A música caipira Há quem diga não gostar da música caipira. Não se dis- cute; respeita-se a opinião, desde que não se estriba no pedantismo ou no preconceito, o que desapeia qualquer argumento. Há os que implicam com o modo de falar do caipira, considerado sinônimo de ignorância. “Faltou-lhes es­ cola”, dizem. O “caipirês” não repre­ senta uma maneira er­ rada de falar o português. Shutterstock "O ‘CAIPIRÊS’ NÃO REPRESENTA UMA MANEIRA ERRADA DE FALAR O PORTUGUÊS. CONSTITUI-SE NUM DIALETO DE RAÍZES ANTIGAS. PORTANTO, O CAIPIRA NÃO FALA ERRADO; ELE FALA UM DIALETO, A música caipira UMA LEGÍTIMA VARIANTE DA LÍNGUA PORTUGUESA." Constitui-se num dialeto de raízes antigas. Portanto, o tes, voltados para o cotidiano do caboclo, para a vida na caipira não fala errado; ele fala um dialeto, uma legíti­ roça, com suas alegrias e agruras. ma variante da língua portuguesa. Tudo quase terminou A cultura caipira motivou escritores como Guimarães quando o rei de Portugal proibiu o uso da língua geral na Rosa e compositores como Villa-Lobos. Sem ela, teriam Colônia. Nas casas, nas ruas, em qualquer lugar, falava­ precisado de outra fonte de inspiração para construir -se o tupi-guarani adaptado ao português, ou vice-versa, suas obras monumentais. façanha desenvolvida pelo padre Anchieta. Assim nas­ Foi inevitável que, com a crescente urbanização, a ceu o nheengatu, a língua brasílica, que se espraiou música sertaneja, dita de raiz, sofresse influências. Há como as ondas do mar de Bertioga e lá foi ela, falada por quem diga que ela foi descaracterizada, mas outros opi­ todos, desde o litoral de Santa Catarina até o Pará. Ela nam que se deu um enriquecimento. A viola virou vio­ permitia que portugueses e indígenas se entendessem, lão, muitas vezes elétrico; e outros instrumentos encon­ assim como, entre si, indígenas de falares diferentes. Foi traram lugar: o acordeão, a flauta, a harpa paraguaia etc. a língua predominante até o século XVIII. Nos dias que A sonoridade tornou-se mais rica e as letras mais sofisti­ correm, sobrevive em alguns pontos da fronteira com o cadas, ultrapassando o pequenino universo do dia a dia Paraguai e na Amazônia. na roça. Os novos compositores, de origem rural mas de No nheengatu existem as cinco vogais na forma cur­ formação urbana, encontraram enorme receptividade. ta e outras quatro na forma longa (aa,ee,ii,uu). Entre as Não sejam eles confundidos com aqueles que exploram consoantes não existem F, J, L, Q, V, W e Z. Sob essa uma nova vertente, conhecida como sertanejo românti­ influência, entre outras peculiaridades, os caipiras dizem co e, mais recentemente, como sertanejo universitário. muié, zóio, orêia, paioça. O infinitivo também não en­ São muitos os que inovaram a música caipira man­ contra lugar, porisso o falar matá, corrê, comê, sempre tendo sua tradição. Ocorrem, de imediato, os nomes de com o acento tônico na última sílaba. Rolando Boldrin, Luiz Carlos Paraná, Almir Sater e Re­ Além do dialeto, vem também dos tempos coloniais nato Teixeira. Paulo Vanzolini e Ivan Lins, compositores o emprego da viola, trazida de Portugal. É o instrumen­ inegavelmente urbanos, também deram sua notável to tradicional no acompanhamento das canções, o que contribuição. explica a expressão moda de viola, sinônimo de música Se as letras das músicas sertanejas são quase sem­ caipira. Não por outra razão se diz que “o som da viola pre variações em torno dos mesmos temas, nem por desponta e comparece o cantador”. isso elas se repetem. Os exemplos dessa poesia sim­ O berço da cultura caipira e onde ela fincou pé é a ples, despojada de recursos literários, porém saborosa, vasta região compreendida pelo Sudeste e Centro-Oes­ são inúmeros. te do Brasil e Paraná. A origem estilística da música ser­ A nostalgia que dói é o tema de Mágoa do Boiadeiro, taneja procede do cururu, da embolada, do fandango, de Índio Vago e Nonô Basílio: do cateretê e da toada. Saudade louca de ouvir o som manhoso Além da melodia simples, com a viola geralmente De um berrante preguiçoso afinada em Mi, as letras passeiam por temas recorren­ Nos confins do meu sertão. música Em Flor do Cafezal, Luiz Carlos Paraná faz do senti­ O tão caro sentimento de virilidade do sertanejo mento de perda um paralelo da natureza: toma feição radical em Velho Macho, de Adauto Santos: Morre a flor e nasce o Meu pai é um velho macho fruto no lugar de cada flor Velho macho, sim senhor Morre o amor e nasce o pranto, Um gavião de penacho fruto amargo de uma dor. O maior conquistador. Alventino Cavalcanti assim expressa a saudade que A influência do neheengatu apresenta­se admiravel­ sente em Leva eu Sodade: mente em Cuitelinho, de Paulo Vanzolini e Renato Teixeira: Menina tu não