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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC - SP

Luana Ferraz

É mentira, Chico?: o humor em um tributo à imaginação popular

Doutorado em Língua Portuguesa

São Paulo 2019 2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC - SP

Luana Ferraz

É mentira, Chico?: o humor em um tributo à imaginação popular

Doutorado em Língua Portuguesa

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Língua Portuguesa, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira.

São Paulo 2019 3

Banca Examinadora

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A Darlete e Etevany (em memória)

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.

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Agradecimentos

Não sou muito boa em discursos. Todos sabem. Por isso os agradecimentos são curtos; ao contrário da admiração e do carinho que tenho por todos os que são citados aqui. Esta tese só existe por causa de vocês. Assim, agradeço:

A Deus e à Nossa Senhora da Penha, por terem sempre me amparado nos momentos difíceis e me dado forças para continuar.

Ao meu orientador, Dr. Luiz Antonio Ferreira, pela imensa paciência, pela disposição em ajudar e pela confiança até o último momento.

À professora Dra. Ana Lúcia Tinoco Cabral e ao professor Dr. Jarbas Vargas Nascimento, pelas valiosas contribuições dadas na Qualificação desta tese.

Ao professor Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira, pelo aceite em compor a Banca de defesa.

À professora Dra. Ana Cristina Carmelino, exemplo de profissionalismo, competência acadêmica e caráter, pelo apoio desde a graduação e pela inconteste amizade.

Às professoras Dra. Ana Rosa Ferreira Dias, Dra. Lilian Maria Ghiuro Passarelli e Dra. Dieli Vesaro Palma, pelos conhecimentos compartilhados.

À Lourdes, secretária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa, por ser solícita e amável em todos os momentos em que precisei de orientações e esclarecimentos.

Aos membros do Grupo Era, que me acolheram e me ensinaram.

À Ellen Ferreira, biógrafa de Chico Anysio e pessoa incrível que tive o prazer de conhecer, pela generosidade em partilhar informações recolhidas em tantos anos de trabalho; e ao humorista André Lucas, por facilitar esse encontro.

Aos amigos queridos, Maria Júlia Santos Duarte, Wemylla de Jesus Almeida, Leonardo Vinicius de Souza Tavares, Tatiana da Conceição Gonçalves, Renata Nobre Tomás e Thiago Zilio Passerini, pelos “rolês”, por ouvirem as minhas angústias, por me oferecerem ombros e braços em momentos precisos e por partilharem boas risadas. 7

Aos amigos da Universidade Federal do Espírito Santo e das escolas por onde passei como aluna ou professora, por me estimularem a chegar até aqui.

A Eric Bortolato Fernandes, grande amigo, por me colocar em alguns apuros e por me livrar de outros.

A Nefatalin Gonçalves Neto, pela (im)paciência de todos os dias e por sempre tentar ajudar.

À minha irmã maranhense, Maria Isabel Soares Oliveira, pelos anos de convivência, conselhos, entendimentos, desentendimentos e experiências.

À minha família, mãe, Tiê e Careca, pelo apoio incondicional e pela presença constante.

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RESUMO

FERRAZ, Luana. É mentira, Chico?: O humor em um tributo à imaginação popular. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

Esta tese insere-se na linha de pesquisa Texto e discurso nas modalidades oral e escrita e trata da produção retórica do discurso humorístico. Para tanto, propõe-se a investigar a construção do discurso laudatório nos contos do livro É mentira, Terta? (1973), de Chico Anysio. O humor é um objeto ambivalente, capaz de criticar e elevar. Mesmo que não tenha por objetivo principal provocar um debate explícito, o humor sempre provoca uma reação, seja de aceitação, seja de repúdio. A identificação dos procedimentos retóricos vinculados à produção do risível possibilita-nos perceber como um orador busca promover reflexões, (re)conceitualizações e (re)avaliações por meio de um discurso humorístico. No livro de Chico Anysio (1931-2012), encontramos dois oradores principais: o narrador e a personagem Pantaleão Pereira Peixoto, uma personagem risível. Nossa hipótese é que existem, nos discursos dos dois oradores, recursos retóricos de amplificação que permitem a constituição de um discurso laudatório a respeito da personagem e de seu grupo social. Para cumprir o objetivo pretendido, fundamentamo-nos nos pressupostos teóricos da Retórica, encontrados especialmente em Aristóteles (2005), Cícero (1997, 2002) e Quintiliano (2015a, 2015b), e das neorretóricas, compreendidos a partir de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Olbrecths-Tyteca (1974) e Meyer (2007). Para a análise das narrativas, recorremos também aos estudos de Todorov (1981) e Genette (1989), entre outros. Finda a análise dos contos, constatamos a amplificação na construção do caráter hiperbólico da personagem e na produção de narrativas encaixadas que constituem exempla com função persuasiva. Pela amplificação, a personagem se converte em um tipo que representa o seu grupo social, e a grandeza de seu caráter, que suplanta as adversidades, torna-se matéria de elogio.

Palavras-chave: Retórica; Narrativa; Humor; Chico Anysio.

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ABSTRACT

FERRAZ, Luana. É mentira, Chico?: O humor em um tributo à imaginação popular. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

This thesis is situated in the line of research Text and discourse in the oral and written modalities and addresses the production of rhetoric by humoristic discourse. It aims to investigate the construction of laudatory discourse in the book of short stories É mentira, Terta? (1973) [Is it a lie, Terta?], by Chico Anysio. Humor is an ambivalent object capable of criticism and praise. Although humor does not have the primary objective of generating explicit debate, it always causes a reaction, whether of acceptance or repudiation. Identifying the rhetorical procedures related to laughable discourse allows us to realize how a speaker intends to promote reflections, (re)conceptualizations and (re)evaluations through the means of humor. In Chico Anysio’s (1931 – 2012) book, we find two speakers: the narrator and the main character, the humorous Pantaleão Pereira Peixoto. Our hypothesis is that there are rhetorical amplification resources in the discourses of both main speakers that give rise to the constitution of laudatory discourse regarding the character and his social group. To fulfil the intended objective, our research was founded upon the theoretical framework of Rhetoric, found especially in Aristotle (2015), Cicero (1997, 2002) and Quintilian (2015a, 2015b), and the new rhetoric, as understood from the works of Perelman and Olbrechts-Tyteca (1996), Olbrecths-Tyteca (1974) and Meyer (2007). For the analysis of the narratives, we resorted to studies by Todorov (1974) and Genette (1989), among others. With the analysis of the short stories concluded, we took notice of the amplification in the construction of the main character’s hyperbolic traits and in the production of the connecting narratives that intensify persuasion. Through amplification, the character is converted into a representation of his social group, whereas the greatness of his personality in overcoming obstacles becomes subject to praise.

Keywords: Rhetoric; Narrative; Humor; Chico Anysio.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Pantaleão (Chico Anysio) ...... 23 Figura 2 – Terta (Suely May) ...... 24 Figura 3 – Pantaleão (Chico Anysio) e Pedro Bó (Joe Lester) ...... 24 Figura 4 – Níveis da narrativa ...... 91 Figura 5 – Jockey Club Brasileiro (Década de 1930) ...... 153 Figura 6 – Jockey Club Brasileiro (2009) ...... 154

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Características do exórdio 1 ...... 157 Quadro 2 – Características do exórdio 2 ...... 158 Quadro 3 – Características das narrativas-moldura ...... 160 Quadro 4 – Características das narrativas emolduradas ...... 164 Quadro 5 – Características da peroração ...... 166

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 15

CAPÍTULO I ...... 19

MEU FILHO, POR QUE VOCÊ NÃO ESCREVE UM LIVRO? ...... 19

1.1 Chico Anysio: um patrimônio nacional, por acaso ...... 19

1.2 Chico Anysio e a literatura ...... 25

CAPÍTULO II ...... 30

SE CHEGARMOS A UM ACORDO, QUEM FAZ UM NEGÓCIO SUPIMPA

SOU EU: SOBRE A RETÓRICA ...... 30

2.1 Rhetoricae: quid est? Origens, conceitos e categorias ...... 30

2.1.1 As provas...... 36

2.1.2 Os gêneros ...... 36

2.1.3 Os modos de persuadir e as relações entre Retórica e Literatura ...... 37

2.1.4 As tarefas do orador: invenção...... 42

2.1.5 As tarefas do orador: disposição ...... 46

2.1.5.1 O exórdio ...... 47

2.1.5.2 A narração ...... 48

2.1.5.3 A argumentação ...... 49

2.1.5.4 A peroração ...... 50

2.1.6 As tarefas do orador: elocução...... 50

2.1.7 As tarefas do orador: memória...... 55

2.1.8 As tarefas do orador: ação...... 57

CAPÍTULO III ...... 59

EU ELOGIO E FAÇO GRAÇA: GÊNERO EPIDÍTICO, ETHOS E A PRODUÇÃO DO RISÍVEL ...... 59 13

3.1 O gênero epidítico e os atributos do elogio ...... 59

3.2 A construção do ethos: moral e estratégia ...... 66

3.3 A retórica e o risível ...... 71

3.3.1 De onde vem o humor? ...... 71

3.3.2 O risível em Aristóteles: útil e agradável ...... 73

3.3.3 O risível em Cícero: situações e palavras ...... 74

3.3.4 Quintiliano: simulação ...... 77

3.3.5 O risível na Nova Retórica: exclusão e ironia ...... 78

3.3.6 Olbrechts-Tyteca: de volta ao cômico da retórica ...... 79

CAPÍTULO IV ...... 82

VOU CONTAR AOS SENHORES... SOBRE RETÓRICA E NARRATIVA ...... 82

4.1 Narratio e narrativa: beleza e funcionalidade ...... 82

4.2 Os jogos com o tempo ...... 87

4.3 A construção de níveis narrativos ...... 90

4.4 Sobre narrativas orais ...... 92

4.5 Os contos populares e a construção do maravilhoso ...... 96

4.6 O causo: um caso sério ...... 106

CAPÍTULO V ...... 110

TODO O CAMINHO DÁ NA VENDA ...... 110

5.1 O primeiro exórdio: uma apresentação para dizer a que veio ...... 110

5.2 O segundo exórdio: o lugar e as pessoas ...... 117

5.3 Agora sim, a narração ...... 122

5.3.1 Aspectos retóricos das narrativas-moldura (nível diegético) ...... 133

5.3.2 Aspectos retóricos das narrativas emolduradas (nível hipodiegético) ...... 140

5.3.3 Totalmente demais: a produção retórica de maravilhas ...... 143 14

5.3.4 Construção e manutenção da credibilidade do orador ...... 150

5.3.5 Peroração: a contação acabou. Será? ...... 156

5.3.6 Juntando as pontas ...... 156

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 167

REFERÊNCIAS...... 172

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INTRODUÇÃO

O humor é coisa muito séria. Tão séria que chega a ser até engraçado. Sempre o vemos por aí, caminhando destemido em meio ao desencanto e às dores, costurando a vida com fios de leveza. Ambivalente que é, costuma revelar tragédias e maravilhas. O humor pode, assim, criticar ou elevar. Mesmo que não tenha por objetivo principal provocar um debate explícito, ele sempre provoca uma reação, seja de aceitação, seja de repúdio. Portanto, nada melhor do que observá-lo a partir de uma teoria que se ocupe do contingente e da eficácia dos discursos. Chegamos, pois, à união entre humor e retórica.

Esta tese trata da produção retórica do discurso humorístico. Para tanto, propõe-se a investigar a construção do discurso laudatório nos contos do livro É mentira, Terta? (1973), de Chico Anysio, um dos principais sucessos do humorista como escritor. É mentira, Terta? é um livro que reúne as aventuras vividas e contadas por Pantaleão Pereira Peixoto, uma das mais célebres personagens criadas pelo artista cearense. Compõe esse ato retórico duas apresentações, dezoito narrativas e um fechamento.

Mas, afinal, o que nos levou à escolha desse autor? Por que não optamos por analisar produções humorísticas mais recentes? E, se escolhemos Chico Anysio, por que nos interessamos pela literatura e não por sua reconhecida atuação como ator e humorista no teatro e na televisão?

Por certo, o material de nosso corpus difere em muito das produções humorísticas mais atuais, vinculadas, em grande parte, à comédia stand up e/ou a plataformas virtuais. Durante a graduação, na Universidade Federal do Espírito Santo, tivemos a oportunidade de juntar-nos a um grupo de pesquisadores que se dedicavam ao tratamento de questões relacionadas ao funcionamento de textos e discursos de humor em diferentes gêneros e suportes. Foi dessa maneira que tivemos contato, pela primeira vez, com os textos de Chico Anysio.

Nessa ocasião, intrigou-nos o exíguo número de investigações sobre a obra do humorista, um dos maiores expoentes do humor nacional. Ainda hoje, é pequeno o número de estudos sobre a obra de Chico Anysio. Dentre eles, a maior parcela vincula-se ao campo da Comunicação e aborda a produção de 16

Chico Anysio na televisão. Por isso, decidimos conhecer, em maiores detalhes, o que o artista comunicava por escrito. Para nossa surpresa, deparamo-nos com uma diversidade de gêneros – ao longo de sua carreira, o autor publicou romances, contos (incluindo uma narrativa destinada ao público infantil), crônicas, piadas e uma autobiografia – e algumas publicações em que não se reconhecia qualquer vestígio de humor. De qualquer modo, resolvemos nos debruçar sobre aquelas que apresentassem um discurso, em algum grau, risível e que, assim, pudessem ser de alguma forma consideradas representativas na história do humor produzido no Brasil. A investigação que desenvolvemos nesta tese sem dúvida resulta do aprofundamento desse interesse.

A leitura de É mentira, Terta? (1973) revelou-nos um corpus interessante. Os textos inicialmente produzidos sob a forma de roteiros para o programa Chico City (1971) ganhavam mais profundidade quando transformados em literatura. Fora da televisão, as histórias de Pantaleão pareciam inseridas em uma argumentação maior, que preservava a graça, mas tinha ares de homenagem. Em tempos de disseminação de um humor agressivo, em que se discutem os limites, as vítimas e os algozes das produções humorísticas, interessamo-nos por investigar um discurso humorístico que não se ocupa da depreciação, mas do elogio.

A Retórica ofereceu-nos o suporte teórico-metodológico necessário a essa pesquisa. Reconhecida pelos estudiosos como um corpo de conhecimentos dos mais prestigiados na Antiguidade, a Retórica é um campo do saber que se ocupa da criação, elaboração e interpretação de discursos persuasivos, entre eles, os epidíticos, dedicados ao louvor e à censura.

Lançamos, então, nossa hipótese: o ato retórico configurado no livro É mentira, Terta? apresenta dois oradores principais, o narrador e a personagem risível, Pantaleão Pereira Peixoto; e no discurso de cada uma delas, é possível encontrar recursos retóricos de amplificação que permitem a constituição de um discurso laudatório a respeito da personagem e de seu grupo social. A partir disso, propusemo-nos objetivos específicos:

• Identificar elementos retóricos usados na produção do risível nos contos. 17

• Investigar a constituição dos ethé do narrador e da personagem protagonista, Pantaleão Pereira Peixoto. • Analisar como os expedientes retóricos são utilizados na amplificação do caráter virtuoso da personagem.

Para alcançar esses objetivos, fundamentamo-nos nos pressupostos teóricos da Retórica, encontrados especialmente em Aristóteles (2005), Cícero (1997, 2002) e Quintiliano (2015a, 2015b), e das neorretóricas, compreendidos a partir de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), Olbrecths-Tyteca (1974) e Meyer (2007).

Por se tratar de um corpus formado por um discurso que se aproxima das narrativas populares orais, recorremos também a estudos sobre a narração oral de experiências pessoais, contos populares e causos. Assim, acrescentamos, à nossa pesquisa, as reflexões de Labov (1997), Quasthoff e Nikolaus (1982), Perroni (1983, 1992), Câmara Cascudo (1984 [1952]), Alcoforado (1986), Jolles (1976), Todorov (1981 [1970]), Bentes (2000), Azevedo (2007), Batista (2007) e Hartmann (2011), entre outros.

Afora a Introdução e as Considerações finais, a pesquisa organizou-se em cinco capítulos. No capítulo I, Meu filho, por que você não escreve um livro?, apresentamos brevemente a trajetória artística de Chico Anysio, desde as imitações de locutores e atores famosos no rádio ao sucesso no veículo que o consagrou, a televisão, e à sua incursão na literatura. Tratamos, assim, da criação da personagem Pantaleão Pereira Peixoto e da publicação do livro É mentira, Terta?. A fim de melhor compreender as características da literatura de entretenimento produzida pelo humorista, recorremos às considerações de Eco (1984) sobre a cultura de massa.

O capítulo II, Se chegarmos a um acordo, quem faz um negócio supimpa sou eu, é dedicado à Retórica. Nele, partimos da Antiguidade e do estabelecimento dos limites entre a Retórica e áreas próximas, como a Dialética, e chegamos ao redimensionamento da disciplina a partir dos estudos de Perelman e Olbrecths-Tyteca (1996). Após a exposição sucinta das provas e dos gêneros propostos por Aristóteles (2005), entre os quais situamos o epidítico, apontamos a relação entre duas artes do verossímil, a Retórica e a Literatura. 18

Na sequência, trazemos uma exposição sobre as tarefas do orador, que subsidia a investigação do corpus em toda a sua extensão.

O capítulo III, Eu elogio e faço graça, destina-se a aprofundar as reflexões sobre o gênero epidítico, a construção do caráter do orador e do elogiado e a produção do risível com recursos da Retórica. Nesse capítulo, abordam-se os atributos do elogio e a sua relação com as qualidades do ethos. Além das bases dos teóricos da Antiguidade, acrescentamos, a esse capítulo, os desenvolvimentos de Meyer (2007) e Maingueneau (2011, 2016), por mostraram-se úteis na análise do ethos da personagem principal dos contos e na interação entre essa imagem e o caráter construído para ele pelo narrador. Os recursos utilizados na produção do risível são considerados a partir dos tratados de Aristóteles (2005), Cícero (2002) e Quintiliano (2015b), bem como das discussões empreendidas no âmbito da Nova Retórica por Perelman e Olbrecths-Tyteca (1996 [1958]) e Olbrechts-Tyteca (1974).

A configuração do discurso investigado exigiu-nos compreender a relação entre a narratio retórica e a narrativa. Essa discussão ocupa o capítulo IV, Vou contar aos senhores.... São apresentadas aí, as discussões dos antigos tratadistas sobre a produção retórica de narrativas artísticas. Além disso, esse capítulo traz uma aproximação entre o estudo da narratio e as teorias da narrativa; por isso abordam-se, também, assuntos como a organização temporal dos contos e a constituição de narrativas em níveis. O final do capítulo IV versa sobre as narrativas orais de experiência pessoal, o conto popular e o causo (estória oral).

No capítulo V está a análise do corpus selecionado para esta tese. Nele observamos a construção retórica da obra de Chico Anysio, do exórdio à peroração. Ao longo dessa análise, investigamos os expedientes retóricos utilizados na construção do caráter da personagem pelo narrador e na constituição, manutenção e/ou amplificação dos ethé dos principais oradores (narrador e personagem) no decorrer do discurso. Ademais, verificamos quais são os principais recursos retóricos utilizados na produção do risível e qual a sua relação com a constituição do ethos de Pantaleão. Todo esse percurso conduziu- nos a uma reflexão sobre a amplificação nos contos de Chico Anysio e, por consequência, sobre a construção do discurso de louvor na obra. 19

CAPÍTULO I

MEU FILHO, POR QUE VOCÊ NÃO ESCREVE UM LIVRO?

1.1 Chico Anysio: um patrimônio nacional, por acaso

Um rapaz magro, com olhos grandes, que contava histórias engraçadas em um programa televisivo dominical. Um homem dividido em muitos: um ator plurivalente, dono das vozes, expressões e gestos que tomavam forma em figurinos, maquiagens, cenários, e davam vida a homens e mulheres tão diferentes entre si. Quando ouvimos falar de Chico Anysio (1931-2012), é provável que imediatamente nos venha à lembrança a imagem do homem de/na televisão.

Foram, de fato, décadas de trabalho diário dedicados a esse veículo. De cara limpa, o humorista esteve no ar durante mais de dezesseis anos a partir de 1973. Era contratado por uma das maiores emissoras do país, a Rede Globo de Televisão, e como destaque da casa, possuía um quadro próprio todos os domingos, em horário nobre, na recém-criada revista eletrônica Fantástico. Como criador de tipos, encabeçou sucessos como Chico City (1973-1980), Chico Total (1981), Chico Anysio Show (1982-1990), Escolinha do Professor Raimundo (1990-1995; 2001) e Estados Anysios de Chico City (1991), e teve passagens pelo humorístico Zorra Total em diferentes momentos: entre 1999 e 2004, entre 2009 e 2010, e em 2011.

Tudo por acaso, como ele mesmo gostava de dizer. Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho nasceu em Maranguape, Ceará, em uma família “quase rica” (ANYSIO, 1992, p. 13). Mas ainda não sabia. Nem da riqueza existente, nem da penúria que viria. A memória do “Éden da infância” (ANYSIO, 1992, p. 12) formou-se pelo barulho dos pendões da cana, pelo cheiro da moenda fazendo garapa, pelas lembranças do riacho que corria atrás da casa, da ponte que conduzia do terreiro ao canavial, das noites de quermesse e dos banhos de rio.

Aos oito anos, o menino viu sua vida mudar radicalmente. Após a empresa de seu pai pegar fogo, o pequeno Francisco mudou-se com a família para o . Na capital carioca, dividia o seu tempo entre a escola, o cinema e os 20 treinos no Fluminense. Mas o dinheiro era pouco. Foi por isso que, quando adolescente, decidiu explorar seu talento para imitar as vozes dos atores famosos e locutores dos jornais cinematográficos em um programa de calouros da Rádio Nacional, e depois em outros, até vencer todos os programas de calouros do Rio de Janeiro. O sucesso nos concursos o fez sonhar com uma carreira. No entanto, a dispensa da Rádio Guanabara, onde apresentava gratuitamente um programa de imitações, pôs fim ao sonho de ser artista que durara apenas um ano. A advocacia passou, então, a dominar os seus intentos.

Antes que a Faculdade de Direito se tornasse uma realidade, uma confusão relacionada a um antigo hobby – o futebol – o reconduziu ao mundo artístico. Afinal, “nada acontece por acaso, mas por acaso é que tudo acontece” (ANYSIO, 1992, p. 44). A pelada adiada pelo esquecimento de um par de tênis levou Francisco à Rádio Guanabara, onde a irmã, Lupe, faria um teste de radioteatro. Lá, realizou os dois testes disponíveis no dia. E o resultado confirmou: sétimo lugar no teste radioator e segundo lugar no de locutor. Os vencedores seriam incorporados ao elenco da rádio. Agora, sim, uma carreira.

O ano era 1948. A partir de então, o jovem Anysio pôde espalhar por muitas horas extras a sua compulsão pelo trabalho. Além de radioator e locutor, tornou-se locutor “atrás do gol”, comentarista de futebol e redator. Esta última função, sua preferida, rendeu-lhe um título do qual se orgulhava: produtor de rádio. Escrever dava a Anysio, antes de tornar-se o famoso Chico, a possibilidade de criar. Em 1949, o talento para imitar vozes foi redescoberto e o artista foi transferido das novelas para os programas de humorismo, o novo investimento da emissora. Em pouco tempo, ele escrevia, dirigia e atuava em diferentes programas.

Ao deixar a Guanabara, Francisco Anysio passou pelas rádios Mayrink Veiga, Rádio Clube de Pernambuco, Rádio Clube do Brasil, e voltou à Mayrink, sempre escrevendo e atuando. A habilidade em escrever textos cômicos também abriu um rentável caminho para o cinema, onde teve a oportunidade de aprimorar a construção de diálogos. Ele escreveu roteiros, argumentos ou diálogos de dezoito chanchadas – filmes com uma estória romântica como pano de fundo e comédia em destaque –, protagonizadas por grandes astros da década de 1950, como Grande Othelo e Dercy Gonçalves. 21

Em 1957, Anysio chegou à televisão. Algumas de suas primeiras personagens estrearam em programas humorísticos na TV Rio e na TV Tupi, interpretados por ele mesmo ou por outros comediantes. Foi só aí que o Oliveirinha, o Anysio, o Francisco Anysio virou Chico: “Até então ninguém, em nenhum lugar, me chamara de Chico. Quem mudou isso foi e a responsabilidade se deveu à tal máquina estranha que o Manga viu no corredor” (ANYSIO, 1992, p. 87).

A máquina “estranha” vista por Carlos Manga era uma máquina de videoteipe, algo que possibilitaria à televisão se aproximar do cinema. Ao lado de Walter Clark e Carlos Manga, Chico Anysio foi um dos precursores no uso do novo recurso. Com as cenas gravadas, montadas posteriormente, e não mais ao vivo, Chico pôde desenvolver o que escolheu como objetivo de carreira: multiplicar-se. Surgia aí um programa:

[...] eu vi abrir-se ali a chance de realizar definitivamente o meu sonho. A partir da impossibilidade de ser engraçado como o Oscarito, o Costinha ou o Golias e não conseguir atingir o estágio de um Walter D’Ávila ou Brandão Filho, eu resolvera criar a minha estrada: eu ia ser aquele que faz vários. [...] A ideia do Manga era juntar todos os meus personagens num programa só. Uma coisa inédita no mundo. Eu falaria comigo, passaria por mim etc. (ANYSIO, 1992, p. 87, grifos do autor)

O programa, rejeitado na TV Rio, foi feito de forma independente e teve o nome inspirado nos shows norte-americanos: “Francisco Anysio Show. Lá é assim. [...] O nome do artista e a palavra show.” (ANYSIO, 1992, p. 88). Nome provisório, pois a sugestão de Carlos Manga por uma alteração foi logo acatada: “Chico Anysio Show é melhor, soa melhor, tem ritmo” (ANYSIO, 1992, p. 89). No mesmo ano, o Chico Anysio Show foi incluído na programação da TV Rio e da TV Record e ganhou três prêmios Roquette Pinto1: melhor programa de humor, melhor ator e melhor diretor.

No início da trajetória na TV, Chico Anysio passou pela TV Rio, Excelsior, TV Tupi. Entre as trocas de emissora, havia intervalos dedicados integralmente

1 O Prêmio Roquette Pinto foi criado em 1950 pelo apresentador e produtor de TV José Blota Júnior (1920-1999). A premiação, extinta em 1980, buscava valorizar os melhores profissionais de rádio (desde a sua criação, em 1950) e TV (a partir de 1952) do Brasil. 22 ao teatro. Depois de uma dessas pausas, em 1969, Chico chegou à TV Globo: “Sabia que isto significava minha volta definitiva à TV. Trouxe a família novamente para o Rio e assumi de vez: sou um homem de televisão” (ANYSIO, 1992, p. 123, grifos do autor). Em pouco tempo foi demitido. Em também pouco tempo, recontratado. No retorno, resolvera reciclar um antigo projeto desenvolvido no rádio e na TV Excelsior, o mesmo programa em outro formato. Surgia Chico City:

Uma cidade do interior do Nordeste. Tudo acontece lá. Passo para a dimensão daquela cidade os acontecimentos do mundo. Uma cidade com seu prefeito, seu padre, seu juiz de direito. Todos os personagens feitos por mim. (ANYSIO, 1992, p. 125)

Era 1971 e Chico Anysio chamara Arnaud Rodrigues para escrever o primeiro episódio do programa:

Arnaud Rodrigues é um dos melhores autores de humor que conheço. Talvez seja o de maior criatividade e, com certeza, é o menos querido. Isto ocorre por sua própria culpa. Ele sabe que é bom e isso o torna antipatizado. Ele trabalharia até hoje comigo se prometesse nunca mais aparecer no estúdio em dia de gravação. Sua presença cria um clima cinzento, ele faz o estúdio envolver-se em uma aura de desagrado, as pessoas mudam. Ele não percebe isso, mas todos notam e falam e reclamam. Ninguém faz nada direito na sua opinião. Ninguém sabe mais do que ele no seu entendimento. O diabo é que ele faz tudo bem. É ótimo autor e excelente compositor, mas tem esse problema: pouca gente gosta dele. Outro detalhe interessante no Arnaud: de modo geral ele só dá certo trabalhando comigo. Fizemos muita coisa juntos. (ANYSIO, 1992, p. 133).

Arnaud Rodrigues (1942-2010) foi, como Chico Anysio, um multiartista: ator, cantor, compositor, redator, humorista. Pernambucano, de Serra Talhada, ganhou fama, na década de 1970, por sua parceria com Chico Anysio. Arnaud adaptou e escreveu textos para vários quadros e programas de Chico: o seriado infantil Linguinha x Mr. Yes (1971-1972); os monólogos que contavam as histórias de Azambuja no dominical Fantástico (1975); os humorísticos Azambuja & Cia (1975), Chico City (1973-1980) e Chico Total (1981). A dupla também lançou cinco LPs, Baiano & Os Novos Caetanos – vol. I (1974), Azambuja & Cia (1975); Baiano & Os Novos Caetanos – vol. II (1975); Chico Total (1981); e Baiano & Os Novos Caetanos – A Volta (1982). Pouco tempo 23 depois, um desentendimento profissional os afastou e os humoristas seguiram carreiras separadas.

Décadas mais tarde, Chico Anysio ainda declarava que Arnaud Rodrigues “era o melhor redator de humor do país” (MIRANDA, 2010)2 e que poderia voltar a trabalhar com ele, “desde que mande o texto sem aparecer nas gravações” (ANYSIO, 1992, p. 136). Antes disso, chegaram a se reencontrar. Em 1978, Arnaud voltou a escrever roteiros para Chico City. Entre os dois humoristas não havia a mesma amizade, mas o respeito garantia o trabalho entregue. Porém, um pouco depois, o afastamento seria definitivo. Voltemos, contudo, a 1971, pois a estreia de Chico City é também a estreia de uma das personagens mais importantes da carreira de Chico Anysio: Pantaleão. Nos primeiros anos de Chico City, Pantaleão foi o grande sucesso do humorístico. O quadro do fazendeiro aposentado que contava histórias extraordinárias a seus visitantes encerrava o programa, garantia a audiência e, segundo Chico Anysio (1992), chegava a ofuscar as outras personagens.

Figura 1 – Pantaleão (Chico Anysio)3

O núcleo de Pantaleão – conjunto das personagens que sempre o acompanham e têm ações atreladas às dele – é composto por sua esposa,

2 Disponível em: . Acesso em 23 jan. 2019. 3 Fonte : . Acesso em 18 jun. 2019. 24

Tertuliana (Terta), e pelo afilhado, Pedro Bó. Terta (Suely May) é companheira e cúmplice de Pantaleão. É ela quem confirma as histórias fantasiosas do marido, que sempre lhe dirige a pergunta: – É mentira, Terta?

Figura 2 – Terta (Suely May)4 Pedro Bó (Joe Lester) é um homem tolo, que dá palpites e faz perguntas enquanto Pantaleão conta as histórias.

Figura 3 – Pantaleão (Chico Anysio) e Pedro Bó (Joe Lester)5

4 Fonte: . Acesso em 18 jun. 2019. 5 Fonte: . Acesso em 18 jun. 2018. 25

O sucesso estrondoso da personagem fez com que Chico Anysio fosse convidado a escrever um livro com as histórias de Pantaleão. Foi aí que o humorista resolveu dar “um toque literário” (ANYSIO, 1992, p. 145) aos roteiros de Arnaud Rodrigues. É mentira, Terta? foi publicado em 1973 pela Editora Sabiá e foi o primeiro livro do Brasil a ser lançado simultaneamente em livrarias e bancas de jornal. A trajetória artística de Chico Anysio se estende por mais quarenta anos em várias áreas. Porém, chegamos onde pretendíamos. A partir daqui, passaremos a apresentar apenas uma face da produção do humorista: a literária.

1.2 Chico Anysio e a literatura

Na ocasião do lançamento de É mentira, Terta? Chico Anysio já não era um estreante na literatura. No ano anterior, 1972, ele havia publicado o seu primeiro livro de contos, O batizado da vaca, também pela Sabiá. E já havia material pronto para mais dois. O segundo foi publicado no começo de 1973, O enterro do anão. O terceiro, A Curva do Calombo, foi adiado para 1974, graças ao lançamento de É mentira, Terta?, também em 1973. Em 1975, Teje preso marcou a inauguração da Editora Rocco. Daí em diante, Chico Anysio continuou a lançar pelo menos um livro por ano até 1979: Feijoada no Copa (1976); O tocador de tuba (1977); Carapau (1978); Tem aquela do... (1978); O telefone amarelo (1979). Depois de um pequeno hiato, publicou O tiete do agreste (1984); Negro Leo (1985)6; A borboleta cinzenta (1988); Sou Francisco (1992); Jesuíno, o Profeta (1993); O analista (1996); Como segurar seu casamento (2000); O Canalha (2001); Salão de Sinuca (2004); Armazém do Chico (2005); Mesa de boteco (2005); 3 Casos de Polícia (2008); Fazedores de histórias (2010) e O fim do mundo é ali (2011). Em 39 anos, foram 24 livros publicados como único autor e mais dois em coautoria com seu irmão, Elano de Paula (1923-2015), O dia em que mataram o presidente (s.d.) e Sequestro em Copacabana (s.d.).

Seus números são de fato impressionantes. Somadas, as vendas dos primeiros quatro livros ultrapassaram facilmente um milhão de exemplares.

6 Em sua autobiografia, Sou Francisco (1992), Chico Anysio registra o lançamento de Negro Leo em 1980; porém, a data correta pode ser confirmada na divulgação do livro, publicada na coluna de Vivian Wyler, no Jornal do Brasil, em 5 de setembro de 1985. 26

Inegavelmente, os livros de Chico Anysio cumpriam o seu papel na indústria cultural, estimulavam o consumo, destinavam-se às massas. A relação com a cultura de massa, no entanto, não lhe parecia incômoda ou pejorativa. Ela jamais impediu que seu trabalho fosse considerado de boa qualidade, inteligente, reflexivo, às vezes poético.

O humorista era mesmo um defensor da linguagem acessível e orgulhava- se de atrair às livrarias um público novo:

Eu nunca tive a ousadia de querer me comparar a um desses monstros sagrados da literatura, mas eu tinha uma vantagem sobre eles, modéstia à parte. Soube dessa vantagem pelos livreiros. – Seus livros põem dentro das livrarias pessoas que nunca entraram numa. Vem gente aqui que nunca leu um livro, gente que não sabe nem se pode tocar num, se pode abrir numa página e dar uma lida. E o mais importante, Chico: sempre voltam pedindo outro ou uma sugestão sobre o que devem levar para ler. (ANYSIO, 1992, p. 146).

Chico Anysio provavelmente não sabia, mas tocava, em sua declaração, em um dos pontos mais recorrentes na discussão teórica sobre a cultura de massa. Em Apocalípticos e integrados (1984 [1965]), Umberto Eco convoca os pesquisadores a um debate sobre a mass media. Nessa discussão, o autor denuncia como o preconceito se estabelece em torno dessas produções a partir de dois pontos de vista. O primeiro deles, exemplificado por Nietzsche, revela uma desconfiança a respeito de tudo o que seja produzido na medida do homem comum e tornado democraticamente acessível às multidões. Para Eco (1984), essa posição fundamenta-se em uma intolerância aristocrática, na saudade de uma época em que os bens culturais eram restritos a classes privilegiadas, e não postos indiscriminadamente à disposição de todos.

O segundo ponto de vista é considerado progressista em suas intenções. Nesse caso, a desconfiança é gerada pelo suposto poder intelectual da cultura produzida pela mídia, capaz de criar um estado de submissão coletiva que facilitaria qualquer investida autoritária. Essa posição é representada por críticos como McDonald (1962). De acordo com Eco (1984), uma das questões centrais desse posicionamento é a crítica à exploração e banalização de elementos 27 artísticos de vanguarda e sua transformação em elementos de consumo, e não a difusão de produtos de baixo nível ou sem valor estético.

Há algumas acusações comuns entre os críticos da cultura de massa (ECO, 1984, p. 46-50), sejam elas:

a) dirige-se a um grupo heterogêneo e, por isso, torna-se adaptada ao “gosto médio”. Dispensa, assim, qualquer solução original.

b) difunde, por todo o globo, uma cultura homogênea, destruindo as diferenças culturais de cada região.

c) dirige-se a um grupo que não se reconhece como tal; desse modo, não pode manifestar exigências em relação ao que é produzido, mas submete-se a suas proposições.

d) não promove renovações estéticas.

e) provoca emoções de forma direta; não as sugerem, as entregam prontas.

f) está submetida às leis do mercado; por isso dá ao público apenas o que ele deseja; ou pior, por meio da publicidade, sugere a ele o que deve desejar.

g) mesmo quando difunde produtos de uma cultura superior, os reelabora em uma forma que não exija qualquer esforço do fruidor. As obras são condensadas, reduzidas a fórmulas ou fracionadas.

h) põe os produtos de uma cultura superior no mesmo nível dos produtos de entretenimento.

i) incentiva uma visão passiva do mundo.

j) prioriza informações sobre o presente e enfraquece a consciência histórica.

l) capta apenas uma atenção superficial, o que impede o aprofundamento da experiência estética.

m) cria tipos universais que reduzem ao mínimo a individualidade e comprometem a consolidação das experiências.

n) desenvolve uma ação socialmente conservadora, pois fundamenta-se no senso comum. 28

o) é conformista.

p) apresenta-se como um instrumento educativo de uma sociedade paternalista e controladora.

Como há os acusadores, há naturalmente os defensores da cultura de massa; muitos, segundo Eco (1984), simplistas, sem perspectiva crítica ou demasiadamente apaixonados, mas alguns otimistas que permitem ver além. Os pontos centrais da defesa também são listados pelo autor (ECO, 1984, p. 51- 57):

a) a cultura de massa nasce em qualquer sociedade em que os cidadãos participam com igualdade de direitos na vida pública, no consumo e no acesso aos produtos dos meios de comunicação.

b) a cultura de massa não ocupou o espaço de uma cultura superior, apenas alcançou massas enormes que antes permaneciam afastadas de qualquer benefício cultural.

c) por acúmulo, a informação pode tornar-se formação.

d) os produtos de entretenimento divulgados pela cultura de massa não representam um signo especial de decadência dos costumes, visto que as multidões sempre desfrutaram, com o mesmo propósito, de formas não necessariamente superiores, como os duelos entre gladiadores.

e) no fundo, uma homogeneização do gosto poderia contribuir para unificar as sensibilidades nacionais e abrandar os efeitos do colonialismo em algumas regiões.

f) a cultura de massa promove a divulgação de obras valiosas, na íntegra, a preços reduzidos.

g) a dessensibilização não é acontece apenas com os produtos da cultura de massa, mas ocorreu em todas as épocas frente à difusão intensiva de bens culturais.

h) as informações difundidas pela cultura de massa estimulam a participação dos cidadãos nas questões sociais. 29

i) a cultura de massa não é sempre conservadora. As novas linguagens produzidas no cinema, na televisão, no rádio e no jornalismo trouxeram renovações estilísticas e promoveram desenvolvimentos nas chamadas artes superiores.

Criticar fervorosamente a cultura de massa é manter-se apegado a uma condição que não mais nos pertence, a um elitismo desnecessário. Isso não significa, todavia, que devamos defendê-la sem critério. Qualquer defesa que se preze a respeito da cultura de massa não pode deixar de considerar que a maior parte dela é produzida por grupos de alto poder econômico, que têm em vista algum benefício. O possível consumidor é impelido a desejar o produto, bem como a substitui-lo rapidamente. Daí resulta uma inevitável relação de persuasão entre produtor e consumidor.

Se a cultura do entretenimento não pode deixar de se submeter às leis da oferta e da procura e exige a presença de um grupo de produtores e de uma massa de consumidores que desfrute das produções, resta-nos a possibilidade de promover uma intervenção crítica que estabeleça uma relação menos paternalista e mais dialética entre produtores e consumidores. Para isso, é necessário desenvolver um conhecimento objetivo a respeito das produções da cultura de massa. É nesse sentido que, segundo Eco (1984), colaboram os pesquisadores, e é nesse sentido que seguimos, em um dos caminhos sugeridos por ele: a investigação retórica da linguagem na literatura de massa.

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CAPÍTULO II

SE CHEGARMOS A ACORDO, QUEM FAZ UM NEGÓCIO SUPIMPA SOU EU: SOBRE A RETÓRICA

2.1 Rhetoricae: quid est?

A sobrevivência de uma sociedade depende, em grande medida, das diferentes formas de comunicação que a constituem. Não é por acaso, portanto, que a realização de um ato comunicativo eficaz atrai o interesse e suscita a admiração dos mais variados públicos. Por isso, discursos reconhecidos pela eficácia – dentre os quais frequentemente se enquadram aqueles que ensinam, agradam ou emocionam – amiúde se convertem em objetos de tratamento científico, sejam eles tomados das situações cotidianas ou de discussões sobre grandes questões de interesse coletivo. Nessa perspectiva colaboram as reflexões desenvolvidas no âmbito da Retórica.

Conforme nos lembra Alexandre Júnior (2005), a compreensão sobre o estatuto da Retórica, seu propósito, objeto e conteúdo ético variou ao longo dos séculos. Ainda na Antiguidade, passou de fornecedora dos instrumentos de persuasão, no Górgias (acesso em 18 nov. 2017)7 de Platão (ca. 427 a.C. - 347 a.C.), à arte que permite distinguir os meios de persuasão mais adequados a cada caso, na Retórica (2005)8 de Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), e à ciência do bem falar, nas Instituições oratórias (2015a, 2015b. 2016a, 2016b [ca. 95

7 As datas atribuídas aos diálogos platônicos correspondem apenas às das obras consultadas na elaboração desta tese, visto que a cronologia dos diálogos constitui matéria controversa. Para dar uma ideia aproximada da ordenação cronológica mais aceita, valer-nos-emos do exposto na “Apresentação” escrita por Fernando Eduardo de Barros Rey Puente para a Introdução aos diálogos de Platão (2002), de Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Assim, temos que “entre 399 e 390 a.C., Platão teria redigido o Hípias menor, o Íon, o Laques, o Cârmides, o Protágoras e o Eutífron; de 390 a 385, o Górgias, o Mênon, a Apologia de Sócrates, o Críton, o Eutidemo, o Lísia, o Menexemo e o Crátilo; entre os anos de 385 e 370, o Fédon, o Banquete, a República e o Fedro; de 370 a 347/346, o Teeteto, o Parmênides, o Sofista, o Político, o Timeu, o Crítias e o Filebo e, por fim, nos anos 347/346, as Leis” (PUENTE, 2002, p. 23). 8 Assim como as obras de Platão, os escritos aristotélicos possuem cronologia polêmica. Por esse motivo, optamos por indicar apenas a data da edição utilizada nesta tese. De qualquer modo, estima-se que a Retórica tenha sido escrita, em sua maior parte, no terceiro período da atividade filosófica de Aristóteles, o qual coincide com o seu período de atividade no Liceu (335 a.C. - 322 a.C.). Ao lado da Retórica, compõem o terceiro período obras metafísicas, científicas, políticas, lógicas (como os Tópicos), éticas (como a Ética a Nicômaco) e estéticas (como a Poética). 31 d.C.]) de Quintiliano (ca. 35 d.C. - 100 d.C.), para citarmos apenas algumas das posições mais conhecidas.

A despeito das muitas conceituações que já lhe foram atribuídas, a Retórica estabeleceu-se, em sua extensa trajetória, como uma arte da comunicação que se ocupa da polêmica ou de tudo o que está sujeito à discussão. Preservada essa vocação inicial, percebemos, contemporaneamente, uma tendência a leituras que partem do reexame da Retórica greco-latina e da expansão proposta, em meados do século XX, pela Nova Retórica de procedência perelmaniana.

O resgate e o alargamento dos pressupostos greco-latinos discutidos por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]) refletem uma negação das interpretações “verdadeiras” típica de sua época. Segundo Morin (2003, p. 69), até a metade do século XX, a maior parte das ciências praticava o reducionismo como método de conhecimento (o conhecimento do todo precedia e conduzia ao conhecimento das partes) e o determinismo como conceito norteador. Desse modo, qualquer recurso ao acaso ou a uma imaginação produtiva e criadora tendia a ser omitido em prol da aplicação de uma lógica mecânica aos problemas humanos.

Em 1958, data de publicação do Tratado da argumentação do filósofo polonês, o apreço pela racionalidade ainda dominava a produção dos discursos, exigindo-lhes uma estruturação ordenada, muito mais próxima da lógica cartesiana e do que conhecemos por científico. Ao admitir o verossímil em todos os discursos, Perelman propõe que uma estruturação baseada em recursos argumentativos diferentes da lógica formal não provoca disjunção entre o científico e o literário, o filosófico e o estético, o retórico e o lógico, mas revela uma validade funcional que se aproveita das crenças e valores hierarquizados da sociedade em que o discurso se efetua.

