Programa e público brasileiros: a trajetória do nas vozes de seus personagens

Profa. Dra. Iluska Coutinho Departamento de Jornalismo, FACOM - UFJF [email protected]

Resumo: Primeiro programa a ser veiculado em rede na televisão brasileira o Jornal Nacional (JN), veiculado pela Rede Globo, se constitui em um ator importante para a reflexão sobre as relações entre história, mídia e sociedade no Brasil. Após quase 39 anos no ar o telejornal mantém sua centralidade enquanto produto midiático responsável pela obtenção de informação de significativa parcela de nossa população, e já foi objeto de estudos e teve sua história contada tanto no campo acadêmico da Comunicação quanto em outras áreas que com ela estabelecem interface. A proposta desse artigo é apresentar um outro olhar, diverso daqueles lançados pelos analistas, e recuperar a história do JN a partir dos vestígios lançados por seus personagens, jornalistas e demais profissionais envolvidos com sua produção. Ao abordar a história do Jornal Nacional segundo seus produtores será privilegiada a relação desse programa, e de seus personagens, com o público e ainda com a imagem de Brasil(leiro) que pode ser depreendida a partir desses olhares. Palavras-chave: Telejornal; Memória; Profissionalismo; Público; Personagem

Primeiro programa a ser veiculado em rede na televisão brasileira o Jornal Nacional (JN), veiculado pela Rede Globo, se constitui em um ator importante para a reflexão sobre as relações entre história, mídia e sociedade no Brasil. Após quase 39 anos no ar o telejornal mantém sua centralidade enquanto produto midiático responsável pela obtenção de informação de significativa parcela de nossa população, e já foi objeto de estudos e teve sua história contada tanto no campo acadêmico da Comunicação quanto em outras áreas que com ela estabelecem interface. A proposta desse artigo é apresentar um outro olhar, diverso daqueles lançados pelos analistas, e recuperar a história do JN a partir dos vestígios lançados por seus personagens, jornalistas e demais profissionais envolvidos com sua produção. Nessa perspectiva se constituiriam em documentos a serem analisados em uma pesquisa que contaria a história do Jornal Nacional por aqueles que o constroem no cotidiano, livros e artigos redigidos por integrantes do universo a ser investigado. Assim, trata-se de ouvir as vozes de repórteres, editores, apresentadores que tem vínculo, e história com o Jornal Nacional não apenas em entrevistas, mas em publicações tanto com narrativas de cunho ficcional (Boccanera, 1997), quanto em obras que teriam como primeiro objetivo funcionar como uma espécie de manual sobre o fazer jornalístico em televisão (Curado, 2002 e Paternostro, 1987). Como se trata de investigar a história de um produto televisivo, outra fonte importante nessa investigação seriam materiais audiovisuais que, ainda que produzidos segundo outra proposta, como os DVD’s da Caravana Jornal Nacional, contenham pistas para o olhar do pesquisador do presente, em busca de roteiros já trilhados. Isso porque, assim como Marialva Barbosa (2007), acreditamos que o passado pode ser recuperado, e convertido em memória a partir de seus vestígios, convertidos pelo pesquisador em significados. Afinal, como ressalta a autora, “A tarefa da história não é recuperar o passado tal como ele se deu, mas interpreta-lo. A partir dos sinais que chegam até o presente, cabe tentar compreender a mensagem produzida no passado dentro de suas próprias teias de significação.” (2007, p.13). Ao abordar a história do Jornal Nacional segundo seus produtores será privilegiada a relação desse programa, e de seus personagens, com o público e ainda com a imagem de Brasil(leiro) que pode ser depreendida a partir desses olhares. Nesse artigo optou-se por focalizar a re-construção da história do JN segundo um de seus personagens, as narrativas de seu atual apresentador e editor chefe, William Bonner, que se constituiria em um fragmento ou capítulo da grande história a ser narrada. Três documentos principais se constituem nas pistas a serem seguidas nesse artigo, narrativa tecida no presente sobre o passado do Jornal Nacional: o registro da pesquisa de campo realizada em 2001 como etapa da elaboração da tese de doutorado da autora; a entrevista concedida por William Bonner em 2004 a Isabel Travancas, publicada como um dos anexos do livro Juventude e Televisão; e um dos extras do DVD comemorativo Jornal Nacional - 35 anos, um bate papo com os apresentadores do programa (Cid Moreira, Sérgio Chapelin, Léo Batista, Fátima Bernardes e William Bonner). As duas entrevistas de Bonner realizadas por pesquisadoras foram transcritas para texto antes da realização da análise, enquanto o registro do material audiovisual foi realizado tanto pelo texto quanto pelos elementos de imagem e edição (enquadramentos, movimentos de câmera e inserção de imagens). Nesse sentido, uma primeira reflexão importante seria sobre o caráter memorialístico dessa trajetória do Jornal Nacional que é narrada pela voz e expressões de seu apresentador e também editor chefe desde setembro de 1999, informação que integra a pequena biografia de Bonner ao responder a primeira pergunta formulada por Travancas (2007, p.129). Michael Pollak ao tratar da relação entre memória, esquecimento e silêncio recupera a partir de autores como Halbwachs e Nora os elementos que estruturariam nossa memória, inserida por sua vez na memória da própria coletividade a que pertenceríamos. Em nosso caso essa coletividade seria constituída pelos telespectadores do Jornal Nacional que, segundo anunciava a vinheta veiculada em setembro de 1969, época de seu lançamento, representaria a notícia unindo 70 milhões de brasileiros. Entre os pontos de referência para a construção da memória estariam: monumentos, patrimônio arquitetônico, paisagens....lugares de memória na acepção de Pierre Nora. Nesse sentido caberia a nós refletir em que medida a bancada de apresentação do Jornal Nacional não se constituiria em um lugar de memória, não apenas do próprio programa mas em certa medida da própria história da nação conforme midiatizada. Os discursos dos apresentadores do Jornal Nacional, como Bonner, poderiam ser utilizados como indicadores empíricos de uma memória que se não é coletiva, seria ao menos difundida coletivamente a cada edição veiculada pelo programa. Vista por um viés mais otimista a propagação desse discurso poderia inclusive, aplicando ao nosso objeto de estudo premissas de teóricos da história

