Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 [email protected] Laureate International Universities Brasil

Costa, Walter Carlos O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen Nonada: Letras em Revista, vol. 10, núm. 10, 2007, pp. 179-189 Laureate International Universities Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451701007

Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen

Walter Carlos Costa

RESUMO A tradução da obra de Guimarães Rosa tem chamado a atenção da crítica, por revelar aspectos importantes da escrita do autor de Grande Sertão: Veredas, entre eles passagens opacas. As pouco conhecidas traduções holandesas feitas por August Willemsen revelam um tradutor preocupado pela recriação do universo rosiano em toda sua complexidade, dando igual peso à precisão etnográfica e à invenção verbal. Sua análise contribui para um maior entendimento do original brasileiro.

PALAVRAS -CH AVE Guimarães Rosa; August Willemsen; tradução; Holanda.

ABSTRA CT The translation of Guimarães Rosa’s work has attracted critical attention as it reveals important aspects of the writing of the author of Grande Sertão: Veredas, among them the opaque passages. The relatively little known Dutch translations by August Willemsen reveal a translator concerned with the re-creation of the Rosian world in all its complexity, balancing both ethnographic accuracy and verbal invention. The analysis of these translations contributes to a broader understanding of the Brazilian original.

KEY WOR DS Guimarães Rosa; August Willemsen; translation; Netherlands.

Muitos poderão se perguntar sobre o sentido e a utilidade de se falar da obra rosiana em holandês, uma língua tão clandestina como o português e falada por uma comunidade muito menor. De fato, o holandês (ou, mais propriamente, o neerlandês) é a língua falada na Holanda, em Flandres (norte da Bélgica) e nas antigas colônias holandesas, como o Suriname. No total, pouco mais de vinte milhões de pessoas, ou seja, algumas gotas no vasto oceano da população mundial. No entanto, sabemos que algumas

13_ Walter.indd 179 14/9/2007 11:29:22 O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen

das grandes realizações da tradução literária se deram não no centro do sistema literário internacional mas em sua periferia, como é o da caso da Rússia e do Brasil, entre outras, com as traduções shakesperareanas de Boris Pasternak e as traduções de Emily Dickinson de Augusto de Campos. É o que aconteceu também com a obra de Guimarães Rosa, recriada em holandês por August Willemsen. Guimarães Rosa era muito consciente da importância da tradução para o pleno desabrochar de sua obra, idéia, aliás, cara a Walter Benjamin (Benjamin 2001), a quem devemos sua formulação mais cristalina. Cabe lembrar que a própria obra rosiana foi construída a partir de um aprovei - tamento metódico de recursos encontrados na dezena e meia de línguas estrangeiras que o autor dominava, em variados níveis, e fundidos em seu singular idioleto literário. A correspondência com seus tradutores constitui algo inusitado na história da literatura brasileira, como mostra a parte já publicada (ver Rosa 2003a e Rosa 2003b). Edoardo Bizarri e Meyer-Clason são reconhecidos como interlocutores privilegiados de Guimarães Rosa e têm, por isso, merecido a atenção da crítica. Uma atenção similar merece August Willemsen, responsável pelo que talvez seja o trabalho mais cui - dadoso e artístico de reinvenção do mundo encantado de Guimarães Rosa em língua estrangeira. Willemsen (ver Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/August_Wille - msen), nasceu em 1936 na capital holandesa, onde, depois de uma incursão no estudo do piano, especializou-se em literaturas de língua portuguesa, de que foi professor na Universidade de Amsterdam. Tornou-se célebre em seu país pelas traduções de autores portugueses e brasileiros, marcadas por um grande apuro estilístico e que lhe valeram, em 1983 o prêmio Martinus Nijhoff Prize. Paralelamente à carreira de tradutor foi desenvolvendo uma obra de escritor de textos ensaísticos e memorialísticos, também com mui - to sucesso de crítica e público. Em 1986 obteve o prêmio Lucy B. & C.W. van der Hoogt por seu Braziliaanse brieven [Cartas brasileiras]. Em 1994 escreveu De goddelijke kanarie [O canário divino], uma história pessoal do futebol brasileiro, de que é grande conhecedor.

