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space outside of the narrow and limited Luís Hopffer C. Almada, Manuel Brito- realm of the “area studies,” and becom- -Semedo, Maria de Fátima Fernandes, ing a topic of interest in the wider arena Simone Caputo Gomes e Urbano Bet- of critical theory. The Lusophone World tencourt. Suplementarmente, reedita-se aptly broadens the horizon of this con- também o polémico “Consciencializa- versation, opening up some alleyways ção na Literatura Cabo-Verdiana”, de that will certainly be explored by others 1963, assinado (apenas) por Onésimo in future works. Silveira. Como explicam os organizadores no Pedro Lopes de Almeida proemial “Claridosidade – Instigações sobre o fenómeno da ”, é este conjunto de ensaios que justifica o sub- CLARIDOSIDADE – EDIÇÃO CRÍTICA título “Edição Crítica”, que não pode FILINTO ELÍSIO E MÁRCIA SOUTO confundir-se, portanto, com o sentido (ORGANIZAÇÃO) académico corrente desta locução. Não Rosa de Porcelana, Lisboa, 2017 se discutem quaisquer problemas de 568 páginas. ISBN 978-989-99746-8-5 atribuição autoral ou de fixação tex- tual. O único caso que mereceria uma O volume Claridosidade – Edição Crí- investigação (ou uma anotação) desta tica, organizado por Filinto Elísio e natureza tem que ver, justamente, com o Márcia Souto, oferece-nos a terceira ensaio de 1963, recentemente reeditado edição fac-similada da mais importan- pela UCCLA, cuja autoria partilhada te revista literária de Cabo Verde, com com Manuel Duarte foi já assumida por nove números (esparsamente) publica- Onésimo Silveira (cf. José Vicente Lo- dos entre 1936 e 1960. A primeira de- pes, Onésimo Silveira – Uma Vida, Um las, de 1986, sob a chancela da ALAC, Mar de Histórias, , Spleen Edições, incluía um prefácio de Manuel Ferreira 2016, p. 79-82). É significativa, portan- e um depoimento de Baltasar Lopes da to, a referência de Filinto Elísio e Márcia Silva; o segundo fac-símile, que dispen- Souto às figuras de Manuel Duarte e de sou quaisquer paratextos críticos, foi Gabriel Fernandes a propósito deste publicado, em 2016, pelo jornal (cabo- texto – o primeiro pela razão já apon- -verdiano) Expresso das Ilhas e a edito- tada, o segundo porque, em benefício ra (portuguesa) A Bela e o Monstro. O da coerência do volume, talvez devesse presente volume recupera e acentua a ocupar o espaço do Onésimo Silveira (e preocupação crítica de Manuel Ferreira, do Manuel Duarte) de 1963, criticando- apresentando sete ensaios inéditos que -o(s) e atualizando-o(s). testemunham o estado da arte da crítica Outra atribuição autoral que caberia de Claridade. Os seus autores são Al- também assinalar diz respeito ao pró- berto Carvalho, João Lopes Filho, José prio título do volume – Claridosidade –, Claridosidade – Edição Crítica l 445 cunhado talvez por José Luís Hopffer em coerência, o estruturalismo genético C. Almada no ensaio “A poética cabo- de Lucien Goldmann, a semiologia de -verdiana e os caminhos da nova gera- Roland Barthes, a sociologia de Robert ção”, datado de 1989. Aí se considera Escarpit, a estética da receção de Hans “que a Claridosidade, enquanto movi- Robert Jauss, bem como, enfim, a aná- mento literário e súmula de motivações lise política da literatura conforme Jens socioculturais e estético-ideológicas, Walter. ultrapassa, temporal e espacialmente, A. Carvalho começa por afirmar, o núcleo claridoso original e as páginas em “1. Claridade: inventores, mestres e da revista Claridade, para se espraiar, epígonos”, que a supervivência do alto até hoje, em sucessivas vagas” (cf. significado de Claridade se deve quer à Fragmentos, n.