As canções que o Rei cantou para mim: releitura sobre amor e gênero na Jovem Guarda Márcia Tavares1 Heloísa Tavares2

Resumo Este artigo, a partir de uma perspectiva de gênero e geração, faz uma releitura das letras de música popular urbana interpretadas por Roberto Carlos nos anos 1960, procurando refletir sobre mudanças e permanências na forma como o amor é pensado e vivenciado pela geração do iê-iê-iê, bem como ilustrar os modelos femininos e masculinos exaltados nas letras dessas canções. As ideias que formulamos tanto sobre o amor como acerca do feminino e do masculino são produzidas e reproduzidas pelas canções populares que, ao se basearem na natureza binária entre homem e mulher, contribuem tanto para reificar o ethos do amor romântico como as desigualdades de gênero. Mas, como o amor muda de uma sociedade, época e geração para outra, as temáticas inicialmente ingênuas e apaixonadas, passam aos poucos a emoldurar novos valores e comportamentos, mesmo que seja preciso mandar tudo para o inferno. Deste modo, prenunciam que, “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”, como enuncia a canção.

Palavras-chave: Gênero, Geração, Amor, Música popular, Jovem Guarda.

“Daqui pra frente, tudo vai ser diferente...”

[…] estou pensando No mistério das letras de música tão frágeis quando escritas tão fortes quando cantadas...

Augusto de Campos

A música exerce sobre nós, ouvintes, diferentes efeitos, ela relaxa quando nos sentimos tensos, causa contentamento quando estamos tristes, aproxima-nos daqueles/elas que se encontram ausentes, resgata amores silentes, revive momentos escondidos nos escaninhos da memória, pode despertar nossa curiosidade sobre formas de sentir, pensar e agir de homens e mulheres em determinado em determinado contexto sócio-histórico e cultural, ao mesmo tempo em que nos acompanha durante longas viagens, driblando o tempo e o cansaço, sugere outras interpretações. Neste artigo, tomamos as canções interpretadas e/ou compostas por Roberto Carlos nos anos 1960 para refletir sobre novos referenciais valorativos e identitários, ideias sobre amor e sexo, o feminino e o masculino que anunciam mudanças nas relações entre homens e mulheres, sob bases mais igualitárias. No primeiro momento, procuramos situar mocas

1 Professora do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo (PPGNEIM) da Universidade Federal da Bahia; Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia; Vice-coordenadora Nacional do Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha – OBSERVE. 2 Bacharel em Direito.

624 e rapazes nos anos dourados, quais as circunstâncias e acontecimentos que marcaram os centros urbanos e contribuíram para forjar a rebeldia da juventude transviada e, o posterior surgimento da Jovem Guarda. Em seguida, apresentamos de forma sucinta Roberto Carlos e o movimento da Jovem Guarda, de forma a realçar sua importância no cenário musical brasileiro dos anos 1960. Logo após, dialogamos com as letras que o Rei cantou para nós, desde 1960 a 1968, quando foi extinto o programa da Jovem Guarda, de modo a enfatizar o teor revolucionário que conclama uma ruptura com os valores conservadores e a ordem moral vigente, na busca de prazer e liberdade sexual. Nas considerações finais, ressaltamos a importância de se ouvir atentamente estas canções e, identificar o quanto o passado se encontra emaranhado no presente, ou melhor, rastrearmos permanências na trama das relações intergeracionais e o amor na cena contemporânea. O modelo desenvolvimentista adotado por Juscelino Kubtschek, nos anos 1950, trouxe uma perspectiva de modernidade ao Brasil, baseada no incremento da indústria, principalmente do setor automobilístico e de eletrodomésticos que, favorecido pela intensa penetração do capital internacional, mas também, de sua tecnologia e know-how, produziram mudanças no cenário urbano – escadas rolantes, automóveis e lambretas – e, nos lares, cujos utensílios domésticos como geladeiras, aspirador de pó, a máquina de lavar, rádios de pilha e televisores não só proporcionaram mais conforto às famílias, como também inauguraram um novo design, que contribuiu para a absorção do termo modernidade pelo imaginário social, ao mesmo tempo em que incentivou o consumismo. Com o avanço tecnológico, os cinemas passaram a exibir as produções hollywoodianas, em particular os filmes de , Marlon Brando e James Dean, ícones de uma juventude transviada, cuja rebeldia espelhava a inquietude dos jovens brasileiros, ansiosos para romperem com os valores conservadores da época. Apesar dessa rebeldia se revelar ingênua, as corridas de carro, as motos, os casacos de couro, o blue jeans e a camiseta branca usada por Brando e Dean expressavam a busca por uma identidade própria, assim como insurgiam contra a moral sexual vigente o rebolado e a sonoridade do rock and roll de Elvis, prenunciando a juventude contestadora da década seguinte (TRINDADE & SOBRINHO, 2009). Nesse período, as moças eram submetidas à severa vigilância social, as aparências ou o olhar do outro serviam como parâmetro para classificar seus comportamentos e condutas entre virtuosos – as moças de família, direitas, virgens e

