Ricardo de Saavedra Peregrino da Liberdade Dalai Lama XIV

QUETZAL Sumário

Abreviaturas usadas ...... 9 Aos mortos pela Liberdade ...... 11

1. : A PRESENÇA ...... 17 Uma casa de telhas azul-turquesa ...... 17 O alto preço da descoberta ...... 22 A caminho do Trono do Leão ...... 32 A entronização ...... 40

2. CREPÚSCULO DE UM MUNDO NOVO ...... 47 No palácio das mil salas, o mocho ...... 47 Brincadeiras e engenhocas ...... 53 Vínculos e guerras intestinas ...... 62 Ser livre na Cidade Proibida ...... 73 Crescer em sabedoria e paz de espírito ...... 88

3. A TEMPESTADE ...... 99 Sinal que veio das entranhas da terra ...... 99 A vergonha em dezassete pontos ...... 115 Da invasão à resistência passiva ...... 126 Procurar na China o futuro do Tibete ...... 137

4. O MONGE QUE FUGIU PARA SER LIVRE ...... 157 Angústia e medo no Tecto do Mundo ...... 157 Lições da Mãe Índia e do Supremo Buda ...... 172 Da crescente revolta contra a tirania ...... 195 Fuga para manter viva a esperança ...... 209

5. À CONQUISTA DO OCIDENTE ...... 225 A «história do século» ...... 225 Tempo de adaptação à nova realidade ...... 237 Desmantelar a supremacia inatacável ...... 250 Um deus feito homem ...... 267 Para erguer o templo da Paz Universal ...... 284

6. «SINTO-ME UM PEREGRINO» ...... 307 Encontro nas faldas dos Himalaias ...... 307 Aprender com os outros ...... 310 Espiritualidade e política ...... 316 O último Dalai Lama ...... 320 ONU, jornalistas, políticos e mulheres ...... 323 A convite do Buda Vivo ...... 329 Novembro, em Portugal ...... 334 Novamente em Lisboa ...... 344 O fascínio de Dhasa ...... 346 «O centro do universo» ...... 352 Sementes do futuro ...... 357 Mundialmente famosa ...... 361 Uma enorme família ...... 366

7. ABECEDÁRIO DO PENSAMENTO ...... 369

8. ANEXOS ...... 393 Símbolos Auspiciosos ...... 393 Para saber mais ...... 396

Bibliografia ...... 397 Agradecimentos ...... 403 Abreviaturas usadas

PARA OS LIVROS REFERENCIADOS

Do Dalai Lama

CPL – O Caminho para a Libertação EPNM – Ética para o Novo Milénio LNE – Liberdade no Exílio MTMP e MTMP.a – Minha Terra e Meu Povo OCPL – O Caminho para a Liderança OPC – O Poder da Compaixão PADD – Para Além dos Dogmas SAM – Samsara SI – Sabedoria Infinita

De outros autores

APDL – A Palavra dos Dalai Lamas, escolha de Gilles Van Grasdorff AVDDL – A Vida do Dalai Lama por Mayank Chhaya BNA – Le Dalai Lama, La biographie non autorisée por Gilles Van Grasdorff DLMS – Dalai Lama, My Son – A Mother’s Story por Diki Tsering DLXIV – Dalai Lama XIV por Sabine Wienand DRNPL – Do Reino das Neves para a Liberdade por Stephan Talty HP – Horizonte Perdido por James Hilton LDDL – Le Dernier Dalaï Lama? por Michael Harris Goodman MG – Mahatma Gandhi por Susmita Arp OCCC – Os Caminhos Cruzados da Consciência. Conversas com o Dalai Lama sobre Ciência do Cérebro e Budismo por Houshe- mand, Livingston e Wallace ODL – O Dalai Lama, uma política de bondade por Sydney Piburn RAT – Regresso ao Tibete por Heinrich Harrer SAT – Sete Anos no Tibete por Heinrich Harrer TOMV –Tibete, O Momento da Verdade por Frédéric Lenoir UVT – Uma Vida pelo Tibete por Jetsun Pema

