neil.indd 44 01.10.08 18:14:11 A chegada da corte portuguesa na ótica norte-americana

Gostaria de agradecer a Maria Leal (Biblioteca Oliveira Lima, Washington, DC) e a Íris Kantor (USP) pela ajuda inestimável na NEIL SAFIER execução desta pesquisa e na elaboração deste artigo.

uando Hipólito da Costa chegou à recém-batizada capital norte-americana no fi nal de 1798, o que mais capturou sua atenção foram os jornais e periódicos. Pisando nas docas da Filadélfi a, no frio de uma manhã de dezembro, o jovem luso-brasileiro fi cou maravilhado ao ver os anúncios impres- sos pendurados livremente nas paredes da casa de correios. Impressionaram-no os “muitos editais impressos para coisa [sic] de bagatela” e ele reconheceu que, “como a imprensa é livre, tudo se imprime para maior comodidade”1. Durante a sua estadia de quase dois anos na América do Norte, NEIL SAFIER é professor ele assinou a Gazette of the United States, a Aurora, e leu do Departamento de História da Universidade outros jornais e revistas, tais como o Medical Repository, de Colúmbia Britânica, Vancouver, Canadá. especializado em questões de medicina e saúde pública, publicado em Nova York. Mas não era só para fazer a vida confortável que os documentos impressos eram amplamente difundidos. A imprensa também tinha um papel fundamental no processo político da jovem nação, e Hipólito da Costa destacou que os “diferentes pamphlets [sic] impressos se espalhavam a [ponto de] deteriorar o caráter daquelas pes-

soas que eram propostas para eleição”2. Acrescentou ainda outras observações sobre a participação de cidadãos comuns nesse processo e, sobretudo, o fato de que “havia em vários cafés, ou botequins, homens com caixas para receber votos”. Com essas observações, demonstrou a forte conexão entre a imprensa livre e o compromisso dos cidadãos com o pro- 1 Hipólito da Costa, “Diário de Minha Viajem para Filadélfi a cesso eleitoral, sugerindo que essa prática política era digna 1798-1799”, MSS, Biblioteca Pública de Évora, 11/dez/ 1798. daquela celebrada república que tinha cortado os laços com 2 Idem, 30/abr./1799. a mãe-pátria havia somente duas décadas.

neil.indd 45 01.10.08 18:14:11 Diferente dos republicanos norte-ame- sa, e figuras como Dom Rodrigo tentavam ricanos, cuja influência se sentia profunda- diminuir as distâncias que separavam os mente na Filadélfia de finais do Setecentos, colonos da monarquia por intermédio de Hipólito da Costa não era a favor da sepa- indivíduos como Hipólito. Educar jovens ração entre sua terra natal – o Brasil – e a brasileiros em Coimbra e mandá-los para os sede do Império português. Contudo, suas quatro cantos do mundo era parte integrante experiências na jovem federação dos Es- dessa estratégia. Em poucos anos, porém, tados Unidos e na Inglaterra, onde passou como bem se sabe, o Brasil se transformaria quase duas décadas após a sua fuga ines- em metrópole, o se tornaria perada de Portugal em 1805, marcaram-no capital de um vasto império, e em 1818 de maneira decisiva, sobretudo pelo contato o príncipe regente seria aclamado rei de com sociedades que cultivavam a liberdade Portugal e do Brasil em terras americanas. de expressão e a livre circulação de idéias. Esse acontecimento inédito na história das Foi o ministro português Dom Rodrigo de Américas teve um impacto particular na Sousa Coutinho que enviou Hipólito em primeira república do hemisfério, e a che- missão oficial à república norte-americana gada da corte foi objeto de curiosidade mas com o objetivo de procurar informações também alvo de críticas pelos representantes precisas sobre a situação agrícola do país, diplomáticos dos Estados Unidos instalados fazer o inventário de espécies e identificar no Rio de Janeiro. Como, então, foi percebi- obras que pudessem melhorar a condição da nos Estados Unidos essa transformação econômica e política em Portugal e nas do Brasil de colônia em metrópole? Como suas