180 Nonada • 10 • 2007

13_ Walter.indd 180 14/9/2007 11:29:23 Walter Carlos Costa

Willemsen estabeleceu, ao longo dos anos, uma carreira sui generis de tradutor e escritor, no sentido de que traduziu apenas seus autores preferidos e pôde convencer, ao mesmo tempo, seus editores de que esses autores eram vendáveis. A partir de certa altura, o fato de ele ser o tradutor de uma obra já garantia, de fato, certo sucesso comercial prévio à tradução. No referente à literatura brasileira, a seleção de Willemsen inclui clássicos como , , Carlos Drummond de An - drade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos mas compreende também autores contemporâneos como Dalton Trevisan, Antonio Torres e Chico Buarque de Holanda, de quem traduziu todos os romances escritos até agora. Organizou e traduziu ainda antologias de Ledo Ivo e . Da literatura portuguesa Willemsen traduziu quase toda a obra de Fernan - do Pessoa, que se tornou um autor popular na Holanda, a carta de Pero Vaz de Caminha, Almeida Faria, Nuno Júdice. Organizou e traduziu uma antologia de contistas e outra de poetas portugueses e tem no prelo uma antologia da lírica de Camões, de quem está traduzindo no momento Os Lusíadas . De Guimarães Rosa, Willemsen traduziu três obras: Primeiras estórias , publicada sob o título De derde oever van de rivier [A terceira margem do rio], pela editora Meulenhoff em 1977, “A hora e a vez de Augusto Matraga, Het uur en ogenblik van Augusto Matraga , publicada em uma plaquette pela editora De Lantaarn, em 1983, em 1992 e Grande Sertão: Veredas, Diepe wildernis: de wegen , publicada em 1993 pela Meulenfhoff. A escolha e a seqüência dos livros a traduzir parece ter seguido o mesmo ritmo de descoberta do mundo rosiano por parte do tradutor, que declarou:

Meu primeiro contato com a obra de Rosa foi bastante desfavorável: Primeiras estórias foi a primeira coisa que tentei ler dele e devo confessar que o livro inicialmente me irritou. Só depois de traduzi-lo é que comecei a admirá- lo. Depois disso, Grande Sertão: Veredas não apresentou mais nenhuma resistência. Lembro que nas primeiras páginas eu avançava a passo de tartaruga, retrocedendo de vez em quando para não perder o fio da meada, até que chegou um momento em que, sem que acontecesse nada

Nonada • 10 • 2007 181

13_ Walter.indd 181 14/9/2007 11:29:23 O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen

de especial, tudo ficou, de repente, claro . E essa clareza estava em mim. De repente, eu sentia o pulsar, a batida cardíaca do livro sob a minha pele, e então me deu vontade de ler cada vez mais, sem parar, e continuei lendo em um estado de êxtase quase febril.

Por causa da história? Sem dúvida - mas também por causa da língua. É que chega um momento em que estamos onde Rosa quer que estejamos: o momento em que lemos com olhos desarmados, com olhos de criança, quando toda palavra parece nova, concebida naquele momento, o que, aliás, é verdade. Porque o que vemos em Rosa é uma gênese lingüística, o nascimento de uma língua, de formas ainda instáveis , uma língua sem expressões fixas . A impressão é que Rosa, nas cerca de 200.000 palavras de Grande Sertão: veredas , raramente emprega a mesma palavra duas vezes. Para tanto, recorre, de modo tenaz e voraz, a todas as fontes de língua portuguesa e de outras línguas. (Rosa, 1993, p. 533-534).

