Psicologia USP http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420160122 358 Brincar na perspectiva psicoetológica: implicações para pesquisa e prática Emma Otta* Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Experimental. São Paulo, SP, Brasil Resumo: Este ensaio trata do brincar a partir da perspectiva psicoetológica e examina implicações para a pesquisa e a prática. Ao longo das últimas décadas, crianças vêm ganhando oportunidades de escolarização e atividades dirigidas por adultos, mas perdendo oportunidades de brincadeira livre autogerenciada. Isto é preocupante, considerando as indicações de modelos animais de que a brincadeira social autogerenciada é importante para o desenvolvimento do cérebro social e da capacidade de autorregulação de emoções. Este estudo representa um convite-justificativa para que as crianças recuperem oportunidades de brincadeira natural das quais vêm sendo privadas. Quanto mais conhecermos sobre o brincar, mais adequados seremos nas oportunidades que poderemos oferecer a elas. Precisamos de mais pesquisa sobre este tema na academia, num ambiente intelectual que facilite a colaboração entre etólogos, psicólogos, educadores e neurocientistas, promovendo interação bidirecional entre teoria e prática. Palavras-chave: brincar, cérebro social, desenvolvimento, emoções, natureza. Introdução A razão da etóloga, fascinada pela observação do comportamento Este ensaio trata do brincar a partir da perspectiva psicoetológica e examina as implicações desta Por que convidar a estudar o comportamento de abordagem para pesquisa e prática relativas a um tema brincar dos animais? A resposta mais simples que poderia que considero negligenciado na área acadêmica. O termo dar é o fascínio pela observação do comportamento “abordagem psicoetológica” foi cunhado por Walter espontâneo, livre de limites artificiais. É divertido observar Hugo de Andrade Cunha, pioneiro da etologia no Brasil e pensar sobre o comportamento. É instigante ler relatos de (Cunha, 1965, 2004) e difundido pelos que seguiram observações naturalísticas que muitas vezes prosseguem sua proposta inspiradora (Arcieri, 1995; Ardans, 1996; durante vários anos. Escolhi dois exemplos para convidar Ades, 1998; Lencastre, 2010; Lucena & Pedrosa, os leitores a pensar no assunto com base em relatos de 2014). Lencastre (2010) destaca que a psicoetologia observações feitas por etólogos: brincadeira de galho e consiste na busca de conciliação do estudo biológico do brincadeira com pedregulhos. comportamento com a atividade psicológica. Ades (1986, O primeiro exemplo foi extraído de um artigo de 1987) via a psicoetologia como abordagem integrada Kahlenberg e Wrangham (2010), tomando como ponto aos processos comportamentais básicos, aproximando de partida a questão: “chimpanzés usam galhos como a etologia (e a ecologia comportamental) da psicologia se fossem bonecas?”. Neste estudo, ao longo de catorze experimental, que se desenvolveram historicamente por anos de observação do comportamento de chimpanzés no caminhos apartados, tendo essa abordagem os seguintes Parque Nacional de Kibale, em Uganda, foram reunidos pontos programáticos: escolha de comportamentos mais de cem episódios de carregar galhos como se fossem ecologicamente relevantes (sistemas funcionais) como “bonecas”. É interessante notar que este comportamento foco inicial de análise; aprendizagem como fenômeno não foi observado em outras comunidades, levantando adaptativo a ocorrer dentro de sistemas funcionais; a possibilidade que os chimpanzés estejam copiando estudo das diferenças interespecíficas dentro de um uma tradição comportamental local. Alguns episódios quadro ecológico de referência; e papel complementar eram breves e duravam apenas alguns minutos, mas de estudos de campo e de laboratório numa heurística outros eram longos, chegavam a durar mais de uma hora. recíproca. Fundamentada nesta abordagem, concordando Os pedaços de galhos escolhidos para carregar eram com Ades (1986, 1987) sobre suas vantagens enquanto diferentes – maiores e mais largos – que os pedaços geradora de pesquisa e fonte de subsídios para uma estreitos e finos usados como instrumentos, em contexto teoria geral do comportamento animal, e inspirada de forrageamento, na pescaria de térmitas. Observações no manifesto da etologia brasileira (Cunha, 1965), qualitativas a ser apresentadas: alguns juvenis carregavam apresento um convite-justificativa para o estudo do galhos para o ninho e dormiam com eles e, numa ocasião, comportamento de brincar. foi observada construção de um ninho separado para o galho. Kakama (8 anos), deslocando-se com sua mãe grávida, pegou um pedaço de galho e o carregou por * Endereço para correspondência: [email protected] horas, tratando-o como se fosse um bebê (fez um ninho 2017 I volume 28 I número 