Redalyc.O Memorial Dos Lanceiros Negros: Disputas Simbólicas

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Sociedade e Cultura ISSN: 1415-8566 [email protected] Universidade Federal de Goiás Brasil Comin De Carvalho, Ana Paula O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas, configurações de identidades e relações interétnicas no Sul do Brasil Sociedade e Cultura, vol. 8, núm. 2, julho-dezembro, 2005, pp. 143-152 Universidade Federal de Goiás Goiania, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70380211 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas, configurações de identidades e relações interétnicas no Sul do Brasil ANA PAULA COMIN DE CARVALHO* Resumo: Tomando como universo empírico um evento em prol da construção de um memorial em homenagem aos lanceiros negros no município de Pinheiro Machado (RS), atento para as disputas simbólicas que se travam em torno dessas figuras. Procuro demonstrar que as diferentes apropriações de uma experiência histórica comum – o Massacre de Porongos – têm conexões com a configuração de identidades étnicas e regionais e com as relações entre os diversos grupos sociais que compõem o estado do Rio Grande do Sul. Palavras-chave: lanceiros negros; identidade étnica; identidade regional. O objetivo do presente artigo é, com base setores se apossam de uma experiência histórica na análise de um evento em prol da construção comum de forma diferenciada. Parte-se do de um memorial em homenagem aos lanceiros pressuposto que essas apropriações contem- negros no município de Pinheiro Machado (RS),1 porâneas de um episódio passado estão intima- fazer algumas considerações sobre as disputas mente relacionadas com a configuração de simbólicas que se travam em torno dessas identidades étnicas e regionais e com as relações figuras. Trata-se de compreender como diversos entre os diferentes grupos formadores do Rio Grande do Sul. Antes disso, contudo, entendo *Doutoranda em Antropologia Social pela UFRGS. ser necessário familiarizar o leitor com o con- 1. Pinheiro Machado é um dos municípios mais antigos do texto com base na qual emerge essa questão. Rio Grande do Sul. Até 1830, a sua área pertencia a Rio Os gaúchos compartilham experiências Grande. Depois passou a integrar a cidade de Piratini, desmembrando-se em 24 de fevereiro de 1879, sob a deno- históricas marcantes que são constitutivas de minação de Nossa Senhora da Luz das Cacimbinhas. A po- seus modos de imaginação, cognição e ação, voação desse município, segundo registros, iniciou-se pelo brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, por volta de 1765. Os bem como de sua identidade regional (Grimson, primeiros habitantes foram os açorianos Thomaz Antônio 2003). Os conflitos bélicos nos quais a região e de Oliveira e José Dutra de Andrade, que receberam sesmarias seus habitantes estiveram envolvidos são even- na Coxilha do Velleda, em 1790. Segundo a lenda, Dutra de Andrade teria perdido a visão e feito uma promessa. Se ele tos que são constantemente evocados para falar a recuperasse ao lavar os olhos nas águas das cacimbinhas, do espírito livre e combativo do povo do Rio mandaria construir uma capela em honra de Nossa Senhora da Luz. O milagre teria ocorrido. Depois da capela, foi Grande do Sul. Dentre eles, a Revolução Farrou- criado um curato em 1851. Em 1857, foi elevada a fregue- pilha2 é, com toda a certeza, o mais lembrado. sia e em 1878 ocorreu a emancipação. O município de Ela é representada pelos movimentos regiona- Cacimbinhas teve seu nome mudado para Pinheiro Macha- do no governo do intendente provisório Ney Lima Costa, quando o senador José Gomes Pinheiro Machado foi assas- 2. Segundo Flores, “a Revolução Farroupilha faz parte dos sinado no Rio de Janeiro, por Mânsio de Paiva, que era um movimentos liberais que abalaram o Império do Brasil no morador da região de Cacimbinhas. A mudança de nome período regencial, quando explodiram dissensões políticas não foi aceita pela população, que se rebelou contra o entre os liberais federalistas e os conservadores unitários intendente, forçando-o a deixar a cidade. nas províncias do Ceará (1831-1832), Pernambuco (1831- 143 CARVALHO, ANA PAULA COMIN DE. O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas... listas como um momento marcante de nossa Apesar de omitidos pela maior parte da história, um episódio de bravura que resultou em historiografia tradicional, os negros desempe- uma separação temporária do RS do restante nharam papel fundamental para as forças do Brasil. Essa guerra que durou dez anos é rebeldes farroupilhas durante o conflito com o relacionada com a imagem do gaúcho como Império. Estima-se que eles tenham, durante guerreiro valente e heróico que tem nesse essa revolução, composto de um terço à metade conflito o pano de fundo para as suas façanhas. do exército rebelde (Leitman, 1997, p. 61-78). Dessa forma, configura-se como uma referência Eles foram integrados às fileiras farroupilhas em para a exaltação dessa figura, ou seja, a menção duas divisões, uma de cavalaria