PARA AS FOTOS REFERENCIADAS

(AC) – Foto de Amin Chaar (CA) – Foto de Carlos Alberto (CTA) – Central Tibetan Administration (DR) – Direitos Reservados (OHHDL) – Office of His Holiness The Dalai Lama (TBI) – The Better India (TCV) – Tibetan Children’s Villages (TIE) – Tibetans in Exile (TM) – Tibetan Museum (TN) – .net (TO) – Tibet Office Aos mortos pela Liberdade

A 27 de Outubro de 1939, o astrólogo do governo tibetano interpretou a linguagem das estrelas e decidiu que o menino de quatro anos do palanquim dourado podia finalmente seguir para Lhasa. Estavam em Rigya, no gigantesco acampamento que se formara a cinco quilómetros da Cidade Santa. O menino chama- va-se Lhamo Dhondup e acabara de ser reconhecido como tulku, a encarnação de Sua Santidade o Dalai Lama XIII. Formou-se então a procissão e a multidão, entre orações e cânticos, acompa- nhou-o em delírio até Norbulingka, o Parque das Jóias, não se cansando de, em manifestações de regozijo, gritar que «chegou o dia da nossa felicidade». Em 2019 completam-se 80 anos sobre este tão auspicioso acontecimento. O menino Lhamo Dhondup foi entronizado no Palácio de Potala em Lhasa cerca de quatro meses mais tarde, sendo-lhe de- pois atribuídos tantos nomes e títulos que difícil é a todos recor- dar num simples apontamento. Além de Dalai Lama, em que as duas palavras quando juntas significam Oceano de Sabedoria, tornou-se mais conhecido como Tenzin Gyatso, embora sejam Kundun (a Presença) ou Precioso Soberano as expressões com que mais afectuosamente os tibetanos o invocam. Depois a lista é longa e aplicada conforme as ocasiões ou os inúmeros países onde 12 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

Sua Santidade se desloca, partilhando ensinamentos e distribuindo afectos e compaixão, numa incansável peregrinação de paz e liber- dade. Então, surgem-nos designações como Buda Vivo, Grande Ser, Defensor da Fé, Precioso Vencedor, Coração Nobre ou Senhor do Lótus Branco. Tenzin Gyatso começou a estudar aos seis anos e doutorou-se em estudos búdicos aos 23. À sua volta costuma reunir cientistas de renome mundial e com eles discute abertamente os meandros do corpo e da mente. Em 2001 veio a Portugal receber um grau de doutor honoris causa, a juntar aos mais de 80 que já possui e não consegue enumerar de seguida metade dos que lhe atribuíram. Tal como os prémios, galardões, chaves de cidades e outras distinções, em número ligeiramente superior. Entre elas sobressai o Prémio Nobel da Paz em Dezembro de 1989. Há três décadas, exactamente. A data verdadeiramente histórica e que tudo mudou foi a de 10 de Março de 1959. São 60 anos de sofrimento, marcados para sempre pela invasão e tirania chinesas. A 17 de Março o Kundun iniciava a fuga da «libertação pacífica» que a China propunha ao Tibete e a 31 a Mãe Índia acolhia-o, permitindo-lhe que mantivesse o governo no exílio. Líder político e espiritual do seu povo, carretou atrás de si, nestes últimos sessenta anos, cerca de 130 mil refugiados. Mas todos os dias chegam mais. E, graças a um renovado esforço, à proposta de entendimento mútuo e de não-violência, o mundo começou a acreditar que a China terá de repensar a sua funesta política de genocídio étnico e cultural. Sem esquecer que mais de um milhão de tibetanos foram mortos e 6000 mosteiros destruídos ou reduzidos a quartéis, cavalariças e até casas de prostituição. O 10 de Março transformou-se num dia histórico para os tibetanos e é comemorado em todo o mundo com apelos pacífi- cos, embora por vezes as manifestações descambem em excessos, porque um povo escravizado ao longo de décadas nem sempre consegue dominar a cólera. Foi o que aconteceu em 1989, há AOS MORTOS PELA LIBERDADE 13