A racionalidade tratada por Perelman aponta para a especificidade que delineia o quadro da argumentação, no qual predomina uma lógica própria, do domínio da incerteza e do plausível (cf. GRÁCIO, 1993). Nos processos argumentativos, nota-se a ligação estreita entre as evidências racionais e não- racionais (paixões e preferências), uma vez que ambas atuam conjuntamente para “[...] provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes 32 apresentam ao assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4), ou na “negociação da diferença entre os indivíduos”, como escreveria o também filósofo Meyer (2007, p. 25) décadas depois da publicação do Tratado da argumentação (1996).

Mantendo-se fiel às suas origens, a Nova Retórica, em seus vários desdobramentos, reconhece a antifonia nos discursos, isto é, a possibilidade de que “verdades” discursivamente construídas, mesmo que sustentadas por bons argumentos, sejam contestadas por um contradiscurso (cf. FIORIN, 2015, p. 23). O caráter prático e utilitário da Retórica, visto desde o que foi acordado como o seu início, nas lutas reivindicatórias pela posse das terras na Sicília do século V a.C., se conserva no espaço da comunicação contemporânea, permeada por discursos que buscam convencer ou conduzir à ação, mas de modo algum a afastam do diálogo, da construção conjunta entre homens que se encontram em diferentes posições ou entre o homem e o outro de si mesmo, princípio que, já na sistematização aristotélica, a fez ser considerada semelhante à Dialética.

De acordo com Perelman (1997, p. 7), “o raciocínio dialético, em Aristóteles, é aquele cujas hipóteses iniciais são racionais, ou seja, aceitas pelo senso comum, pela grande maioria dos homens ou pelos mais sensatos dentre eles”. Segundo essa perspectiva, ambas, Dialética e Retórica, assentam-se na doxa, espaço onde não se discutem verdades ou certezas, mas opiniões. Na medida em que traz em seu cerne uma tensão entre discursos, fruto da discussão de valores, hierarquias ou preferências, o movimento persuasivo pode ser considerado também dialético. Nesse contexto, a Retórica funciona como “[...] uma cunha para abrir o ouvido do outro, um chamamento para que este preste atenção ao que está a ser dito, uma forma de fazer emergir a consciência, um meio de levar a pessoa a, mais do que reagir a ‘stimuli’, assumir uma posição reflexiva” (GRÁCIO, 2010, p. 41).

É importante lembrar que, antes da reabilitação da Retórica por Aristóteles, esta arte9 ocupava um patamar inferior, graças à exaltação da Dialética por Platão. No Fedro (2000), o discípulo de Sócrates apresenta a

9 Utilizamos o termo “arte” como tradução de téchne, em um dos sentidos fundamentais do grego clássico: “conjunto de regras ou método que objetiva produzir algo” (DINUCCI, 2008, p. 30), sentido este assumido por Aristóteles na Retórica (2005) e na Ética a Nicômaco (1991) e por Platão em diálogos como Íon (2009) e A República (2006). 33 psicagogia, “boa retórica” que persuade as almas para o melhor, ou seja, para a verdade; e a “má retórica”, a logografia praticada por oradores como Górgias e Trasímaco, arte10 para a qual não importa a verdade, mas a aparência. A “boa retórica” é identificada por Platão como a retórica filosófica, conhecida como Dialética; já a “má retórica”, que defende indiferentemente o justo e o injusto, é a Retórica tal como a conhecemos e que, para o filósofo, era praticada indiferentemente por retores e sofistas.

Segundo a perspectiva platônica, o método dialético está apoiado na tríade pergunta-resposta-refutação. Desse modo, as ideias particulares associadas a um conceito são reunidas na elaboração de uma síntese, posteriormente decomposta e investigada. Trata-se, como se vê, de um procedimento infinito de busca racional pelas ideias puras. É isso que associa a Dialética à formação dos filósofos, tão prestigiados por Platão. A produção discursiva resultante desse processo de “formação das almas pela palavra” (BARTHES, 1975, p. 153) não consiste, portanto, na produção de discursos impactantes e verossímeis, mas em uma argumentação a serviço de um pensamento “verdadeiro”.

Entretanto, ainda na Grécia, a aplicação da Dialética expandiu-se para além dos limites da filosofia platônica. Apreciadores das competições físicas e intelectuais, os gregos exerciam a Dialética como uma disputa racional em que dois adversários, possuidores de teses contrárias, se enfrentavam diante de um público. A intenção de cada um dos debatedores era manipular o discurso de modo a convencer a audiência e silenciar o oponente. Embora essa prática pareça estranha às normas de conduta contemporâneas, por semelhar um jogo em que se busca “vencer a qualquer custo”, não havia, no embate dialético, qualquer implicação moral. Tratava-se apenas de vencer um debate, utilizando- se dos melhores argumentos e respeitando-se as regras da lógica.

Foi assim que a Dialética abandonou o verdadeiro e se aproximou do verossímil e, por conseguinte, da Retórica. Corroborando esse raciocínio, Aristóteles fez questão de colocar as duas artes lado a lado em alguns de seus

10 A condição de arte da logografia é permanentemente questionada por Platão no diálogo, visto que, para o filósofo, a prática que se nutre das opiniões correntes e desconsidera a busca pelo conhecimento verdadeiro dos objetos de saber não é merecedora desse estatuto. 34 tratados sobre a elaboração dos discursos, como os Tópicos e a Retórica. No primeiro, o estagirita marca as distinções e as semelhanças entre a Retórica, a Dialética e a Analítica. Nele, o filósofo afirma que a Dialética e a Analítica se valem de um método argumentativo similar, visto que apresentam uma estrutura composta por silogismos11 organizados em forma de perguntas e respostas. A diferença consiste na natureza dos silogismos, formados por premissas verdadeiras, no caso da Analítica; e por premissas verossímeis, no caso da Dialética.

A Retórica se afasta das duas artes por materializar-se em discursos longos e utilizar-se de entimemas12 e exemplos. Contudo, a aproximação com a Dialética é assinalada, conforme já mencionamos, no caráter verossímil das premissas dos raciocínios retóricos e dialéticos, bem como no convencimento, que configura a finalidade das duas disciplinas – ainda que, no caso da Retórica, sejam acrescidos artifícios emocionais que facilitem a persuasão. A Analítica, por sua vez, parte do verdadeiro e tem por fim a demonstração. Desse modo, é interessante notar o total afastamento proposto pelo filósofo entre a Retórica e a Analítica, ou, se preferirmos, entre a Retórica e o raciocínio demonstrativo.

No primeiro capítulo do livro I da Retórica, Aristóteles novamente aproxima a Retórica da Dialética, e sublinha sua disparidade em relação às técnicas sofísticas, ao ressaltar que a “verdadeira” Retórica se assenta em provas obtidas por meio de um raciocínio correto, ao passo que a retórica dos

11 Conjuntos de proposições logicamente encadeadas que conduzem a uma conclusão válida. Compõem-se de três premissas: uma principal, uma continuativa e uma conclusiva. A fim de que se estabeleça a relação de consequência entre as premissas antecedentes (principal e continuativa) e a conclusão, segue-se uma tal disposição dos termos: o termo médio é repetido nas duas premissas antecedentes, o que garante que os termos maior (presente na premissa principal) e menor (exposto na conclusão) sejam comparados entre si, uma vez que ambos mantêm relação com o termo médio. Temos, portanto: 1) Premissa principal: B é A. 2) Premissa continuativa: Ora, C é B. 3) Conclusão: Logo, C é A. Ou, utilizando-nos de um famoso exemplo de silogismo: 1) Todo homem (termo médio) é mortal (termo maior). 2) Ora, Sócrates (termo menor) é homem (termo médio). 3) Logo, Sócrates (termo menor) é mortal (termo maior). 12 Raciocínio que assume a aparência de um silogismo incompleto pela omissão de uma das premissas na estrutura superficial. Conforme observa Tringali (2014, p. 143), o entimema (ou silogismo oratório) se encontra frequentemente “dissolvido no texto”, isto é, não se apresenta rigorosamente esquematizado do ponto de vista formal, com premissas afastadas, ocultas ou invertidas, o que exige um comprometimento ativo do leitor na reconstrução do raciocínio exposto no discurso. 35 sofistas se vale de raciocínios falsos, camuflados por efeitos estilísticos que visam mais à emoção que à deliberação sensata.

Na obra aristotélica, a Retórica instituiu-se, portanto, como uma contraparte da Dialética. Distantes dos raciocínios analíticos, demonstrativos e impessoais, Dialética e Retórica se fundamentam naquilo que é aceitável, em argumentos e probabilidades logicamente válidos, para fazer com que determinados juízos prevaleçam na discussão de questões controversas. As duas disciplinas diferenciam-se, entretanto, pelo auditório visado: à Dialética, interessam os argumentos utilizados em uma discussão com apenas um interlocutor; à Retórica, as técnicas adequadas ao convencimento de um auditório amplo, carente de conhecimentos especializados sobre a questão debatida.

Essa linha divisória, traçada pela Retórica Antiga, foi ultrapassada pela Nova Retórica. Nessa nova perspectiva, a Retórica, agora também concebida como uma teoria da argumentação, passou a tratar de discursos sobre qualquer matéria, dirigidos a qualquer tipo de auditório, seja ele composto por um só indivíduo ou por toda a humanidade. Com as contribuições de Perelman (1996, 1997a, 1997b), a Nova Retórica retomou a lógica filosófica e englobou a dialética dos antigos. Assim, tornou possível a investigação de todo o pensamento produzido na discussão de questões enraizadas no seio social que exigem métodos de raciocínio para resolução de problemas que não se reduzem a cálculos e que, muitas vezes, tenderiam a ser falsamente solucionadas pelo recurso a crenças erísticas.

Como disciplina de amplo escopo, a Nova Retórica abriu possibilidades de intercâmbio entre a Retórica e disciplinas como a Pragmática, a Semiótica, a Análise do Discurso e a Análise Conversacional, entre outras, tal como apontam autores como Mosca (2004) e Amossy (2005). Atualmente, a natureza sêmio- discursiva e enunciativo-pragmática da Retórica se manifesta, mais que pela produção, pela leitura e análise das relações entre os signos, o mundo e os sujeitos em enunciados persuasivos, nos quais se verifica a interação entre as provas fornecidas pelo próprio discurso.

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2.1.1 As provas

Em Retórica, admite-se a existência e a utilidade de provas intrínsecas (de natureza técnica) e extrínsecas (que não dependem da elaboração técnica do orador). Dentre as provas extrínsecas constam, por exemplo, os testemunhos, os contratos, as leis e as citações de autoridades; ao passo que as provas intrínsecas podem ser divididas em lógicas, éticas e patéticas. Embora qualquer discurso possa se valer dos dois tipos de prova, a presença de provas extrínsecas em discursos ficcionais se restringe a casos em que a criação de um “efeito de realidade” mais consistente se torna imprescindível para a consecução de objetivos específicos.

O logos diz respeito ao próprio discurso, ao que ele “demonstra ou parece demonstrar” (ARISTÓTELES, 2005, p. 96). Sendo assim, as provas lógicas concernem aos arranjos internos da linguagem e compreendem os raciocínios dedutivos (silogismos oratórios) e indutivos (exemplos). As provas éticas e patéticas, por sua vez, são chamadas de subjetivas e pertencem ao âmbito da interlocução. A prova patética “mobiliza as paixões do auditório para obter sua adesão afetiva à causa do falante” (DECLERCQ, 1992, p. 45-46, tradução nossa)13. Corresponde, assim, às emoções que, provocadas pelo orador, são capazes de influenciar o julgamento do auditório (cf. ARISTÓTELES, 2005). O ethos se refere ao caráter ou à imagem moral do orador. Convém, no entanto, lembrar que a imagem moral mencionada pelo autor não diz respeito à natureza do ser “real”, do homem no mundo – ao menos na concepção aristotélica –, mas a uma dimensão do próprio discurso. Voltaremos a essa noção no capítulo III.

2.1.2 Os gêneros

As três provas citadas (logos, ethos e pathos) se articulam na construção dos discursos pertencentes aos diferentes gêneros oratórios, divididos, de acordo com Aristóteles (2005), em judicial, deliberativo e epidítico. Essas três categorias de discurso distinguem-se, sobretudo, pelo papel assumido pelo auditório, de juiz ou espectador. Caso se comporte como juiz, o auditório poderá

13 No original: “[...] mobilise les passions de l‘auditoire pour obtenir son adhésion affective à la cause de l’orateur”. 37 se pronunciar sobre o passado, no caso do gênero judicial; ou sobre o futuro, no caso do deliberativo. Assim, no discurso judicial, o orador acusará ou defenderá, levando em conta uma questão ética (o justo ou o injusto); ao passo que, no discurso deliberativo, ele aconselhará ou desaconselhará decisões de caráter político, segundo a provável utilidade ou inutilidade da causa para a comunidade em questão. Caso se comporte como espectador, o auditório se pronunciará a respeito do talento do orador. Nesse caso, o produtor do discurso se valerá de critérios estéticos para censurar ou louvar algo ou alguém, com base no que é considerado belo/agradável ou feio/desagradável. Nesta pesquisa, interessa- nos mais de perto este último tipo de discurso, o qual retomaremos no capítulo III.

2.1.3 Os modos de persuadir e as relações entre Retórica e Literatura

Como dissemos, os discursos de que se ocupa a Retórica são aqueles cuja finalidade essencial é persuadir, isto é, levar alguém a aceitar uma opinião sobre uma questão polêmica e rejeitar a posição contrária. Essa é a explicação que se relaciona etimologicamente ao verbo persuadere, composto pela união do prefixo per (de modo completo) e do verbo suadere (aconselhar), do qual deriva persuadir.

Persuadir não é, entretanto, uma tarefa tão simples quanto parece. Conforme observa Tringali (2014, p. 51-52), já na Retórica antiga (que contempla a sistematização aristotélica e a herança latina), fazia-se a distinção entre as tres persuadendi viae, ou os três modos de persuadir. Os Tria officia são arrolados por Cícero no tratado De Oratore: “[...] todo o sistema retórico se baseia em três pontos com o intuito de persuadir: provar que o que defendemos é verdadeiro, conciliar a simpatia do nosso auditório e ser capazes de levá-los a qualquer estado de ânimo que a causa possa exigir”14 (CICERÓN, 2002, p. 254, tradução nossa).

14 No original: “[...] todo el sistema retórico que tiene se apoya en tres puntos con vistas a la persuasión: probar que es verdad lo que defendemos, conciliarnos la simpatía de nuestro auditório y ser capazes de llevarlos a cualquier estado de ánimo que la causa pueda exigir”. 38

Esses três deveres, atribuídos ao orador, podem ser resumidos pelos verbos docere (ou probare), placere (ou delectare) e movere (commovere ou flectere), traduzíveis por ensinar, agradar e comover. Os dois últimos conceitos são entendidos de modo relativamente consensual. O movere apela para os sentimentos. Consiste em sensibilizar o auditório, conduzindo-o pela força das paixões. O placere relaciona-se ao bom gosto, à persuasão centrada no critério estético. Nesse caso, a ênfase recai sobre o estilo, seus arranjos inusitados e figuras de linguagem.

Ao contrário das interpretações apresentadas, as que são feitas em torno do conceito de docere mostram uma divergência relevante. Para Platão e seus sucessores, o ensinar (διδάσκω), compreendido pelo conceito de docere, não se relaciona ao convencimento, mas a uma forma de dar acesso ao saber.

É nesse sentido que o filósofo ateniense questiona, no Mênon (2001), a capacidade de ensinar da Retórica. Para que se compreenda melhor essa passagem, convém esclarecer que o diálogo Mênon trata da definição da virtude e, ainda mais, de uma aporia sobre a possibilidade de se adquirir o conhecimento. Sendo assim, aponta para questões que serão desenvolvidas em diálogos posteriores, tais como o conceito de reminiscência (anamnesis) e sua relação com os mundos sensível e inteligível e com o método dialético, discutidos no Sofista.

Para Platão, o método dialético permite captar as ideias em relação à totalidade, isto é, no contato com ambos os mundos (sensível e inteligível). Mas ele não se esgota aí. Há, no processo, uma dimensão metafísica à qual já nos referimos: o método compõe-se de movimentos ascendentes (de síntese) e descendentes (de divisão), que visam a possibilitar a anamnesis, isto é, “o reencontro da alma com a verdade” (PAVIANI, 2001, p. 55), ou a atualização do conhecimento natural até então esquecido.

Ao propor o acesso ao conhecimento verdadeiro como resultado de um processo intrasubjetivo e não intersubjetivo, como apregoavam os sofistas – aos quais identificava os demais retores –, Platão contesta a capacidade da Retórica de conduzir os homens honestamente à deliberação racional, ou seja, de conduzi-los sem a interferência das paixões ao conhecimento para além da 39 opinião (doxa: δοξα), o qual atenderia, de fato, aos interesses da pólis. Segue o trecho do diálogo, no qual Sócrates ironiza a educação propagada por Górgias:

Mênon: Podes dizer-me, Sócrates: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém aos homens por natureza ou por alguma outra maneira? Sócrates: Até pouco tempo, Mênon, os tessálios eram renomados entre os gregos, e admirados, por conta de sua arte equestre e de sua riqueza. Agora entretanto, segundo me parece, também o são pela sabedoria. [...] O responsável por isso entre vós é Górgias. Pois, tendo chegado a vossa cidade, fez apaixonados, por conta de sua sabedoria, os principais tanto dos alêuades, entre os quais está o teu apaixonado Aristipo, quanto dos outros tessálios. E, em especial, infundiu-vos esse costume de, se alguém fizer uma pergunta, responder sem temor e de maneira magnificamente ativa, como é natural aqueles que sabem, visto que afinal ele próprio se oferecia para ser interrogado, entre os gregos, por quem quisesse, sobre o que quisesse, não havendo ninguém a quem não respondesse. Por aqui, amigo Mênon, aconteceu o contrário. Produziu-se como que uma estiagem da sabedoria, e há o risco de que a sabedoria tenha emigrado destas paragens para junto de vós (PLATÃO, 2001, p. 70-71, grifos nossos).

De acordo com Platão, a paixões são marcas de nosso aprisionamento ao mundo sensível. Na filosofia platônica, essa espécie de perturbação, que nubla o entendimento e arrasta o juízo, é bem representada na Alegoria da Caverna, apresentada no capítulo VII de A República, e seus perigos são atentamente sublinhados pelo autor: não apenas acreditamos serem verdadeiras as sombras que vemos diante de nós, mas, libertos e guiados em direção à luz, não contemplamos a Verdade facilmente; ainda por alguns instantes, nos mantemos apegados, de forma irrefletida, às sensações alcançadas ou meramente prometidas que nos alimentam. Esse é, para Platão, o grande problema da Retórica: ela não ensina; ela apaixona. Por isso, permite e incentiva juízos equivocados.

Essa é a mesma crítica que o filósofo tece, ainda em A República, quando se refere às vantagens e, em especial, às desvantagens da Literatura:

40

Por conseguinte, Glauco, quando encontrares encomiastas de Homero a dizerem que esse poeta foi o educador da Grécia, e que é digno de se tomar como modelo no que toca a administração e a educação humana, para aprender com ele a regular toda a nossa vida, deves beijá-los e saudá-los como sendo as melhores pessoas que é possível, e concordar com eles em que Homero é o maior dos poetas e o primeiro dos tragediógrafos, mas reconhecer que, quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazível na lírica ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere em todas as circunstâncias, o melhor (PLATÃO, 2006, p. 306, grifos nossos).

Na concepção platônica, a Retórica, assim como a Literatura, é incapaz de educar, já que, por excitar as paixões, torna os homens reféns da ilusão e do desejo. Desse modo, será agradável, mas inútil para a aquisição do conhecimento e para a gestão da vida e da Cidade.

No que toca à Literatura, a incapacidade de educar ou a inutilidade da instrução oferecida será contestada abertamente por Horácio em sua Arte Poética (1984), no século I a.C. Veja-se a seguir o trecho em que o autor trata da finalidade da poesia:

Os poetas ou querem ser úteis ou dar prazer ou, ao mesmo tempo, tratar de assunto belo e adaptado à vida. Se algum preceito deres, sê breve, para que rapidamente apreendam e decorem as tuas lições os ânimos dóceis e fiéis de quem te ouve: tudo o que for supérfluo ficará ausente da memória, carregada em demasia. As tuas ficções, se queres causar prazer, devem ficar próximas da realidade e não se pode apresentar tudo aquilo em que a fábula deseja que se creia, como quando se tira viva do ventre de Lâmia a criança há pouco por esta devorada. As centúrias dos mais velhos repudiam todo o poema que não for proveitoso, mas os que pertencem à tribo de Ramnes não gostam, desdenhosos, dos poemas austeros. Recebe sempre os votos, o que soube misturar o útil ao agradável; pois deleita e ao mesmo tempo ensina o leitor: é este o livro que dá dinheiro aos Sósios, que passa os mares e oferece ao célebre escritor imortal renome (HORÁCIO, 1984, p. 105-106, grifos nossos).

Perceba-se que, para Horácio (1984), a arte poética instrui ou agrada (prodesse aut delectare), ou instrui agradando – o que é ainda melhor –, sendo dulce et utile. Nessa mesma citação, também reconhecemos o objeto do conhecimento que a Literatura é capaz de dar ao homem, não apenas segundo 41

Horácio, mas de acordo com toda a tradição clássica: o verossímil. A experiência literária propicia um conhecimento especial do mundo e dos homens baseado na doxa, que permite “compreender e regular o comportamento humano e a vida social” (COMPAGNON, 1999, p. 35).

De fato, a concepção humanista de conhecimento literário daí derivada sofreu críticas, sobretudo no que se refere à produção de um consenso social comprometido com os valores de grupos sociais específicos. Não entraremos, neste momento, no mérito do conhecimento ofertado, dos grupos aos quais ele serve ou da moral social criada por esta ou aquela experiência literária. O que nos interessa ressaltar é a reconhecida capacidade da Literatura de fornecer uma argumentação indireta, de gerar persuasão, e, por conseguinte, de, em algum grau, educar.

Apesar do investimento intelectual de Platão, a concepção de docere também se ajusta aos interesses da Retórica. Ao tratar da função educativa do discurso persuasivo, Cícero (2002) afirma que o ensino está claramente relacionado ao convencimento. À medida que ensina, o orador instrui, e, ao instruir, orienta as ideias, os juízos e os raciocínios do auditório. Essa interpretação é assegurada pelo uso que o tratadista faz do verbo probare no tratado De Oratore: “Ita omnis ratio dicendi tribus ad persuadendum rebus est nixa: ut probemus vera esse, quae defendimus; ut conciliemos eos nobis, qui audiunt; ut animos eorum, ad quemcumque causa postulabit motum, vocemus” (CICERONE, 2009, p. 75, grifo nosso)15. O orador deve, pois, conduzir intelectualmente o seu auditório, convencendo-o da coerência das informações que enuncia.

Vemos, assim, que aproximação entre os dois campos, Retórica e Literatura, não é marcada meramente pelo primor do estilo, como enfatizado da Renascença aos anos finais do século XIX, enquanto vigorou a chamada Retórica Clássica. Como observa Tringali (2014), a Literatura se avizinha da Retórica por lidar com o verossímil. Ao contrário de outros domínios, que reivindicam a adequação do saber ao real, como a ciência e a História (ou a

15 “Assim, todo empenho em persuadir se baseia em três pontos: que possamos provar ser verdade o que defendemos; que possamos conquistar a simpatia dos que ouvem; que sejamos capazes de levá-los a qualquer estado de ânimo que a causa possa exigir” (tradução nossa). 42

História como ciência)16, a Retórica e a Literatura lidam com o que é plausível, com o que se imagina que possa acontecer em contextos específicos.

Ainda que, de modo geral, divirjam em seus propósitos – a Retórica possui um caráter mais prático e tem por finalidade precípua a persuasão, ao passo que a Literatura se vincula, sobretudo, a “uma experiência especial das paixões” (COMPAGNON, 1999, p. 35) e, atualmente, dispensa o utilitarismo –, as duas disciplinas se tocam nos encantos da linguagem ornada e no jogo entre o intelecto e o mundo das opiniões. Logo, não é de se estranhar que frequentemente os discursos literários exibam traços retóricos e discursos retóricos exibam traços poéticos, ou mesmo trechos de textos literários dispostos com o intuito de reforçar a argumentação. Mais ainda, pode-se dizer, como Tringali (2014, p. 277), que “o texto literário não se livra de todo da Retórica”, já que a elaboração da linguagem envolvida na produção da mimese objetiva conduzir o leitor (ou espectador) ao gozo intelectual, ao prazer estético e ao movimento passional.

2.1.4 As tarefas do orador: invenção

Antes de qualquer outra coisa, é necessário que o orador tenha clareza da causa que defende ou ataca e de como efetivamente a investigará, para que não incorra em ignoratio elenchi, ou seja, para que não trate a causa em termos diferentes daqueles anunciados no início do discurso. Sobre o conhecimento da causa e sua definição, Cícero (2002) indica três estados de causa possíveis: “em primeiro lugar, o que pode acontecer, o que aconteceu ou o que acontecerá; em seguida, como são [as coisas]; finalmente, como são denominadas” (CICERÓN, 2002, p. 253, tradução nossa)17. Sendo assim, cabe ao orador decidir se o seu discurso versará sobre a existência – passada, presente ou futura – de algo (status conjecturae), sobre as características que assume em determinada

16 O estatuto de ciência da História, sua relação com a ficção e com a retórica são questões problematizadas por muitos autores, dos clássicos da Antiguidade aos teóricos pós- estruturalistas. Uma interessante reflexão a esse respeito pode ser encontrada no artigo “História e ficção” (2003), de Krzysztof Pomian. 17 No original: “en primer lugar, qué puede suceder o qué há sucedido o que sucederá; a continuación, cómo son; finalmente cómo se denominan”. 43 circunstância (status qualitatis) ou sobre o nome que lhe podemos atribuir (status definitionis).

A constituição da causa e da questão (mais particular ou mais geral), a escolha do gênero, a organização das provas, a ênfase dada a cada uma das tarefas do orador são passos realizados na primeira etapa de produção do discurso persuasivo, já que a decisão de tomar a palavra implica, obviamente, uma definição do que se deve dizer. A essa etapa, denominamos inventio, em latim; ou heúresis, em grego. Nela são compreendidos dois procedimentos, didaticamente distinguidos por Tringali (2014), mas que consideramos serem, na prática, inseparáveis, sejam eles: invenire e iudicare. O primeiro consiste em encontrar as provas a serem utilizadas no discurso, o segundo, em julgar a sua pertinência em função da causa e do auditório a que o orador pretende se dirigir.

Convém assinalar que não cabe à “invenção” retórica, assentada na doxa, qualquer função criadora. Nela, o orador localiza as provas (lógicas, éticas e patéticas) que lhe permitirão defender a sua opinião ou refutar a opinião contrária da forma mais eficaz possível. Para isso, ele recorre a alguns topoi (em latim, loci). Esses “lugares” da argumentação, elencados, a princípio, nos Tópicos aristotélicos, fornecem o apoio necessário para a produção dos argumentos favoráveis ou contrários a uma tese.

Ainda que os Tópicos retirem seu nome da palavra topos, a acepção dada ao termo é considerada um tanto obscura, mesmo porque Aristóteles não lhe atribui nenhum conceito explícito ao longo de toda a obra. Graças a essa lacuna, as interpretações sobre os topoi multiplicaram-se ao longo do tempo; de modo que se chega a afirmar que, a esse respeito, restam “tantos autores, quantas definições” (THIONVILLE, 2013, l. 576).

Nesse sentido, Reboul (1998) e Thionville (2013) enumeram algumas posições principais: na primeira delas, o topos é compreendido como um argumento pronto, que pode ser utilizado em diferentes discursos ou em diferentes momentos de um mesmo discurso. Na segunda, entende-se que ele constitui uma etiqueta que designa um tipo de argumento. Segundo Thionville (2013), essa é compreensão que os professores da Academia de Veneza atribuem, em meados do século XII, a Cícero. Nas palavras do próprio cônsul: “[...] os lugares [...] são como as "etiquetas" dos argumentos, lugares a partir dos 44 quais se pode retirar tudo o que se vá dizer em um ou outro sentido” (CICERÓN, 1991, p. 55, tradução nossa).18

Também consideramos que essa postura se aproxima da adotada por Perelman e Olbrecths-Tyteca (1996) quando do recenseamento dos lugares. Levando em conta a exposição aristotélica, a dupla de pesquisadores cria algumas categorias que reúnem as premissas mais gerais, aquelas que fundam valores e hierarquias e justificam a maior parte das escolhas dos oradores, quais sejam: lugar da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência e da pessoa.

Pelo lugar da quantidade afirma-se que uma coisa vale mais que outra por motivos quantitativos. Desse modo, os bens maiores e mais desejáveis são os mais duradouros, os mais estáveis ou os que são úteis em um maior número de ocasiões (cf. ARISTÓTELES, 2007). O mesmo se aplica a valores negativos: é por apoiar-se no lugar na qualidade que o orador é capaz de dizer que um mal duradouro, permanente ou recorrente é mais grave que um mal rápido, efêmero ou pouco frequente.

Pelo lugar da qualidade exalta-se o valor do raro e do original em detrimento do comum, do trivial. Trata-se, portanto, de uma contestação ao lugar da quantidade. Nesse sentido, é possível encontrar nos Tópicos aristotélicos passagens que apontam a valorização do difícil e do exclusivo. É interessante notar, nesse caso, que a valorização do difícil se refere também às conquistas pessoais, o que leva Aristóteles (2007) a relacionar a qualidade ao esforço ou ao sacrifício.

Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), a maior parte das argumentações se baseia nesses dois lugares. Contudo, é comum que os autores das neorretóricas (e, inclusive, os próprios autores do Tratado da argumentação) também atribuam relevância aos lugares da ordem, do existente, da essência e da pessoa, os quais podem ser explicados da seguinte maneira:

O lugar da ordem afirma a superioridade do que é anterior sobre o que é posterior, das causas sobre os efeitos, etc., embora, em alguns casos, possa também justificar a superioridade do fim ou

18 No original: “[...] los lugares [...] son como las “etiquetas” de los argumentos, lugares de los que se pudiera sacar todo lo que se va a decir en uno u otro sentido”. 45

do objetivo. O lugar do existente declara a superioridade do que já existe sobre aquilo que é possível, eventual ou impossível. Sua exploração constitui uma estratégia argumentativa interessante, já que o orador parte de um acordo sobre a realidade previamente estabelecido e é desafiado a explorar aspectos inesperados da existência. O lugar da essência valoriza o indivíduo-padrão, aquele que melhor encarna uma essência, uma categoria ou uma função. E, finalmente, o lugar da pessoa afirma o valor da pessoa, tendo em conta sua dignidade, seu esforço, sua coragem, seu senso de justiça, etc. (FERRAZ, 2015, p. 34).19

A terceira posição acerca do conceito de topoi afirma que eles são fontes para o desenvolvimento de argumentos, reservatórios de onde o orador saca as provas que melhor correspondem ao contexto, à causa, ao auditório. Entendemos que essa postura se aproxima da segunda e que, talvez, nem seja realmente necessário distingui-las. Sem dúvida, todos esses conceitos tocam a doutrina aristotélica. Contudo, nenhum deles parece corresponder plenamente ao que o estagirita expõe sobre o assunto.

De acordo com Reboul (1998), em Aristóteles, o topos diz respeito a uma questão sobre a qual o orador se interroga e que lhe permite produzir argumentos e contra-argumentos. A esse respeito, é importante considerar que a ideia de questão se relaciona intimamente ao que o estagirita chama de problema, ou à matéria sobre a qual versa o raciocínio. Para Aristóteles (2007), um problema dialético é um tema de investigação que contribui para a escolha ou rejeição de algo ou para o conhecimento, seja do próprio problema ou de outro semelhante a ele. Nos Tópicos (2007), são citados, por exemplo, problemas referentes à primazia do prazer e à eternidade do universo. Em relação a esses problemas, formulam-se questões tais como: o prazer deve ou não ser escolhido em primeiro lugar? O universo é ou não eterno? Diante de algumas dessas questões, os homens são capazes de elaborar argumentos convincentes a favor ou contra cada um dos lados.

A distinção entre problema e questão é próxima da que Tringali (2014) aponta entre tema e questão. Conforme explica o autor, o tema corresponde ao assunto geral do discurso; a questão, ao assunto problematizado, de onde se

19 É possível observar, ao final da citação apresentada, a estreita relação entre os lugares da qualidade, da essência e da pessoa. 46 origina a controvérsia. Quando, pela questão, perseguimos uma resposta em termos gerais, independente das situações de tempo, lugar e pessoa, temos o que chamamos de tese; quando a questão nos direciona a respostas particulares, determinadas por circunstâncias específicas, temos uma hipótese. Dessa forma, uma questão como “o que é a justiça?” propõe uma tese; e uma questão como “o julgamento de Sócrates foi justo?” propõe uma hipótese. É ainda importante destacar que uma tese normalmente se estreita em questões mais particulares e as hipóteses dependem da formulação das questões gerais que as antecedem. Sendo assim, mesmo a distinção apontada entre as duas categorias se torna útil para evidenciar que a Retórica se ocupa, tal como observaram os gregos, de questões gerais e específicas, uma vez que o orador frequentemente transita entre as duas no tratamento de uma matéria.

Ainda acerca do topos, Thionville (2013) apresenta uma conceituação que nos parece bastante ajustada, na medida em que concebe os topoi aristotélicos como proposições que exprimem verdades universais (no caso dos raciocínios demonstrativos) ou prováveis (no caso dos raciocínios dialéticos). Assim, uma proposição como “o raro é superior ao corriqueiro” constituiria um princípio geral, um topos, a partir do qual se poderiam extrair princípios particulares, aplicáveis a questões diversas. Importa considerar que esse é um topos que não manifesta uma propriedade essencial, mas um atributo acidental, visto que o raro não é necessariamente superior ao corriqueiro. São esses, os do acidente, os topoi que servem à categorização perelmaniana. No caso de nosso exemplo, trata-se de uma proposição que pode ser alocada sob o “rótulo” perelmaniano da qualidade.

2.1.5 As tarefas do orador: disposição

A seleção das provas é acompanhada por sua organização em uma espécie de “plano”, dividido por diferentes autores, ao longo da história dos estudos retóricos, em partes que variavam em número, segundo Reboul (1998), de duas a sete. Nessa etapa, chamada disposição (dispositio ou taxis), o orador ordena o que será dito, de modo que cada coisa ocupe o seu devido lugar no discurso: qui loco dicat. Assim, ele evita a fragmentação e mantém a didaticidade do discurso retórico, que, normalmente, preza pela clareza e pela concisão – a 47 não ser que o hermetismo e a longa extensão sejam necessários para a obtenção do efeito pretendido.

De acordo com Aristóteles (2005, p. 279), o trabalho de dividir o discurso em muitas partes, praticado por seus contemporâneos, seria nada mais que “vazio e risível”, pois as partes indispensáveis de qualquer discurso persuasivo se resumiriam a duas: a exposição e a prova. A exposição do texto aristotélico consiste ao que os romanos denominaram propositio (proposição). É nela que o orador estabelece a causa, o ponto controverso sobre o qual irá debater. E embora nem sempre seja enunciada explicitamente, como nos lembra Tringali (2014), é ela que dá o resumo e a conclusão do discurso.

A prova, por sua vez, diz respeito à argumentação (argumentatio, para os latinos), parte na qual os argumentos selecionados na invenção são organizados, e que compreende duas etapas, sejam elas: a confirmação, ou o momento em que o orador expõe os argumentos que sustentam o seu ponto de vista; e a refutação, momento em que a ênfase do discurso recai no desmantelamento dos argumentos contrários. Sobre essa parte, apresentaremos alguns comentários mais adiante, uma vez que Aristóteles apresenta, na Retórica, outras seções que a podem anteceder na disposição.

2.1.5.1 O exórdio

Apesar de considerar apenas a exposição e a prova as partes necessárias de um discurso persuasivo, Aristóteles (2005) admite a existência de mais três seções: o proêmio, a narração e o epílogo. O proêmio (exordium, para os latinos) é o início do discurso. É ele que abre o caminho para a argumentação que segue. Sendo assim, deve adequar-se ao assunto desenvolvido e ao tipo de discurso escolhido. Pensando nesse sentido, Aristóteles (2005) faz algumas distinções entre os proêmios dos diferentes gêneros oratórios. Acerca do proêmio do gênero epidítico – que mais nos interessa neste trabalho –, Aristóteles afirma ser formado por elementos de louvor ou censura, conselhos (sobre a utilidade de louvar os homens de bem, por exemplo), elementos de dissuasão (quando o orador pretende manifestar posições contrárias à posição do auditório ao longo do discurso), ou fatores referentes ao auditório (quando o assunto tratado parece 48 difícil ou já foi exaustivamente discutido; caso em que orador deve desculpar- se).

Alguns elementos, porém, são comuns a todos os gêneros e dizem respeito ao orador, ao auditório, ao assunto e ao opositor (quando o discurso ocorre em um contexto de debate explícito). No que concerne ao orador, trata- se, principalmente, de refutar uma acusação a ele direcionada, com o intuito de dissipar uma possível resistência inicial do auditório à argumentação. No que tange o auditório, é desejável que o orador se esforce por colocá-lo em uma disposição favorável, por excitar nele uma paixão adequada à causa, por atrair sua atenção, ou mesmo por distrai-lo. É também nesse momento que o orador começa a construir uma autorrepresentação oportuna, apresentando-se como alguém digno de ser ouvido. Quanto ao assunto, é necessário persuadir o auditório de que o assunto tratado é importante, agradável ou do seu interesse.

2.1.5.2 A narração

A narração (para os gregos, diegésis) segue o proêmio. Nela são contados os fatos que dão razão à controvérsia tratada no discurso. Mostra-se, pois, essencial no gênero judiciário, no qual importa destacar os fatos e as circunstâncias que envolveram o crime, tanto por interesse da defesa quanto da acusação. Nos outros gêneros, deliberativo e epidítico, no entanto, a narração pode ser menos desenvolvida, fragmentada, ou até mesmo ausente. De qualquer, modo, quando presente, Aristóteles (2005) recomenda que seja clara, tão breve quanto requeira a causa, atraente e verossímil tanto quanto possível.

Mesmo que a ação narrada não seja crível, o filósofo grego aconselha que o orador se esforce no sentido de reunir componentes técnicos que permitam demonstrar que ela se realizou e/ou que pode ser considerada relevante ou admirável. Nesse caso, é válido destacar a descrição que acompanha a narrativa nos discursos epidíticos, uma vez que ela frequentemente contribui para reforçar a argumentação, tornando-os mais vigorosos. Além disso, deve-se ter em conta que a ordem atribuída aos fatos na narrativa e as informações reveladas ou omitidas naturalmente atendem ao intuito argumentativo do orador (cf. TRINGALI, 2014, p. 165). 49

Aristóteles (2005) também observa o vínculo entre a narração e a dimensão ética e aconselha: “Narra tudo quanto chama atenção para o teu próprio valor, [...] ou a maldade do opositor [...]; ou então o que for agradável aos juízes” (ARISTÓTELES, 2005, p. 287). Em seguida, acrescenta que convém ao orador saber o que produz a expressão do caráter moral, segundo o qual ele se mostrará sensato e bom. Caso o orador perceba que o auditório não está acreditando na representação moral construída, o filósofo o orienta a acrescentar uma causa à intenção, mostrando que a postura assumida atende a seu interesse particular. Em último caso, se não houver a possibilidade de atrelar um interesse próprio, o orador pode alegar não entender o motivo da desconfiança e apelar para a natureza, afirmando ser aquele o seu proceder espontâneo.

No que tange às paixões na narração, Aristóteles (2005) reconhece que o orador deve falar de modo a suscitá-las, abordando aspectos conhecidos ou inusitados de si ou de outros. Por fim, o filósofo destaca diz a distinção fundamental entre a narração que constitui, por si, uma parte do discurso, integrante da causa, e o exemplo, pequena narrativa que compõe a etapa da argumentação, na qual se procura induzir o auditório a uma conclusão – diferenciação que se mostrará muito importante em nossas análises.

2.1.5.3 A argumentação

Após a introdução do discurso e a narração dos fatos, o orador passa à argumentação propriamente dita. Por concentrar grande atenção à argumentação jurídica, Aristóteles (2005) trata especificamente da distribuição dos elementos entimemáticos, e sugere que eles não sejam expostos de forma contínua, mas intercalados; que não sejam construídos sobre tudo, já que seu número deve ser limitado; que não sejam utilizados quando o orador deseja despertar paixões ou realçar caracteres morais, já que, segundo o estagirita, o componente emocional associado ao pathos e ao ethos e o componente racional vinculado aos entimemas se enfraquecem mutuamente. A expressão do caráter moral na argumentação, por sinal, deve ser feita cuidadosamente, sob o risco de ser tomada como indício de prolixidade ou presunção, se feita sobre si mesmo; ou como insulto ou grosseira, se feita a outros. 50

Finalmente, o filósofo trata da distribuição dos argumentos, sustentando, como sempre, o princípio da adequação. Assim, sugere que o orador apresente seus argumentos no início, se for o primeiro a discursar; e que refute os argumentos do adversário, se for o último; sobretudo se eles foram bem acolhidos pelo auditório, já que, nesse caso, será necessário romper uma resistência inicial.

2.1.5.4 A peroração

A peroração (em grego, epílogos) é o trecho que encerra o discurso retórico. Nessa parte, o orador deixa a última impressão do seu discurso. Assim, tenta fazer com que a posição por ele defendida fique retida na memória do auditório como a opção mais justa, útil ou agradável. Modo geral, esse momento divide-se em três partes: amplificação, conclusão e apelo ao patético (cf. TRINGALI, 2014, p. 167). Desse modo, o orador se esforça por recapitular os principais pontos da argumentação, amplificando-os ou minimizando-os de acordo com o seu interesse, ao mesmo tempo em que busca consolidar a imagem respeitável que acredita ter construído e, sobretudo, estimular nos ouvintes comportamentos emocionais favoráveis à causa, já que, em última instância, sendo entimematicamente falha a argumentação, poder-se-á atingir a eficácia pela interferência das provas subjetivas.

2.1.6 As tarefas do orador: elocução

O conteúdo selecionado na invenção e o plano de texto elaborado na disposição ganham forma na elocução (léxis, em grego; elocutio, em latim), o momento em que o orador registra linguisticamente o discurso. De acordo com Brandão (200-?), léxis (dicção) possui a mesma raiz de logos (discurso), ambos derivados do verbo légein (falar, dizer). As primeiras ocorrências conhecidas de logos datam do século VIII a.C., das obras de Hesíodo – famoso aedo contemporâneo de Homero, habitante da Beócia, região norte da Grécia continental –, em cujos cantos assume o sentido de mito, relato, narrativa. O termo léxis surge mais tarde, no contexto filosófico do século V a.C., quando aparece registrado nas obras de Platão. 51

Na tradução latina, mantém-se, em certa medida, a lógica grega. Assim, traduz-se léxis por elocutio, derivado do verbo eloqui (exprimir-se por palavras, falar com arte). A elocução estaria, pois, relacionada à expressão verbal, realizada em qualquer modalidade. Ao optarmos pelo uso do verbo “registrar”, buscamos enfatizar que a elaboração da expressão linguística do discurso não se dá exclusivamente por escrito – embora essa seja, em nossos dias, a prática mais comum. Outras formas de registro, como a gravação em áudio/vídeo ou a simples elaboração mental do texto a ser enunciado, podem representar modos alternativos de trabalhar a elocução.

Naturalmente, esses exemplos são contestáveis. As diferentes formas de gravação podem ser consideradas pelo leitor muito mais próximas à ação, ao passo que a elaboração mental do texto parece uma tarefa a cargo da memória. Entretanto, é possível afirmar que o sentido das palavras que designam a elocução, desde as suas origens em grego (léxis) e latim (elocutio), ultrapassa o simples ato de escrever, estendendo-se a toda elaboração verbal do discurso. Assim sendo, reconhecemos que essa etapa de produção do discurso retórico corresponde à construção de um “modo de dizer” que pode materializar-se oralmente ou pela escrita, ainda que ela tenha se tornado preferencialmente associada, ao longo da história da Retórica, à produção do texto escrito (TRINGALI, 1988).

Na elocução, o orador ajusta a expressão ao conteúdo do discurso. É o que ensina Cícero no tratado Sobre el orador (CICERÓN, 2002, p. 382, tradução nossa): “Pois ao constar todo discurso de conteúdo e de palavras, nem as palavras podem ter lugar se eliminas o conteúdo, nem o conteúdo brilho se dispensas as palavras”20. Ao escolher as palavras no eixo paradigmático e combiná-las no eixo sintagmático, o orador caracteriza e legitima diferentes gêneros, tornando-os eficazes.