e outra de aos heróis farroupilhas se insere na lógica de infantaria, criadas respectivamente em 12 de construção desse tipo social a ser cultuado setembro de 1836 e em 31 de agosto de 1838, (Brum, 2004). Além disso, é em torno desse denominadas de Corpos de Lanceiros Negros, episódio que se estabelece simbolicamente a sendo compostas por negros livres e escravos relação do gaúcho com o restante do país, seja libertados pela República sob a promessa de para afirmar o seu caráter autônomo, seja para lutarem nas fileiras de seu exército (Carrion, evidenciar que ele é brasileiro por opção 2003, p. 6-7). Antes mesmo da criação desses (Barcellos, 1997; Oliven, 1986 e 1990) Todos corpos, os negros já haviam desempenhado os anos, em vários municípios do estado, são destacado papel em conflitos como a tomada realizados cerimônias, desfiles, acampamentos de Porto Alegre, em setembro de 1835, e de e comemorações em tributo à memória dessa Pelotas, em abril do ano seguinte. Negros livres guerra.3 Esses eventos são promovidos por e alforriados, juntamente com índios, mestiços prefeituras, governo do estado e pelos movimen- e escravos fugidos do Uruguai contribuíram com tos regionalistas. a causa farroupilha não somente como soldados, A conformação da imagem do gaúcho mas também trabalhando como tropeiros, men- sublinha a presença luso-brasileira no Rio Grande sageiros, campeiros, na fabricação de pólvora e do Sul e o valor da imigração européia e simul- nas plantações de fumo e erva-mate cultivadas taneamente omite a presença do negro (Bar- pelos rebeldes (Leitman, 1997, p. 69, nota 28). cellos, 1996). Como observa Maciel (1994), a Na madrugada de 14 de novembro de 1844, construção da nossa identidade regional passa no Cerro de Porongos, então município de por cima das mais diversas clivagens de ordem Piratini, atualmente pertencente à cidade de social, econômica, étnica e cultural, operando Pinheiro Machado, ao sul do estado do Rio com a idéia da existência de uma homoge- Grande do Sul, parte de um dos corpos de neidade. Ainda que se distinga da configuração lanceiros negros foi dizimada pelas tropas do povo brasileiro, essa “fábula regional” não imperiais. Esse episódio recebeu diversas deno- prescinde da ideologia da mestiçagem nas situa- minações: “Surpresa”, “Batalha”, “Massacre” ções em que se torna impossível ignorar a ou, ainda, “Traição de Porongos”. A morte dos presença dos negros na região. A elaboração guerreiros negros nesse evento gerou uma do imaginário gaúcho sobre si mesmo exclui o acalorada controvérsia entre os historiadores e negro dos estudos históricos e da própria socie- estudiosos que se debruçaram sobre o tema da dade (Barcellos, 1996). Revolução Farroupilha que tem continuidade até os dias de hoje. 1835), Minas Gerais (1833-1835), Grão-Pará (1835-1840), Um primeiro grupo defende a tese de que Bahia (1837-1838), Maranhão (1838-1841) e Rio Grande do Sul (1835-1845)” (2004, p. 25). É chamada de revolu- o comandante do destacamento de negros em ção porque implicou a mudança de governo com a institui- questão, o general farroupilha David Canabarro, ção do sistema republicano, mas, de acordo com o autor, teria desarmado e separado os lanceiros do trata-se de uma guerra civil entre aqueles que aderiram ao movimento e os que não o fizeram. restante das tropas acampadas nas imediações 3. Como observa Maciel (1999), as representações associ- do Cerro de Porongos para que fossem aniqui- adas ao gaúcho construídas pelo tradicionalismo foram lados pelo exército imperial sem oferecer gradativamente adotadas pelo poder público, estabelecen- do-se como “oficiais”. Uma análise mais aprofundada desse resistência. Ele teria feito um acordo com o líder processo pode ser encontrada em Oliven (1991). imperial Barão de Caxias objetivando livrar-se 144 SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 143-152 dos soldados negros para facilitar a assinatura administrativos (federal, estadual e municipal) do tratado de paz que vinha sendo negociado. para que ele promovesse políticas públicas em O Império do Brasil mostrava-se contrário à relação ao tema. Desde 2003, está em anda- idéia de premiar com liberdade os escravos mento o processo de constituição de um memo- insurretos. Além disso, parcelas da elite gaúcha rial aos lanceiros negros em área do Cerro de temiam a possibilidade de que esses negros Porongos promovido pela Prefeitura Municipal politizados e militarizados pudessem se somar a de Pinheiro Machado, em parceria com o gover- outros em algum levante contra a ordem vigente. no estadual e contando com o apoio da Fundação O indício que corrobora essa tese é a existência Cultural Palmares, ligada ao Ministério da de uma carta remetida pelo Barão de Caxias Cultura. Embora o referido memorial venha a para o coronel Francisco Pedro de Abreu, ser edificado no município de Pinheiro Machado, comandante da força imperial que atacou os esse fato mobiliza pessoas de outras cidades do lanceiros em Porongos.

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