FEMININA BETTY FRIEDAN Editora Vozes Limitada 1971 Título original americano: THE FEMININE MYSTIQUE Copyright © 1963 by Betty Friedan Tradução de ÁUREA B. WEISSENBERG © 1971 da tradução portuguesa by Editora Vozes Limitada Rua Frei Luís, 100 Petrópolis, RJ - Brasil Para Carl Friedan e nossos filhos Daniel, Jonathan e Emily A mulher brasileira e a sociedade de consumo Rose Marie Muraro PELA PRIMEIRA VEZ NA HISTÓRIA DOS ESTADOS Unidos, neste livro, Betty Friedan, psicóloga e escritora, denuncia a manipulação da mulher americana pela sociedade de consumo. Contudo, a denúncia de Friedan não se aplica apenas aos Es­ tados Unidos. Com a costumeira defasagem, a sociedade brasileira também se aproxima dos padrões mais elevados do consumo, prin­ cipalmente nas grandes cidades. O problema por ela levantado co­ meça, também, a ser o problema da mulher brasileira urbana. Mais do que nunca as grandes indústrias (principalmente as estrangeiras ou suas subsidiárias brasileiras) utilizam-se entre nós, dos meios de comunicação de massa para ativar nas classes médias o consumo de produtos tanto mais sofisticados quanto inúteis, seja em vestuário como em comodidades domésticas. Apenas com uma diferença do caso americano: o nosso país, como subdesenvolvido que é, se quiser alcançar uma velocidade razoável de desenvolvimen­ to, precisa poupar, ao menos nesse consumo desnecessário. Vejamos, por exemplo, o caso dos próprios Estados Unidos: como conseguiram os americanos esse grau fantástico de desenvol­ vimento que o tornou o povo mais rico do mundo? Simplesmente através do trabalho duro das gerações sacrificadas do século XIX e do início deste, voltadas apenas para a produção e não para o con­ sumo, como as de hoje. E este trabalho então sem horizonte, era fundamentado por uma severíssima ética protestante puritana, que salvava apenas as almas daqueles que apresentassem uma vida pro­ dutiva em termos de dinheiro e reprimida em matéria de sexo. Vejamos, agora, outro país de cultura antagónica à americana: a União Soviética. Embora anti-religiosa, a ética marxista não era 7 menos puritana em matéria de sexo e rígida em termos de produ­ ção. As primeiras gerações que saíram da revolução de 1917 traba­ lharam ainda mais duramente do que suas contemporâneas ameri­ canas, porque a Grande Sociedade Comunista que estava sendo cons­ truída tinha problemas muito mais graves a serem resolvidos que os de sua irmã, a futura Grande Sociedade Americana. E assim é que apenas hoje, no início da década de setenta, quando o ideal da Revolução começa a arrefecer, e o desenvolvimento a agigantar- se, as mulheres soviéticas começam a pensar em ser frívolas e, por­ tanto, a consumir. Antes estavam todas elas ocupadas na erradica­ ção da fome, da miséria, do analfabetismo ou então trabalhando ro­ manticamente na indústria pesada ao lado dos seus companheiros. Ainda um terceiro exemplo: o Japão, país que atualmente mais cresce economicamente sobre este planeta. Sua cultura, em diversi­ dade, está equidistante, tanto dos Estados Unidos como da União Soviética, e, portanto, é mais do que interessante para o nosso caso. E' ainda hoje inimaginável para nós brasileiros o grau de austeri­ dade e de produtividade do homem médio japonês (que o diga o futorologo americano Herman Kahn). E esta austeridade individual e produtividade social são concretamente traduzidas no que se cha­ ma a poupança pública reinvestida anualmente em desenvolvimento: 36,5%, a mais alta do mundo. Ainda outro exemplo: a Grã-Bretanha, o país mais «prá fren­ te» da era tecnológica, contudo em acentuada decadência como po­ tência económica. Sua taxa de reinvestimento anual é de 18%, infe­ rior à dos Estados Unidos e a da União Soviética. E o Brasil? Para começar, nossa taxa de reinvestimento públi­ co é muito mais fraca do que a da Grã-Bretanha: apenas 10%, ra­ dicalmente insuficiente para alcançar uma velocidade razoável de de­ senvolvimento nos atuais padrões do mundo tecnológico e que ser­ ve para nos garantir apenas um confortável lugar de eterno depen­ dente das grandes nações, em que aquela taxa é pelo menos maior que o dobro da nossa.. Assim, fica evidente que o problema que se coloca em primei­ ro lugar para a nossa economia não é o incentivo ao consumo das classes médias a qualquer preço, mas o incentivo da sua poupança e a integração na economia do mercado dos restantes 6% da po­ pulação brasileira que ainda são marginais a ela por não possuírem poder aquisitivo. E isto através da canalização pública da poupan­ ça provada das classes médias em erradicações da fome, da doen­ ça, do analfabetismo, em construção de infra-estruturas que possa absorver essa mão-de-obra não qualificada quase totalmente ocio­ sa.. aliás exatamente como foi feito nos três primeiros países aci­ ma descritos. 