625 casadoiras – e, condenáveis – as mulheres da vida, amantes e vedetes (FÁVERI, 1999; BASSANEZI, 2000). Entre as amantes e as sérias, encontravam-se as separadas e desquitadas, que evocavam fantasias nos conquistadores e causavam vergonha e constrangimento para as famílias de bem. Assim, uma mulher honesta jamais deveria fumar em público, usar calça comprida ou frequentar cinema ou bailes desacompanhada (CAMPOS, 1999). Vale ressaltar que, desde as primeiras décadas do século XX, uma nova ordem econômica é instaurada, na qual as relações afetivas atuam como mediadoras do poder e do sistema econômico. Nesse sentido, exalta-se os papéis de mãe e esposa desempenhados pela mulher, ao mesmo tempo em que esta é alçada à condição de guardiã dos afetos, sejam eles de caráter maternal, conjugal ou filial. Há de se destacar que, nesse período, busca-se disciplinar o amor romântico, isto é, inscrevê-lo na indissolubilidade e perpetuidade do matrimônio, amoldá-lo aos legados do patriarcalismo, o que irá incidir sobre o papel da mulher, que assume uma série de deveres, desta feita em nome do amor, cabendo-lhe “desempenhar o papel e cumprir o dever que a sociedade e a condição de amar e ser amada exigem: praticar a renúncia, a dedicação e a submissão...” (TRIGO, 1989, p. 90). O apostolado do ser mulher determinará que, ainda nos chamados anos dourados, o principal papel da mulher seja o de esposa e mãe, porque inerente à sua “natureza”, essência. Por conseguinte, a plena realização feminina está condicionada ao casamento, à maternidade e dedicação aos afazeres domésticos, isto é, tornar-se a rainha do lar (TAVARES, 2002). Conforme assinala BASSANEZI (2000, p. 608-609):

A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais – ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido – e das características próprias da feminilidade [grifo da autora], como instinto materno, pureza, resignação e doçura.

Continuando, a autora (p. 609-610) esclarece que:

A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas de feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. A mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a natureza, não poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras pessoas fossem felizes. Assim, desde criança, a menina deveria ser educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar.