(...) reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza de “comunidade afetiva”. Na tradição européia do século XIX, em Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais complexa de memória coletiva. (Pollak, 1989, p.03).

O autor alerta para os processos de negociação que seriam mobilizados de forma a conciliar as memórias individuais e coletiva. Em uma perspectiva mais construtivista a memória deveria ser buscada a partir dos atores que articulariam, participariam de forma ativa de sua constituição. Nesse sentido vale ressaltar que ainda que a história oral, filiada à esse quadro de referência, de acordo com Pollak privilegie a análise dos excluídos e marginalizados, da minoria, essa não é a situação do personagem que colocamos em cena nessa reflexão. Editor chefe do Jornal Nacional, ele é “(...)responsável final pelo formato de texto do jornal.(....) o produto jornalístico de maior importância hoje no Brasil” (Bonner apud Travancas, 2007, pp.130-131). A memória do Jornal Nacional segundo as percepções e lembranças de William Bonner será recuperada nesse artigo em uma série de dois episódios, para usar uma expressão que no discurso do programa está associada à apresentação de reportagens que foram produzidas com tempo, produção e edição especiais. Em um primeiro momento serão recuperadas as observações realizadas em dezembro de 2001, durante pesquisa para a tese de doutorado da autora, em seguida o percurso rumo a memória do JN partirá da entrevista concedida a Isabel Travancas em 2004, e publicada em 2007, em associação com o bate papo com os apresentadores do Jornal Nacional, gravado também em 2004 e parte do DVD comemorativo dos 35 anos do programa. Jornal Nacional: A busca pela credibilidade em ambiente global