Aristóteles (2005) já destacava algumas qualidades da expressão que, em seu entendimento, contribuíam para a constituição do discurso persuasivo. Dentre elas, uma das mais relevantes é a clareza. De fato, é difícil conceber que alguém se deixe persuadir por um discurso que lhe pareça excessivamente

20 No original: “Pues al constar todo discurso de contenido y de palabras, ni las palabras pueden tener asiento si eliminas el contenido, ni el contenido brillo si apartas las palavras”. 52 hermético. Entretanto, se há que se tomar cuidado com o excesso, também se deve estar atento à falta. De acordo com o filósofo, o desafio do orador é ser claro sem ser insulso.

Para garantir a agradabilidade do discurso e, por conseguinte, a admiração do auditório, Aristóteles (2005) recomenda o uso de termos “próprios”, “apropriados” e de metáforas. Os termos “próprios” seriam os nomes dados aos objetos e entidades em linguagem corrente, cotidiana. Os “apropriados” seriam ainda mais precisos: dentre vários termos “próprios” possíveis, um seria mais “apropriado”, mais conveniente à ocasião de um discurso específico.21 As metáforas, por sua vez, são, segundo o filósofo, as grandes estrelas da prosa, uma vez que são elas as principais responsáveis pelo colorido do discurso, por materializar o melhor som, o melhor efeito, ou por melhor permitir a visualização do que o orador quer e precisa dizer.

As recomendações não se esgotam aí. Além do uso de termos “próprios”, “apropriados” e metáforas, outros procedimentos estilísticos mereceram destaque no texto aristotélico, tais como o uso de epítetos, diminutivos e comparações. O filósofo também adverte os oradores sobre os procedimentos que levam à esterilidade do estilo. Entre eles, vemos registrados os perigos dos excessos, seja no uso de expressões que confiram poeticidade ao texto; de glosas ou de epítetos extensos, inoportunos ou óbvios. Trata-se, segundo ele, de lançar palavras sobre aqueles que já entenderam o que se quer dizer. O que é válido para a poesia, sobeja na prosa, causando obscurecimento. Até mesmo as metáforas são motivos de preocupação para quem deseja persuadir, já que seu uso inapropriado também pode tornar o discurso risível, excessivamente altivo ou trágico, sem que esse fosse o desejo do orador.

Além da clareza, outra qualidade francamente defendida por Aristóteles (2005) é a correção. O falar correto compreende a adequada articulação dos períodos, a preferência por termos específicos em lugar dos termos gerais (para que se possa designar com maior fidelidade aquilo de que se fala), a ausência

21 Os esclarecimentos sobre o sentido dos termos próprios e apropriados, citados por Aristóteles (2005), são dados, em nota, por Manuel Alexandre Júnior, a partir da tradução dos termos gregos Τα κύρια e Τα οἰκεία ὀνόματα, respectivamente. 53 de termos ambíguos, o justo emprego do gênero e do número das palavras. Sobretudo, importa que o discurso seja facilmente pronunciável (ou legível).

No entanto, o mais importante de toda a discussão de Aristóteles sobre o estilo refere-se à já mencionada adequação entre o conteúdo e a expressão. Segundo ele, “a expressão possuirá a forma conveniente se exprimir emoções e caracteres, e se conservar a analogia com os assuntos estabelecidos” (ARISTÓTELES, 2005, p. 257). Isso significa que não se deve falar de forma grosseira de assuntos de grande importância ou com grande pompa de assuntos pouco relevantes; que a expressão deve ser elaborada de modo a suscitar as paixões convenientes no auditório e que deve mostrar a “maneira de ser”22 do orador. Aos oradores apaixonados perdoam-se, inclusive, alguns excessos, desde que o auditório já tenha sido conquistado pelo discurso. Se todos encontram-se no mesmo estado de espírito, o entusiasmo do orador transmite sinceridade.

De qualquer modo, o estilo baseado na virtude do “meio-termo”, da expressão à meia distância entre o excesso e a falta, defendido por Aristóteles na maior parte dos casos, continuou exaltado por seus sucessores, como Teofrasto (ca. 370-285 a.C.). Ao discípulo de Aristóteles e herdeiro de seu posto na direção do Liceu também é frequentemente atribuída a teoria dos três gêneros de estilo.23

A escolha do gênero de estilo (genera dicendi) é, de acordo com Cícero (1991), uma grande e difícil tarefa e, por isso, pode ser considerada uma das provas do talento do orador. Distinguem-se, em geral, três gêneros de estilo, que podem subdividir-se conforme a necessidade posta pela situação retórica: o estilo simples (tenue), o ameno (medium) e o nobre ou elevado (grave).

O estilo simples toma como modelo a linguagem corrente, sem muitos adornos. Por sua natureza distensa e aparência espontânea, aqueles que não reconhecem a elaboração cuidadosa do orador o tomam como facilmente reproduzível. Esse estilo apresenta três das quatro virtudes apontadas por

22 Adotamos, aqui, a tradução de Alexandre Júnior (2005) para o termo ἕξις (héxis). 23 A perda da maior parte dos textos de Teofrasto tornou difícil, ou até impossível, o acesso direto às obras e ao pensamento desse filósofo, condicionando-os, em grande medida, à interpretação de outros autores, como Cícero (1991, 2002) e Quintiliano (2015a, 2015b, 2016a, 2016b), do autor da Retórica a Herenio (1997), ou, segundo Várzeas (2015), Dionísio de Halicarnasso. 54

Teofrasto: clareza, correção e adequação. Apenas a ornamentação ainda se revelará tímida, embora já se aceitem aí metáforas, neologismos, arcaísmos e palavras pouco usuais. O estilo ameno é um pouco mais vigoroso, já que a ele caem bem praticamente todas as figuras retóricas. Finalmente, no estilo elevado, prevalece a abundância, é nele que se concentra a maior força oratória: “a esta eloquência corresponde conduzir os corações, a ela corresponde movê-los em todos os sentidos; ela penetra às vezes pela força, às vezes insensivelmente; registra algumas opiniões, arranca as já gravadas” (CICERÓN, 1991, p. 76, tradução nossa)24.

Em síntese, o estilo simples atende ao orador que pretende falar de forma objetiva, sutil e, às vezes, mordaz; o estilo ameno, àquele que busca agradar; o grave – tão impactante quanto perigoso –, àquele a quem interessa comover. A bem da verdade, o conhecimento dos gêneros de estilo importa para o que o orador possa ajustar sua expressão ao momento e ao conteúdo do discurso. Mais uma vez, a chave de toda a elaboração discursiva é a adequação.

O orador mais competente é aquele que sabe manipular os três estilos, em discursos diferentes ou no interior de um mesmo discurso. Via de regra, o estilo simples se adapta bem à narração e à argumentação, onde é necessário informar e explicar; o estilo grave é útil nos momentos do discurso em que o apelo às paixões mostra-se mais relevante para a persuasão, como na peroração; o estilo ameno, por sua vez, ajuda a promover a receptividade e o bem-estar no exórdio e na digressão (se houver). Também é o estilo ameno que se presta à produção do discurso humorístico que vai além da mordacidade, já que esta pode ser alcançada por meio de um estilo simples, assim como os gracejos espontâneos.

Nesse caso, compreendemos que a elaboração do discurso humorístico se vale de procedimentos estilísticos comuns naquilo que respeita à elocução: a escolha das palavras adequadas, a combinação entre elas e a eleição de figuras. Quanto ao uso das figuras, convém recuperar dois aspectos já mencionados: são elas, em grande medida, as responsáveis por conferir vivacidade ao discurso

24 No original: “A esta elocuencia corresponde conducir los corazones, a ella corresponde moverlos en todos los sentidos; ella penetra en nuestros sentidos unas veces por la fuerza, otras insensiblemente; graba unas opiniones, arranca las ya grabadas”. 55 e por satisfazer as necessidades da argumentação. A princípio, reconheceríamos o uso de uma figura quando uma forma (sintática, semântica ou pragmática) nos parecesse empregada de um modo diferente daquele que qualificaríamos como “normal”. Essa ocorrência, da forma que chama a atenção pelo estranhamento, serve bem para determinar as figuras de estilo, mas não basta para identificar uma figura argumentativa, pois além de atribuir cor ao discurso, esta deve acarretar uma mudança de perspectiva que leve à adesão do auditório. Considerando-se essa observação,

[...] não se poderia decidir, de antemão, se uma determinada estrutura deve ser considerada ou não figura, nem se ela desempenhará o papel de figura argumentativa ou de figura de estilo; quando muito, pode-se detectar um número de estruturas aptas a se tornarem figuras (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 1996, p. 192).

Isso nos leva a admitir que as figuras precisam ser avaliadas em funcionamento nos discursos e não classificadas em catálogos estanques.

2.1.7 As tarefas do orador: memória

O discurso preparado ao longo dos processos de invenção, disposição e elocução está pronto para ser memorizado e pronunciado. Assim pensavam os romanos, em grande parte, amantes dos discursos planejados. A tal ponto de serem eles os responsáveis por fixar a memória no cânon da Retórica.

No início deste trabalho, já tratamos de um dos sentidos que a memória assumia na Antiguidade. Quando falamos sobre o método dialético de Platão, mencionamos o conceito de anamnesis (reminiscência, recordação), experiência que o filósofo vivencia ao ultrapassar as sombras do mundo sensível e reencontrar o conhecimento do mundo das ideias. O conhecimento da verdade já existe na memória da alma do filósofo e seu despertar depende da condução da inteligência pelo método dialético. A memória que mais interessa aos romanos, entretanto, é outra: trata-se da arte de decorar discursos.

Normalmente há, nos comentários dos antigos sobre as faculdades da memória, uma distinção entre a memória natural e a memória artificial. Se, por 56 um lado, a memória natural é uma capacidade inata, própria de cada orador; por outro, a memória artificial requer o estudo da técnica e a exercitação. O cultivo da memória artificial prometia incrementar a memória natural e prevenir seus lapsos; por isso, o estudo da Mnemônica, disciplina que oferecia técnicas para potencializar o uso da memória, tornou-se popular entre os que consideravam a boa memória como um indício da qualidade do orador.

É interessante notar que a Mnemônica praticada entre os romanos tem origem grega e fora criada ou “descoberta” por Simônides de Ceos (556-468 a.C.).25 A técnica desenvolvida pelo poeta é fundamentada na associação de ideias: o que se propõe é a associação das partes do discurso a imagens e entornos, isto é, a representações do que queremos recordar (formas, símbolos...), situadas em ambientes específicos. À medida que o discurso avança, cria-se uma espécie de “filme”, formado pela sucessão de cenas que representam as suas partes. Assim, torna-se possível ao orador memorizar os principais tópicos a serem abordados no discurso, bem como a sua sequência – lembrando que a técnica de associação se presta à memorização dos assuntos ou mesmo das palavras do discurso. O autor da Retórica a Herênio compara esse procedimento a uma “escrita mental”, que será “lida” na pronunciação: “Na verdade, os entornos são como tabuinhas de cera ou papiros, as imagens são como as letras, a disposição e localização das imagens é como a escritura e pronunciar o discurso é como a leitura” (RETÓRICA..., 1997, p. 200, tradução nossa)26.

25 De acordo com Cícero (2002), Simônides foi convidado a jantar na casa do nobre Escopas, em Tessália. Durante o jantar, o famoso poeta grego recitou um poema em honra de seu anfitrião, o qual parecia, como era costume na época, repleto de referências aos dióscuros Castor e Pólux. Insatisfeito com as numerosas referências aos gêmeos espartanos, Escopas paga ao poeta apenas metade do que houvera prometido pelo poema e pede que o retirem da sala de jantar, sob o falso pretexto de que dois jovens o chamavam ao portão. Ao sair e não encontrar ninguém ao portão, Simônides percebe que o salão onde Escopas oferecia o banquete havia desmoronado. O nobre e seus convidados, soterrados sob os escombros, tornaram-se irreconhecíveis por seus familiares. Para solucionar a questão, recorreram a Simônides, que pode identificar os corpos de acordo com a lembrança que tinha da posição que cada convidado ocupava durante o jantar. Assim, conta-se que, graças a essa experiência, o poeta teria se dado conta da possibilidade de desenvolver uma técnica mnemônica baseada na produção de imagens e em sua localização espacial. 26 No original: “En efecto, los entornos son como las tablillas de cera o los papiros, las imágenes son como las letras, la disposición y localización de las imágenes es como la escritura y pronunciar el discurso es como la lectura”. 57

Na medida do possível, tais imagens devem ser incomuns, tendo em vista que aquilo que nos parece invulgar se conserva mais facilmente e por maior tempo na memória. Desse modo, aconselha-se que as representações de aspecto excessivamente corriqueiro sejam melhor caracterizadas, embelezadas, tornadas torpes ou risíveis. Sejam resultantes de acontecimentos reais ou frutos da imaginação, as imagens formadas durante a memorização devem ser impactantes, devem mover a emoção do orador.

Além de servir ao discurso preparado, a memória se mostra necessária ao discurso improvisado ou preparado remotamente (cf. TRINGALI, 2014). Nesse caso, falamos do repertório do orador, da bagagem de erudição de que ele dispõe ou do conhecimento específico que acumulou sobre um assunto. Essa recomendação não constitui propriamente uma novidade para nós, já que o que se esperava de um orador competente na Antiguidade – o conhecimento de diferentes áreas, ciências ou disciplinas, como a Filosofia e a História – continua sendo exigido, em muitos casos, como mostra de proficiência argumentativa em apresentações orais públicas ou exames. Quanto mais repertório possuir o orador, maior será sua destreza em preparar ou improvisar discursos e mais facilidade terá em se desvencilhar de possíveis questionamentos e objeções postos pelo auditório.

2.1.8 As tarefas do orador: ação

“Pero, a la postre, todo esto resulta tal y como se ejecuta” (CICERÓN, 2002, p. 482). É assim que Cícero, pela voz de Crasso,27 inicia sua discussão sobre a ação retórica no tratado Sobre o orador. Trata-se da derradeira operação do processo retórico de comunicação, a atualização, diante do auditório, do texto produzido ao longo das etapas de invenção, disposição e elocução e memorizado. A essa operação os gregos denominam hypocrisis; os latinos, actio ou pronuntiatio. Em português, nomeamo-la “ação” ou “pronunciação”. Não a trataremos em detalhes, uma vez que nosso corpus é composto por discursos

27 O tratado De oratore é estruturado em forma de diálogo sobre a Retórica, ambientado na vila do político romano Lúcio Licínio Crasso (140 a.C.– 91 a.C.), em Túsculo. Nessa obra, as opiniões de Cícero são expressas pelo próprio Lúcio Crasso (livros I e III) e por Marco Antônio (143 a.C.– 87 a.C.), avô do futuro triúnviro romano, político e renomado orador da época republicana (livro II). 58 escritos. Para analisarmos a ação simulada nesses textos, basta-nos considerar a influência da ação na constituição do ethos do orador, questão que será retomada teoricamente no capítulo III, na seção dedicada a essa prova.

“O todo sem a parte não é todo, / A parte sem o todo não é parte, / Mas a parte o faz todo sendo parte, / Não se diga que é parte sendo todo.” (MATOS, 1999, p. 55). Até agora dedicamo-nos ao “todo”, aos fundamentos comuns das análises retóricas de diferentes discursos. Em seguida, passamos ao detalhamento da “parte”, às especificidades do gênero epidítico, dos atributos do ethos e da construção retórica do risível.

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CAPÍTULO III

EU ELOGIO E FAÇO GRAÇA:

GÊNERO EPIDÍTICO, ETHOS E A PRODUÇÃO DO RISÍVEL

3.1 O gênero epidítico e os atributos do elogio

O epidítico é um gênero tão complexo quanto injustiçado. Pela tradição retórica, recobre todos os discursos de elogio e crítica, o que pode incluir formas tão diversas quanto poemas, contos, romances, epitáfios, conversas cotidianas, posts em redes sociais, comentários em portais de notícias ou sambas-enredo. Essa variedade dá mostras de sua complexidade e da dificuldade que uma ampla análise de suas características demanda. A injustiça fica por conta dos séculos em que foi considerado pouco argumentativo, “desprovido de finalidade prática”, “trabalho de pura forma” (BRANDÃO, 2011, p. 47).

Brandão (2011) e Pernot (2016) observam que, na Grécia, desde o século IV a.C., os gêneros encomiásticos sempre foram muitos praticados na oratória e no ensino. Todavia, embora autores como Isócrates (436-338 a.C.) lhes tenham dedicado alguma atenção e Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) os tenha atribuído um lugar na classificação das formas retóricas, os discursos epidíticos não gozaram de estatuto privilegiado na Grécia clássica (séculos V-IV a.C.) e helenística (séculos IV-II a.C.) ou na Roma republicana (séculos IV-I a.C.).

Ao contrário, o epidítico foi frequentemente tratado como o “primo pobre” dos gêneros judiciário e deliberativo, graças à dissimetria estabelecida entre os tipos de auditório visados por cada um. Nos dois últimos, o auditório exerce um papel claramente ativo no julgamento das ações passadas ou na deliberação sobre as questões futuras, ao passo que o auditório do epidítico é descrito como um conjunto de espectadores que usufrui passivamente da exibição performática do orador, como observa Russell (1998):

De acordo com a sua associação do gênero com a descrição do presente, ele [Aristóteles] parece ter pensado no sentido de que esse tipo de oratória ‘exibe’ ou ‘demonstra’ como as coisas são. Porém, mais habitualmente, a ‘exibição’ ou a ‘demonstração’ é pensada como a do orador colocando sua habilidade em cena. 60

Neste sentido, o termo abrange todo tipo de discurso que não tem nenhuma finalidade prática, em outras palavras, sempre que o auditório é composto de espectadores que são apreciadores, e não tomadores de decisão (RUSSEL, 1998, p. 21)28.

Apesar da reserva em atribuir ao epidítico um papel mais efetivo na promoção de ações concretas, Aristóteles lhe concedeu um lugar relevante em sua Retórica (2005). De acordo com o filósofo, a retórica epidítica trata da virtude e do vício, do belo e do vergonhoso, e esses atributos são extensíveis a todos os homens diante de um mesmo auditório. Assim, Aristóteles (2005) observa que ao falar do que torna o caráter de alguém digno de elogio ou censura, também estará se referindo aos critérios segundo os quais o caráter do orador será avaliado:

Com efeito, sucederá que, ao mesmo tempo que falarmos destas questões, estaremos também a mostrar aqueles meios pelos quais deveremos ser considerados pessoas de certo caráter. Esta era a segunda prova; pois é pelos mesmos meios que poderemos inspirar confiança em nós próprios e nos outros no que respeita à virtude. (ARISTÓTELES, 2005, p. 124)

Mesmo reconhecendo que o epidítico compreende o louvor e o vitupério, o filósofo baseia a sua exposição do gênero na construção do elogio e a censura é apenas citada como o seu contrário. Para Aristóteles (2005, p. 125), o elemento digno de louvor é a virtude, “o poder de produzir e conservar os bens, a faculdade de prestar muitos e relevantes serviços de toda a sorte e em todos os casos” ou, resumidamente, “a faculdade de fazer o bem”. Dentre as características que permitem-nos reconhecê-la estão a justiça, a coragem, a liberalidade, a temperança, a mansidão, a prudência, a magnanimidade, a magnificência e a sabedoria. As maiores e mais úteis são a justiça e a coragem, seguidas pela liberalidade. A justiça é praticada pelo homem que administra os seus bens em conformidade com a lei, sem tentar reter o que é alheio; a coragem é a virtude pela qual se realizam grandes ações em meio ao perigo; e a liberalidade é a

28 No original: “This was Aristotle's term. In accordance with his association of the genre with the description of the present, he seems to have thought of it as meaning that this sort of oratory ‘displays’ or ‘demonstrates’ [...] how things are. But more usually, the ‘display’ or ‘demonstration’ is thought of as that of the orator, putting his skill on show. In this sense, the term covers every kind of speech that has no practical purpose, in other words whenever the audience is made up of appreciative spectators who are not decision-makers”. 61 qualidade daqueles que não cobiçam riquezas e não disputam com outros homens sobre elas.

Segundo o pensamento aristotélico, os bons homens realizam boas obras. Logo, os atos a serem mencionados em um discurso de elogio são aqueles dirigidos pela virtude. É certo que uma parte do que o filósofo aconselha a respeito do uso das ações virtuosas só poderá ser aplicada aos discursos contemporâneos de nossa sociedade com muita cautela, uma vez que algumas dessas ações contradizem o que determinam os valores disseminados pela moral cristã ou pelo princípio da igualdade entre os gêneros. Nesse caso, as ações que seriam propícias para elogiar passariam a produzir o efeito oposto, de vitupério.

Entretanto, deixando-se de lado trechos como aqueles em que o filósofo aconselha a vingança como modo de promover a justiça, já que “[...] é justo pagar na mesma moeda, e é próprio do homem corajoso não se deixar vencer” (ARISTÓTELES, 2005, p. 127), ou os em que as virtudes e ações dos homens são consideradas superiores às das mulheres por serem os primeiros dotados de uma “dignidade natural” que falta às últimas, consideramos que uma boa parte das estratégias que Aristóteles prevê em relação à apresentação dos vícios e virtudes por ações pode ser empregada sem grandes receios pelos oradores. Basta seguir os conselhos do próprio filósofo: “convém [...] falar do que é realmente honroso em cada auditório” (ARISTÓTELES, 2005, p. 127-128).

Aristóteles (2005) também orienta que o orador procure aproximar virtudes a qualidades próximas, para que um homem colérico e furioso possa ser percebido como franco ou para que um insensível seja visto como calmo. Segundo o filósofo, os homens que manifestam em suas ações algum tipo de excesso se mostram à maioria como portadores das virtudes correspondentes. Assim, um temerário poderá ser percebido pelo auditório como corajoso ou um esbanjador como um homem generoso. Por meio um raciocínio falacioso o auditório deduz que um homem que arrisca a vida sem motivo, por exemplo, o fará ainda mais facilmente por uma boa causa. Esses conhecimentos servem ao orador que tem a intenção de elogiar alguém ou deseja forjar o seu ethos em conformidade com o caráter do auditório. 62

Identificadas as boas ações, torna-se necessário amplificá-las, pois “o elogio é um discurso que manifesta a grandeza de uma virtude” (ARISTÓTELES, 2005, p. 28). Para isso, podem ser empregados muitos meios: a exaltação de ações difíceis executadas sozinho ou com pouco apoio ou daquelas que superam a expectativa do auditório, a referência aos sucessos que foram alcançados repetidas vezes em tarefas semelhantes, a menção das homenagens recebidas pelo elogiado e a comparação, especialmente com pessoas de renome. A amplificação tem a função de intensificar as ações e colocar o elogiado em posição de superioridade.

Os grandes autores latinos subordinam o gênero epidítico (denominado demonstrativo) ao judiciário e ao deliberativo na prática oratória e afirmam que uso desse tipo de discurso na composição de outros, mais importantes, é o principal motivo para seu estudo. Veja-se nesse sentido a ressalva o autor anônimo da Retórica a Herênio (1997, p. 186, tradução nossa)29:

Não devemos recomendar este tipo de causa com menos entusiasmo pelo fato de que raramente ocorre na vida real. De fato, devemos nos esforçar para cumprir do modo mais apropriado uma tarefa que se apresente em algum momento. Além disso, embora não seja usual lidar com esse tipo de causa individualmente, nas causas judiciais e deliberativas, o elogio ou a censura frequentemente ocupam um lugar importante. Por isso pensei que deveria dedicar também a este tipo de causas uma parte de meus esforços.

O esforço empreendido por esse autor na compreensão do demonstrativo resulta em uma extensa discussão sobre o elogio e o vitupério, localizada entre os capítulos 10 e 15 do livro III de seu tratado. De acordo com esse texto, o elogio incide sobre as coisas externas ao indivíduo, sobre os seus atributos físicos ou sobre as suas qualidades morais. As coisas externas são obra do acaso, dependem da fortuna. Incluem-se aí a ascendência, a educação, a riqueza, as amizades e o poder. Os atributos físicos compreendem a agilidade,

29 No original: “No debemos recomendar esta clase de causas con menos entusiasmo por el hecho de que raras veces se presente en la vida real. De hecho, debemos esforzarnos em poder cumplir de la manera más adecuada una tarea que presentarse en alguna ocasión. Además, aunque no es frecuente tratar este tipo de causas individualmente, en las causas judiciales y deliberativas el elogio o la censura ocupan con frecuencia un lugar importante. Por ello pensé que debía dedicar también a esta clase de causas una parte de mis esfuerzos”. 63 a força, a beleza, a saúde e os seus contrários. Já as qualidades morais dizem respeito ao que Aristóteles (1991, 2005) denomina virtudes, aqui, drasticamente reduzidas a quatro atributos: prudência, justiça, coragem e moderação. Como informa Giesen (2016), essas virtudes se estabilizam e se repetem assim, em número reduzido, em tratados latinos posteriores ao texto ad Herennium.

Cícero (2002, p. 221) não esconde a falta de apreço pelo gênero demonstrativo quando se refere a ele como um “terceiro tipo”, “menos necessário”, e que apenas é mencionado em sua exposição porque pode ser eventualmente utilizado em outras causas ou ocasiões específicas, como os testemunhos forenses. Por considerá-lo um gênero de fácil elaboração, o autor dedica ao epidítico apenas alguns parágrafos, que constituem praticamente um resumo das discussões desenvolvidas na Retórica a Herênio (1997). Segundo ele, todos sabem o deve ser elogiado em alguém: a linhagem, o patrimônio, a beleza, a saúde, os amigos, o vigor, o talento, entre outras coisas que são próprias da pessoa ou externas a ela. Se a pessoa possui bons atributos, cabe ao orador dizer que os utiliza bem; se não os possui, que mantém a dignidade na falta; se os perdeu, que suporta com resignação. Assim, devem ser elencados no elogio os atos que a pessoa pratica ou praticou com virtude (honra, valentia, generosidade...) ou com alguma excelência.

Quintiliano trata dos gêneros no terceiro livro de sua Instituição Oratória (2015a). Entre eles, o demonstrativo é apresentado de forma mais generosa e com menos ressalvas que em Cícero (2002). Embora afirme que, no contexto grego, o louvor e o vitupério tenham-se prestado, sobretudo, ao deleite da audiência, e que esses discursos, compostos apenas para a exposição ainda se façam presentes em sua época em forma de louvação a deuses e homens, o autor reconhece que o costume romano introduziu o discurso demonstrativo em suas ocupações públicas, como as orações fúnebres realizadas por políticos, magistrados ou outros homens de carreira, ou os processos judiciais, em que o caráter dos envolvidos pode ser exaltado ou censurado.

No texto da Instituição (2015a), o tratadista esclarece, passo a passo, como devem ser louvados deuses, homens e cidades. No louvor aos homens, que nos interessa em particular, Quintiliano destaca que, em primeiro lugar, é importante refletir sobre a influência da pessoa na sociedade. Se o elogiado está 64 vivo, fala-se de como era a época antes do seu nascimento; se está morto, fala- se do tempo depois de sua vida. Em seguida, elogiam-se coisas externas e anteriores ao elogiado, mas que mantêm com ele alguma relação, como a família e a cidade de origem. O terceiro passo é elogiar o próprio indivíduo, exaltando o seu caráter e o seu físico. No elogio ao caráter, o orador pode elencar os feitos da pessoa elogiada em ordem cronológica e mostrar que todos foram realizados de acordo com alguma virtude importante, como a coragem, a justiça ou a temperança. Ademais, é válido destacar que os feitos são singulares e que não foram realizados em benefício próprio, como ensinou Aristóteles (2005) em seu tempo.

A imagem de “gênero acessório” perpetuada pelos textos da Antiguidade foi revertida, em grande parte, pelos estudos da Nova Retórica. No Tratado da argumentação (1996), Perelman e Olbrechts-Tyteca defendem que os discursos epidíticos “constituem uma parte central da arte de persuadir, e a incompreensão manifestada a seu respeito resulta de uma concepção errônea dos efeitos da argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 54). De acordo com os autores, o convencimento gerado por um discurso nem sempre é suficiente para conduzir o auditório à ação. Muitas vezes, os sacrifícios e obstáculos demandados pela tomada de decisão fazem com que esse auditório permaneça inerte, a meio caminho entre a disposição para a ação e a ação efetiva. Por esse motivo, são úteis interferências que reiterem a importância de valores esquecidos ou minimizados, reforçando, por consequência, a intensidade da adesão. Essa é o papel do gênero epidítico: aumentar a adesão a valores sobre os quais não pairam dúvidas isoladamente, mas que podem não prevalecer quando confrontados com outros.

Ao estabelecerem a comunhão em torno de valores como o objetivo do gênero epidítico, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) atribuem a ele a função de promover a coesão social. Conforme explica Danblon (2001, p. 30, tradução nossa)30, essa coesão é garantida pela amplificação das ações de “agentes exemplares”:

30 No original: “[...] les actions, signes de vertu, sont évoquées et non décrites minutieusement, puisqu’elles renvoient à des catégories générales que l’auditoire est censé reconnaître. Par la même occasion, on comprend pourquoi les personnages qui font l’objet de l’éloge ne sont plus de véritables individus, mais se haussent au rang d’un type”. 65

[...] as ações, sinais de virtude, são evocadas e não descritas em detalhes, já que se referem a categorias gerais que o público deve reconhecer. Ao mesmo tempo, compreende-se porque os personagens que são elogiados não são mais indivíduos reais, mas se elevam à categoria de um tipo.

É comum, portanto, ao gênero epidítico, a argumentação pelo exemplo, que leva à generalização de casos particulares. Ora, mas não é a argumentação pelo exemplo a mais apropriada ao gênero deliberativo e a amplificação a que mais convém ao epidítico? Por certo. A argumentação pelo exemplo, mencionada por Aristóteles (2005), é diferente da que abordamos agora, de procedência perelmaniana. O exemplo a que ora nos referimos pertence à categoria dos argumentos que fundamentam a estrutura do real e se constitui pela amplificação.

No gênero deliberativo, o orador lançaria mão do exemplo de um político que incorreu em corrupção no exercício de seu mandato para levar o auditório a deliberar a favor de uma lei que tornasse mais rígidos os métodos de fiscalização da movimentação financeira dos agentes governamentais. Um exemplo equivale, assim, a um evento. Mesmo que o orador utilize, em sua argumentação, vários deles. No epidítico, uma sucessão de atos bons ou maus amplificados concorrem para a valorização ou desvalorização da pessoa que os praticou até o ponto em que esta pessoa pode ser considerada um modelo ou antimodelo, um exemplo a ser seguido ou rejeitado. No caso do político, a recorrente participação em eventos de corrupção incidiria sobre o valor atribuído a ele a ponto de torná-lo um antimodelo da classe política, passível de ser vilipendiado.

Se o objeto do elogio é um tipo, um modelo ou um antimodelo, o orador se assemelha a um educador, cuja argumentação é amparada pelo seu prestígio pessoal, pelos atributos de seu ethos:

Como o que vai dizer não suscita controvérsia, como nunca está envolvido um interesse prático imediato e não se trata de defender ou de atacar, mas de promover valores que são objeto de uma comunhão social, o orador, embora esteja de antemão seguro da boa vontade de seu auditório, deve, ainda assim, possuir um prestígio reconhecido. Na epidíctica, mais do que em qualquer outro gênero oratório, é preciso, para não ser ridículo, ter qualificações para tomar a palavra e não ser inábil em seu 66

uso. Com efeito, já não é sua causa nem seu ponto de vista que o orador defende; mas o de todo o auditório; ele é, por assim dizer, o educador deste, e se necessita usufruir um prestígio prévio é para poder servir, amparado na autoridade pessoal, aos valores defendidos. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 58)

Para melhor detalhar os atributos que garantem a autoridade do orador, apresentamos, em seguida, algumas considerações adicionais sobre a prova do ethos.

3.2 A construção do ethos: moral e estratégia

No contexto da cultura grega, são conhecidas duas grafias para o termo ethos, as quais se complementam: a primeira, com a vogal longa eta, traduz-se por êthos; a segunda, escrita com a vogal breve epsilon, é traduzida por éthos. O êthos remonta a Homero, e nos textos do poeta, datados do século VII a.C., assume, conforme observa Spinelli (2009), um sentido um tanto abstrato. Nos poemas homéricos, êthos designa uma sabedoria, um conjunto de usos e costumes que determina um modo de viver. O éthos, encontrado nos poemas de Ésquilo (525-456 a.C.), refere-se a uma tradição produzida pelo hábito.

Essa diferenciação foi, em certa medida, mantida por filósofos e poetas ulteriores que optaram por uma ou outra grafia. Ainda hoje, há pesquisadores que ressaltam a diferença entre os termos e dão a êthos o sentido de costume, norma, do que se refere a valores instituídos e praticados coletivamente; e a éthos, o sentido de caráter, temperamento, daquilo que se vincula às disposições físicas e psíquicas individuais, às virtudes e vícios que cada um é capaz de praticar.

De qualquer maneira, podemos considerar que o ethos de origem grega que chegou até nós, com grafia unificada ou não, é inseparavelmente social e individual. Conforme salienta Chauí (2000), no mundo grego, a consciência moral e a consciência política forjam-se mutuamente: o bem e o mal, o justo e o injusto, o legítimo e o ilegítimo são definidos pela forma como os homens se portam individualmente e em grupo, como cidadãos. O ethos, como realidade sócio-histórica, compreende o conjunto de costumes, leis e tradições que 67 caracteriza uma sociedade, é defendido por suas instituições e se concretiza na práxis dos indivíduos.

Pela produção da Retórica (2005), Aristóteles buscou orientar a construção discursiva dos cidadãos gregos, a fim de contribuir para uma ordenação social. Para o estagirita, o bom desenvolvimento oratório era parte importante no aprimoramento da eupraxia (a ação em conformidade com a justiça) e no exercício de interrelações sociais que possibilitariam aos cidadãos alcançarem a felicidade. Para persuadir os cidadãos das posições que considerasse mais favoráveis à organização político-social da cidade, os oradores deveriam apresentar-se como homens virtuosos por natureza e educação, capazes de manter as paixões sob a tutela da racionalidade, e sempre levar em conta as condições de desenvolvimento do discurso (o momento, o ambiente, as pessoas envolvidas).

Na concepção aristotélica, o bom orador deve valer-se, de modo geral, de três qualidades, quais sejam: a sabedoria prática (phrónesis), a honestidade (areté) e a benevolência (eúnoia). A phrónesis é uma virtude intelectual que se adquire pela experiência e dirige a ação. Ela permite ao homem deliberar sobre o que é útil, bom e belo e encontrar os melhores meios para os melhores fins. Isso a distingue da simples habilidade e a liga à segunda qualidade do ethos, a areté – que Aristóteles (2005) eventualmente substitui por epieíkeia, quando trata dos discursos judiciários, conforme observa Eggs (2005).

O homem puramente habilidoso consegue encontrar meios que conduzam de modo eficaz ao fim desejado, porém, esse fim pode não ser louvável. A phrónesis, por sua parte, garante os meios que conduzem sempre ao bom desfecho. A virtude intelectual permite que o orador aconselhe ao auditório decisões coerentes; porém, essa decisão é realmente válida se envolve um discernimento moral correto. É a disposição ética (areté ou epieíkeia) que garante que essa decisão também pareça a mais acertada do ponto de vista da virtude, ou seja, que pareça uma decisão equânime, justa e apropriada. O phronimos (sábio) é, portanto, aquele que decide aconselhar ações sensatas tendo em vista o bem. Por isso, Aristóteles (1991) considera que nenhum homem pode ser realmente honesto e bom sem phrónesis e vice-versa. 68

Ao mesmo tempo, é importante que o bem almejado não favoreça unicamente ao orador, mas também ao auditório. Essa é uma demonstração de eúnoia. O orador que manifesta eúnoia é agradável, benevolente, solidário. Sua afetividade parece estar em sintonia com a afetividade do auditório. Assim, deve responder aos acontecimentos, sejam sucessos ou fracassos, com a expressão afetiva esperada pela maioria dos ouvintes: alegria, tristeza, indignação, compaixão... Diante de um acontecimento trágico, como um desastre natural com várias vítimas, por exemplo, espera-se, por convenção, sobretudo de um homem público, uma manifestação de solidariedade e certa compaixão por todos aqueles que sofreram danos diretos, seus familiares, amigos e vizinhos.

Embora a constância na exibição dessas qualidades seja desejável a qualquer orador, Aristóteles (2005) também ressalta que ele deve valer-se de traços de caráter comuns a grupos sociais específicos para a construção do seu ethos. É, assim, importante que o orador exiba um ethos adequado à sua idade, à sua posição social e aos habitus do auditório. O orador joga com a distância entre os valores do auditório e seu ethos. Por isso, ele projeta uma imagem do auditório que não necessariamente corresponde à realidade, mas o norteia na produção do discurso. Quem são as pessoas que compõem o auditório ao qual me dirijo? Quais são seus valores? Quais virtudes devo manifestar para que pareça corresponder ao desejo de identificação desse auditório? Essas são perguntas que nascem no espírito do orador.

Apesar de se mostrarem continuadores da tradição iniciada por Aristóteles, os romanos valorizam, ao lado do ethos discursivo proposto pelo filósofo, um ethos preexistente e extradiscursivo, herdado da Grécia pré- aristotélica. Segundo os tratadistas latinos, a virtude que pertence ao homem habilita o orador:

[...] a eloquência é, de certo modo única. [...] E precisamente porque esta é uma faculdade elevada, deve estar ligada à honestidade e a uma extraordinária prudência. Pois se proporcionássemos técnicas oratórias àqueles a quem faltam essas virtudes, em última análise, não teríamos preparado oradores, mas dado armas a loucos (CÍCERO, 2002, p. 397, tradução nossa)31.

31 No original: “[…] la elocuencia es en cierto modo única. […] Y precisamente porque ésta es una facultad mayor, ha de estar más unida a la honradez y a una extraordinaria prudencia. Pues 69

Cícero (2002) argumenta que ter de simular dignidade e valor quando não os temos é muito mais difícil do que aperfeiçoá-los se fazem parte de nosso caráter. Por esse motivo, o orador que conta com uma autoridade moral conferida pela reputação de sua família, por seu estatuto social ou pelo seu modo de vida tem vantagens adicionais no trabalho de persuasão. No demais, importa apresentar-se segundo o que se espera de um homem de bom caráter: afável, generoso, agradecido, modesto, tanto nas palavras quanto no corpo (expressões faciais, gestos, tom e intensidade da voz). Para Cícero (2002), as manifestações físicas dão testemunho da emoção genuína e a adesão sincera do orador aos valores defendidos. Por isso, devem corresponder, em cada momento do discurso, às emoções que ele deseja despertar no auditório.

Junto ao ethos moral, persiste entre os romanos a noção de ethos como “tipo social”. Prova disso é o trecho em que Quintiliano (1836, p. 279) explica que os ethé “representados” nos exercícios ficcionais praticados nas escolas de oratória, o camponês, o tímido, o avarento ou o supersticioso, podem ser imitados em diferentes discursos e utilizados como meio de persuasão, segundo o propósito do orador.

A noção de ethos desenvolvida na Antiguidade forneceu a base para uma vasta produção teórica em diversas áreas, tais como a Semântica, a Pragmática, a Escola Americana da Nova Retórica, a Análise do Discurso e a Teoria da Argumentação, a partir da década de 1980. Dentre esses trabalhos, os que mais interessam aos objetivos desta tese encontram-se na Filosofia e na Análise do Discurso, e são propostos, respectivamente, por Meyer (2007) e Maingueneau (2011, 2016).

No âmbito de sua teoria da problematicidade, Meyer (2007) dá novos contornos à noção aristotélica com a criação dos conceitos de ethos e pathos projetivo ou imanente e efetivo. O ethos projetivo é aquele que se vincula ao orador que o auditório imagina e que se assemelha ou não a ele do ponto de vista moral. O ethos efetivo, por sua vez, refere-se à imagem que o orador constrói de fato. Consciente da defasagem que normalmente se estabeleceria

si les proporcionáramos técnicas oratorias a quienes carecen de estas virtudes, a la postre no los habríamos hecho oradores, sino que les habríamos dado armas a unos locos”. 70 entre o ethos projetivo e o ethos efetivo, o orador é capaz de recorrer a estratégias que conformem sua efetividade à projeção do auditório.

Para isso, o orador recorre a um pathos também projetivo, um auditório imaginado, que pode chegar ao limite da idealização, tal como o auditório universal de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), mas normalmente se acomoda a auditórios particulares. O que o orador deseja é fazer a projeção correta, aquela que mais se aproxime do pathos efetivo, o auditório real, com seus pontos de vista, emoções e valores:

O auditório presumido é sempre, para quem argumenta, uma construção mais ou menos sistematizada. Pode-se tentar determinar-lhe as origens psicológicas ou sociológicas; o importante para quem se propõe persuadir efetivamente indivíduos concretos, é que a construção do auditório não seja inadequada à experiência (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 1996, p. 22).

Desse modo, o orador torna-se capaz de diluir a distância entre a imagem valorizada que o auditório espera encontrar e a imagem constituída no discurso. Essa congruência sinaliza ao auditório que o orador é confiável e que a sua opinião deve ser considerada.

Por fim, evocamos a contribuição de Maingueneau (2011, 2016) no que concerne à distinção entre o ethos dito (o que o orador diz sobre si mesmo) e o ethos mostrado (o que o orador mostra durante a atualização do discurso). De acordo com o autor, a identificação desses ethé remonta à distinção de Ducrot (1984) entre locutor-L (locutor apreendido como enunciador) e locutor-lambda (locutor apreendido como ser do mundo). Ducrot (1984) associa o ethos ao locutor L, o qual, ao tornar-se fonte de enunciação, revestir-se-ia de caracteres que tornariam essa enunciação aceitável ou refutável. Nesse sentido, o ethos constitui, portanto, uma aparência do orador, que se mostra ao auditório por um conjunto de signos de elocução e oratória. Esse ethos mostrado é, segundo Maingueneau (2011, 2016), integrante de qualquer enunciação; mas o ethos dito é facultativo. Este último compreende o dizer do orador sobre a sua personalidade ou sobre as propriedades de sua enunciação (ethos dito verbal). 71

Mas e o orador do discurso humorístico? Ele segue os mesmos princípios que os oradores dos discursos “sérios”? Sim, quanto à construção do ethos, a recomendação é a mesma para todos. Porém, quem deseja persuadir provocando o riso enfrenta dificuldades adicionais. Conforme explica Quintiliano (2015b), o dito ridículo é geralmente falso, de baixa honorabilidade; logo, quem pretende usá-lo deve fazê-lo com bom senso e técnica adequada, a fim de não macular o seu caráter. Várias dessas técnicas são previstas pelos estudiosos, desde os tratadistas da Antiguidade até os pesquisadores vinculados ao que denominamos Nova Retórica. Para fundamentar a nossa discussão acerca da construção do ethos da personagem em É mentira, Terta?, resgataremos, na próxima seção, algumas delas.

3.3 A retórica e o risível

3.3.1 De onde vem o humor?

O termo humor, do grego khymó e do latim umor, significa fluido do corpo. Esse é o sentido a ele atribuído pelas teorias filosóficas e médicas da Antiguidade e da Idade Média. De acordo com Magalhães (2010), a teoria dos humores surge por volta de 400 a. C., da interseção entre as doutrinas dos filósofos gregos Empédocles e Pitágoras e do médico Hipócrates, e persiste até o século XVI. Por meio dessa teoria, Hipócrates defende que o corpo humano possui quatro humores: sangue, fleuma (linfa), bílis amarela e bílis negra, que, equilibrados, são responsáveis por manter a saúde física e emocional de uma pessoa. Os enfermos são vistos, assim, como pessoas com humores desarmonizados, às quais devem ser aplicados métodos de eliminação do humor excedente ou alterado.

Baseados na teoria dos humores, Teofrasto e outros filósofos compõem um conjunto de quatro caracteres: os indivíduos com excesso de sangue no corpo são chamados sanguíneos; os com muito muco, fleumáticos; os com excesso de bílis amarela, coléricos e aqueles nos quais sobeja a bílis negra, melancólicos. Menandro (342 a.C.-292 a. C.), um dos maiores autores da Nova Comédia Grega, utiliza os caracteres na criação de tipos cômicos em suas peças, assim como Plauto (ca. 254 a.C-184 a. C.), comediógrafo que copiou 72 enredos, personagens e ambientações da Nova Comédia Grega e aproximou- os à realidade latina.