626 Nesse sentido, BRUSCHINI (1993) assinala que a maternidade adquirirá condição similar a uma profissão para as mulheres da classe média e alta, na medida em que sua socialização as habilitará para atuarem como educadoras, transmitindo aos filhos (as) os valores societários vigentes, isto é, preparando-os (as) para desempenharem seus papéis sociais e sexuais futuros. Assim, a mulher, ao mesmo tempo em que reproduz a ideologia dominante, finda por reificar os estereótipos sexuais que a encarceram no locus privado. Todavia, a vigilância social também se estendia aos rapazes, que deveriam ser fortes corajosos, responsáveis, honestos e trabalhadores, valorizarem o sucesso e o dinheiro, demonstrativo de sua capacidade para exercerem o papel de provedores econômicos de suas futuras famílias. Era a partir da seriedade, espírito empreendedor e comprometimento com o trabalho que o jovem era reconhecido e se reconhecia socialmente como um “rapaz de futuro” ou “bom partido”, em contraposição ao vagabundo, alcoólatra, jogador e passional, desprovido de racionalidade (MATOS, 2001; DE MARCH, 2011). Além disso, a sobriedade no vestir-se imprimia respeito e reforçava a masculinidade hegemônica, enquanto quem ousasse usar uma camisa lilás ou rosa era nomeado de “mandraque”3, conforme lembra Campos (1999). De fato, o homem era educado para ser competitivo, forte e capaz, obter sucesso profissional, sustentar a mulher e os filhos, destacar-se na política e nos esportes. No campo afetivo-sexual, aprendia a vigiar emoções, gestos e o próprio corpo, de modo a desempenhar uma performance sexual ativa e viril, mas isenta de emoções e sentimentos. Matos (2001, p. 78) ressalta que: Assim, tornava-se difícil para os homens falar de medos, inseguranças e fantasias, não deviam se queixar de insatisfações ligadas ao terreno afetivo, ocultar os sentimentos, reprimir, aguentar, suportar a dor, não exprimir fraquezas, inseguranças e vulnerabilidades. Somente através da poesia, da música e, de forma invertida, do humor, o homem poderia falar com sinceridade sobre medos fraquezas dores e desejos.

A música, assim como outras expressões culturais, reproduz significados sociais, pois aquele/a que a compõe está inserido em determinado contexto histórico-cultural e espaço-temporal, ou seja, emite um discurso que reproduz a normatividade e os simbolismos de gênero presentes no cenário social. Assim, na década seguinte, o movimento da Jovem Guarda, tendo como principal representante Roberto Carlos,

3 O termo “mandraque” era adotado para nomear indivíduos que contrariavam o modelo de masculinidade vigente, ou seja, homens considerados afeminados.

627 traduz os anseios da juventude frente à modernidade incitada pelo desenvolvimentismo, cujas letras das canções prenunciam mudanças e rupturas, ao mesmo tempo em que tentam tramar uma “coexistência entre rebeldia-e-conservadorismo” (MEDEIROS, 2008), de modo a atrair a cumplicidade dos ouvintes.

“Eu vou contar pra todos a história de um rapaz...”

Roberto Carlos nasceu em 1941, em Cachoeiro de Itapemirim (ES) e, desde meados dos anos 1950, tornou-se fã do rock de Elvis Presley. Em 1957, em parceria com , Arlênio Lívio e Wellington Oliveira, formou a banda "The Sputniks", a qual foi desfeita no ano seguinte, quando iniciou carreira solo. Embora tenha flertado com a no início da carreira como cantor, no Rio de Janeiro, somente a partir de meados dos anos 1960 alcançou as paradas de sucesso, já como líder da Jovem Guarda, movimento musical que lançou o iê-iê-iê, que reproduzia à brasileira o ritmo e comportamento adotados pelos Beatles na primeira fase de sua carreira. As canções da Jovem Guarda renovavam a música popular brasileira a partir da incorporação de elementos musicais incomuns, como por exemplo, a guitarra elétrica, a sonoridade do rock e os temas associados aos interesses dos jovens. Nas “jovens tardes de domingo”, desde agosto de 1965, o programa Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, reunia artistas como , Wanderléa, Martinha, Wanderley Cardoso e Ronnie Von, entre outros. As canções de letras singelas e um tanto ingênuas atraiam os telespectadores da TV Record, “com seu repertório e seu clima de descompromisso intelectual e ao mesmo tempo de energia criativa [...] isso foi revitalizador e foi um dos propulsores da Tropicália”, conforme comenta Caetano Veloso, em depoimento sobre a importância da Jovem Guarda, no estúdio da PolyGram, em meados de 19954. De acordo com Medeiros (2008), as canções, além de singelas, expressavam, ao mesmo tempo, lirismo e rebeldia, conclamavam liberdade e incitavam a ruptura de preconceitos musicais e comportamentais. Ao refletir sobre a importância da Jovem Guarda, o autor ressalta que:

4 Disponível em: http://www.jovemguarda.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=54:caetano- veloso-2&catid=38:cantores&Itemid=54.

628 Curiosamente, ela dava forma, no Brasil, àquilo que os rebeldes do Maio de 68 em Paris (e em outros centros) reivindicavam: o direito de falar, gritar e cantar discursos provindos da própria experiência, ultrapassando as palavras-de-ordem emitidas da exterioridade idealizante das ortodoxias de esquerda. E para os nossos primeiros roqueiros, a ‘revolução’ que se queria era a da festa do corpo, a liberação e expansão dos limites da sexualidade: o sexo desculpabilizado, o beijo proibido no cinema (‘Splish Splash’), e o fogo subindo e inflamando o corpo (‘É proibido fumar’). Ampliação sensorial que coincidiu com a invenção da pílula, mudando de vez o espaço de autonomia da juventude das décadas de 1960 e 1970 (MEDEIROS, 2006, p. 5).

De fato, o movimento da Jovem Guarda, liderado pelo “Rei” Roberto Carlos, difundiu com suas canções um estilo de vida que, influenciado pelo rock e pelo American way of life5, traduzia a inquietude de jovens da classe média urbana para romperem com o conservadorismo e abraçarem os signos da modernidade, conforme veremos nas próximas linhas.

“E por isso eu estou aqui...”

O Brasil dos anos 1960 foi marcado por restrições políticas impostas pelo regime militar, cujas medidas repressivas se valiam da prática da tortura para coibir manifestações contrárias à ditadura, mas também por uma efervescência cultural, representada pela vanguarda estética do Cinema Novo, do experimentalismo do Teatro de Arena e Teatro Opinião, embora a manifestação cultural mais expressiva tenha sido a música popular, que apresentava uma forte polarização: de um lado, havia a bossa nova, cujo engajamento político de uma parte do movimento passou a entoar canções de protesto, que contestavam as ações do regime militar, ao mesmo tempo em que visavam a conscientização popular, com seus versos de crítica social. De outro lado, a cultura de consumo difundida pela Jovem Guarda, cujas composições ingênuas, quase infantis, mas de comunicação fácil e direta (CAMPOS, 1993), interpretadas por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, na segunda metade da década de 1960, são massificadas pela indústria fonográfica, ganham as rádios e televisões, reunindo uma legião de fãs que se identificavam com a sonoridade do rock, as gírias, comportamentos que desafiavam a sociedade moralista e repressiva da época, enquanto tramavam um acumpliciamento com o antigo, através das baladas românticas, nas quais perseguiam

5 Sobre a absorção do American way of life pela classe média brasileira, principalmente a partir da década de 1950, ver, por exemplo, Mello & Novaais (2006).