colônias, especialmente no Brasil. a jovem república reagiu às notícias de Conhecido por editar o Correio Braziliense, uma monarquia nas Américas, tendo só jornal político que publicou durante o exílio recentemente conseguido se livrar das gar- em Londres entre 1808 e 1822, Hipólito da ras do monarca britânico? Sem pretender Costa também foi um ator importante nesse ver nisso somente os primeiros esboços da momento inicial das relações diplomáticas futura Doutrina Monroe – que considerava entre os Estados Unidos e o que viria a ser “qualquer tentativa [dos poderes europeus] o Brasil, um relacionamento que começou de estender o seu sistema a qualquer região justamente nos anos que precederam a [do hemisfério americano] como um desafio chegada do jovem luso-brasileiro às mar- à paz e segurança [dos Estados Unidos]” gens geladas do Rio Delaware. Mais tarde, – é preciso entender os laços importantes chegaria aos Estados Unidos o embaixador criados entre: os viajantes norte-america- e botânico Corrêa da Serra, cuja amizade nos, a emergência de uma esfera pública com Thomas Jefferson e outras figuras nos Estados Unidos, e a nova monarquia importantes da política norte-americana nos trópicos. – inclusive um diplomata e erudito chamado Este artigo tenta explorar as notícias Henry Marie Brackenridge – lhe atribuiria da chegada da corte portuguesa no Brasil o apelido de o “Franklin de Portugal” com através de uma leitura de sobrevôo de al- direito a uma sala na residência jeffersoniana guns jornais norte-americanos, terminando em Monticello (Virgínia) em sua homena- com as observações feitas por um viajante gem3. Mesmo antes da ida do abade Corrêa norte-americano sobre o Brasil e com os da Serra, porém, o interesse pelos Estados comentários à aclamação de um monarca Unidos já tinha crescido na ótica portuguesa, nas Américas. Mas comecemos assim como 3 Edward Corrêa da Serra a e através da viagem de Hipólito da Costa Hipólito da Costa fez quando chegou à Vaughan, 1o de julho de 1823, citando em “The Abbé Correa podemos entender o início dessas relações Filadélfia: adentrando pelas páginas dos in America, 1812-1820: The Contributions of the Diplomat bilaterais que cresceriam ao longo de dois jornais norte-americanos, nos quais as no- and Natural Philosopher to séculos até os nossos dias. tícias sobre a chegada do príncipe regente the Foundations of Our Na- tional Life”, in Transactions of No momento em que Hipólito visitou os Dom João foram tratadas com curiosidade, the American Philosophical Estados Unidos no final do século XVIII, o uma certa ambigüidade e, por incrível que Society, New Series, vol. 45, no 2, 1955, p. 189. Brasil ainda era colônia da Coroa portugue- pareça, poesia.

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neil.indd 46 01.10.08 18:14:11 “UM NOVO EVENTO NA HISTÓRIA dam, em que se elogiava a “determinação do Príncipe do Brasil a procurar refúgio nos DA AMÉRICA” seus domínios Americanos… [o que] revela a máxima honra do seu espírito e da sua magnanimidade”6. Ao mesmo tempo, esse A primeira menção nos periódicos jornal parecia vacilar sobre a importância da norte-americanos de um projeto que vi- luta armada para reconquistar um território sava a transferir a corte de Lisboa para o invadido. Em alguns casos, esse holandês Brasil encontra-se na Federal Gazette and dizia que a “prudência de uma fuga na hora Daily Advertiser (um jornal co- certa” valia mais do que um patriotismo mercial publicado entre 1796 e 1825) no cego. Em outros, porém, esse correspon- final de agosto de 1801. Nos últimos dias dente enfatizava que era imprescindível da chamada Guerra das Laranjas, na qual aos patriotas contestarem e desafiarem os Portugal se viu obrigado a capitular diante invasores, “mesmo se ficassem sepultados das superiores forças espanholas, uma car- nos escombros das suas próprias cidades”7. ta escrita de Lisboa revelava as possíveis A luta armada para