30 anos, depois de uma intervenção que o Oceano de Sabedoria tivera na Convenção dos Direitos Humanos do Congresso norte- -americano, onde propôs um Plano de Paz em Cinco Pontos. Viveram-se meses de desgraça e tragédia, antes de a China impor a lei marcial. Pior ainda foi em Março de 2008 quando até sangue espirrou pelos luminosos cinco aros olímpicos dos Jogos de Pequim. Um apelo de 30 intelectuais chineses, colocado online no site Rue89.com, a 22 de Março, merece ser lembrado como se os últi- mos 11 anos nunca tivessem existido, porque realmente nada foi feito: «Se um país pretende evitar o desmembramento, deve primeiro evitar a fractura étnica. Por esta razão, apelamos aos diri- gentes chineses que dialoguem directamente com o Dalai Lama. Esperamos que os chineses e os tibetanos consigam evitar os mal- -entendidos, desenvolver os intercâmbios, e realizar a união entre si.» Então porquê e como nasce este livro, perguntará o leitor que se preocupe em descobrir a complicada razão das coisas simples. Acontece que um português andava de férias em Londres quando deparou com um desses ajuntamentos populares a favor do Tibete e em defesa dos ideais do Dalai Lama. Na maioria eram tibetanos. Aproximou-se, meteu conversa, entendeu a razão que lhes cabia e entusiasmou-se. Esse português era o dinâmico professor de Matemática e Estatística da Universidade Lusíada do Porto, Paulo de Morais, que tinha um amigo, também professor e há muitos anos budista tibetano, chamado Balkrishna Maganlal. Português nascido em Moçambique, estudara na Índia e na China, forman- do-se em Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Desde 1984 exercia medicina privada em Portugal, sendo também director- -fundador do Centro de Retiro e Meditação Karuna, na serra de Monchique, no Algarve. E foi com ele que Paulo de Morais, quando chegou ao Porto, partilhou o entusiasmo do inesperado encontro que tivera em Londres. Bal ouviu-o com o sorriso conta- giante de quem há muito vive por dentro daquelas palavras que eram música nos seus ouvidos. 14 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

Passaram uns tempos sobre a conversa até que o médico budista confrontou um dia o colega das matemáticas com a ines- perada perspectiva de trazerem o Dalai Lama a Portugal. E, con- siderando o evento Porto 2001 Capital Europeia da Cultura que se realizaria em breve na Cidade Invicta, a ocasião parecia a ideal. Era preciso alguém que agilizasse o assunto junto de organismos e autoridades competentes e ele parecia-lhe a pessoa indicada. Paulo de Morais nem hesitou. Porque se os lusos haviam sido os primeiros ocidentais a chegar ao País das Neves Eternas e ali foram recebidos como príncipes, porque não havia agora o Pre- cioso Soberano do Tibete de vir cobrar em gentileza um pouco do que o padre António de Andrade recebera em 1624? Os dois trataram de se mexer, a diversos níveis, para concre- tizar a vinda do Kundun. A Universidade Lusíada propôs um doutoramento em Literatura, a Porto 2001 aprovou uma confe- rência no Palácio de Cristal, as câmaras municipais do Porto e de Lisboa acolheram a ideia de braços abertos, houve muita gente a aplaudir, e só o governo se encolheu, receoso de ferir a China. É aqui que apareço, ao receber um telefonema do professor Paulo de Morais a perguntar-me se estaria interessado em entrevistar o Dalai Lama. Seria uma entrevista em exclusivo para a edição do Diário de Notícias da véspera da sua chegada ao Porto. Confessei não estar preparado, e a solução dele foi pronta: «O Balkrishna prepara-o, vocês são amigos, aproveite.» Porque nenhum jorna- lista desdenha a dentada no improvável e muito menos a visita aos quartos da Lua, consultei o director do jornal, Mário Betten- court Resendes, que logo disse que sim, era um furo que devía- mos aproveitar. Pelo seu lado, Paulo de Morais trouxe-me, policopiado, o livro do Dalai Lama Minha Terra e Meu Povo – A tragédia do Tibete, publicado no Brasil em 1963. Para eu ir lendo. Ao saber do que se passava, o meu irmão Carlos Alberto fez questão de assistir a alguns dos encontros com Bal, e logo tomou AOS MORTOS PELA LIBERDADE 15