A questão do profissionalismo é a principal referência dos jornalistas responsáveis pela edição do primeiro telejornal brasileiro a ser transmitido em rede. Como o cenário em tons prata, lembrando-nos da importância e imponência da “Vênus Platinada”, o período de observação direta da produção do Jornal Nacional foi uma das etapas de realização da tese de doutorado da autora, e foi marcado por um distanciamento quase asséptico entre pesquisadora e fontes. Essa característica acabou por reforçar aspectos já evidenciados por outros pesquisadores, como Ana Carolina Pessoa Temer. Um deles é a crença da equipe de que efetivamente produzem o melhor telejornalismo do país, e em conseqüência uma dedicação extra quase explícita para garantir a “supremacia”. Produtores e editores do Jornal Nacional parecem certos de que uma desatenção em suas rotinas de trabalho poderia gerar reflexos em toda a sociedade brasileira, como salienta Bonner: “Um erro no Jornal Nacional pode ser catastrófico para a vida de uma pessoa, para a estrutura de uma empresa, para a estabilidade de um governo, para o bem estar da sociedade”. Editor chefe do programa, William Bonner assume uma postura assertiva nas reuniões de pauta e produção e, como sua equipe, não trabalha com a hipótese de erros e falhas. “Nossa missão é levar aquilo que de mais importante aconteceu no Brasil e no mundo naquele dia e mais, se houver tempo suficiente, temas da atualidade que não são necessariamente factuais, mas que são atuais e relevantes”, define o editor chefe. O período em que assumiu o comando do Jornal Nacional, desde a segunda semana de setembro de 1999, é lembrado em diversos momentos da entrevista. Bonner gosta de enfatizar aspectos que marcam sua gestão, algumas vezes em oposição à anterior. Talvez como forma de marcar seu estilo na estruturação do programa, o editor chefe cita exemplos de matérias exibidas em períodos anteriores, como “o nascimento da filha do Xuxa com uma minutagem extensa” ou “o dilema sexual de uma macaca de um zoológico de Brasília que não encontrava parceiro”, para depois eleger a hierarquização dos temas como aspecto central a ser observado, assim como o que classifica como hierarquização temporal: “um tema importante não pode ter menos tempo que um tema desimportante”. Para seu editor chefe o Jornal Nacional é um programa de hard news, como os jornalistas costumam se referir às notícias quentes e/ou puramente factuais. “Quando você abre um jornal de papel dos quatro grandes do Brasil numa manhã, se você assistiu ao JN da véspera, em 99% das situações você não vai se surpreender com as manchetes da capa”, garante Bonner, para quem o que é notícia deve, obrigatoriamente, ser veiculado pelo telejornal. Segundo o editor chefe do Jornal Nacional as chamadas reportagens leves, de comportamento desapareceram do programa por um período significativo, como uma de suas estratégias para recuperar a credibilidade perdida: “Porque minha tese era de que o Jornal Nacional estava num momento de prestígio abalado pela cobertura que deu a temas talvez não tão relevantes assim. Se essa era a situação, nós tínhamos que virar e devolver o prestígio ao Jornal. E eu não vejo outra maneira de dar prestígio ao Jornal senão fazendo com que ele seja essencialmente informativo, e voltado para o que de mais importante se deu. Isso é o que se espera de um Jornal. Se sobrar tempo a gente dá mais alguma coisa.” (BONNER, 2001).

Em função dessa diretriz, uma das alternativas utilizadas na paginação ou montagem da ordem de apresentação das matérias a serem veiculadas, seria o encerramento do programa com uma matéria esportiva, freqüentemente. “Dificilmente o esporte vai me dar uma matéria que depois não caiba um “Boa noite”, tranqüilo, arejado”, avalia acrescentando que na emissora há uma norma estabelecida por Evandro Carlos de Andrade que, em casos de notícias tristes ou pesadas, determina a substituição do “Boa noite” pelo “Até amanhã”. Mas o casal de apresentadores gostaria de dizer boa noite, segundo o editor, razão para que fosse definida uma estratégia que para garantir essa forma de encerramento. Bem humorado durante quase todo o tempo, Bonner explica que as matérias leves não estão proibidas, mas lembra a questão do tempo como grande limitadora. Segundo ele a entrada de uma matéria de comportamento, por exemplo, atualmente geraria um estranhamento dentro da equipe, a mesma que atuava com o editor chefe anterior. Se for possível dentro do espaço destinado ao programa e, observando o que ele próprio definiu como hierarquização temática, haveria liberação para VT’s menos hard news, como exemplifica Bonner. Embora longa, a transcrição desse trecho da entrevista é capaz de traduzir o modelo de edição percebido pelo seu editor chefe como padrão ideal para o Jornal Nacional. “Tipo assim dois meses depois de assumir o cargo, depois de fazer esse discurso lindo que ninguém agüenta mais ouvir sobre prestígio e a nossa responsabilidade, me acontece de receber aqui uma imagem colhida por uma equipe nossa que tava na rua na zona sul de São Paulo, uma imagem de uma pata que atravessou a avenida sobre a faixa de pedestres e atrás dela todos os patinhos, uma ninhada todinha atrás dela. Aí ficamos olhando aquilo, puxa é maravilhoso, os carros pararam para ela passar. (...) Eu disse, vou dar e deixa que eu mesmo faço o texto, não deixei com nenhum editor, vocês vão ver como é que eu defendo que se dê isso. Aí fiz um texto assim: Cabeça – “Cena registrada hoje às cinco da tarde numa das avenidas mais movimentadas de São Paulo”. VT – Você está vendo a patinha e os patinhos, “Mãe e filhos atravessam a rua sobre a faixa de pedestres, com o sinal fechado, e os motoristas todos param para dar passagem à família”. Voltou. Acabou. Resultado disso, todo mundo “ah, que maravilhoso!”. Eu levei 12 segundos para registrar, esse tempo é mágico, mas pergunta se eu falei em pato? (...) Eu como jornalista de televisão de não der uma imagem de uma pata atravessando uma avenida de São Paulo, e sendo respeitada, é melhor eu ir embora daqui, arrumar outro emprego, porque uma imagem como essa vale muito. No dia seguinte me contaram que essa imagem estava na Folha de São Paulo.” (BONNER, 2001).