expulsar um exército in- condições às quais Portugal estaria sujeito vasor foi, obviamente, um elemento-chave com o fim da guerra, inclusive a perpétua na Independência norte-americana, e não dependência de Portugal vis-à-vis a Espa- surpreende que essa estratégia fosse bem nha, o pagamento de uma taxa altíssima aos vista por um órgão que se aliava ao partido franceses, e a navegação livre dos franceses de George Washington, grande herói dessas pelos portos do Brasil e pelo Rio Amazonas. mesmas guerras de Independência. Dadas essas condições, e para explicar um Se a idéia de uma fuga da corte ao Brasil boato que já circulava sobre a possibilidade aparece nessa carta escrita por um mercador de o príncipe regente ficar preso em Madri, holandês como um acontecimento provável, o jornal americano explicava que “a humi- ou pelo menos um ato plausível, outras no- lhação e duro tratamento que [o príncipe tícias em números posteriores dos jornais regente] provavelmente experimentará é norte-americanos oscilariam marcadamente capaz de induzi-lo a tomar uma providên- entre as duas possibilidades. No dia 3 de cia que a boa razão já se lhe prescrevia”4. novembro de 1803, ao dar notícia de um Essa providência foi a fuga ao Brasil. Essa pacote de cartas escritas em Lisboa pelo mudança da sede da monarquia, segundo o duque de Cumberland, a Kennebec Gazette jornal, poderia converter um príncipe fraco do Maine sublinhava que “em nenhuma das num verdadeiro imperador: “Porque apesar cartas há menção de que o Príncipe do Bra- de ser o príncipe mais débil da Europa, é sil esteja se preparando para uma ida com possível que ele chegue a ser o soberano a corte às suas possessões na América do do mais poderoso e florescente império Sul, como foi recentemente proclamado”8. do mundo, desde que tirasse proveito dos Com a Inglaterra diretamente envolvida problemas surgidos nessa parte do globo, na operação naval que transferiria a corte e se transportasse à América”5. da Europa para as Américas, não é de es- A possibilidade da fuga do príncipe tranhar que o duque de Cumberland não regente ao Brasil suscitou múltiplas rea- tenha falado sobre o assunto. Porém, duas 4 Federal Gazette and Baltimore Daily Advertiser, Baltimore, 31 ções na Europa nesse período, e os jornais semanas depois, na Reporter de Vermont, de agosto de 1801, p. 3. americanos seguiram essas opiniões através lêem-se notícias exatamente contrárias: “O 5 Idem, ibidem. de canais mercantis e culturais em Londres, Príncipe dos Brasis está sem a maior dúvida 6 Gazette of the United States, 27 nos Países Baixos, e na própria metrópole preparando a sua frota, resolvido a deixar de outubro de 1803, p. 3. portuguesa. A Gazette of the United States, a Europa em direção às suas colônias na 7 Idem, ibidem. um braço não-oficial do governo na época de América do Sul”9. Outros jornais apresen- 8 Kennebec Gazette, Augusta, Maine, 3 de novembro de George Washington e partidária dos chama- tavam as duas possibilidades sob a mesma 1803, p. 3. dos “Federalistas”, chegou a publicar uma manchete. Na matéria intitulada “Notícias 9 Reporter, Brattleboro, Vermont, carta escrita por um comerciante de Rotter- Estrangeiras” do Western Star, publicada 14 de novembro de 1803, p. 2.

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neil.indd 47 01.10.08 18:14:12 em outubro de 1806, lêem-se dois artigos lado a lado que descrevem a situação do navio britânico Hibernia. O primeiro artigo notava que o navio estava “preparado para uma longa viagem que levará o Príncipe Regente de Portugal aos Brasis, para es- tabelecê-lo como Rei [naquela parte das Américas]”; enquanto o segundo explicava que esse mesmo navio “seguirá até Lisboa, mas é difícil cogitar que o propósito será aquele mencionado há um ou dois dias, que era o de receber a bordo o Príncipe do Brasil”10. E ainda outros jornais falaram das dificuldades que a corte portuguesa ia encontrar ao empreender