De Machado De Assis a Carlos Sussekind Markus Lasch

De Machado De Assis a Carlos Sussekind Markus Lasch

Manicômios, pseudo(auto)biografias e narradores pouco confiáveis: de Machado de Assis a Carlos Sussekind Markus Lasch Depois que a crítica norte-americana Helen Caldwell1 procedeu, em sua leitura de Dom Casmurro de 1960, a uma defesa ampla de Capitu, ar- gumentando que todos os indícios de seu adultério dependiam no romance exclusivamente do ponto de vista do narrador em primeira pessoa, Bentinho, e que portanto estes indícios não eram suficientes e muito menos provas conclusivas, a pouca confiabilidade do narrador machadiano tornou-se moeda mais ou menos corrente na crítica2. Principalmente em relação aos romances em primeira pessoa da segunda fase do autor3 e em específico nos casos de Bentinho e Brás Cubas, boa parte dos especialistas observou que a perspectiva do narrador não condizia com aquilo que a estrutura geral do texto permitia inferir. Chegou-se nisso a posições extremas como a de John Gledson, que, partidário de um intencionalismo confesso, propôs em sua leitura de Dom Casmurro não só a dissociação das instâncias, mas a oposição sistemática dos propósitos do autor e de seus narradores em primeira pessoa. Machado estaria bem distante não apenas do ponto de vista de Bentinho, mas igualmente das intenções de Brás Cubas, do Conselheiro Aires e do padre de Casa velha4. Curiosamente, esta questão do narrador parece ter pesado um tanto menos nas leituras do Memorial de Aires. Embora o último romance de Ma- chado seja, por seu foco narrativo em primeira pessoa, via de regra associado 1 Cf. Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis. 2 Este estudo é decorrente de uma pesquisa mais ampla sobre as “Representações do sujeito nos romances de Robert Menasse e Carlos Sussekind”, financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 3 O consenso quanto à bipartição não é só da crítica. O próprio autor dá indício de sua convicção no que diz respeito à existência de um divisor de águas em sua obra quando observa, em 1905, na advertência à segunda edição de Ressurreição: “Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dous ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da minha vida literária”. Assis, Obra completa, v. I, p. 116. 4 Cf. Gledson, Machado de Assis, p. 8. 234 Markus Lasch às Memórias póstumas e a Dom Casmurro, houve aparentemente uma certa tendência na crítica de ver Aires mais alinhado com seu autor do que Brás Cubas e Bentinho. O Conselheiro corporificaria em grande parte o humor bonachão, o equilíbrio e a maior complacência do Machado dos últimos anos5. Se esta leitura parece, por um lado, justificada pela efetiva mudança de tom, mudança facilmente observável colocados frente a frente os extremos Brás Cubas e Conselheiro Aires, ela não deixa, por outro, de ser um tanto surpreendente. Principalmente se considerarmos, o que para mim parece forçoso, o Memorial a partir da perspectiva de Esaú e Jacó, o romance que o precede. Porque, ao adotar esta visão de conjunto, temos no último romance de Machado um autor que em primeira instância, i.é. no início da “Adver- tência ao leitor”, confirma a versão veiculada pela “Advertência” em Esaú e Jacó, dizendo-se mero editor dos cadernos legados pelo Conselheiro Aires, mas que logo mais subverte este credencial quando observa que, no caso do Memorial, “não houve pachorra de [...] redigir [a narração] à maneira daquela outra, – nem pachorra, nem habilidade”. A pergunta que se coloca de imediato é: pachorra e habilidade de quem? Não haverá tempo aqui de mostrar em detalhe como a dúvida que paira no âmbito da autoria se prolonga enquanto ambivalência para a instância do narrador. Os interessados podem seguir a questão em Alfredo Bosi que, embora também seja em geral da opinião que Aires representa o “eu ideal do último Machado”, analisa, no referido ensaio de 1997, com minúcia não só as “duas pontas do compasso abertas aos extremos na alma do Conselheiro”, mas também a charneira mediadora: da disseminação sistemática da dúvida quanto à sinceridade do luto da viúva Noronha e do abandono de Aires às 5 A minha pesquisa não foi exaustiva neste ponto e por isso talvez se trate de aspecto que mereça revisão. Reporto-me às impressões decorrentes da leitura dos textos mencionados na bibliografia, à consulta da Bibliografia machadiana de Ubiratan Machado e a Alfredo Bosi, que, em ensaio de 1997, observa não lhe constar que o desdobramento autor-narrador tenha sido proposto quanto ao Memorial de Aires. Cf. Bosi, O enigma do olhar, p. 41. Depois de Bosi, Gabriela Kvacek Betella dedicou algumas páginas a Aires narrador, em Narradores de Machado de Assis, pp. 140-58. Referente a Esaú e Jacó há ainda o estudo de Marta Peixoto, “Aires as narrator and Aires as character in Esaú e Jacó”, pp. 79-92. Além disso, tocam ainda o aspecto os estudos de John Gledson, Machado de Assis: ficção e história, e de Hélio de Seixas Guimarães, Os leitores de Machado de Assis, ambos, porém, com escopo diverso do aqui adotado. Guimarães focaliza