te lembras A tua saudade corta Daquela tarde fagueira Como aço de navaia Tu te esqueces e eu me alembro O coração fica aflito Ai que saudade matadeira Bate uma, a outra faia. Em Triste Berrante, Adauto Santos arrisca-se a uma O amor que da terra brota, a identificação dos sen­ ousadia estilística: timentos com a natureza, se vê em Jeito de Mato, de Ali passava boi, passava boiada Almir Sater: Tinha uma palmeira na beira da estrada Dos teus pés na terra nascem flores Onde foi gravado muito coração. A tua voz aplaca as dores E espalha cores vivas no ar... Angelino Oliveira, em Tristeza do Jeca, composta em 1918, e considerada a mais bela música caipira, de certo Uma das melhores canções de raiz sertaneja, porém modo se antecipa aos autores de Chão de Estrelas: de elaboração complexa, é a belíssima toada Romaria, de Eu nasci naquela serra Renato Teixeira. Nela, em apenas dois versos, conta-se Num ranchinho beira chão de forma insólita uma história inteira: Todo cheio de buraco O meu pai foi peão Onde a lua faz clarão. Minha mãe solidão. Um toque de magia se pode observar em Luar do João Pacífico é uma das principais referências entre Sertão. Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco os autores da boa música caipira – cerca de 1.300 com­ fazem com que a lua surja como que por acaso, ao seu posições – e não poderia deixar de ser citado, ainda capricho. A partícula se confere essa ilusão: que seja com um pequenino trecho de sua pungente Se a lua nasce por detrás da verde mata Tapera Caída: Mais parece um sol de prata Mas eu comparo a saudade Prateando a solidão. Com essa grama tiririca, As foia verde se arranca, O apego à família mostra-se de forma cativante em Mas a raiz sempre fica. Boiadeiro, de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas: De tardezinha quando eu venho pela estrada Last but not... a composição A Bandeira do Divino, A fiarada tá todinha a me esperá que Ivan Lins foi buscar numa das mais populares festas São dez fiinho é muito pouco é quase nada religiosas do interior: Mas não têm outros mais bonitos no lugar música Os devotos do Divino SELEÇÃO CAIPIRA vão abrir sua morada Em 2009, a Folha de São Paulo publicou uma lista classificando as 78 me- lhores músicas caipiras de todos os tempos, baseada em enquete com Pra bandeira do Menino músicos e críticos profissionais. Confira as primeiras colocadas da lista: ser bem-vinda, 1. TRISTEZA DO JECA ser louvada, ai, ai. (Angelino de Oliveira) Tonico e Tinoco 2. O MENINO DA PORTEIRA Do escritor mineiro e do maestro carioca, torna-se (Luizinho e Teddy Vieira) Sérgio Reis imperioso citar o que em suas obras reflete de forma 3. CHICO MINEIRO admirável a alma caipira. (Tonico e Francisco Ribeiro) Tonico e Tinoco De Grande Sertão: Veredas, se extrai: 4. CHALANA (Mário Zan e Arlindo Pinto) “Mas na ocasião me lembrei dum conselho Almir Sater que Zé Bebelo um dia me tinha dado. Que 5. CABOCLA TEREZA (Raul Torres e João Pacífico) era: que a gente carece de fingir às vezes Raul Torres e Florêncio que raiva tem, mas raiva mesma nunca se 6. A MODA DA MULA PRETA (Raul Torres) deve tolerar de ter. Porque, quando se cur- Raul Torres e Florêncio te raiva de alguém, é a mesma coisa que se 7. LUAR DO SERTÃO (João Pernambuco e autorizar que essa própria pessoa passe du- Catulo da Paixão Cearense) Pena Branca e Xavantinho rante o tempo governando a idéia da gente; 8. RIO DE LÁGRIMAS e que isso era falta de soberania, e farta (Piracy, Lourival dos Santos e Tião Carreiro) Inezita Barroso bobice, e fato é.” 9. PAGODE EM BRASÍLIA (Teddy Vieira e Lourival dos Santos) Tião Carreiro & Pardinho As Bachianas n.º 2 contêm a delicadíssima tocata O 10. MODA DA PINGA Trenzinho do Caipira, que ganhou letra de Ferreira Gullar: (Ochelsis Laureano e Raul Torres) Inezita Barroso Lá vai o trem com o menino 11. SAUDADE DE MINHA TERRA Lá vai a vida a rodar (Goiá e Belmonte) Belmonte & Amaraí Lá vai ciranda e destino 12. ESTRADA DA VIDA (Milionário & José Rico) Pro dia novo encontrar Milionário & José Rico Correndo vai pela terra, vai 13. FERREIRINHA (Tião Carreiro & Pardinho) pela serra, vai pelo mar Tião Carreiro & Pardinho Cantando pela serra do luar 14. MORENINHA LINDA (Tonico e Tinoco) Tonico e Tinoco Correndo entre as estrelas a voar No ar, no ar, no ar... 15. ROMARIA (Renato Teixeira) Renato Teixeira A boa música não se restringe aos quartetos de cor­ 16. É O AMOR (Zezé di Camargo) Zezé di Camargo & Luciano da, mas também surge da viola e do cantador anônimo. 17. MEU PRIMEIRO AMOR A boa poesia, aquela que cala fundo e comove, não nas­ (Cascatinha e Inhana) Cascatinha e Inhana ce apenas nas madrugadas insones de almas sofridas, 18.
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