º 7/8, dezembro de 1992, “qualidade intrínseca dos [seus] textos Praia, Movimento Pró-Cultura, p. 9). literários”, quer à “sua sintonia pelas Os sete ensaístas convidados por Filinto ideias de época em estado nascente” (p. Elísio e Márcia Souto para participar 17). A leitura em regime jaussiano (mais neste volume comprovam a atualidade do que poundiano, frustrando o subtítu- do conceito proposto por José Luís Ho- lo) dispensa a discussão sobre o estatuto pffer C. Almada. da “qualidade intrínseca” de um texto O texto de Alberto Carvalho recupera literário; o ponto que lhe interessa tem e desenvolve o artigo “Do Classicismo apenas que ver com o “horizonte de ao Realismo da Claridade”, publicado expetativas” do leitor de Claridade, e (em 1998) na revista Camões. Este título esse acha-se nas coordenadas sociocul- original tinha a vantagem de esclarecer turais coevas. Sendo, porém, que não a matéria tratada; já o presente – “Da há leitores nem leituras iguais, o alcance Claridade, ainda, e sempre” –, parece prospetivo de Claridade é, por exemplo, querer abonar um estatuto canónico negado pelo Amílcar Cabral de 1952 e que, na avaliação de A. Carvalho, ape- afirmado pelo de 1963 nas o “dogmatismo” dos “modernos” (p. 20-21). do Suplemento Cultural (de 1958) pôde As partes “2. Claridade: retrospeção e questionar. memória” e “3. Claridade: lembrança e Os interesses e os procedimentos que prospeção” recuperam dados históricos conduzem este ensaio são aqueles que que, neste volume, interessam também definem o criticismo de A. Carvalho a João Lopes Filho, José Luís Hopffer desde (pelo menos) os anos 90: a pros- C. Almada ou Manuel Brito-Semedo. peção das condições socio-históricas A abolição da escravatura, a extinção do fenómeno literário cabo-verdiano dos morgadios, a instalação de escolas e a fidelidade (“ainda, e sempre”) às e bibliotecas ou (entre outros fatores, escolas teóricas dos anos 60 e 70, lidas sobretudo oitocentistas) o desenvolvi- mormente em francês. São invocados, mento da imprensa local (e.g., Boletim 446 l RECENSÕES

Oficial) ou atlântica (e.g., Novo Alma- depoimentos de escritores como Arnal- nach de Lembranças Luso-Brasileiro), do França, Baltasar Lopes, Félix Mon- favorecem o surgimento de intelectuais teiro, Luís Romano, Manuel Ferreira, cabo-verdianos capazes de exibir, no , Teixeira de Sousa – bem espaço alargado da língua portuguesa, como, em particular, de João Lopes, pai “a sua condição de sujeitos históricos do autor deste ensaio. Legitimamente detentores de um saber altamente per- empenhado em firmar na historiografia formativo” (p. 33). literária cabo-verdiana a influente ação O movimento claridoso irá então de João Lopes na génese de Claridade, (cor)responder a um horizonte de este texto inscreve-se no mesmo projeto expectativas longamente preparado na que nos ofereceu o volume In memoriam história de Cabo Verde. Neste sentido, a João Lopes, coordenado pelo mesmo J. sociologia da literatura de A. Carvalho, Lopes Filho (Praia, IBNL, 2007). As devedora da “longa duração” de Fer- duas citações iniciais de Manuel Fer- nand Braudel, recusa a “fulanização por reira, que parecem excluir João Lopes inteiro destituída de poder explicativo” do núcleo dos fundadores de Claridade (p. 22). A partir do antropólogo Jorge (Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Dias – improvável discípulo de Ezra Barbosa, além de Jaime de Figueiredo), Pound –, os homens de Claridade são exprimem a convicção que o antropólo- definidos como ‘antenas da raça’ cabo- go da Universidade de Lisboa pretende -verdiana: sujeitos aos “condicionalis- refutar. mos do meio e do tempo”, eles possuem Para a síntese deste exercício pode “atributos próprios” que lhes permitem citar-se o testemunho de Baltasar Lopes “ler e interpretar os sinais” desse mesmo da Silva, extraído do proémio à edição