a decisão de «se tu fores eu também vou». «E vais fazer o quê?», ainda ousei. De nada valeu. Discutimos até assentarmos que ele iria, a suas expensas, como fotógrafo. E no dia seguinte comprou uma Nikon. A partir daí, enquanto esperava a confirmação da entrevista, fui conhecendo pessoas ligadas ao budismo e ao Tibete, como o monge Taklung Tsetul Pema Wangyal Rinpoché, espe- cialista ligado à recuperação de textos fundamentais e raros do budismo, a incansável norte-americana Anne Benson, assessora da Casa do Tibete em Paris, e até mais tarde a representante de Sua Santidade para a União Europeia, Madame Kunzang Diki Yuthok, que recebemos no DN, onde foi entrevistada pela jorna- lista Lumena Raposo, e a quem Paulo de Morais endereçara uma carta a falar de mim e a pedir a oportunidade do encontro em exclusivo. Passavam os dias, e... nada. Até que a 4 de Junho o professor telefonou, afogueado: «A entrevista é em Dharamsala, dia 13, às 13 horas.» E eu que nem visto tinha, nem uma pergunta alinhavara e muito menos um esquema de questionário. Valeu-me encontrar-se no Porto o célebre monge budista Matthieu Ricard do mosteiro de Sechen, no Nepal, distinto cientista doutorado em biologia mole- cular pelo Instituto Pasteur de Paris, que aceitou receber-me no seu hotel e conversou comigo cerca de três horas. Do sereno diálogo com o sábio germinaram as perguntas que mais tarde faríamos. Com a data enviaram-nos um detalhado programa para a estada em Dharamsala. Supostamente chegaríamos ao fim da manhã e ao princípio da tarde tínhamos uma reunião na residên- cia oficial do Dalai Lama com os seus secretários Kasur Tenzin Geyche Tethong (Kasur significa ex-membro do governo tibeta- no no exílio) e Tenzin N. Taklha, que fora nomeado como um dos nossos contactos. O outro contacto seria Thubten Samphel, secretário do Departamento de Informação e porta-voz do governo, com quem nos encontraríamos nessa mesma tarde. À noite seria o ministro da Informação a oferecer-nos o jantar. O nosso guia 16 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

permanente seria o jovem Tenzin Lekshay. No dia seguinte, após a audiência com Sua Santidade, teríamos a visita ao Tsuklakhang (templo principal) e ao Museu do Tibete. No terceiro dia, iría- mos percorrer a Aldeia das Crianças e entrevistar a Kasur Jetsun Pema, irmã mais nova do Precioso Soberano, além de instituições de apoio social. No quarto dia, iríamos perder a entrevista com o presidente do Parlamento para participar na espantosa recepção que centenas de peregrinos há meses aguardavam. Não foi possível concretizar, por razões diversas, a previsão de publicar um livro a tempo da visita, onde se incluísse a entre- vista e a reportagem da ida a Dharamsala. Ficara-me pelas cem páginas. O meu irmão Carlos Alberto, que viria a falecer em Dezembro de 2006, nunca deixou de mo lembrar e, dias antes de partir, ainda insistia: «Agora tens mais tempo, acaba aquele livro.» Porém, a falta dele, aliada a meses de horror das persegui- ções que precederam as Olimpíadas, e por mais que os amigos insistissem, não ajudou. Até virar a folha do calendário e avaliar a data: 2019. Perfazem-se 80 anos da descoberta do tulku, 60 da fuga para a liberdade, 30 dos maiores massacres no Tibete e da atri- buição do Prémio Nobel da Paz ao Oceano de Sabedoria. Recordá-lo agora, em português e em Portugal, é render preito e homenagem ao povo pacífico e martirizado que vive no Tecto do Mundo. E sobretudo aos tibetanos que morreram e continuam a imolar-se pela Liberdade. Peço desculpa para, numa última linha, lembrar o fotógrafo feito à pressa, meu irmão Carlos Alberto, dedicando-lhe também o que tanta vez me pediu, este livro sobre Sua Santidade o Dalai Lama XIV.