esse tipo de via- gem: “É opinião de muitas pessoas que as dificuldades que se apresentam à possível emigração da corte são de tal proporção que a sua realização seria impossível”11. Essa profusão de prognósticos se deve em parte às várias fontes utilizadas pelos periódicos norte-americanos, a maior parte deles de- pendente dos correspondentes em Londres e outros locais da Europa. Mostra também os enormes problemas técnicos enfrenta- dos pela corte. Mas revela, sobretudo, a maneira ambígua como essa conjuntura foi vista pelos norte-americanos, por um lado sujeitos a certa defasagem na comunicação das notícias, e por outro demonstrando uma razoável desconfiança na veracidade das fontes. Já próximo à saída da corte no dia 29 de novembro de 1807, alguns jornais começa- ram a explicar de forma histórica o motivo por trás desse ato político sui generis: “A transferência [translation] da sede do go- verno português de Lisboa para o Brasil foi contemplada pela primeira vez sob a admi- nistração do marquês de Pombal”, explicou um artigo da Aurora, dando a entender que era a única maneira possível de preservar o Brasil. Mais tarde, como logo veremos, a singularidade da transferência da corte serviria de fato para aumentar a curiosidade 10 Western Star, Stockbridge, pela história do Brasil, “um país que deve Massachusetts, 11 de outubro de 1806, p. 3. peculiarmente interessar ao mundo por ser 11 Spectator, New York, 2 de a sede da Realeza e o refúgio de um Poten- dezembro de 1807, p. 2. tado europeu”12. Mas esse noticiário sobre 12 Essex Register, Salem, Mas- sachusetts, 24 de fevereiro de a origem da idéia de sediar a monarquia 1808, p. 3. portuguesa no Brasil logo cedeu lugar às

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neil.indd 48 01.10.08 18:14:12 notícias mais urgentes. Ainda um mês e meio após a saída da família real, alguns jornais continuaram a discordar sobre a verdadeira data da fuga. Num despacho de Lisboa, datado de 10 de outubro mas publicado nos Estados Unidos no dia 14 de dezembro de 1807, era difundido o boato de que a família real já tinha embarcado para o Brasil no dia 12 do mês anterior (outubro). Na mesma edição, um outro artigo explicava que os jornais franceses haviam confirmado a saída da família real para os Brasis, “com 13 navios de linha”, em algum momento antes do dia 24 de outubro13. Afinal, no dia 24 de fevereiro de 1808, na seção do jornal intitulada “No- tícias Domésticas”, um capitão britânico chamado Wilkins avisou que ele pessoal- mente tinha se juntado à frota portuguesa indo “de Lisboa para os Brasis, levando a bordo a Rainha, Príncipe Regente, e a maior parte da nobreza associada à Corte de Portugal”14. Com esse testemunho ocu- lar, dado por um militar britânico de alta confiança, os leitores norte-americanos tiveram a confirmação de que uma rainha européia estava a caminho da sua mais importante colônia ultramarina, onde seria estabelecida uma monarquia do Antigo Regime nas Américas.

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A transferência da corte de Portugal ao Brasil foi comentada e discutida nos jornais norte-americanos com entusiasmo e profunda curiosidade durante o primeiro trimestre de 1808. Para o jornalista do Es- sex Register, num artigo datado de 24 de fevereiro de 1808, os portugueses tinham até então velado a história das suas colô- nias americanas. Mas esse “novo evento na história da América” suscitou o desejo – da parte do jornalista, pelo menos – de ter em mãos uma nova narrativa histórica “daquela parte do nosso continente que, em poucos meses, tem sido o palco de even- 13 Trenton Federalist, Trenton, tos mais interessantes do que aqueles que New Jersey, 14 de dezembro marcaram a sua história desde a primeira de 1807, p. 2. descoberta”. Esse jornalista coloca os even- 14 Essex Register, Salem, Mas- sachusetts, 24 de fevereiro de tos de 1808 ao mesmo nível – aliás, acima 1808, p. 3.

