A rivalidade Argentina-Brasil-Uruguai no futebol Rafael Bayce Arte sobre foto de Felipe Quintanilha - Flickr BY-NC CC 2.0 Tradução de Júlio Pimentel Pinto resumo abstract O objetivo deste ensaio é contribuir This essay aims to contribute to para as discussões acerca das origens the discussions on the origins and e características das rivalidades characteristics of the soccer-related futebolísticas entre as três seleções mais rivalries between the three most traditional tradicionais da América do Sul: Uruguai, countries in South America: Uruguay, Brazil Brasil e Argentina. Além de estabelecer and Argentina. Besides establishing the as diferenciações entre tais rivalidades, o distinctive features of each rivalry, this work trabalho se propõe estabelecer critérios proposes to set criteria for quantifying and para uma proposta de quantificação assessing the performance of the teams e de avaliação do desempenho das and clubs from those countries. seleções e clubes desses países. Keywords: soccer; rival nations; Uruguay, Palavras-chave: futebol; rivalidades na- Brazil; Argentina. cionais; Uruguai; Brasil; Argentina. O PANORAMA ECONÔMICO, do Rio da Prata, com capital em Buenos CULTURAL E SOCIOPOLÍTICO Aires. Mas a distância de Buenos Aires a Montevidéu e arredores, a melhor condi- ção natural do porto de Montevidéu para a m linhas gerais, podemos dizer recepção de barcos de maior calado e sua que a rivalidade Argentina- maior proximidade com o Oceano Atlântico, -Uruguai no futebol é pro- facilitando a entrada e saída desses barcos, duto de uma rivalidade entre geraram uma “luta de portos” estimulada pela os dois países, que nasce no Espanha, que precisava controlar mais de princípio da conquista ibérica perto as tentativas portuguesas de expansão da América do Sul; as outras em Maldonado e Colônia, pontos distantes duas rivalidades (Argentina- entre si, dentro da mesma Banda Oriental. -Brasil e Brasil-Uruguai) são, Essa importância portuária e militar per- diferentemente, fruto de uma mitiu que o governo de Montevidéu, política disputa esportiva tradicional e administrativamente subordinado ao de que se tornou um elemento Buenos Aires, obtivesse alguns direitos de inevitável da épica identitária autonomia, entre eles um assento no Conse- nacionalista desses países. lho das Índias – que governava as “Índias”, A rivalidade futebolística Argentina-Uru- território americano recém-conquistado pela guai nasce da rivalidade econômica, política Espanha. Essas rivalidades econômicas e Ee sociocultural oriunda da conquista espa- políticas alastraram-se por diversas instâncias nhola. A “Banda Oriental”, como era cha- mado o território do lado oriental do Rio Este texto foi apresentado por skype no 2o Simpósio In- Uruguai, e que veio a constituir, aproxima- ternacional de Estudos sobre Futebol, em 16/5 de 2010, no Auditório Armando Nogueira, no Museu do Futebol, damente, o Uruguai independente, derivava em São Paulo. do território dominado por Montevidéu, porto fortificado dependente da cidade-porto Bue- nos Aires tanto durante o período em que ambos pertenceram ao vice-reinado do Peru RAFAEL BAYCE é professor da Universidad de la quanto depois da constituição do vice-reinado República (Uruguai). Revista USP • São Paulo • n. 117 • p. 53-67 • abril/maio/junho 2018 55 dossiê copas do mundo e níveis, até se consolidarem social e cultural- A “luta de portos” prossegue, e é ampliada mente como uma rivalidade entre Montevidéu por outros conflitos econômicos e políticos e Buenos Aires, depois extensível, de alguma que se arrastam até hoje, como os situados maneira, aos uruguaios e argentinos em geral, na ilha rio-platense de Martín García. embora boa parte dos uruguaios reconheça ter Quando começam os confrontos espor- diferenças socioculturais, sobretudo, com os tivos, as diferenças econômicas, políticas, portenhos (da capital federal) e não tanto com sociais e culturais transferem-se, com faci- o restante dos argentinos. Mas, na medida lidade, do passado histórico para os cam- em que os confrontos, desportivos ou não, pos esportivos e para seus espectadores nas se dão e são protagonizados por argentinos, tribunas. Apesar disso, o cavalheirismo da e não só por portenhos, todos os argentinos época (especialmente de alguns jogadores e acabam afetados pelas rivalidades que ini- das equipes dos dois lados), a extração socio- cialmente envolviam apenas os portenhos; o cultural de alguns de seus atores nas duas mesmo ocorre com os montevideanos e os partes e a existência de numerosas famílias demais uruguaios. com integrantes em ambos os países impe- Tanto é assim que o herói nacional uru- diram a explosão precoce dessas rivalidades guaio, general José Gervasio Artigas, aliou-se históricas nos campos futebolísticos. Basta com as províncias do litoral leste argentino