Capa: "Encontro De Jesus Com Verônica" Óleo Sobre Tela De Giovanni Busi Cariani

Capa: "Encontro De Jesus Com Verônica" Óleo Sobre Tela De Giovanni Busi Cariani

Capa: "Encontro de Jesus com Verônica" óleo sobre tela de Giovanni Busi Cariani. Museu Civici d'Arte e Storia di Brescia. Nas suas quatro primeiras crônicas vampirescas, Anne Rice evocou para nós mundos que são fantásticos e distantes, tornando-os vibrantes, reais e imediatos como o nosso. Agora, em Memnoch, seu romance mais ousado e misterioso, ela nos leva, com Lestat, até o mundo mítico que é mais importante para nós — o território da própria teologia. Anne Rice retoma em Memnoch o relato da saga do vampiro Lestat e sua eterna busca pela razão de ser. Dessa vez instigado por Memnoch, o Demônio em pessoa, que deseja fazer dele o Príncipe das Trevas e com isso desafiar a Deus, Lestat visita o Paraíso e desce ao Inferno. Fala com Deus e bebe o sangue de Cristo crucificado. Ouve da própria boca do Demônio a sua versão para a História da Criação e da Paixão. Uma história feita de dor e sofrimento infligidos à humanidade por seu criador. Verdade ou parte da trama criada por Memnoch para envolver Lestat com o propósito de roubar sua alma? Romance extraordinariamente polêmico, por desafiar todos os preceitos morais e religiosos em sua releitura dos ensinamentos bíblicos, colocando Deus como mensageiro da dor, e o Demônio como mensageiro do prazer, Memnoch deixará o leitor cativo dessa história fascinante e assombrosa, o momento mais radical da obra de Anne Rice. ANNE RICE MEMNOCH As crônicas vampirescas Tradução de WALDÉA BARCELLOS Título original MEMNOCH, THE DEVIL The Vampire Chronicles 1995 by Anne O'Brien Rice Para Stan Rice, Christopher Rice e Michele Rice Para John Preston Para Howard e Katherine Allen O'Brien Para o irmão de Katherine, John Allen, Tio Mickey e para o filho de Tio Mickey, Jack Allen, e todos os descendentes de Jack E para Tio Marian Leslie, que estava no Corona's Bar naquela noite Com amor, a vocês e a todos os parentes e amigos dedico este livro O QUE DEUS NÃO PLANEJOU Durma bem, Chore bem, Vá ao poço fundo Sempre que puder. Traga de volta a água, Agitada e cintilante. Deus não planejou que a consciência Se desenvolvesse tanto. Pois bem, Diga-Lhe que nosso Balde está cheio E que ele pode Ir para o Inferno. STAN RICE 24 de junho de 1993 A OFERENDA Àquela coisa Que impede o nada Como o javali de Homero De sacudir de um lado para o outro Suas defesas brancas Atravessando os seres humanos Como varetinhas E a nada menos Ofereço esse sofrimento do meu pai STAN RICE 16 de outubro de 1993 DUETO EM IBERVILLE STREET O homem de couro negro A comprar um rato para alimentar sua jibóia Não faz questão de detalhes. Qualquer rato serve. Ao voltar a pé da loja de animais de estimação, Vejo um homem numa garagem de hotel Esculpindo um cisne num bloco de gelo Com uma motosserra. STAN RICE 30 de janeiro de 1994 PRÓLOGO Sou Lestat. Você sabe quem eu sou? Nesse caso, pule os parágrafos seguintes. Para aqueles que ainda não conheço, quero que este encontro seja amor à primeira vista. Veja! Seu herói até o fim, uma perfeita imitação de um anglo-saxão louro, de olhos azuis e um metro e oitenta de altura. Vampiro, e um dos mais poderosos com quem você poderá um dia se deparar. Minhas presas são pequenas demais para serem notadas a menos que eu assim o deseje; porém são muito afiadas, e eu não consigo passar mais do que algumas horas sem querer sangue humano. É claro que não preciso dele com tanta freqüência. E exatamente com que freqüência preciso, não sei porque nunca fiz o teste. Tenho uma força monstruosa. Posso levantar vôo. Consigo ouvir a conversa das pessoas do outro lado da cidade, ou mesmo do globo terrestre. Leio o pensamento. Sei enfeitiçar. Sou imortal. Não envelheço desde 1789. Sou um ser único? De modo algum. Há cerca de outros vinte vampiros no mundo, dos quais tenho conhecimento. A metade deles conheço intimamente. E a metade desses eu amo. Somem-se a isso para mais de duzentos vagabundos e desconhecidos dos quais nada sei, mas de quem ouço falar ocasionalmente. E de quebra outros mil imortais cheios de segredos, que perambulam por aí disfarçados de humanos. Homens, mulheres, crianças — qualquer ser humano pode se tornar um vampiro. Tudo o que é necessário é um vampiro disposto a propiciar a transformação, a lhe sugar a maior parte do sangue e depois deixar que ele volte para a pessoa, misturado com o seu próprio. Não é assim tão simples; mas, se a pessoa sobreviver, viverá para sempre. Enquanto for jovem, terá uma sede insuportável e provavelmente precisará matar todas as noites. Quando estiver com mil anos, dará a impressão de ser sábio a quem o vir ou ouvir, mesmo que tivesse sido apenas uma