Abdias Do Nascimento

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View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE provided by Cadernos Espinosanos (E-Journal) ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES Resistência e revolta nos anos 1960: Abdias do Nascimento ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES é professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Versão anterior deste texto foi apresentada ao XXIV Encontro Nacional da Anpocs em Caxambu, em outubro de 2005, e preliminar- mente discutida no seminário Brazil: Race and Politics in the Americas, na Universidade do Texas, em Austin, em 16 de setembro de 2005. á faz algum tempo que venho traba- lhando com a noção de modernidade 1 Entendo por modernidade negra o processo de inclu- Jnegra para explicar o processo de construção são social e simbólica dos descendentes de africanos às de diferentes identidades raciais dos negros e sociedades das Américas e da Europa. Signifi ca, grosso mulatos brasileiros e americanos1. Mas só se modo, a incorporação dos negros ao Ocidente como pessoas civilizadas. Podem-se pode falar de modernidade negra no plural, pois distinguir dois momentos de tal integração, cuja ordem ela varia de acordo com as diferentes formações cronológica não é unívoca: um primeiro, de representação nacionais. Isso signifi ca, em termos concretos, positiva dos negros, construí- da por intelectuais brancos, que a história de cada Estado-nação do Ociden- principalmente na literatura e nas artes plásticas (cubismo, negrismo, modernismo) e, num te ou de origem ocidental (fruto da colonização segundo momento, a criação de representações positivas européia) é, ao mesmo tempo, uma história dos negros feitas pelos próprios negros, também nas artes e particular da modernidade negra. na literatura, mas também na ideologia e na política. No entanto, para explicar essas diversas for- mações podemos recorrer a um conjunto fi xo de condicionantes históricos, que funcionam como se fossem variáveis independentes. Além dos fatores demográfi cos, econômicos, sociais ou políticos, pode-se destacar uma ordem particular de condições, mais propriamente ideológicas ou intelectuais, que são as tradições e constela- ções de idéias. Tradições essas tão intimamen- te interconectadas por infl uências recíprocas que apenas podemos agrupá-las pelas grandes línguas de expressão colonial: o português, o espanhol, o inglês e o francês. Podemos, assim, identifi car três grandes zo- nas de pensamento, a ibero-afro-americana, a anglo-afro-americana e a franco-afro-americana, que funcionaram como verdadeiros “arquivos” de onde foram sacadas idéias para forjar identidades raciais e ideologias de integração na modernida- de ocidental. Eu diria que idéias e intelectuais negros circularam entre essas três zonas. Em outros textos, procurei explorar algumas construções ideológicas que deram origem a cer- tos padrões particulares. Foi assim que explorei a idéia de raças históricas, desenvolvida por 158 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 156-167, dezembro/fevereiro 2005-2006 DuBois, nos Estados Unidos, a partir das francês e não havia tradução em português 2 Não descobri ainda a data dessa edição, mas, na quarta noções de Kultur, do romantismo alemão, ou espanhol antes de 1955. Em comunica- capa, há uma notícia biográfica de Camus em que se registra e culture, da antropologia cultural de Boas. ção pessoal, disse-me ele que leu o texto sua morte em janeiro de 1960. Detive-me também em vários momentos de Camus, pela primeira vez, em espanhol, 3 “E o Camus escreveu, acho sobre a noção de négritude, criação de Aimé numa edição que lhe fora presenteada que foi depois dessa visita [ao 4 Brasil, em 1949], ele escreveu o Césaire e Leopold Seghnor, reelaborada por por seu amigo Efraim Bó , comprada no Homem Revoltado, e eu escrevi Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento; México. Essa informação é congruente logo o Negro Revoltado, você pode ver que faço várias refe- assim como escrevi detalhadamente sobre com a versão das citações de Camus em O rências, a cada capítulo boto 5 uma setença do Camus” (apud a ideologia da democracia racial como Negro Revoltado . Mas por que, ao ler El Police, 2000, vol II, p. 181). forma de apropriação das idéias de Gilberto Hombre Rebelde, como foi traduzido para 4 Efraim Bó, Gofredo Iommi, Juan Freyre e de Arthur Ramos pelos intelectuais o espanhol, Abdias evita falar de negro re- Raul Young e Napoleão Lopes Filho formavam com Abdias a negros brasileiros (ver Guimarães, 2004a; belde? Isso sugere que Abdias ou já tinha Santa Hermandad Orquídea, 2004b; 2002). conhecimento da tradução portuguesa ou um grupo de poetas argentinos e brasileiros que percorreu boa Há, entretanto, duas noções, oriundas conhecia o original, pois, ademais, o livro parte da América do Sul em boemia, nos anos 1940 (ver do mundo francófono, ambas bastante é citado sempre por Abdias como L’Homme Police, 2000). 