TELENOVELAS BRASILEIRAS Balanços E Perspectivas

TELENOVELAS BRASILEIRAS Balanços E Perspectivas

TELENOVELAS BRASILEIRAS: BALANÇOS E PERSPECTIVAS TELENOVELAS BRASILEIRAS balanços e perspectivas SILVIA HELENA SIMÕES BORELLI Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, Pesquisadora do Núcleo de Telenovelas da ECA-USP Resumo: O objetivo é refletir – elaborar um balanço, projetar perspectivas – sobre o lugar da telenovela na produção cultural contemporânea e no campo da reflexão acadêmica. A telenovela apresenta-se como um dos principais produtos da televisão brasileira e esta, por sua vez, como um dos mais significativos meios de co- municação, fundamental na consolidação do projeto de modernização no Brasil. Além de produto da indústria cultural, a telenovela – forma seriada, território de ficcionalidade – constitui-se em elemento de mediação entre produtores e cotidiano dos receptores. Palavras-chave: telenovela; produção televisual; territórios de ficcionalidade; recepção. epois de mais de uma década no envolvimento com rado 51 anos de história (1950-2001) e de a telenovela pesquisas sobre ficção seriada na TV,1 é possível constar de sua grade de programação, desde a origem – a D afirmar que a telenovela conquistou seu espaço no primeira delas, Sua vida me pertence, de Walter Foster, campo cultural e ganhou visibilidade no debate em torno da foi ao ar na extinta TV Tupi, em 1951 –, e permanecer, cultura brasileira. Em 1986, quando foi iniciado o projeto de até hoje, como uma de suas principais atrações, a acade- mapeamento da história e produção da telenovela no Brasil mia levou cerca de três décadas para começar a refletir (Ortiz, Borelli e Ramos, 1989), ainda não existiam muitas sobre o lugar ocupado pela telenovela no campo cultural pesquisas acadêmicas sobre o tema.2 Porém, naquele momen- brasileiro e na vida cotidiana dos receptores. to, já se considerava a importância da ficção televisiva seria- da – mais especialmente a telenovela, no caso brasileiro e TELENOVELA E CAMPO ACADÊMICO latino-americano – como um objeto privilegiado para a com- preensão da cultura contemporânea. Muito se debateu4 estes anos todos sobre os perigos de Ainda assim, a maior parte dos dados coletados em 1986 manipulação, evasão e alienação que emanariam dos en- constava de fontes primárias – evidenciam-se, entre elas, redos melodramáticos e alcançariam o público-alvo – pri- depoimentos e entrevistas3 com autores, diretores, atores meiro só as mulheres, depois toda a família –, de forma a e demais produtores culturais envolvidos no processo de transformá-lo num mero reduto de sonhos e lágrimas, va- construção da narrativa da telenovela – e de informações zio de vontades, pleno de ilusões. compiladas por agências de publicidade e propaganda, Esta tendência, sem dúvida hegemônica no campo da institutos de pesquisa de mercado e mídia impressa. Deve- sociologia da cultura e mesmo no de uma certa teoria da se ressaltar, ainda, que um dos elementos mais significa- comunicação com tendência mais crítica, atravessou os anos tivos na composição do protocolo metodológico desta 70 e parte dos 80 sem que se tivesse alterado, neste perío- pesquisa centrou-se na realização de uma etnografia de do e de forma significativa, um certo preconceito acadê- produção no interior das principais redes de televisão mico em relação à telenovela. Mesmo o aumento gradativo voltadas para a produção de telenovelas neste período: de pesquisas e pesquisadores preocupados com a temática Globo e Manchete. (Fadul, 1993) não conseguiu reverter tal estado da arte. O que se pode constatar, a partir dessas considerações Um dos maiores desafios das pesquisas sobre teleno- preliminares, é que, apesar de a televisão já ter comemo- vela corresponde ao confronto com os critérios que legi- 29 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001 timam e consagram os objetos dentro do campo cultural e e os meios de comunicação passaram a ser seus principais do debate acadêmico. Tais critérios concebiam – e ainda instrumentos de realização. concebem – as narrativas ficcionais televisivas apenas A televisão e as telenovelas, fundamentos de uma nova como produtos industriais, simples entretenimento, exte- ordem, aparecem como elementos capazes de ocasionar riores à produção artística e às tradições e distantes da desordens até então inconcebíveis: invadem lares; alteram esfera dos bens culturais. As críticas negativas foram vee- cotidianos; desenham novas imagens – seria possível uma mentes, até que a telenovela se incorporasse ao rol dos estética televisual? –; propõem comportamentos e conso- objetos de reflexão ou fosse considerada parte constitutiva lidam um padrão de narrativa considerado dissonante, tanto do campo cultural brasileiro e latino-americano. para os modelos clássicos e cultos quanto para as tradi- Com o passar