A Morte de um Ditador: O Visual e o Olhar no Funeral de António de Oliveira Salazar Rodrigo Lacerda Fernandes Dissertação de Mestrado em Antropologia - Culturas Visuais Junho de 2013 Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Antropologia - Culturas Visuais, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor José Manuel Viegas Neves e da Professora Doutora Catarina Alves Costa AGRADECIMENTOS Quero aqui expressar o meu sincero agradecimento aos Professores José Neves e Catarina Alves Costa pelas várias propostas de bibliografia, ideias de linhas de pesquisa e interrogações que me provocaram, estimularam e possibilitaram a redacção desta tese. As contribuições das Professoras Clara Saraiva, Teresa Fradique e Margarida Medeiros também foram extremamente valiosas e decisivas para enquadrar teoricamente o trabalho. De facto, os vários Professores que tive o privilégio de contactar durante o mestrado em antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa deixaram uma profunda marca na minha formação. Nesse sentido, gostaria de salientar as aulas do Professor João Leal que me mostraram o fascínio de uma disciplina em constante interrogação, sustentada numa forte exigência epistemológica. Nestes tempos políticos conturbados, quero também expressar o meu profundo agradecimento aos funcionários públicos que trabalham nas várias instituições que contactei (Hemeroteca de Lisboa, Biblioteca Nacional, Torre do Tombo, Arquivo da RTP, ANIM, Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Bibliotecas Municipais de Lisboa) pelo seu zelo profissional e simpatia. A pesquisa para esta dissertação teria sido mais difícil sem a sua paciência, sugestões e apoio. Por fim, esta tese não teria sido possível sem a paciência e o apoio intelectual e afectivo daqueles que me estão mais próximos: os meus pais, Francisco Monforte, Daniela Ribeiro, Rita Alcaire, Catarina Barata, Luísa Cardoso, Ana Roque e António Silva. A Morte de um Ditador: O Visual e o Olhar no Funeral de António de Oliveira Salazar The Death of a Dictator: The Visual and the Eye in the Funeral of António de Oliveira Salazar Palavras-chave: Antropologia Visual, Antropologia da Morte, Funeral, Corpo, Salazar Keywords: Visual Anthropology, Anthropology of Death, Funeral, Body, Salazar RESUMO Nas sociedades contemporâneas, a morte é um assunto privado e essencialmente relevante para a família e amigos mais próximos. Contudo, algumas mortes possuem uma importância pública que é evidenciada pela sua repercussão mediática, principalmente a nível de imagens. Nesse sentido, este trabalho enceta uma análise do papel do visual e do olhar nos eventos associados à morte de pessoas que, devido à sua vida ou falecimento, são consideradas pelo Estado, população e media como simbolicamente importantes para a generalidade da comunidade. Devido à diversidade cultural, histórica e política do universo de pesquisa, a segunda parte do trabalho centra-se na análise detalhada do funeral de uma única individualidade: António de Oliveira Salazar (1889-1970). Nesse sentido, este trabalho é uma contribuição para o estudo da imagem poliédrica produzida pelo ditador e vários agentes sociais, dos modos de reprodução social do regime e do status quo e da realidade social, política e mediática de Portugal em 1970. ABSTRACT In contemporary societies, death is a private matter that is mainly relevant to the family and close friends of the deceased. However, certain deaths still possess a wider importance as it is attested by their media coverage, namely through images. This thesis analyses the role of the visual and the eye in the events associated with the death of people who, due to their life or death, are considered by the State, population and media as symbolic relevant to the general community. Because of the cultural, historical and political diversity of the object of research, the second part of this work is centered on the analysis of the funeral of one person: António de Oliveira Salazar (1889-1970). This work is a contribution to the study of the polyhedric image produced by the dictator and several social agents, of the ways of social reproduction of the regime and status quo and of the social, political and media reality of Portugal in 1970. “Quando o Salazar morrer, o funeral vai ser assim: à frente vai a bandeira, depois a banda, depois o bandido, depois os bandalhos, seguem-se os que encheram o bandulho, depois a Força Pública e o público à força.”1 “Mas seria sempre uma imagem, nunca a verdade. E esse foi provavelmente o grande erro: julgar que a verdade é captável de fora, com os olhos só, supor que existe uma verdade apreensível num instante e daí para diante tranquilamente imóvel, como nem mesmo a estátua o é, ela que se contrai e dilata à mercê da temperatura, que se corrói com o tempo e que modifica não só o espaço que a envolve como, subtilmente, a composição do chão onde assenta, pelas ínfimas partículas de mármore que vai soltando de si, como nós os cabelos, as aparas de unhas, a saliva e as palavras que dizemos. (...) Na verdade, que perguntas iria eu fazer, e a quem, para descobrir a verdade? (...) a última questão continuaria de pé: como pôr tudo isso num retrato, como pôr tudo isso, também, num manuscrito? A minha arte, enfim, não serve para nada; e esta caligrafia, para que serve ela? Quem retrata, a si mesmo se retrata.”2 1 Dizer transmitido oralmente durante o Estado Novo, antes da morte de Salazar. Coligido pelo meu pai, António Manuel da Silva Fernandes. 