No século II d.C., o médico e filósofo Galeno de Pérgamo (ca. 130-200 d.C.) dá novo fôlego à teoria dos humores e à associação de cada um deles a um tipo de temperamento. Os sanguíneos seriam pessoas otimistas e vigorosas; os fleumáticos apresentariam um comportamento lento e preguiçoso; os coléricos se teriam um temperamento irritável, e os melancólicos, um aspecto triste.

A concepção da teoria dos humores e da sua influência sobre os temperamentos pelos antigos deu azo ao surgimento de teorias populares que relacionavam os humores a outros conjuntos de elementos, como as estações do ano, as partes do dia e as idades. Criou-se assim a ideia de que indivíduos com “mau humor”, velhos e melancólicos, por exemplo, deveriam buscar aproximar-se de outras pessoas com “bom humor”, jovens e vigorosas, ou de coisas despertasse neles alguma vivacidade, para que suas tendências fossem equilibradas. Aos poucos, o termo que se referia a um líquido passa a designar uma disposição de caráter. Esse sentido aparece registrado em primeiro lugar na literatura inglesa, no prólogo da peça Every man out of his humour (1599), de Ben Jonson (1572-1637), dramaturgo satirista contemporâneo de Shakespeare. A seguir, apresentamos o trecho em que o termo é usado em tradução de Ziraldo (1970, p. 193):

Assim, dentro de todo corpo humano a bile, a atrabile, a fleuma e o sangue correndo continuamente, dentro de um sentido certo que não pode ser contido, recebem o nome de humor. Sendo assim este nome pode, por metáfora, se aplicar à disposição geral do caráter: por exemplo quando uma qualidade particular se apossa de um homem a tal ponto que força seu sentimento, seu espírito, seu talento, seus fluidos misturados a correr todos no mesmo sentido.32

32 No original: “So in every human body, / The choler, melancholy, phlegm, and blood, / By reason that they flow continually / In some one part, and are not continent, / Receive the name of humours. Now thus far / It may, by metaphor, apply itself / Unto the general disposition: / As when some one peculiar quality / Doth so possess a man, that it doth draw / All his affects, his spirits, and his powers, / In their confluctions, all to run one way, / This may be truly said to be a humour.” (JOHNSON, 2008, p. 27). 73

Segundo Magalhães (2010), o termo humor assume o sentido moderno de graça, ou de algo engraçado, apenas a partir de 1705. Nesta tese, entendemos o humor como a criação intencional de um objeto risível, que toca a inteligência e os afetos, levando o auditório à adesão pelo riso. O riso e risível sempre estiveram em pauta nas discussões dos filósofos, dentre eles, naturalmente, Aristóteles (2005, 2007). Neste capítulo, limitar-nos-emos a expor abordagens retóricas e argumentativas do humor. Por esse motivo, deixaremos agora de lado a Poética (2007) e passaremos a expor o que diz o filósofo sobre o riso na Retórica (2005).

3.3.2 O risível em Aristóteles: útil e agradável

As considerações de Aristóteles sobre o riso na Retórica (2005) são breves e esparsas, mas encontram-se presentes nos três livros do tratado. Ainda no livro I, o filósofo menciona que o “ridículo” é útil ao debate e que “[...] é necessário desfazer a seriedade dos oponentes com ironia e a ironia com seriedade” (ARISTÓTELES, 2005, p. 295). Dentre as formas de provocar o riso, a ironia é considerada uma das mais apropriadas ao orador, ao contrário da zombaria.

Outra observação interessante do filósofo diz respeito à agradabilidade do risível. Quem busca o risível deve fazê-lo por prazer, como ao jogo ou ao repouso. Para manter-se agradável, o risível deve ser familiar, habitual e voluntário, seja qual for o seu objeto. Sobre os objetos do riso, Aristóteles (2005) estabelece a distinção de três categorias, sejam elas: o risível dirigido a pessoas, a palavras e aos atos. O pensador não detalha cada uma das categorias, limitando-se a remeter os leitores à Poética. No entanto, essa discussão não é retomada no tratado sobre a arte poética, o que nos leva a inferir que estivesse inserida na parte perdida do texto.

No livro II, dedicado às paixões que o orador pode suscitar nos ouvintes, o estagirita volta a comparar o riso ao jogo, às festas e a outras circunstâncias em que prevalece a ausência de dor e a esperança, as quais acalmam o auditório. Uma das funções do riso aristotélico é, portanto, “relaxar” o auditório; a outra é distraí-lo. Nem sempre é bom para o orador manter o auditório atento. 74

Às vezes, convém desviar a atenção dos ouvintes da argumentação. Aristóteles (2005) introduz essa observação no livro III, na seção dedicada ao exórdio.

Sobre o estilo, também assunto do livro III, o filósofo registra a elegância dos jogos de palavras e ressalta a importância de que os dois sentidos estejam suficientemente claros para o auditório, de modo que sejam reconhecidos imediatamente no discurso. Sem atender a esse pré-requisito, o orador comprometeria o efeito de surpresa, a quebra de expectativa pretendida com uso do recurso estilístico. A quebra de expectativa aparece pela primeira vez como fenômeno que leva à produção do riso em Aristóteles (2005) e, conforme observa Alberti (1999), torna-se, a partir daí, o mais aproveitado nas reflexões posteriores sobre o tema.

3.3.3 O risível em Cícero: situações e palavras

Os romanos foram grandes apreciadores do humor na vida cotidiana e não menos na oratória (MINOIS, 2003 [2000]). Essa preferência e os princípios deixados pelas fontes gregas, especialmente Aristóteles (2005), rendeu-lhes nada menos que os dois primeiros textos sistemáticos sobre o assunto no pensamento ocidental. Os responsáveis, Cícero (2002) e Quintiliano (2015b), dedicam capítulos inteiros de suas obras de retórica a esse tema.

Cícero parece ter possuído um caráter especialmente jocoso, às vezes disfarçado, como registra Quintiliano (2015 b, 463-465):

Nosso autor costuma ser grande provocador de risos, não só fora dos tribunais, mas até nos próprios discursos forenses. Para mim, de fato, quer eu tenha uma ideia correta sobre esse ponto, quer eu cometa um deslize levado pela não pequena paixão pela eloquência dessa figura exponencial, me parece encontrar-se nele uma admirável delicadeza. De fato, ele disse jocosamente, mais do que qualquer outro, muitas vezes nas conversas de todo dia e muitas outras nas discussões e nos interrogatórios das testemunhas; mesmo aquelas que foram ditas mais brandamente contra Verres, imputou a outros e colocou-os em substituição de testemunhos; desse modo, quanto mais populares forem, tanto mais credibilidade têm aquelas não imaginadas pelo orador, mas as divulgadas aqui e ali.

75

Os discursos permeados por tiradas espirituosas, mesmo burilados ao longo da carreira, renderam-lhe tantas críticas quanto elogios, mas, em certa medida, habilitaram-no a escrever sobre o uso do risível no discurso e seus limites.

No tratado De oratore, a discussão sobre o riso é inserida na invenção, o que indica que Cícero (2002) o associa às ideias, argumentos ou provas que fundamentam discurso. Para Cícero (2002), como para Aristóteles (2005), o risível é agradável e consideravelmente útil na persuasão; e embora declare que ele é impossível de ser ensinado teoricamente, pois não se pode reduzi-lo a regras, o orador faz sobre o tema uma longa exposição.

A princípio, o orador trata de estabelecer uma distinção inicial entre o risível que se estende por todo o discurso (cavillatio) e aquele que é observado pontualmente (dicacitas) e, em seguida, destaca as cinco questões que devem ser colocadas por quem aborda teoricamente o assunto: em que consiste o riso? De que se origina? Convém ao orador provocá-lo? Até que ponto? Quais são os tipos de risível? Em sua discussão, o orador se concentra nas duas últimas questões. Sobre capacidade de responder à primeira questão, o orador declara sua incompetência:

[...] em primeiro lugar, o que é o riso em si mesmo, o que o provoca, onde reside, como ele nasce e explode de repente, a ponto de não o podermos reter apesar do desejo que temos de fazê-lo, como a agitação produzida se comunica aos flancos, à boca, às veias, aos olhos, à fisonomia, deixo aos cuidados de Demócrito explicar. Tudo isso é estranho à nossa conversa; e se fosse de outra forma, eu não me envergonharia de confessar a minha ignorância em questões que mesmo aqueles que se pretendem muito fortes são tão ignorantes quanto eu (CICÉRON, 1950, p. 104-105, tradução nossa)33.

A segunda, por sua vez, é respondida com uma alusão à Poética (2007) aristotélica: a matéria do ridículo é o feio, o disforme, a baixeza física ou moral; e a terceira com uma resposta afirmativa: convém, sim, ao orador praticá-lo.

33 No original : “[...] d'abord, ce qu'est le rire en lui même, ce qui le provoque, où il réside, comment il naît e éclate tout d'un coup, au point qu'on ne peut le retenir malgré le désir qu'on en ait, d'où vient que l'ébranlement produit se communique ensemble aux flancs, à la bouche, aux veines, aux yeux, à la physionomie, je laisse à Démocrite le soin de l'expliquer. Tout cela est étranger à notre entretien; et quand il en serait autrement, je ne rougirais pas d'avouer mon ignorance dans des questions, où ceux mêmes qui se prétendent trés forts sont aussi ignorants que moi”. 76

Cícero (2002) encontra na produção do riso várias funções oratórias. Segundo ele, ao provocar o riso, o orador coloca o auditório em uma disposição favorável, torna o caráter do orador admirável pela inteligência e perspicácia, debilita o adversário, relaxa o auditório durante a discussão de assuntos penosos e se desvencilha de situações que não conseguiria resolver com argumentos.

O quarto ponto merece atenção. Não convém ao orador se exceder em fazer piadas sobre uma grande maldade ou uma grande desgraça; já que as maldades incitam mais a indignação e a ira que o riso, e a desgraça promove a compaixão. Também não se deve zombar das pessoas próximas e queridas, pois que perigoso que se ofendam; e dos defeitos corporais graves. Para além disso, tudo pode ser tratado com agudeza, dentro dos limites do bom senso e da adequação.

Por fim, o orador distingue dois tipos de risível: o que tem origem nas situações e o que decorre das palavras. O risível que deriva das situações é produzido nas narrativas e nas imitações. Se opta pela narrativa, o orador pode ser eficaz caso já disponha de algo real a contar (mesmo que lhe acrescente algumas pequenas mentiras) ou tenha engenho suficiente para inventar uma história. Segundo Cícero (2002), o uso da narrativa é interessante porque permite ao orador simular o modo de ser, a linguagem e os gestos das personagens, dando ao auditório a impressão de que o narrado aconteceu de fato. A imitação mal-intencionada requer mais cuidado. É importante que o orador seja moderado ao utilizar-se desse recurso, para que a caricatura não seja exagerada demais ou indecorosa. Pela narrativa o orador põe em relevo a maneira de ser as pessoas e, pela imitação, alguma deformidade que provoque o riso.

De acordo com Cícero (2002), o risível que procede das palavras não se destina a provocar grandes gargalhadas e atende ao mesmo critério de prudência e sensatez que a categoria anterior. Mesmo que traga ao conhecimento do público o caráter de um tipo cômico, o orador não deve assemelhar-se a ele, por isso, não deve lançar mão de ditos picantes em abundância e sem propósito. Dentre os recursos utilizados na produção do risível nessa categoria destacam-se a ambiguidade, o entendimento literal de uma 77 expressão utilizada com intuito jocoso, a antítese, a paronomásia, a etimologia de um nome próprio, o uso de provérbios, a alegoria, a metáfora e a ironia.

Cabe aqui uma ressalva. Uma leitura superficial da classificação de Cícero (2002) levaria um leitor apressado a entender que a ironia, como um procedimento baseado “na palavra”, é totalmente desvinculada do contexto em que é observada, ao contrário dos recursos baseados “na situação”. No entanto, é necessário esclarecer que os próprios exemplos trazidos pelo escritor desmentem essa compreensão, uma vez que sempre são inseridos em um contexto bem definido. Veja-se, nesse sentido, o exemplo da defesa de Aculeão, mencionado no parágrafo 262 do segundo livro do De Oratore.

Nesse episódio, Crasso defendia Aculeão diante do juiz Marco Perpena, contra o advogado Élio Lâmia, que assistia Gratidiano. Ao ver-se interrompido por Lâmia, Crasso diz: “Ouçamos a este belo rapaz!”, e o auditório ri, por ser Lâmia notoriamente feio. Lâmia, todavia contesta: “Não pude forjar meu corpo, mas sim o talento”. E Crasso completa: “Ouçamos, pois, ao eloquente!”, o que desperta, no auditório, gargalhadas ainda mais sonoras. Como vemos, o desconhecimento do contexto retórico e da aparência de Lâmia impediria a compreensão da ironia e levaria, provavelmente, a um entendimento literal das declarações de Crasso.

As reflexões de Cícero (2002) serão aproveitadas quase em sua totalidade por Quintiliano na composição da Instituição oratória (2015b). Assim, exporemos, na sequência, apenas as particularidades da Institutio.

3.3.4 Quintiliano: simulação

Na Instituição oratória (2015b) o ensino do risível ocupa o terceiro capítulo do livro VI, no qual o autor aborda a peroração, e é introduzido logo após explicar as formas pelas quais o orador pode comover o auditório, levando-o até às lágrimas quando necessário. Nesse contexto, o riso é incluído na discussão como um “talento diferente” (QUINTILIANO, 2015b, p. 463).

São dois os desenvolvimentos mais importantes encontrados no texto do autor em relação ao apresentado por Cícero (2002). O primeiro deles diz respeito aos estabelecimentos dos objetos do riso, sejam eles: o próprio orador, 78 os outros, as coisas exteriores. Quando toma os outros como objeto do riso, o orador repreende, refuta, rebaixa, replica ou engana; se escolhe a ele mesmo, fala sorrindo ou finge dizer coisas absurdas; se opta pelas coisas exteriores, concentra-se frustra as expectativas do auditório usando algum dos expedientes expostos por Cícero (2002), que também se aplicam aos demais objetos.

É a primeira vez que o orador aparece como objeto do risível. Até então, considerava-se rir das coisas ou dos outros. Contudo, a escolha por tornar-se alvo de zombaria pode prejudicar bastante a credibilidade do orador. Por isso, a introdução desse novo objeto do risível não se dá sem ressalva. É fundamental que ao dizer coisas absurdas ou estúpidas, o orador deixe evidente ao auditório que se trata de um fingimento, uma simulação. Se isso não for perceptível, será de fato tomado como idiota.

Assim como seus antecessores, Quintiliano (2015b) entende que as fontes dos argumentos que compõem os discursos sérios e risíveis são as mesmas, bem como as formas de produzi-lo no nível estilístico. Desse modo, ele considera a simulação o elemento-chave para distinguir o uso sério ou jocoso do mesmo artifício retórico.

3.3.5 O risível na Nova Retórica: exclusão e ironia

Em sua revitalização da retórica de matriz aristotélica, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 213) dão foco ao que chamam “cômico da retórica”, isto é, à “utilização cômica de certas argumentações”. Os pesquisadores partem do pressuposto de que o efeito cômico provém da observação de um esquema argumentativo canhestro ou abusivo, construído pelo uso caricaturado de expedientes retóricos habituais, e estabelecem que o ridículo produzido na argumentação resulta de uma incompatibilidade, ou seja, de uma inadequação de proposições e/ou ações ao que é considerado normal ou normativo em determinada circunstância. O orador que, sem justificar-se, emite uma afirmação que contraria a opinião comum, cai no ridículo e é punido pelo riso.

Entretanto, o ridículo também pode beneficiar o orador contra os que, sem razão plausível, o atacam ou recusam-se a aderir a alguma parte do seu discurso. A forma mais comum de se fazer se fazer isso é pela ironia. O orador 79 irônico é aquele que sustenta por um momento uma tese contrária àquela realmente pretende defender. Para que esse expediente funcione, é necessário que a opinião do orador seja conhecida e aceita pelo auditório, o que revela seu caráter paradoxal: “se a empregam é porque há utilidade em argumentar; mas, para a empregar, é preciso um mínimo de acordo” (PERELMAN; OLBRECTHS- TYTECA, 1996, p. 236). De modo geral, os oradores utilizam a argumentação pelo ridículo para atacar opositores e evitam tornarem-se alvo dela. Há, porém, aqueles que se colocam deliberadamente em oposição às opiniões admitidas pelo auditório, expondo-se a serem ridicularizados. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), os oradores que procedem assim não devem confiar apenas no prestígio, mas justificar sua oposição, expondo as razões pelas quais a opinião do auditório não se aplica à circunstância de que trata o discurso. Vários exemplos utilizados por Perelman e Olbrecths-Tyteca ao longo do Tratado da argumentação (1996) possuem cunho humorístico, porém a aplicação das classificações e da terminologia dessa obra só ganharia fôlego de fato mais tarde, com a publicação de Le comique du discours (1974), de Olbrechts-Tyteca.

3.3.6 Olbrechts-Tyteca: de volta ao cômico da retórica

A exposição de Olbrechts-Tyteca (1974, p. 7) se inicia com uma reiteração do que fora enunciado no Tratado da argumentação (1996): o cômico valoriza o orador, desvaloriza o adversário, reanima o auditório, relaxa, disfarça os aspectos desagradáveis de uma tese. Como ocorre na obra em parceira com Perelman, Olbrecths-Tyeca (1974) esclarece que esse cômico, na retórica, não é o seu objeto, mas, sim, o cômico “da retórica”, que concerne aos quadros da argumentação. O cômico da retórica é “um cômico do discurso falado ou escrito” (OLBRECHTS-TYTECA, 1974, p. 8, tradução nossa)34 e serve tanto para obter adesão às teses do orador quanto para divertir.

Olbrechts-Tyteca (1974) também resgata o conceito de ridículo introduzido no Tratado da argumentação. A distinção entre o cômico e o ridículo

34 No original: “[...] un comique du discours parle ou écrit”. 80 entra em pauta, mas logo é abandonada pela autora, que relaciona o ridículo ao riso de exclusão e o cômico ao riso de acolhimento. Assim como em outras teorias sobre o risível, o riso é o critério efetivo no estudo do cômico proposto por Olbrechts-Tyteca (1974); um critério que gera várias dificuldades, já que, segundo a autora, o riso excede largamente o cômico e há algumas formas não discursivas de provocá-lo; tem significação variável entre as sociedades, culturas e épocas; não é proporcional à intensidade do cômico. Ademais, o cômico suscita tanto o riso quanto o sorriso – o que poderia implicar uma gradação na qualificação do cômico; há muitos casos em que não é possível observar diretamente risos ou sorrisos e, caso fosse possível, estes ainda deveriam ser interpretados: são voluntários? São fingidos? Diante dessa problemática, a autora assume que as histórias fazem rir se dão dadas como cômicas e que todos riem delas de igual modo.

A pesquisadora também destaca que o ethos na argumentação cômica não é jamais indiferente. O orador que se dirige a um auditório mais ou menos heterogêneo sempre põe sua atitude à prova. Para que a persuasão seja eficaz, é necessário, portanto, que ele conheça o hábitos, os costumes e os desejos do auditório que pretende persuadir e adapte seu discurso a ele. O conhecimento do auditório permite ao orador criar um discurso que quebre expectativas, o que pode resultar risível e útil, desde que esse procedimento seja voluntário. Como vemos, essa é uma observação reiterada pelos teóricos que se dedicam ao uso do risível na argumentação desde a Antiguidade.

Para Olbrechts-Tyteca (1974), o cômico da retórica concerne à linguagem. Assim, a autora retoma, ao longo da obra, a exposição de recursos comumente associados à produção do risível, como o jogo de palavras, a criação de neologismos, a ambiguidade, a etimologia, a hipérbole, a metáfora, e a ironia, em análises de enunciados extraídos de teorias do riso. A contribuição trazida por Olbrecths-Tyteca (1974) para compreensão do discurso risível no âmbito da retórica consiste, de fato, na análise de enunciados cômicos a partir das categorias elencadas no Tratado da argumentação (1996), como o argumento pragmático, a definição, o argumento por reciprocidade, o argumento de autoridade e a dissociação. 81

Por meio dessa análise, a autora conclui que o cômico da retórica está relacionado ao que distingue a argumentação da demonstração: “[...] a ambiguidade dos termos, a multiplicidade dos auditórios, a possibilidade constante de objeções, a instabilidade das premissas, a interação de todos os elementos, em suma, o caráter não-impositivo [...]”35 (OLBRECHTS-TYTECA, 1974, p. 401, tradução nossa)36. A maior parte do discurso que investigamos nesta pesquisa insere-se na narração. Por este motivo, o próximo capítulo desta pesquisa será dedicado à relação entre narratio e narrativa e às características das configurações narrativas simuladas nos contos de Chico Anysio.

36 No original: “[...] l'ambiguité des termes, la multiplicité des auditoires, la possibilité constante d'objections, l'instabilité des prémisses, l'interaction de tous les éléments, pour tout dire, le caractère non contraignant [...]”.

82

CAPÍTULO IV

VOU CONTAR AOS SENHORES...

SOBRE RETÓRICA E NARRATIVA

4.1 Narratio e narrativa: beleza e funcionalidade

A narração não esgota sua função na enumeração pura de ações ou fatos. Na verdade, encontra-se nela um dos principais espaços de exposição dos sujeitos à controvérsia. Nesse momento, o orador é avaliado por sua capacidade de expor os fatos ocorridos em quantidade adequada, com brilho e clareza suficientes. É considerado bem-sucedido aquele que não é breve demais e não se perde em detalhes desnecessários. No caso dos discursos epidíticos, encontra-se na narratio a oportunidade de contar sobre os sucessos ou fracassos dos objetos de censura ou louvor, deixando à mostra os seus vícios e/ou as suas virtudes.

Por certo, não é possível identificar a narratio retórica à narração literária; todavia, muitos autores reconhecem nessa etapa da dispositio um lugar teórico para o tratamento de questões universais da narrativa e fazem, por vezes, referências explícitas à narração artística. Já no pensamento aristotélico, a narratio oratória e a fábula poética partilham as exigências relacionadas à verossimilhança e à adequação na construção dos caracteres. A influência da narração artística também se nota explicitamente quando Aristóteles (2005) cita trechos de obras poéticas e peças teatrais, entre elas as passagens da Odisseia em que Ulisses conta uma história a Alcínoo e a resume a Penélope, como exemplo de narratio ajustada a um propósito emotivo.

Em Roma, encontramos semelhante aproximação na Retórica a Herênio (1997), onde são discriminados três genera narrationis; dois deles comuns aos processos judiciais: a exposição dos fatos necessários para obter a vitória na causa e a narração ocasional, inserida como digressão, com o propósito de convencer, acusar, iniciar uma transição ou preparar algum ponto do discurso. O terceiro, um exercício de estilo, dividido em duas classes: a narração que dá ênfase aos fatos e a narração que se concentra nas pessoas. 83

A exposição dos fatos pode acontecer sob a forma de fábulas, histórias ou ficções. De acordo com o autor anônimo, as fábulas são relatos lendários, que não apresentam fatos verdadeiros ou verossímeis; as histórias tratam de acontecimentos reais, porém distantes no tempo; as ficções são compostas por acontecimentos inventados, mas que poderiam ter ocorrido, como nos enredos das comédias. Quando a narração se refere às pessoas deve ter um estilo agradável e apresentar sentimentos diversos que as caracterizem: austeridade, bondade, temor, desconfiança, saudade, indiferença, compaixão, etc., bem como os fatos mais marcantes de suas vidas: desgraças inesperadas, alegrias repentinas, finais felizes e infelizes. Para o autor da Retórica a Herênio (1997), a prática da narração artística treina o orador para a narratio que se desenvolve na defesa de causas reais.

A mesma posição é mantida por Cícero no tratado De inventione (1997): existem três tipos de narração e um deles, é composto por narrativas recitadas ou escritas para diversão, mas que, ao mesmo tempo, fornecem um valioso treinamento ao orador. De fato, no que se refere aos tipos de narração, os textos dos dois tratados são praticamente idênticos. As diferenças limitam-se a alguns acréscimos no texto ciceroniano sobre as funções da narração digressiva: fazer uma comparação, divertir o público e amplificar o discurso; e à inclusão de exemplos de narrações desconectadas das questões judiciais ou deliberativas.

Embora pareça mais cauteloso que o autor anônimo da Retórica a Herênio (1997), por excluir de seu texto as comparações explícitas entre fábula e tragédia, ficção (também traduzida por argumento) e comédia, Cícero (1997) se utiliza de exemplos vinculados a essas produções artísticas: para as fábulas, uma citação do tragediógrafo Pacúvio (220-130 a.C.); para as histórias, um trecho dos Anais (17-? a.C.)37, de Ênio (239-169 a.C.)38, e para as ficções, uma fala da comédia Andria (166 a.C), de Terêncio (195/194 a.C.-160/159 a.C.)39.

37 De modo geral, os pesquisadores entendem que Ênio tenha se ocupado da produção dos Anais nos últimos anos de sua vida, mas sua datação é objeto de longas discussões (cf. NATIVIDADE, 2009). 38 A data de nascimento do poeta é conhecida com segurança. Sua morte, no entanto, é assinalada entre a data que assumimos neste trabalho, 169 a.C., e 167 a.C. Para mais informações acerca dos autores que atestam essas datas, cf. NATIVIDADE, 2009. 39 Não se sabe ao certo o ano em que Terêncio nasceu ou a sua origem. Segundo Silva (2009), as biografias do escritor apontam seu nascimento nos anos 195/194 a.C. ou 185/184 a.C. e uma origem africana indiciada pelo cognome Afer (Publius Terentius Afer). 84

Sobre a narração que diz respeito às pessoas, Cícero (1997) reforça que nela devem ganhar destaque não apenas os eventos, mas também os diálogos e a atitude mental das personagens, e que essa forma de narrativa deve apresentar grande vivacidade, sempre preservando o estilo adequado ao gênero.

Observando-se a tradição retórica, nota-se que a verossimilhança da narração depende do que

[...] exige o costume, a opinião comum e a natureza, se se respeita a duração dos fatos, a dignidade dos personagens, os motivos das decisões, a adequação dos lugares, de maneira que não possamos objetar que não houve tempo suficiente ou motivo algum, ou que o lugar não era apropriado, ou que as pessoas não puderam fazê-lo ou permitir que o fizessem. Inclusive se os fatos são verdadeiros, todos esses preceitos devem ser respeitados na narração, pois com frequência a verdade não alcança credibilidade se eles não são levados em conta. E com mais razão ainda temos de respeitá-los se a história for inventada. (RETÓRICA…, 1997, p. 83-84, tradução nossa)40.

Também no tratado De inventione (1997), Cícero explica que um relato coerente deve apoiar-se nas crenças da sociedade e em argumentos baseados nos próprios fatos e na persona dos envolvidos. Nesse sentido, fornece uma categorização útil do que denomina atributos. Os atributos das pessoas são onze, sejam eles: o nome, a natureza, a classe, a condição, a maneira de ser, os sentimentos, os passatempos, a intenção, a conduta, os acidentes e as palavras.

O nome designa pessoas e fornece argumentos para discursos sobre sujeitos específicos. Um nome próprio pode fundamentar longas argumentações e, na ficção, não são tão incomuns os casos em que os nomes assumem uma posição privilegiada na estruturação das narrativas.41 A natureza se refere às qualidades dos seres divinos e mortais (humanos e animais). Para os humanos, interessam, por exemplo, o sexo, a ascendência e a idade, além das qualidades

40 No original: “[…] exige la costumbre, la opinión común y la naturaleza; si se respeta la duración de los hechos, la dignidad de los personajes, los motivos de las decisiones, la adecuación de los lugares, de manera que se nos pueda objetar que no hubo tiempo suficiente o motivo alguno, o que el lugar no era apropiado, o que esas personas no pudieron hacerlo o permitir que lo hicieron. Incluso si los hechos son verdaderos, todos estos preceptos deben ser respetados en la narración, pues con frecuencia la verdad no logra credibilidad si éstos no son tenidos en cuenta. Y con más razón aún hay que respetarlos si el relato es inventado.” 41 Alguns exemplos desse tipo de análise são apresentados por Machado (2013). 85 e defeitos naturais da mente e do corpo. A classe diz respeito às relações que as pessoas mantêm com suas famílias, seus amigos e seus círculos profissionais; e a condição revela informações sobre a riqueza ou a pobreza. A maneira de ser contempla as qualidades morais ou físicas, virtudes ou artes adquiridas por esforço ou prática.

O orador que deseja fundamentar sua argumentação nos atributos das pessoas, pode ainda valer-se do modo como essas pessoas manifestam suas emoções, de suas ocupações intelectuais, da razoabilidade que norteia ações de uma ou outra (intenção), do que fizeram, fazem ou pretendem fazer (conduta); do que lhes ocorreu, do que lhes ocorre no presente ou provavelmente lhes ocorrerá (acidente) ou do que disseram, dizem ou ainda dirão (palavras).

Os atributos dos fatos são organizados em quatro categorias, quais sejam: os intrínsecos à ação, os circunstanciais, os acessórios e os consequentes. Os intrínsecos dizem respeito ao cerne da ação: o que está em questão? Um assassinato? Uma discussão em família? A visita de uma pessoa ilustre? Quais foram as causas do fato e quais foram, são ou serão suas consequências? As circunstâncias referem-se:

• ao lugar; • à oportunidade: a ocorrência do fato deriva de um golpe de sorte? Trata- se de um fato necessário em alguma medida?; • ao tempo: em que momento (passado, presente ou futuro) podemos situar o fato e qual a sua duração; • à ocasião: as condições são favoráveis ou desfavoráveis à ocorrência do fato?; • ao modo: como algo foi feito e com que intenção; • e à possibilidade, sem a qual o fato não pode ocorrer.

São considerados acessórios os atributos relacionados à importância, ao número e à qualidade da ação, ao que a torna semelhante, diferente ou mesmo contrária a outras, e aos resultados habituais de ações do mesmo tipo. Na quarta e última classe de atributos dos fatos, as consequências, o orador leva em conta a denominação dada à ação; quem são os seus apoiadores ou opositores; se há 86 algum conhecimento técnico ou científico, lei ou convenção sobre ela; se ela é comum ou excepcional; se suas consequências são honestas e úteis.

Todo esse material, selecionado na invenção, é organizado na disposição segundo o propósito do orador. No que compete à narração, devem-se distinguir os casos em que é conveniente “narrar a história como é”, na ordem exata em que os fatos ocorreram, daqueles em que o melhor é “narrá-la como deveria ser” (CAMPANA, 2001, p. 71), em ordem não-linear. Isso não diz respeito apenas à manutenção da verossimilhança, mas às estratégias adotadas pelo orador para chamar a atenção do auditório e para criar expectativa em relação ao narrado. Por esse motivo, os eruditos do Renascimento atribuem ao historiador uma preferência pela ordem natural, e ao poeta, uma tendência a narrar em ordem artificial42: ao historiador importa, sobretudo, a clareza; ao poeta, o quão belo, agradável ou surpreendente é o discurso.

A extensão da narratio retórica a discursos que não são especificamente oratórios e o detalhamento com que os tipos de narração artística são expostos nos tratados da Antiguidade revelam o quanto os exercícios retóricos com textos ficcionais eram úteis aos oradores. Atualmente, a leitura aprofundada dos textos canônicos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano motiva autores, como Pozuelo Yvancos (1986, 1988), a estabelecerem conexões entre a narratio retórica e a moderna narratologia. De acordo com o pesquisador, algumas categorias estabelecidas pelos antigos retóricos podem ser consideradas as primeiras versões explícitas de categorias narratológicas universais, que posteriormente motivaram propostas semânticas ou sintático-semânticas de grande alcance, como as de Greimas ou Tesnière. A divisão entre a narração sobre eventos e sobre pessoas, precursora da distinção narratológica entre os níveis funcional e actancial seria um desses casos.

Otero (2004), por seu turno, afirma que o processo de revitalização da Retórica tradicional, ocorrido a partir da década de 1950, se deu, para além do marco da Teoria da Argumentação, no âmbito das disciplinas linguístico- literárias, com contribuições do Grupo , de Todorov e de Genette, e no

42 É importante lembrar que a ordem artificial diz respeito não apenas à manutenção da sequência das partes da dispositio (exórdio, narração, argumentação e peroração), mas também à organização interna de cada uma delas. 87 aprofundamento das investigações sobre as operações retóricas e sobre a relação entre os gêneros retóricos e os gêneros poéticos. Mesmo assim, a autora faz coro a pesquisadores como García Berrio (1994), Hernández Guerrero e García Tejera (1994), que reconhecem a ainda escassa produção acadêmica dedicada à investigação das operações retóricas, sobretudo da inventio e da dispositio, aplicadas à ficção narrativa contemporânea. Considerando-se a relevância das contribuições linguístico-literárias desenvolvidas simultaneamente à retomada da Retórica no último século, introduzimos, neste capítulo, algumas categorias de interesse analítico para o desenvolvimento desta tese.

4.2 Os jogos com o tempo

Falar sobre a organização interna das narrativas é sempre uma tarefa complexa, por ser este um terreno já muito pisado por pesquisadores vinculados a diferentes perspectivas teóricas,43 e, sobretudo, por se tratar de um tipo de discurso com múltiplas configurações e especificidades. Ainda assim, os autores seguem à procura de elementos que possam ser considerados comuns aos diferentes tipos de narrativa, modelos, estruturas. Estudiosos como Todorov (1980, p. 62) chamam a atenção para a sucessão, o “[...] encadeamento cronológico e, às vezes, casual de unidades descontínuas” que compõe as narrativas. Outros, como van Dijk (1980, p. 8)44, afirmam que a abstração dessas unidades permite pensar categorias gerais, que ainda preservam a noção de sucessão, tais como “estado inicial de equilíbrio”, “quebra do equilíbrio” e “reestabelecimento do estado de equilíbrio”, as quais atendem aos interesses da análise estrutural de narrativas simples como os mitos ou as histórias policiais.

43 Exemplos da multiplicidade de estudos estruturalistas e discursivo-enunciativos dedicados às diferentes configurações narrativas são discutidos por Anna Christina Bentes da Silva na tese A arte de narrar: da constituição das estórias e dos saberes dos narradores da Amazônia paraense (2000). São mencionadas nesse trabalho obras como as de Labov e Waletzky (1967), Todorov (1980 [1978]), Propp (1983 [1928]), Gülich e Quasthoff (1985), Hamburger (1986), Benjamin (1987), Toolan (1988), Perroni (1992), Barthes (2011 [1976]), Ricoeur (1995 [1984]) e Maingueneau (1995 [1993], 1996a [1986], 1996b [1990]). Algumas dessas perspectivas também serão recuperadas sumariamente neste capítulo. 44 Nesse texto, Teun van Dijk defende a importância da formulação de um esquema superestrutural da narrativa para os estudos sobre a compreensão e a memorização de histórias. Por considerarmos que essa reflexão não está diretamente relacionada aos objetivos deste trabalho, não a detalharemos, mas remetemos o leitor interessado nessa perspectiva de análise ao artigo do autor, cuja referência completa encontra-se ao final deste trabalho. 88

Há ainda os que, como Todorov (1980), destacam a transformação como uma característica importante na organização dos eventos. De acordo com o tipo de transformação predominante, as narrativas podem ser classificadas como mitológicas ou gnoseológicas. Nas primeiras segue-se a lógica já descrita da sucessão: o que importa é a sequência dos eventos; nas segundas, prevalece uma busca pelo conhecimento. Como exemplo de narrativa gnoseológica, o autor cita A demanda do Santo Graal, obra na qual percebe-se que o motor da narrativa não é “o que acontece depois”, mas a busca por saber o que é o Graal.

De qualquer modo, a organização dos eventos demanda do falante ou do escritor uma atenção especial em relação à construção do tempo na narrativa, sobretudo porque o tempo no interior do texto se manifesta em diferentes níveis. Um deles é a época em que se passa a história, que serve de pano de fundo para o enredo. Outro é a sua duração: algumas narrativas se passam em um curto período, outras se estendem por muitos anos. Esse é o tempo que Reis e Lopes (1988) denominam “tempo da história”, um tempo matematicamente medido, que mostra uma sucessão de eventos suscetíveis de serem datados de forma mais ou menos rigorosa.

Podemos ainda acrescentar o conceito de “tempo da narração”, proposto por Gray (1975). Na elaboração desse conceito, o autor norte-americano considera a relação entre a época em que história se passa e a época em que ela é contada. Assim, o pesquisador estabelece quatro possibilidades: a narração ulterior, indiciada por verbos no passado; a narração anterior, que prediz eventos futuros; a narração simultânea, “golpe a golpe”; e a narração intercalada, quando o relato se inicia “[...] após o evento ter começado, mas não antes de ter terminado” (GRAY, 1975, p. 320), marcado por um aspecto durativo.

Eventualmente, um investimento semântico dá ao tempo um estatuto que ultrapassa o enquadramento cronológico e, de fato, o transforma em evento diegético. Temos, assim, a introdução de um “tempo psicológico” no qual aquilo que reconhecemos como a ordem natural dos acontecimentos pode ser alterada. O tempo filtrado por uma vivência subjetiva rompe a rigidez do tempo da história, o transforma e redimensiona. Nesse caso, convém observar o “tempo do discurso” (REIS; LOPES, 1988). 89

Conforme explicam Reis e Lopes (1988), o discurso é uma instância que resulta diretamente do trabalho do narrador, se traduz em enunciado e articula categorias e subcategorias específicas, dentre elas, diferentes signos de incidência temporal. As anacronias são alguns desses signos. Anacronia (ana-: inversão; cronos: tempo) é qualquer tipo de alteração na ordem dos eventos de uma história. Trata-se de um recurso de organização temporal na qual o narrador submete o fluir do tempo diegético a critérios particulares de organização discursiva, fazendo movimentos de antecipação (prolepse) ou recuo (analepse).

Os movimentos anacrônicos podem cumprir finalidades diversas: caracterização de personagens, reintegração de eventos suprimidos, criação de atmosferas de mistério, manipulação da expectativa do leitor, etc.; porém, há casos em que a análise desse procedimento se mostra especialmente proveitosa. De acordo com Reis e Lopes (1988, p. 226):

A análise de procedimentos temporais de tipo anacrônico fixar- se-á [...] normalmente em manifestações macroscópicas que pelo seu alcance e amplitude se revistam de inequívoco peso estrutural e sejam suscetíveis de se relacionarem com os fundamentais vectores semânticos da narrativa.

O alcance corresponde à distância temporal entre o momento da história marcado pela anacronia e o momento em que se encontra a narrativa primeira; a amplitude, por sua vez, refere-se à dimensão da história coberta pela anacronia. Ao contrário das prolepses, normalmente momentâneas e pouco consequentes, as analepses frequentemente apresentam função explicativa ou argumentativa. Por isso, autores como Reis e Lopes (1988) atribuem o alargamento da amplitude a uma necessidade de detalhar o passado das personagens ou de melhor fundamentar situações do presente da história.

Narrativas com grande amplitude analéptica tonam-se reconhecíveis na disposição por uma configuração em níveis. Em seguida, apresentamos alguns detalhes sobre esse arranjo estrutural.

90

4.3 A construção de níveis narrativos

A escolha pela produção de uma história com um amplo movimento analéptico se dá na invenção. Essa escolha reflete-se, na disposição, em uma narrativa moldura, uma narrativa que introduz ou delimita outras narrativas subsequentes, como assegura Medeiros (2012).

A narrativa moldura é um procedimento que traz à disposição do texto literário nuances da tradição oral da qual se origina. Como artifício retórico, manteve-se presente nas narrativas escritas, desde as histórias bíblicas, das Fábulas de Bidpai – narrativas originárias do século VI a.C., que integraram coletâneas destinadas ao deleite e ao ensino na Idade Média –, e das histórias da Mil e uma noites, aos clássicos Os Lusíadas, de Camões, Dom Quixote, de Cervantes, Viagens na minha terra, de Almeida Garret, ou A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós (cf. REIS; LOPES, 1988; MEDEIROS, 2012).

Genette (1989) inaugura algumas das reflexões a respeito das narrativas encaixadas em Figuras III. Nessa obra, o teórico oferece uma descrição sistemática dos níveis da narrativa. Para ele, o nível primordial, chamado extradiegético, é aquele em que se situa o narrador (N). A partir dele poderão constituir-se outros níveis narrativos. O narrador do nível extradiegético conta uma história em que pode ou não ter tomado parte, mas que integra entidades (personagens, ações, espaços) na construção de um universo próprio. Esse nível, da história, é denominado intradiegético (ou, simplesmente, diegético). Uma dessas personagens (P), inserida no nível intradiegético, pode circunstancialmente assumir o papel de narrador dentro da história, abrindo, assim, um novo nível, metadiegético, em que também encontraremos personagens (P2), espaços, ações, etc.

Quanto à denominação metadiegético, estamos de acordo com as considerações de Bal (1977), que ressalta a discordância em relação ao termo, dada a acepção lógico-linguística normalmente atribuída ao prefixo meta- (sobre, acerca de). Desse modo, optamos pelo uso do prefixo hipo-, que representa com maior clareza a situação de subordinação do nível hipodiegético (metadiegético, para Genette) ao nível intradiegético. Dito isso, fornecemos, em seguida, uma representação dos níveis narrativos tal como é apresentada por Reis e Lopes (1988, p. 126): 91

Figura 4 – Níveis da narrativa

Como vimos, Medeiros (2012) atribui algumas funções à narrativa moldura. Genette (1989) não agiu diferente em seu tempo. Para o autor, existem três tipos de relação entre o relato intradiegético e aquele em que ele se engasta. A primeira revela uma relação direta de causa e consequência entre os acontecimentos. Nesse caso, as narrativas encaixadas respondem, explicitamente ou não, à pergunta “Que acontecimentos conduziram à situação atual?”. A curiosidade do auditório intradiegético serve, na verdade, para responder aos questionamentos do leitor. A narrativa hipodiegética possui, portanto, uma função explicativa.

O segundo tipo consiste em uma relação temática. Revelam-se, aí, contrastes ou analogias entre as narrativas. Quando a analogia atinge os limites da identidade, o procedimento de encaixe produz uma narrativa mise en abyme45, na qual há um redobramento especular e todas as histórias se encaixam a um eixo central. Desse modo, as narrativas encaixadas podem exercer uma grande influência na situação diegética.

Mais interessante ainda é observar que Genette (1989) faz questão de destacar que as narrativas que compõem o nível hipodiegético nesse tipo de estrutura são exempla com função persuasiva, o que naturalmente convém à análise que empreendemos, já que os exemplos constituem argumentos afetivos eficientes quando dirigidos a auditórios não-especializados (cf. REBOUL, 1998, p. XVII).

45 De acordo com Lucien Dällenbach (1979), o mise en abyme é um processo de autorreflexão reconhecido por André Gide em 1893. A imagem que inspira o escritor na criação do conceito é oriunda da heráldica. Nessa ciência, abîme é o coração do escudo, uma miniatura dele mesmo encerrada no centro da peça. Essa configuração transmite a quem a observa uma sensação de profundidade e espelhamento, que seria, então, transferida ao conceito aplicado à literatura. 92

Finalmente, há casos em que Genette (1989) afirma não existir nenhuma relação explícita entre os níveis da narrativa. Independentemente do conteúdo do narrado, é o próprio ato da narração que possui função diegética. Exemplo emblemático desse tipo de relação se encontra em As mil e umas noites, obra em que Sherazade encontra na contação de histórias uma forma de resistir à morte. Não importa a história contada, importa contá-la. Temos, assim, uma função de distração e/ou obstrução.

As narrativas que analisamos nesta tese simulam narrativas orais: histórias vividas por Pantaleão e narradas pela personagem como fatos reais. Por esse motivo, apresentamos, a seguir, algumas considerações sobre a produção das narrativas de experiência pessoal.

4.4 Sobre narrativas orais

No artigo “Some further steps in narrative analysis”, publicado no Journal of Narrative and Life History em 1997, Labov oferece uma análise de narrativas de experiência pessoal recolhidas ao longo de muitos anos de pesquisa, isto é, de sequências de eventos que tiveram lugar nas biografias de muitos narradores, os quais eram, segundo o autor, pessoas comuns, e não contadores de histórias profissionais. O objetivo desses narradores era simplesmente comunicar as experiências mais importantes de suas vidas. Algumas dessas histórias, que incluíam episódios de violência, proximidade com a morte, coragem e esforço diante das adversidades e dos perigos, sequer haviam sido contadas anteriormente.