mais, como já diz o título de seu livro, o leitor, e Gledson interessa- se pelas verdades da história e histórica. Em todo caso, a literatura referente às questões de narrador e autor nos últimos dois romances de Machado não se compara à legião de estudos concernentes ao aspecto nas Memórias Póstumas e em Dom Casmurro. Manicômios, pseudo(auto)biografias e narradores pouco confiáveis 235 pulsões do seu id no comprazimento com as maledicências de Dona Cesária à representação e à vivência vicária do entendimento e do amor completos entre Fidélia e Tristão6. A título de ilustração do jogo constante de “descobrir para depois encobrir” e vice-versa, observe-se apenas um de seus momentos mais emblemáticos. Em seu apontamento de 8 de abril, O Conselheiro Ai- res, que acaba de se tornar padrinho do casamento entre Fidélia e Tristão, comenta a respeito dos sentimentos da viúva Noronha: Creio nas afeições de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada. Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta cousa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!7 Por estas e outras, Augusto Meyer sentiu, apesar de lhe notar o tom menos áspero, as mesmas raízes amargas no Memorial de Aires do que nos demais romances machadianos da segunda fase e concordou com o seu colega gaúcho Alcides Maya, quando este disse que o verdadeiro entrecho do Memorial giraria em torno de uma herança de duzentos contos e que “a comédia chega[ria] a parecer cruel pela perfeição com que, no caso, os protagonistas simulam os sentimentos, às vezes sem que o saibam”8. Ora, não se trata aqui de acrescentar outro enigma à la Capitu aos ro- mances de Machado, ou seja, a controvérsia se os sentimentos de Fidélia por Tristão são ou não verdadeiros. Mesmo porque é justamente da potencial insolubilidade de tais questões que brotam a vitalidade e o poder sugestivo das obras literárias. Tampouco há o intuito de militar a favor ou contra as teses de congruência ou dissociação sistemáticas no que diz respeito às intenções de autor e narrador ou de corrigir uma suposta negligência da crítica macha- diana. Se chamo atenção para o jogo complexo que envolve as instâncias de autor e foco narrativo no complexo Esaú e Jacó/Memorial de Aires é porque a constelação se reencontra com surpreendente semelhança nos romances de Carlos Sussekind, especialmente em Armadilha para Lamartine. *** 6 Cf. Bosi, “Uma figura machadiana”, em O enigma do olhar, pp. 129-48. 7 Assis, Memorial de Aires, em Obra completa, vol. I, p. 1191. 8 Cf. Meyer, “O romance machadiano”, p. 362. 236 Markus Lasch A relação entre as literaturas de Machado de Assis e Carlos Sussekind, desde cedo insinuada pelo poeta carioca Armando Freitas Filho, em seu texto de orelha à segunda edição de Armadilha para Lamartine, faz-se perceptível em vários níveis. Em primeiro lugar, já a constelação biográfica dá indício da vinculação – e veremos logo mais que a biografia em seu sentido amplo desempenha papel fundamental nos romances de Carlos Sussekind: o avô de Carlos Sussekind, Lúcio de Mendonça, fundou com Machado de Assis a Academia Brasileira de Letras e ocupou, assim como o seu irmão, Salvador de Mendonça, a partir do ano inaugural uma das cadeiras da imortalidade literária. Por outro lado, são os próprios livros de Carlos Sussekind que indicam o liame. O primeiro vetor em Armadilha para Lamartine que aponta para Ma- chado é indireto. As páginas do diário do Dr. Espártaco M., que compõe a segunda e maior parte do romance, iniciam com o abandono da casa paterna por seu filho Lamartine M. que, em outubro de 1954, se muda para uma república de estudantes. O novo lar funcionará no endereço de ninguém menos que Augusto Meyer, o jornalista, poeta e, como será chamado em O autor mente muito, especialista em Machado de Assis que naquele momento deixava o Rio de Janeiro rumo à Europa e alugara o seu apartamento com- pletamente mobiliado para os rapazes, provocando com isso não exatamente a benevolência do pai Espártaco9. Irritada é também a primeira menção direta de Machado no romance. Mais ou menos na metade das páginas de seu diário, Espártaco fica escan- dalizado com a leitura de “Dona Benedita”, de Papéis avulsos, “talvez”, como diz, “a melhor coleção do grande escritor”.

View Full Text

Details

  • File Type
    pdf
  • Upload Time
    -
  • Content Languages
    English
  • Upload User
    Anonymous/Not logged-in
  • File Pages
    18 Page
  • File Size
    -

Download

Channel Download Status
Express Download Enable

Copyright

We respect the copyrights and intellectual property rights of all users. All uploaded documents are either original works of the uploader or authorized works of the rightful owners.

  • Not to be reproduced or distributed without explicit permission.
  • Not used for commercial purposes outside of approved use cases.
  • Not used to infringe on the rights of the original creators.
  • If you believe any content infringes your copyright, please contact us immediately.

Support

For help with questions, suggestions, or problems, please contact us