629 um amor idealizado. De fato, as primeiras canções interpretadas por Roberto Carlos, no início dos anos 1960, reprisam os papéis sociais designados para homens e mulheres no jogo de sedução, quando o “Brotinho sem juízo”6 (1960) é advertido pelo rapaz a não provocá- lo com toques, carícias ou roupas decotadas e que revelem seus joelhos, pois se o “seu sangue subir”, ele fará o que lhe der na telha e, ela “vai se dar mal”. Deste modo, ao praticar a contenção, o brotinho será recompensado “com véu e grinalda” e, irá agradecê-lo por ser “tão bobinho”, ou seja, por tratá-la com respeito e garantir que continue “certinha” e se case com sua virtude intacta. Assim, feliz, ele confessará, ao mundo inteiro, em qualquer lugar, que o seu amor será dela, "forever" (1961) e, “quando a velhice chegar”, ainda juntos, “os velhinhos” (1965) transmitirão aos netos os segredos do amor atrelado à legitimidade e indissolubilidade do matrimônio. Os versos das baladas românticas abordam paixões adolescentes, insistem em dedicar amor eterno à Rosinha (1964) eleita pelo jovem apaixonado, expressam um ideal de felicidade – ter esse amor retribuído e o sonho de por toda a vida ser o dono do seu coração, mas também enunciam demonstrações mais explícitas de atração e desejo sexual, ao revelarem “que coisa louca seria dar um beijo em sua boca”. Ainda que de forma metafórica, as canções já anunciam o desejo de transgredir a ordem vigente e, seguindo o coração, avançar o sinal na tentativa de seduzir um broto displicente, mesmo que para isso seja necessário parar “na contramão” (1963) e enfrentar a censura e vigilância social, representada na figura do guarda que leva sua “carteira pro xadrez” porque o jovem desobedeceu às regras sociais ou no olhar acusatório das pessoas diante do “Splish Splash” (1963) feito pelo beijo roubado no cinema, mas também a mal disfarçada inveja de alguns que “com água na boca” ficaram. Afinal, desse beijo “sai faísca” cuja combustão nem mesmo um bombeiro pode arrefecer, pois empenhado em desafiar os padrões morais e familiares vigentes, o jovem opta por desobedecer ao aviso que diz: “É proibido fumar” (1964). Nesse sentido, Medeiros (2008, p. 5) enfatiza:

E para os nossos primeiros roqueiros, a ‘revolução’ que se queria era a da festa do corpo, a liberação e expansão dos limites da sexualidade: o sexo desculpabilizado, o beijo proibido no cinema (‘Splish Splash’), e o fogo subindo e inflamando o corpo (‘É proibido fumar’). Ampliação

6 As palavras aspeadas se referem a títulos ou versos de canções gravadas por Roberto Carlos ao longo dos anos 1960, disponíveis em: www.robertocarlos.com.

630 sensorial que coincidiu com a invenção da pílula, mudando de vez o espaço de autonomia da juventude dos 1960 e 1970.

No trânsito entre o moderno e o arcaico, o barulho do tapa no escurinho do cinema anuncia a diferença entre as moças direitas, de família e as “biscates” ou programistas, com quem os bons rapazes se divertem mas não casam, ao mesmo tempo em que remete à diferença entre homens bons e maus, que avançam o sinal ou seguem os modelos instituídos. Todavia, anuncia algo mais, o clamor do desejo, cujo fogo nem bombeiro pode apagar, que impele os jovens a romperem com os valores conservadores e exercitarem sua sexualidade mais livremente, ainda que para isso seja preciso mandar “que tudo mais vá pro inferno” (1965). De fato, nos grandes centros urbanos, os rapazes adotam um modo de se vestir mais informal, abandonam o terno e a gravata e passam a usar calças jeans, os cabelos curtos são abolidos e todos se tornam “cabeludos”. Para aquele que afirma – “eu sou terrível” (1965), “o calhambeque” (1964) é substituído por “uma caranga máquina quente”, uma forma de curtição, mas também exibição, através da qual os narcisos atraiam as meninas (MEDEIROS, 2008). Não é à toa, portanto, que se tornava alvo constante de “mexerico da Candinha” (1964), colunista social da época, que o censura porque dirige “em disparada’, critica o modelo do seu terno, suas calças justas e botas extravagantes, bem como as gírias que utiliza, taxando-o de “louco, esquisito e cabeludo”, embora saiba que no fundo é um bom rapaz. Por sua vez, as moças usam minissaias e biquínis, incorporam a roupa masculina ao seu vestuário, principalmente a calça comprida, adotam comportamentos mais liberais e, algumas fumam até em público (MELLO & NOVAIS, 2006). Entre as garotas da zona sul carioca ou as da Rua Augusta, em São Paulo, oriundas da classe média ou alta, o ideal de virgindade passa a ser questionado no ínício dos anos 1960. O ingresso nas universidades e a comercialização da pílula anticoncepcional, em 1961, provocam a redução do tamanho das famílias, uma maior participação econômica das mulheres, ao mesmo tempo em que semeiam o inconformismo com a dupla moral sexual e descortinam outras possibilidades para o destino feminino (BASSANEZI, 2012). O fato é que, tanto para os rapazes como para as moças, a revolução de costumes e de comportamentos convidava à desrepressão sexual e ao amor livre, destituído de regulamentos e regras, ou seja, sem a obrigatoriedade do matrimônio, conduzido tão