Desse trabalho, interessam-nos, especialmente, os comentários do autor sobre a relatabilidade (ou reportabilidade) dos eventos, a credibilidade atribuída aos fatos narrados, a avaliação social da narrativa e a transferência de experiência. Acerca da relatabilidade, Labov (1997) assevera que o evento mais relatável de uma história é o menos comum e o que pode ser mais fortemente avaliado, ou seja, o que tem maior efeito sobre as necessidades e desejos dos participantes. Poderíamos dizer, a partir de uma perspectiva retórica, que é o evento mais impactante, o que tem maior potencial de mover paixões. 93

Para o pesquisador, a narrativa de experiência pessoal é essencialmente a narrativa do evento mais relatável; logo, compete ao narrador, antes de qualquer coisa, decidir qual é esse evento, pois, desde o início, a história deverá ser construída por meio de relações de causalidade que conduzirão a ele. Labov (1997) também considera que o evento mais relatável é a maior justificativa para que atribuamos o papel de falante ao narrador. No caso das narrativas de experiência pessoal, é por acreditarmos que o narrador contará os fatos tal como ocorreram que nós, ouvintes, lhe concedemos o direito à palavra e a nossa atenção. Contudo, é interessante notar que a credibilidade atribuída a um evento é inversamente proporcional à sua relatabilidade. De modo geral, isso quer dizer que quanto mais inusitado e/ou impactante for o evento, maior será a possibilidade de que não acreditemos nele.

A compreensão (mesmo inconsciente) do paradoxo que envolve a relatibilidade e a credibilidade (devo narrar o fato mais interessante para ganhar a atenção do meu auditório, mas corro o risco de ser desacreditado se o fizer – o que, definitivamente, representa o fracasso do meu propósito comunicativo) implica a elaboração de estratégias por parte do narrador no intuito de conferir o máximo de credibilidade ao fato relatável, evitando, assim, a perda do seu status e da prerrogativa de fala.

Quanto à avaliação social da narrativa, Labov (1997) trata da atribuição do elogio e da culpa. De acordo com o autor, narrador e ouvintes qualificam os atores envolvidos nas ações da história narrada como elogiáveis ou culpáveis. Entretanto, é comum que essa qualificação reflita o ponto de vista do narrador, uma vez que o uso de artifícios linguísticos, como o léxico avaliativo, a inserção de pseudoeventos que amplificam as ações de quem conta a história, ou a omissão de eventos podem contribuir para que narrador leve seus ouvintes a ver o mundo através de seus próprios olhos. Nas narrativas orais de experiência pessoal, temos acesso, portanto, a um ponto de vista particular, a partir do qual a ação é vista: o ponto de vista do narrador. Isso as distinguiria das narrativas literárias, nas quais os pontos de vista são frequentemente alterados: o narrador pode, por exemplo, assumir um ponto de vista impessoal e entrar na consciência de qualquer uma ou de todas as personagens. 94

Independentemente da aceitação do ponto de vista do narrador pelos ouvintes, temos, durante o processo de atualização das narrativas de experiência pessoal, a produção de um efeito que o pesquisador chama de transferência de experiência. Curiosamente, Labov (1997) defende que as narrativas que têm grande impacto sobre os ouvintes são as que usam meios de expressão mais objetivos. Dizemos que o parecer do pesquisador desperta curiosidade porque a expressão “transferência de experiência” inicialmente nos remeteria ao uso de artifícios mais subjetivos, como uma reação emocional ou uma sensação interna. Todavia, o autor crê, baseado em evidências experimentais, que as narrativas que relatam a experiência obtida por meio dos sentidos prendem a atenção dos ouvintes e lhes permite melhor compartilhar da experiência do narrador. Isso acontece porque os ouvintes supostamente entendem que a emoção do narrador é capaz de nublar a observação dos fatos ou de distorcê-la. Assim, relatos objetivos dos eventos tornam-se mais críveis que os relatos subjetivos. Ainda que o próprio Labov (1997) questione a validade dessas conclusões, reconhecemos que a referência a um mundo concreto, a uma materialidade apreensível por meio dos sentidos pode conferir um efeito de verdade à narrativa e, por conseguinte, resultar bastante persuasiva.

Quasthoff e Nikolaus (1982), por sua vez, ampliam o estudo das narrativas conversacionais no sentido de incluir a possibilidade da narração em terceira pessoa e de dar maior detalhamento às ações do narrador. Ao longo de sua discussão, Quasthoff e Nikolaus (1982) propõem uma correspondência entre fatores pragmáticos e a estrutura da narrativa, ou seja, eles propõem que a estrutura inclui relações semântica e pragmaticamente orientadas, que dependem de como o narrador interpreta a situação de comunicação (o conhecimento que os ouvintes têm do assunto ou as suas expectativas, por exemplo). Baseados nessas considerações, autores classificam as narrativas em três tipos: aquelas em que o agente reage a ações/eventos inesperados; aquelas em que um observador testemunha ações/eventos incomuns e aquelas em que o agente executa ações incomuns. 95

Alguns anos depois, Perroni (1992) também nos oferece uma classificação que contempla três tipos de narrativa: estórias, relatos e casos.46 As estórias são narrativas que apresentam um enredo fixo e um princípio estruturador (conflito/resolução do conflito). É, de fato, como afirma a própria autora, um princípio semelhante ao que Todorov (2006 [1969], p. 88) classifica como a “passagem de um equilíbrio a outro”, que denota “[...] a existência de uma relação estável mas dinâmica entre os membros de uma sociedade: [...] uma lei social, uma regra do jogo, um sistema particular de troca”. Seguindo-se essa linha de raciocínio, há, na narrativa, dois momentos de equilíbrio diferentes (embora similares) e, entre eles, um período de desequilíbrio constituído por um processo de degradação e um processo de melhora. Além disso, as estórias frequentemente destacam-se pela personificação de seres não-humanos, pelo distanciamento do narrador em relação ao desenrolar da ação e pela existência de um fundo moral. Exemplos dessas configurações seriam narrativas como Chapeuzinho Vermelho, A Bela e a Fera ou Branca de Neve.

Os relatos são narrativas que recuperam experiências pessoais. Não há, aqui, o compromisso com o enredo fixo, mas com a “verdade” dos fatos vividos pelo narrador. Nos casos, por seu lado, não encontramos enredo fixo, sequer comprometimento com a verdade. Temos aí “[...] a mais livre atividade de criação do narrador” (PERRONI, 1983, p. 70), já que ele pode construir uma realidade ficcional baseada em eventos/ações não determinadas previamente; sendo possível, inclusive, sua participação como personagem dessas narrativas (o que também as distingue das estórias).

Não é difícil percebermos a semelhança entre o que Perroni (1983, 1992) chama de “estórias” e “casos” e o que normalmente conhecemos, respectivamente, como “contos populares” e “causos” (ou “estórias orais”)47. A aproximação entre os “casos” narrados pelas crianças pesquisadas e os “causos” contados por adultos é feita, inclusive, pela própria autora:

46 É importante salientar que essas conclusões foram formuladas pela autora a partir do estudo sócio-interacionista do desenvolvimento do discurso narrativo em crianças, publicado em sua tese de doutoramento, também intitulada Desenvolvimento do discurso narrativo (1983). 47 A designação “estória popular” é proposta por Bentes (2000) para designar uma das configurações narrativas produzidas pelos narradores da Amazônia paraense e registradas nas coletâneas Belém conta..., Abaetetuba conta... e Santarém conta.... A identificação dessas configurações àquelas que chamamos de “causos” é de nossa responsabilidade e se apoia na proximidade entre as características temáticas, estruturais e estilísticas de ambas. 96

É interessante comparar essas narrativas com os “causos” – uma manifestação popular de “estórias extraordinárias”, não raro de “assombração”, comuns em determinadas culturas, no discurso do adulto. Refiro-me aos “causos”, que têm toda uma aparência de verdade, mas que invariavelmente contêm elementos do sobrenatural, ou desligados de qualquer compromisso com o real. A semelhança entre os “casos” da criança e esses outros de adultos está na liberdade de criação: são narrativas em que não se pode prever enredos ou desfechos (PERRONI, 1983, p. 71).

Em artigo publicado em 2014, “Conto popular, estória oral e conto literário: uma análise intertextual”, tivemos a oportunidade de analisar o conto “O dia em que Pantaleão pescou um tubarão que não foi pescado por ele, mas é a mesma coisa” (ANÍSIO, 1973, p. 19-25)48, no qual identificamos uma configuração híbrida, que incorpora características do conto canônico, do conto popular e da estória oral. Por atualmente entendermos que todas as narrativas apresentadas em É mentira, Terta? apresentam uma configuração semelhante à do conto analisado e reconhecermos que os causos preservam muitas das características dos contos populares, apresentamos, a seguir, algumas considerações sobre essas configurações narrativas.

4.5 Os contos populares e a construção do maravilhoso

Não cito as escolas meteorológica, filológica, histórica, ritualista, a infalível eclética, afora uma dúzia de cisões e cismas eruditos. Ainda não me foi concedida a sabedoria de aproximar-me dessas discussões substanciais. Um dia, querendo Deus, irei também discutir se o Jabuti representa o Sol, a força criadora da Vontade, um urmythus49 ou simplesmente um Jabuti. (Câmara Cascudo)

De modo geral, os contos populares são reconhecidos como narrativas em prosa de acontecimentos reconhecidamente fictícios, originalmente orais e de caráter folclórico. Em texto sucinto e esclarecedor, Azevedo (2007) ensina que grande parte desses contos tem sua origem em mitos arcaicos, narrativas

48 A referência corresponde ao nome artístico adotado por Chico Anysio na data mencionada. O artista volta a adotar a sobrenome “Anysio” pouco tempo depois, obedecendo à orientação do numerólogo Gilson Chveid. 49 O urmythus a que o autor se refere nessa citação é um mito fundador, que explica a origem de uma cidade, nação, crença, disciplina etc. 97 sagradas por meio das quais os homens tentavam tornar compreensíveis e interpretáveis a existência humana e a origem das coisas (animais, vegetais, fenômenos da natureza, ou, até mesmo, os costumes e leis de uma sociedade)50. Com o passar do tempo, muitas dessas narrativas teriam sofrido o processo de dessacralização, mas, por serem agradáveis, continuaram a ser contadas. Receberam, então, múltiplas influências e alterações, transformando-se no que hoje conhecemos como “contos populares”.

Podemos assim dizer que o conto popular “é uma criação da imaginação coletiva” (ALCOFORADO, 1986, p. 88), que se atualiza para melhor atender aos valores, modos de existência e expectativas de vida de segmentos sociais específicos inseridos em contextos que variam no tempo e no espaço. Desse modo, continua a funcionar como instrumento de comunicação de novas culturas. Nesse sentido, Alcoforado (1986) nos explica, por exemplo, que nos contos migrados para o Nordeste brasileiro, os palácios foram substituídos pelo engenho de açúcar e fazendas de gado, mantendo-se, porém, intacto, o status social do dono da propriedade: nos contos, o possuidor de um engenho ou de uma fazenda goza de uma condição econômica e social comparável à do rei.

A despeito das alterações introduzidas nos contos pelos impulsos criativos de muitos narradores, há, nessas narrativas, uma manutenção temática, estrutural e estilística relacionada, em grande medida, à sua incorporação à corrente da tradição ou à sua sobrevivência temporal. Temos de lembrar que, em princípio, esses contos são expressões que se originaram e difundiram em culturas total ou predominantemente orais, que dispunham de poucos ou nenhum recurso para fixar informações. Por isso, careciam de uma estrutura que facilitasse sua disseminação em meio à plasticidade da memória e da voz.

Conforme observa Azevedo (2007, p. 35), mesmo em versões contemporâneas, escritas,

[...] o conto popular continua marcado pela narrativa oral, pois tende a manter certas características do discurso falado e

50 O autor admite, em nota, a existência de mitos modernos e contemporâneos e afirma que o uso do termo costuma ser marcado pela imprecisão, já que muitas vezes designa um relato fantástico, um ser fabuloso, uma crença inverídica ou uma simples mentira. 98

pressupõe sempre uma voz que narra e um ouvinte. Refiro-me a um escritor que de certo modo escreve como quem fala e a um leitor que lê como quem ouve.

Ao contrário de outros narradores, que trabalham com textos originalmente produzidos para serem lidos e que reproduzem em suas obras os expedientes de uma cultura escrita, aqueles que produzem narrativas orais ou que se aventuram na sua fixação sabem que não podem se dar ao luxo de escrever de modo fragmentário, de utilizar um vocabulário e/ou uma sintaxe incomuns ou obscuros. Nas interações face-a-face, o fluxo da fala diminui o tempo de reflexão do auditório e o bom orador não pode correr o risco de ser mal interpretado ou incompreendido.

Os textos escritos marcados pela cultura oral procuram recuperar a situação do orador diante de seu auditório e, se não podem reproduzir o ambiente em que ele se encontra, seu tom de voz, seus gestos, seu olhar e a conexão emocional que se estabelece no momento da performance, procura ao menos fazer-se claro, direto e conciso, de modo que os temas eleitos como compartilháveis sejam facilmente identificados e a comunicação seja o mais imediata possível.

O conto popular, assim como qualquer narrativa que pretenda usufruir dessa designação, é linear, com começo, meio e fim. Além disso, caracteriza-se por ser breve, por possuir um número reduzido de personagens e uma ação concentrada, e, principalmente, por apresentar a repetição de uma “fórmula”, “uma sequência de eventos” já incorporada a uma “[...] memória coletiva, indistinta e contínua” (CÂMARA CASCUDO, 1984, p. 24), que constitui um repertório comum a narradores e ouvintes/leitores.

No nível estilístico, ou seja, da elocução, registramos, além de uma linguagem familiar e acessível, o caráter formular das introduções do tipo “Era uma vez...”, “Houve um tempo...”, que produzem um afastamento em relação à situação de enunciação e localizam o conto em um tempo indefinido, facilitando a penetração dos ouvintes/leitores em um mundo de faz-de-conta, regido por uma causalidade própria e leis diferentes daquelas do mundo natural (ALCOFORADO, 1986). 99

Bentes (2000), por seu lado, destaca a presença maciça de expressões nominais indefinidas no início dos contos populares e admite que essa é uma estratégia a que o narrador recorre para evitar a individualização dos referentes e que favorece a construção de personagens muitas vezes “[...] anônimas e culturalmente prototípicas” (COSTA, 2008, p. 68): “um rei muito poderoso”, “um pai e suas três filhas: a mais velha, a do meio e a mais nova”, etc.

Também é importante considerar que os contos populares trazem, com frequência, a possibilidade do elemento maravilhoso: feitiços, instrumentos mágicos, amigos e inimigos sobrenaturais... Segundo Alcoforado (1986), esse aspecto está diretamente ligado à criação de um modelo de realidade que, embora guarde certa verossimilhança, comporta eventos e coisas que não podem ser explicados por uma lógica convencional.

A nova lógica instaurada no interior dos contos se organiza de acordo com o que Jolles (1976) chama de “moral ingênua”. No mundo regido pela moral ingênua, os acontecimentos se passam como os indivíduos gostariam que acontecesse. Assim, há a garantia de que o Bem prevalecerá sobre o Mal, que será punido no final da narrativa. Por meio dessa lógica norteadora da imaginação do narrador, a injustiça e a imoralidade do universo real são reparadas no interior do conto. Como afirma Câmara Cascudo (2014, p. 10): “Nas nossas histórias, como nos filmes de série, o bandido malvado acaba perdendo no último ato. Perde a onça. Perde o Diabo. O Bem sempre vence. A Morte também”.51

O mesmo autor considera que os motivos dos contos populares (por ele chamados de tradicionais) variam entre cinco e dez mil em todo o mundo. Todos os contos apresentam, desse modo, combinações dos motivos essenciais, tais como os ambientes, as situações psicológicas ou outros pormenores. Todavia, embora desfeita a ilusão de originalidade, o enorme número de combinações possíveis ainda impõe dificuldades à sistematização dessas narrativas.

51 A respeito da morte nos contos, Jolles (1976) acrescenta que o fenômeno pode ser abolido por representar o auge da imoralidade ingênua, dando lugar a uma imortalidade atingida pelo recurso ao maravilhoso. 100

Dentre as tentativas de classificação disponíveis em sua época52, Câmara Cascudo opta por seguir a proposta do modelo Aarne-Thompson, baseado em motivos, “[...] elementos que num conto têm a capacidade de persistir na tradição”. Essa classificação origina-se do “Verzeichnis der Marchentypen”, publicado pelo professor Antii Aarne no terceiro número do Folklore Fellows Communications, e mais tarde ampliado por Stith Thompson em “The Types of the Folk-tale, a classification and bibliography”, disponível no número 74 das FF. Communications, publicado pela Academia Scientiarum Fennica em 1928.

Assumindo sua concordância com as regras desse modelo, o pesquisador divide os contos em doze tipos:53

1) Contos de encantamento: correspondem ao que conhecemos como “contos de fadas” ou “contos de magia”. Envolvem o ouvinte/leitor em um mundo de fantasias no qual encontramos carruagens, espadas, reis autoritários, crianças enjeitadas, princesas reclusas e outros atestados do diálogo entre uma ancianidade histórica, que remete a hábitos há muito desaparecidos, e uma imaginação criadora, que dá a esses elementos uma fisionomia lúdica.

2) Contos de exemplo: diferentes dos contos de encantamento, os contos de exemplo não se afastam da lógica convencional do mundo natural. Todo o simbolismo, nesse caso, é construído com vistas à codificação de duas visões de realidade, quais sejam: a concreta, resultante da experiência, e a desejável, corrigida pela/na narrativa. Segundo Alcoforado (1986), a alegoria54

52 A primeira edição da obra Contos tradicionais do Brasil data de 1946. 53 Embora a classificação dos contos por “motivos” aqui desenvolvida seja amplamente adotada por especialistas, não configura, naturalmente, uma unanimidade, haja vista a posição defendida por Jolles (1976), que considera que, nesse tipo de classificação, perde-se de vista a natureza do conto como acontecimento que se desenvolve no sentido da moral ingênua e atribui-se maior valor à organização às vezes arbitrária de “motivos”, que servem, no máximo, como veículo mnemotécnico na reconstrução da forma do conto. 54 Conforme instrui o professor português Carlos Ceia (1998, p. 19), “uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral”, muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, que pode abarcar expressões ou textos inteiros. Convém salientar, no entanto, que a linguagem alegórica tem sido percebida com bem menos dinamismo que a linguagem metafórica. Prova disso é que, desde as alegorias clássicas ou as representações hieroglíficas mantêm sentidos muitos estáveis a cada tentativa de decodificação. Nesse sentido, Ceia (1998) acrescenta que a abertura do sentido da alegoria literária é uma conquista apenas da teoria da literatura do século XX. A fim de exemplificar essa figura retórica, o autor cita um trecho do Sermão da Sexagésima (1954, p. 222), de Padre Antônio Vieira, em publicação lusitana: “Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos do cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar hão-de ter queda; a cadência para as palavras, 101 desenvolvida nos contos supõe a superposição de dois sentidos: um primeiro, particular e explicitado, que desaparece e um dá lugar ao segundo, mais universal e desejado.

Talvez, à primeira vista, seja mais difícil recordarmo-nos de um conto de exemplo do que de um conto de encantamento. Por isso, ilustraremos esse tipo de conto com uma narrativa recolhida pelo próprio Câmara Cascudo (2014, p. 161)55:

O Velho Ambicioso Um velho tinha um filho muito trabalhador. Não podendo ganhar a vida como desejava em sua terra, despediu-se do pai e seguiu viagem para longe a fim de trabalhar. A princípio mandava notícias e dinheiro mas depois deixou de escrever e o velho o julgava morto. Anos depois, numa tarde, chegou à casa do velho um homem e pediu agasalho por uma noite. Durante a ceia conversou pouco e deitou-se logo para dormir. O velho, reparando que o desconhecido trazia muito dinheiro, resolveu matá-lo. Relutou muito mas acabou cedendo à tentação e assassinou o hóspede, enterrando-o no quintal do sítio. Voltou para a sala e abriu a mala do morto. Encontrou as provas de que se tratava do próprio filho, agora rico, e que vinha fazer-lhe uma surpresa. Cheio de horror, o pai e matador foi entregar-se à justiça e morreu na prisão, carregado de remorsos.

3) Contos de animais: são equivalentes ao que chamamos de fábulas.

4) Facécias: histórias engraçadas, eventualmente irônicas.

5) Contos religiosos: também chamados de “contos de intervenção divina”.

6) Contos etiológicos: explicam um aspecto ou propriedade de um animal (o pescoço longo da girafa; a cauda dos macacos etc.).

porque não hão-de ser escabrosas, nem dissonantes, hão-de ter cadência; o caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectado que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.” Outros exemplos mencionados pelo professor são: na época clássica, o mito de Orfeu e Eurídice, como alegorias da redenção e da salvação; na Idade Média, A Divina Comédia, de Dante Alighieri; e na contemporaneidade, obras como Animal Farm, de George Orwell, O Processo e O Castelo, de Kafka. Nesta tese, abordamos a Alegoria da Caverna na República (2006) de Platão, que mostra a passagem da alma da ignorância à verdade. Adiante, trataremos do ensaio “O narrador” (1987), onde Walter Benjamin distingue alegoricamente os dois tipos ideais de narrador: o marujo, que nos aproxima de lugares distantes e exóticos, e o camponês, que se mantém fixo e nos conta as antigas histórias de sua terra. 55 De acordo com o autor, o conto lhe fora narrado pelo Vigário-Geral Monsenhor Alfredo Pegado de Castro Cortez, de quem houvera sido aluno no Colégio Santo Antônio, em Natal, Rio Grande do Norte. Segundo ele, era costume do sacerdote incluir exemplos morais em suas aulas, ministradas no curso primário. 102

7) Demônio logrado: contos em que o demônio intervém, perde uma aposta e é derrotado.

8) Contos de adivinhação: contos em que a vitória do herói depende da solução de um enigma, da tradução de gestos ou da decifração da origem de objetos.

9) Natureza denunciante: narrativas em que uma infração é revelada pela denúncia de elementos naturais (árvores, pedras, flores, animais...).

10) Contos acumulativos: segundo Câmara Cascudo (2014), são contos que possuem episódios articulados sucessivamente. Por acreditarmos tratar-se de uma explicação um tanto vaga, apresentaremos, também nesse caso, um conto incluído pelo autor nessa categoria.

O Macaco Perdeu a Banana O macaco estava comendo uma banana num galho de pau quando a fruta lhe escorregou da mão e caiu num oco da árvore. O macaco desceu e pediu que o pau lhe desse a banana: – Pau, me dá minha banana! O pé de pau nem como cousa. O macaco foi ter com o ferreiro e pediu que viesse com o machado cortar o pau. – Ferreiro, traga o machado para cortar o pau que ficou com a banana! O ferreiro nem se importou. O macaco procurou o soldado a quem pediu que prendesse o ferreiro. O soldado não quis. O macaco foi ao rei para mandar o soldado prender o ferreiro para este ir com o machado cortar o pau que tinha a banana. O rei não prestou atenção. O macaco apelou para a rainha. A rainha não o ouviu. O macaco foi ao rato para roer a roupa da rainha. O rato recusou. O macaco recorreu ao gato para comer o rato. O gato nem ligou. O macaco foi ao cachorro para morder o gato. O cachorro recusou. O macaco procurou a onça para comer o cachorro. A onça não esteve pelos autos. O macaco foi ao caçador para matar a onça. O caçador se negou. O macaco foi até a Morte. A morte ficou com pena do macaco e ameaçou o caçador, este procurou a onça, que perseguiu o cachorro, que seguiu o gato, que correu o rato, que quis roer a roupa da rainha, que mandou o rei, que ordenou ao soldado que quis prender o ferreiro, que cortou com o machado o pau, de onde o macaco tirou a banana e comeu (CÂMARA CASCUDO, 2014, p. 327).

11) Ciclo da Morte: contos em que presenciamos a vitória da Morte sobre os homens, malgrado as tentativas destes de enganá-la pelo uso dos recursos da inteligência. 103

12) Tradição: não é história, mas uma citação persistente nas narrativas. Por exemplo: “Onde há ninho de Japim (o Xexéu nordestino) há uma formiga chamada tapiucaba” (CÂMARA CASCUDO, 2014, p. 14).

De acordo com Jolles (1976), fundamental na caracterização do conto é visualizá-lo em uma perspectiva negativa em relação a outras configurações narrativas que se desenvolveram junto a ele, como a novela. Ao contrário dessas formas, que se prendem à necessidade de narrar um fato impressionante e real (ao menos na aparência), e que fazem desse fato o aspecto mais importante da narrativa, acima das personagens que o protagonizam, o conto descreve um acontecimento que só se encerra no remate final e não pretende transmitir a impressão de realidade, desenvolvendo-se sempre no plano do maravilhoso.

Nessa perspectiva, o maravilhoso se relaciona à moral ingênua, permitindo que as coisas se passem nas histórias como sentimos que deveriam acontecer na realidade. No conto, “[...] o maravilhoso não é maravilhoso, mas natural” (JOLLES, 1976, p. 202). Essa é, segundo Jolles (1976), a “disposição mental” da forma. Mas ainda podemos nos perguntar: o que é exatamente o maravilhoso a que se refere o autor?

Em seu livro Introdução à literatura fantástica (1981 [1970]), Todorov explica o maravilhoso a partir de sua relação com o estranho e o fantástico. Tendo em vista que o interesse central do crítico literário búlgaro, nessa obra, é refletir sobre o fantástico e as formas como ele se manifesta na literatura, a discussão se inicia exatamente pela caracterização desse gênero.56

56 Todorov (1981) concebe o fantástico como um gênero literário. Para ele, os gêneros são “variedades” da literatura, que podem ser reconhecidas segundo suas características estruturais. Além disso, o autor propõe uma distinção entre gêneros históricos e gêneros teóricos: os primeiros, produtos da observação dos fatos literários; os segundos, dedutíveis a partir de uma teoria da literatura; e, dentro dos gêneros teóricos, uma subdivisão entre gêneros elementares e complexos: elementares, os que poderiam ser caracterizados pela presença ou ausência de apenas um traço estrutural; complexos, os caracterizados pela presença ou ausência de um conjunto de traços. Como exemplo de classificação dos gêneros elementares, o autor cita a divisão triádica elaborada por Diomedes no século IV: obras nas quais só fala o narrador, obras em que só falam as personagens e obras em que falam narrador e personagens. Nota-se aí claramente a classificação apoiada em apenas um aspecto: a natureza do sujeito da enunciação. De outra parte, uma obra só poderia ser classificada como um gênero complexo, como o soneto, se a submetêssemos a determinadas prescrições sobre o metro, a rima e o tema. Segundo esse raciocínio, o fantástico seria classificado como um gênero complexo, ao lado dos demais dos demais gêneros históricos – elaboração com a qual concordamos (naturalmente, dentro do quadro teórico traçado pelo autor), já que acreditamos que a determinação de um gênero por apenas um aspecto pode ter lugar na teoria literária, mas não se mostra suficiente na classificação de obras efetivamente realizadas. Tratamos o fantástico e os demais gêneros 104

De acordo com o autor, para ser considerado fantástico, um texto deve cumprir três condições: em primeiro lugar, deve levar o leitor57 a perceber o mundo das personagens como um mundo real, regido pelas leis naturais tal como as conhecemos; em segundo, deve apresentar uma vacilação entre a explicação natural e a explicação sobrenatural dos acontecimentos narrados. Tal vacilação é vivida pela personagem principal da narrativa e pode ser por ela explicitada, mas o que realmente define o fantástico é a percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos. A obra fantástica provoca, pois, uma integração do leitor ao mundo das personagens. Em terceiro lugar, é necessário que o leitor recuse uma interpretação alegórica ou poética do texto, uma vez que a primeira o conduziria a uma leitura figurada; e a segunda, à leitura carente de representação; afastando-o da disputa entre os sentidos que levam a interpretação natural e interpretação sobrenatural dos acontecimentos, necessária ao gênero. Eis o “coração do fantástico”:

Em um mundo que é nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra (TODOROV, 1981, p. 15).

Mesmo que em várias obras a hesitação se prolongue e a ambiguidade dos acontecimentos se mantenha ao término da leitura, é também comum, em muitas outras, uma deliberação, tal como propõe Todorov (1981) no trecho citado. Opta-se, por fim, por uma interpretação racional ou sobrenatural dos eventos. Por isso, o crítico qualifica o fantástico como uma linha divisória, um tempo de incerteza que se encerra assim que escolhemos uma resposta. Se

elencados por Todorov (1981) – o estranho e o maravilhoso – sob esse rótulo por fidelidade ao pensamento do autor. 57 Devemos sublinhar que o leitor mencionado por Todorov (1981), não corresponde ao leitor real ou empírico, mas ao que chamamos de leitor implícito, uma função que “[...] detém as características de um leitor potencial, idealizado, materializando um conjunto de orientações que há de guiar o possível leitor empírico no sentido de uma interpretação adequada da obra, segundo a ótica de seu autor” (CARREIRA, 2010, p. 102). 105 escolhemos as explicações dadas pelas leis da realidade, situamo-nos no terreno do “estranho”; se, ao contrário, nos rendemos à possibilidade do conceber novas leis para explicar o fenômeno insólito, adentramos o “maravilhoso”.

De certa forma, podemos dizer que o fantástico se situa, portanto, entre um “sobrenatural explicado” (o estranho) e um “sobrenatural aceito” (o maravilhoso). Outro comentário interessante feito pelo autor se refere à noção de tempo associada aos três gêneros. Por prever novas possibilidades de interpretação para fenômenos desconhecidos, o maravilhoso associa-se ao futuro; o estranho, por seu turno, se baseia em experiências prévias, reduzindo o inexplicável a fatos conhecidos; assim, liga-se ao passado. O fantástico, caracterizado pelo momento da hesitação, situa-se no presente.

Chegamos, enfim, ao maravilhoso, gênero que também merece um maior detalhamento do autor. Seguindo a concepção de um “sobrenatural aceito”, Todorov (1981) afirma que, nesse gênero, os elementos sobrenaturais não causam nenhum efeito particular de surpresa no leitor implícito ou nas personagens. No mundo do maravilhoso, os sonhos podem durar cem anos, animais podem falar e seres ou objetos podem possuir poderes mágicos, como acontece nos contos de fadas – uma das variedades do maravilhoso.

O autor também concebe quatro subtipos do maravilhoso: o maravilhoso hiperbólico, o exótico, o instrumental e o científico. No maravilhoso hiperbólico, os fenômenos são reconhecidos como sobrenaturais por suas proporções. Logo, é um tipo de sobrenatural que não se afasta tanto da razão. Como exemplo, Todorov (1981, p. 30) alude às aventuras de Simbad, em As mil e uma noites, nas quais se lê que o marujo teria visto “peixes de cem e duzentos cotovelos de longitude” ou “serpentes tão grossas e largas que tivesse podido tragar um elefante”.

Outra variedade, bem semelhante à primeira, é o maravilhoso exótico. Nesse caso, o acontecimento singular é apresentado como algo comum em uma região desconhecida pelos receptores da narrativa. Novamente, o autor recorre a um exemplo retirado das viagens de Simbad. Agora, o acontecimento narrado é o aparecimento de uma ave de tamanho incomum, mas que supostamente se 106 assemelharia a uma espécie registrada por outros narradores em relatos tidos como verdadeiros.

Uma terceira variedade é a que o crítico denomina maravilhoso instrumental. Nesse tipo, o caráter maravilhoso é garantido pela presença de instrumentos extraordinários, como tapetes mágicos ou objetos com propriedades curativas, ou que apresentam desenvolvimento técnico muito acima do esperado para a época narrada. O quarto e último tipo é o maravilhoso científico, no qual o sobrenatural é explicado de maneira racional, mas a partir de leis desconhecidas pela ciência contemporânea. Segundo Todorov (1981), esse último tipo seria o que hoje chamamos de ficção científica. A todos esses tipos de maravilhoso “imperfeito” o autor opõe o “maravilhoso puro”, para o qual não há explicação racional.

O apelo ao maravilhoso é característica comum a diferentes narrativas populares. Assim como os contos, os causos são “estórias extraordinárias” (PERRONI, 1983, p. 71), que podem conter elementos sobrenaturais. Muitas vezes, os dois gêneros chegaram mesmo a ser tratados pelos folcloristas como equivalentes. No Abecê do Folclore, por exemplo, Lima (1972) registra que causo é a forma de dizer dos sertanejos para designar o conto. Contudo, entendemos que o causo deve ser tratado em sua especificidade, já que possui características próprias, que ficam evidentes quando comparam-se contos e causos. Por isso, optamos por dedicar um tópico deste capítulo a essa configuração narrativa.

4.6 O causo: um caso sério

Dentre as configurações narrativas de tradição oral, o causo é a menos estudada nas universidades brasileiras. Ao contrário dos mitos, das lendas e dos contos, que há décadas atraíram para si a estima e a curiosidade dos pesquisadores, o causo frequentemente foi tratado de forma tangencial em estudos dedicados a outras configurações. Em 2007, a pesquisadora Gláucia Aparecida Batista afirmava, em sua dissertação de Mestrado, haver encontrado uma vasta bibliografia sobre diferentes gêneros da tradição oral, mas nenhum estudo específico sobre o causo. Hoje, é verdade, encontramo-nos em uma situação um pouco diferente. 107

De fato, alguns acréscimos no número de pesquisas parecem atestar um aumento do interesse pelo estudo do gênero causo nas últimas duas décadas. Entretanto, na comparação entre o número de publicações dedicadas a esse gênero e a outros provenientes da tradição oral, como os contos populares e as lendas, ainda é patente a desvantagem do causo.

De qualquer forma, todo o esforço empreendido nos últimos anos na caracterização dessa configuração narrativa é bem-vinda para diferenciá-lo de outras narrativas populares bastante semelhantes, como os contos populares. Além da simplicidade e da concisão, o apelo ao sobrenatural, o exagero e as funções de educar e divertir aproximam as duas configurações. Contudo, quando comparado ao conto, o causo se destaca pela perda do anonimato e pelo distanciamento da noção de construção coletiva.

O causo pertence a seu autor; e mesmo quando ele não foi vivido ou testemunhado por seu narrador, há uma referência de quem o contou primeiro. Logo, as personagens que compõem um causo são conhecidas, normalmente próximas ao narrador, tratadas pelo nome. Não há mais na história “um rei e suas filhas”, “o irmão mais novo”, “um andarilho”, mas, sim, o “Zé”, o “Joaquim”, a “Maria do mercado”, o “meu primo Lourival”. Nos causos também são mencionadas as localizações no espaço e no tempo, ainda que de forma não muito precisa. Acerca da localização temporal, Batista (2007, p. 103) observa que o contador situa o fato no tempo a partir de sua memória e, por não saber precisar datas, recorre frequentemente a expressões como “há muitos anos”, “quando eu era criança”, “no tempo dos meus avós”, “eu devia ter uns quatorze anos”. Portanto, conhecendo-se a idade aproximada do contador é possível ao ouvinte inferir a data do acontecimento.

Outra diferença entre o conto e o causo é que o último não é apresentado como uma narrativa ficcional, ainda que o auditório reconheça nele a evidente presença de elementos ficcionais. Quem conta um causo geralmente afirma a sua veracidade e chega, por vezes, a recorrer a testemunhas, juramentos, objetos ou marcas corporais que funcionam como “provas” de que o narrado de fato aconteceu. De acordo com Hartmann (2011, p. 203-204):

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Durante as performances narrativas sobre suas trajetórias de vida, é hábito dos contadores de causos/cuentos selecionar, em sua memória, aqueles eventos que lhes deixaram “marcas” no corpo. É à essa memória, que fica na pele, nos ossos, nos músculos, que os narradores recorrem no momento de suas performances para contar sobre si mesmos e sobre os valores de sua cultura. Essas marcas corporais, cicatrizes visíveis, são testemunhas, durante as performances narrativas, de histórias de vida que se constroem a partir de conflitos, em muitos casos, vencidos pelo corpo ou através do corpo. A constante busca pela superação desses conflitos previstos pela cultura local [...] dá origem a narrativas pessoais através das quais os contadores exercem uma forma de se diferenciar e se constituir como sujeitos.

Se as provas extrínsecas são importantes, mais ainda serão aquelas baseadas no caráter do contador. Também na contação de causos, “o ethos é o ponto final do questionamento” (MEYER, 2007, p. 35). O contador idôneo e benquisto é o verdadeiro fiador da narrativa. Mesmo que a mentira seja uma prática comum, um recurso para passar o tempo em algumas comunidades, há mentiras que não devem ser contrariadas, pois são ditas para serem aceitas como verdadeiras, e realmente contrariam o contador quando não o são.

A leitura de diferentes pesquisas e entrevistas com contadores, como as que citamos anteriormente, leva-nos a entender que o causo não é dotado de elemento sobrenatural obrigatório ou de um total descompromisso com o real, como defende Perroni (1983), mas de um sobrenatural facultativo, que está presente como aspecto do imaginário. O extraordinário faz parte da experiência ordinária dos contadores e irrompe em meio às ações cotidianas de homens e mulheres comuns: em uma pescaria, em um momento de descanso, em uma caçada, em uma viagem. Temos, assim, uma visão de mundo baseada em uma ótica racionalista, mas frequentemente atravessada pelo maravilhoso. Em conformidade com o que constata Batista (2007), ouvintes e contadores oscilam entre a dúvida e a crença, procuram explicações “racionais” para os fatos relatados, porém, ao mesmo tempo, julgam essas explicações insuficientes e admitem que o mistério persista.

Também é comum encontrar contadores “especializados” em algumas temáticas. Alguns contadores ou mesmo comunidades inteiras manifestam preferência por causos que envolvam eventos sobrenaturais; outros, por eventos 109 cômicos; e mais outros, por acontecimentos picantes. Essa variação temática levou Leal (1992) a desenvolver uma classificação para os causos gaúchos, qual seja: 1. histórias do trabalho cotidiano; 2. histórias épicas; 3. mitos, lendas e histórias sobre o sobrenatural; 4. histórias cômicas; 5. histórias sobre paixão amor, mulher e morte.

Não encontramos, até este momento, pesquisas em que essa classificação tenha sido adotada sem alterações. No entanto, fica evidente a recorrência de alguns desses temas em causos narrados por contadores paraenses (BENTES, 2000); mineiros (PONTES, 2006); goianos (SILVA, 2007) e paulistas (CASTANHO, 2009); o que indicia a pertinência da categorização de Leal (1992). Especificamente sobre os causos cômicos, é relevante observar que estes são distintos das anedotas, também frequentes nas rodas de causos.

De acordo com o que Hartmann (2011) observou nas práticas dos contadores gaúchos, as anedotas distinguem-se dos causos por apresentarem um caráter bem mais ficcional. Raramente elas dizem respeito a um fato ocorrido com o próprio contador, mas referem-se a personagens-tipo, como a velha, o gaúcho, a guria, etc., ou, no máximo, a algum conhecido de quem o contador queira zombar. Além disso, é comum que as anedotas provoquem os comentários do auditório, envolvido na zombaria, e que requeiram performances elaboradas, nas quais os contadores caracterizam as personagens através da mudança de postura, do uso de gestos específicos, de vozes diferenciadas e do idioleto.

Encerramos, aqui, a exposição dos fundamentos teóricos de nossa pesquisa. Em seguida, recuperamos, no contexto total da obra, as operações mestras da techne rhetorike e as noções concernentes à análise das narrativas em níveis, com a intenção de revelar a via argumentorum que leva à construção do discurso epidítico nos contos de Chico Anysio.

110

CAPÍTULO V

TODO O CAMINHO DÁ NA VENDA

5.1 O primeiro exórdio: uma apresentação para dizer a que veio

Artifícios próprios à elaboração artística distribuídos ao longo do discurso permitem-nos dizer que a configuração retórica de É mentira, Terta? obedece, em seu plano geral, ao que os teóricos renascentistas denominavam ordo artificialis, um sequenciamento não-linear das partes da dispositio (exordium, narratio, argumentatio, peroratio) e/ou uma alteração na configuração interna de uma ou de várias delas. Ainda assim, as primeiras palavras do discurso do orador são organizadas em uma introdução que atende às exigências de um bom exórdio e à performance de um narrador popular.

Conforme anunciado pelo próprio orador no título da introdução, a apresentação tem o propósito de abrir caminho para a narração que segue; de antecipar, de forma resumida, o assunto tratado ao longo discurso; de chamar a atenção do auditório e de prepará-lo para “ouvir por escrito” algo que, de fato, é digno de atenção: “Umas poucas palavras de introdução, antes de entrarmos nos fatos realmente importantes, posto que é importante tornar público o que vai dito por escrito nas páginas seguintes” (ANÍSIO, 1973, p. 11).

A expectativa foi criada. Porém, um bom orador sabe que, às vezes, a alta qualidade do assunto não é suficiente para angariar e manter o interesse do auditório. É também importante construir um ethos adequado logo no início do discurso, mostrar-se digno de ser ouvido (lido). Por isso, o narrador de É mentira, Terta? rapidamente expõe uma autorrepresentação positiva: “Sendo eu um cidadão do maior respeito, responsável por tudo que sempre foi da minha responsabilidade [...]”, mesmo quando declara sua insuficiência: “[...] não posso deixar de me declarar incompetente e incapaz de segurar Pantaleão Pereira Peixoto, herói e vilão das estórias a seguir” (ANÍSIO, 1973, p. 11). Encontramos, aqui, o uso de um topos literário, um motivo fixo e recorrente nas narrativas ficcionais orais, na literatura e nos discursos públicos de oradores notáveis: a incompetência, a incapacidade, a ignorância. 111

Veja-se, como exemplo, o início da aula de Roland Barthes ao assumir a cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França, em 1977, no qual o crítico se assume “um sujeito incerto” e “impuro”, destituído dos títulos que geralmente dariam acesso à carreira universitária (BARTHES, 2004, p. 7-8); ou a confissão que Paulo Honório faz a respeito de sua inabilidade para escrever a narrativa de sua própria vida, em São Bernardo, de Graciliano Ramos (2009, p. 10):

Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê.

A negação da competência ressalta a polifonia do discurso. O discurso- outro, avesso ao enunciado, mantido como presença virtual, emerge para angariar a simpatia do auditório. Quando dizem estar aquém da tarefa que lhes é atribuída, os oradores, na realidade, põem luz sobre as suas virtudes, sobretudo, sobre a modéstia. No caso do orador de É mentira, Terta?, a manifesta incapacidade de dominar a personagem que houvera criado – “Pantaleão, maior do que eu, cresceu demais, ganhou-se de mim, tomou conta da sua vida e se fez independente, que Deus o ajude.” (ANÍSIO, 1973, p. 11) – mostra um aparente desprendimento e a compreensão de si como mero transcritor de histórias que não lhe pertencem.

Um bom contador de causos tem seu próprio estilo de narrar. Alguns são reconhecidos pela variedade do repertório ou pelo brilho da performance. Ainda assim, é comum que digam que suas histórias não têm tanta importância ou que se anunciem limitados e insuficientes. Os bons contadores de fato, os que devemos conhecer e ouvir, parecem não existir em um plano real; eles são sempre “os outros” e estão sempre “em outro lugar” (HARTMANN, 2000, p. 17).

O orador do exórdio deixa claro que possui um estilo próprio, é narrador, mas dá a Pantaleão, contador “maior do que ele”, uma voz, tornando-o orador de seu próprio discurso: “Aqui estou entregando os causos sucedidos com Pantaleão. Contados por mim e contados por ele – cada qual ao seu jeito” (ANÍSIO, 1973, p. 12). Temos aí a instituição de um novo orador. Os discursos 112 do narrador (orador 1) e de Pantaleão (orador 2) se misturam, se afastam, se preservam e se modificam, como convêm às narrativas populares, produzidas em uma dinâmica de identidade e diferença entre o texto e seus fazedores.

De qualquer modo, por dividir a responsabilidade pelos causos, o orador 1 pode, inclusive, colocar em dúvida a sua veracidade: “[...] nada do que eu conto ter-se passado com ele leva o meu aval, posto que, só se eu fosse doido, endossaria um papel ruim” (ANÍSIO, 1973, p. 11); o que coopera para a afirmação de sua honestidade (areté) e para o questionamento do caráter do orador 2.

Embora, de modo geral, a linguagem literária escape à prova de verdade, há, no interior da obra, uma distinção: o autor é dispensado de manter uma relação “verdadeira” entre as palavras e as coisas por elas designadas no discurso, ao passo que a palavra das personagens é, sim, submetida à prova, podendo revelar-se verdadeira ou falsa. As personagens podem mentir, como no discurso cotidiano (TODOROV, 1981, p. 44-45). A princípio, não teríamos motivos para duvidar das palavras de um narrador heterodiegético. Ao mesmo tempo, poderíamos escrutinar o discurso de Pantaleão e considerá-lo falso, mentiroso.