Apesar do exemplo, segundo o editor chefe do telejornal de maior audiência da Rede Globo a preocupação com a forma, com a veiculação de temas leves é hoje uma coisa terciária no programa. Ainda assim, segundo Bonner, seria da natureza da televisão surpreender o telespectador com uma imagem, “mas eu preciso que haja tempo”. Na receita estabelecida para o Jornal Nacional, se no encerramento há o recurso das matérias de esporte, a abertura tem que ser ocupada por uma notícia importante. Nas edições em que “as notícias se recusam a acontecer”, a primeira matéria a ser exibida no programa deve ser de um tema da atualidade que tenha grande relevância nacional, sendo necessária uma cabeça de locutor maior que a habitual: “(...) eu tenho que fazer uma cabeça mais dissertativa para que o infeliz que está em casa entenda porque diabos eu estou abrindo o jornal com aquilo”. Segundo Bonner essa alternativa de sedução do telespectador por meio de um texto de apresentação do VT mais elaborado só deve ser usada quando não há notícias, ainda que a única matéria factual seja sobre um tema árido como macro-economia. “Aí você diz, mas isso não é popular; eu sei. Mas é pior eu abrir mão de abrir com a notícia e esconder ela no jornal, é pior à longo prazo para minha imagem; a história já mostrou isso pro JN. A gente colhe lá na frente o que a gente está plantando aqui”, avalia o editor chefe que demonstra toda a preocupação de ser o principal responsável por um telejornal com 32 anos Nessa forma de concepção do JN, como uma espécie de patrimônio histórico brasileiro (ou monumento de memória), Bonner discorda com veemência de qualquer vinculação do Jornal Nacional com entretenimento: “Ele tem que ser um programa de televisão interessante sim, mas esta é a segunda coisa. A primeira é ser um produto jornalístico correto, editorialmente correto, equilibrado”. Ainda assim editor reconhece que em alguns momentos, é preciso transformar informações algumas vezes áridas em termos de ilustração em algo interessante visualmente: “As pessoas tendem a se interessar por imagens que atraem a atenção; imagens bonitas, imagens fortes, imagens dramáticas”, acrescenta. Segundo o editor chefe do Jornal Nacional, para além do interesse do público por histórias humanas, o uso dos personagens para contar uma notícia, do que ele define como humanização de temas, seria uma forma de traduzir temas de abordagem difícil não apenas em termos técnicos, mas em situações vividas por seres humanos, como o telespectador. “Isso é um fenômeno típico dos assuntos da economia, e sobretudo da macro economia que realmente é uma abstração da ciência humana e o cidadão comum tem dificuldades em compreender (...)E essa busca por tradução no Jornal Nacional é constante, histórica, isso não faz parte da minha gestão; isso é histórico”. William Bonner admite que fazer um bom programa de televisão com um conteúdo jornalístico correto em um país em que “grande parte dos problemas acontecem na macro economia” é uma tarefa difícil. Segundo ele o desafio porém seria obrigatório, já que ao transmitir informações que não sejam ao seu destino os jornalistas estariam sendo apenas burocráticos. Dessa forma o Jornal Nacional tem uma espécie de receita para o tratamento de informações econômicas, estabelecida por seu editor chefe: “Encontraremos sempre uma tentativa de 1)Fazer analogias, da macro economia para a micro economia, dos dilemas do tesouro nacional para os problemas do cidadão comum na gestão do seu orçamento doméstico; 2) Nós vamos tentar sempre fazer com que fenômenos macro econômicos cheguem numa determinada instância ao seu efeito final sobre o cidadão. De que forma você cidadão brasileiro vai perceber no seu cotidiano que um grande problema está se dando na macro economia. (...) Esse é o nosso esforço e é assim que a gente faz. Não é porque as pessoas não se concentram... É claro, em última análise elas tendem a não se interessar pelas coisas, então elas se dispersam, e quando nós dizemos alguma coisa que não está sendo compreendida em casa, nós não estamos cumprindo nossa função.” (BONNER, 2001).

