KATIA SUMAN CADERNOS DA IPANEMA - FOI O QUE DEU PRA FAZER EM MATÉRIA DE MEMÓRIA PORTO ALEGRE 2018 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA: ESTUDOS DE LITERATURA ESPECIALIDADE: LITERATURA BRASILEIRA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E SOCIEDADE CADERNOS DA IPANEMA – FOI O QUE DEU PRA FAZER EM MATÉRIA DE MEMÓRIA KATIA SUMAN ORIENTADOR: PROF. DR. LUÍS AUGUSTO FISCHER Tese de Doutorado em Literatura Brasileira, apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. PORTO ALEGRE 2018 resumo este trabalho foi estruturado a partir de uma relíquia pessoal, uma coleção de 23 cadernos que funcionaram como diários da rádio ipanema fm, no período de 1985 a 1997. nos cadernos a equipe registrava o dia-a-dia da rádio, anotando de agendas de entrevistas a comentários sobre shows, de ideias para programas novos a críticas internas, tendo sempre a cidade de porto alegre, seus espaços e sua lógica, como pano de fundo. o trabalhou recupera essa experiência cultural, que teve na canção um de seus centros e que se desdobrou nos campos do teatro, do cinema, dos comportamentos, etc. o resultado é uma narrativa memorialística, acompanhada de análises qualitativas e quantitativas dos registros feitos nos cadernos abstract this work has been structured based on a personal relic: a collection of 23 notebooks that were used as diaries of the radio station ipanema fm from 1985 to 1997. the team at the radio would write about the day-to-day life at the station in those notebooks. the entries include interview agendas, comments about concerts, ideas for new radio shows, criticism, and so forth, always having the city of porto alegre, with its spaces and its logic as a background. this work recaptures this cultural experience, which had a focus on music, spreading over the areas of theater, cinema, behavior etc. the result is a memoir, along with qualitative and quantitative analyses of the notebooks' entries. 8 tentativa de intro meio capenga (leitura facultativa) indisciplinado, solto, correndo por fora do padrão de uma escrita em linha reta, com começo, meio e fim, o diário é só meio. subjetivo, totalmente subjetivo, ininteligível às vezes, fluxo constante, sempre no tempo presente. em que momento a mera e banal e íntima narração daquilo que aconteceu se transforma em alguma coisa que faça sentido, que tenha valor para alguém além daquele que escreveu/viveu? . o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. walter benjamin nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história . 9 estou prestes a criar um novo gênero literário: a autobiografia não autorizada. porque há um interdito na minha memória, na minha visão daqui para trás. interdito é uma boa palavra e fica o dito pelo interdito. entre o dito e o não dito, o interdito. inter dito. nego dito cascavel. ha ha ha . de uma certa maneira vou melhor do que muitos outros, em especial no que diz respeito às lembranças, pois meu cérebro as ordena com os artifícios da estética, de modo que vejo imagens mais belas e significativas do que a maioria dos outros. sem dúvida, minha memória parece pior do que a de muitos conhecidos. bertolt brecht . brecht sim é que sabia das coisas . 10 fico tentando reconhecer, me reconhecer e vou refazendo meus caminhos pelos cadernos em setembro de 1990 eu estudava no britannia – faço uma menção ali no caderno – “uma profe quer ir ver bowie na miseráveis tur” (excursões semiamadoras organizadas por pessoas da rádio para assistir grandes shows de rock que não vinham pra poa) britannia quantos anos eu estudei lá? nessa época eu fazia letras? ainda não, entrei em 1992. vou colhendo, buscando, anotando, lembrando. 1992 – bruno com 6 anos histórico puc 1992/1: filosofia I, cultura religiosa I, linguística I, met. de pesquisa e bibliografia I, teoria literária I, lingua latina I, língua portuguesa I, língua inglesa I, sociologia geral I 1992/2 cultura religiosa II, filosofia II, linguística II, met de pesquisa e bibliografia II, teoria literária II, língua latina II, língua portuguesa II, língua inglesa II, sociologia geral II 1993/1 história econômica política e social geral I, antropologia cultural I, psicologia social, teoria literária III, língua inglesa III, estudo de problemas brasileiros I, cultura anglo‐ americana I 1993/2 11 história econômica política e social geral II, antropologia cultural II, língua inglesa IV, cultura anglo‐americana II, estudo de problemas brasileiros II nesse quarto semestre aparecem duas disciplinas da sociologia: epistemologia das ciências sociais, ciência política I 1994/1 daqui pra frente é tudo sociologia: geografia humana, sociologia I, epistemologia das ciências sociais II, ciência política II, ciência política V 1994/2 sociologia