8 Mas que acontece com a sociedade que já atingiu o pleno de­ senvolvimento? Vejamos o exemplo americano. A partir de um cer­ to grau de desenvolvimento, instala-se a sociedade em que o consu­ mo passa a ser valorizado. E' preciso dar vazão aos produtos fa­ bricados em série. Não pode baixar a produtividade da indústria. Mesmo que o país esteja saturado, é preciso comprar, comprar sem­ pre. «Todo cidadão que possui um carro e pode comprar outro, de­ ve comprá-lo, para que não haja um colapso na indústria nacional», dizia apreensivo à nação o presidente Eisenhower na década de cinquenta. A partir de uma segunda etapa, é tal o excesso de objetos, que a indústria vê-se coagida a lançar mão do que os técnicos cha­ mam de «obsolescência planejada», isto é: os objetos são feitos cada vez com material mais fraco, a fim de que se inutilizem mais depressa. Deste modo, um liqúidificador, ao invés de durar cinco anos, passa a durar dois e o freguês fica obrigado a comprar ou­ tro. Além disto, a moda vai modificando a cada ano a forma, as qualificações, etc. dos objetos, de modo que, quem quiser ter certo status social, é obrigado a consumir sempre. A indústria não po­ de parar. Ainda mais: «novas técnicas de convencer», isto é, o «marketing», a propaganda em grande escala, cada vez mais aperfeiçoadas, são, numa terceira fase, capazes de manipular o ser humano a tal ponto e de tal maneira inconscientemente, que a vida mais íntima da pes­ soa se modifica. E' assim que em fins da década de cinquenta a mulher americana, conforme denuncia Friedan neste livro, começa a ser manipulada pela «mística feminina». Nos Estados Unidos a mulher é a grande consumidora. Ela com­ pra 80% de tudo. Lá como aqui, o homem ganha e a mulher gas­ ta. Por isso, quase toda a propaganda é dirigida a ela. Habilmente os donos do poder económico convencem-na a vol­ tar em massa para casa. Nas décadas anteriores tinha havido um movimento de libertação feminino que abriu às mulheres as portas da participação social e económica na construção da Grande Socie­ dade. Agora, por necessidades também económicas, mas não mais das próprias mulheres ou da sociedade e sim da grande indústria, eis que a sua atuação fora de casa é desvalorizada e «revaloriza­ da» ao máximo a sua feminilidade, a sua maternidade, como se participar na construção da sociedade fosse incompatível com a sua condição de mulher. Embora aparentemente correta a suposição, no fundo o que que­ ria a grande indústria era que, mantida isolada, sem participação ativa, a mulher dedicasse mais atenção ao consumo. E foi justa­ mente o que aconteceu, até que Friedan desse o grito de alarma e 9 em torno deste seu livro se tivesse erguido o mais surpreendente movimento feminista de todos os tempos. Com este livro, a mulher americana começou a tomar consciência da manipulação de que vi­ nha sendo vítima. E começou a reagir. Assim chegamos à quarta fase da sociedade de consumo: a re­ volta. Não só a mulher, como também a juventude em peso come­ çaram a contestar a sociedade de consumo, seja violentamente, como as revoltas estudantis e negras, seja aparentemente com não-violên- cia (hippies). Instala-se, pois, no fim da década de sessenta, o caos dentro da Grande Sociedade. Ela explode sob o peso do seu próprio consumo. Da sua própria opulência. A lição está aí para quem quiser ver. Não adianta que as fi­ liais brasileiras das indústrias estrangeiras queiram que mulher bra­ sileira (e através dela todo o povo brasileiro) permaneça na incons­ ciência de sua importância como elemento dinamizador da socieda­ de. E' evidente que mantendo a mulher manipulada, manterá, atra­ vés dela, o controle de toda a sociedade. Mas a resposta vem da própria pátria desse poder económico. Os países subdesenvolvidos têm pelo menos uma vantagem: a de poder servir-se do exemplo dos mais desenvolvidos. E assim, por um mecanismo regulador muito conhecido em economia sob o nome de «efeito de economia externa» podem prever e modificar o curso de suas sociedades. Esperemos que o mesmo aconteça, tam­ bém, no que se refere ao consumo. E o que tudo isto nos ajudou a ver com mais clareza foi o papel da mulher na construção da sociedade. Ela ao mesmo tem­ po pode ser um elemento libertador ou alienador. E' libertador quan­ do, como aconteceu na África e nos países socialistas, assume na sociedade tarefas condizentes com a sua condição (veja-se «A Mu­ lher na Construção do Mundo Futuro», Vozes 1969, 5ª edição). E' alienador quando, como nos Estados Unidos e outras sociedades de­ senvolvidas, é manipulada e através dela toda a sociedade, em fa­ vor da manutenção do poder por uma minoria privilegiada. 10 Prefácio Aos poucos, sem o perceber claramente a princi­ pio, comecei a notar que existe hoje algo de muito errado na ma­ neira de viver da americana.
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