo de diretor-su- que primasse pela objetivos como presidiu o Conse- perintendente. Para implantar o qualidade técnica e lho de Desenvolvimento Econômi- Plano de Metas, o BNDE preci- independência. Embora co que as aprovou e acompanhou o saria de novos profissionais para desempenho do Plano. ser bem-sucedido na realização não tenha conseguido Um debate importante que das ousadas 30 metas. Ao decidir inicialmente instituir o aconteceu no Banco foi o financia- pelo concurso em 1956, Campos concurso público como mento a empresas estrangeiras: obrigou todos os que já presta- processo de seleção, uma divergência entre as correntes vam serviço desde 1952, inclusive nacionalistas e não-nacionalistas os que mais se destacavam, tais Campos nunca deixou de do Banco. Os principais exemplos como Ignácio Rangel, Juvenal acalentar a implantação foram: o projeto da Sanbra – Socie- Osório Gomes e José Pelúcio Fer- deste processo dade Algodoeira do Nordeste Brasi- reira, a se submeterem ao concur- administrativo. leiro, com a questão se o Banco de- so. Felizmente, todos passaram e veria financiar projetos de bens de o concurso público, embora não consumo; o da Light, cuja decisão fosse uma obrigação constitucional, passou a ser a foi financiá-lo por meio de debêntures conversíveis, marca da área de recursos humanos do BNDE. o que redundou em lucros extraordinários para a ins- A outra contribuição de Campos foi a alteração do tituição; e o da indústria automobilística, que concor- processo de análise dos projetos que se candidatavam ria com o projeto ferroviário, considerado prioritário ao financiamento de longo prazo. Os departamentos pelas equipes técnicas do Banco. O que suscitou mais operacionais designavam técnicos, que faziam os re- polêmica, no entanto, foi o de exploração de petróleo latórios de cada uma das especialidades requeridas: e gás na Bolívia, que seria implantado pela Refinaria econômico, financeiro, técnico e jurídico. Os assesso- de Capuava, empresa nacional parceira da Gulf Pe- res do diretor-superintendente, de posse desses rela- troleum, no âmbito do Acordo de Reboré, assinado tórios, sintetizavam os argumentos e encaminhavam em 1958 entre os dois países. Ou seja, um financia- propostas em um único documento para decisão da mento a uma empresa privada nacional para implan- diretoria. Roberto Campos se insurgiu contra esse tar projeto em um país vizinho. processo e solicitou aos profissionais responsáveis Foi na época da discussão desse último projeto que pelos relatórios setoriais que se reunissem e escre- o presidente Juscelino fez uma reforma ministerial e vessem, eles mesmos, um documento-síntese que substituiu Lucas Lopes do ministério da Fazenda e

RUMOS 29 também o presidente do BNDE, Roberto Campos. mas o Ipea, sob o comando do economista João Por trás desta mudança, havia a insatisfação pela Paulo dos Reis Veloso, marcou o processo de de- política de ajustamento comandada por Lucas senvolvimento brasileiro. No início da década de Lopes e apoiada por Campos. Como alertou, em 1970, Ipea e BNDE formularam o II Plano Nacio- um artigo seminal, o professor Antônio Barros de nal de Desenvolvimento (II PND), executado pelo Castro, o sistema expelia quem se contrapusesse BNDE no período em que Reis Veloso comandou à Convenção do Crescimento, que perdurou no o Ministério do Planejamento durante o governo Brasil de 1930 a 1980. do presidente Ernesto Geisel. Como ministro do Planejamento, Campos O PLANEJAMENTO NO BRASIL também se preocupou em criar novos instrumen- Roberto Campos volta ao cenário político e eco- tos de poupança, com destaque para o Fundo de nômico como ministro do Planejamento do go- Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para finan- verno do presidente Castelo Branco, em 1964. Por ciar o setor de habitação, cujos recursos seriam coincidência, quem o antecedeu neste cargo foi administrados pelo Banco Nacional de Habitação, Celso Furtado durante o governo presidencialis- banco público também criado durante o governo ta de João Goulart. Houve entre os profissionais do presidente Castelo Branco. da equipe do BNDES um temor de que a ditadu- Com a criação do FGTS, a aprovação da refor- ra viesse a enfraquecer a participação do Banco ma tributária, o reajuste das tarifas públicas e a caso fossem implantadas as políticas liberais. A implantação da correção monetária, propostas nomeação do um monetarista, Garrido Torres elaboradas por Campos, o governo ajustou o orça- (ex-superintendente da Sumoc), para a presidên- mento fiscal, fortalecendo o Estado para investir cia amplificou este receio. Depois veio a criação e contribuir para a retomada do crescimento no do Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada período 1967 a 1980. (Epea), atual Instituto de Pesquisa Econômica Roberto Campos foi muito bem definido por Aplicada (Ipea), com o objetivo de realizar pes- Bielschowsky como um “desenvolvimentista não quisa econômica e de planejamento para o País. nacionalista”, embora preferisse ser conceituado Em seguida, a Reforma Financeira, com a criação como um “desenvolvimentista liberal”. Por sua dos Bancos de Investimento. As duas medidas en- vez, sua ação nas décadas de 1950 e 1960, na di- caixavam-se perfeitamente em um processo de tadura e na democracia, autoriza também que se modernização econômica, mas de fato poderiam enuncie outro lado do seu desenvolvimentismo: o tirar espaço de atuação do Banco. Temia-se que “institucionalista”. Com determinação, estruturou destinassem ao BNDE apenas o apoio às peque- o BNDE e organizou o planejamento no Estado nas e médias empresas, tarefa prioritária, sem brasileiro. Mas durante as décadas de 1950 e 1960, dúvida. Entretanto, no entendimento das equipes Roberto Campos foi também um executivo prag- do Banco, a industrialização brasileira não pode- mático que soube conviver com a diferença. ria prescindir do financiamento de longo prazo às indústrias pesadas e à infraestrutura. Mas os acontecimentos não confirmaram es- tas hipóteses ameaçadoras. Pelo depoimento das lideranças do BNDES sobre Garrido Torres, cons- tata-se que o presidente se integrou à missão do Banco, sendo atribuída a ele a célebre frase: “Eu MARCO ANTONIO A. DE não aceito ser o coveiro do BNDE”. Em seu man- ARAUJO LIMA dato foram criadas a Finame, uma agência para Engenheiro civil pela Pontifícia “crédito direto ao consumidor de equipamen- Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com mestrado em tos”, e o Fundo de Desenvolvimento Científico e Ciências Sociais pela Universidade Tecnológico (Funtec), que financiou a implanta- Federal Rural do Rio de Janeiro. Noel Joaquim Faiad Ocupou diversos cargos executivos ção do parque de ciência e tecnologia brasileiro. no BNDES. É Secretário-Executivo Os bancos de investimento não se consolidaram, da ABDE.

30 MAIO | JUNHO 2017