Para reforçar a diversidade das fontes que lhe proporcionaram o conhecimento das histórias de Pantaleão, o orador 1 também deixa clara a parceria com Arnaud Rodrigues, o coloca como intermediário entre ele e o contador e lhe atribui uma boa parcela de responsabilidade pelo narrado. Neste momento, percebemos a identificação entre o orador 1 e Chico Anysio, já que a parceria com Arnaud remete à biografia do humorista:

Nada mais fiz do que narrar o que me foi narrado – não apenas por ele – mas também por um cidadão de nome Arnaud Rodrigues, elemento sem caráter, natural de Serra Talhada, Estado de Pernambuco, que me garante ter convivido com Pantaleão e que, por esta razão, pôde lhe furtar estas estórias e outras mais que, dependendo do agrado dessas, um dia posso contar. Que se ponha em débito de Arnaud Rodrigues, ladrão e larápio dos feitos maravilhosos deste macho nordestino, protagonista de episódios os mais heroicos, daí o fato de eu o ter chamado de herói, tudo que possa vir a suceder de bom e de ruim (ANÍSIO, 1973, p. 11). 113

No trecho citado, vemos que o narrador busca criar um vínculo com o leitor, uma cumplicidade gerada entre aqueles que riem do humor. Quando se refere a Arnaud Rodrigues como “elemento sem caráter”, “ladrão ou larápio”, o orador 1 cria um enquadre de brincadeira facilmente identificável pelo auditório projetivo de leitores. Denominamos brincadeira à atividade verbal que cria um quadro de jogo, mas não faz de nenhum dos participantes da interação o seu centro, conformem propõem Boxer e Cortés-Conde (1997).

No contexto da produção do humor conversacional, as autoras identificam três categorias: a brincadeira, a provocação e a autodepreciação. Diferentemente da brincadeira, a provocação é direcionada a outro participante da interação e torna-se perigosa na medida em que o alvo do humor pode compreender o jogo e jogar de volta, ou simplesmente sentir-se ofendido. Por dar margem a essa ambiguidade, a provocação costuma ser praticada entre interlocutores muito íntimos. A autodepreciação, por sua vez, é iniciada pelo próprio locutor, que se coloca como referente na produção do texto humorístico, como o centro do jogo verbal. Eventualmente, pode ser entendida como reclamação, mas, em geral, coopera para a construção de autoimagens positivas, já que a capacidade de rir dos próprios problemas e superá-los costuma ser considerada um traço de caráter louvável (cf. NORRICK, 1993, p. 47). A autodepreciação e a brincadeira sobre alguém ausente são, assim, muito mais seguras que a provocação e, por isso mesmo, capazes de, mais facilmente, criar ou estreitar relações interpessoais.

Embora os discursos humorísticos analisados por Boxer e Cortés-Conde (1997) tenham sido produzidos em contexto de conversação, entendemos que suas reflexões podem ser estendidas a discursos escritos como o que ora analisamos, cujo tom se assemelha ao de um bate-papo informal. Assim, reconhecemos que a expressões escolhidas pelo orador 1 para caracterizar seu companheiro de profissão e colaborador servem para criar um clima distenso, de intimidade e solidariedade entre os participantes da interação – orador e leitor(es) –, além de contribuir para a construção de um ethos de espirituoso – que, por sinal, é reforçado em outros trechos do exórdio, como alguns dos que apresentamos a seguir. 114

Em “O mais fica por culpa do folclore do Nordeste, mais rico do que o Vaticano e mais bonito do que briga de foice” (ANÍSIO, 1973, p. 11), o orador expõe sua vivacidade por meio de comparações fortemente apoiadas na doxa: o valor do folclore nordestino, matriz dos contos apresentados no livro, é superior às riquezas do Vaticano, cidade-estado popularmente lembrada pela opulência que resulta do acúmulo de uma grande quantidade de bens móveis e imóveis pertencentes à Igreja Católica Apostólica Romana; e sua beleza, excede a da briga de foice, uma metáfora que designa qualquer confronto arriscado entre adversários igualmente providos de instrumentos para a disputa, mesmo que verbal ou simbólica. Por ser direta e de amplo alcance popular, a comparação se mostra adequada ao auditório virtual de leitores a que o orador 1 se dirige; por ser inusitada, ela agrada, reafirma sua espirituosidade e serve como argumento a quem deseja se abster da responsabilidade pelo conteúdo das narrativas reunidas no livro.

Os argumentos por comparação são categorizados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) como argumentos quase-lógicos, aqueles que retiram grande parte de sua força persuasiva da aproximação com modos de raciocínios incontestados, demonstrativos. No caso dos argumentos de comparação, a aproximação com a lógica demonstrativa se dá pela impressão de medição subjacente aos enunciados, mesmo que não haja qualquer critério para que se realize efetivamente esse ato. Por esse motivo, a comparação pode, muitas vezes, mostrar-se mais precisa em seus efeitos que o raciocínio por analogia e esteticamente mais interessante que uma identificação por conceito ou definição.

Em nosso exemplo, as comparações por ordenamento (o que é mais rico que; o que é mais belo que), amplificam a importância e o vigor do folclore nordestino e, em certa medida, acrescentam mais elementos de virtuosidade ao caráter do próprio orador. Isso se dá porque, a partir das comparações, os seres comparados passam a ser compreendidos pelo auditório como parte de um mesmo grupo, independentemente de sua posição hierárquica. Assim, quando comparados a seres superiores, os inferiores se elevam; quando comparados a seres inferiores, os superiores se rebaixam.

Ao diminuir, na aparência, o valor de sua contribuição na elaboração dos contos, menor que a de Arnaud Rodrigues, de Pantaleão e do folclore do 115

Nordeste, o orador 1, na verdade, insere sua obra na corrente da tradição, em diálogo com a memória coletiva da sociedade, e se aproxima dos contadores tradicionais, membros de “todo um corpo social que fala, que nos indica uma vontade de reavivar e manter aquecidos alguns de seus valores e crenças, já que estes são constantemente reiterados e construídos como perenes, não transitórios, necessários” (BENTES, 2000, p. 39-40).

Mais um indício nesse sentido é a referência do orador 1 à e a alusão a sua condição de defensor da cultura popular nordestina:

Para efeito de Justiça, devo esclarecer que, em caso de problemas legais que possam advir dessas estórias, declaro que tudo será resolvido não por mim, mas por Ariano Suassuna, a quem designo, a partir deste momento, meu advogado (ANÍSIO, 1973, p. 12).

Suassuna sempre deixou claro que suas obras eram forjadas com enorme influência das histórias anônimas que circulavam (e ainda circulam) entre o povo nordestino. Para que não restassem dúvidas ou acusações a respeito das fontes de seu trabalho, o escritor paraibano introduziu uma advertência no início da Farsa da boa preguiça (2013 [1960], p. 22):

A Farsa da boa preguiça, como já aconteceu com outras peças minhas, foi escrita com base em histórias populares nordestinas. O primeiro ato fundamenta-se, ao mesmo tempo, numa notícia de jornal e numa história tradicional, anônima, de mamulengo. O segundo, na história, também tradicional, de um macaco que perde o que ganhara após várias trocas — história que é a origem do “romance”, também de autor anônimo, sobre o homem que perde a cabra, e que também me serviu de fonte. O terceiro ato baseia-se num conto popular, o de “São Pedro e o queijo”, e também noutra peça tradicional de mamulengo, chamada “O rico avarento”. As duas peças de mamulengo que serviram de fonte à minha foram ultimamente divulgadas, no Nordeste, pelos mamulengueiros conhecidos como Professor Tira-e-Dá e Benedito. Por sua vez, o “folheto” popular também teve sua versão recente através do folheto denominado “O homem da vaca e o poder da fortuna”, de autoria de Francisco Sales Areda.

Por valer-se do mesmo manancial de fontes do preeminente escritor, o orador 1 o coloca à frente como eventual defensor sobre questões de autoria. Assim, se situa próximo a ele como narrador que trabalha pela manutenção de 116

“[...] um conteúdo semântico que a sociedade valoriza e suscita à conservação da memória patrimonial” (HOUIS, 1971, p. 60).

A personagem protagonista das histórias contadas pelo narrador pode ser qualquer um. Inserida na tradição, ela representa os incontáveis narradores anônimos do Nordeste: “Pantaleão Pereira Peixoto pode ser do Ceará, do Piauí ou de Pernambuco; da Bahia, de Sergipe ou das Alagoas; da Paraíba ou do Rio Grande do Norte” (ANÍSIO, 1973, p. 12); as pessoas comuns que permitiram ao folclorista e etnógrafo Luís da Câmara Cascudo preencher as páginas de várias obras com as suas histórias:

[...] na minha modesta opinião, rio-grandense-do-norte ele não é, porque, se fosse, Luís da Câmara Cascudo saberia dele primeiro do que eu – humílimo cearense de cariocas vivências e que tomei conhecimento deste cabra valente a ponto de fazer, das coisas que ele viveu, uma ruma de folhas já impressas como qualquer um pode constatar. A não ser que Cascudo o tenha conhecido sem, todavia, lhe dedicar o afeto merecido (ANÍSIO, 1973, p. 12).

A referência a Câmara Cascudo, potiguar de nascimento e domicílio e um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros do folclore, assim como a anterior, ao escritor Ariano Suassuna, mostram o interesse do orador 1 em construir um ethos de competência e pertencimento. O narrador demonstra conhecer o terreno onde pisa, seu funcionamento e seus expoentes, apesar de declarar-se um “humílimo cearense de cariocas vivências”. Graças, aliás, a essa declaração, o orador 1 identifica-se mais uma vez com Chico Anysio, nascido em Maranguape, Ceará, e criado no Rio de Janeiro desde a infância.

Verificamos, desse modo, que a constituição do ethos pelo orador 1 obedece às qualidades fundamentais listadas por Aristóteles (2005). Mesmo mantendo o tom de brincadeira ao longo de todo o exórdio, as referências que faz a representantes ilustres do estudo e da divulgação da cultura popular, bem como as comparações e escolhas estilísticas identificáveis, garantem a ele a aparência de uma virtuosidade intelectual própria da phrónesis. Além disso, o orador mostra sinceridade quando assegura os créditos de Arnaud Rodrigues e dos contadores populares de modo geral na elaboração da obra que traz a público, uma virtude moral que remete à areté. 117

A eúnoia, por sua vez, se revela em uma atitude de desprendimento e boa vontade para com o auditório e seus desejos:

Agora, nada mais é comigo. Pantaleão Pereira Peixoto, sua mulher e seu afilhado passam a pertencer a você, que se comprou o livro foi por querer saber dele. Divirta-se, acredite, descreia, duvide, confirme, constate, negue, reclame, esbraveje [...] (ANÍSIO, 1973, p. 12).

O encerramento do exórdio reitera a antiguidade dos causos narrados e, por conseguinte, dessa figura que personifica a produção anônima e coletiva: [...] em qualquer das hipóteses sugeridas, antes de dormir reze um Ato de Contrição pela alma dele, porque tudo é tão antigo que não posso garantir se Pantaleão está vivo de fato ou apenas na lembrança (ANÍSIO, 1973, p. 12). O pedido de oração pela alma dessa personagem trans-histórica move a solidariedade do(s) leitor(es): não importam mais os pecados, as mentiras ou verdades contadas, mas a possibilidade de se comover com a atividade espiritual de um povo em sua forma espontânea e cotidiana.

5.2 O segundo exórdio: o lugar e as pessoas

O leitor está agora livre para adentrar as aventuras de Pantaleão. Todavia, aquele que espera o início do primeiro causo se surpreende com um segundo exórdio denominado “A terra, a casa, a gente. Pois todo mundo precisa saber do que se trata”. À semelhança dos prólogos teatrais que apresentam as personagens e situam o tempo e o espaço da ação, encontra-se, em É mentira, Terta?, uma descrição viva do presente das personagens: como são, onde e como vivem. Identificamos, aí, a hipotipose (do grego hypotypósis, “representação”, “quadro”, “imagem”), figura cara aos estudiosos de retórica.

A saliência perceptiva da descrição intensifica o discurso. Atua, portanto, como um recurso de amplificação: ao tornar visíveis detalhes do universo narrativo, tal como um pintor na composição de um quadro, o orador 1 move os afetos do auditório, fazendo-o penetrar no discurso. Note-se como a acumulação de detalhes sensíveis expressos por adjetivos e advérbios tinge a descrição feita pelo orador 1: 118

(1) O caminho nasce sinuoso, forrado de terra batida, ladeado pelas mangueiras tão altas que parecem ter nascido antes de se saber do Brasil. Por detrás das mangueiras o que um dia foi um pomar e que hoje, abandonado, apenas serve de pouso aos beija-flores e bem-te-vis que quase se chocam num voejar aparentemente sem rumo. Aspira-se bem, na subida mansa que conduz à casa. É uma morada simples, postada no que chamam de Alto do Monte e de onde se avista a paisagem monótona de um sertão menos florido que o desejado e ainda menos que o merecido (ANÍSIO, 1973, p. 13).

(2) O riachinho modesto, moroso, choroso, quem sabe, com pena de estar levando sua pouca água para outros cantos, não mede mais do que dois metros de largura e a fundura de um palmo. Ainda assim há uma ponte pequena, de madeira desaplainada. Dois pedaços de uma corda robusta e encardida ali estão, servindo de corrimão (ANÍSIO, 1973, p. 13-14).

(3) A casa é sem chiquê, mais para o pobre do que para o modesto. Na sala e num quarto o piso é de vermelhão. O outro quarto tem o chão descalço, como o da cozinha que não mereceu mais do que uma lavagem de água com cimento. Faz poeira quando é varrido. Mas é varrido tão pouco... O banheiro é lá fora – casinhola de sapé, infelizmente descoberta.

Como ressalta Fiorin (2014, p. 157), as hipotiposes foram classificadas de diferentes maneiras ao longo da história da retórica. Dentre essas tentativas de classificação ganhou destaque aquela que agrupa as ocorrências da figura segundo a realidade descrita. Nos três excertos apresentados anteriormente, temos exemplos de topografia (do grego tópos, que significa “lugar”, e graphé, “escrita”), uma categoria de hipotipose que fornece a descrição de um lugar.

A criação do espaço no texto literário serve a variados propósitos além do denotativo: situar as personagens geograficamente. No exórdio que analisamos, encontramos a criação de um espaço imaginativo, inventado, porém, semelhante aos que vemos no mundo real. Essa estratégia confere ao enredo maior verossimilhança. A casa de Pantaleão é tão comum quanto qualquer outra moradia modesta do sertão nordestino, rodeada de terra pisada e “galhos secos nos pés de pau engaranchados” (ANÍSIO, 1973, p. 13).

Nesse momento, o presente da narrativa, há uma imbricação simbólica entre o espaço e as personagens. A despretensiosa Terta surge “mansa [...], humilde [...], submissa [...]” (ANÍSIO, 1973, p. 18), trabalhando em sua máquina de costura:

(4) Dona Terta, na sala, faz com que seus pés ensinados deem movimento à Singer antiga, presente de um candidato a senador, na época em que seu marido era capaz de conseguir algumas dezenas de votos. Ela é quem ajeita 119

a roupa e faz a comida. Por sua conta ficam a limpeza da casa e o controle das compras, mensalmente efetuadas na feira de Valim, vilarejo tão pobre quanto a casa de que lhes falo (ANÍSIO, 1973, p. 16).

Pedro Bó, afilhado do dono da casa, é descrito em seguida no mesmo tom, como figura perfeitamente incorporada ao ambiente:

(5) No quarto dos fundos – o de piso de chão – dorme Pedro Bó, afilhado do dono, caboclo roliço, descendente de holandês na sua própria afirmação. Simpático, redondo, de cintura indefinida e puxando de uma perna desde o dia em que o tiro desviado de um caçador o atingiu na rótula. Foi obra do acaso, foi Deus quem mandou, Pedro Bó, conformado, afilhado e quase filho, nunca fez queixa, nunca alegou o que outros talvez chamassem de aleijão para se furtar a fazer um mandado (ANÍSIO, 1973, p. 16).

Temos, nos trechos destacados (4) e (5), exemplos de mais dois tipos de hipotipose: a prosopografia (do grego prósopon, “figura”, e graphé, “escrita”), que diz respeito à descrição do aspecto exterior de uma personagem, traços físicos e gestos; e a etopeia (do grego ethopoiía, “descrição do caráter”), figura que descreve o modo de ser de uma personagem, seus costumes, defeitos e virtudes.

A prosopografia fica evidente no exemplo (5), na descrição física de Pedro Bó: “caboclo roliço”, “descendente de holandês”, “redondo”, “de cintura indefinida” e “puxando de uma perna”. A etopeia, por sua vez, é encontrada nos dois exemplos: Terta tem temperamento dócil e é zelosa com os afazeres domésticos; Pedro Bó é conformado com suas limitações, simpático, trabalhador e grato aos padrinhos que o acolheram e o tratam como filho.

Depois dessas personagens, é-nos apresentada a mais discrepante: o dono da casa, Pantaleão.

(6) O resmungo constante no dono da casa. Ele se chama Pantaleão. Um olho perdido num cipó do mato. O garrancho covarde furou sua vista e nem um doutor de Barbalha, de grande competência, pôde dar jeito. No olho perdido, a lente dos óculos é preta, na tentativa de esconder o defeito que ficou. [...] A voz de Pantaleão tem o som do trovão. Os gestos são largos, cientes de si, compenetrados, valentes. Não tem muita coisa, que Deus lhe negou. Mas é homem vivido, sofrido, capacitado a enfrentar o ruim e o pior que lhe aparecer. Pantaleão Pereira Peixoto, um cabra danado, capaz de fechar o olho bom e ainda assim saber seguir os caminhos que tem a trilhar (ANÍSIO, 1973, p. 16-17). 120

Observemos que a hipotipose persiste na forma de prosopografia e etopeia. Pantaleão é forte em sua fragilidade, seja no corpo ou no caráter. Embora caolho, é um homem de gestos largos e voz vigorosa. Embora pobre, “Não tem muita coisa, que Deus lhe negou” (ANÍSIO, 1973, p. 16), e sofrido, é experiente, “[...] vivido, [...] capacitado a enfrentar o ruim e o pior que lhe aparecer” (ANÍSIO, 1973, p. 16-17), consciente de sua condição e da força que o impele a continuar.

A coragem e a convicção são, inclusive, espelhadas nos gestos, que são “[...] cientes de si, compenetrados, valentes” (ANÍSIO, 1973, p. 16). O corpo da personagem é descrito pelo orador 1 como um corpo enérgico, expansivo, seguro. Os gestos empregados por Pantaleão não são neutros ou indiferentes, mas manifestam uma atitude moral em relação ao mundo; seu corpo está “[...] em consonância com as orientações sociais e culturais que se impõem [...]”, mas ele também “[...] as remaneja de acordo com seu temperamento e história pessoais [...]” (LE BRETON, 2009, p. 41).

A decadência toma o ambiente e revela que o fim da vida, sem muitos êxitos, se aproxima: “[...] no pé da parede, as lascas de cimento não param de tombar. Esta falta de trato é explicada pela ausência de crédito no que o futuro promete. Os donos da casa sabem que não é muito o que os espera” (ANÍSIO, 1973, p. 14). Mesmo assim, debilitado pela idade e pela vida difícil do sertão, o orador 2 conserva a potência moral, a autoridade que distingue o narrador (BENJAMIN, 1987). Isso é o que revelam os movimentos de seu corpo, os gestos que projetam uma afetividade virtuosa a ser reconhecida e avaliada pelos leitores.

Até mesmo o “orgulho quase ilógico” (ANÍSIO, 1973, p. 13) do orador 2 diante da paisagem nada agradável de sua propriedade, composta por galhos secos e folhas sem viço, é transformado em virtude quando exposto com o intuito de comover o auditório. Pantaleão é homem apegado à sua terra, aos costumes do seu lugar. É trabalhador, destemido, e, é claro, sedutor:

(7) O sertão nasce na palma da sua mão calejada, que já pegou em cabo de enxada, rédea de potro bravo, espingarda de dois canos. Mão que muito segurou em faca e em foice, já andou no machado, preparando o roçado, já deu muito murro em cabra safado e, nos tempos melhores... Ah, que teve 121

tempo, cidadão, que Pantaleão Pereira Peixoto, menor na idade, fez muito carinho em dona casada, em moça donzela – e – contam – até uma meninota de quinze anos, filha-de-maria e neta de doutor, sentiu nas tranças a mão ensinada de Pantaleão Pereira Peixoto a lhe ensinar o que era bom (ANÍSIO, 1973, p. 17).

No quadro elaborado pelo orador 1, Pantaleão ganha caráter e corporalidade. Suas virtudes, reforçadas pelo orador 1, o colocam na posição de um orador admirável. Pantaleão mostra phrónesis, já que é um homem consciente e sábio, “[...] um cabra danado, capaz de fechar o olho bom e ainda assim saber seguir os caminhos que tem a trilhar” (ANÍSIO, 1973, p. 17); areté, pois é sincero e disposto a defender com energia a veracidade do que conta, “Tudo coisa vivida. Tudo verdade verdadeira que quem tiver coragem que caia na besteira de duvidar” (ANÍSIO, 1973, p. 18); e eúnoia, pois, com generosidade, se posta no alpendre, “[...] com o pé calçado na alpercata de rabicho comprada em Campina Grande, vestido no pijama folgado, do tempo em que era mais gordo [...]” (ANÍSIO, 1973, p. 17), sempre disposto a partilhar suas histórias com quem quiser aparecer em busca de conversa e um pouco de alegria. Assim, antes que o orador 2 tome a palavra, o auditório de leitores já tem dele uma representação construída pelo orador 1. Essa representação produz um ethos projetivo, suposto pelo auditório, que apenas a enunciação da personagem poderá confirmar ou infirmar.

Para o orador 1 também é importante trabalhar na manutenção do ethos constituído no primeiro exórdio, o que ele faz ao produzir um discurso fluente, abundante em figuras, mas com estilo ameno. Não há frieza, tampouco sinais de qualquer arroubo emocional. O orador 1 é como convém ao homem sensato e confiável: brando, comedido, linguisticamente competente. Os indícios de phrónesis são, portanto, mantidos.

Da mesma forma, a areté e a eúnoia são reveladas pelo detalhamento das informações, pela aparente necessidade de informar ao leitor tudo o que ele precisa saber. O orador honesto não esconde nada e transmite informações fiéis à realidade; o empático se coloca no lugar do auditório e tenta fornecer todos os dados que imagina necessários para a compreensão do discurso, pois, como afirma o orador 1 no título do segundo exórdio, “todo mundo precisa saber do que se trata” (ANÍSIO, 1973, p. 13). 122

No exórdio que ora analisamos, Pantaleão pouco fala. Em discurso direto, a personagem se mostra mal-humorada (8) e irritadiça, especialmente quando questionada (9):

(8) – Oh, Pedro Bó, que se eu não gostasse de ti... [...]. (ANÍSIO, 1973, p. 16).

(9) – Terta, espia... Amanhã é dia de ter noite de lua. – Será? – Ora será. Não tou dizendo que é? Se eu digo que é, é porque é, ô xente. (ANÍSIO, 1973, p. 17).

Mas também orgulhoso (10) e confiante, seguro do valor de sua experiência (11):

(10) – Daqui até onde a vista alcança é terra minha [...]. (ANÍSIO, 1973, p. 13).

(11) – Outra coisa eu não digo, seu doutor [...], mas sertão é coisa que eu conheço demais. (ANÍSIO, 1973, p. 17).

Pantaleão resmunga, se irrita com o afilhado e com a esposa, não conserva a mansidão recomendada por Aristóteles (2005) ao homem bom. Mas nada disso é grave. Seu caráter é comum aos velhos rabugentos e impacientes descritos pelo mesmo filósofo. Pantaleão é apenas uma boa personagem humorística, com pequenos vícios, mas nenhum deles grande o suficiente para provocar afetos dolorosos no auditório. Muito pelo contrário. É ele, Pantaleão, quem rompe, com sua voz trovejante, a monotonia da pequena casa. Quando o orador 1 lhe concede a palavra, a simplicidade e a decrepitude dão lugar a um mundo maravilhoso “da vaca de óculos, do veado capenga, do bode que voa, do ganso que fala...” (ANÍSIO, 1973, p. 18). Pois bom.

5.3 Agora sim, a narração

A princípio, imaginaríamos que a partir desse momento a palavra seria definitivamente (ou pelo menos prioritariamente) concedida ao orador 2. Contudo, a observação dos causos narrados revela o cumprimento da promessa feita pelo orador 1 no primeiro exórdio: os causos são contados pelos dois, “cada qual ao seu jeito” (ANÍSIO, 1973, p. 12). 123

Todas as histórias de É mentira, Terta? possuem uma estruturação breve e ilustram bem as características apontadas por Todorov (1980) e Dijk (1980). Embora a progressão cronológica não siga linearmente do início ao desfecho ocluso, a sucessão se mostra clara. Elas também podem ser consideradas narrativas mitológicas, já que as transformações que ocorrem ao longo da história conduzem o leitor no sentido de descobrir o próximo passo da ação.

A manutenção do fio narrativo encontrada nessas histórias revela uma das características mais valorizadas pelos contadores tradicionais. Na contação de causos, tanto os oradores quanto o auditório rejeitam narrativas mal construídas. Por mais imprevisíveis que sejam os desfechos, histórias “malucas”, “sem pé nem cabeça” (BATISTA, 2007, p. 102) denunciam a inabilidade do contador. A preservação das relações de causa e consequência é, portanto, fundamental nessas narrativas.

Tomemos como exemplo o conto “O guará preto e o guará branco na noite em que choveu por um ano e, mais do que isso, onde se explica o que é guará” (ANÍSIO, 1973, p. 57-62, grifos nossos)58:

OS DADOS DERAM DOIS PARES DE SEIS, e Pantaleão fez o lance decisivo. Nunca tinha perdido no gamão, por que que iria perder hoje? Ainda mais quando seu adversário era um incompetente, porque era contra Pedro Bó que Pantaleão jogava, com o tabuleiro escorado nos dois pares de joelhos, aproveitando a brisa que parecia nascer do riacho e lavava o alpendre de um frescor maravilha. Dona Terta, na cozinha, temperava o feijão-de-corda cujo cheiro tomava conta de tudo.

– Avia com esse feijão, Terta, que eu tou com a fome de cinco guarás.

Pedro Bó cresceu os olhos. Abriu os lábios num sorriso grande e feliz. Parecia menino que vai receber presente, quando fez o pedido.

– Seu Pantaleão, conte a estória do guará.

Pantaleão irritou-se. Quase tomou por deboche o pedido que o afilhado lhe fazia.

– Mas é cada uma! E onde já se viu, Pedro Bó, eu perder meu tempo contando estória para ti?

58 O início em caixa alta e os espaçamentos extras distribuídos ao longo do texto procuram reproduzir a diagramação original do conto publicado. 124

– Mas a estória é tão mimosa. É uma lindeza a estória do guará.

– Que é linda eu sei, mas quantas vezes tu já me viu contar essa estória?

– Só umas trinta – confessou Pedro Bó.

– E ainda quer ouvir de novo. Oh, Pedro Bó, que eu não conheço nada que pareça com gente mais do que tu. Vai te assear que o jantar vai já pra mesa.

Pedro Bó ia obedecer, quando a voz da professora chegou ao alpendre.

– Pode-se entrar?

Foi Pedro Bó quem correu a recebê-la, numa efusão de causar estranheza. Nunca partira dele tamanha gentileza. Mas o motivo não era exatamente a presença de Dona Julinha, era a chegada de uma visita. Com a visita presente, Seu Pantaleão não poderia fugir ao pedido do afilhado.

– Conte para Dona Julinha, Seu Pantaleão, a estória do guará.

A professora estranhou. Ela nem sabia o que era guará.

– Guará – Pantaleão explicava – é um bicho maior do que um cachorro, mas porém mais pequeno do que um urso. Mas é mais feroz do que os dois juntos. Dona Julinha, u guará preto enfrenta cinco homens e nem é com ele. Tem o guará preto, como eu já disse, e tem o guará branco. Esse, então, é pior do que leão. É disso que Pedro Bó tá falando.

A professora já recebia a canjica que Dona Terta trazia, ainda quente. Interessante, a estória deveria ser. E o mistério dos guará preto e branco fazia crescer sua curiosidade.

– Conte, Seu Pantaleão. Eu quero ouvir essa estória do guará preto e do guará branco.

Ela pediu de um jeito tão manso, com uma voz tão morna, com um olhar tão dengoso, que Pantaleão não teve jeito de não contar.

– Pois bom!

Era um domingo de manhã. O sol se espichava por todo o sertão, esquentando as gentes e os bichos. Era um sol antigo, que há muitos meses aparecia sem faltar um dia sequer. Mas aos domingos era bem-recebido.

Pantaleão acordou de bom humor. Abriu a janela que dava para o nascente, respirou fundo, deu comida ao sabiá, limpou o chiqueiro, varreu o quintal. Apesar de farto, o sol não estava tão quente como sempre. Talvez porque fosse domingo. Isso tudo serviu para que Pantaleão tivesse a ideia:

– Vou caçar! 125

Dona Terta cuidou de botar no matulão duas rapaduras, meio quilo de farinha, um pedaço vistoso de carne-de-sol, o pão que sobrar do café da manhã. Dona Terta sabia que, quando Pantaleão Pereira Peixoto saía pra caçar, não tinha hora pra voltar. Mas de mãos abanando é que não chegava. Ela trouxe tudo, inclusive a espingarda.

– Essa não, Terta. Quero a espingarda de dois canos, porque vou caçar guará.

Terta sabia da casa, da comida, do serzir de roupas. Terta conhece as manhas da Singer e do fogão. Mas de caçada quem sabe é o marido, que, inclusive, teve que explicar:

– Tem que ser espingarda de dois canos, minha velha, porque o guará preto só morre com dois tiros. Guará branco morre com um tiro só, mas vamos que eu ache no caminho um guará preto, que só morre com dois tiros? Tenho que dar um tiro, pei! e, antes que ele escape, dar outro, pei. Não dá tempo de carregar a espingarda.

Pantaleão foi no pasto, pegou o alazão, celou [sic], despediu-se da mulher com um beijo de longe e ganhou o mato.

Passa hora que passa hora e nada de aparecer um guará para satisfazer o desejo do homem. Veados e pacas, coelhos e tatus cansaram de atravessar seu caminho, mas Pantaleão não saíra de casa pra fazer caçada besta. Ele queria um guará.

O sol começava a desaparecer. O escuro já se insinuava. E mais escuro ficava porque havia nuvens de chuva tomando conta do céu. Um raio cortou o espaço, anunciando o trovão que não se fez esperar. Pantaleão abrigou-se debaixo de um pé de juazeiro.

– Aí, moça, começou. Era cada pingo que era isso.

– Pingo de chuva?

– Não, Pedro Bó. Era tua mãe que tava num galho do juazeiro... e... Terta! Traga a palmatória que eu vou dar vinte bolos em Pedro Bó.

– Não me açoite, não, Seu Pantaleão – pediu Pedro Bó, com os olhos cheios de lágrimas e com as mãos já estendidas para o castigo prometido.

– Não lhe açoito por deferença à Dona Julinha. Mas de amanhã em diante vai ficar todo dia uma hora de cara para a parede, durante uma semana.

Dona Julinha esperava a hora do guará aparecer na estória. Afinal, não lhe havia sido prometido nada diferente. Da chuva ela já sabia, mas... e o guará?

– Eu chego lá.

O céu fazia chover naquela tarde o que devia há muitos meses. A água descia encachoeirada pela encosta do morro, as poças cresciam pelo caminho. E já era noite. 126

– Diabo! Saí pra caçar um guará e vou voltar seco. Será possível?

Pantaleão estava irritado pela derrota. Não era comum isso acontecer nas suas saídas para a caça. Não era dos caçadores que voltam sem a coisa boa para a panela. Mas desta vez tudo indicava que...

– Espera!

Ele afiou o olhar, tentando afastar os pingos da chuva que formavam uma cortina à sua frente. Estava escuro, mas deu pra ver aquele bicho preto, correndo.

– Um guará preto. Deus me ajudou. Esse não me escapa. Cuidado, Pantaleão – disse para si – que o guará é preto, e guará preto só morre com dois tiros.

E não podia errar. Falhar significava a morte, porque o bicho atacaria.

Ele chegou a admitir que seria melhor que o guará fosse branco. Se o primeiro tiro falhasse, restaria o segundo, definitivo. A chuva caía pelos olhos, prejudicando a pontaria.

O guará o viu no momento em que ele dormia na pontaria.

– Pam!

O tiro perdeu-se na distância.

– Errei! Tô lascado.

Só restava um tiro, e o guará partia na sua direção, ameaçador, mortífero. Pantaleão escondeu-se atrás do tronco do juazeiro. A chuva era violenta. O guará, na corrida em que vinha, passou por ele. No momento em que o bicho passou, Pantaleão deu um pulo e gritou:

– Uhhh!

– Pra que esse grito. Seu Pantaleão? – perguntou a professora.

– Pra assustar o danado. O susto que ele tomou foi tão grande que ele ficou branquinho, Dona Julinha. Aí, quando ele ficou branco, eu pensei: “guará branco morre com um tiro só”. Aí... pei. Bem na testa.

Nesse conto a ação se divide em duas sequências: a da narração (sequência 1) e a da história narrada (sequência 2), cada uma delas formada por acontecimentos organizados linearmente em um tempo específico:

127

Sequência 1

Pantaleão joga gamão com Pedro Bó enquanto Terta cozinha Pantaleão pede à Terta que adiante a refeição, pois sente a fome de cinco guarás Pedro Bó pede a Pantaleão que lhe conte a história do guará Pantaleão nega A professora, Dona Julinha, chega à casa Pantaleão explica o que é guará e informa à professora que existem dois tipos do animal: o preto e o branco Pantaleão começa a contar o causo do guará.

Sequência 2

Pantaleão decide sair para caçar Terta lhe traz a espingarda Pantaleão a explica que a espingarda adequada é a de dois canos, pois guarás brancos morrem com um tiro, mas guarás pretos só morrem com dois Pantaleão apanha seu cavalo e segue para o mato As horas se passam e o caçador não avista um guará sequer O céu escurece e uma tempestade começa a cair à medida em que a noite chega Pantaleão se abriga sob um pé de juazeiro.

Sequência 1

Pantaleão é interrompido por Pedro Bó Pantaleão se revolta com o questionamento do afilhado e pede à Terta que lhe traga a palmatória Pedro Bó pede a Pantaleão que não o açoite Pantaleão desiste de bater no afilhado e continua a história.

Sequência 2

Pantaleão avista um guará preto O caçador atira e erra O guará parte ameaçadoramente em sua direção Pantaleão se esconde atrás de um tronco de juazeiro O guará passa direto, sem vê-lo Pantaleão dá um grito.

Sequência 1

A professora pergunta o motivo do grito Pantaleão explica que gritou para assustar o guará Pantaleão diz que o guará ficou branco com o susto O caçador conta que se lembrou de que o guará branco morre com um tiro só e aproveitou a oportunidade para dar um tiro na testa do animal.

A articulação entre as duas sequências conduz o leitor por eventos sucessivos, criando uma expectativa que culmina em um punch line, uma conclusão inesperada que integra a estrutura típica das anedotas, facécias e causos cômicos. A impressão final é, portanto, de uma aparente linearidade. Contudo, a simulação da ação no interior da narrativa demanda uma elaboração retórica um pouco mais complexa do que a de uma narrativa linear comum. 128

Nesse discurso, a fixação de marcos temporais divide os acontecimentos em dois níveis (sequência 1 e sequência 2). Em cada nível, é possível então identificar o tempo da história, pano de fundo para o enredo, e sua duração. Em relação ao primeiro nível (narração – sequência 1), não encontramos qualquer marco temporal explícito, mas os verbos no passado e a introdução do narrador no primeiro exórdio levam a crer que o suposto encontro entre Pantaleão e a professora tivesse ocorrido a tempo suficiente para ser contado anteriormente: “[...] nada mais fiz do que narrar o que me foi narrado” (ANÍSIO, 1973, p. 11). Quanto à duração, vemos que as ações do enredo (que incluem a conversa com a visita e a narração da história por Pantaleão) se desenvolvem em poucos minutos ou horas. No segundo nível (história narrada – sequência 2), somos levados a inferir que o episódio contado pela personagem pertença à mesma época de todas as aventuras temporalmente situadas por ela ao longo da obra: 1927. A duração é, por outro lado, claramente exposta: Pantaleão sai para caçar pela manhã e consegue matar o guará ao anoitecer do mesmo dia.

Todo o desenvolvimento narrativo se dá no passado, porém, é impossível determinar o intervalo temporal entre a aventura contada pelo orador 2 e o encontro com a professora, bem como o tempo passado entre esse encontro e o momento em que o orador 1 o expõe. Pela antiguidade dos casos narrados garantida pelo orador 1 no primeiro exórdio – “[...] tudo é tão antigo” (ANÍSIO, 1973, p. 12) –, só é possível deduzir que qualquer dos eventos narrados é passado há muitos anos, provavelmente décadas.

Com efeito, o tipo de organização da narrativa que apresentamos poderia levar-nos a considerar a ocorrência de uma simples narração ulterior, já que a posição do ato narrativo é inequivocamente posterior à história. Deparamo-nos, nesse conto, com um universo diegético encerrado, relatado por um narrador heterodiegético (orador 1), que o controla com focalização interna. O narrador heterodiegético é aquele que relata uma história da qual não participa ou participou como personagem. Desse modo, distingue-se dos narradores autodiegético – aquele que relata suas experiências como personagem principal da história – e homodiegético – aquele que vive a história como personagem e retira dessa experiência as informações que compõem o relato (GENETTE, 1989 [1972]). 129

A focalização proposta por Genette (1989) corresponde à “[...] representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético [...]” (REIS, LOPES, 1988, p. 246). É comumente dividida em três tipos fundamentais: focalização externa, focalização interna e focalização onisciente. A focalização interna que identificamos como tendência predominante nos contos analisados nesta tese corresponde à instituição do ponto de vista de uma personagem inserida na história (neste caso, o orador 2). Em relação a ela se distinguem a focalização externa, restrita à representação das características materialmente observáveis das personagens, das ações e do espaço; e a focalização onisciente – denominada por Genette (1989, p. 244-245) “focalização zero” ou “narrativa não-focalizada” – na qual o narrador dispõe de um conhecimento quase ilimitado, o que lhe permite controlar e manipular soberanamente as personagens, o tempo, o cenário etc.

A presença de um orador configurado como narrador heterodiegético com focalização interna é perfeitamente cabível em uma narração ulterior; entretanto, reconhecemos a presença de uma narração intercalada – comum, por exemplo, aos relatos epistolares e aos diários –, pela qual se fragmenta história em duas etapas interpostas, ambas ocorridas no passado, mas em momentos diferentes. Nesse caso, o tempo ultrapassa o enquadramento cronológico e se transforma em evento diegético.

O tempo filtrado pela experiência subjetiva do orador 2 promove uma alteração na estrutura da narrativa, configurada como um flashback ou um movimento analéptico cujo alcance pode atingir várias décadas – tempo decorrido entre o encontro com a professora e a caça ao guará –, e cuja amplitude chega a ocupar cerca de metade do conto. O mesmo movimento analéptico, de dimensão similar ao observado em “O guará preto e o guará branco na noite em que choveu por um ano e, mais do que isso, onde se explica o que é guará”, se repete em quase todos os contos de É mentira, Terta?, o que indicia a importância desse expediente na criação de níveis narrativos e, consequentemente, na disposição dos contos. Vejamos, a seguir, mais um exemplo em que os níveis narrativos se encontram muito claramente delimitados. 130

NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ que o Dr. Delegado dava o prazer de sua presença. Sempre que podia, ele vinha à casa de Pantaleão, ávido por ouvir uma estória sucedida e vencida por aquele homem bom contador. Mas a noite não estava boa para Pantaleão Pereira Peixoto. O cobreiro que lhe apareceu na sola do pé era o responsável pela desvontade que sentia. Já fizera toda sorte de meizinhas, o pé fora rezado por Candinha Rezadeira, responsável por muitas curas mais difíceis, mas nada resolvera. E isto lhe dava leseira, uma moleza bastarda, uma pontinha de febre. – Quer que eu mande o doutor aqui, Seu Pantaleão? – sugeriu o delegado na pergunta prestativa. – Quero não, Doutor Delegado. Se é pra morrer, que eu morra de morte morrida. O doutor vindo, vai é me matar mais depressa. Dona Terta trouxe a compressa e lhe envolveu o pé num farrapo de morim. – Quando Seu Pantaleão melhorar – era Pedro Bó quem falava – vai contar a estória da lagoa viajante. Pra que Pedro Bó foi lembrar? Os olhos do velho encheram-se de lágrimas. Emoção visível fluindo nele. O delegado notou. E sabia da fraqueza dele pelo gosto que tinha em contar um caso. – Lagoa viajante não existe – falou, provocante, propositalmente provocante. – O senhor pode nunca ter visto, mas que existe, existe, que seu amigo aqui já viu. – Conte meu velho... Não era preciso pedir outra vez. O pé subiu para o assento da cadeira, os dedos da mão corriam entre os dedos do pé, o rosto já tomava outro aspecto. – O doutor Delegado já ouviu falar na Lagoa dos Bragas? – Em Pernambuco? – Essa, doutor. A Lagoa dos Bragas, em Pernambuco. Conhece, não conhece? Pois bom...

A lagoa era grande que mais parecia uma fatia farta de mar. Grávida de peixes onde, dizem, havia traíras de cujas espinhas podia-se fazer dúzias de cabides. Era uma tarde de inverno. Frio não fazia, mas descia da serra um ventinho mais fresco do que o costumeiro e que obrigava o povo a levantar a gola da camisa, na proteção do que chamavam de frio. Mas não era frio, repito. Era apenas um calor menor, um frescor de fim de tarde. Já tinham falado de um peixe grande, na Lagoa dos Bragas. Muitos haviam dito ter visto o peixe "com esses olhos que a terra há de comer", e garantiam que o peixe não viria em anzol nenhum, nem em tarrafa pequena. Cada um afirmava um tamanho diferente do peixe, mas nenhum deles calculava em menos de trinta metros. Pantaleão não era dos que acreditam em qualquer conversa. Sabia que peixe de trinta metros não podia existir na Lagoa dos Bragas, mas admitia que uns vinte o peixe medisse. Por isso levou muita isca. Catorze vacas, foi o que levou. Pegou a 131 primeira e a prendeu no anzol, atirando-a ao rio ainda viva. Tinha que ser assim. Viva, a vaca mexia- se dentro da água chamando a atenção do tal peixe de trinta metros – que deviam ser, quando muito, uns dezoito. – Esse peixe eu pego, que eu não vou perder minha viagem de casa até a Lagoa Paciência...

– Mas não era Lagoa dos Bragas, Seu Pantaleão? – estranhou o delegado, bebendo o café adocicado pela rapadura raspada. – A lagoa era dos Bragas, porque ficava na terra dos Bragas, mas o nome dela era Lagoa Paciência. Grande e perigosa, doutor, que nela morreram mais de quinze... – Quinze pessoas? – Não, Pedro Bó; quinze hipopoto. Oh, homem pra perguntar besteira. Sabe de uma coisa? Não conto mais nada, não. E já calçou a chinela para ir embora. – Conte, meu velho. Voltou a sentar. – Você botou a vaca no anzol e sacudiu na lagoa. Siga daí. – Pois bom...

Daí, a espera pelo peixe maldito que um dia seria fisgado. E se havia alguém que pudesse com ele, este alguém estava ali. Era Pantaleão Pereira Peixoto, segurando o caniço com força, o olho único parado na água barrenta. E o peixe chegou. Pantaleão sentiu a fisgada e firmou ainda mais o caniço que se vergava na luta que começava. Não havia quem o ajudasse. Ele dava um arranque com a vara, e o peixe botava a cabeça fora da água. Não devia medir os trinta metros que falavam, mas talvez uns quarenta, porque pela boca dava para que se calculasse. O caniço mostrava que em breve se quebraria. Era preciso uma providência. Pantaleão lembrou das outras vacas que levara. Uma já havia sido comida pelo peixe, mas restavam treze pastando ali junto. Ao sentir que o peixe o arrastaria, pegou as treze vacas e nelas amarrou a linha.

– Linha de anzol? – Não, Pedro Bó. Linha do Ferroviário. Peguei o ponta-direita, os meia, o ponta- esquerda e o centrofor e amarrei nas vaca. Pergunta mais uma besteira para ver se eu não lhe dou um bofete. – Não se incomode com Pedro Bó – disse o delegado. – Continue. Amarrou as treze vacas e aí? – As vacas fazendo força, doutor, e nada de arrastar o peixe. Já o sol se amornava, eu pensei comigo: "anoitece e não tiro esse bicho da água". Mas eu não sou homem de desistir de empreitada. Comecei a puxar também, junto com as vacas. Cadê que o peixe saía? Diabo de peixe. Vai ver essa peste só sai com a polícia. Cheguei a pensar em chamar o senhor pra dar voz de prisão àquele peixe maldito. Foi quando 132 eu dei fé que pela estrada iam passando doze homens que trabalhavam nas terras do coronel Firmino. Gritei, os cabras vieram, eu contei o que se passava, eles foram buscar cinco carros de boi pra me ajudar na tarefa. Engatei os carros de boi junto com as vacas e ainda mais os doze homens de coronel Firmino e ainda mais eu, tudo puxando. – Puxando o peixe? – Não, Pedro Bó. Puxando tua mãe, pois não era tua mãe quem estava na Lagoa dos Bragas? Pedro Bó... tenha paciência. Se eu contar o resto eu estrale. Pedidos, súplicas, solicitações chorosas de Dona Terta. – Pois bom!