Mais do que apenas cumprir a função que se espera de um telejornal, seu editor chefe parece orgulhoso do trabalho produzido, e cotidianamente recebido por uma significativa parcela da população brasileira como sua única cota diária de informação. Assim, ao longo da entrevista Bonner cita como exemplos reportagens que receberam prêmios, elogios públicos, e especialmente, que desencadearam fatos posteriormente cobertos por outras emissoras e órgãos de imprensa. Um desses exemplos, destacado da gravação, é o de uma série sobre a fome, e que ainda foi “premiadíssima no exterior”, como salienta ele. Elegendo o tema da fome como unanimidade, entre todas as correntes políticas e nações, o editor chefe do Jornal Nacional destaca o trabalho do repórter Marcelo Canellas que, com um texto “enxuto e cru, sem adjetivos”, teria produzido uma reportagem cheia de emoção, exibida ou “servida” na noite de aniversário do presidente Fernando Henrique Cardoso. Segundo Bonner três dias após o início da série de reportagens a imprensa foi chamada para uma coletiva em que foram anunciadas medidas de amparo social para vítimas da seca. “Diante de uma coisa dessas, quando acontece uma coisa assim eu brinco aqui dentro: “isso, a República se move”. É bom a gente fazer a República se mover de vez em quando, as pessoas têm que ficar indignadas com as coisas, e agir. Então é o Poder Público que tem que agir nesse caso? É. Então que aja o Poder Público. E as pessoas podem se mobilizar? Podem. Mas é preciso que o Poder Público tome providências. Quando a gente faz o poder público se mexer e a gente provoca indignação das pessoas, a gente cumpre o nosso papel.” (BONNER, 2001).

Questionado sobre a relação forma X conteúdo na edição do Jornal Nacional William Bonner quase se exaspera. A resposta fica mais ríspida e inclui uma interpretação do editor chefe do Jornal Nacional sobre uma eventual, e inexistente, insinuação da pesquisadora: “se você quiser induzir a pergunta para o lado de que se nós sacrificamos o conteúdo em nome da forma, eu te diria que talvez em um momento do passado isso tenha acontecido, acho até que aconteceu; eu vi coisas acontecendo dessa natureza”. Hoje, garante, o Jornal Nacional veicula o que de mais importante aconteceu, embora para isso em alguns momentos e, em nome da clareza, Bonner decida pela apresentação de um assunto em formato de nota ao vivo, ou pelada no jargão profissional. No que se refere à edição das matérias não haveria mais o peso do “Padrão Globo” na produção do Jornal Nacional, segundo seu editor chefe. Eu exibi no Jornal Nacional recentemente na cobertura da Guerra no Afeganistão, eu exibi reportagens, material que em outros tempos não iria ao ar de maneira nenhuma. A qualidade de áudio era péssima e mesmo a dicção de pessoas que colaboraram nessa cobertura e que não são nossos repórteres, foram para o ar. Em nome do que? Em nome de serem portadores de uma informação, de uma notícia testemunhal, estavam lá na hora em que tinham que estar. Aí você privilegia o conteúdo e sacrifica a forma. Houve um tempo em que fazer isso era impossível, impossível. (Bonner, 2001).

Durante toda a entrevista o editor chefe do Jornal Nacional demonstrou estar satisfeito com o resultado de seu trabalho, com a qualidade do programa exibido diariamente, com especial ênfase para a apresentação do que define como os fatos mais importantes do Brasil e do mundo. Reconhece que, eventualmente, há erros no Jornal Nacional como o que foi provocado por um defeito na mesa de exibição que inseriu a imagem de Fátima Bernardes em estúdio e o áudio da escalada, com as manchetes gravadas previamente pelos apresentadores, e que gerou críticas e matérias em vários jornais impressos. “As falhas na TV Globo são raras e isso as destaca”, explica Bonner a propósito do caso. O zelo pela qualidade do produto jornalístico oferecido subordinaria, inclusive, os índices de audiência. Apesar disso ele admite: “Eu tenho uma preocupação com a audiência, eu tenho que me preocupar com ela”. Segundo o editor chefe, o espelho1 do Jornal Nacional é desenhado dentro de uma fórmula diretamente relaciona à necessidade e ao desejo de (man)ter uma grande audiência. E para isso Bonner garante ter alternativas até para a apresentação de temas chatos.

