PDF Português

PDF Português

BONECAS, DIVERSIDADERELATO E INCLUSÃO DE EXPERIÊNCIA: BRINCANDO COM AS DIFERENÇAS BONECAS, DIVERSIDADE E INCLUSÃO: BRINCANDO COM AS DIFERENÇAS Michelle Brugnera Cruz RESUMO – O presente relato de experiência procura problematizar as bonecas, que historicamente fazem parte das brincadeiras infantis e representam os ideais de infância da sociedade. Apresentou-se às crianças uma coleção de bonecas e bonecos “diferentes”: negros, cadeirantes, idosos, com Síndrome de Down, grávidas, entre outros, que foram incluídos nas suas brincadeiras. Buscou-se, com esses materiais, compreender como as crianças operam com os conceitos de diversidade e inclusão. Para a realização da revisão teórica, inspirou-se em autores pós-estruturalistas e nos Estudos Culturais, tratando as bonecas como artefatos culturais. Inicialmente, faz-se uma breve aproximação entre a história das bonecas e a história da infância, versando sobre a representação de normalidade e os modos de ser sujeito infantil por meio das bonecas. Tentou-se descrever as práticas discursivas que emergiram das conversas, atitudes e interações nas brincadeiras, para entender como as crianças operavam tais conceitos. O estudo aponta que a possibilidade de brincar com bonecas diferentes, que representam a diversidade, favorece atitudes mais inclusivas e a aceitação das diferenças. UNITERMOS: Jogos e Brinquedos. Diversidade Cultural. Inclusão. Michelle Brugnera Cruz – Licenciada em Pedagogia Correspondência: Michelle Brugnera Cruz – FAPA. Especialista em Psicopedagogia Institucional Av. Polônia, 1055 / 202 - São Geraldo - Porto Alegre, e Clínica – FAPA. Possui experiência como professora RS, Brasil - CEP: 90230-110 na educação infantil. Atuou como brinquedista no E-mail: [email protected] Programa de Extensão Universitária “Quem quer Brincar?” – UFRGS. Atualmente é professora de anos iniciais da rede municipal de ensino de Porto Alegre – EMEF AMÉRICA, Porto Alegre, RS, Brasil. Rev. Psicopedagogia 2011; 28(85): 41-52 41 CRUZ MB PONTO DE PARTIDA inquietação, surgiu a indagação: quais efeitos A educação inclusiva foi fortemente difundi- que a oferta de uma diversidade de bonecos e bo- da pela Conferência Mundial de Educação para necas diferentes produz nesse grupo de crianças Todos1, realizada na Tailândia, em 1990, e pela quanto aos conceitos de diversidade e inclusão? Conferência Mundial de Educação Especial, re- O presente trabalho procurou versar sobre os alizada na Espanha, em 1994, em que foi criada bonecos e bonecas como artefatos culturais3-6, a Declaração de Salamanca2. Assinada por vários inspirando-se em autores pós-estruturalistas e países, defende a escola para todos, tendo como nos estudos culturais. Inicialmente, faz-se uma princípio “a inclusão de toda criança em seu breve aproximação entre a história das bonecas contexto educacional e comunitário”. Contudo, e da infância, versando sobre a representação de muitas crianças ainda estão excluídas das escolas, normalidade e os modos de ser sujeito infantil do sistema de saúde, dos meios de transporte, do por meio das bonecas. acesso ao conhecimento e à cultura. No interior Buscou-se problematizar com as crianças e da escola, essa exclusão é reproduzida desde a instigar a produção de práticas discursivas no que arquitetura dos prédios, das configurações da sala se refere ao conceito de diversidade e inclusão de aula, da disposição dos tempos e espaços, dos através das bonecas. Para isso, reuniu-se uma materiais didáticos e nas relações. coleção de bonecos e bonecas diferentes dos Articular educação inclusiva e a diversidade ofertados pela escola: negros, cadeirantes, idosos, no cotidiano escolar é um desafio, pois pressu- com síndrome de Down, grávidas, entre outros, põe a compreensão da alteridade. Para isso, é que foram incluídos nas brincadeiras das crianças. necessário desfazer as tramas da exclusão e abrir espaço para as múltiplas formas de ser sujeito APROXIMAÇÕES ENTRE A HISTÓRIA dentro de uma cultura e um tempo histórico3. DAS BONECAS E DA INFÂNCIA Historicamente, os bonecos e bonecas fazem Ariès7 faz um histórico antropológico das con- parte das brincadeiras infantis e representam o cepções da infância e do brinquedo como objeto conceito que a sociedade tem da infância3-6. São destinado à infância. Segundo o autor, os bonecos portadores de significados e valores culturais que e bonecas tiveram sua origem atravessada pelas revelam discursos, concepções e representações imagens e estatuetas com significação religiosa, de determinada sociedade e cultura. Mesmo com que estiveram presentes na vida humana desde o avanço da legislação a favor da infância e da a Pré-História. As crianças não tinham o direito inclusão, brinquedos adaptados para diferentes de se aproximar e manipular essas estátuas, pois necessidades especiais e bonecos e bonecas que se acreditava que possuíam poderes mágicos e representam a diversidade são escassos. eram tidos como objetos sagrados. Nas salas de aula do 1º Ciclo do ensino fun- Na Idade Média, não se concebia a diferença damental da escola em que se realizou o estudo, entre adultos e crianças, portanto, não havia a houve a oferta de uma variedade de brinquedos noção de