As juntas de bois e a força das vacas, aliadas ao esforço dos homens, começaram a tarefa. Não era serviço fácil, porque a força do peixe era imensamente maior do que a imaginável. Rangiam as rodas dos carros de boi, as vacas mugiam mugidos sofridos, os homens gemiam com os músculos tensos, à flor da pele, querendo estourar. Pantaleão ordenava a hora de mais força com os "ôôpp" e os "êêêppp" que gritava a cada momento. O peixe continuava sua luta. Não poderia ser um peixezinho qualquer de cinquenta ou sessenta metros, mas alguma coisa maior. – Será que esse peixe não é um navio? – admitiu um dos homens que ajudavam. – Não conversa. Faz força, diacho. Ôôôppp... Mas a força era vencida pela força do peixe que até parecia trazê-los para a lagoa, em vez de dela sair. Lutaram por um tempo que pareceu infinito. Até que perceberam ser inútil continuar. O peixe não saía da lagoa.

– Quer dizer, então, que não arrastaram o peixe? – perguntou o delegado, sem esconder que lamentava a derrota. – O peixe, não, mas arrastamos a lagoa até a cidade. – O quê? – o delegado pôs-se de pé diante do que julgou uma mentira. – Arrastaram uma lagoa até a cidade? – Esse causo findou-se em Belo Horizonte. Vá lá e veja se não tem uma lagoa no meio da cidade. (ANÍSIO, 1973, p. 46-51, grifos nossos)

O conto apresentado, “A estória do peixe que apareceu na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome, mas se tivesse não tinha a menor importância”, traz duas narrativas que se desenrolam de forma integrada: uma delas, a moldura, ocupa quatro blocos (parágrafos 1 a 13; 19 a 27; 31 a 38; 43 a 46); a outra, emoldurada ou encaixada à primeira, se distribui em três blocos (parágrafos 14 a 18; 28 a 30; 39 a 42). 133

O encaixe entre as narrativas se faz não apenas diagramação do conto, mas também por aspectos estilísticos. Em relação ao estilo, verificamos, por exemplo, a diferença na seleção dos tempos verbais que marcam cada bloco de narrativa. Na moldura, o número de ocorrências do pretérito perfeito é superior ou bem próximo ao número de ocorrências do pretérito imperfeito, ao passo que a narrativa encaixada apresenta amplo predomínio das formas imperfeitas. Naturalmente, essa escolha também está relacionada à preferência pelo uso do discurso direto na narrativa moldura, que simula a atualização da narrativa que estaria cronologicamente mais próxima ao tempo da narração.

Identificamos, assim, a presença de um narrador heterodiegético (orador 1) que relata o encontro entre Pantaleão e o visitante que irá compor seu auditório. O estrato da narratividade em que essa história se passa e os diálogos entre as personagens (Pantaleão, Terta, Pedro Bó e o delegado) acontecem, ou seja, a “moldura”, é o nível diegético. Engastado nele, está o causo narrado por Pantaleão (orador 2), que constitui o nível hipodiegético.

5.3.1 Aspectos retóricos das narrativas-moldura (nível diegético)

Segundo Medeiros (2012), a construção de molduras ou níveis narrativos é um artifício retórico que confere mais intensidade e uma atmosfera de verossimilhança ao narrado, além de provocar a curiosidade do leitor. De fato, entendemos que a cena criada no nível diegético do conto analisado a torna mais vívida graças a seus aspectos estilísticos. Mesmo quando não chegamos à hipotipose, temos, desde o início, uma descrição tingida pela subjetividade do orador 1 que, como dissemos anteriormente, se mostra comprometido com o ponto de vista do orador 2. Note-se a descrição colorida por adjetivos e a riqueza de detalhes sensoriais de algumas passagens:

(12) Não era a primeira vez que o Dr. Delegado dava o prazer de sua presença. Sempre que podia, ele vinha à casa de Pantaleão, ávido por ouvir uma estória sucedida e vencida por aquele homem bom contador. (ANÍSIO, 1973, p. 46, grifos nossos)

(13) O pé subiu para o assento da cadeira, os dedos da mão corriam entre os dedos do pé, o rosto já tomava outro aspecto. (ANÍSIO, 1973, p. 47, grifos nossos)

134

Esse é um expediente comum nos contos de É mentira, Terta?. Com frequência, o orador 1 ressalta as impressões sensoriais que compõem a cena da narração:

(14) [...] a brisa que parecia nascer do riacho e lavava o alpendre de um frescor maravilha. (ANÍSIO, 1973, p. 57, grifos nossos)

(15) Dona Terta, na cozinha, temperava o feijão-de-corda cujo cheiro tomava conta de tudo. (ANÍSIO, 1973, p. 57, grifos nossos)

(16) Dona Terta, na cozinha, preparou uns docinhos, além do pé-de-moleque cheiroso como o capeta, gostoso como o tinhoso. (ANÍSIO, 1973, p. 103, grifos nossos)

(17) A lua amarelava a noite do sertão. Luazona grande esbanjando claridade, fazendo o dia existir nos caminhos, embora já andasse por perto da meia-noite. (ANÍSIO, 1973, p. 123, grifos nossos).

As escolhas observadas na elocução não são fortuitas. O clima criado pelas descrições do orador 1 é normalmente acolhedor. Note-se que a hipérbole predomina nas descrições: a brisa lavava o alpendre de um frescor maravilha; o cheiro do feijão-de-corda tomava conta de tudo; o pé-de-moleque é cheiroso como o capeta e gostoso como o tinhoso; a luazona grande esbanjava claridade e fazia o dia existir nos caminhos. Trataremos com maiores detalhes dessa figura adiante, na construção do maravilhoso nos contos. Por enquanto, convém dizer que ela opera como um recurso de amplificação, que intensifica as qualidades do lugar onde os causos de Pantaleão são narrados. Em meio à dureza do trabalho, à aridez do clima e à monotonia dos dias, o alpendre de Pantaleão é descrito como um refúgio fresco, luminoso e perfumado, onde maravilhas podem surgir.

Em outras ocasiões, é o próprio Pantaleão quem se torna objeto das descrições elogiosas do orador 1, hipérboles que contribuem grandemente para a construção do caráter virtuoso do orador 2:

(18) O Nordeste é terra de muitos vaqueiros, mas nenhum deles com a competência e o talento de Pantaleão Pereira Peixoto, montador escolado, cabra que conhece as manhas e os segredos de qualquer montaria. Amestrador de cavalhadas incontáveis, rei na rédea, um deus na sela, fazendo o cavalo trotar e galopar pelo lugar que deseje. (ANÍSIO, 1973, p. 33, grifos nossos). 135

(19) Não é raro aparecer na cidade onde ele mora um viajante do Sul ou do Norte, querendo conhecê-lo, ouvir, de viva voz, os causos que se passaram com esse nordestino de um olho só e cinco corações. (ANÍSIO, 1973, p. 39, grifos nossos)

Em (18), a hipérbole intensifica a experiência, a competência e o talento da personagem, a excelência com ele que desempenha as atividades cotidianas do seu ambiente; em (19) o orador se vale do simbolismo positivo do coração para amplificar as virtudes de Pantaleão. Segundo Prates (2005), bem antes da descoberta da função de bomba impulsionadora de sangue, o coração já era considerado o centro da vida e da coragem. Com o surgimento do Cristianismo, tornou-se, também, símbolo da bondade e da caridade cristãs e, hoje, está vinculada, em nossa cultura, a todas as formas de união amorosa. Quando somos receptivos ou expomos nossos sentimentos, “abrimos o coração” para alguém. Ao dizer que Pantaleão tem cinco corações, o orador 1 afirma que está muito além de todas as outras pessoas em coragem, bondade e energia.

A maior parte da moldura, entretanto, é construída não com a narrativa do orador 1, mas com o discurso direto do orador 2. O discurso direto imprime velocidade e compõe um diálogo permeado por variações linguísticas que procuram reproduzir as características da fala no discurso literário e nos informam sobre as variáveis socioculturais e psicológicas das personagens. Em “A estória do peixe que apareceu na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome, mas se tivesse não tinha a menor importância”, percebemos que as contrações e as interjeições (20) são utilizadas na simulação do discurso oral, e que, em algumas passagens, a ortografia correta e a concordância prevista pela norma culta da língua portuguesa são desprezadas em benefício da verossimilhança na construção da fala de um orador com baixa escolaridade, (20) e (21):

(20) – Não, Pedro Bó; quinze hipopoto. Oh, homem pra perguntar besteira. Sabe de uma coisa? Não conto mais nada, não. (ANÍSIO, 1973, p. 48, grifos nossos)

(21) – Não, Pedro Bó. Linha do Ferroviário. Peguei o ponta-direita, os meia, o ponta- esquerda e o centrefor e amarrei nas vaca. (ANÍSIO, 1973, p. 49, grifos nossos)

As contrações e interjeições são frequentes em outros contos do livro, como vemos nos exemplos (26) e (22), ao lado de outros recursos que 136 contribuem para aproximar a narrativa à oralidade, como a silabação (25) e a redução da forma verbal estar (27). Quanto aos recursos mais utilizados na reafirmação do ethos de um orador interiorano, de baixa escolaridade, identificamos, no nível diegético, o emprego do desprezo pela concordância (verbal e nominal) culta, (22), (23), (24) e (27); e o uso de um léxico inserido em um paradigma popular, tal qual o observado em (27) com o uso das formas avexação e voimicê. Por serem comuns em contextos reais da língua portuguesa falada, fenômenos como o apagamento do plural nos substantivos, (23) e (27); o uso do pronome de primeira pessoa do plural ou segunda pessoa do singular com verbo na terceira pessoa, (22) e (24), respectivamente; e de vocábulos como avexação e voimicê (27) garantem a verdade artística do ethos construído.

(22) – Hoje é contra quem? – Contra a Itália, Pedro Bó. E se nós ganhar, a Copa do Mundo é nossa. – Eita! (ANÍSIO, 1973, p. 83, grifos nossos)

(23) – Nove jogador? – Não, Pedro Bó. Nove bailarina. (ANÍSIO, 1973, p. 86, grifos nossos)

(24) – Tu conhece Escadinha, Terta? (ANÍSIO, 1973, p. 95, grifos nossos)

(25) Maravilhoso. Ma-ra-vi-lho-so – disse e repetiu o cabo eleitoral. (ANÍSIO, 1973, p. 94, grifos nossos)59

(26) – Não, Pedro Bó. Cortado em trinta, pra que quem quisesse pudesse fazer sarapatel de Umbelino. (ANÍSIO, 1973, p. 114, grifo nosso)

(27) – Com essas mãos que voimicê tá vendo. Só que na avexação de terminar logo o serviço, antes que o sangue esfriasse, eu emendei errado, Dr. Juiz. Deus há de entender que eu não tive culpa, foi a avexação, como penso já ter dito. Emendei a parte de baixo ao contrário, voimicê entende? Tampe os ouvido, Terta. (ANÍSIO, 1973, p. 115, grifos nossos)

Também são importantes na construção do ethos do orador 2 as formas que revelam o grau de intimidade entre os interlocutores e os estados emocionais que eles experimentam ao longo da interação, como o respeito

59 O discurso direto é aqui reproduzido tal como se encontra na obra. No contexto do conto, é possível reconhecer que se trata de discurso direto, ainda que a ausência do travessão se faça sentir. Nesse caso, acreditamos que a falha se deva a esquecimento do autor ou a problemas na editoração. Devemos acrescentar que a mesma falha pode ser observada na edição publicada pela editora Clube do Livro em 1986. 137 desafiador que se estabelece entre Pantaleão e o delegado, em (28) e (29); a impaciência do contador diante das perguntas de Pedró Bó, em (31) e (32); ou a calma nas intervenções apaziguadoras de Terta, em (29) e (30):

(28) – Quer que eu mande o doutor aqui, Seu Pantaleão? – sugeriu o delegado na pergunta prestativa. – Quero não, Doutor Delegado. Se é pra morrer, que eu morra de morte morrida. O doutor vindo, vai é me matar mais depressa. (ANÍSIO, 1973, p. 46)

(29) – Lagoa viajante não existe – falou, provocante, propositalmente provocante. – O senhor pode nunca ter visto, mas que existe, existe, que seu amigo aqui já viu. – Conte meu velho... (ANÍSIO, 1973, p. 46-47)

(30) E já calçou a chinela para ir embora. – Conte, meu velho. Voltou a sentar. (ANÍSIO, 1973, p. 48)

(31) – Quinze pessoas? – Não, Pedro Bó; quinze hipopoto. Oh, homem pra perguntar besteira. Sabe de uma coisa? Não conto mais nada, não. (ANÍSIO, 1973, p. 48)

(32) – Linha de anzol? – Não, Pedro Bó. Linha do Ferroviário. Peguei o ponta-direita, os meia, o ponta- esquerda e o centrofor e amarrei nas vaca. Pergunta mais uma besteira para ver se eu não lhe dou um bofete. (ANÍSIO, 1973, p. 49).

É uma constante em todos os contos a irritação de Pantaleão ao tratar com as interrupções e questionamentos do afilhado, aos quais ele responde com insultos, agressões ou ameaças. Essas interações atestam o clima de intimidade entre as duas personagens, assim como a relação que se estabelece entre elas: a pretensa superioridade de Pantaleão (homem mais velho, padrinho e chefe da família) frente à subserviência de Pedro Bó (jovem afilhado dependente). O ethos construído nessas interações, de um homem intolerante e agressivo, é condizente com a descrição aristotélica do caráter dos velhos. A exasperação, no entanto, dura pouco e nunca se converte em nada além de intimidação.

A relação com Terta, por sua vez, é fonte de tranquilidade e apoio para Pantaleão. É ela a principal incentivadora do marido, a quem obedece sem 138 protestar. Em troca, o contador lhe dedica carinho e respeito, sobretudo quando a conversa envereda por caminhos um pouco mais picantes:

(33) – Pois bom. Secundino, meu primo, como já lhe falei umas poucas de vez, aceitou o emprego. O que o elefante tinha não era doença nem mazela, que elefante é um bicho difícil de adoecer. O elefante estava era... Terta, dá licença um pouquinho? Dona Terta saiu. Pantaleão curvou-se sobre o homem e lhe disse o maior dos segredos. – O elefante estava era sentindo falta de elefanta, porque bicho é feito nós: também sente falta do que é bom, meu senhorzinho. Elevou a voz, então. – Pode voltar, minha velha. (ANÍSIO, 1973, p. 78)

(34) – Ah, porque eu não posso, ah, porque tem que poder, ah, porque eu não tenho cultivo pra isso, ah, porque tem. Pede ele, nego eu, acabei cedendo, porque Raimundo Fiúza era um homem decente a quem eu muito devia, inclusive foi quem me soltou quando um cabo safado de Garanhuns me prendeu numa quermesse, só porque eu andava todo emperequetado naquele tempo e uma cabocla que era namorada dele se embeiçou pro meu lado, mas isso é estória que não vem ao caso, e nem é coisa que eu conte na frente de Terta, minha mulher, a quem eu amo como um cavalo. (ANÍSIO, 1973, p. 91)

Os visitantes são sempre amigos. Alguns são compadres, vizinhos. Outros, são figuras de prestígio como o delegado, em “A estória do peixe que apareceu na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome, mas se tivesse não tinha a menor importância”; a professora em “O guará preto e o guará branco na noite em que choveu por um ano e, mais do que isso, onde se explica o que é guará”; o juiz, em “A visita do Juiz de Direito que apenas queria beber água, mas que terminou de maneira indesejável, porque parece ter havido, na estória, certos excessos”; ou o candidato a deputado, em “O caso verdadeiro do gato Simão, bichano metido a coisa e que morreu por causa de sua mania de luxo, o que aliás é bem feito, pra ele aprender”. Sejam muito ou pouco poderosos, todos são tratados da mesma forma, com consideração e firmeza. O orador 2 se constrói como portador de passado exuberante, digno de respeito. Por isso, ignora as manifestações de poder – especialmente as de poder econômico –, ou reage a elas com energia, reafirmando a sua autoridade moral, como vemos nos excertos (35) e (36): 139

(35) – Siga adiante compadre – pediu Roberval, pernas cruzadas, mostrando ostensivo a espora de prata. [...] – Continue, compadre – pediu Roberval, menos interessado do que aparentava. Ninguém lhe notara as esporas de prata. [...] – Continue, homem de Deus – pediu o compadre. – Acabe essa estória enquanto eu tiro minhas esporas de prata. [...] – Bem, a prosa está boa, mas as esporas de prata estão me apertando – disse o compadre, levantando-se e saindo à busca do seu zaino. [...] – Foi-se embora e nem ouviu a estória da raposa... – lastimava-se Pantaleão. – E me diga uma coisa, Terta: ele estava de espora? (ANÍSIO, 1973, p. 28-32)

(36) – Não vendo, não, Pantaleão – dizia Isidro pela oitava vez. – Não gosto de vender meus bichos, você sabe. Ainda mais agora, que uma vaca de leite vai valer uma fortuna. É que você, Pantaleão, não entende muito desse assunto. Foi a mesma coisa que o desabar de uma bomba sobre o telheiro. – Seu Isidro Julião, eu respeito muito vosmicê, eu tenho pela sua consideração como talvez só tenha tido por Raimundo Fiúza – a quem muito devo e que um dia até me soltou quando eu tinha sido preso por uma injustiça da Justiça. Vosmicê é um homem de caráter, decente como um corno. Mas o que vosmicê acabou de dizer é uma prova de falta de conhecimento de minha pessoa. Eu só vou lhe contar uma estorinha das mais besta, um causo furreca, mode vosmicê ficar sabendo quem é Pantaleão Pereira Peixoto, esse seu criado. O senhor, que é homem vivido, que tem andado por tudo quanto é lado desse sertão lascado, não pode deixar de ter ouvido falar num boi chamado de Boi Veloz. Se nunca ouviu falar dele, então a culpa é sua, porque depois de Lampião e do Padre Cícero, a pessoa de quem mais se fala é nesse Boi Veloz, que foi um animal de minha propriedade. (ANÍSIO, 1973, p. 132)

Além de ser espaço de confirmação do foco narrativo do orador 1 e de construção do ethos do orador 2, a narrativa-moldura, constituída pela situação de comunicação anterior ao causo contado por Pantaleão e pelas interrupções promovidas por outras personagens, favorece a criação de uma expectativa para as personagens e para o leitor, já que ambos são estimulados a conhecer a continuidade da história. Na moldura, a agradabilidade da história, explicitamente reforçada pelo orador 1, e a recusa do orador 2 em contá-la criam um clima de suspense, como podemos conferir nos trechos a seguir:

140

(37) A professora já recebia a canjica que Dona Terta trazia, ainda quente. Interessante, a estória deveria ser. E o mistério dos guarás preto e branco fazia crescer a sua curiosidade. – Conte, Seu Pantaleão. Eu quero ouvir essa estória do guará preto e do guará branco. (ANÍSIO, 1973, p. 58, grifos nossos)

(38) Dona Terta fez Pedro Bó afastar-se. Ela sabia que se ele continuasse ali, sentado no barril, limpando a espingarda, Pantaleão não seguiria a estória que estava cada vez mais interessante. (ANÍSIO, 1973, p. 43, grifos nossos)

(39) – Seu Pantaleão, o senhor podia contar pro doutor aquela estória das duas onças. – Ora, ainda mais essa. O homem é do governo, Pedro Bó. Você pensa que o povo do governo tem tempo pra perder escutando porqueira? – Conte, conte – o homem pediu. – Se é que a estória é verdadeira. [...] – É uma das melhores estórias de Pantaleão. Conte, meu velho. (ANÍSIO, 1973, p. 70-71, grifos nossos)

Em todos os contos, as histórias narradas pelo orador 2 fazem jus à expectativa que despertam, sejam elas histórias de sucesso como “O guará preto e o guará branco na noite em que choveu por um ano e, mais do que isso, onde se explica o que é guará”, em que Pantaleão consegue vencer a investida do guará, ou de fracasso aparente como “A estória do peixe que apareceu na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome, mas se tivesse não tinha a menor importância”, na qual o contador não consegue pescar o peixe gigante da Lagoa dos Bragas. Passemos, pois, a elas.

5.3.2 Aspectos retóricos das narrativas emolduradas (nível hipodiegético)

Algumas características das narrativas-moldura mantêm-se nas narrativas emolduradas. Em “A estória do peixe que apareceu na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome, mas se tivesse não tinha a menor importância”, por exemplo, percebemos que hipérbole continua a ser um expediente retórico frequente no nível hipodiedético da narrativa:

(40) A lagoa era grande que mais parecia uma fatia farta de mar. (ANÍSIO, 1973, p. 47, grifos nossos)

141

(41) Não era serviço fácil, porque a força do peixe era imensamente maior do que a imaginável. Rangiam as rodas dos carros de boi, as vacas mugiam mugidos sofridos, os homens gemiam com os músculos tensos, à flor da pele, querendo estourar. (ANÍSIO, 1973, p. 50, grifos nossos).

Esse expediente, que também é mantido em outros contos, (42) e (43), é responsável por amplificar os feitos de Pantaleão e, consequentemente, por reforçar as virtudes da personagem:

(42) Pantaleão contou, então, da máquina que inventou. Uma coisa tão perfeita que nem parecia coisa que homem imaginasse: uma máquina de aproveitamento do boi. (ANÍSIO, 1973, p. 92-93, grifos nossos)

(43) O olho sabido do caçador não precisou fixar-se para contar que os patos eram dez. Com o silêncio de um ladrão e a agilidade de uma pantera, botou ligeiro dez chumbos na espingarda. (ANÍSIO, 1973, p. 120, grifos nossos).

O trabalho do orador 1 na consolidação do caráter de Pantaleão é especialmente importante na narrativa encaixada, já que, nesse momento, as falas do orador 2 mostram-se reduzidas. Nessas raras oportunidades, persistem as marcas de oralidade, como as interjeições, (44) e (45), e os indícios sobre as variáveis socioculturais e psicológicas da personagem, já destacados no nível diegético:

(44) – Não conversa. Faz força, diacho. Ôôôppp... (ANÍSIO, 1973, p. 50, grifo nosso)

(45) – Oh, com os diacho. Não se pode nem dormir. (ANÍSIO, 1973, p. 41, grifos nossos)

O ethos efetivo do contador confirma-se, portanto, como o de um homem simples, de pouca escolaridade e ligeiramente rude.

Na maior parte dos contos de É mentira, Terta? o evento mais relatável se passa na narrativa emoldurada e é bastante fácil identificá-lo, uma vez que ele é mencionado no título, ainda que de forma não muito explícita para garantir a surpresa. Já expusemos neste capítulo alguns desses títulos:

• “O guará preto e o guará branco na noite em que choveu por um ano e, mais do que isso, onde se explica o que é guará”, que faz alusão a 142

personagens (guará preto e guará branco) do evento mais relatável (a caça ao guará) e às circunstâncias em que ele ocorre (a noite em que choveu por um ano); • “A estória do peixe que apareceu na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome, mas se tivesse não tinha a menor importância”, em que são apresentadas não apenas pistas do evento mais relatável (a pescaria ao peixe da Lagoa do Bragas), mas a dúvida em relação à precisão dos dados expostos durante a narrativa (“[...] na Lagoa dos Bragas que, aliás, não tinha esse nome”) e a afirmação de que a imprecisão não compromete a exposição do evento ou sua “veracidade” (“[...] mas se tivesse não tinha a menor importância”). • “A visita do Juiz de Direito que apenas queria beber água, mas que terminou de maneira indesejável, porque parece ter havido, na estória, certos excessos”, história na qual Pantaleão emenda um homem cortado ao meio por um trem. Nesse título, excepcionalmente, a reação do visitante ilustre a um suposto exagero praticado por Pantaleão é posta em relevo como evento mais relatável, o que coloca em questão a credibilidade da narrativa (“[...] parece ter havido, na estória, certos excessos”). • “O caso verdadeiro do gato Simão, bichano metido a coisa e que morreu por causa de sua mania de luxo, o que aliás é bem feito, pra ele aprender”, narrativa “verdadeira” em que o evento mais relatável é a morte exemplar de um gato caprichoso criado por Pantaleão.

Outros exemplos são: “Os peixes, os patos, o tamanduá e duas onças bodeiras. Aqui todos ficam sabendo que Pantaleão é maior que tudo isto, o que, aliás, não é novidade”, em que também são citadas personagens (animais na ordem em aparecem na narrativa) do evento mais relatável (caçada em que Pantaleão é surpreendido por duas onças-bodeiras60), e “A narração de um feito

60 Onça-bodeira é uma denominação popular atribuída a indivíduos da espécie Puma concolor. São felinos de grande porte, com coloração que varia do marrom-acinzentado ao marrom- avermelhado. No Brasil, possuem ampla distribuição, embora as populações encontrem-se atualmente bastante reduzidas. Em algumas regiões são conhecidas como onças-pardas ou suçuaranas (sudeste, sul e centro-oeste do Brasil), onças-vermelhas (Mato Grosso do Sul) ou leões-baios (sul do Brasil). A denominação bodeira (ou bodera) é típica do nordeste brasileiro, onde também são chamadas mossorocas. Para mais informações, veja-se o artigo “Avaliação do risco de extinção da onça-parda – Puma concolor (Linnaeus, 1771) – no Brasil” (2013) 143 extraordinário de Pantaleão, no qual sua participação é tão pequena que não passa de participação nenhuma. O bode e o cachorro, porém”, título no qual se anunciam as personagens (um cachorro e um bode treinados por Secundino, primo de Pantaleão) do evento mais relatável (realizações, a princípio, impossíveis para animais).

Como temos visto, esses eventos são configurados como espetaculares tanto o orador 1 quanto pelo o orador 2. Nessa construção, ambos se utilizam de artifícios retóricos que engrandecem as ações de Pantaleão e, ao mesmo tempo, o protegem da desonestidade e do ridículo. A reunião desses artifícios resulta em uma amplificação que toca o maravilhoso. É disso que tratamos a seguir.

5.3.3 Totalmente demais: a produção retórica de maravilhas

Conforme ensina Todorov (1981), o maravilhoso hiperbólico pode ser caracterizado pelo extraordinário que resulta do exagero. Abaixo, transcrevemos o conto “O dia em que Pantaleão pescou um tubarão que não foi pescado por ele, mas é a mesma coisa” (ANÍSIO, 1973, p. 19-25), assinalando as hipérboles que contribuem para a construção do maravilhoso:

– Ô DE CASA! – grita Dr. Aristóbulo da soleira da porta, rodando entre os dedos o inseparável chapéu-de-panamá. – Se é de paz, entre... – responde a voz de Pantaleão, boca cheia de rapadura, que come roendo nos cantos. Dr. Aristóbulo, de competência duvidosa mas simpatia indisfarçável, toma conta da sala, com sua presença. Um metro e noventa bem medidos, cento e tantos quilos mal distribuídos nas banhas que aumentam a cada semana. – Com esse calor do cão não dá pra gente ficar em casa – explica, como se fosse necessário explicar. – Resolvi dar um pulinho até aqui pra gente prosar um pouco. Já lhe é servido o café que, não faz cinco minutos, Dona Terta passou, com o esmero de sempre. Sentado no tamborete, junto à mesa, Pantaleão Pereira Peixoto engole o pedaço derradeiro da rapadura, limpando o canto da boca na ponta da toalha. – Ultimamente eu ando meio sem assunto, doutor. Diz isto já tomando assento na cadeira de balanço, mostrando que falou mentira. Bem que Pantaleão tem coisa pra contar. Quem vem prosar com ele não tem o tempo perdido.

e o Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção: volume II – Mamíferos (2018). 144

– Desde que esse reumatismo deu em minha perna que eu deixei de andar por esse mundo velho. Minha vida, agora, doutor, é essa leseira que vosmicê tá vendo. – Ora, Seu Pantaleão – é Pedro Bó quem chega, lata de água na cabeça para a lavagem dos pratos do jantar. Dona Terta, da cozinha, concorda com a dúvida de Pedro Bó. Mais do que ninguém ela sabe que seu velho não recusará a chance que aparece. A sugestão é dela. – Conte a do tubarão, meu velho, que a do tubarão é das melhor que se conhece. – Ora, Terta, ainda mais essa. O causo do tubarão é tão besta que nem vale a pena – contesta Pantaleão, na mais gritante das falsas modéstias, coçando o dedo do pé. – Conte, Seu Pantaleão – pede Pedro Bó. – Conte, homem. Isso só pode ser estória boa – o doutor instiga. Pantaleão poderia se fazer de rogado, esperar mais dois ou três pedidos, outras tantas insinuações. Mas não é homem de luxo. É pra contar, deixe com ele. – Pois bom. Sucedeu em 1927. As cadeiras se chegam para perto do contador. Os ouvidos se abrem para escutar um fato verdadeiro. Coisa sucedida de verdade tem gosto especial. – O causo se deu quando numa tarde de rio em cheia compadre Bernardino me chamou mode nós pescar. Doutor, se tem duas coisas que eu não enjeito é cheiro de mulher e convite pra pescaria. Pois bom.

Pantaleão e Bernardino a bordo da canoa Atrevida ganharam o mundo rio acima, remando contra a correnteza. Aqui e ali Bernardino soltava o remo e soprava nas mãos que já mostravam o cansaço do homem. Pantaleão, todavia, não arrefecia o ritmo nem diminuía a força. Não é querendo dizer que Bernardino atrapalhasse, mas o fato é que não ajudava muito. Com ele ou sem ele, a Atrevida subiria o rio na mesma velocidade, graças à força de Pantaleão Pereira Peixoto, remador velho de guerra, conhecedor profundo dos segredos do rio, sabendo onde era o raso e onde era o fundo, o ponto exato em que a correnteza diminuía ou aumentava. No fundo da canoa, esperando a hora de entrar em serviço, a tarrafa de malha fina, meia dúzia de anzóis, isca pra meio dia e o bornal onde dormiam a rapadura e os punhados de farinha. Além da pequena mesa onde jogar uma bisca quando a vontade batesse. – Quando a fome chegar, me avise – disse Pedro Bó, companheiro de viagem, que, se não remava, pelo menos servia para tomar conta dos pertences do pescador. Fazia três horas que remavam. O céu escurecia para os lados da serra, avisando da possibilidade de uma chuva com vento. – O céu tá azulando, compadre! – gritou Pantaleão, com o olho perdido no alto. – Será que vai chover? – Vai não, Pedro Bó. Vai chover, não. Vai é cair mulher do céu. Mas a que cair pra tu eu tomo pra mim. Oh, Pedro Bó... tenha paciência. O tempo, se não era aconselhável para continuarem no rio, pelo menos era o ideal para pegar peixe grande. A ameaça de chuva esquentava as águas do rio, e os 145 peixes, sabedores da chuva que cairia, começavam naquela hora a procurar os cantos do rio, abrigar-se, quem sabe, nas locas das pedras – enfeite das margens. Encostaram a canoa num barranco saliente, amarraram-na a um pé de jatobá e começaram os três a preparar os engodos. Entretinham-se no serviço e nem se aperceberam do fato da canoa, de repente, começar a balançar-se, como se algo a agitasse por debaixo da água. A canoa corcoveava como potro indomado até que splac! partiu-se a corda que a prendia ao jatobazeiro. – Acode, lá vai a canoa! Não havia mais tempo. O barco descia, levado pela correnteza, sem que ninguém pudesse evitar. Bernardino ameaçou atirar-se ao rio e, nadando, tentar alcançar a canoa, trazê-la de volta. Pantaleão o conteve. Seria suicídio. Ficaram acompanhando a canoa, na esperança de que na curva do rio ela se encravasse num barranco e ali ficasse. Mas o pequeno barco fez a curva junto com o rio e sumiu de vista. – A canoa foi-se embora? – Não. Foi só fazer uma necessidade e já volta, Pedro Bó. Oh, que você não pergunta uma coisa que preste! Mas o que acontecera à canoa que tanto pulou e tanto se buliu, enquanto estava amarrada? Foi quando apareceu o tubarão à flor da água. – Tubarão na água doce? – perguntou Dr. Aristóbulo, querendo fingir acreditar mas não controlando o descrédito. – Um tubarão que se perdeu da manada, doutor, e subiu o rio no rumo errado. Tem tubarão que é assim, doutor, besta que só peru de noite. Uma ocasião... – Não mude de estória – adverte Dona Terta, enfiando e puxando a linha do bordado no bastidor campanheiro. – Continue. O tubarão apareceu... e aí?

Não era dos grandes, o tubarão. Media o quê? Uns oito ou dez metros? No alto do espinhaço aquela coisa que parecia uma serra e que, certamente, fora o que cortara a corda da canoa, livrando-a do jatobazeiro. Ali é que não ficariam. Com a ligeireza do pensamento, Pantaleão derrubou uma árvore e, quinze minutos depois, seu canivete ensinado já a tinha escavado, fazendo uma canoa que, se não era perfeita, pelo menos dava para flutuar e para os levar daquele barranco sem segurança. A nova canoa foi jogada na água, e os três homens tomaram lugar. Como remos, usavam folhas de uma palmeira, naturalmente preparados por Pantaleão. Remavam com força, mas os remos não eram suficientes para os fazer deslizar o tanto que desejavam. Isto explica o fato de não conseguirem afastar-se do tubarão que os seguia de perto, faminto e covarde, esperando a ocasião propícia para pegar um dos três. – Joga um cacho de banana dentro d’água – gritou Pantaleão para Pedro Bó. – Banana? Dessas? – perguntou, exibindo o cacho. – Não, Pedro Bó. Dessas não. Daquelas que eu te dou cada vez que tu pergunta uma besteira. As bananas recém-apanhadas na margem foram jogadas ao tubarão por Bernardino, na esperança de que isso o distraísse. Caíram na água e um segundo depois já haviam sumido, engolidas pelo peixe que não os perdia de vista. Encalhada na margem do rio estava a Atrevida. A canoa em que iam acercou-se da Atrevida. Não mudaram para ela. Mas deu para que Bernardino tirasse de lá a pequena mesa que 146 haviam levado. A mesa foi jogada no rio, sobre o tubarão. A fera comeu a mesa e continuou nadando em volta como se nada tivesse acontecido. – Não há o que faça esse bicho desistir. – Que bicho? O tubarão? – Não, Pedro Bó. Esse automóvel que tá aí dentro d’água, querendo comer a gente. Tome um cascudo pra aprender a ser gente. Uma providência precisava ser tomada. Foi quando Seu Pantaleão teve a idéia. – Vamos jogar dentro d’água o velho Joaquim.

– E tinha velho Joaquim na canoa? – perguntou Dr. Aristóbulo, enquanto se servia de um copo de cajuína. – É Bernardino, doutor. O nome dele todo é Joaquim Bernardino, e como ele é velho... Dr. Aristóbulo cuspiu a cajuína que lhe provocara o engasgo e arrumou-se melhor na cadeira para escutar a estória que, pelo jeito, estava perto do fim. – Continue, meu velho – pediu Dona Terta. – Você achou que era melhor sacudir dentro d’água o velho Joaquim...

O pensado foi feito. Por mais que se debatesse, Joaquim Bernardino foi atirado ao rio ao alcance do tubarão, que não teve muito trabalho para o engolir. Isso serviu para acalmar o peixe. Poucos minutos, e o rio voltava à calma de antes. O céu já mostrava um começo de azul para os lados do norte. Chover, não choveria mais. Deixaram a canoa deslizar a favor da correnteza e duas horas depois estavam na cidade, sãos e salvos. Aos pescadores do porto contaram o sucedido. Escutaram conselhos de que não deveriam subir o rio numa canoa assim tão frágil. Eles, que usavam barcaças maiores, de vez em quando tinham problemas, imagine com uma canoinha frágil como a Atrevida. Foi quando despontou, chegando ao cais, a barcaça Senhora, de João Deodato. Na proa da barcaça, João com um sorriso que mostrava ter feito boa pesca. Amarrado à barcaça vinha o tubarão. Parecia ser o mesmo que tentara pegar Pantaleão no meio do rio, mas nada podia ser comprovado. Tubarão, são todos iguais. – Abre o bucho do bicho! – sugeriu um. Foi Pantaleão quem fez o serviço, que ninguém por ali sabia, melhor do que ele, estripar um peixe. A faca deslizou e o peixe se fez em dois. Todos foram testemunhas. Ao abrirem a barriga do bruto, viu-se o velho Joaquim Bernardino, todo ancho, comendo o cacho de banana que estava em cima da mesa.

A hipérbole (do grego hyperbolé, “ultrapassar”; daí, “excesso”, “amplificação”) é, segundo Fiorin (2014), um tropo em que há aumento da intensidade semântica. O superlativo da expressão dá ênfase ao dito, e, por difusão semântica, chama a atenção para a expressão menos intensa que ela engloba. Quando o orador 1 exalta a rapidez com que Pantaleão derruba uma 147

árvore, “com a ligeireza do pensamento”, e esculpe uma canoa com um canivete, “quinze minutos depois” (p. 23), por exemplo, as expressões nos impressionam, já que não perdemos de vista o tempo que uma pessoa demoraria para executar essas atividades, o qual provavelmente seria expresso por “horas” ou “dias”.

No conto apresentado, vemos que o exagero se manifesta em diferentes graus: do elogio de Terta, “a do tubarão é das melhor que se conhece”, à suposta diminuição da relevância do causo, expressa pelo orador 2 em “O causo do tubarão é tão besta que nem vale a pena”; da denúncia do orador 1 em “na mais gritante das falsas modéstias”, à sutil intensificação do sentido pela anadiplose61 em “Os ouvidos se abrem para escutar um fato verdadeiro. Coisa sucedida de verdade tem gosto especial” (p. 20, grifos nossos), o que se nota é a exaltação da qualidade da aventura vivenciada por Pantaleão, responsável por ajudar a criar expectativa em torno da narração, tanto no auditório ficcional quanto nos leitores.

Mais adiante, já no nível hipodiegético, percebemos o louvor às habilidades incomuns de Pantaleão, “[...] a Atrevida subiria o rio na mesma velocidade, graças à força de Pantaleão Pereira Peixoto, remador velho de guerra, conhecedor profundo dos segredos do rio, sabendo onde era o raso e onde era o fundo, o ponto exato em que a correnteza diminuía ou aumentava” (p. 21, grifos nossos); “Com a ligeireza do pensamento, Pantaleão derrubou uma árvore e, quinze minutos depois, seu canivete ensinado já a tinha escavado, fazendo uma canoa que, se não era perfeita, pelo menos dava para flutuar e para os levar daquele barranco sem segurança” (p. 23, grifos nossos); que se fazem ainda mais admiráveis diante do porte e da ferocidade do tubarão: “Não era dos grandes, o tubarão. Media o quê? Uns oito ou dez metros?62” (p.

61 A anadiplose (do grego αναδιπλ, “redobrar”) é uma figura caracterizada pela repetição da palavra ou do sintagma final de uma oração ou verso no início da oração ou do verso seguinte (FIORIN, 2014, p. 120). Embora não tenhamos a repetição da mesma expressão nos dois períodos, entendemos que as expressões “fato verdadeiro” e “coisa sucedida de verdade” são parafrásticas e, por isso, garantem a materialização da figura. 62 Essas medidas são equiparáveis às médias de comprimento das maiores espécies de tubarão conhecidas. A maior delas, com ocorrências registradas no litoral brasileiro, é o tubarão-baleia (Rhincodon typus), que mede, em média, entre 10 e 12 metros. No entanto, não podemos compará-lo à espécie mencionada no conto apresentado, uma vez que os tubarões-baleia mantêm uma dieta baseada prioritariamente em componentes planctônicos e nectônicos, consumidos por filtração, e muito raramente atacam seres humanos. Prova disso é o estudo apresentado por Szpilman (2004), no qual registram-se, entre 1580 e 2000, apenas dois ataques não-fatais de tubarões-baleia em todo o mundo, sendo um deles provocado. Outra espécie com 148

23, grifos nossos); “As bananas recém-apanhadas na margem foram jogadas ao tubarão por Bernardino, na esperança de que isso o distraísse. Caíram na água e um segundo depois já haviam sumido, engolidas pelo peixe que não os perdia de vista. [...] A mesa foi jogada no rio, sobre o tubarão. A fera comeu a mesa e continuou nadando em volta como se nada tivesse acontecido” (p. 24, grifos nossos); “O pensado foi feito. Por mais que se debatesse, Joaquim Bernardino foi atirado ao rio ao alcance do tubarão, que não teve muito trabalho para o engolir” (p. 25, grifos nossos).

Todas as hipérboles registradas proporcionam uma gradação ascendente, uma intensificação dos sentidos que culmina no evento mais insólito, que fecha o conto: Joaquim Bernardino é encontrado vivo dentro do tubarão, usufruindo do alimento (cacho de bananas) e do objeto (mesa) que foram atirados ao rio antes dele na tentativa de esmaecer o ímpeto do peixe. Apresenta-se, aí, uma lógica superlativa e concessiva: ainda que seja impossível, aconteceu. Embora essa lógica, que busca romper as expectativas, seja menos comum em discursos argumentativos que a lógica implicativa (de fazer o que se pode), ela também representa uma das formas de se instaurar a argumentação, segundo afirma Fiorin (2007), baseado em Zilberberg (2006). Ainda que não estivesse tratando, como Fiorin (2007), da aproximação entre retórica e semiótica, o semioticista francês, reconhece em Elementos de Semiótica Tensiva (2011 [2006]), que esse tipo de lógica pode ser encontrado em gêneros reconhecidos por um vasto auditório ou direcionados a ele:

tamanho aproximado é o tubarão-peregrino (Cetorhinus maximus), encontrado algumas vezes na costa Sudeste e Sul do Brasil. Essa espécie pode atingir 11 metros de comprimento, embora os machos maduros apresentem mais comumente entre 4,5 e 5 metros. Trata-se, contudo, de mais um animal planctívoro. Abandonando-se essas possibilidades, poderíamos considerar espécies mais agressivas de grandes dimensões, tais como o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier), responsável por alguns ataques contra seres humanos, principalmente na costa Nordeste do Brasil; ou o tubarão-branco (Carcharodon carcharias), normalmente considerada a espécie mais perigosa de tubarão, por ser, segundo estatísticas, a responsável pelo maior número de casos de ataques a humanos – entre 1580 e 2000, foram registrados 373 ataques, dos quais 253 não- provocados e 68 fatais (SZPILMAN, 2004). De qualquer forma, os tamanhos apontados para os maiores exemplares dessas espécies ainda são inferiores aos citados no causo de Pantaleão. Segundo Gadig (2001), tubarões-brancos atingem um comprimento máximo de 7 metros e tubarões-tigre, 6,1 metros. A média dos animais maduros é, todavia, bastante menor: entre 2,3 e 2,9 metros para machos, e 2,1 e 3,5 para fêmeas, no caso dos tubarões-tigre; e 2,4 metros para machos, no caso dos tubarões-brancos. Não há dados disponíveis para as fêmeas desta última espécie. Todas essas informações apenas corroboram o caráter hiperbólico do dado introduzido pela personagem. 149

Os gêneros discursivos notórios, tais como o mito, a lenda ou ainda a conversação corrente têm pendores para o inacreditável, o maravilhoso, o surpreendente, o prodigioso. O enunciado básico talvez se construa menos a partir da relação enunciva entre um tema e um predicado do que a partir da relação enunciativa entre um enunciador convicto do caráter inacreditável, “sobrenatural” do acontecimento narrado e a legítima propensão à dúvida que ele supõe no enunciatário a que se dirige: “claro que você não vai acreditar, e se eu fosse você também não acreditaria, mas juro que é verdade”! Para o enunciatário, não se trata de validar uma afirmação, mas, na realidade, de admitir como tal uma exclamação, ou seja, a marca de um sobrevir irrecusável. Por meio de práticas rituais, tais como jurar pela própria mãe ou pelos próprios filhos, ou ainda exibir provas e testemunhos supostamente indiscutíveis, procura-se reduzir o intervalo tensivo admitido entre o acreditável e o inacreditável. A concessão dramatiza a veridicção, já que o enunciatário é convidado a ratificar a apresentação concessiva estabelecida pelo enunciador: “embora as aparências estejam contra mim, estou dizendo a verdade” (ZILBERBERG, 2011, p. 65-66).