1 Relação com a ordem de entrada das matérias no telejornal incluindo tempo (ainda que previsto) divisão por blocos, previsão dos comerciais, chamadas e encerramento. “Joga lá no último bloco. Porque no último bloco? Porque no último bloco eu tenho um público que é do Jornal Nacional, não importa o que eu fizer ele vai ver o Jornal Nacional porque ele gosta do Jornal Nacional ou porque pelo menos ele se sente na necessidade de ver. E eu tenho um público que não é do JN, é um público noveleiro, que está se lixando para o Jornal Nacional, mas como está quase na hora da novela, que ele não sabe exatamente a que horas vai começar, ele ligou lá. E aí, coitado, ele é obrigado a ver mesmo o que ele não quer, uma coisa importante e chata, mas ele viu. Eu fiz isso com alguns assuntos importantes e chatos. E aí com isso eu mato dois: primeiro eu mantenho a audiência em alta, porque eu não coloquei em risco minha audiência; segundo eu fiz com que mais pessoas vissem uma coisa importante, que será importante para elas. (...) Mesmo que ele seja ignorante, que ele goste de ser, que ele não atine para a gravidade da decisão de permanecer ignorante, é minha obrigação fazer com que alguma coisa entre na “cabecinha dele”, à força, nem que pra isso eu tenha que colocar essa coisa importante pertinho da novela. Porque pertinho da novela ele vai ver por osmose, mesmo não querendo ele vai ver.” (BONNER, 2001).

Segundo o editor chefe do Jornal Nacional essa receita, assim como as diretrizes e o posicionamento editorial do programa, partem do princípio de que como concessão pública as emissoras têm a obrigação de cumprir uma função jornalística, já que “o cidadão exerce sua cidadania com informação”.

Resgatando o JN....e o público: os olhares de 2004.

Na entrevista concedida a Isabel Travancas uma preocupação que se depreende do discurso de William Bonner é a tentativa de resgatar o Jornal Nacional, cujo prestígio teria ficado abalado, e especialmente a relação desse programa com o público: (...) um papel de responsabilidade social. Nós temos um papel a desempenhar. O JN é um veículo importante para isso. Tudo aquilo que pode ajudar o cidadão, não apenas a compreender o mundo, porque isso faz parte das notícias, mas aquilo que faz um cidadão estar atento para as ações sociais” (Bonner apud Travancas, 2007, p.130). Interessante ressaltar que apesar essa defesa de um público mais participativo em alguns momentos fica pressionada por uma visão do telespectador como alguém para quem seria necessário “traduzir coisas aparentemente simples”. De todo modo ao longo da entrevista Bonner ressalta que tem um compromisso silencioso com o público, de não mostrar sangue, imagens capazes de chocar as pessoas ou detalhes “escabrosos de crimes escabrosos”. Sobre a história do JN, que completaria 35 anos no período de realização da entrevista concedida a Isabel Travancas, o editor chefe atribui ao programa, textualmente, o status de conquista da televisão brasileira: “Ele surgiu num momento em que havia censura na televisão, mas com uma missão muito digna de integrar o país pela notícia” (Bonner apud Travancas, 2007, p.133). Do registro de memória do surgimento de Bonner se apagam as denúncias da Globo ter sido beneficiada pelos militares, presentes nos discursos de Chateaubriand só para recordar um dos autores, mas sua forma de lembrar deixa como vestígio a adesão do programa e da emissora a uma das estratégias da Escola Superior de Guerra, a ESG, a questão da integração nacional. As preocupações de Bonner com relação a equívocos cometidos pelo Jornal Nacional se concentram no período entre 1996 e 1999: (...)nos reintroduzimos alguns temas no JN que estavam um pouco afastados, dado o foco prioritário do jornal na gestão anterior (...)Essa gestão deu muito foco ao fait divers, às variedades, às coisas leves (...) Porque acusavam demais de apostar em coisas leves, no que não é importante (Bonner apud Travancas, 2007, pp.130-131)