631 somente pela atração irresistível dos corpos (LUNA, 2007). Contudo, essa revolução parece ser acionada pela mulher, conforme demonstra a garota que “é papo firme” (1966). De acordo com os versos da canção:

Essa garota é papo firme, é papo firme, é papo firme/Ela é mesmo avançada/E só dirige em disparada/Gosta de tudo que eu falo/Gosta de gíria e muito embalo/Ela adora uma praia e só anda de minissaia/Está por dentro de tudo e só namora se o cara é cabeludo/Se alguém diz que ela está errada ela dá bronca, fica zangada/manda tudo pro inferno/E diz que hoje isso é moderno.

Quem é essa garota, como e quando ela surgiu no cenário urbano? Em 1965, o Programa Jovem Guarda, transmitido pela TV Record nas tardes de domingo, atraia telespectadores de diferentes gerações. Inicialmente, Celly Campello foi cogitada para comandar o programa com Roberto Carlos, mas flechada pelo Estúpido Cupido, a cantora, que era um “Broto Legal”, aos 20 anos, cumpriu o destino reservado às “moças de família”, casou-se com o namorado desde a adolescência e, abandonou a carreira musical, passando a se dedicar à “vocação natural” da mulher – esposa-mãe e dona de casa, em tempo integral. Todavia, 1965 era o ano de ruptura, mudaram os padrões tradicionais de casamento, os esquemas familiares (BASSANEZI, 1996) e, o modelo de feminilidade, o broto legal deu lugar à garota papo firme. Assim, Celly foi substituída pela “ternurinha” Wanderléia que, junto com Roberto Carlos e Erasmo Carlos, passou a comandar o Programa Jovem Guarda. Conforme observa Severino (2002, p. 226):

Ela encarna a imagem da mulher ativa, liberada, meiga e sensual. De fato, essa imagem passa a ser veiculada como o perfil da mulher idealmente liberada que irá competir no plano social pela sua inserção no mercado de trabalho. Wanderléa, ao mesmo tempo que rompe com os padrões comportamentais, mistura a moral arcaica e familiar com essa imagem.

A garota “papo firme” rompe com os padrões de comportamento e o modelo de feminilidade seguido por sua mãe, descarta o recato e exibe suas curvas em minissaias ou biquínis com os quais provoca os rapazes na praia. Ela é avançada, dirige automóveis velozes, fala gírias, frequenta festas de arromba e só namora rapazes cabeludos. Bem informada, assiste televisão, lê jornais e está por dentro de tudo o que acontece no país e no mundo (BASSANEZI, 2012). Por isso, abraça ideias feministas, contesta a superioridade masculina na sociedade e, reivindica a independência e emancipação femininas, ao mandar tudo para o inferno.

