Espiritualidade Contemporânea Todos os direitos desta edição reservados ao autor. Publicado por Editco Comercial Ltda. Rua Pedroso Alvarenga, 1046, 9º andar – sala 95 Itaim – 04531-004 – São Paulo-SP Tel: (11) 3706-1492 – Fax: (11) 3071-2567 e-mail: [email protected] Na internet, publicação exclusiva da iEditora: www.ieditora.com.br Marcelo Bolshaw Gomes Espiritualidade Contemporânea São Paulo - 2002 © 2002 de Marcelo Bolshaw Gomes Título original português: Espiritualidade Contemporânea Capa: Julio Cesar Portellada Revisão: Elina Miotto Editoração eletrônica: Julio Cesar Portellada É PROIBIDA A REPRODUÇÃO Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem a permissão, por escrito, da autora. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98. Impresso no Brasil / Printed in Brazil Espiritualidade Contemporânea Espiritualidade Contemporânea Experiências Transpessoais e ensaios sobre o simbolismo • O Espelho de Oxum • Santo Daime, o Vinho do Espírito • “Umbanda é Caridade” • Transferência de Identidade no Candomblé • Jurema Rainha • O Tarô como Mapa Cognitivo • Os Três Erros de Leônidas • As Flores do Bem • O Eneagrama da Personalidade • D’Arte da Loucura (quase) Controlada — 7 — Espiritualidade Contemporânea O Espelho de Oxum Conta a lenda que, em um tempo imemorial, o rei Xangô, orixá escolhido por Oxalá para governar a terra e os outros deuses, tinha diversas esposas. As duas mais importantes eram Yansã, a Senhora das Tempestades, e Oxum, cujo domínio se estendia pelos rios, lagos e cachoeiras. Certo dia, enciumada da preferência de Xangô pela sua adversária, Yansã decidiu vingar-se de Oxum e, em um raio intempestivo de cólera, investiu contra a mãe das águas doces, quando esta se banhava nua às margens de um grande lago, tendo apenas um espelho entre as mãos. Devido ao fato de não ser uma guerreira, mas uma mulher dócil e vaidosa, afeita apenas aos expedientes da Sedução e da Dissimulação para se defender; Oxum viu-se completamente indefesa frente à ira arrebatadora da Rainha dos Raios. Oxum, então, rezou a Oxalá e, em um instante mágico, percebeu que o Sol brilhava forte nas costas de sua agressora. Rapidamente, ela utilizou seu espelho para refletir os raios solares de forma a cegar Yansã. Ao saber da vitória de Oxum, o rei Xangô reafirmou sua preferência pela Senhora das Águas, que além de mais bela e delicada, provou ser também mais poderosa que a Senhora das Tempestades. Um Objeto Singular O espelho aparece em inúmeros mitos e ‘reflete’ um sentido claramente universal porque tem um valor cognitivo — 9 — Marcelo Bolshaw Gomes e epistemológico. Ele é um símbolo da consciência. Consciência entendida não apenas como ‘auto-imagem social ou profissional’, mas, sobretudo, como identidade psíquica profunda, a verdadeira face sob a máscara do ego, a centelha luminosa, o reflexo interior do Fiat Lux. Platão e Plotino o comparavam à alma, metáfora que em seguida foi adotada por Santo Atanásio e Gregório Niseno. Mas é com São Paulo que o Espelho se torna um símbolo de transformação, um duplo instrumento para o conhecimento antropomórfico de Deus e para o conhecimento cosmológico do Homem. “E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como em um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é o Espírito. (...) Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.” 1 Mas se o Espelho é símbolo do autoconhecimento místico, da imagem e semelhança onde o Homem e Deus se refletem, ele também aparece constantemente como metáfora da ilusão narcísica, como confidente da beleza egóica, como um reflexo invertido da realidade. O símbolo da verdade é, ao mesmo tempo, signo da falsidade e da ilusão. E certamente foi este caráter paradoxal e contraditório que criou “O fascínio dos Espelhos”. Das inúmeras narrativas onde este fascínio se manifesta escolhemos o mito nagô do Espelho de Oxum, originariamente recolhido por Pierre Verger na África2, pois ele apresenta vários elementos simbólicos importantes para caracterizar _______________________ . (1) 2Coríntios 3,l8 e 1Coríntios l3,l2 – Novo Testamento, Bíblia. Edições Paulineas. l988. (2) A Lenda foi reescrita a partir da versão da revista Planeta – Os Orixás. Ed. Três. l982. — 10 — Espiritualidade Contemporânea o funcionamento arquetípico dos mitos que constituem o dispositivo especular e sua estratégia epistemológica. Antes, porém, de analisar os diversos aspectos simbólicos desta lenda mítica, vamos estudar como o tema do espelho se manifesta em outras narrativas de diferentes culturas, procurando identificar suas relações com um arquétipo único, que possa esclarecer o papel universal que o Espelho desempenha na lenda nagô. Pelo fato de não emanarem luz própria, mas de refleti-la, os espelhos foram associados à Lua durante toda Antiguidade. Desta associação chave, sobrepuseram-se as que relacionam o Espelho ao feminino e à sua beleza. O simbolismo lunar do Espelho, no entanto, não se limita às mulheres e aos poetas que lhes cantam a beleza, mas encontra lugar também