2 Cfr. José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia, Lisboa, Caminho, Lisboa, 1983 [2006], pp.112-113 ÍNDICE 1. Introdução 1 2. Objecto e Metodologia 3 3. Proposta para uma Sistematização Visual das Morte Públicas 9 nas Sociedades Contemporâneas 3.1. O Corpo Sacralizado 18 3.2. O Corpo Dessacralizado 21 3.3. O Corpo Invisível 24 3.4. Conclusão 26 4. Elementos Visuais do Funeral de Salazar na Imprensa Portuguesa 29 4.1. Imprensa Portuguesa: Introdução Histórica 29 4.2. O Funeral de Salazar na Imprensa Portuguesa 32 4.3. O Corpo Morto e as Suas Mitologias 38 4.3.1. “De Professor a Presidente” 40 4.3.2. A Obra e a Nação: “O Homem que foi Portugal durante Quarenta Anos” 43 4.3.2. A Construção de um Sorriso 47 4.3.3. “Da Glória dos Jerónimos à Humildade de Santa Comba Dão” 49 4.3.4. O Povo 54 4.3.5. País Multirracial e Guerra Colonial 60 4.3.6. Vaticano, Concordata e Igreja 65 4.3.7. Militares 70 4.3.8. Políticos Estrangeiros 72 4.3.9. O Enterro ou a Continuação de uma Ideia? Marcello Caetano e Américo Thomaz 78 4.3.10. A Oposição Visível e a Oposição Possível 82 5. Elementos Visuais do Funeral de Salazar na Televisão Portuguesa 86 5.1. Rádiotelevisão Portuguesa: Introdução Histórica 86 5.2. Questões Metodológicas Relativas ao Arquivo da RTP 91 5.3. O Funeral de Salazar na Televisão 92 5.4. Análise da Reportagem da RTP 95 5.5. A Tríade Imagética 106 6. Conclusão e Discussão 108 Fontes Publicações Periódicas 114 Referência Online 115 Bibliografia 116 Anexos Anexos 01 - Mortes Públicas 120 Anexos 02 - Imprensa Portuguesa 126 Anexos 03 - Reportagem da RTP 249 1. Introdução 2002. Visitava os meus pais. Ao jantar, o som dos talheres do lado direito e esquerdo. A televisão anunciava a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA, pelas forças militares angolanas. Em plano geral, um corpo obeso exposto em cima de um palanque improvisado na mata. Um plano aproximado mostrava o rosto inerte do antigo grande chefe rodeado de moscas. Exibia-se ali a ‘prova’. Mas também se aproveitava para humilhar o inimigo de muitas décadas. Mais tarde, estudei cinema e televisão e comecei a realizar documentários um pouco por acaso. Uma amiga minha tinha escrito uma tese de licenciatura em antropologia sobre uma banda de rock de Coimbra e a tentativa de criar uma identidade não universitária na cidade-museu do conhecimento. Desafiei-a a produzir um filme a partir desta história e, após três anos, o produto final estreou no IndieLisboa e foi exibido noutros festivais nacionais. Um impulso que teve consequências no meu então futuro. Um impulso que me fez compreender melhor as implicações da imagem. Havia, por exemplo, um elemento da banda que, pelo seu modo de comunicação e apresentação pública, podia ser representado como um ‘cromo’ ou ‘palhaço’. Foi necessário estar muito atento durante a montagem para lhe manter a dignidade e inteligência que merecia. A estética e a ética tão intrinsecamente interligadas. Entretanto ocorreram outras mortes públicas. Saddam Hussein foi capturado numa toca de uma quinta agrícola e enforcado na televisão. O corpo de Mu’ammar al-Kaddafi foi mutilado física e visualmente numa estética de telemóvel. Osama Bin Laden teve uma morte invisível. E, claro, outras imagens registadas no palimpsesto da memória visual reemergiram: os funerais ostensivos e catárticos de Amália Rodrigues e da Princesa Diana, o corpo-cristo de Ernesto Che Guevara morto, Benito Mussolini pendurado de pernas para o ar para exibição pública. Quando me candidatei ao mestrado de antropologia, especialização culturas visuais, queria desenvolver uma melhor compreensão da realidade humana que pudesse utilizar nos meus documentários de modo a ultrapassar uma dimensão estética e de senso comum em que tinha medo de me perder. Alguns dos meus professores esperavam e incentivaram-me a realizar um filme como tese final. Mas eu quis aproveitar esta ocasião, este também estado de liminaridade, para reflectir sobre as minhas inquietações de realizador: a relação entre a estética e a ética a que acima aludi; a produção de poder que é um filme; o olhar, de cima, de baixo, de lado, de fora, de dentro. 1 Esta tese partiu destas questões insolúveis que só se podem equacionar e, talvez, tentar responder na arena da prática da produção de imagens.
Details
-
File Typepdf
-
Upload Time-
-
Content LanguagesEnglish
-
Upload UserAnonymous/Not logged-in
-
File Pages269 Page
-
File Size-