Assim, Willemsen começou traduzindo Primeiras estórias , talvez o mais incontroverso dos livros de Guimarães Rosa. Tão incontroverso, de fato, que aparece como parte da coluna Biblioteca Básica, do suplemento Mais! da Folha de S. Paulo (de 26/11/06), apresentado pelo artista gráfico Elifas Andreato:

Acho fundamental a leitura de Guimarães Rosa [foto]. O bom começo são as Primeiras Estórias [ed. Nova Fronteira]. São pequenos contos que já têm características do romancista de Grande Sertão: Veredas . Já existe a perfeita descrição dos cenários, a sonoridade das frases construídas já está definida, em expressões apaixonantes como “transfoi-se-me” [conto “Famigerado”].

O título escolhido em holandês, De derde oever van de rivier [A ter - ceira margem do rio], retoma o título de um dos mais célebres contos da coletânea, seguindo a opção das duas traduções que a precederam, a norte-americana e a alemã. O lançamento aconteceu em 1992, ano em que foram também lançadas outras três traduções de autores brasileiros feitas por Willemsen: a do romance Estorvo, de Chico Buarque de Holanda, a do Memorial de Aires, de Machado de Assis, uma terceira coletânea de

182 Nonada • 10 • 2007

13_ Walter.indd 182 14/9/2007 11:29:23 Walter Carlos Costa

contos de Dalton Trevisan intitulada De Zoete vijandin [A doce inimiga] e o volume O Amor Natural , de Drummond. No posfácio a De derde oever van de rivier apresenta o percurso criativo do autor, chamando a atenção para a “revolução rosiana”: um experimentalismo radical combinado com um universalismo também radical sobre um assunto regionalista. Para Willemsen, como para a crítica rosiana, apesar das aparências, não se trata de literatura regional:

Certo, sua obra se situa no sertão de Minas Gerais, às vezes chamado pelo nome e sempre reconhecível; mas nunca o escritor trata aspectos regionais, nacionais, sociais ou sócio-psicológicos da vida nessa paisagem. Os ondulantes gerais, as imensas planícies, as serras, as fazendas do tamanho de províncias holandesas, os povoados e vilas poeirentos, quentes e sem a mínima estrutura social, todos esses espaços abandonados onde o olho se perde no horizonte tremulante e é cegado pelo sol, formam o teatro de histórias fáusticas e quixotescas que falam de loucura, fatalidade e mistério. No Brasil de Rosa, o sobrenatural se encontra instantaneamente sob a superfície das coisas cotidianas e todo rio tem três margens. (ROSA, 1997, p. 174).

Para Willemsen essa atenção às palavras está diretamente ligada a uma certa concepção das coisas. Ele não diz, mas seu argumento ecoa aquele de Sartre de que “toute technique renvoie à une métaphysique”, ou seja, “toda técnica remete a uma metafísica”. Willemsen liga essa obsessão com as palavras a uma concepção fatalista da vida:

Quem quer ser tão preciso, e tão ligado à transcendência, deve considerar cada momento sub specie aeternitates. Rosa é um fatalista. Não no sentido de “pessimista”, mas no sentido grego de quem acredita na ligação subterrânea das coisas da vida com o destino. Seja de modo elusivo, seja diretamente no título (é o caso do conto “Fatalidade”), a consciência da ligação com o destino é onipresente. [...] A vida é, de fato, invivível, impossível, como declaram muitos personagens. A única saída é considerá- la um milagre. Não espanta, portanto, que sejam crianças e loucos, livres da lógica e da rotina, os que conseguem lidar com o mundo. (ROSA, 1997, p. 177).

Nonada • 10 • 2007 183

13_ Walter.indd 183 14/9/2007 11:29:23 O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen

Willemsen chama também a atenção para a variedade de Primeiras estórias em termos de tom, tema, situação, perspectiva, clima emocional, o que resulta em contos em que se misturam o fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o cômico no trágico, o retrato, a memória, a anedota, a sátira e o poema em prosa. Correlatos a esses formatos textuais há diferentes estilos: espirituoso, patético, sarcástico, lírico, arcaizante, erudito, popular, culto – diferenças de estilo que decorrem da pessoa do narrador. A focalização também é das mais variadas: primeira pessoa de tipo autobiográfico, um figurante passivo, um comentador, que, por sua vez, pode ou não ter nome. Willemsen traduz Guimarães Rosa como quem traduz poesia, sempre atento à sonoridade e os recursos rítmicos, que ele tenta recriar em holandês. Um bom exemplo dessa atitude é a seguinte passagem de “Vertrek van de kloeke zeevaarder” (“Partida do audaz navegante”) in De derde oever van de rivier: “Vão com Deus!” mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e choviam era bátegas de bênçãos. ‘Ga met God!’ riep moeder, voorzeggend, met die ontstijgende stem. Haar spreken was als regen: een zeiken van zegeningen. Em uma palestra no LAC, Latijns Amerika Centrum [Centro Latino-americano] de Amsterdã, em 15/01/06, Willemsen explicou como se saiu da dificuldade de traduzir a última parte da frase:

Mas no fim havia “bátegas de bençãos”. A tradução literal, ‘slagregens van zegeningen’, não me parecia bonita e não tinha a aliteração do original. Aí pensei que quando chove muito, dizemos “Het regent dat het zeikt” [chove de entornar]: daí me veio “een zeiken van zegeningen” [forte chover de bençãos]. Mas, então, pensei: “Isso é impossível.” mas acabei deixando e depois pensei: “E por que não?, se soa tão bem?” Para aplacar minha consciência, fui ao dicionário e, dos quatro significados encontrados havia dois regionais equivalentes a “cair água” e “chover forte”. Ou seja, independentemente de meu gosto pessoal, eu estava autorizado a usar a palavra.

O segundo texto de Guimarães Rosa traduzido por Willemsen foi não um livro mas uma plaquette, Het uur en ogenblik van Augusto Matraga,

184 Nonada • 10 • 2007

13_ Walter.indd 184 14/9/2007 11:29:23 Walter Carlos Costa

correspondendo ao conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” do vo - lume Sagarana , publicado pela primeira vez em 1946. O livrinho saiu pela pequena editora De Lantaarn, de Leiden, a mesma que publicou outras duas plaquettes de Willemsen com tradução de um punhado de poemas de João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. No posfácio em forma de carta, Willemsen explica por que escolheu o conto:

O fascinante é que “Matraga” está na origem de Grande Sertão: veredas: a luta entre o bem e o mal, a viagem que leva ao ponto de partida e que simboliza a vida. Trata-se, de fato, de um conto fortemente simbólico sob todos os pontos de vista, uma verdadeira “novela exemplar”. Lida literalmente mostra uma trama sentimental, cheira a crendice e tem uma luta no final tão inverossímil como a morte em uma ópera. Mas acredito que Rosa nos força a ler não literalmente, e aí a história causa uma grande impressão, pelo menos para mim. Eu disse “luta do bem e do mal”, e este é um tema importante no conjunto da obra de Rosa, mas o interessante em Rosa é que o bem e o mal estão muito próximos e são ambos ambivalentes em extremo. (ROSA, 1983, p. 50).

Para Willemsen, o destino de Matraga está no próprio nome, para ele uma invenção rosiana:

Até que ponto o bem de Matraga é bem? A violência, que no início é má, é, no fim, boa. Ra, ra, como é que pode? Já está no nome. Rosa sabia árabe e, de vez em quando, brincava com essa língua nos nomes próprios. O árabe mitrapa significa martelo e em português o verbo matraquear significa “repetir monotonamente”, “aborrecer, enfadar, amolar”. (Basta pensar no francês matraquer e no flamengo matrak , significando porrete). Um nome apropriado, portanto, para alguém que ir para o céu a porrete; a associação, aliás, é claramente sugerida à página 46, quando ele menciona pela oitava vez a palavra vez e imediatamente diz: “E a casa matraqueou”. (ROSA, 1983, p. 50).