econômica, ciência política IV, filosofia contemporânea, sociologia IV 1995/1 ‐ 1995/2 sociologia III, pesquisa social I 1996/1 história econômica política e social geral I, economia política 1996/2 sociologia da urbanização, sociologia do trabalho e organizações I 1997/1 ‐ 1997/2 ‐ 1998/1 seminário de cultura brasileira 12 1998/2 sociologia aplicada à realidade brasileira 1999/1 pesquisa Social II, estética I (disciplina da Filosofia) começou o sarau elétrico em julho 1999 1999/2 antropologia social, metodologia e técnica de pesquisa social III fui demitida da Ipanema 2000/1 seminário de política I, introdução a microinformática 2000/2 sociologia do desenvolvimento, seminário de antropologia social nasceu a barbara em fevereiro 2001 2001/2 estágio institucional, teorias sociológicas contemporâneas II, ciência política IV, estatística A 2002/1 seminário de política II, monografia I, leituras antropológicas do brasil, pesquisa social I, produção de textos científicos em ciências sociais 2002/2 teorias sociológicas contemporâneas I, sociologia do trabalho e organizações II, monografia II, teoria clássica em sociologia 13 . articular historicamente o passado não significa conhecê‐lo “tal como ele foi”. significa apropriar‐se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo. walter benjamin . relampejar verbo ( 1813) 1 ( int. ) produzir‐se um relâmpago ou uma sucessão de relâmpagos ‹ já começou a r. › 2 ( int. ) brilhar repentinamente; fulgurar ‹ relampejavam as dunas à luz do sol › 3 ( t.d.int. ) fig. passar rápido como um relâmpago ou exibir a intensidade de seu brilho ‹ seu olhar relampejou uma chispa de ódio › ‹ a cobiça relampejava em seus olhos › dicionário houaiss . a verdadeira imagem do passado passa voando. o passado só se deixa capturar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibilidade. walter benjamin 14 . o tradutor do benjamin gosta muito do verbo relampejar (ou será o próprio?) relampejar ‐ aufhellen . julho 2016 a menina da faculdade me entrevista e quer saber o que penso sobre o futuro do rádio. futuro do rádio. o rádio é tempo presente. presente contínuo. o rádio está sempre ali, sempre tem alguém falando. alguém vai te dizer a hora, talvez a temperatura, e com sorte, te dizer coisas legais, inteligentes. com mais sorte ainda toca uma música boa. humanos falam e ouvem. por mais que avance a tecnologia, humanos continuarão falando e ouvindo. enquanto for assim, o rádio fará sentido. pode ser ouvido de qualquer maneira, no celular, no computador, de repente num chip acoplado junto à orelha, até num aparelho de rádio mesmo. e quando acaba a energia, e quando acaba a bateria, e quando tudo fica no escuro, sempre dá pra contar com o radinho de pilha. 15 a narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade ‐, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como uma informação ou relatório. ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá‐la dele. assim imprime‐se na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. walter benjamin mergulha a coisa na vida do narrador . o rádio é, num certo sentido, numa certa perspectiva, quase uma forma artesanal de comunicação . a rádio ipanema tinha uma potência muito pequena e processadores de áudio de baixa qualidade o que fazia com que seu sinal oscilasse muito. em certos dias ficava quase impossível ouvir a rádio, o som transmitido era terrível, com muito chiado, uma verdadeira tortura para quem gostava de ouvir boa música. havia momentos em que a rádio saía do ar e os ouvinte reclamavam muito por telefone. os locutores também reclamavam muito nos cadernos. às vezes até no ar mesmo. chororô geral. mas era o que tínhamos para o momento e o jeito era seguir em frente. 16 no final das contas, fazer parte de uma rádio com tanta audiência, competindo com emissoras com um nível técnico tão superior, e trabalhando em situações tão precárias, nos dava um certo orgulho. ou dizendo melhor: nos dava uma dose extra de orgulho. acho que essa precariedade acabou se transformando em uma estética e dá pra fazer um paralelo com o asdrúbal trouxe o trombone (anos 70) – grupo de teatro do rio de janeiro que fundou um estilo, e o lira paulistana (anos 80), um mini teatro de são paulo que abrigou o nascimento de uma cena musical forte, ambos reverberando no universo cultural do país até hoje. ambos no limite do mambembe. havia um “charme mambembe” – uma espécie de cumplicidade com a precariedade do local por parte do público e dos artistas. (sobre o lira paulistana) laerte fernandes de oliveira . o asdrúbal desmantelou convenções cênicas, fazendo com que a imaginação suprisse, com vantagem, a falta de recursos técnicos, cenográficos e de figurino.
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