tempo (p. 22). Mas a diluição sociológi- cinquentenária de Claridade: o ano de ca proposta por A. Carvalho acarreta 1936, escreve o sósia de Osvaldo Alcân- os seus perigos: são justamente “liceais tara, foi apenas “‘uma efeméride a mar- mindelenses” – membros, por inerência car uma conjuntura que se situava num contextual, da “nova intelectualidade tecido de preocupações longamente científica e positivista” (p. 34) – aque- alimentadas pelo grupo’” (p. 43). O que les, em 1929, conforme recorda João J. Lopes Filho vem propor é que essas Lopes Filho, rasgam “‘simbolicamente, preocupações se foram definindo, por em auto-de-fé’” (p. 47), um exemplar ação de João Lopes, quer no , do castiço e moderno Diário de António com o Círculo Cultural (1922), quer na Pedro. Praia, com a Tertúlia (1928). Somem- João Lopes Filho apresenta um -se estes, portanto, ao muito citado escorreito ensaio sobre a “Génese de grupo Atlanta (1931), ainda praiense, Claridade – Revista de Arte e Letras”, reivindicado por Jaime de Figueiredo trazendo à colação um vasto número de (na introdução que, em 1961, escreve Claridosidade – Edição Crítica l 447 para o volume Modernos Poetas Cabo- nas palavras de João Lopes (p. 44), e -Verdianos) e já avaliado por Arnaldo com António Pedro, “um ativo seguidor França (no ensaio que, em 1986, dedica das correntes surrealistas então em voga ao divulgador de Presença em Cabo na Europa” (p. 47); mas frusta as expec- Verde); entretanto, em 1929, João Lopes tativas do leitor o desprezo de J. Lopes fora o editor do Diário de António Pe- Filho pelos postulados expendidos na dro (que trazia na portada um desenho muito vanguardista “Conferência pro- de Jaime de Figueiredo). ferida na Praia (1928)”, hoje acessível São convincentes, no ensaio de J. Lo- no volume In memoriam João Lopes. pes Filho, os dados que sustentam a sua O mais longo ensaio deste volume tese: “do chamado Grupo Claridoso, vem assinado por José Luís Hopffer João Lopes foi o único que participou C. Almada e intitula-se “Das tragédias ativamente” naquelas que considera as históricas do povo cabo-verdiano e da “três «fases» da Génese de Claridade” saga da sua constituição como nação (p. 54). Menos evidente (ou sequer crioula afro-atlântica – Uma incursão interessante) será a convicção de que crítica aos legados teóricos claridoso e Manuel Ferreira procurou, consciente neo-claridoso”. A herança de Claridade e insistentemente, apagar João Lopes começa, portanto, neste ablativo que in- da história da revista; de resto, nem o voca as teses de Gabriel Mariano sobre próprio, na brevíssima “Autobiografia” os processos de mestiçagem cultural em que redige em 1970, manifesta qualquer Cabo Verde – teses que, corrigindo quer interesse em afirmar a pertença ao Aimé Césaire quer Gilberto Freyre, grupo. E é francamente insustentável a explicam como, naquele singularíssimo atribuição desse (alegado) propósito ao arquipélago, do fel surgiu o mel (cf. “Do facto de ter sido João Lopes um crítico funco ao sobrado ou o mundo que o do “sistema político vigente na altura” mulato criou”, de 1959). – ao contrário (sugere J. Lopes Filho) Se os poemas longos de J. L. Hopffer de Manuel Ferreira, que “esteve em C. Almada têm adquirido tonalidades Cabo Verde como militar português em épicas por neles se incluir a história de missão de soberania” (p. 59). Cabo Verde (conforme Ezra Pound), Mais interessante será certamente a este texto admite, por sua vez, o preito possibilidade de vermos aclarado o pa- aos escritores de Claridade e a correla- pel de João Lopes nas discussões de na- tiva adoção de um registo francamente tureza propriamente estética que terão afetivo. Como exemplo geral, registe-se definido a génese de Claridade. Neste o louvor do mesmo Gabriel Mariano e sentido, o ensaio destaca a cumplicidade do poema “Capitão Ambrósio” – des- do (futuro) diretor de Claridade com tacando-se de entre todas as “bandeiras Jaime de Figueiredo, “‘animador das épicas, ébrias do negrume da fome e de coisas modernistas em Cabo Verde’”, outras desgraças” (p. 64). 448 l RECENSÕES