632 As canções aparentemente ingênuas interpretadas pelo Lobo Mau com ar de moço bom e pela terna garota papo firme, ao contestarem as convenções sociais, a ordem sexual e familiar, prenunciavam a revolução dos sentidos que ocorreria na década seguinte, a mudanças nos comportamentos e nos papéis sociais de homens e mulheres, bem como nos padrões de masculinidade e feminilidade. Todavia, no final dos anos 1960, os jovens universitários, engajados na cena política, lutam por uma sociedade livre e igualitária, o que os leva a repudiar as canções da Jovem Guarda, taxando-as de alienadas7, a música se torna um instrumento para contestar a ditadura militar, os valores que regiam a sociedade de consumo, a cultura de massas patrocinada pela indústria fonográfica. Nesse sentido, Ferreira (2012), inspirada em Motta (2000), coloca que, naquele momento, a proposta era uma revolução estética artística e uma constituição identitária própria, em oposição à estandardização engendrada pelo markerting das grandes gravadoras e canais televisivos em torno da imagem dos ídolos juvenis: a ternurinha, a garota papo firme, o bom, o mau, o príncipe, o tremendão e o queijinho de minas. Assim, o “rei” abandona o comando do programa Jovem Guarda, em 1967 e, no ano seguinte, este deixa de ser exibido: “A Jovem Guarda tinha sido, não era mais” (FERREIRA, 2012, p. 271).

“Hoje, eu ouço as canções que você fez pra mim...”

Para homens e mulheres de gerações mais novas, que cresceram em famílias com relações mais igualitárias e exercem sua sexualidade mais livremente, a relação entre os casais é regida pela indiferenciação, uma vez que um e outro perseguem um projeto pessoal, o que por muitas vezes se mostra inconciliável na relação a dois. Sem a obrigatoriedade da eternização do par, o amor se torna confluente (GIDDENS, 1993), dura enquanto arder a chama da paixão, ou melhor, enquanto o relacionamento

7 Adriana Oliveira (2008) apresenta os seguintes argumentos para refutar a alienação atribuída à Jovem Guarda: Em primeiro lugar, pensar que este movimento musical consiste em artifício produzido pela indústria fonográfica diante da perseguição pelo Regime Militar aos cantores da MPB, não justifica o enorme sucesso que alcançado pelas canções da Jovem Guarda até os dias atuais, além do que incorreria em um pessimismo cultural em que a poderosa indústria cultural criaria sozinha seus próprios ídolos – produtos –, negando ao consumidor qualquer autonomia de escolha. Finalmente, a autora pondera que o aparente convívio harmônico destes artistas com o Regime Militar (1964-1985) não comprova uma possível conivência com o Regime. Deve-se levar em conta que grande parte destes artistas era oriunda das camadas populares e não tinha acesso ao debate político nos meios universitários, ao contrário de grande parte dos artistas pertencentes à MPB. Finalmente, trabalhavam para assegurar seu próprio sustento e, muitas vezes, do grupo familiar, dedicando-se a obter ascensão social e melhores condições de vida.

633 proporcionar companheirismo, completude emocional, satisfação e prazer sexual. Apesar de novos arranjos familiares e padrões sexuais de conjugalidade para homens e mulheres, modelos tradicionais ainda coexistem com os mais modernos e, no campo afetivo, as desigualdades de gênero permanecem, pois, a despeito das relações mais igualitárias entre os sexos, o homem ainda tem dificuldade em lidar com as emoções e sentimentos. Além disso, no jogo de sedução, o homem (ainda) detém a prerrogativa da conquista, embora muitas mulheres exerçam um papel mais ativo no ato de conquista. Ouvir as canções interpretadas por Roberto Carlos, durante a curta existência da Jovem Guarda, pode nos ajudar a compreender porque “tudo mudou” desde então, mas também revelar permanências na trama das relações intergeracionais que desenham as relações de gênero e o amor na cena contemporânea ou como convidam os versos do compositor, “olhar o mundo e ver o que ainda existe” do ontem no presente. Para isso, “ficaram as canções...”.

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