SEGUNDA PARTE A YORUBANIDADE DIANTE DA HEGEMONIA CULTURAL NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO: TEORIA E PRÁTICA DA DESCOLONIZAÇÃO DO PODER E DO SABER “In other words, rather than exclusively acknowledge the subalterns, we need to acknowledge that their cosmologies, thinking processes, and political strategies constitute fundamental elements to dismantle and transgress dominant perspectives in the process of knowledge production”194 – Ramón Grosfoguel e Ana Margarita Cervantes- Rodríguez195 1.0 Em busca da gnose liminar yorubana Nesta segunda parte da tese, pretendo analisar as obras e os discursos de dois intelectuais extra-canônicos, que elegi, em função de suas atividades de guardiães da Yorubanidade na contemporaneidade: o escultor-escritor nagô-baiano Mestre Didi e seu homólogo yorubá-nigeriano Ifayemi Elebuibon. Pretendo estudar suas produções teóricas, artísticas e literárias, à luz das discussões em torno de conceitos como a Globalização, a Hegemonia cultural e a chamada Modern/Colonial/Capitalist World System, engendradas pela imposição direta ou indireta de valores ocidentais à escala planetária, confrontando a mesma, com as propostas de um projeto de ‘des-homogeneização’ epistemológico idealizado por pensadores da chamada periferia do capitalismo cujas teorias se apresentam sob os diversos desígnios, tais como, a Mundialização cultural e a Gnose Liminar dos 194 Tradução: “Em outras palavras, mais do que aceitar exclusivamente (a presença de) os subalternos, é preciso aceitar o fato que as suas cosmologias, os seus processos de pensamento, e as suas estratégias políticas constituem elementos fundamentais para o desmantelamento e a transgressão das perspectivas até agora dominantes no processo da produção do saber”. 195 Cf. “Unthinking Twentieth-Century Eurocentric Mythologies: Universalist Knowledges, Decolonization, and Developmentalism” in Introduction to The Modern/Colonial/Capitalist World-System in the Twentieth Century: Global Processes, Antisystemic Movements, and the Geopolitics of Knowledge, Ramón GROSFOGUEL and Ana Margarita CERVANTES-RODRÍGUES (Ed.), Westport, CT: Praeger Publishers, 2002. 239 saberes subalternos, propostas essas, que vêm sendo desenvolvidas, respectiva ou conjuntamente, por vários teóricos contemporâneos tais como Stuart Hall, Renato Ortiz, Ramón Grosfoguel e Cervantes-Rodríguez, Valentin Mudimbe, Immanuel Wallerstein, Walter D. Mignolo e Enrique Dussel, entre tantos outros. 1.1 A filosofia da libertação ou “la irrupción del Outro” Na introdução do seu livro Histórias locais/Projetos Globais, o teórico argentino Walter D. Mignolo (2004[2000]:27) reconhece no projeto elaborado por Tu Wei-ming, na obra Confusian Thought ([1985] 1993), uma tentativa bem-sucedida de ‘apontar os limites da epistemologia moderna (...)’, ou seja, uma clara indicação de que os intelectuais da chamada periferia do capitalismo estão prestes a contestar a hegemonia da epistemologia ocidental que, desde o século XV, tem servido de base para a desqualificação de todas as culturas não-ocidentais (Dussel, 1993, 1994; Mudimbe, 1988). Na sua apreensão do projeto de Tu Wei-ming, Mignolo (2004:28) entende que o autor chinês: ‘sugere claramente que um estágio pós-ocidental está sendo elaborado e que tal estágio constitui um ponto sem volta, rasurando a diferença epistêmica colonial e incorporando a perspectiva daquilo que vem sendo considerado uma forma subalterna de conhecimento’. Na verdade, trata-se de uma subversão do cânone ocidental em tudo o que ela representa: o cânone histórico que, desde Hegel, procurou excluir todo o Hemisfério Sul do ostensivo projeto da Modernidade; o cânone cultural que justifica, a partir da lógica perversa do “Yo conquisto” de um Cortés ou de um Pizarro ao esbarrarem com o “Outro” em 1492, o genocídio do índio, a escravização e a colonização do africano, a estigmatização do asiático perante a ‘razão cultural e civilizatória’ do Ocidente (Dussel, 1993, 1994). Como foi proposta por Enrique Dussel na sua ‘Filosofia de la liberación’ (1993), o caminho para todo e qualquer projeto de ‘deshegemonização’ do mundo passa obrigatoriamente por uma denúncia da irracionalidade e da inconsistência histórica da Globalização, erguida pelo Ocidente como uma razão universalista, e posta como meta obrigatória de toda a humanidade, servindo, sobretudo, como o corolário mais lógico da Modernidade. Enrique Dussel deixa claro que o discurso do eurocentrismo não mudou nem um pouco, desde a famosa polêmica de Valladolid, que opunha o missionário espanhol Bartolomé de 240 las Casas a seu conterrâneo Ginés de Sepúlveda, no ano de 1550, quando este último estabeleceu as bases da superioridade da Europa sobre os demais povos, propondo o mesmo como justificativa para qualquer violência da qual a Europa viria a fazer uso no projeto