R. de S. Janeiro de 2019 1. Kundun: a presença

UMA CASA DE TELHAS AZUL-TURQUESA

Taktser quer dizer «tigre que ruge» e é também nome da minúscula aldeia a 2700 metros de altitude, na província de Am- do, no extremo nordeste do Tibete. Antigo acampamento de nómadas, cortado por uma estrada de caravanas e um riacho, situa-se no planalto que começa a quebrar a colina que do Tecto do Mundo desce para a China. A comunidade agrícola dependia sobretudo do cultivo de trigo, aveia e cevada. As montanhas circundantes eram dorso de densas florestas. Para sul sobressaía aquela a que os nativos chamavam «Monta- nha que Fura o Céu». Acreditava-se que nela, entre córregos cristalinos, árvores gigantescas e luxuriante variedade de plantas, residia a divindade tutelar da região. Gamos, leopardos, lobos, ursos, macacos e raposas passeavam-se livremente, sem receio de predadores ou dos humanos. Porque estes eram na maioria budis- tas, incapazes de pisar com maldade o que fosse sombra de vida. De um dos lados, a perder de vista, desdobravam-se pomares de ameixas, pêssegos, nozes e outros frutos. nem sequer aparecia no mapa. E foi nessa remota aldeia com uma trintena de casas que, «no quinto dia do quinto 18 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

mês do Ano Porco-Madeira do calendário tibetano»1 (ou seja, 6 de Julho de 1935), nasceu um menino refeitinho, de olhos en- treabertos2. Recebeu o nome de Lhamo Dhondup (palavras que significam «deusa que realiza os desejos») e era o décimo terceiro filho de modesto casal de agricultores. Os primeiros alvores da madrugada anunciavam mudança de tempo. Ao sentir as contracções, a mãe escolheu um canto aquecido e aconchegado do obscuro curral para dar à luz. O pai estava doente e acamado há quase dois meses e ela não queria in- comodá-lo. Contudo, quando soube do nascimento, levantou-se de um salto, com inesperada energia. Tão notória foi a mudança que a parturiente se convenceu de que a tal doença não passava de preguicite aguda3. Só mais tarde percebeu que não, que era mesmo um sinal. O pai, de 36 anos, chama-se Choekyoung Tsering, e a mãe, um ano mais nova, Dekyi (Diki) Tsering4. Outro indício terá sido às primeiras horas da manhã – houve quem estranhasse – um longo arco-íris descer da Montanha que Fura o Céu para suavemente pousar e se deter durante horas na casa do recém- -nascido. E realmente nessa tarde choveu, o que já não acontecia há três anos.

1 Lama, Dalai – Minha Terra e Meu Povo (MTMP.a), p. 9, e Minha Terra e Meu Povo (MTMP), p. 15. 2 «Eu nasci com os olhos abertos. Isto pode ser uma ligeira indicação de um estado de espírito lúcido dentro do ventre» – Dalai Lama em entrevista a John Avedon, in Piburn, Sidney – O Dalai Lama, uma política de bondade (ODL), p. 34. 3 Tsering, Diki, Dalai Lama, My Son – A Mother’s Story (DLMS), p. 78, e MTMP, p. 28. 4 A mãe do Dalai Lama tinha o nome original de Sonam Tsomo. O nome Dekyi (Diki) Tsering foi-lhe dado por Taktser Rinpoché quando se reconhe- ceu a encarnação do seu filho. Dekyi está associado a alegria e felicidade e Tsering significa «vida longa». KUNDUN: A PRESENÇA 19

