DIÁRIO DO RIO BRANCO1 Pelas horas da manhã de 5 de maio, saí da fortaleza da barra para o Rio Branco. Em três dias e meio, aportei a Airão. Pelas 4 horas da tarde de 9, aportei na vila de Moura, por estar o rio tão levantado em temporal que não atravessei para a margem do norte. Principiei a atravessar pelas ave-marias e pernoitei em uma ponta de uma ilha, denominada Jabotim-coara. Na madrugada de 10, concluí a travessia e pelas 6 da manhã me achei dentro do igarapé de Cureru, onde estão situadas as roças de 6 moradores brancos da vila. Dei fé de três, pela sua margem oriental e a terceira era do diretor Pedro Afonso Gato. Constava de quatro casas separadas e erigidas sobre a margem do igarapé, e a em que residia estava bem asseada, forte, grande e repartida com proporção à sua família. Na retaguarda da casa tinha um grande tendal de secar o café. Vi um cacoal seu de dezesseis mil pés, porém todo coberto de lagartão, e os frutos do cacau denegridos. Disse-me que já não contava com ele, tendo aliás chegado já a colher dele duzentas para trezentas arrobas, mas que este era o defeito das terras deste rio. Também vi boas roças de maniba.2 E disse-me que roças para dous mil alqueires tinha ele, mas para tanto tráfico junto não tinha braços. Os seus cafezais eram vistosos, plantava o feijão, o milho e estas eram as suas lavouras principais. Pelas 9 horas, descemos eu e ele para a roça do morador José Gonçalves, encarregado da lavoura e manufatura do anil. Constava de três casas na frente de uma pequena margem, por um alagadiço [a]dentro. Vi a casa que já tinha erigido em forma de tijupá para a fábrica e vi os roçados; e o maior tinha acima das cem braças de comprido e já principiava a abrunhar3 o anil plantado. O carpinteiro tinha quase concluído três coches, os quais no fim de semana fazia tenção de deixar aperfeiçoados, e eram de madeira de pequiá.4 Saí pelas 3 horas da tarde da dita roça e, deixada a boca do igarapé, observei que [dentro dele]5 para cima já era branca a água da margem setentrional do rio Negro, por lhe ficar pouco superior a foz do rio Branco; mas o certo é que a água desta margem do Negro até o Jaú é da dita cor. Pelas 5 e meia da tarde, entrei no rio Branco [pela sua verdadeira boca];6 logo vi uma grandíssima onça na 1 O original manuscrito está incompleto e é o códice 21,2,2,1-5 da Biblioteca Nacional, que chamaremos de A. Existem mais duas cópias: os códices 21,2,2, (B) e 21,2,6 (C) da mesma Biblioteca Nacional. O texto base aqui considerado foi o códice 21,2,2,. Este docu- mento foi a base para a dissertação de mestrado de Nádia Farage, intitulada “As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização”, que se encontra no banco de teses da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro sob o número VI-177,5,12/BN. 2 “maniba” é uma espécie de mandioca, mas também se usa o termo para indicar a rama da mandioca. 3 “abrunhar” — lusitanismo de Trás-os-Montes, equivalente a “adoecer”. 4 “Pequiá” — designação comum a várias árvores do gênero Caryocar, da família das cariocaráceas, de boa madeira, folhas trifolioladas e drupas geralmente comestíveis. 5 A expressão “dentro dele” foi acrescentada posteriormente pelo autor em nota marginal. 6 Acréscimo marginal do autor: “pela sua verdadeira boca”. margem oriental, e bastantes cachoeiras naturais [que continuavam por uma e outra margem do rio, desde a boca até a povoação do Carmo, dali o recolhem alguns moradores desta vila, do lugar de Poiares, do Carvoeiro etc.]. Pelas 3 horas da madrugada do dia 11, segui viagem. Já então vi algumas praias que ainda não tinham ido ao fundo e, pelas duas da tarde, passei pela confluência do furo do Amajaú com o rio Branco. Pelas 4 horas da madrugada de 12, continuei rio acima e, pelas 9 horas da manhã, cheguei ao pesqueiro real da demarcação, situado na margem oriental. Constava de três palhoças na frente, bem sobre a borda da barreira, tinha a altura de três braças e meia e mais um palmo, e era composto de diversos filões de terra horizontais. O primeiro, de cima da barreira para baixo, era de terra preta; o segundo, de argila encarnada misturada com areia; o terceiro, de areia; o quarto, de tabatinga. Com a enchente do rio, quase monta a água acima da barreira. Tanto as coberturas das casas como as repartições interiores eram de palha. Entre a primeira palhoça, que tem seu tendal e serve de feitoria do peixe seco, e a terceira, que é o quartel dos índios empregados, está a que serve de residência ao