lembrar que o primeiro triunfo internacio- contra o centralismo bonaerense, e não acei- nal uruguaio como visitante data de 1903, tava que o conjunto dos territórios argentinos quando o Club Nacional de Football vence, e uruguaios – que na década de 1810 pla- em Buenos Aires, a seleção argentina. Depois nejava reunir-se sob o nome de Províncias do encontro, todos os jogadores e seus acom- Unidas do Rio da Prata – tivesse Buenos panhantes foram convidados para uma festa Aires como sede. Essa rivalidade colonial na casa do goleador argentino Watson Hut- foi alimentada por muitos outros motivos: o ton, onde comemoraram amistosamente. Já vice-rei e suas decisões enfrentavam a resis- em 1924, após a final Uruguai-Argentina – 0 tência de Montevidéu, pois representavam a a 0, mas que deu o campeonato ao Uruguai invasão napoleônica na Espanha, enquanto –, a atuação do goleiro argentino Tesorieri que Montevidéu era leal a Fernando VII, foi tão extraordinária que o público uruguaio soberano espanhol derrotado, mas legítimo. o carregou nos ombros. Do mesmo modo, a incipiente Revolu- Mas a rivalidade histórica mantinha-se ção Independentista bonaerense, de maio de e se aprofundava, ao mesmo tempo que o 1810, não foi inicialmente reconhecida em esporte massificava-se e passava a encarnar, Montevidéu porque representava uma ero- cada vez mais, as identidades e autoestimas são na soberania de Fernando VII; Artigas nacionais. Na dupla final olímpica de 1928, aderiu a ela tardiamente. Mais à frente, no em Amsterdã, apesar do que estava em jogo, decorrer do século XIX, a cruenta divisão, com uma primeira partida com prorrogação na Argentina, entre “unitários” e “federais” empatada e a segunda vencida pelo Uru- originou grupos uruguaios que se enfren- guai, não houve violência e os jogadores e taram, em parte, em razão da sua diversa comentaristas ressaltavam tanto a paridade adesão a essa dicotomia ideológico-política. dos atores quanto a lógica da diferença que 56 Revista USP • São Paulo • n. 117 • p. 53-67 • abril/maio/junho 2018 o Uruguai havia obtido. O capitão uruguaio portivas anteriores, uma vez que pertenciam Nasazzi afirmava que havia sido um triunfo a impérios coloniais diferentes (Portugal e do futebol rio-platense; o capitão argentino Espanha), sem que houvesse maior peleja Monti reconhecia que o melhor havia ven- direta no período colonial pré-independente. cido; os europeus afirmavam que fora a Tampouco houve disputas com o Uruguai, melhor partida que haviam visto na sua vida. dada a brevidade do domínio que o Brasil, Mas a final da primeira Copa do Mundo, após tornar-se independente, exerceu sobre em 1930, em Montevidéu, transformou a o Uruguai, substituindo a anterior hegemo- pacífica e cavalheiresca rivalidade em algo nia portuguesa. diferente, que, no futuro, afloraria cada vez A rivalidade esportiva surge quando o mais. O Uruguai fez o primeiro gol da final, Brasil assume a terceira posição na tradicio- a Argentina respondeu com dois e o primeiro nal hegemonia futebolística rio-platense ou tempo terminou em 2 a 1 para os alviceles- sul-americana, ultrapassando Chile e Para- tes. No segundo tempo, o Uruguai fez três guai, que antes mantinham essa condição. gols e ganhou por 4 a 2. Houve reclamações Pense-se no longo impacto provocado pelo de impedimento no segundo gol argentino; fato de a primeira partida Argentina-Brasil acusações contra Héctor Castro por agredir ter sido vencida pelo Brasil por 1 a 0, e o goleiro argentino; rumores de que esse em Buenos Aires; pior ainda: os brasilei- goleiro, por baixo do uniforme que usava, ros habituaram-se a jogar de forma hábil e trazia outro, com a inscrição “Campeões do “bem”, rivalizando com os rio-platenses em Mundo”; o delegado argentino fez um escân- habilidade técnica. Suas primeiras excursões dalo e a associação argentina rompeu rela- europeias haviam provocado o mesmo tipo de ções com a uruguaia; uma multidão, incitada elogios das rio-platenses; Friedenreich, seu por uma imprensa agressiva como nunca, centroavante astro, foi chamado de “Príncipe apedrejou o Consulado Uruguaio em Buenos do Futebol” nas visitas à Europa. A ausência Aires; muitas famílias argentino-uruguaias rio-platense nos mundiais de 1934 e 1938 romperam relações (a da minha avó materna, permitiu ao Brasil melhorar sua imagem e os Ramírez, foi uma delas). Iniciava-se a era rivalizar mais com os antigos mestres. Na hostil, no interior de uma rivalidade bicen- década de 40, o Brasil os alcança: jogado- tenária que ainda não chegara ao ponto da res brasileiros povoam as equipes uruguaias violência verbal e mesmo física dentro e fora desde a década de 30, o Vasco da Gama dos campos e assim prosseguirá. ganha, em 1949, a primeira Copa dos Cam- Diferentemente, as rivalidades
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