de ‘civilizar’ e ‘cristianizar’ o mundo. Dussel (1993:70) resume as grandes linhas do argumento de Sepúlveda da seguinte forma: • Siendo la cultura europea la más desarrollada, superior a las otras culturas (eurocentrismo), • el que las otras culturas “salgan” (el Ausgang kantiano) de su propia barbarie por el proceso moderno civilizador, constituye un progreso. • Pero los subdesarrollados se oponen al proceso civilizador, y por ellos es justo y necesario ejercer violencia hasta destruir dichas oposiciones. • Por su parte, el violento guerrero moderno (que extermina indios, esclaviza africanos, etc.) piensa que es inocente, por cuanto ejerce la violencia por deber y virtud. • Por último, las victimas de la modernidad en la periferia (el exterminio de los indios, el esclavismo de africanos, el colonialismo de los asiáticos) y en el centro (la matanza de judíos, tercer holocausto) son las “culpables” de su propia victimación. Eis, portanto as bases ideológicas da Modernidade e da própria Globalização, ambas impostas sobre o resto do mundo desde 1492 pela Europa (Ocidente). Como explicita o antropólogo Marco Aurélio Luz (1994:20), a partir desta visão ‘eurocêntrica’: Todas as instituições de produção de ideologias se voltam para a construção de um corpus conceitual capaz de representar o outro como inferior, localizado numa série evolutiva mais próxima da matéria e do corpo que da alma e da razão. Esta falsa representação do colonizado acompanha a ação de colonizá-lo, de conquistá-lo, escravizá-lo e explorá-lo. Com essas ideologias e em nome delas, foram destruídos impérios nos continentes do Hemisfério Sul, foram cometidos genocídios sistemáticos contra os povos indígenas das Américas, foram escravizados milhões de africanos, e o próprio continente foi balcanizado para criar colônias sob o domínio político e econômico dos países europeus. Também, com as mesmas ideologias se justifica o silenciamento das culturas não-européias e a desqualificação de seus sistemas de valores. Contra elas Dussel (1993:91) propõe a Trans- Modernidade196 para denunciar a irracionalidade da Modernidade e dos argumentos 196 No meu entender, a Transmodernidade proposta por Enrique Dussel seria um movimento que atravessa a Modernidade, ao mesmo tempo que a ultrapasse e a supere na sua essência, dando origem a novas epistemologias e levando a novas compreensões das culturas globais que não sejam mais eurocêntricas. A escolha do prefixo “trans” parece ter sido feita com a plena intenção de distanciá-la de toda a carga ideológica acumulada sobre o conceito de Modernidade. Como afirma o próprio Dussel: “Nuestro proyecto de 241 eurocêntricos dela decorrentes, confeccionados para sustentar a tese da inferioridade de outros povos e de outras culturas. Nas próprias palavras de Dussel (1993:71), essa Trans- Modernidade se propõe ‘como crítica racional desde la Exterioridad de la modernidad, la “otra-cara” de la modernidad (los indios, los africanos, los asiáticos, etc.), crítica al mito irracional de violencia hacia sus colonias, hacia el capitalismo periférico, hacia el “Sur” (...).’ 1.2 Mundialização e diversidade cultural: A procura de uma “comunidade de comunicação ideal” Como já foi esboçado na abordagem de Enrique Dussel, a Globalização como sistema hegemônico apresenta-se como correlato da Modernidade. Ambos se sustentam através da mesma ideologia que interpreta o mundo pelas óticas do Ocidente. Ao criticar o ‘mito da Modernidade’ e ao denunciar a ‘falácia desenvolvimentalista’, Dussel (1993:74) deixa claro que o desafio maior da Trans-Modernidade seria o de garantir a heterogeneidade e defender a diversidade cultural, econômica e política a nível global. Ou seja, ele preconiza a ‘deshegemonização’ do espaço global, mediante um rompimento radical com as leis do jogo em vigor dentro da Globalização. Para ele, isso implicaria nada menos que um desmantelamento de todo o aparato do ‘eurocentrismo’ cuidadosamente construído e alimentado desde 1492: (…) la inclusión de la Alteridad negada: la dignidad e identidad de las otras culturas, del Otro previamente encubierto; para ello habrá que matizar o negar la premisa mayor misma, el “eurocentrismo”. Mientras que el “mito de la Modernidad” debe ser simplemente deconstruido, para ser rotundamente negado; (por) está construido sobre un “paradigma sacrificial”: es necessario ofrecer sacrificios, de la victima de la violencia, para el progreso humano (…) A proposta de Dussel (1993) visa a construção e manutenção daquilo que o filósofo Otto Apel chama de uma ‘comunidade de comunicação ideal’. Em outras palavras, as contenções da epistemologia ocidental pelas diversas culturas devem produzir o que se chama de ‘situación ideal de habla’ (Dussel), ou seja, que a resposta para a famosa pergunta de
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