administrador do pesqueiro, o cabo-de-esquadra Manoel Martins da Trindade. É ele e são três camaradas subordinados a ele. Na retaguarda das palhoças está um pequeno roçado que o administrador fez abrir para não ser a gente surpreendida das onças que perseguem os currais das tartarugas. No dito roçado, diz ele que nasce fertilissimamente tudo o que se dispõe: as abobras9 amarelas, que só uma vez plantou, são inextinguíveis. Vi muitos pés de guaraná, de cajueiros, um de anil, plantado há seis meses que tinha a altura de nove palmos, e o algodão diz que se dá bem, assim como a maniba, da qual tem a tirado10 grandíssimas raízes de todas as vezes que tem feito experiência11[, as terras firmes pela margem do rio, quando é das mais extensas, porque só há até quase a foz do rio Mereu[e]ni, e para dentro também as há, depois de passados alguns lagos antes deles]. Existiam cinco currais de tartarugas, três no porto e dous em cima da barreira por detrás das palhoças. Pescam-se as tartarugas nas duas praias de Cuaruanim, um dia de viagem do pesqueiro para cima e nas outras que, a pequena distância, se vão seguindo até perto da povoação Prospecto do Lugar do Carvoeiro, em outro tempo Aldeia do Araçari, situada na margem meridional do Rio Negro (Codina). do Carmo, como são a de Mamaripana, a de Madi, a de Cuiucu, a de Arauaná, a de Carimaê, a de Mautaumatá etc. Desde janeiro passado até hoje, 12 de maio, tem remetido para Barcelos mil, setecentas e sete tartarugas, não in- cluindo mais trinta e quatro que tem dado de socorro para as canoas régias. Quanto ao peixe seco que costuma salgar e beneficiar, é a piraniba, a pirarara, o pirarucu, o tambaqui, o surubim, a piranha-uassu, o jundiá, o jundiá-uassu, o pacomon-uassu e alguns peixes-boi(s). Incluindo o que tem dado de socorro para as canoas, tem feito no mesmo espaço de tempo cento e trinta e três arrobas e, fora destas, ficam dez na feitoria. A gente atual da obrigação do pesqueiro são vinte índios, dez homens e dez rapazes; possui dez igarités, incluída a maior; esta provida de puçás, anzóis sorteados, arpões para peixe e para tartaruga e a sua ferramenta constava de oito machados, quatro foices, quatro ichós12 tortas, uma de fuzil, quatro ferros de canoa, seis verrumas entre grandes e pequena, uma serra, duas limas, um martelo, um calefate,13 três armas de fogo por consertar... Saí do pesqueiro pela 1 hora da tarde e, pouco acima dele e sobre a mesma margem, ainda vi parte do roçado e duas palhoças das que ali fez o cabo-de-esquadra Miguel Arcanjo para no dito sítio aldear14 os índios descidos, 7 O restante deste parágrafo, daqui em diante, foi acrescentado marginalmente pelo autor. 8 Deve ser “Anajaú”, que significa rio da anajá, que é uma palmeira da região. 9 “Abobras” por “abóboras” é uma alteração comum no português. 10 “tem a tirado” por “tem tirado”. 11 Nota marginal: “, as terras firmes pela margem do rio, quando é das mais extensas, porque só há até quase a foz do rio Mereu[e]ni, e para dentro também as há, depois de passados alguns lagos antes deles”. 12 “ichós” ou “enxós” — instrumentos que consistem de uma chapa de metal cortante e um cabo curvo, usados especialmente em carpintaria e tanoaria para desbastar peças grossas de madeira. 13 “calefate” – instrumento que produz aquecimento. 14 No século XVIII, muitas palavras que hoje só se usam com ditongo, como aldeia, ceia, teia etc., ainda se usavam sem a semivogal “i”. Prospecto da nova Povoação de Santa Maria, situada na margem oriental do Rio Branco, na distância de 5 léguas da sua foz. 9 Prospecto da primeira serra que existe na margem oriental do Rio Maú, na distância de 8 léguas e 2 milhas da sua foz, e na de 25 e 2 milhas da Fortaleza de São Joaquim (Codina). Prospecto da nova povoação de Nossa Senhora da Conceição, situada na margem oriental do Rio Branco, na distância de 2 léguas da sua foz (Freire). Prospecto da 4ª Cachoeira Grande do Rio Maú, na distância de 17 léguas e meia da sua foz, e na distância de 34 e meia da Prospecto da grande Serra do Caraumaã, sobre a margem oriental do Rio Branco; na distância de 91 léguas da sua foz (Codina). Fortaleza de São Joaquim (Codina). 10 11 que estão incorporados com os da povoação do Carmo. Pelas 4, deixei na margem oriental a foz do rio Mereu[e]ni. Desde as 4 horas da madrugada do dia 13, naveguei, (e,) costeando a margem ocidental, sem novidade e, pelas 6 da tarde, aportei para pernoitar acima da praia de Mataumatá.
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