entre os feiticeiros e mágicos, que utilizavam as superfícies espelhadas para entrar em transe, como é o caso dos xamãs siberianos. Possivelmente, a tradição de utilização mágica do espelho tenha tido sua origem no fato de ele ter sido usado na astronomia/astrologia para determinar o movimento das estrelas no céu. Não é sem motivo que o verbo especular, operação mental, procede do latim especulum, que originariamente significava observar o céu, admirar e estudar suas constelações. Como os estudiosos da ciência dos astros desta época, invariavelmente, eram também magos, os espelhos foram, gradativamente, interiorizados. “De modo que” – comenta o cabalista Mario Satz3 – “o espelho não somente está fora de nós, como um artifício metálico, disco polido entrevisto no toucador ou no harém, mas se encontra também entre os hemisférios cerebrais, que invertem o contemplado transladando o esquerdo ao direito e vice-versa.” É curioso observar que este duplo processo de representação _______________________ . (3) SATZ, MARIO. O Dador Alegre. Ed. Ground. 1991. — 11 — Marcelo Bolshaw Gomes da realidade através de espelhos se desenvolveu paralelamente em diversas culturas antigas – na China, na Índia, no Oriente Médio e no Mediterrâneo – gerando diferentes mitologias astrológicas, mas uma única concepção universal de representação. A contemplação deste “espelho interior” é particularmente rica entre os místicos sufis, que o entendem em um sentido semelhante ao de São Paulo, como a imagem de Deus e do Homem. “Deus é, pois” – escreveu Ibn Árabi de Múrcia4 – “o espelho no qual tu mesmo te vês; do mesmo modo que tu és seu espelho em que Ele contempla seus nomes”. Outro místico sufi, Shabistari, é ainda mais específico em seu Jardim do Mistério “O não-ser é um espelho, o mundo uma imagem, o homem é o olho dessa imagem, e Ele a luz do olho. Quem alguma vez viu o olho através do qual todas as coisas são vistas? O mundo se tornou homem, e o homem, mundo; não há explicação mais clara que essa. Quando olhas atentamente no coração da matéria, Ele é ao mesmo tempo a visão, o olho, a coisa olhada. A Santa Tradição nos legou isto, e sem olho nem ouvido o demonstrou”.5 Também o Zohar, recomenda que, para que o homem possa conhecer a Glória, utilize-se de um espelho, observando-a indiretamente para não ser cego por sua luminosidade resplandecente. Ou seja, o tema do Espelho é uma unanimidade entre os místicos, sejam judeus, cristãos ou mulçumanos. Este curioso consenso talvez explique a crença, também universal, de que quebrar um espelho acarreta em um longo período de azar ou má-sorte. Também a crença de que as “criaturas sem alma sob a forma humana”, como os vampiros e os zumbis, não têm suas imagens refletidas no Espelho; deve ter _______________________ . (4) Ibdem. (5) BALTRUSAITIS, JURGIS. El Espejo. Madri: Miraguano. 1988. Citado por Satz, M. Ibdem. — 12 — Espiritualidade Contemporânea sua origem na associação universal dos espelhos à imagem holográfica de Deus no Homem, feita em diversas épocas por diferentes religiões. Adiante, quando analisarmos a lenda de Oxum, veremos como, devido a sua associação universal com a Lua, o Espelho guarda uma relação direta com o simbolismo aquático, mas dele se diferencia por refletir a luz do fogo elementar. Agora, o importante é que se entenda que quando se fala do simbolismo do Espelho não se trata apenas da mitológica ilusão de Narciso ou ainda da fútil vaidade feminina, mas também da contemplação mística à luz de um limbo transcendente. Mas se o Espelho serve para que as donzelas e cortesãs reforcem seus egos e para que os sábios místicos se desvencilhem dos seus, ele também é uma poderosa arma de guerra, utilizada para atear fogo, gerado à distância através de raios luminosos, como no célebre episódio atribuído a Arquimedes de Siracusa, que com um gigantesco espelho catóptrico incendiava os navios que tentavam invadir a antiga ilha da Sicília. De todas as lendas envolvendo espelhos como arma a mais conhecida é, sem sombra de dúvida, a luta de Kadmo contra a Medusa, narrada por Platão no Timeu. Nesta narrativa, o herói vence a terrível górgona, cujo olhar tem o poder de transformar seus oponentes em pedra, com a ajuda de um espelho preso ao seu escudo. Kadmo fez com que a Medusa visualizasse sua própria imagem refletida no espelho e tivesse o mesmo destino de suas vítimas, petrificando-se para sempre. Ou seja, o espelho é uma arma capaz de fazer com que o outro se reconheça, com que o adversário tome consciência de si e de suas projeções. O mal reconhecendo a si mesmo como tal, perde toda a sua eficácia e sucumbe a sua própria consciência. — 13 — Marcelo Bolshaw Gomes Talvez por isso, em seu livro, De Natura Deorum, Cícero lembra que o Espelho é uma invenção de Esculápio, o deus da medicina; e os antigos sacerdotes nahuas do México costumavam levar um espelho pendurado no peito para que os “demais (homens) descobrissem seu verdadeiro rosto e se corrigissem”6.
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