passagem das idades da vida, as crian- e jogos e foi previsto um tempo para que as ças misturavam-se com os adultos assim que crianças brincassem. Dentre eles, os bonecos e eram consideradas capazes de dispensar a ajuda bonecas chamam a atenção por representarem das mães ou das amas, aproximadamente aos apenas um formato de corpo: magro, atlético, de sete anos de idade. Nesse momento histórico, não pele e olhos claros. Tal representação inquieta, havia lugar para o setor privado. O movimento por ser tão distinta dos corpos das crianças e da vida coletiva arrastava numa mesma condição das professoras, que, em sua maioria, são afro- as idades e a vida social, sem deixar a ninguém brasileiros. A escola também apresenta uma o tempo da solidão e da intimidade7. As bonecas variedade de estudantes com deficiência intelec- eram tanto objetos destinados aos adultos quanto tual e deficiências físicas. Mesmo assim, falas e às crianças, com diferentes conotações culturais. atitudes discriminatórias são frequentes. Dessa Segundo Ariès7, por não ser nítida a discrimina- Rev. Psicopedagogia 2011; 28(85): 41-52 42 BONECAS, DIVERSIDADE E INCLUSÃO: BRINCANDO COM AS DIFERENÇAS ção cultural entre meninos e meninas, ambos forma mais realista e de simbolizar a materni- brincavam com as bonecas, compartilhavam os dade, que fizeram grande sucesso e dominaram mesmos objetos e o mesmo tipo de vestimenta. o mercado de bonecas por muitas décadas. Por A mudança do caráter formativo medieval representarem a criança como bebê ou menina, está relacionada à mudança do feudalismo para essas bonecas permitem e incentivam a repre- o capitalismo. Nos tempos modernos, com a Re- sentação de uma relação afetiva de cuidado por volução Industrial e o modo de produção fabril, meio de atos como alimentar, acalentar, pentear, a família e a escola afastaram a criança da so- vestir; desenvolvendo rituais de afeição. ciedade dos adultos, o que fez com que surgisse As bonecas manequim incentivam outro tipo um “sentimento de infância”. Houve o advento de brincadeira. O objetivo não é cuidar e alimen- das famílias, das casas divididas em cômodos, o tar a criança-boneca, mas ser a boneca adulta. início da vida privada. A escolaridade tornou-se Inicialmente, eram feitas de porcelana, corpo de fundamental para as crianças e jovens. tecido e utilizavam roupas com modelagem da A “emergência do sentimento de infância”8-10 moda. A boneca Barbie é a principal represen- fez com que surgisse um discurso sobre a crian- tante dessa modalidade de bonecas. Foi criada ça, passou-se a estudar e pensar a infância, por Ruth Handler, inspirada nas brincadeiras com caracterizando-a como inocente, necessitando bonecas de sua filha Bárbara e em uma boneca de cuidado e proteção. Por sua dependência e para adultos alemã. A Barbie foi apresentada incapacidade de autogovernamento, foi neces- em 1959, em uma feira de brinquedos em Nova sário criar saberes específicos para o cuidado da Iorque e fez grande sucesso entre as crianças5,12; infância, e um aparato de tecnologias e produtos porém as famílias americanas conservadoras não voltados especificamente para essa idade da vida aprovaram a boneca por sua dimensão sexy. Teve foram sendo criados. Dessa forma, os bonecos e como sua maior inovação a possibilidade das bonecas passaram a ser objetos destinados aos garotas poderem possuir apenas uma boneca, já sujeitos denominados infantis. No entanto, é que estas podiam ter diversas “roupas”. Segundo no século XVIII, com a Revolução Industrial na Steinberg12, “Ela era uma modelo adolescente. Europa e a ascensão da burguesia, que os bone- Garotas deixavam de embalar bonecas bebê para cos e bonecas começaram a ser produzidos em exigir o mais recente da alta costura à la Mattel. maior escala através da organização fabril. É no A Barbie era sexy, apesar da maioria das suas advento das bonecas industrializadas destinadas proprietárias sequer estar preocupada com sua se- às crianças que está a “invenção da infância”8-10. xualidade – elas apenas amavam as suas Barbies. No século XX, com o avanço da indústria, os No Brasil, a boneca Susi foi lançada em 1966, fabricantes passaram a produzir bonecas com apresentando uma modelo de boneca-manequim distintos materiais, como a borracha, a espuma mais parecido com as mulheres brasileiras. Foi e o vinil. Nesse momento, bonecas e bonecos fabricada até 1985 e relançada em 1997.

View Full Text

Details

  • File Type
    pdf
  • Upload Time
    -
  • Content Languages
    English
  • Upload User
    Anonymous/Not logged-in
  • File Pages
    12 Page
  • File Size
    -

Download

Channel Download Status
Express Download Enable

Copyright

We respect the copyrights and intellectual property rights of all users. All uploaded documents are either original works of the uploader or authorized works of the rightful owners.

  • Not to be reproduced or distributed without explicit permission.
  • Not used for commercial purposes outside of approved use cases.
  • Not used to infringe on the rights of the original creators.
  • If you believe any content infringes your copyright, please contact us immediately.

Support

For help with questions, suggestions, or problems, please contact us