Depois de referir o interesse que o surgimento de uma robusta democra- ‘caso’ histórico de Cabo Verde tem cia económica e social cabo-verdiana” suscitado nas ciências sociais (parte I), resultante da substituição da oligarquia J. L. Hopffer C. Almada recupera os latifundiária reinol ou crioula por “pro- dois grandes traços que frequentemente prietários mestiços e negros” (p. 72); esboçam a formação da nação cabo-ver- conforme se explica, não o permitiram diana, a saber, a indigência socioeconó- os “condicionalismos e fatores obstru- mica e a relação interatlântica (parte II), tores” inerentes ao “sistema colonial” reassumindo (aparentemente) as teses (p. 75) (partes VI e VII). de Claridade sobre a diluição da África O último movimento deste ensaio () e da Europa procura superar a velha discussão em (Gabriel Mariano) no mesmo processo torno das comunidades sotaventinas de crioulização que estabelece a resistên- (ditas menos crioulizadas) e barlaventi- cia à assimilação cultural de motivação nas (ditas mais crioulizadas) que com- colonial (parte III). A definição ufanis- põem o mosaico cabo-verdiano, con- ta da crioulidade cultural aqui proposta forme Baltasar Lopes da Silva ou, ainda não escapa, entretanto, a esse paradoxal hoje, Onésimo Silveira. Excluindo por registo do seu carácter estabelecido e princípio qualquer “nexo de causalidade cristalizado (como notava Miguel Vale entre a mestiçagem biológica e a misci- de Almeida em “O projeto crioulo. genação cultural” (p. 87), J. L. Hopffer Cabo Verde, colonialismo e crioulida- C. Almada conclui que se assistiu, no de”, de 2004). Insistindo na analepse Cabo Verde independente, a um pro- histórica, o autor de Assomada Noturna cesso geral de pan-cabo-verdianização invoca ainda a catequização insular dos da cultura musical do país (parte VIII); negros escravos e os posteriores ensejos entenda-se a música, neste passo, como de “aristocratização intelectual” por ela sinédoque da tese geral deste ensaio, motivados, conforme Baltasar Lopes da que partilha importantes pontos de Silva (parte IV). vista com a historiografia de António J. L. Hopffer C. Almada desenvolve Correia e Silva e a sociologia política de então, ou agora propriamente, essa “in- Gabriel Fernandes. cursão crítica aos legados teóricos cla- Os últimos parágrafos são dedica- ridoso e neo-claridoso” que subintitula dos ao problema da xenofobia cabo- o seu ensaio (parte V). Sustentando- -verdiana, seja a histórica (versada por -se em historiadores anteriores (e.g., João Henrique de Oliveira Barros em António Carreira) ou pertencentes ao 1973) ou a contemporânea (que os coletivo que nos ofereceu a História imigrantes negros sentem na pele); Geral de Cabo Verde (1991, 2001 e 2002), recorda-se ainda o correlativo fascínio este ensaísta demonstra, contra as teses pela cultura greco-latina, que Corsino claridosas, que “não houve lugar ao Fortes endereçou a João Vário (como se Claridosidade – Edição Crítica l 449 não houvera, entre outros, José Lopes); esteira de António Aurélio Gonçalves, tais fenómenos não devem negar, apesar Arnaldo França ou Ana Cordeiro – de tudo, a progressiva “superação de destaca o exemplo da recuperação do barreiras sociais” (p. 95) no Cabo Verde romance O Escravo (1856), de José colonial (parte IX). Evaristo de Almeida, que é já “síntese O ensaio de Maria de Fátima Fer- da [mesma] expressão da alma crioula nandes, intitulado “Claridade ou uma e do todo cultural cabo-verdiano” (p. inquietante redefinição dos caminhos 124), arquipelágico ou diaspórico, que da cabo-verdianidade”, compreende as os maiores de Chiquinho (i.e., Rosa partes “1. Um começo, um contexto e Calita ou Chic’Ana) hão de legar aos seus contornos ideológicos”, “2. Clari- fundadores de Claridade. dade: seus precursores e percurso(ore) O caso serve para introduzir um bre- s” e “3. Um lugar merecido ainda na ve reparo à periodização da literatura atualidade”. A epigrafar a parte 1., cabo-verdiana inaugurada por Manuel lemos uma desconcertante asserção de Ferreira (em 1959) e desenvolvida por Luís Romano, datada de 1984: enquanto Pires Laranjeira (em 1995, no manual “a História da Literatura Cabo-Verdia- da Universidade Aberta, que serviu de na” não for “publicamente conhecida” referência aos programas escolares em e “oficialmente consagrada”, admite-se Cabo Verde). Ora, se Pires Laranjeira que “o diálogo está aberto para suges- tem a virtude de contemplar a produção tões, informações e pesquisas, em que pré-claridosa, a Maria de Fátima Fer- cada um tem a liberdade de apresentar nandes lamenta, porém, o desinteresse a sua contribuição” (p. 119). Louvemos pelos percursos individuais da tríade nesse caso a demorada inexistência inaugural de Claridade (, dessa História da Literatura Cabo- Manuel Lopes e Baltasar Lopes) e o es- -Verdiana de cabelos de víbora. quecimento dos contributos de Jaime de As anotações sobre as condições de Figueiredo (nos bastidores) ou de João possibilidade da geração (e.g., o ensino Lopes (no palco) – cuja dinâmica “se e a imprensa), o “contexto de surgimen- encontra por estudar e sistematizar” (p. to” de Claridade (a estética modernista e 126). Mas aquilo que não caberia num a ideologia nacionalista) e a “trajetória” manual académico já vinha (como vem) que irá afirmá-la “como a principal ma- sendo há muito estudado, conforme nifestação” da literatura nacional (e.g., testemunham variadíssimas teses acadé- a crítica de Gabriel Mariano), ambicio- micas ou o completíssimo Claridade – A nam, nas palavras de Maria de Fátima Palavra dos Outros, organizado por Fá- Fernandes, “reequacionar”, partindo de tima Bettencourt (Praia, INBL, 2010). “olhares outros”, as dimensões filosófi- Questiona-se depois a pertinência do cas, ideológicas e estéticas de Claridade. período da “Cabo-verdianitude” (1958- A revisão retrospetiva proposta – na 1965) proposto por Pires Laranjeira, 450 l RECENSÕES

dado que a geração do Suplemento Cul- hermenêutica demasiado líquida? (En- tural (1958) será mais “universalista” tretanto, lemos neste texto equívocos do que situável “na linha de qualquer que facilmente se emendariam, como a prefixador «cabo-»” (p. 126). O proble- filiação da Presença coimbrã no Neor- ma, neste caso, parece estar no desajuste realismo português ou, entre as muitas dos olhares sincrónicos ou diacrónicos. gralhas, a acentuação da assinatura Um friso cronológico admite sempre ‘Antonio Candido’). a coexistência de tendências distintas A dificuldade de acesso a certos tex- ou mesmo opostas – que exigem, tos axiais da literatura cabo-verdiana, neste caso, a distinção entre os ensaios sendo que alguns deles apenas em Clari- africanistas de Manuel Duarte (1951) dade se publicaram, tem gerado leituras e de Onésimo Silveira (com o mesmo críticas que agravam os enviesamentos ‘Manecas’ Duarte) (1963), por um lado, das fontes secundárias consultadas em e os cosmopolitas Exemplos de João regime de (quase) exclusividade. A Vário (1966-1998), por outro. Maria de despeito da complexificação que sofreu Fátima Fernandes acaba, de resto, por nas suas sucessivas revisões, a massa caucionar a leitura de Pires Laranjeira crítica