Esse extremo zelo, tanto com a palavra isolada como com os efeitos de simetria ao longo do texto vai ser redobrado em Diepe wildernis: de wegen, que é provavelmente a mais criativa tradução de Grande Sertão: Veredas

Nonada • 10 • 2007 185

13_ Walter.indd 185 14/9/2007 11:29:23 O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen

até agora. A obra, que apareceu em 1993 e teve duas reimpressões, uma em 1995 e outra em 2000, atualmente está esgotada e ganhará uma nova edição em 2007. Tal como a que acaba de ser lançada no Brasil, será acompanhada de um DVD. O Grande sertão: veredas holandês foi recebido com entusiasmo pela crítica. Em 1996 formou-se, inclusive, um grupo chamado Rosa Ensemble, que fez em 1998 uma representação teatral e musical, chamada, como o livro, Diepe Wildernis: de wegen . A tradução em holandês foi feita por August Willemsen, que também fez a parte de narrador no palco. Na mesma palestra citada acima na LAC, Willemsen comenta uma rese - nha muito favorável que apareceu em dos principais jornais holandeses:

Depois do lançamento de Diepe wildernis: de wegen , minha tradução de Grande Sertão: Veredas , disseram no NRC/Handelsblad que eu tinha demorado 20 anos para traduzir o livro. Juro que não é verdade. Mas o certo é que demorou quase 15 anos para que eu ousasse começar a traduzir. Porque não era a língua a maior dificuldade. Eu já tinha, de fato, traduzido Primeiras estórias em 1977 que, em termos lingüísticos, é muito mais difícil. [...] A verdadeira dificuldade é psicológica: e está na extensão. Uma história de página e meia e três páginas é abarcável. É difícil, mas uma vez que você tem uma primeira versão provisória, você pode olhar o conjunto com calma, polir, cortar e mudar e depois de um tempo você consegue alguma coisa.

Outra atitude mental é necessária para começar um livro com um grau similar de dificuldade mas de 460 páginas em tipografia apertada, um livro, ademais, que não contém capítulos e nem mesmo uma linha em branco. É um texto só, da margem esquerda superior da primeira página à margem direita inferior da página 460. A perspectiva de começar uma tarefa dessas representa, mesmo para o tradutor experiente, um limiar temível, quase infranqueável.

Assim, Willemsen, à razão de 14 a 15 horas de trabalho por dia, con - seguiu traduzir Grande Sertão: Veredas . No meio do processo, publicou um fragmento na revista do editor Meulenfhoff. A reação de um crítico,

186 Nonada • 10 • 2007

13_ Walter.indd 186 14/9/2007 11:29:23 Walter Carlos Costa

dizendo que aquilo não era holandês, convenceu Willemsen que estava no caminho correto, já que as traduções inglesa e alemã não lhe tinham servido muito: “Comparei o fragmento traduzido com as traduções ingle - sa e alemã e vi que não poderiam me ajudar por serem estilisticamente pobres.” Faltava nessas traduções, segundo Willemsen, aquela mistura de erudição quase megalomaníaca e loucura infantil que caracteriza o estilo de Rosa. Depois de achar o pulso do livro, lendo-o com outros olhos, musical, não gramaticalmente, Willemsen diz ter demorado 9 meses para terminar a empreitada, exatamente o tempo tomado pelo autor para escrever o original. Podemos ter um vislumbre da qualida - de estilística da tradução de Willemsen tomando qualquer trecho, por exemplo, este da primeira página 3, justamente célebre:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...

In den beginne deed ik dit en deed ik dat en aan denken dacht ik niet. Ik had de tijd niet. Ik leefde van moeilijk naar moeiluk, als een levende vis op het rooster: wie zich afbeult in het brute fantasieert niet. Maar nu, nu de tijd toereikt, en zonder kleine onrusten, kan ik zalig nietsdoen. En ik heb mezelf gevonden in dit genoegen, gedachten te bespiegelen. De duivel bestaat en bestaat niet? Ik geef het voor gezegd. Vade retro. Die melancholieën. Bij voorbeeld: een waterval, bestaat, nietwaar? Maar een waterval is een stuk steile grond met water dat erover valt en dondert; nu haalt u het water weg of effent de afgrond, wat wordt dan van de waterval? Leven is een heel gevaarlijke zaak...