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neil.indd 49 01.10.08 18:14:13 do nível – das primeiras descobertas da os acontecimentos previstos para o ano América, aquilo que Adam Smith declarou seguinte, o editor do New York Commercial (junto com a descoberta da passagem às Advertiser deu aos seus clientes uma lição Índias orientais) serem “os maiores e mais histórica sobre a queda das monarquias importantes eventos gravados na história européias, e escolheu uma forma poética da humanidade”15. para o fazer. Sob uma linda ilustração que Smith fez esse comentário numa seção mostrava uma pluma e a palavra “poesia”, da sua obra-prima chamada “Das Vanta- o autor desse poema explicou que “com gens que a Europa Extraiu da Descoberta da orgulho a posteridade cantará/ a maneira América,” e não é por acaso que o jornalista em que Demos nos liberou”17, enfatizando da Essex Register colocou esse aconteci- as raízes democráticas dos Estados Unidos mento em condição igual às descobertas em contraste com as tradições despóticas portuguesas. Para os Estados Unidos, a das monarquias na Europa. Portugal, nesse chegada da corte teve uma importância contexto, foi representado como um reino ímpar graças à abertura dos portos e ao morto, devido em parte à decisão de mandar fim das restrições comerciais entre as o seu príncipe ao Brasil: duas partes do hemisfério. Por causa da relevância dessa notícia para a comunidade “Entre os poderes, pouco se pode mercantil de Nova York, o New York He- Dizer e cantar de Portugal, rald publicou o decreto integral de Dom Ou perderá a Bonaparte, João declarando a abertura do comércio Ou enviará seus príncipes ao Brasil; entre os dois continentes. As possibilida- Em todo caso, o reino morre des comerciais criadas pela proclamação E nunca mais levantará sua cabeça”18. do príncipe regente levaram esse mesmo jornal a especular sobre os benefícios po- Um mês depois, uma ode foi lida na tenciais que os Estados Unidos poderiam Columbian Reading Society de Washing- atrair do novo arranjo geopolítico: “Se ton tratando do embargo posto em prática os habitantes daquele imenso e rico país pelo presidente Thomas Jefferson. Em pudessem se prover dos suprimentos mais reação ao recrutamento de soldados da

15 Adam Smith, A Riqueza das básicos e menos valiosos do nosso solo marinha americana para o serviço nas ar- Nações, livro 4, capítulo 7, setentrional, […] eles não seriam obrigados madas inglesas, o ato visava a uma parada parte 3. a gastar o seu trabalho com as necessidades completa de saídas dos barcos americanos, 16 “Trade with the Brazils Opened”, in New-York Herald, 9 de julho de vida. Em vez disso, poderiam cultivar o uma postura que o próprio Jefferson viu de 1808. anil, açúcar, café, cacau, algodão, etc.”16. A como a melhor alternativa para não entrar 17 Hampshire Federalist, 14 de listagem desses produtos mostra bem o que em guerra. Utilizando a popular melodia janeiro de 1808, p. 4 (“With pride shall sing posterity/ How estava em jogo para os Estados Unidos na de “Yankee Doodle Dandy”, o autor dessa Demos made us great and free”). esfera comercial, e as mudanças regionais ode fez uma brincadeira referindo-se aos 18 Hampshire Federalist, 14 de que a chegada da corte poria em vigor para eventuais efeitos do embargo, ao invocar janeiro de 1808, p. 4 (“Of aqueles países ao norte do Equador. a ida da família real ao Brasil para satirizar Portugal, the powers among,/ But little can be said or sung,/ Mas o entusiasmo com a instalação o monarca inglês: She’ll bow to Bonaparte’s will, / Or send her Princes to Brazil;/ de uma corte européia nas Américas não In either case the kingdom’s ficaria somente no âmbito histórico e co- “Ele cantou, como o leal governo do [rei] dead, /And never more will raise its head”). mercial. O evento ganhou novas formas de [George 19 Washington Expositor, 2 de tratamento que ultrapassaram os gêneros Mandou a corte portuguesa ao Brasil; abril de 1808, p. 89 (“He sung, literários tradicionais, como se pode ver Se as coisas não ficarem melhores para ele, how George’s loyal govern- ment/ The court of Portugal to evidenciado em vários poemas escritos, Talvez [George] migre também; Brazil sent;/ Whither, if things with him no better grow,/ Per- recitados e eventualmente publicados nos Dando à vulgar família da Colúmbia chance his majesty may migrate jornais americanos. Nesses jornais, a rea- Aproximação ao sangue real; too;/ Giving to vile Columbia’s vulgar brood/ Approximation leza portuguesa apareceu como um parente E uma atmosfera cortesã to the royal blood;/ And a anômalo dentro de uma família de monarcas courtly atmosphere,/ By a whole Por um continente inteiro, de fato, perto continent, indeed, too near”). em via de extinção. Prognosticando sobre [demais”19.