6 desenvolvidas por Albert Camus, que en- Révolté . O decisivo, entretanto, para ar- 5 As citações feitas por Abdias contraram eco nos escritos de Abdias do riscar uma datação, é o fato de o conceito não correspondem à tradu- ção portuguesa. Por exemplo, Nascimento dos anos 1960 e que passaram de revolta não ser central no discurso de coteje-se a citação feita por Abdias, “A Revolta Nasce desapercebidas pela literatura especializada Abdias antes de O Negro Revoltado. Parece do Espetáculo da Sem-razão, até o momento. Refiro-me às noções de mais prudente, pois, acreditar que Abdias ante uma Condição Injusta e Incompreensível” (Nascimento, resistência e de revolta, bastante presentes tomou conhecimento da “revolta” depois 1982, p. 74), com o original nas ideologias que informaram as lutas de de 1966, talvez pouco antes de escrever o francês (“La Révolte Naît du Spectacle de la Déraison, descolonização da África francesa. Apesar seu ensaio. devant une Condition Injuste et Incompréhensible” (Camus, de as atas do I Congresso do Negro Bra- Vale ressaltar, inicialmente, que a noção 1951, p. 23), e ver-se-á que sileiro terem sido publicadas em livro, em de “revolta”, significando um profundo muito provavelmente a palavra “sem-razão” parece ser uma 1968, com o título de O Negro Revoltado sentimento subjetivo de injustiça que não tradução literal do francês “déraison” ou do espanhol (Nascimento, 1982), título também do encontra expressão política coletiva, ou “sinrazón”. Enquanto a primeira ensaio introdutório, escrito por Abdias do seja, que não se transforma em “rebeldia” edição em língua espanhola do Homme Révolté data da Nascimento, nenhuma curiosidade maior ou “combate”, é elemento constitutivo do segunda metade dos anos despertaram nem o título, nem as inúmeras repertório das idéias que forjaram historica- 1950, a versão portuguesa aparece em algum ano des- citações de O Homem Revoltado, de Albert mente a identidade negra no Brasil. Abdias conhecido dos anos 1960, e 2 utiliza a palavra “insensatez” Camus (s/d) . tinha íntimo contato com esse mundo de para traduzir “déraison”. Este artigo busca, portanto, jogar alguma idéias, como bem o demonstra Macedo 6 Elisa Nascimento me fez, por luz sobre o porquê da utilização de tais con- (2005) na sua exposição dos escritos de e-mail, o seguinte esclarecimen- to: “Sobre o livro de Camus, 7 ceitos e verificar a sua eventual influência Abdias no ano de 1946 . O distintivo da L’Homme Révolté. Dele Abdias na obra posterior de Abdias, assim como na revolta que Abdias apreende em Camus, tomou conhecimento na época em que saiu, e com Efraim, ideologia dos futuros movimentos negros entretanto, é que, em torno dela, poderá Gerardo e outros ‘francófonos’ discutiu muito o livro, conheceu brasileiros. organizar discursivamente a resistência o texto e escolheu os trechos moral e política às injustiças vividas pelo transcritos no ensaio que pre- parava para os anais do 1o negro brasileiro. Congresso. Essa introdução ele escreveu naquela época, mas O fato é que a leitura de El Hombre não encontrava editora para o RÉSISTANCE E REVOLTA Rebelde foi decisiva para o desenvolvi- livro. O ensaio ficou esperando, passou-se o tempo, Efraim foi ao mento posterior do pensamento político de México e voltou com a edição Em que ano Abdias leu O Homem Re- Abdias. Mas não todo o livro, frise-se logo em espanhol, e só em 1966 ou 67 a GRD concorda em voltado é difícil estabelecer. Em entrevista de início. Como veremos adiante, foram a publicar o livro com os anais do Congresso. Aí Abdias volta a Gerard Police (2000), Abdias sugere ter introdução e a primeira parte, justamente ao texto, o atualiza e aprimora, escrito O Negro Revoltado logo depois de aquela intitulada “o homem revoltado”, que agrega uma série de coisas, mas o ensaio é basicamente o mesmo Camus ter escrito o L’Homme Révolté, mas prenderam a atenção e fascinaram Abdias. e mantém as citações do livro de Camus”. isso é inverossímil, pois o ensaio é datado O restante do ensaio não parece interessar 7 Refiro-me, aqui, ao capítulo 3 de agosto de 1967 e o livro de Camus pu- a ele; justamente onde Camus se pergunta da dissertação de mestrado blicado em 19513. Ademais, Abdias não lia por que os ideais se pervertem, por que a de Márcio Macedo, Abdias REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 156-167, dezembro/fevereiro 2005-2006 159 rebeldia, uma vez no poder, se transforma resistência continuada e prolongada dos em opressão, ou seja, o cerne da argu- negros às discriminações raciais e às for- mentação de Camus, que provoca a sua mas alienantes da cultura embranquecida ruptura com Sartre e os comunistas, com de origem européia. Breton e os surrealistas. Apesar de haver Tal interpretação substituirá definitiva- um paralelo entre as rupturas de Camus mente aquela de um país mestiço e sincrético e de Abdias com o comunismo francês e ao qual os negros devem se integrar através brasileiro, respectivamente, não parece ter da educação formal e da edificação de uma sido essa a razão principal da atração que o personalidade não-ressentida e não-aliena- primeiro exerceu sobre o segundo8.

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