Também desde essa madrugada, mal o sol espreitava, surgiam como por encanto dois negros corvos, vindos não se sabe donde. Empoleiravam-se no telhado da casa e por ali ficavam dez, quinze minutos. Grasnavam qualquer coisa e depois partiam.5 Todos os dias, mal o sol nascia. De assinalar que na noite seguinte ao nascimento do primeiro Dalai Lama (1391-1475), uns bandidos assaltaram-lhe a casa e os pais tiveram de fugir a sete pés, deixando a criança escondida num canto. Horas depois, quando regressaram aflitos com o que poderia ter acontecido ao recém-nado, viram um corvo a seu lado, prote- gendo-o. O primeiro Dalai Lama cresceu a ouvir esta história e, já adulto, durante prolongada meditação contactou Mahakala6, a sua divindade protectora, que lhe confessou ter assumido a forma de corvo: «Logo no dia em que nasceste eu ajudei-te.»7 Até se descobrir que aquela criança de Taktser era a reen- carnação do décimo terceiro Dalai Lama transcorreram cerca de três anos. E só depois se lhe associou a história dos corvos. Aliás, já se sabia que o mesmo acontecera aquando do nascimento do primeiro, do sétimo e do oitavo Dalai Lama. Este título, de ori- gem mongol, sempre foi traduzido por «Oceano de Sabedoria». A casa de Lhamo Dhondup dominava o lugarejo. As fun- dações eram em pedra, de blocos de argila as paredes. As grossas vigas do tecto sustentavam um reservatório de água recoberto a mosaicos verdes, além de duas chaminés. Do edifício rectangular, de um só piso, todas as divisões desembocavam num pátio inte- rior, ao centro do qual se erguia um mastro de três metros ou mais, onde drapejavam sempre coloridas bandeiras de oração.

5 Lama, Dalai, Samsara – A Vida, a Morte, o Renascimento (SAM), p. 13. 6 «Mahakala, a minha divindade protectora», cfr. Lama, Dalai, Liberdade no Exílio – A Autobiografia do Dalai Lama do Tibete (LNE), p. 180. 7 ODL, p. 33. 20 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

A porta da entrada principal rodava sobre gonzos de madeira, almofadados com pele de ovelha para não ranger. A norte ficava a sala do altar, comum nas residências tibetanas, com a imagem de Buda rodeada de velas de manteiga permanentemente acesas. Dali se tinha acesso ao quarto dos pais. As instalações dos hóspe- des, a despensa e os currais situavam-se a oeste. Os demais quar- tos, com soalho de tábuas cor de mel, davam para o lajedo do corredor e pátio central. Afora diversos armários de madeira pinta- dos de cores berrantes, o mobiliário era reduzido. Não se usavam cadeiras ou camas, embora nos quartos existissem uns relevos apropriados para dormir. A ala sul destinava-se aos galinheiros, cavalariças e redil. A família despendia a maior parte do tempo na ampla cozi- nha. Uma divisória de madeira separava uma zona térrea de outra empedrada, onde crepitava o fogão de lenha, sobre o qual havia sempre uma chaleira de água pronta para o chá. Na zona térrea, mais pequena, empilhavam-se achas, bosta seca de iaque e palha – os combustíveis usados para alimentar o lume. Subindo três ou quatro degraus junto ao forno, atingia-se uma vasta plataforma. E nesse espaço acolhedor, sobretudo quando o Inverno era de rilhar os dentes, juntava-se a família. Ali comiam e muitas vezes dormiam, aproveitando o calor da fornalha e das condutas das chaminés que passavam ao lado. O trem de cozinha, de cobre e latão, perfilava-se ao lado das panelas de barro. O leite guardava- -se em vasilhas de madeira. Nos fundos da propriedade, ainda havia um terreiro para os cavalos e para o gado. Vistas de longe, sobretudo da estrada, as paredes caiadas da casa faziam ressaltar os beirais baixos de telhas azul-turquesa. O portão principal, virado para a Montanha que Fura o Céu, aparecia ladeado de mastros com mais bandeiras coloridas. Um mastim tibetano, amarrado a um poste junto ao portão, recomendava distância a eventuais intrusos. KUNDUN: A PRESENÇA 21