O que podemos tirar dessa aproximação com a Semiótica Tensiva é a identificação do caráter muitas vezes superlativo e concessivo da conversação e das narrativas populares e, por conseguinte, dos contos que analisamos nesta tese, que delas se aproximam.

A possibilidade de estabelecimento de uma lógica concessiva nas histórias analisadas coloca em questão paradoxo observado por Labov (1997): a narração de eventos surpreendentes é o maior motivo para que atribuamos lugar privilegiado de fala a um orador, mas quanto mais surpreendente for o evento, mais questionável será a honestidade daquele que o conta. Por isso, grande parte da narrativa hipodiegética nos contos de É mentira, Terta? é feita pelo orador 1, protegido pelo “pacto ficcional”, que leva o auditório de leitores a admitir “[...] que o está sendo narrado é uma história imaginária” (ECO, 1994, p. 81), fingindo que tudo de fato aconteceu. O orador 2, ao contrário, não goza de defesas a priori. Por isso, os questionamentos que recaem sobre os feitos maravilhosos protagonizados ou presenciados por Pantaleão colocam a credibilidade da personagem constantemente à prova. É necessário, portanto, que ela se defenda, e é dessa defesa que trataremos no próximo tópico.

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5.3.4 Construção e manutenção da credibilidade do orador

A busca pela manutenção da credibilidade é bastante explícita nas narrativas, já que a incompatibilidade dos fatos narrados põe em xeque a honestidade do orador, uma das virtudes que permitem que ele seja ouvido com respeito e atenção. Por esse motivo, o orador 2 manifesta impaciência e irritação quando questionado, conforme expusemos nos excertos (31) e (32), em 4.3.1. Para evitar a perda do status, o orador 2 responde com veemência a cada interrupção ou manifestação de dúvida, (46), (48) e (49), ou encontra formas de desviar-se da objeção, introduzindo novos feitos a seu favor (47):

(46) O galho mais baixo não estava a menos de quinze metros. [...] – Eu me encolhi, compadre, e me preparei mode pular pra cima. Pedi a proteção de São Francisco de Assis – santo de palavra, que nunca me deixou em necessidade – e vupt, subi. – Compadre, você estará querendo me dizer que num pulo subiu quinze metros e pegou o galho? [...] – Não apreciei o jeito de você fazer essa pergunta, compadre Roberval. Estou lhe recebendo na minha casa com muito amor, pra você pagar essa gentileza com uma pergunta safada como essa. (ANÍSIO, 1973, p. 31, grifos nossos)

(47) – É que eu acho que quinze metros – desculpava-se o compadre – é muita altura. Você, num salto, subir quinze metros... – Eu vou ser sincero, Roberval. Eu não peguei o galho no pulo que dei, não. – Ah, bem. – Quando eu pulei, eu passei pelo galho, mas na descida do pulo, caí escanchado nele, que foi uma beleza. (ANÍSIO, 1973, p. 31, grifos nossos)

(48) – [...] Chego no curral, tá lá o bichinho. – Um bezerro? – Não, Pedro Bó. Um caminhão Chevrolet. Pedro Bó, eu já não deixo tu comer e dormir aqui? Eu já não te dou o que vestir e o que calçar? Então porque [sic] é que teima em me atazanar a vida, seboso? (ANÍSIO, 1973, p. 133-134, grifos nossos).

(49) – Eu quero saber porque [sic] o bezerro ficou com esse nome de Boi Veloz. Ou não foi esse o tal do Boi Veloz? – Foi, mas “tal do boi” não gosto, não. “Tal do boi” é um dos seus bois, j’ouviu? (ANÍSIO, 1973, p. 134, grifos nossos)

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As ironias que surgem como réplicas às interrupções de Pedro Bó são recursos importantes nesse momento. Vejamos, a seguir, alguns exemplos:

(50) – Nunca me separei do meu canivetezinho, seu moço. Um canivete que eu comprei em Fortaleza, no mercado. Botei a mão no bolso e senti que ele estava ali. – O canivete? – Não, Pedro Bó. Uma bomba atômica. Não vê o senhor, seu moço, que cada vez que os americano faz uma bomba atômica nova, manda uma amostra pra mim? (ANÍSIO, 1973, p. 43, grifos nossos)

(51) Um dia – me lembro como se fosse hoje – eu estava tomando meu cafezinho no pires quando bateu na minha porta um cidadão. – Um homem? – Não, Pedro Bó. Se eu disse “um cidadão”, só podia ser Carmem Miranda (ANÍSIO, 1973, p. 135, grifos nossos).

(52) Saiu dando com os calcanhares no rabo, numa irritação que provocou a gargalhada de Pantaleão. – Tá se rindo, Seu Pantaleão? – Não, Pedro Bó. Tou obrando. (ANÍSIO, 1973, p. 136, grifos nossos)

Lembremo-nos de que a ironia (do grego eironéia, “dissimulação”) é uma figura que leva a um alargamento semântico, já que, no eixo da extensão, a expressão irônica abarca um sentido qualquer e o seu oposto. O resultado do processo (fingir dizer algo para dizer o oposto) é uma intensificação do sentido. De acordo com Fiorin (2014, p. 70), a ironia apresenta uma atitude do orador, e cria sentidos que vão do gracejo ao sarcasmo, passando pelo escárnio, pela zombaria e pelo desprezo.

À obviedade nas perguntas de Pedro Bó (o questionamento sobre um referente – “canivete” – facilmente recuperável em (50); sobre o sexo de uma pessoa previamente chamada de “cidadão” em (51); ou sobre a atitude de alguém que claramente ria à sua frente em (52)), Pantaleão opõe o absurdo nas respostas (a presença de uma bomba atômica em seu bolso; a existência do “cidadão” Carmem Miranda que batera à sua porta; ou o ato de defecar ao ver a visita sair irritada de sua casa.

Uma forma de classificar a ironia que acreditamos revelar com mais clareza o aspecto verbal e o aspecto situacional dessa figura é a proposta por 152

Muecke (2017). De acordo com esse autor, a ironia pode ser dividida em situacional (ou observável) e verbal (ou instrumental). Para ilustrar a ironia situacional, Muecke (2017) narra o trecho da Odisseia em que Ulisses retorna a Ítaca e se disfarça de mendigo em seu próprio palácio. Estando ali sentado, o herói escuta um dos pretendentes à mão de Penélope dizer que ele (Ulisses) jamais voltaria a seu lar. Note-se que é uma ironia observável, toda a situação é percebida como irônica. A ironia verbal, por sua vez, diz respeito exatamente à inversão semântica que mostramos acima, nas respostas de Pantaleão a Pedro Bó.

A ironia é um dos principais recursos retóricos de produção do humor nos contos do livro É mentira, Terta?, uma vez que essa figura é responsável por criar, pelo exagero, uma incompatibilidade em relação ao conhecimento comum estabelecido. A criação dessa incompatibilidade funciona como um ataque. Assim o orador 2 desqualifica o questionamento de Pedro Bó e mantém a autoridade de seu ethos.

Outra questão levantada por Labov (1997) nas narrativas de experiência pessoal aparece como artifício utilizado pelo orador 2 na construção de sua credibilidade: a transferência de experiência efetuada por dados sensíveis. Segundo Labov (1997), as narrativas mais aptas a transferir experiência são as que se apoiam amplamente em dados apreensíveis pelos sentidos. Uma intensa transferência de experiência, ou uma grande aceitação do narrado pelo auditório, representa, por sua vez, um incremento na credibilidade do narrador.

Nos contos É mentira, Terta? verificamos que o orador 2 busca transferir experiência pelo fornecimento de “evidências” concretas de suas aventuras:

(53) – O doutor Delegado já ouviu falar na Lagoa dos Bragas? – Em Pernambuco? – Essa, doutor. A Lagoa dos Bragas, em Pernambuco. Conhece, não conhece? Pois bom... (ANÍSIO, 1973, p. 47).

(54) – Esse causo findou-se em Belo Horizonte. Vá lá e veja se não tem uma lagoa no meio da cidade. (ANÍSIO, 1973, p. 51).

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Quando a sua própria palavra ou os “dados concretos” se mostram insuficientes para convencer o auditório da veracidade do narrado, o orador 2 recorre a outra prova: o testemunho de Terta. Em “O boi Bozó e o alazão Brioso de cujas capacidades só duvida quem é besta – coisa que não é o seu caso” (ANÍSIO, 1973, p. 33-38), conto em que Pantaleão persegue um boi feroz do sertão nordestino às ruas do Rio de Janeiro, por exemplo, a palavra da esposa é solicitada para confirmar que a existência de um monumento na frente do Jockey Club Brasileiro, na capital carioca, tem relação com a morte do cavalo que conduzia o contador durante a perseguição:

(55) – Morreu naquela hora, Seu Pantaleão? – perguntou Seu João Inácio, já se preparando para ir embora. – Nada. Tinha morrido há mais de cinquenta quilômetros. O resto ele veio no embalo. Ah, Brioso, Brioso, que saudade eu tenho do meu cavalinho. – Esse cavalo, Seu Pantaleão... – Não conhece ele não? Já viu, na frente do Jóquei Clube lá no Rio? Não tem um cavalo lá, em pé, todo ajeitado? – Tem... tem – confirmou João Inácio, titubeando. – Diga pra ele, Terta, que cavalo é aquele. (ANÍSIO, 1973, p. 38, grifos nossos)

É interessante notar que a estátua a que o contador se refere de fato existiu (Figura 5), sendo mais tarde retirada em uma reconfiguração paisagística do espaço (Figura 6), como podemos verificar nas imagens abaixo:

Figura 5 – Jockey Club Brasileiro (Década de 1930)63

63 Fonte: Blog Rio de Janeiro que eu amo. Disponível em:< http://riodejaneiroqueeuamo.blogspot.com/2009/07/jockey-club-brasileiro-decada-de- 1930.html>. Acesso em 25 jan. 2019. 154

Figura 6 – Jockey Club Brasileiro (2009)64

Outra narrativa apoiada em “dados concretos” que merece confirmação é apresentada no conto “De como a fama de Pantaleão Pereira Peixoto chegou à Bahia, a ponto de merecer a atenção de um jornal de Salvador, terra de ”, no qual Pantaleão fica com o couro de uma onça na mão, depois de retirá-lo inteiro por um corte na testa, deixando o felino ainda vivo. O encerramento do causo se dá da seguinte maneira:

(56) – ... e eu fiquei com o couro da bicha na mão, seu moço. – Isso é incrível – foi só o que comentou o jornalista baiano. Mas Seu Pantaleão não gosta que duvidem das coisas que ele conta. Coçando a perna levantada, pé sobre a cadeira, com a calma de um monge e a segurança de um bravo, ainda completou com voz compassada: – Terta, vai buscar o tapete que a gente fez com o couro dela, que o doutor vai gostar de ver. (ANÍSIO, 1973, p. 44).

Aproveitando-se da concessão dada pelo auditório (no caso, composto por Terta, Pedro Bó e o jornalista baiano), Pantaleão ultrapassa o próprio excesso, a que a palavra de Terta dá fé:

(57) – [...] E se o senhor for homem de sorte, é capaz de ver. Até hoje, sempre que esfria um pouquinho, a onça vem aqui com as pata cobrindo os possuído, pára bem acolá e olha pra mim, como quem diz: “Seu Pantaleão, devolva minha roupa que eu tou morrendo de frio!” É mentira, Terta? – Verdaaade. (ANÍSIO, 1973, p. 44-25)

64 Fonte: Blog Rio de Janeiro que eu amo. Disponível em:< http://riodejaneiroqueeuamo.blogspot.com/2009/07/jockey-club-brasileiro-2009.html >. Acesso em 25 jan. 2019).

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Da mesma forma, o testemunho da esposa é solicitado em “Pantaleão Pereira Peixoto – prefeito substituto de Escadinha, que, apesar de não ser inventor, é pessoa capacitada a produzir inventos mirabolantes e quem duvidar é mulher do padre”, história em que Pantaleão fala da máquina inventada por ele para produzir subprodutos do boi, e que, quando ligada ao contrário, faz de um monte de carne moída, botões, pentes e sapatos, um boi vivo de novo. A cada dúvida importante, opõe-se uma declaração de veracidade dada pela mulher:

(58) – Quem fabricou a máquina? – inquiriu o cabo eleitoral. – Quem foi, Terta? – indagou Pantaleão. – E não foi tu mesmo, meu velho? Foi tu. – Sim – seguiu Pantaleão – fui eu. Mas eu queria que você dissesse pra não parecer que eu estava contando prosa. (ANÍSIO, 1973, p. 93)

E a cada desfecho inacreditável, uma manifestação de cumplicidade, que tenta garantir a preservação da história e do clima de encantamento por ela gerado:

(59) – Tu conhece Escadinha, Terta? – perguntou Pantaleão. – Conheço. E todo mundo lá sabe desse caso – disse Dona Terta, com um sorriso conivente, daqueles que fazem o amor crescer. (ANÍSIO, 1973, p. 95)

Enquanto o orador 2 tenta convencer o auditório diegético dos feitos maravilhosos por meio de uma argumentação concessiva, o orador 1 o defende perante o auditório de leitores, atestando a veracidade do narrado:

(60) [...] quem pode resistir à tentação de escutar uma estória importante como a do boi Bozó? E era estória verdadeira, contada por quem a viveu: Pantaleão Pereira Peixoto. (ANÍSIO, 1973, p. 34)

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5.3.5 Peroração: a contação acabou. Será?

– Pois bom – disse Pantaleão –, e eu nasci vestido. É mentira, Terta? – Verdaaade. ... entrou pelo norte do pinto, saiu pelo sul do pato... e quem quiser que conte quatro.

É essa a última narrativa do livro: “A estória do fim que ficou para o final de propósito, por ser a derradeira” (ANÍSIO, 1973, p. 137). Com estrutura diferente das demais, não pode ser inserida no bloco da narratio. Trata-se, de fato, de um encerramento. Para Pantaleão, a história derradeira é convertida em argumento final, em amplificação extrema. Por meio dela, o orador 2 afirma que sua existência ultrapassa a lógica convencional desde o nascimento. O maravilhoso deixa de qualificar os eventos vividos ou presenciados e passa a fazer parte dele mesmo.

O orador 1, por seu turno, fecha o seu discurso com uma fórmula de encerramento comum às narrações orais: “... entrou pelo norte do pinto, saiu pelo sul do pato... e quem quiser que conte quatro”. Com isso, retoma o ethos de narrador popular construído no exórdio 1 e insere todo o discurso que compõe o exórdio 2 e a narratio num universo onde real e imaginário se misturam. Esse discurso, que “entrou pelo norte do pinto”, sai “pelo sul do pato”; se encerra após a última estória de Pantaleão, na peroração.

A história que “ficou para o final de propósito”, não é, no entanto, “a estória do fim”, como afirma o título, mas uma promessa de continuidade – “e quem quiser que conte quatro” (ANÍSIO, 1973, p. 137) –, um chamado à ampliação da rede de contadores e de suas histórias maravilhosas.

5.3.6 Juntando as pontas

A partir das análises realizadas, consideramos que a via argumentorum que leva à construção do discurso epidítico pode ser sistematizada da seguinte maneira:

157

Quadro 1 – Características do exórdio 1

Estratégias Principais recursos

Captatio benevolentiae - Criação de expectativa

Constituição do ethos do orador 1 (ethos dito + ethos mostrado): responsável, respeitável, competente, - Citação de atributos generoso, honesto, bem-humorado, - Comparação narrador popular

Construção do caráter do orador 2 pelo orador 1: herói e vilão, superior ao - Citação de atributos orador 1 e independente dele

Fonte: Elaborado pela autora (2019)

No primeiro exórdio, prevalece a argumentação do orador 1, responsável por provocar a expectativa do auditório sobre o discurso, tal como preveem os tratados de Retórica: “[...] conquistaremos sua atenção se prometemos falar de assuntos importantes, novos ou extraordinários [...]; ou lhes pedimos que nos escutem com atenção e enumeramos os que pontos de que iremos tratar” (RETÓRICA..., 1997, p. 76, tradução nossa)65.

Os assuntos extraordinários apresentados por ele são os “feitos maravilhosos” (ANÍSIO, 1973, p. 11) de Pantaleão, personagem brevemente caracterizada ainda no exórdio por sua “maneira de ser” (CÍCERO, 1997) ambígua, “herói e vilão” (ANÍSIO, 1973, p. 11). Desse modo, o orador 1 fundamenta o seu discurso nos atributos da pessoa. Esse procedimento é definido na invenção, assim como a constituição de um ethos virtuoso.

Para que sua exposição seja considerada digna de ser lida pelo auditório heterogêneo de leitores (auditório 1), o orador 1 investe, em momento oportuno, em uma autorrepresentação positiva, que compreende qualidades morais, phrónesis, areté e eúnoia, e características que o aproximam dos narradores populares, aqueles que, em certa medida, reproduzem as “histórias do povo”,

65 No original: “Lograremos su atención si prometemos que vamos hablar de asuntos importantes, novedosos o extraordinarios […]; o si les rogamos que nos escuchen con atención y enumeramos los puntos que vamos a tratar”. 158 como Pantaleão, Arnaud Rodrigues, Ariano Suassuna ou os contadores nordestinos. De acordo com Aristóteles (2005), todas essas estratégias convêm à produção do exórdio no gênero epidítico, no qual devem constar atributos que indiciem a respeitabilidade do orador, bem como elementos de louvor ou censura.

Quadro 2 – Características do exórdio 2 Estratégias Principais recursos

Descrição do ambiente e das - Hipotipose personagens pelo orador 1

Manutenção do ethos do orador 1 - Estilo ameno, com uso de figuras (ethos mostrado): brando, comedido, - Descrição detalhada das informações linguisticamente competente, honesto e relevantes empático

Construção do caráter do orador 2 - Citação de atributos pelo orador 1: deficiente, orgulhoso, - Descrição de manifestações mal-humorado, pobre, experiente, corporais corajoso, convicto, enérgico, expansivo, seguro, trabalhador, sedutor e falante

Constituição do ethos do orador 2 - Réplicas grosseiras (ethos dito + ethos mostrado): mal- - Hipérbole: autoelogio (posses e humorado, irritadiço, orgulhoso habilidades)

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

No segundo exórdio, o orador 1 continua a estruturar o discurso com atributos da pessoa (CÍCERO, 1997). Ressaltam-se assim:

• a natureza de Pantaleão (sexo, idade, qualidades e defeitos físicos): homem idoso, “vivido, sofrido” (ANÍSIO, 1973, p. 16); com um olho cego, voz forte, gestos largos, mão calejada; • a classe: relações com Terta, Pedro Bó e amigos; • a condição: “Não tem muita coisa, que Deus lhe negou” (ANÍSIO, 1973, p. 16); 159

• a maneira de ser: “cabra danado, capaz de fechar o olho bom e ainda assim saber seguir os caminhos que tem a trilhar” (ANÍSIO, 1973, p. 17); • os sentimentos: “montado num orgulho quase ilógico” (ANÍSIO, 1973, p.13); “o resmungo constante no dono da casa” (ANÍSIO, 1973, p. 16); • os acidentes: “Um olho perdido num cipó do mato. O garrancho covarde furou sua vista e nem um doutor de Barbalha, de grande competência, pôde dar jeito” (ANÍSIO, 1973, p. 16); • a conduta no passado e no presente: “[...] segurou em faca e em foice, já andou no machado, preparando o roçado, já deu muito murro em cabra safado e, nos tempos melhores [...] fez muito carinho em dona casada, em moça donzela” (ANÍSIO, 1973, p. 17); “[...] tem para quem dê a honra de aparecer, uma estória a contar” (ANÍSIO, 1973, p. 17);

O foco do exórdio 2 é a construção do caráter de Pantaleão (orador 2) pela escolha de atributos que revelam alguns defeitos, pequenas fragilidades físicas, mas, sobretudo, virtudes. Verificamos já aqui uma amplificação: as virtudes de Pantaleão multiplicam-se e seu caráter potente ganha relevo. As histórias do contador dão oportunidade a rituais que se repetem:

Dona Terta pega o bastidor para cuidar do bordado que nunca termina. A espingarda reluz, chega a encandear pelo brilho terrível produzido graças ao alisar constante da flanela de Pedro Bó. O pé de Pantaleão sobre, pousa no assento da cadeira de balanço. O visitante se ajeita para melhor escutar. E tome conversa. Tudo coisa vivida. Tudo verdade verdadeira que quem tiver coragem que caia na besteira de duvidar. (ANÍSIO, 1973, p. 18).

Configura-se, pois, uma argumentação baseada nos lugares da qualidade e da quantidade, segundo propõem Perelman e Olbrechts-Tytca (1996): as histórias de Pantaleão são grandes e muitas, o que o torna um indivíduo raro. A partir dessas observações, verificamos que, nessa parte do discurso, a argumentação epidítica se apoia na identificação e amplificação dos elementos de elogio relacionados à personagem. 160

Quadro 3 – Características das narrativas-moldura

Estratégias Principais recursos

Orador 1:

- Construção do contexto retórico que - Criação de expectativa dá ensejo à narrativa encaixada - Hipérbole - Descrição do ambiente

Orador 2:

- Caracterização do ritual associado à - Uso de expressões que desqualificam contação de causos: recusa do orador a narrativa em narrar

Manutenção do ethos do orador 1 - Uso de linguagem agradável, sem (ethos mostrado): linguisticamente excessos, e figuras competente, solidário à personagem - Focalização interna

Construção do caráter do orador 2 pelo orador 1 (amplificação de - Citação de atributos virtudes): competência, talento, - Hipérbole experiência, bondade, vigor

Constituição do ethos do orador 2 – - Hipérbole: autoelogio (posses e amplificação do ethos construído no habilidades) exórdio 2 e acréscimo de novos - Escolha de formas linguísticas atributos (ethos dito + ethos relacionadas a um paradigma popular mostrado): mal-humorado, irritadiço, - Ironia orgulhoso, agressivo, irônico, popular (sem muita instrução), sedutor, firme, condescendente (com Pedro Bó), respeitoso (com Terta e com os amigos que o visitam)

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Na narração, cresce a participação do orador 2, em especial, no nível diegético. Nesse momento do discurso, verificamos que a amplificação das 161 virtudes da personagem se intensifica com contribuições dos dois oradores. Destacam-se os seguintes atributos:

• natureza: “a caminho dos 75 anos, vivendo uma vida de perigos e aventuras, até é de não se acreditar que hoje, com 74 anos completos em março, Seu Pantaleão continue rijo e forte” (ANÍSIO, 1973, p. 52); “o reumatismo atacando, novamente, as juntas enrijecidas, aquela dor na rótula, o crescente enferrujar nos ossos” (ANÍSIO, 1973, p. 76); • classe (relações com familiares e amigos): “Visitas, havia muitas, que Pantaleão Pereira Peixoto era homem de incontáveis amigos, e por nunca ter feito na vida uma inimizade, diariamente vem à sua casa um dos irmãozinhos” (ANÍSIO, 1973, p. 109); • maneira de ser: “O boticário não se move. Aquilo tudo, ele sabe, é explosão habitual. Mais um pouco, e ele volta a ser o mesmo homem bom, coração de ouro, sentimental e amigo” (ANÍSIO, 1973, p. 52); • sentimentos: “Os olhos do velho encheram-se de lágrimas. Emoção visível fluindo dele” (ANÍSIO, 1973, p. 46); “Estava irritado, Seu Pantaleão” (ANÍSIO, 1973, p. 64); “Já fazia quase um mês que Pantaleão andava macambúzio e sorumbático” (ANÍSIO, 1973, p. 76); “Pantaleão fica triste, assume uma atitude diferente, tem os olhos marejados” (ANÍSIO, 1973, p. 104); • passatempos (ocupações): “[...] diariamente vem à sua casa um dos irmãozinhos – como diz ele – para uma conversa, um pedido de ajuda, a solicitação de um conselho e, principalmente, para ajudar a vida a correr melhor na escutação de uma estória” (ANÍSIO, 1973, p. 109); • intenção: “Pantaleão Pereira Peixoto, aproveitando a inspiração da lua nova – e podia ser cheia ou quarto crescente ou minguante que era a mesma coisa – começava a contar uma história.” (ANÍSIO, 1973, p. 76); • acidentes: “Não é raro aparecer na cidade onde ele mora um viajante do Sul ou do Norte, querendo conhecê-lo, ouvir, de viva 162

voz, os causos que se passaram com esse nordestino [...]” (ANÍSIO, 1973, p. 39);

A escolha desses atributos pelo orador 1 leva à identificação dos vícios e das virtudes que compõem o caráter de Pantaleão (orador 2). O orador 2 (personagem) pertence ao universo diegético e é posto em ação pelo orador 1. Seu auditório (auditório 2) é composto por Terta, Pedro Bó e os diferentes visitantes que ouvem suas histórias. O ethos construído na enunciação simulada, no entanto, interessa, como artifício do narrador, ao auditório de leitores (auditório 1), que confirma ou infirma nessa enunciação as características do caráter construído pelo orador 1. Assim, o discurso efetivamente enunciado pelo orador 2 também é utilizado para reforçar o caráter da personagem e pode ser incluído no que Cícero (1997) chama de atributos de palavras.

Desse modo, devemos observar que a construção do ethos do orador 2 também obedece às indicações de Aristóteles (2005). Nas interações diegéticas, Pantaleão mostra-se, muitas vezes, receptivo, agradável e simpático: “– Se é de paz entre...” (ANÍSIO, 1973, p.19); “– É Deus quem lhe traz, meu compadre. Entre, se acomode, a casa é sua” (ANÍSIO, 1973, p. 26); “– Tome seu licorzinho, meu senhor” (ANÍSIO, 1973, p. 40). Apresenta, portanto, eúnoia, atributo do ethos mais próximo ao pathos. Além disso, apresenta-se como um homem honesto e sincero: “O senhor pode nunca ter visto, mas que existe, existe, que seu amigo aqui já viu” (ANÍSIO, 1973, p. 47), portador de areté. De acordo com Aristóteles (2005), os atributos que tornam um homem virtuoso são os mesmos, seja ele orador ou objeto de elogio. O que pode ser reconhecido como virtude do ethos nas interações diegéticas pode ser considerado, então, como elemento de amplificação do caráter da personagem.

Existem dois momentos em que as virtudes do ethos da personagem são abaladas: o primeiro deles surge na interrupção de sua narrativa. Como vimos ao longo da análise, esse momento causa desconcerto à personagem, e o seu desequilíbrio emocional abala a estabilidade do ethos construído. Os questionamentos que interrompem a contação representam um obstáculo ao ato de vontade de Pantaleão: ele deseja narrar um evento extraordinário e as interrupções banais quebram o clima de encantamento gerado pela narrativa e 163 o trazem de volta ao mundo da lógica convencional a contragosto. Na maior parte das vezes a interrupção é provocada por uma pergunta tola de Pedro Bó. Não pairam dúvidas sobre o sentido das expressões usadas por Pantaleão durante a narrativa, sequer sobre a conexão causal entre os eventos; apenas Pedro Bó tem dificuldades para acompanhar a história. A estupidez do afilhado não coopera com os propósitos do contador, incita a sua cólera e o impele a vingar- se com uma ironia.

Como vimos no capítulo III, a ironia é apontada como um recurso de produção do humor desde a Antiguidade, em Aristóteles (2005) e Cícero (2002), até a Nova Retórica, em Olbrechts-Tyteca (1974). Em concordância com Aristóteles (2005), a autora belga assume que a ironia é um recurso de ridicularização do adversário, e acrescenta que ela pode muitas vezes assumir a forma de uma hipérbole. Foi exatamente isso o que observamos em 5.3.4. Ao dirigir-se com ironia intensa e ferina, Pantaleão abre mão da agradabilidade, toma para si o lado “vilão” (ANÍSIO, 1973, p. 11), e é aí que faz rir.

O segundo momento de instabilidade do ethos do orador 2 está nos trechos hiperbólicos, especialmente os que encerram as narrativas, o ponto máximo do exagero, da subversão da norma, da dissociação realidade/aparência. O exagero abala a phrónesis, o bom senso, a moderação que convém àquele que enuncia e frequentemente põe a areté sob suspeita.

Olbrechts-Tyteca (1974) destaca que a hipérbole é muitas vezes empregada com uma intenção séria, como um argumento de superação. É assim que o orador 2 a utiliza, já que procura mostrar como a situação difícil, às vezes aparentemente insolúvel, foi resolvida por ele, graças a sua coragem e a suas habilidades. Não há em Pantaleão qualquer intenção de provocar o riso, e, por mais que desconfie da veracidade do causo em função da incompatibilidade que este adquire em relação ao que considera “normal”, o auditório diegético jamais ri do orador. O auditório 1, por sua vez, compreende a hipérbole presente no discurso do orador 2 como um jogo, uma brincadeira verbal com o intuito de agradar (delectare). Por isso, permite-se um riso de assentimento. Os leitores não riem de Pantaleão, e, sim, da brincadeira.

164

Quadro 4 – Características das narrativas emolduradas

Estratégias Principais recursos

Manutenção do ethos do orador 1 - Uso de linguagem agradável, sem (ethos mostrado): linguisticamente excessos, e figuras competente, solidário à personagem - Focalização interna

Construção do caráter do orador 2 pelo orador 1 (amplificação de - Hipérbole virtudes): competência, talento, experiência, bondade, vigor

Constituição do ethos do orador 2 – amplificação do ethos construído no - Escolha de formas linguísticas exórdio 2 e acréscimo de novos relacionadas a um paradigma popular atributos (ethos mostrado): simples, com pouca escolaridade e ligeiramente rude

Fonte: Elaborado pela autora (2019)

Em várias narrativas, essa etapa se inicia no “pois bom” de Pantaleão, uma fórmula que equivale ao “era uma vez...” que introduz as narrativas populares e que instaura uma nova lógica, organizada de acordo com a “moral ingênua” (JOLLES, 1976). Os diálogos são reduzidos e a maior parte do discurso fica sob responsabilidade do orador 1. A memória de Pantaleão traz à tona acontecimentos insólitos, pitorescos, e os fatos, os eventos mais relatáveis (LABOV, 1997), se acumulam e continuam a amplificar os atributos de Pantaleão, especialmente:

• a maneira de ser: “Talvez houvesse outros a não saber. Mas a verdade era esta: Pantaleão Pereira Peixoto jogara, e divinamente” (ANÍSIO, 1973, p. 84); “O olho sabido do caçador não precisou fixar-se para contar que os patos eram dez” (ANÍSIO, 1973, p. 120); “Pantaleão não gostava daquele amontoado de gente à beira da lagoa e não seria ele, pescador de renome, caçador ilustre, quem iria perder seu tempo junto a um magote de amadores, pescando por ordem recebida e não por amor.” (ANÍSIO, 1973, p. 71-72); 165

• acidentes: “Pantaleão acordou [...] E Dona Terta lhe deu ciência do que se passava no curral. Gado mugindo desse modo, e a esta hora, devia ser onça.” (ANÍSIO, 1973, p. 41); “O galho mais baixo não estava a menos do que quinze metros. As raposas se formavam em grupos de cinco, de oito. Eram muitas. [...] A vida de Pantaleão estava em perigo. Se as raposas se enfurecessem e resolvessem atacar, tudo podia acontecer.” (ANÍSIO, 1973, p. 31);

• intenção e conduta: “Pantaleão precisava fazer alguma coisa para evitar a catástrofe. Lembrou do fuzil. Deu cinco tiros para o alto, em sinal de aviso. Pouco importava que os tiros acordassem o quartel. Importante, naquele momento, era evitar o choque das aeronaves” (ANÍSIO, 1973, p. 67); Dali à Malhada da Areia, se não quisesse perder tempo, o rio teria que ser cortado num ponto onde a largura chegava aos oitenta metros. E teria que ser cortado na diagonal, saindo da Pedra da Coroa e indo ganhar a outra margem no máximo uns cinco metros antes do começo do canavial. Pantaleão sabia disto mais do que ninguém. Tanto que já levou a canoa.” (ANÍSIO, 1973, p. 54);

Pode ser a pesca de um tubarão, que “sucedeu em 1927” (ANÍSIO, 1973, p. 20) no rio; a defesa diante de duas onças bodeiras na Serra da Esperança, em “1927” (ANÍSIO, 1973, p.71); ou o dia em que inventou uma máquina de aproveitamento do boi, enquanto era prefeito substituto em Escadinha; fato que “se deu em 1927” (ANÍSIO, 1973, p. 91): os causos de Pantaleão se multiplicam, resgatados de um passado de glórias, de um “1927” que já não se vive mais. As histórias se espalham pelo Nordeste brasileiro, especialmente por Pernambuco: Jaboatão, Escadinha, Serra Talhada, Arcoverde, Pesqueira, Mimoso, Sertânia.

As narrativas incomuns de Pantaleão atendem aos objetivos dos dois oradores: no nível hipodiegético, distraem e divertem a família e os visitantes do orador 2 (auditório 2), mesmo que não o persuada; no diegético, também divertem, uma vez que são embelezadas ou, em algumas passagens, tornadas risíveis, mas, além disso, funcionam como exempla persuasivos, repetidos a fim de amplificar o valor do orador 2. 166

Quadro 5 - Características da peroração

Estratégias Principais recursos

Constituição do ethos do orador 1 - Uso de fórmula de encerramento de (ethos mostrado): contador de narrativas orais estórias e causos

Constituição do ethos do orador 2 – - Hipérbole amplificação (ethos mostrado)

Fonte: Elaborado pela autora (2019)

Na peroração, temos o máximo da amplificação. O insólito que permeou os causos de Pantaleão é condensado em uma única frase, “e eu nasci vestido” (ANÍSIO, 1973, p. 137). O orador 2 vai ao extremo, torna-se um tipo, um modelo que representa contadores como ele e como o próprio narrador, que assim também se constitui. É, enfim, um narrador que agrada (delectare) e educa (docere). Amparado pelo prestígio construído no primeiro exórdio, esse narrador (orador 1) conduz o auditório por um mundo equilibrado entre o real maravilhoso e, por meio de uma argumentação indireta, faz um elogio aos homens que, como Pantaleão, utilizam a imaginação e o humor como instrumentos para superar adversidades e a finitude da vida.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mas, mente pouco, quem a verdade toda diz. Guimarães Rosa

O humor é uma forma criativa de produzir, destruir ou reforçar acordos. É uma arte: arte de dizer, de fazer, de inventar. Arte de revelar “verdades”, de fazer pensar, de descobrir caminhos. E são tantos os caminhos e igualmente tantas as verdades. Seja para avaliar, divertir, promover, denunciar, atacar, defender- se: o trabalho do humorista demanda experiência, imaginação e técnica. Há que se saber quais são os acordos, há que se inventar formas de contestá-los ou de fortalecê-los, há que se encontrar os recursos adequados para levar o discurso da intenção à ação. Tudo isso compete à Retórica.

A Retórica trata de tudo o que é ou pode torna-se objeto de discussão. Para conquistar a adesão, ela é capaz de capturar a atenção, de conduzir o raciocínio, de mover os afetos. Cabe ao orador manejá-la. É o ethos que desencadeia, por meio do logos, os movimentos anímicos do pathos. O orador que se apresenta sensato, sincero e simpático parece confiável, bem como aquele que se mostra adequado aos hábitos, aos comportamentos do seu grupo e aos valores do auditório.

O discurso persuasivo sempre principia com uma questão polêmica e algum acordo. Às vezes, bastante acordo. E se há acordo, por que existirá o debate? Basicamente, porque os acordos não são definitivos e o que é hoje consenso poderá não o ser amanhã. É nesse ponto que atua o epidítico, o discurso persuasivo que trata do louvor e da censura. A princípio todos sabem, pelo menos em parte, o que deve ser enaltecido ou depreciado: a força, a coragem, a temperança, a generosidade, por exemplo, são matéria de elogio, e disso poucos discordam. No entanto, no confronto diário dos interesses e das opiniões, é comum que alguns valores fiquem esquecidos. Por isso é importante resgatá-los e colocar sobre eles uma espécie de foco. Esse “foco” é chamado amplificação.

A amplificação torna tudo mais intenso, mais vívido, mais surpreendente. Ela aproxima a Retórica à Literatura. E foi na literatura que a procuramos. Não 168 nos autores canônicos, mas em uma obra da literatura de massa (ECO, 1984), onde a relação de persuasão entre produtor e consumidor é inevitável. Nessas obras, importa que o texto seja comercial, que a linguagem seja acessível a um grande número de leitores, que ainda se preserve alguma qualidade estética e, se puder trazer alguma “mensagem”, é ainda melhor.

Propusemo-nos, então, o objetivo de investigar a produção retórica do discurso humorístico na literatura de entretenimento. Tomar um livro de Chico Anysio, um dos maiores humoristas do Brasil, ainda pouco estudado, pareceu- nos uma boa escolha. Chegamos, assim, a um objetivo específico: investigar a construção do discurso laudatório nos contos do livro É mentira, Terta? (1973), um dos grandes sucessos da carreira do humorista como escritor. Esperávamos encontrar, nesses contos, recursos de amplificação que caracterizassem uma homenagem, um discurso humorístico laudatório.

Nosso percurso teve início com uma breve apresentação da trajetória artística de Chico Anysio. Partimos do seu nascimento, em Maranguape, Ceará; passamos pela mudança para o Rio de Janeiro, o início no rádio, o trabalho como roteirista de cinema. Chegamos com ele à TV, ao Chico Anysio Show, à parceria com Arnaud Rodrigues. Acompanhamos a criação de Pantaleão, Terta e Pedro Bó. Seguimos Chico Anysio até a literatura. Encontramo-lo na literatura de massa, em meio ao povo, onde gostava de estar. Com a ajuda de Eco (1984), compreendemos que o olhar que o pesquisador lança para a cultura de massa pode ser severo, mas deve estar despido de preconceitos. Se não podemos vencê-la, ao menos a tornaremos mais justa, de fato mais democrática, se a compreendermos. Isso nos remeteu de novo à Retórica.

Passamos, assim, à fundamentação teórico-metodológica de nossa pesquisa. O ponto de início de nossa reflexão foi a Antiguidade e o estabelecimento dos limites entre a Retórica e disciplinas próximas, como a Dialética. Encontramos na Retórica, redimensionada a partir do século XX, uma teoria sólida, útil na análise de discursos persuasivos sobre qualquer matéria, dirigidos a qualquer tipo de auditório. Após a exposição sucinta das provas e dos gêneros propostos por Aristóteles (2005), entre os quais situamos o epidítico, buscamos as relações entre duas artes do verossímil, a Retórica e a Literatura. Essa aproximação, feita graças às exigências da análise do epidítico, que toca 169 a Literatura pela amplificação, mostrou-nos que a experiência literária pode envolver, para além do gozo estético, um componente de persuasão, que conduz o leitor a um (re)conhecimento das coisas baseado na doxa. Na sequência, o estudo das tarefas do orador forneceu-nos subsídios para investigar o material do corpus com mais minúcia e observar o caminho retórico trilhado e os recursos utilizados nos planos das ideias e da expressão.

Na observação do todo, a observação da parte mostrou carecer de aprofundamento. O estudo das especificidades do epidítico tornou ainda mais claros os atributos do elogio e a sua relação com as qualidades do ethos. Isso permitiu-nos compreender a que deveríamos estar mais atentos na investigação dos contos de Chico Anysio. Além das bases dos teóricos da Antiguidade, os desenvolvimentos de Meyer (2007) e Maingueneau (2011, 2016) mostraram-se úteis na análise do ethos da personagem principal dos contos e na interação entre essa imagem e o caráter construído para ele pelo narrador.

Faltava-nos entender algo do humor, dos recursos retóricos passíveis de serem usados na produção do risível. Estudamos várias dessas técnicas, desde as previstas pelos tratadistas da Antiguidade até aquelas desenvolvidas no âmbito da Teoria da Argumentação. Encontramos, na Retórica, a produção do riso como ataque, a ironia ferina, a exclusão pelo ridículo, o exagero na narrativa jocosa. Também vimos casos em que o orador toma a si mesmo como objeto risível, se expõe ao ridículo, põe o ethos à prova em clara simulação. O conhecimento dessas estratégias foi essencial para analisarmos a construção do caráter risível de Pantaleão e a interação entre ele e Pedro Bó.

A configuração do discurso investigado exigiu-nos compreender a relação entre a narratio retórica e a narrativa. Em meio às discussões dos antigos tratadistas sobre a produção retórica de narrativas artísticas, recorremos ao tratado De inventione (1997), de Cícero, como fonte de categorias para a análise dos atributos da pessoa na narração. A aproximação entre o estudo da narratio e as teorias da narrativa permitiu-nos, também, uma observação mais detalhada da organização temporal dos contos e, por consequência, da sua disposição em níveis (GENETTE, 1989), ou em ordem artificial.

O conhecimento trazido de contatos anteriores com o livro de Chico Anysio confirmou-se em nossa pesquisa: o discurso contido na obra simula 170 características de configurações narrativas como o conto popular e o causo (estória oral). Dentre as semelhanças entre as duas configurações, identificamos o apelo ao sobrenatural, o exagero e as funções de educar e divertir. Apreender o básico sobre essas configurações foi importante para que pudéssemos compreender a estrutura das narrativas que investigávamos e a constituição dos ethé do narrador e da personagem. Para ampliar essa análise, recorremos também a caraterísticas das narrativas orais de experiência pessoal, como a manutenção da credibilidade do narrador e a escolha do evento mais relatável.

Ao longo de nossa análise, identificamos a existência de dois oradores principais no discurso: o narrador (orador 1) e a personagem Pantaleão Pereira Peixoto (orador 2), posta em ação pelo orador 1. Os feitos extraordinários da personagem são narrados pelos dois oradores. O orador 1 constrói, já no início do discurso, uma autorrepresentação positiva, que compreende qualidades morais e atributos que o aproximam dos narradores populares. Essa imagem é mantida ao longo de toda a narração e amplificada na peroração.

O orador 2, por sua vez, toma a palavra após a construção de seu caráter já ter sido realizada pelo orador 1. A construção anterior do caráter possibilita a constituição de um ethos projetivo, que o orador confirma com sua enunciação. O discurso da personagem representa, portanto, em uma estratégia de amplificação do caráter construído pelo narrador. Nesse caráter, destacam-se algumas fragilidades, mas sobretudo virtudes, amplificadas, durante a narração, por hipérboles.

A produção do risível mostrou-se associada a momentos de instabilidade do ethos do orador 2: a ironia como resposta às interrupções de Pedro Bó revela uma agressividade simulada e um abalo momentâneo na eúnoia; a hipérbole que gera a incompatibilidade nos desfechos das narrativas põe em questão a honestidade do orador, logo, ameaça a areté. Por reconhecer o caráter ficcional do discurso, o auditório de leitores atribui a ele o estatuto de uma brincadeira verbal com o intuito de agradar (delectare). Desse modo, o caráter da personagem não se torna condenável.

171

Finalmente, reconhecemos que a estruturação das narrativas em níveis transforma os relatos hipodiegéticos em exempla persuasivos, repetidos com o intuito de amplificar as virtudes da personagem.

A presença de Pantaleão é intensa e rústica como a paisagem. Já lhe falta um olho, já lhe faltam também o viço da juventude e a disposição para pensar no futuro. Mas nem tudo é ausência. Sobram-lhe histórias, sobra-lhe imaginação, a capacidade de reelaborar os elementos da realidade segundo seu estado afetivo e não a lógica exterior. As histórias de Pantaleão são tecidas com cuidado e se perpetuam como o bordado de Terta, que nunca termina:

A de hoje não sei qual é. Nem sei, também, qual será a de amanhã. Mesmo a de ontem eu já esqueci. Só sei que, diariamente, quando a noite se apresenta, desde o deitar das galinhas até o piar dos pintos, a voz de Pantaleão troveja pelo sertão, no causo pedido. (ANÍSIO, 1973, p. 18)

Elas são a sua grande arma, a sua forma de equilibrar os “maus humores” que, às vezes, quase o arrebatam. Contar histórias é uma forma de permanecer, de driblar a vida, de vencer a morte, como é a de tantos outros homens fortes, sertanejos incertos como ele. Pela amplificação, a personagem se converte em um tipo que representa o seu grupo social, e a grandeza de seu caráter, que suplanta as adversidades, torna-se matéria de elogio. E se a vida e o esforço por viver não forem dignos de elogio, o que será?

Às vezes as ideias são curtas; às vezes, são longas, mas as pernas, curtas, não as alcançam. No desenvolvimento desta pesquisa, certamente nos excedemos em alguns pontos e negligenciamos outros. Mesmo assim, acreditamos ter contribuído, de algum modo, para a investigação das operações retóricas envolvidas na produção de uma literatura de entretenimento humorística ainda pouco investigada. Que venham outros, preencham lacunas, proponham-se novos desafios e ajudem-nos a tecer novas histórias.

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