criança no início; e irá continuar a matar e a beber por não resistir, quer continue a precisar disso quer não. Aquele que viver mais do que isso, e alguns vivem, quem sabe? Esse ficará mais forte, mais branco, ainda mais monstruoso. Terá tanto conhecimento do sofrimento que atravessará rápidos ciclos de crueldade e benevolência, perspicácia e insana cegueira. É provável que enlouqueça. E volte à sanidade. Depois, pode acabar se esquecendo de quem é. Eu próprio sou uma combinação do que há de melhor na juventude e na velhice vampirescas. Com apenas duzentos anos de idade, por vários motivos foi-me concedida a força dos antigos. Tenho uma sensibilidade moderna, mas o gosto impecável de um aristocrata morto. Sei exatamente quem sou. Sou rico. Sou belo. Consigo ver minha imagem refletida nos espelhos. E nas vitrines. Adoro cantar e dançar. O que é que eu faço? Qualquer coisa que me agrade. Pense bem nisso. É o suficiente para fazer com que queira ler minha história? Talvez você tenha lido minhas histórias de vampiros antes. E o que é interessante é que, neste caso, não importa que eu seja um vampiro. Não é tão essencial assim para a história. É apenas um dado, como meu sorriso inocente, minha voz ronronante com sotaque francês e meu jeito gracioso de andar lépido pela rua. Faz parte do pacote. No entanto, o que aconteceu aqui poderia ter acontecido com qualquer ser humano. Na verdade, sem dúvida já aconteceu com humanos, e voltará a acontecer. Nós temos alma, você e eu. Queremos conhecer tudo. Dividimos a mesma terra, rica, verdejante e cheia de perigos. Não sabemos, nenhum de nós dois, o que significa morrer, por mais que possamos afirmar o contrário. É óbvio que, se soubéssemos, eu não estaria escrevendo este livro e você não o estaria lendo. O que tem enorme importância, já que estamos entrando juntos nesta história, é que eu me propus a missão de ser um herói neste mundo. Eu me considero moralmente complexo, espiritualmente sólido e esteticamente pertinente, um ser de um impacto e uma visão candentes, um sujeito que tem muito a dizer. Portanto, se você for ler este livro, que seja por esta razão — que Lestat está falando mais uma vez, que ele está assustado, que está procurando desesperadamente pela lição, pela canção e pela raison d'être, que ele quer compreender sua própria história e quer que você a compreenda; e que esta é a melhor história que ele no momento tem para contar. Se isso não bastar, leia outro livro. Se bastar, prossiga com a leitura. Acorrentado, ditei estas palavras a meu amigo e meu escriba. Venha comigo. Quero só que me escute. Não me deixe sozinho. 1 Eu o vi quando entrou pela porta da frente. Alto, de compleição sólida, olhos e cabelos castanho-escuros, a pele ainda ligeiramente morena porque havia sido morena quando o transformei em vampiro. Andando um pouco rápido demais, mas basicamente passando por ser humano. Meu amado David. Eu estava na escadaria. A escadaria principal, seria possível dizer. Era um daqueles hotéis antigos, muito opulentos, enfeitados com divino exagero, cheios de ouro e carmim, e bastante simpático. Minha Vítima o havia escolhido. Não eu. Minha vítima estava jantando com a filha. E eu havia captado dos seus pensamentos que era sempre aqui que ele se encontrava com a filha em Nova York pelo simples motivo de a Catedral de St. Patrick ficar do outro lado da rua. David me viu de imediato — um rapaz descontraído, louro e de cabelos compridos, com as mãos e o rosto bronzeados, os habituais óculos de um roxo escuro a me encobrir os olhos, o cabelo bem penteado pelo menos dessa vez, o corpo ataviado num terno azul-escuro, de jaquetão, da Brooks Brothers. Vi que ele sorriu antes de conseguir se controlar. Ele conhecia minha vaidade e provavelmente sabia que no início da década de 90 no século XX a moda italiana havia invadido o mercado com tantos trajes disformes, volumosos, escorridos, amorfos, que uma das roupas mais eróticas e atraentes que um homem poderia escolher era o terno azul-marinho de corte perfeito da Brooks Brothers. Além do mais, uma cabeleira ondulante e um terno perfeito sempre são uma combinação poderosa. Quem sabe disso melhor do que eu? Eu não pretendia ficar falando de roupas! As roupas que vão para o inferno. É só que eu estava tão orgulhoso de mim mesmo por estar arrumado e cheio de contradições maravilhosas — uma figura com longos cachos, o corte impecável da roupa e uma atitude majestosa, com o peso do corpo sobre o corrimão e como que obstruindo a escadaria. Ele se aproximou de mim imediatamente. Cheirava ao inverno rigoroso da cidade, onde as pessoas estavam escorregando nas ruas congeladas e a neve se havia transformado em imundície nas sarjetas.

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