3 I 358-367 358 Brincar na perspectiva psicoetológica: implicações para pesquisa e prática 359 e colocou o galho nele). Quatro meses depois, dois Em relação ao comportamento animal, constata-se assistentes de pesquisa, que não conheciam o incidente, que livros-texto como o clássico Animal Behavior de observaram comportamento semelhante do mesmo John Alcock (2013), que se encontra em sua décima indivíduo, que coletou outro pedaço de galho, que foi edição, não incluem capítulos sobre brincadeira, embora chamado de o “bebê de brinquedo de Kakama”. Em outra discorram sobre desenvolvimento. Uma razão para a oportunidade, a chimpanzé foi observada carregando um relativa negligência da brincadeira na academia é a galho, inclusive batendo nele como se estivesse “batendo aparente falta de seriedade do comportamento, nas suas nas costas de um bebê”, enquanto sua mãe carregava seu manifestações proximais ou na sua função. Talvez os irmão doente. Os pesquisadores observaram também cientistas, incluindo etólogos, psicólogos evolucionistas filhotes brincando de uma versão de “avião”, deitados e neurocientistas, vejam a brincadeira como assunto não de costas com seu galho, balançando-o com os braços sério e, portanto, não importante para estudo. levantados. Mães fazem esta brincadeira com filhotes. O renomado neurocientista Jaak Panksepp, O segundo exemplo foi extraído de um conjunto de que cunhou o termo “neurociência afetiva” em 1992, artigos de Michael Huffman (Huffman, 1984; Huffman comenta a reação da audiência a uma apresentação do & Quiatt, 1986; Nahallage & Huffman, 2007, 2012) sobre seu trabalho sobre brincadeira em ratos e vocalizações brincadeira com pedregulhos em quatro grupos de Macaca ultrassônicas exibidas em contexto lúdico (Panksepp, fuscata em cativeiro e em onze grupos provisionados Siviy, & Normansell, 1985; Panksepp & Burgdorf, 2003; em vida livre. Essa forma de brincadeira consiste em Panksepp, 2007b): manipulação repetitiva de pedregulhos: espalhar e reunir, rolar de uma mão para outra, bater um pedregulho no Quando apresentei pela primeira vez nosso trabalho outro produzindo som, bater contra o substrato, esfregar, sobre “riso” em ratos . num simpósio do National jogar, colocar na água, lavar na água, envolver com folhas, Institute of Mental Health (NIMH) em 1998, . não catar outro indivíduo com pedregulho, correr e atirar. houve uma única pergunta de uma gélida audiência de Alguns episódios eram breves (menos de um minuto), mas neurobehavioristas. Um dos organizadores do evento outros eram longos (vinte minutos). O comportamento foi me puxou para um lado depois da minha sessão e, em observado pela primeira vez em Arashiyama, Japão, como síntese, disse “Essa pesquisa é maravilhosa. Poderia inovação de uma fêmea juvenil, que então se espalhou fornecer um modelo simplificado para emoções para outros jovens e filhotes do grupo. A difusão do positivas, assim como o condicionamento clássico de comportamento foi observada ao longo de 25 anos, à imobilização e intensificação de sobressalto é usado medida que os indivíduos se tornaram adultos e tiveram para estudar medo… mas, por favor, não chame de seus próprios filhotes. riso.” Repliquei, “Sim, eu poderia fazer isto, mas então Estes são apenas dois exemplos para introduzir estaria mentindo, porque acredito que esta resposta o assunto e convidar os leitores a refletir sobre o pode ser a fonte ancestral do riso infantil.” É uma comportamento de brincar dos animais, sobre porque pena quando cientistas dedicados são desencorajados a estudá-lo e sobre o possível valor de uma abordagem considerar as dimensões afetivas de funções cerebrais comparativa. no seu estudo do comportamento animal e são fortemente encorajados a restringir suas discussões a Ciência “Dura” versus Ciência “Leve”: mera descrições comportamentais e terminologias da Desqualificação do brincar como um tema teoria de aprendizagem. (Panksepp, 2005, p. 67) de pesquisa pelo homem “sério” Entrei em contato em 1998, e passei a rever e Embora etólogos estudem o brincar e suas acompanhar deste então (por exemplo, Panksepp, conclusões sejam sistematizadas em vários livros (Bateson 1992, 1998; Panksepp & Biven, 2012) o trabalho de & Martin, 2013; Bekoff & Byers, 1998; Burghardt, 2005; Jaak Panksepp, professor emérito do Departamento Pellegrini & Smith, 2005) e artigos de revisão (Burghardt, de Psicologia da Bowling Green State University e da 2010; Graham & Burghardt, 2010), comparativamente Washington State University. Li com muito interesse constata-se negligência deste tema de estudo em relação o livro Affective Neuroscience: The Foundations of a outros em obras de referência na área. Apesar da Human and Animal Emotions, que usamos na disciplina universalidade do brincar nos
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