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neil.indd 50 01.10.08 18:14:14 A possibilidade de o rei George vir às americanos, reclamando que “pessoas que Américas obviamente estava longe da rea- possuem um minucioso conhecimento dos lidade. Mas o perigo de uma “atmosfera diversos países da Europa ainda não fizeram cortesã” chegando ao hemisfério americano o esforço de conhecer ao menos os esboços já nesse poema criava um certo mal-estar. geográficos deste nosso grande continente Essa sensação antimonárquica nos Estados meridional”22. Para Brackenridge, a geogra- Unidos só cresceria durante a década que fia era um assunto essencial. No panfleto, separou a saída da corte portuguesa de ele explicou que a distância entre a Europa Lisboa e a notícia de que um monarca tinha e as Américas “impediu que [as colônias sido aclamado no hemisfério reservado, na americanas] se tornassem dependentes… ótica norte-americana, a Demos e os seus dos pequenos estados europeus”23. Por esse seguidores. motivo, continua Brackenridge, “o rei dos Brasis agiu de forma sábia ao transportar a sua corte e governo a esta sua possessão americana, convertendo assim a antiga sede “UM LUGAR ONDE OS DEUSES do império numa província”. Apesar do fato de que, segundo Brackenridge, teria PODERIAM HABITAR, OU sido preferível que a forma monárquica não fosse escolhida para governar esse PEREGRINAR COM DELEITE” novo território, ainda assim era melhor não manter o Brasil como colônia. Ele A partir de outubro de 1817, os leitores até sugere que teria sido melhor se o dos jornais norte-americanos começaram próprio George III tivesse “transferido a receber notícias de uma missão especial a sua coroa da Ilha da Grã-Bretanha ao enviada pelo executivo dos Estados Unidos continente americano”, o que o tornaria para alguns países da América do Sul, uma “senhor do novo mundo” criando uma expedição “cujos propósitos”, segundo o situação na qual ele poderia ter mantido as American Beacon and Commercial Diary suas possessões americanas. Além dessas 20 American Beacon and Com- de Norfolk (Virgínia), “têm sido presumidos observações políticas, Brackenridge subli- mercial Diary, Norfolk, , 3 de outubro de 1817, p. 3. mais do que amplamente explicitados”20. Se- nhou que os norte-americanos não tinham informações suficientemente claras sobre 21 Rodney Caesar Graham, Re- gundo o relato oficial da expedição, porém, ports on the Present State of a missão foi enviada para que os “nossos a América do Sul. “As idéias confusas que the United Provinces of (“[…] our prejudices preconceitos sejam dissipados, e o nosso temos do interior da América do Sul”, ele should be dispelled, and our conhecimento aumentado, sobre os países comentou, “nos levam a erros de opinião knowledge enlarged, regar- ding countries where the most onde recentemente têm acontecido as mais das mais estranhas formas”24. Essa carta, interesting political changes have recently taken place, interessantes mudanças políticas, e com os e sobretudo a delicada situação política and with which our intercourse quais a nossa interação, por causa [dessas no Rio da Prata, parece ter motivado o by these changes may in future become so extensive and so mudanças], poderá no futuro ser extensa e presidente Monroe a enviar uma missão beneficial”). 21 benéfica [para nós]” . especial à região. Num discurso oficial ao 22 Henry Marie Brackenridge, As colônias sul-americanas tinham Congresso, o presidente Monroe explicou South America: a Letter on the Present State of that Country, ganho um lugar de destaque na política do o propósito da missão: “Obter informações to , President of the United States, Washington, jovem país norte-americano com a publi- sobre qualquer assunto que interessasse aos D.C., Office of the National cação de um panfleto escrito por um jovem Estados Unidos; inspirar sentimentos em Register, 1817, p. viii. advogado chamado Henry Marie Bracken- todas as autoridades, de ambos os lados, 23 Idem, ibidem, pp. 12-3. ridge, endereçado ao então presidente James de que a nossa disposição seja amigável 24 Idem, ibidem, p. 29. Monroe e intitulado South America: a Letter […] com uma neutralidade imparcial; e 25 “Discurso do Presidente dos Estados Unidos ao Congres- on the Present State of that Country. Num assegurar o devido respeito para com o so”, citado em: Brackenridge, texto de 50 páginas, em que descreveu a im- nosso comércio em cada porto, e de toda Voyage to South America, Performed by Order of the 25 portância geopolítica da América do Sul, ele bandeira” . Não é de surpreender que American Government in the Years 1817 and 1818, in the tentava suprir uma ausência de informação Henry Marie Brackenridge foi incluído Frigate Congress, London, J. e uma falta de interesse da parte dos norte- como um dos enviados especiais. Miller, 1820, p. 78.