de Manuel Ferreira será a mais quando situa o “«desassumir» da cabo- copiosa fonte dessas débeis leituras em -verdianidade” (p. 126) em três obras segunda mão. O ensaio de Simone Ca- – de Mário Fonseca (1986), Arménio puto Gomes anuncia desde o seu título Vieira (1989) e Corsino Fortes (1974- o avisado propósito de escapar a esta 2001) – contemporâneas ou posteriores miopia hermenêutica: “Aclarar Clarida- ao período que este especialista designa, de: controvérsias debatidas no calor da justamente, por Universalista (de 1966 leitura dos seus nove números”. a 1982). As sombras que este artigo se propõe A parte 3. do ensaio de Maria de Fá- alumiar são, tradicionalmente, a redu- tima Fernandes, “Um lugar merecido ção de Claridade à tríade canónica (Jor- ainda na atualidade”, constitui um bom ge Barbosa, Baltasar Lopes e Manuel exemplo dos problemas da importação Lopes) e a imputação generalizada de sem restrições das mais populares teo- “evasionismo” (que foi afinal restrito); rias da identidade pós-moderna (que outros equívocos são a circunscrição são, na sua contemporaneidade intrín- da revista à cidade do Mindelo, a indis- seca, teorias pós-modernas da identida- tinção entre “grupo” e “movimento” de). Sugerir que um poema de Manuel literário e a sobreposição dos conceitos Lopes, de 1949, em que se vê “patente de “evasão” e “emigração”. a típica inquietação claridosa” (p. 130), Os dados colhidos por Simone C. exprime afinal a condição do individuo Gomes nas páginas de Claridade (em pós-moderno definido por Zygmunt rigor, nas duas anteriores edições fac- Bauman – não será isso sintoma de uma -similadas, conforme pressurosamente Claridosidade – Edição Crítica l 451 se esclarece) testemunham com eficácia dico, concentra-se na primeira parte, a a necessidade de corrigir os equívocos mais longa, dedicada (como se disse) às elencados: a revista assumiu o com- condições cívicas, literárias e culturais promisso social possível no seu tempo do Mindelo das décadas de 1920 e 1930. e lugar, tanto na produção ensaística Seguindo os subtítulos desta primeira como (e sobretudo) na criação literá- parte, concentravam-se nesta cidade ria; foi palco de diferentes gerações e “Um operariado ativo e consciente” de distintas mundividências político- (conforme o poema “Unidos, Avante”, -ideológicas; e procurou compreender de Pedro Monteiro Cardoso); “Uma fenómenos históricos, sociais e culturais burguesia esclarecida e defensora dos de todo o Arquipélago. interesses da colónia” (que constitui a Conduzida pelas veredas revisionis- Sociedade de Tipografia e Publicidade, tas dos (já referidos) proémios à edição editora de Claridade); “Uma elite com- cinquentenária de Claridade, a “leitura prometida e politizada” (formada pelo minuciosa dos nove números de Clari- Liceu Nacional e informada pelo Porto dade” oferecida por Simone C. Gomes Grande); “Uma sociedade civil de fácil compraz-se, portanto, em caucionar mobilização à volta de causas” (que, um discurso crítico instituído há (pelo em 1937, exigiu a abertura do Liceu Gil menos) três décadas. Já o destaque dado Eanes doze dias depois da extinção do às figuras femininas e ao lirismo uni- Liceu Infante D. Henrique). versalista de Corsino Fortes, presentes Os parágrafos sobre a ação modernis- no último número de Claridade, deve ta de Jaime de Figueiredo pouco acres- inscrever-se nos interesses mais recen- centam aos depoimentos já conhecidos, tes da crítica académica da literatura assinados pelo próprio, por João Lopes cabo-verdiana. ou por Arnaldo França; como são me- Manuel Brito-Semedo apresenta um ramente noticiosos os pontos dedicados ensaio organizado em cinco partes, aliás ao Arquipélago de Jorge Barbosa, ao utilmente expostas na sua “Introdução”, Chiquinho de Baltasar Lopes ou, enfim, respeitantes 1) à relevância do Mindelo aos nove números de Claridade. O que na génese de Claridade, 2) à intervenção se estranha nesta (quarta) parte do en- modernista de Jaime de Figueiredo, 3) saio de M. Brito-Semedo, tratando-se de à publicação de Arquipélago (1935), de uma edição (de intenção) crítica, é a au- Jorge Barbosa, 4) ao carácter inédito e sência de importantes referências (e.g., regionalista de Claridade e 5) ao signi- à palestra Cabo Verde visto por Gilberto ficado de Chiquinho (1946) na literatura Freyre, de Baltasar Lopes), atribuições cabo-verdiana. autorais (e.g., “fincar os pés na terra O interesse maior deste texto, cujo cabo-verdiana” é de Manuel Lopes), ou estilo limpo e factual se aproxima do re- mesmo de aspas nas expressões “[Clari- gisto próprio de um verbete enciclopé- dade] não brotou como água da rocha 452 l RECENSÕES

de Moisés” (p. 113) e “[Presença foi] região e da concomitante “expressão es- a primeira força catalisadora do novo tética adequada à configuração literária surto literário” (p. 114), usadas por Ar- dessa realidade” (p. 154). naldo França nas conhecidas Notas sobre Mais do que a Eduíno de Jesus ou Poesia e Ficção Cabo-Verdianas, de 1962. a(os cabo-verdianos) Manuel Lopes e Diferentemente dos autores dos João de Deus Lopes da Silva, caberá a seis ensaios precedentes, os interesses Pedro da Silveira “a mais consistente e académicos de Urbano Bettencourt duradoura difusão do ideário da Cla- não têm privilegiado a literatura cabo- ridade” (p. 157) nas ilhas dos Açores. -verdiana – mas antes a dos Açores, de Sobre o Arquipélago de Jorge Barbosa, onde é natural e onde vive. O ensaio dirá o autor de Corografias que foi o seu que fecha o corpus inédito deste volume, “primeiro mestre de modernidade e, vá “Claridade, claridosidade – a irradiação lá, de açorianidade também” (p. 157); açoriana”, soube tirar proveito destas e esta aprendizagem há de plasmar-se duas circunstâncias: por um lado, apre- quer nos artigos que publica no jornal senta novos dados sobre a receção de A Ilha (entre vários outros), quer no seu Claridade nas ilhas de Pedro da Silveira, primeiro livro, A Ilha e o Mundo (1952), desenvolvendo as importantes inves- em cujos versos, segundo U. Betten- tigações (sobre o assunto) já reunidas court, reverberam também as lições de em O Gosto das Palavras III (1999); por Manuel Lopes e de António Nunes. outro lado, ao evitar os costumes da crí- Curiosamente, a importação da tica do movimento claridoso, recupera claridosidade para o arquipélago dos as mais fundadas definições da clarido- Açores implicou depois a exportação do sidade (que a locução ‘realismo insular’ “evasionismo pasargadista” para o ar- poderia talvez designar com justeza). quipélago de Cabo Verde. Os escarcéus Este ensaio, como muitos outros (um tanto histéricos) de Ovídio Martins assinados por U. Bettencourt, colige e dos seus sequazes são, em grande me- informação fundamental oriunda da dida, ecos líricos do artigo “Relance da imprensa periódica, sobretudo regional, Literatura Cabo-Verdiana” (1953), de depois submetida ao confronto crítico Pedro da Silveira, onde se proscrevia com dados histórico-culturais, biográfi- o “Itinerário de Pasárgada” (1946) de cos e propriamente literários dos auto- Osvaldo Alcântara e tudo aquilo que res e das obras em estudo. Aprendemos ele se prestava a representar. (Mas esta assim que, transcendendo as afinidades hipótese excede já o objeto da presente “geográficas e históricas” entre os dois recensão). arquipélagos, a receção de Claridade nas ilhas dos Açores está ligada à descoberta Rui Guilherme Silva (tornada premente no pós-guerra) “da realidade histórica e sociocultural” da