Na fazenda, além da família, trabalhavam habitualmente cinco a seis camponeses, que eram pagos em géneros. Por ocasião do plantio e da safra acorria mais gente, entre 15 a 40 pessoas, conforme o ano ou a tarefa agrícola exigissem. Porque, à parte de culturas mais extensas de centeio ou trigo, ainda amanhavam uma horta, farta de tudo, de batatas a rábanos, nabos, couves ou alhos. Quanto a animais, tinham cavalos, mulas, ovelhas, galinhas, e ainda oito vacas e sete dzomos, cruzamento de vaca com iaque. A tradição de entreajuda dos camponeses e de espontaneamente serem uns para os outros quando necessário mantinha-se viva na aldeia. Diki Tsering, a amala (expressão respeitosa para dizer mãe em tibetano), sempre que ia para o campo levava o bebé às costas, preso por panos cruzados. Enquanto trabalhava, habitualmente depositava-o num canto, onde dormia sob um guarda-chuva amarrado a uma estaca. Ela também gostava de ir aos estábulos fazer a ordenha. Por isso, mal aprendeu a andar, o pequeno Lhamo Dhondup corria a seu lado, com uma tigela de madeira escondida na dobra da camisola, a fim de ganhar o primeiro leite morno que a mãe mungia. A partir de certa altura, a amala autorizou-o a recolher os ovos do galinheiro. Um dia, e o Dalai Lama ainda agora se ri dis- so, desapareceu durante largos minutos. Aflitos, procuraram-no por todo o lado, até o descobrirem sentado num dos ninhos das poedeiras. E mal pressentiu que alguém se aproximava, pôs-se a cacarejar como uma galinha, para gáudio de quem o viu. Ninguém regateava elogios aos dotes culinários da amala e muito menos à sua bondade e gentileza. Contudo, com mão de ferro governava a casa, de forma a manter a disciplina e a poder alimentar tão numeroso agregado. Mormente nos anos maus, fossem de secas prolongadas ou quando violentas tempestades de neve desabavam sobre a aldeia e destruíam as culturas. 22 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

Da sua lendária bondade conta-se que, numa altura em que terrível surto de fome devastou a China, um casal que atravessara a fronteira à procura de comida lhes bateu à porta. Traziam um bebé já morto e a amala ofereceu-se para os ajudar a enterrá-lo. Os mendi- gos recusaram assustados e ela então percebeu que queriam guardar o corpo para mais tarde o esquartejar e comer. Horrorizada, levou-os à despensa e ofereceu-lhes o que quisessem em troca do enterro, mesmo que tal redundasse em prejuízo da sua própria família8. De estatura meã, o pai de Lhamo Dhondup, vigoroso e re- servado, compensava o aspecto ríspido e a falta de instrução com a argúcia subtil que distingue os montanheses. Ao desembaraço de agricultor aliava o amor pelos cavalos, reconhecendo-se-lhe um dom especial para os seleccionar e tratar, sobretudo quando adoeciam. Choekyong Tsering cavalgava muito e muito bem. De temperamento explosivo, às vezes tornava-se irritadiço e pegui- lhento, mas nunca foi de guardar rancor. Muitos anos volvidos, o então benjamim ainda lembrava o valente bofetão que uma vez levou só por lhe ter puxado o bigode.

O ALTO PREÇO DA DESCOBERTA

No Ano Pássaro-Água, ou seja, 1933, faleceu Thupten Gyatso, décimo terceiro Dalai Lama. Desde 1578, cada Dalai Lama é tido simultaneamente como a manifestação de Chenrezig (o Bodhisattva9 da Compaixão) e a do seu antecessor. Deste modo,