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neil.indd 51 01.10.08 18:14:14 A missão que saiu do porto de Norfolk neira majestosa, confinada por montanhas a bordo da fragata Congress no dia 3 de altas e florestadas, [e] intercalada com dezembro de 1817 foi constituída por três precipícios e picos pedregosos”27. Diante comissários: , dessa cena natural, a atmosfera social da e Theodorick Bland. Rodney capital lhe deixou com uma sensação bem era o membro mais preeminente do gru- menos agradável. Ele chamou a atenção po, tendo servido como representante no à presença de vários “pretos barulhentos” Congresso dos Estados Unidos entre 1802 (“noisy negrões”) que aguardavam numa e 1804, e como procurador dos Estados fila para beber água de uma fonte na ci- Unidos entre 1807 e 1811. Aliado de Jeffer- dade. Brackenridge ficou impressionado son, ele seria nomeado primeiro-ministro sobretudo pelo sofrimento desse canto de plenipotenciário dos Estados Unidos na escravos, cuja dor eles tentavam superar jovem República no final da sua ao fazer “uma espécie de barulho agudo, carreira. Graham, que serviu na embaixada não dessemelhante de um grupo de gansos americana em Madri entre 1801 e 1803, foi selvagens”28. o único que tinha experiência prévia como Mesmo escutando o pranto dos escravos, diplomata. Os motivos da participação de a sensação mais aguda que ele sentiu foi Theodorick Bland eram menos explícitos, a de um republicano em terras de despo- pois ele não tinha nenhuma experiência tismo, uma rejeição ao monarquismo que relevante para essa missão, apenas suas o levou a ficar surpreso com a recepção relações um pouco obscuras com um grupo aberta e honrosa que receberam do próprio de propagandistas de Baltimore, que eram monarca: “A circunstância de sermos uma favoráveis aos revolucionários de Buenos república solitária, e por isso uma contínua Aires, e com os quais ele podia ter tido e tácita censura de monarquia, talvez nos algum envolvimento financeiro26. Junto induza a acreditar que os reis não podem a esses três comissários participaram o agir de uma forma cordial conosco”29. De secretário da comissão – Brackenridge fato, e aparentemente por coincidência, a – e um cirurgião e botânico, William Bal- fragata Congress chegou ao Rio de Janeiro dwin, natural da Pensilvânia, que teve uma uma semana antes do maior evento político formação inicial com o naturalista Moses no hemisfério desde a chegada da corte: a Marshall e o médico Benjamin Smith aclamação do príncipe regente. Apesar de Barton, ambos da Pensilvânia. Baldwin não ter sido convidado para a cerimônia, manteve também uma correspondência Brackenridge descreveu com admiração profícua com o botânico Henry Muhlen- a “ingenuidade mostrada no arranjo das berg, que durou até a sua morte em 1815, iluminações [fogos de artifício]”, e a apre- e outra correspondência ainda com seu sentação dos navios “iluminados da maneira amigo William Darlington, para quem mais curiosa e com melhor gosto”30. Mas escreveu freqüentemente durante o período depois de dois dias de escutar os barulhos e que nos interessa aqui – a sua estadia na enxergar os fogos de artifício, Brackenridge América do Sul. e sua companhia não conseguiram se sentir O navio Congress viajou durante quase bem com essa “espantosa e maravilhosa 26 Wayne D. Rasmussen, “Diplo- dois meses, avistando o Pão de Açúcar manifestação” em homenagem ao novo rei mats and Plant Collectors: the South American Commission, no dia 28 de janeiro de 1818. Ao chegar aclamado no Brasil. Ele fez uma compara- 1817-1818”, in Agricultural à Baía de Guanabara, e ao descrevê-la ção entre a “cerimônia simples e não-afeta- History 29.1, 1955, pp. 23- 4. depois, Brackenridge ficou maravilhado da” para instalar o presidente dos Estados 27 Brackenridge, Voyage to South com a paisagem da capital, uma reação Unidos e os “barulhos e brilhos calculados America, op. cit., p. 90. típica de estrangeiros chegando ao Rio de para intoxicar, maravilhar e estupidificar 28 Idem, ibidem, pp. 96-7. Janeiro pela primeira vez. Brackenridge se [intoxicate, astound, and stupify]”. Segundo 29 Idem, ibidem, p. 94. referiu à “magnífica cena [que] se abriu Brackenridge, “o verdadeiro entusiasmo 30 Idem, ibidem, p. 124. diante de nós”, o porto figurando como de um homem livre não precisa da ajuda 31 Idem, ibidem, p. 125. “uma bacia [que] se expandia de uma ma- desses elementos”31.