Vê-se claramente que Willemsen se ateve à pauta sonora do original, rico em aliterações e ecos rímicos. A sintaxe tortuosa também foi reproduzida, assim como a mistura de língua erudita e popular. O parágrafo parece tão

Nonada • 10 • 2007 187

13_ Walter.indd 187 14/9/2007 11:29:23 O Guimarães Rosa holandês de August Willemsen

esquisito, lúdico e encantatório em holandês como em português e esse tom é mantido ao longo de todo o texto. Cabe assinalar, no entanto, que o trabalho do estilo não fez Willemsen descuidar dos aspectos de construção do relato. Sem diluir o estilo, Willemsen tomou algumas medidas para facilitar ao leitor holandês interessado o dificil périplo pelo mundo rosiano. Assim, colocou no final do livro duas páginas com mapas reproduzindo minuciosamente o que ele considera ser as 16 viagens fundamentais de Riobaldo no amplo território que abarca partes dos Estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia, desde o encontro com Diadorim até o combate do Paredão. Como nos outros livros que traduziu, Willemsen prefere colocar poucas notas, a maioria delas referentes à fauna e à flora. Neste caso, acrescenta uma breve seção sobre os topônimos, de grande relevância no livro. Inclui também um amplo posfácio, de 33 páginas, intitulado “Het woord als gedicht - het boek als de wereld” [A palavra como poesia - o livro como mundo] em que analisa a obra-prima de Guimarães Rosa com base na melhor bibliografia brasileira confrontada e enriquecida com uma atentíssima leitura do texto. Podemos concluir, observando que em holandês Guimarães Rosa está traduzido apenas parcialmente mas traduzido segundo uma visão totali - zadora e uma minúcia e elegância exemplares, o que torna esses textos esteticamente significativos dentro da tradição literária holandesa mas também pode oferecer algumas lições para os tradutores de outras línguas e para os leitores e críticos do texto em português. Poder ler em holandês, que muitos consideram uma habilidade de pouca utilidade prática, é para a fruição da obra de Guimarães Rosa certamente um privilégio.

REFERÊN CIAS

BENJAMIN , Walter. A tarefa-renúncia do tradutor. In:____. Heidermann, Werner (org.) Clássicos da Teoria da Tradução Alemão-português. Flo - rianópolis: NUT/UFSC, 2001.

188 Nonada • 10 • 2007

13_ Walter.indd 188 14/9/2007 11:29:24 Walter Carlos Costa

ROSA , João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri . : Nova Fronteira, 2003b.

_____ . Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003a.

_____ . Ficção completa II . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

_____ . Diepe wildernis: de wegen. Vertaling en nawoord August Wille - msen. Amsterdam: Meulenhoff, 1993.

_____ . Het uur en ogenblik van Augusto Matraga. Vertaling van August Willemsen. Leiden: De Lantaarn, 1983.

_____ . De derde oever van de rivier. Vertaling en nawoord August Wil - lemsen. Amsterdam: Meulenhoff, 1977.

Wikipedia. “August Willemsen”. http://en.wikipedia.org/wiki/Au - gust_Willemsen

WALTER C ARLOS C OSTA Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Cursou Filologia Ro - mânica na Katholieke Universiteit Leuven, com dissertação sobre a tradução de Grande Sertão: Veredas ao francês e se doutorou pela Universidade de Birmingham, Reino Unido, com tese sobre as traduções de Borges ao inglês. Tem publicado regularmente sobre literatura hispano-americana (sobretudo Borges) e sobre questões de tradução (sobretudo a conexão da literatura traduzida com a literatura brasileira). E-mail: [email protected]

Recebido em 15/05/07 Aceito em 15/06/07

Nonada • 10 • 2007 189

13_ Walter.indd 189 14/9/2007 11:29:24