O resgate da vocação do JN ao hardnews, na definição impressa por Bonner, teria ocorrido em três momentos, com ênfase nas seguintes áreas: 1º) Economia e Macroeconomia, 2º Política, negociações e discussões políticas (as palavra partidário e partido são ausências percebidas) e 3º Eleição, quando surge a menção à política partidária. A avaliação de William Bonner sobre a cobertura de eleições também de momentos historicamente relevantes para a política nacional, como a campanha pela Diretas, merece destaque na entrevista. Se antes da anistia as ausências eram motivadas pela censura, e se refletiam na qualidade do jornal então exibido, no que se refere à campanha de democratização que tomou o país entre 1984 e 1985 haveria no senso comum uma injustiça contra o Jornal Nacional, e sua abordagem: A história guardou, por imprecisões, uma imagem equivocada do que foi a cobertura da Globo. A Globo cobriu as diretas já desde o primeiro momento. Mas há polêmicas sobre o fato de que o primeiro comício das diretas foi coberto dentro de uma reportagem sobre o aniversário de São Paulo, e o que a gente chama de “cabeça” da reportagem se referiu ao aniversário de São Paulo. Havia uma pressão forte do governo militar para que não houvesse cobertura; no entanto, cobriu-se (...) E cobriu depois daquilo, mas aí já estava configurada uma traição à expectativa popular e à expectativa dos formadores de opinião. (Bonner apud Travancas, 2007, p.134)

Bonner faz críticas a cobertura das primeiras eleições diretas após o regime militar, que considerou burocrática, mas anistia a emissora da acusação de ter, pela edição do debate de 1989 ter contribuído de maneira decisiva para a vitória de . Na avaliação do atual editor chefe do Jornal Nacional o grande erro da emissora teria sido editar um debate. O jornalista ainda ressalta que “(...) isso é minha opinião pessoal, não é a opinião corporativa”, como que a insinuar que para além do cargo e da responsabilidade de editar o Jornal Nacional haveria traços de subjetividades, e de diferença na constituição de sua identidade como cidadão e como editor chefe do programa jornalístico de maior audiência da emissora. Na avaliação de William Bonner tanto a edição do quanto o do Jornal Nacional teriam errado. O primeiro, de acordo com ele, por editar como se os desempenhos tivessem sido iguais, e o JN porque “(...) botou de um jeito que parecia uma demolição. (...) Um desastre porque até hoje tem gente que lembra o que a Globo fez no debate entre Collor e Lula” (2007, p.135). Em 2002 a solução teria sido organizar um debate com antecedência, regras claras, sem edição e com proibição de utilização das imagens nas campanhas dos candidatos e nos telejornais da emissora. “Não podia mostrar no telejornal o resultado do debate. Era um compromisso” (Bonner apud Travancas, 2007, p.136). Com essa estratégia e também com o investimento em séries de reportagem como “Brasil Bonito”, premiada pela Embratel, “(...) hoje nós não temos que provar nada para ninguém” (Bonner apud Travancas, 2007, p.130). O bate papo entre os apresentadores do Jornal Nacional é uma celebração pelos 35 anos do programa, compartilhada com aqueles que tem acesso ao DVD comemorativo. E é exatamente William Bonner quem abre a conversa: “Uma coisa que impressiona muito, acho que isso deve ser para todo mundo que teve a oportunidade de apresentar o Jornal Nacional, é a relação que o público passa a estabelecer com esses profissionais” (2004). A digressão inicial parece ter sido interrompida na edição, já que após uma pausa na locução há um corta na imagem que passa a mostrar o antecessor de Bonner na bancada Cid Moreira. Aliás ao longo da conversa-debate que tem como cenário o mezanino por sobre a redação de onde diariamente o telejornal é apresentado é possível perceber uma troca constante entre o atual editor chefe e apresentador e Moreira, que passou a atuar primeiro como editorialista e depois em algumas atrações da Globo, como em algumas locuções do Fantástico. O atual editor chefe do Jornal Nacional assume uma condição de mediador do bate papo entre os atuais responsáveis pela apresentação do programa e seus antecessores. Brinca com o folclore do programa e de seus personagens, e faz um esclarecimento ao “imaginário popular” depois de recuperar, pela narrativa de Cid Moreira, que em apenas uma ocasião excepcional o JN teria sido apresentado de bermudas. É significativa a escolha do programa que o marcou à frente da bancada, questão proposta por Fátima Bernardes, e respondida por todos os participantes da conversa. Sérgio Chapelin elege uma edição de fato especial, com duas horas de duração e veiculada em um domingo, 21 de abril de 1985, quando Tancredo Neves morreu. Cid Moreira lembra da exibição do dia em que entraria no ar a novela Roque Santeiro, proibida de ir ao ar pelos censores. Léo Batista e Fátima Bernardes fazem referência a motivos mais emocionais para eleger sua edição inesquecível; o primeiro motivado pela esperança de se tornar um vencedor da loteca (desfeita ao longo da edição), ela pela sua primeira entrada ao vivo no Jornal Nacional, como repórter, e depois como apresentadora, pelo retorno às ruas após o nascimento dos filhos na cobertura da copa do mundo de 2002. Bonner por sua vez lembra que o jornal mais impactante que eu fez foi o de 11 de setembro de 2001. A lembrança é interrompida pela inserção de imagens de arquivo com a escalada daquela edição do telejornal. Bonner no estúdio sentencia: “Uma terça-feira que vai marcar a história da humanidade”. O atual editor chefe do Jornal Nacional lembra que aquela foi uma edição longa, que durou uma hora no ar, “E depois ela valeu como indicação para finalíssima do Emmy Awards, em Nova York”. A questão do público do Jornal Nacional, e da maneira como a percepção que os editores tem dele é capaz de influenciar na história do programa e no enquadramento da realidade por ele, pode ser também depreendida de uma das afirmações de Bonner. Tem dia que realmente é difícil você fazer o Jornal, mas o que é possível fazer é você impor naquele cardápio alguma coisa mais leve, uma ou duas coisas mais leves. (...) Porque elas existem. Ninguém aqui vai acreditar que ao longo de 24 horas, dentro daquele cardápio de coisas mais importantes só tenha tragédia e coisa ruim. Quer dizer, é uma forma de você se preocupar um pouco também de enxergar que há coisas boas, e dar todas as notícias. (2004).