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neil.indd 52 01.10.08 18:14:14 “Essa questão me veio à mente: qual seria a diferença no nosso caráter e na nossa condição se o nosso destino nos tivesse colocado neste país em vez daquele que possuímos? Teriam então os germes da liberdade fincado raízes neste solo, como floresceram num clima mais rigoroso, onde a necessidade impeliu para uma vida mais laboriosa e empreendedora? Teriam esses princípios da liberdade, maturados por séculos e levados pelos colonos, murchado quando transplantados Esse incômodo com a monarquia e neste solo fértil, sob o calor do sol? Ou seus seguidores não o impediu, porém, de teria essa nossa tão prezada liberdade refletir sobre os destinos entrelaçados dos perdido seu domínio num país onde os Estados Unidos e do Brasil, uma compa- rios correm pelos leitos de diamantes e ração que ele insistiu seria cada vez mais areias de ouro?”35. necessária com a passagem do tempo. “Talvez pareça prematuro comparar os Essas reflexões sobre o destino dos im- Brasis com o nosso país”, Brackenridge périos modernos e suas colônias emergem escreveu: “mas chegará o momento em que de uma visão hemisférica: entre norte e sul, tal comparação parecerá natural, e mesmo entre os Estados Unidos e o Brasil. Não se inevitável”32. A comparação, segundo trata da velha discussão de Montesquieu ele, dependia do resultado das guerras de e Hume sobre a influência do clima no independência na América espanhola e se caráter das pessoas, pois Brackenridge elas acabariam ou não numa “anarquia” escreve claramente na Voyage to South política. “Não é o caso com os Brasis”, America que “os poderes [do ser humano] refletiu Brackenridge. “[O Brasil] é um e são capazes de ser exercidos tanto na zona 32 Idem, ibidem, p. 129. indivisível, e é provável que fique assim… tórrida quanto nos climas mais vigoro- 33 Idem, ibidem, p. 129. 36 Por isso, quando consideramos os vastos sos” . Essa observação filosófica emerge 34 Idem, ibidem, p. 150. recursos e capacidades do Brasil, não é da experiência vivida de um americano 35 Idem, ibidem, p. 151 (“This coisa visionária de dizer que esse império nascido nos Estados Unidos visitando um question has suggested itself to me, what difference would have é destinado a ser o nosso rival”33. país que ele percebe como aliado e rival been made in our character and condition, had it been our Nas últimas páginas em que descreve ao mesmo tempo. “Como um americano”, fortune to have been placed in a passagem da sua comitiva pelo Rio de Brackenridge reflete, “não posso sentir this country, instead of the one which we possess? Would the Janeiro, Brackenridge especula sobre uma nada além de orgulho ao vislumbrar os germs of liberty have taken root in this soil, and flourished situação hipotética: qual seria a reação destinos celestes deste novo mundo”, ci- as they have done in a more de um norte-americano chegando pela tando em seguida uma estrofe do Paraíso rigid climate, where necessity urged to a more laborious and primeira vez ao Brasil, uma pessoa “ha- Perdido de Milton, em que o autor inglês enterprising life? Would those bituada a uma liberdade aparentemente descreve a terra como um “Um lugar onde principles of liberty, carried with them by the colonists from a sem controle”, ao se deparar com as terras os deuses poderiam habitar, ou peregrinar stock which had been maturing 34 37 for ages, have withered when americanas do rei português . Bracken- com deleite” . Apesar do estabelecimento transplanted into this fertile ridge fecha essas observações com uma de uma nova monarquia no novo mundo, soil, and under this warm sun? Or would that liberty which série de questões retóricas fazendo uma Brackenridge não deixa de sentir uma is so much prized, have lost her dominion in a country, comparação explícita entre as condições aliança com esse poder emergente no whose rivers flow over beds of físicas e geográficas do Brasil e as atitudes hemisfério, um país que, segundo um diamonds, and whose sands are gold?”). culturais do seu povo, sobretudo aquelas artigo do New York Spectator, publicado 36 Idem, ibidem, p. 136. que estavam relacionadas com a possibi- no dia 25 de maio de 1808, “é capaz de se 37 John Milton, Paradise Lost, livro lidade – até aquele momento, remota – de tornar, com a passagem do tempo, se não 7, estrofes 329-30. um regime de democracia que surgiria a primeira, então a segunda maior nação 38 New York Spectator, 25 de naquela parte da América do Sul: das Américas”38. maio de 1808, p. 1.

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