8 LNE, p. 21, e SAM, p. 16. 9 Bodhisattva – pessoa que atingiu a Iluminação e que está prestes a ser um Buda mas que adia o nirvana para auxiliar terceiros a atingir a perfeição. Tam- bém pode ser designada de Avalokiteshvara (sobretudo na Índia), Chenrezig (no Tibete), Guanyin (na China) e Kannon (no Japão). KUNDUN: A PRESENÇA 23

após a morte de Thupten Gyatso, a Assembleia Nacional designou Reting Rinpoché10 para Regente. E o Regente, num dos primeiros actos governativos, ordenou que se procedesse de imediato à busca da reencarnação, a fim de ser acompanhada até à maioridade. O processo é moroso, marcado por rituais específicos e se- culares. Começa-se por analisar múltiplos indícios deixados pelo falecido, depois ouvem-se os oráculos do Estado, consultam-se sages e os lamas mais eruditos. No Ano Porco-Madeira (1935), o Regente decidiu deslocar-se ao lago sagrado de Lhamo Latso, 140 quilómetros a sul de Lhasa, cujas águas representam para os monges da escola Gelug o espelho do futuro. As visões que ali se obtêm podem surgir na forma de letras ou de quadros alegóricos. Neste caso, após prolongada meditação, o Regente apercebeu-se do desenho de três letras e da imagem de um mosteiro com tecto de jade verde e dourado, nas imediações de uma casa com telhas azul-turquesa. A visão foi devidamente registada, analisada e mantida em estrito sigilo. No ano seguinte, vários notáveis do reino foram encarregados de percorrer o Tibete, tentando descobrir um local que lembrasse aquele que o Regente vira reflectido nas águas do lago. Os meses foram passando, passando e nada. Até que, por alturas do Inverno, dois desses emissários chegaram à região de Amdo. Logo à dis- tância, os tectos verdes e dourados do mosteiro de Kumbum prenderam a atenção dos viageiros. Dias mais tarde, na vizinha aldeia de Taktser, depararam com uma casa onde os baixos beirais do telhado reflectiam azul-turquesa. Como quem não quer a coisa,

10 Rinpoché (ou Rinpoche) é um termo honorífico, que se pode traduzir por «O Precioso», atribuído a elevados dignitários espirituais; nem todos são lamas reencarnados. Também se atribui o título Rinpoché a responsáveis por mostei- ros, que podem não ser reencarnados. 24 PEREGRINO DA LIBERDADE DALAI LAMA XIV

perguntaram se ali teria nascido recentemente alguma criança. A resposta afirmativa desfez outra parte das dúvidas. Para felici- dade das gentes e do reino, os primeiros dados estavam lançados. Numa manhã do décimo primeiro ou décimo segundo mês, andavam aldeões a limpar do caminho quase metro e meio de neve que caíra, quando dois senhores bem vestidos bateram ao portão, pedindo para falar aos donos da casa. Acompanhavam-nos um criado e dois guias; afirmaram que, indo a caminho de Sanho, se haviam perdido devido ao temporal. Por aquela zona há uns tempos já falavam com relativa fluência os dialectos locais. Claro que escondiam a verdade e, além disso, iam disfarçados. Tratava-se dos dois funcionários do governo de Lhasa, um deles chamado Lobsang Tsewang, enquanto o pretenso criado era, nem mais nem menos, o lama Kewtsang Rinpoché, natural de Amdo, superior do mosteiro de Sera e chefe do grupo11. Cerimoniosamente, os donos da casa receberam os cavalhei- ros na sala, encaminhando o lama e os guias para a cozinha, a co- nhecer o resto da família. Mal Lhamo Dhondup os viu entrar, correu para o criado, começou a puxá-lo, e não descansou enquanto não se lhe sentou ao colo. O lama, que na sua camuflagem trocara o hábito grená por um casaco de pele de carneiro, deixara ao pesco- ço um rosário que lhe havia sido oferecido pelo décimo terceiro Dalai Lama. A criança olhou para o rosário, pareceu reconhecê-lo, e pediu-lho. Kewtsang Rinpoché respondeu que sim, que lho dava, se adivinhasse quem ele era. A réplica foi pronta, no dialecto local: Sera-aga, o que significa «um lama de Sera». O miúdo retorquia de forma espontânea e positiva a todas as questões, fazendo-o inclusivamente no dialecto de Lhasa, capital do Tibete, que os seus próprios pais desconheciam.

11 Kewtsang Rinpoché seria posteriormente torturado e morto pelos chine- ses, aquando da invasão (DLMS, p. 79).