Essa preocupação com as boas notícias ajuda a compreender a seleção de matérias que compõem o DVD comemorativo dos 35 anos do Jornal Nacional. Em lugar das imagens de arquivo de diferentes momentos da trajetória do programa há no material, dividido em dois discos, séries de reportagem veiculadas pelo programa em 2002 e 2003.

Próximos capítulos, ou em busca de conclusões William Bonner, personagem central em nossa rememoração da história do Jornal Nacional nos limites desse artigo, teria em tese mais a re-contar sobre a sua memória do programa do que explicitam suas entrevistas e participações no material comemorativo dos 35 anos do Jornal Nacional. Afinal, como nos alerta Pollak, as lembranças trazem também zonas de sombra, silêncios e “não-ditos”, embora esses não signifiquem um esquecimento perpétuo, mas um silenciamento, no presente. Na mesma perspectiva a memória coletiva subterrânea, daqueles que não tem voz, seria separada daquela que é perpetuada pela sociedade organizada, da imagem tecida por aqueles que são capazes de editar no presente as marcas publicizadas do passado, exatamente pelas fronteiras entre o dizível e o indizível, pelo confessável e o inconfessável. Nessas negociações e jogo de visibilidades, lembranças e esquecimentos, a memória reforçaria os sentimentos de pertença, de identidade com determinado grupo ou coletividade. Assim, cabe refletir sobre os momentos em que William Bonner ressalta que fala como jornalista, já que pela posição que ocupa, na bancada e na edição do Jornal Nacional, em diferentes momentos fala na primeira pessoa do plural, como nós da Rede Globo, e assume o discurso da emissora ao tornar presente o passado em sua narrativa. A identificação do personagem com o contexto da emissora e posição de poder dele, também como uma espécie de porta voz daquela, se impõe como variável e questão de pesquisa na investigação sobre a existência efetiva de uma memória particular dos profissionais quando ainda em atuação. Por ora, em lugar do “boa noite”, celebrado pelos apresentadores do Jornal Nacional, encerramos nossa edição com as palavras de seu editor chefe: “Como eu falo às vezes, brincando: “Não somos maniqueístas, mas se alguém tiver que ser bonzinho, nós somos bonzinhos. Os outros não são” (Bonner apud Travancas, 2007, p.131).

Referências:

BOCCANERA, Silio. Jogo Duplo. São Paulo: Moderna, 1997. 221p. BONNER, William. O Jornal Nacional na visão de seus editores. , dezembro de 2001. Entrevista concedida a Iluska Coutinho. BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. 262p. COUTINHO, Iluska. Dramaturgia do telejornalismo brasileiro: a estrutura narrativa das notícias em TV. Tese de doutorado. São Bernardo do Campo: Umesp, 2003. CURADO, Olga. A notícia na TV, o dia-a-dia de quem faz telejornalismo. São Paulo: Alegro, 2002. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista de Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol. 2, n.3, 1989. PATERNOSTRO, Vera Íris. O texto na TV: manual de telejornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987. TRAVANCAS, Isabel. Juventude e televisão: Um estudo de recepção do Jornal Nacional entre jovens universitários cariocas. Rio de Janeiro: FGV, 2007. 140p. JORNAL NACIONAL: 35 ANOS, 1969-2004. TV Globo Ltda. Dois discos de DVD. Rio de Janeiro: Som Livre. 300 minutos.