ANTROPO(HIP-HOP)LOGIA Ferréz, abril de 2006 Nesses dias, estava pensando cá com meus botões -pra falar a verdade, estou pensando num certo domingo e nos outros que vieram-, muitos sites, reportagens e programas estão simplesmente copiando o que papai global diz. A mídia convencional já faz isso, “clipa” as notícias e as distribui. E, agora, somos iguais, é a mídia do “hip-hop” imitando os grandes meios. O assunto é o mesmo, o documentário que a Globo exibiu, a favela desnudada, exposta, aberta, e seu ingresso é somente um aperto de botão. Mas, calma! Refrigera sua alma antes de tomar tal decisão. Falo isso porque o “hip-hop” e a nossa literatura sempre tiveram uma atitude diferenciada da atitude do resto das pessoas sem senso crítico. Ou não? Mas, afinal, o que isso vai ajudar? Tupac morreria de novo, se realmente estivesse vivo, vendo um irmão de cor falando como branco na cara dura, compactuando com um dos programas televisivos (jornalísticos?) mais prejudiciais ao nosso povo. Ultimamente tá assim, muita gente aceita tudo que vai rolar, como se fosse natural, e criticar virou um defeito. Acho que é um defeito quando você só critica e não faz nada, mas se faz, meu nêgo, então, pau no gato. Me perdoem, mas desconfio de muita coisa. Todo mundo tá correndo pelo seu -e isso é um fato-, mas tem umas atitudes em que a favela, ou nossa periferia, ou a comunidade, seja como você a chama, tá em último plano. Até que ponto um documentário que foi apresentado e rotulado como “furo jornalístico”, exibido em rede nacional, nos ajuda? Alguém já pensou nisso hoje? As críticas do então rapper MV Bill ecoaram por todos os jornais contra o filme “Cidade de Deus”. Segundo ele, o filme não voltaria nada para o lugar e denegriria mais a imagem da Cidade de Deus. E fica a pergunta no ar: “E o documentário “Falcão”, não denigre essa comunidade e todas as outras por onde aconteceram as filmagens?”. Até que ponto a denúncia dá vida e legitima a atitude violenta de alguém? Acho que denunciar é o que sempre fizemos, mas também com muita arte e senso positivo, lutando para um dia isso mudar. No final do documentário, fica uma pergunta, que, tenho certeza, todo mundo se fez: “E daí?”. Os telespectadores desligam a televisão e vão dormir, os comentaristas que foram convidados são uma piada. Glória Perez e Manoel Carlos vão escrever suas novelas, que é o que dá dinheiro, mas contribui para tudo que passou em “Falcão”. É, meus amigos, o efeito falando da seqüela. Ou será que a “dona Globo” daria 58 minutos para um documentário sobre o “hip-hop” enaltecendo os artistas do gueto? Não, acho que não. O resultado é a vendagem de produtos com o nome “Falcão” e até piadas, como a do programa “Pânico”, “Falcatrua, os meninos do Planalto”. Mano Brown, Consciência Humana, Gog, Realidade Cruel e eu mesmo conquistamos a favela pelo talento, não pelo escândalo. Você quer isso? Então, filma o maloqueiro com o fuzil em cima do morro, mas, no final, me dá uma dica sobre como não perpetuar isso. Porque o telespectador já sabe que tá um caos mesmo, mas tá olhando só pro próprio umbigo, ou seja, se os problemas do morro não são parecidos com os meus problemas, então, não há problemas. Retratar o caos, pura e simplesmente, não é revolução. A nossa revolução é querer mudar, querer -de verdade- mudar. Sem essas de capitalizar em cima da miséria, que é o que muita gente tá fazendo, pensando que estamos dormindo, pensando que estamos de chapéu. Graças ao meu pequeno dom, ganho meu $ honestamente, vendo roupas, vendo livros, vendo minhas palestras, mas nunca comercializei o gueto. O que está à venda é meu trabalho, não eu. Não sou santo no bagulho, tenho defeitos -e muitos, por sinal-, mas vamos deixar claro um barato, tiozão, num vem jogar arroz em falso casamento, que, aí, é subestimar demais a rapaziada da favela. Pra quem não sabe, há eventos aqui, quermesses, shows na rua, teatros ao ar livre, saraus. Mas isso não atrai, felicidade não dá Ibope. Meu povo não é só aquilo, imagens borradas, desesperança em todas as quebradas. Somos mais, muito mais. Só quero dizer que temos que refletir, tantos meninos tiveram que morrer para alguém vender mais CDs, documentários etc. É isso? Apenas isso? E a mudança? Orientar sobre gravidez precoce, sobre o uso de drogas, montar uma campanha real para nossos meninos e meninas desvalorizados, estigmatizados pelos olhos da elite, do próprio povo e por todos os meios de comunicação? Não podemos só mostrar a conseqüência, temos que mostrar a causa. Nem tudo que você vê é nossa cultura, não somos antropófagos. Pense nisso e não me fale, por favor, de discurso “hip-hopista”, que isso já deu no saco, não entrei no “hip-hop” pra ser reformista. Se não, me dá a conta que eu tô saindo fora, o nosso movimento é muito bom, todo mundo entra, talvez esse seja o problema, falar em nome dele é fácil, mudar a ideologia pode parecer fácil, mas, enquanto Deus colocar ar nos pulmões desse maloqueiro aqui, a dificuldade chega. Porque da mãe que amamenta tantos ninguém pode ferir o peito. Só isso. Reginaldo Ferréz, rapper e escritor, é autor de “Capão Pecado” (Labortexto, 2000), romance sobre Capão Redondo, bairro na periferia de São Paulo, onde vive o escritor, e de “Manual Prático do Ódio” (Objetiva, 2003). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 5/4/2006. Fonte: Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/). RENASCIMENTO FUNK: Na luxuriosa projeção em multi-telas de Baltimore, o cineasta Isaac Julien dá uma guinada pós-moderna, de ficção científica, às convenções da “blaxploitation” dos anos 1970 Calvin Reid Cineasta inglês muito elogiado, Isaac Julien cria exercícios cerebrais, porém intrigantes, de análise pop-cultural que conseguem mostrar o humor dinâmico e a vitalidade sexy da própria cultura pop. Em trabalhos documentais como Looking for Langston (1989), Julien examina muitos dos mesmos contextos culturais, convenções sociais e legados históricos apresentados em seus filmes de arte, mais particularmente Vagabondia (2000), Three (The Conservator’s Dream) (1996-99), e Paradise Omeros (2002). Raça, classe e sexualidade tal como são mostrados no cinema geralmente formam os fundamentos de sua obra. Seu trabalho também satisfaz as convenções narrativas básicas – uma realização nada desprezível nas produções cinemáticas e de vídeo-arte contemporâneas – oferecendo seções de começo, meio e fim. As narrativas alegóricas iluminam e manipulam questões intensas profundamente incrustadas no assunto tratado. Baltimore (2003), filmado em filme de 16 mm, transferido para DVD e projetado em três grandes telas, é um derivado artístico de BaadAsssss Cinema, o documentário de Julien de 2002 sobre os filmes negros de ação dos anos 1970. Em BaadAsssss Cinema, ele incorpora elementos de representação icônica popular desse período, mostrando divertidos fragmentos da mitologia do gueto urbano e sua coleção de grandes cabeleiras afro, cadilaques, e manos negros de saco cheio dos “tiras”. Baltimore foi recentemente exibido na Metro Pictures em Nova York juntamente com uma seleção complementar de belas fotografias coloridas. A obra retrata Melvin Van Peebles, diretor do seminal filme blaxploitationSweet Sweetback’s Badaaaass Song (1971) e arquétipo do gênero, num tributo ao cinema urbano negro. Filmado em diversas instituições de Baltimore – o Museu de Arte Walters, a Biblioteca Peabody e o Museu de Cera dos Grandes Negros – o filme começa com cenas de rua de uma área de gueto que parece saída diretamente de filmes comoFoxy Brown ou Black Caesar. A trilha sonora oferece fragmentos de diálogo de Sweetback. Em telas separadas, o verdadeiro Van Peebles e uma linda mulher negra no estilo Foxy Brown usando uma enorme peruca afro pelas ruas da cidade. Ambos acabam em instituições, vendo arte da Renascença no Museu Walters, percorrendo a dramática arquitetura da Peabody, e examinando a documentação pop das figuras políticas, esportivas e do mundo do entretenimento retratadas nos Grandes Negros em Cera. A câmera rastreia seu percurso literal pelas paredes destes armazéns de artefatos e estilos sociais, mas a seqüência também evoca uma jornada metafórica. Os movimentos das duas figuras sugere uma viagem simbólica através do tempo e do espaço, e por uma sucessão de antigas representações da realidade urbana. A sonhadora câmera de Julien se move das ruas quase vazias da Baltimore da classe trabalhadora negra para se demorar no misterioso espaço urbano mostrado em Perspectiva da Cidade Ideal (aprox. 1500)*, uma pintura de um artista italiano desconhecido na coleção do Walters. Eventualmente, descobrimos que a bela companheira negra é algum tipo de ciborgue, uma Pam Grier turbinada tecnologicamente, por assim dizer. Julien adiciona efeitos especiais espetaculares e, enquanto assistimos, ela muito de repente se eleva acima do chão e flutua sobre a rotunda da biblioteca à maneira de Matrix antes de descer de volta à terra firme com elegância e atitude. Esta prolongada seqüência oferece uma interessante comparação entre a convencionalmente chamada grande arte (e seus retratos da cidade) e as românticas representações do urbano celebradas na cinematografia “clássica” e popular do gueto negro. O filme pode ser visto como um equivalente artístico da viagem no tempo e uma versão inteligente, extremamente pop, da ficção científica negra. Intencional ou não, o filme também apresenta alusões ao afro-futurismo, um arguto movimento crítico (relativamente associado a escritores/artistas tais como Greg Tate, Samuel R. Delany, Tricia Rose e DJ Spooky) que usa os paradigmas históricos da Diáspora Africana – isolamento edênico, abdução e dispersão, assimilação à alien-nação e hibridização cultural – para imaginar as vidas da gente negra num futuro distante.
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