dos anos, algumas pesquisas se dispuse- ções populares. ram a enfrentar o paradoxo que resulta de análises e inter- Do ponto de vista teórico, o que se pode observar nes- pretações sobre os variados e complexos produtos da in- te debate, hoje em dia, é a presença hegemônica da tradi- dústria cultural: se, por um lado, deve-se afirmar sua ção frankfurtiana para se pensar a cultura contemporânea. condição de “mercadorias” – mesmo que “impalpáveis”, Os parâmetros da Escola de Frankfurt começaram a ser como diria Morin (1984:14) – por outro, podem ser con- apropriados, no Brasil, no final dos anos 60, tanto por siderados “formas culturais” (Williams, 1977; 1992) ou intelectuais marxistas quanto por críticos radicais ao mar- “territórios” de ficcionalidade (Calvino, 1984:49-56) ca- xismo. Um dos trabalhos pioneiros sobre Benjamin e pazes de estabelecer profundas relações de mediação e Marcuse é de autoria de Merquior (1969), um “liberal” e empatia com os receptores. “impenitente adversário dos frankfurtianos” (Cohn, As razões que justificam a afirmação anteriormente 1986:29). No mesmo ano, entretanto, a editora Civiliza- mencionada, sobre a existência de um certo preconceito ção Brasileira publicou, numa tradução pioneira de José acadêmico diante do fenômeno das telenovelas, residem Lino Grünnewald, a hoje famosa reflexão de Benjamin no fato de que, neste debate, cultura sempre foi conside- (1969) sobre obra de arte e reprodutibilidade técnica. rada sinônimo de culto, erudito. Ainda que se tenha pre- Em seguida, nos anos 70 e 80, o pensamento frankfurtiano servado, no contexto acadêmico, um espaço para a aná- construiu uma trajetória bastante visível e se consolidou lise de manifestações da cultura popular – compreendida no interior de um debate marxista, já significativo nas como tradições, raízes –, o popular e o erudito ocupa- décadas anteriores, mas apropriado e adaptado, nesta épo- ram lugares distintos e excludentes no cenário da cultu- ca, com o objetivo de interpretar, criticamente, o modelo ra brasileira: o culto restou consagrado aos museus, aca- de modernização e os processos de industrialização da demias, institutos de arte, grupos literários, enquanto o cultura no Brasil. São vários os intelectuais que escreve- popular – tratado, muitas vezes, pelo universo culto, como ram sobre Benjamin e Adorno, ou traduziram seus arti- algo necessário a “que se deva conceder” (Matos, 1993) gos,5 passando a desenvolver uma reflexão baseada nos – ficou reservado às etnias, comunidades, “classes su- princípios da teoria crítica (Cohn, 1986), abrindo brechas balternas” (Gramsci, 1986) ou ao cotidiano vivido pelos para problematizar o lugar da cultura no interior do deba- trabalhadores. te marxista – determinação/dominância, superestrutura/ Os contornos desta reflexão emaranharam-se, e muito, infra-estrutura – e sedimentando uma tradição de pensar com a consolidação histórica da cultura de massa e a am- as mídias – com uma melhor precisão do conceito pliação dos espaços das mídias em todo o mundo. No frankfurtiano: pensar a indústria cultural – sob a ótica do Brasil, isso ocorre a partir de meados dos anos 60, quan- que se denominou “crítica ideológica dos meios” enten- do se observa uma cisão que segmentou o campo cultural didos, estes últimos, como representantes de uma fase em três fragmentos polarizados e excludentes: o culto, o complexa de modernização do “capitalismo administrado”. de massa e o popular. Por questões que hoje parecem ób- Esta abordagem atravessou as últimas décadas, man- vias, o massivo foi responsabilizado, ao mesmo tempo, tendo-se ativa e hegemônica, até hoje. Todavia, o que se pela vulgarização do erudito e pela degradação do popu- pode observar nos últimos anos é a presença de um certo lar. Para os críticos deste projeto de modernidade, a “cul- deslocamento do eixo dessa hegemonia frankfurtiana – ou tura de massa” (Morin, 1984) – que não deve ser confun- melhor esclarecendo, hegemonia do pensamento adorniano dida com a noção de “indústria cultural” (Adorno, 1986) – em direção a uma reflexão que, por um lado, retoma o – tornou-se a razão mesma do processo de modernização diálogo com a tradição inglesa do cultural studies – 30 TELENOVELAS BRASILEIRAS: BALANÇOS E PERSPECTIVAS Hoggart (1973), Thompson (1963) e, principalmente, É fundamental esclarecer que as abordagens, perspec- Williams (1958, 1961 e 1977) e Hall (1975) – e, por ou- tivas teóricas e autores até então referidos não devem ser tro, recoloca no cenário das tendências o pensamento de encarados de maneira excludente, mas sim de forma a Gramsci (1986 e 1999), também presente entre os mar- permitir a composição de uma rica teia de conhecimen- xistas brasileiros, desde o final dos anos 60. Entretanto, a tos, complexamente relacionados. perspectiva

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