Duração e cálculo: reflexões de alguns compositores entre as décadas de 1930 e 1960 Marcos Mesquita (Universidade Estadual Paulista) Resumo: o texto discute, compara e critica reflexões de alguns compositores do século XX sobre a ordenação do parâmetro da duração. Tais reflexões foram importantes especialmente no decorrer da década de 1950 para estabelecimento do assim chamado serialismo integral e da música estocástica. Palavras-chave: relações altura/duração, serialismo integral da década de 1950, música estocástica. DURATION AND CALCULATION: SOME COMPOSER’S CONSIDERATIONS BETWEEN 1930 AND 1960 Abstract: this text examines, compare and criticizes the reflections by some composers of the 20th Century about the length parameter. These reflections were important especially during the 1950’s decade in order to establish the so-called integral serialism and the stochastic music. Keywords: pitch/length connections, integral serialism in the 1950’s, stochastic music. música em perspectiva v.5 n.2, outubro 2012 p. x-x 49 ________________________________________________________________________________ Introdução A partir das últimas décadas do século XIX, todos os elementos composicionais da música sofreram uma reavaliação fundamental, resultando daí inúmeras novas possibilidades criativas. Quando mencionamos o nome de Claude Debussy, por exemplo, temos o hábito de associá-lo à libertação das regras da harmonia tradicional, à busca de novas harmonias, novos timbres harmônicos. Mas a estrutura rítmica de sua música também causou impacto em sua época. Basta lembrarmos os “ensaios longos e laboriosos” para a primeira audição de seu Prélude à l’aprés-midi d’un faune sob regência de Gustave Doret (Vallas, 1958, p. 179). Já na primeira metade do século XX, o ritmo, ou melhor dizendo, o parâmetro da duração, passa a ser estruturado de diferentes maneiras, absorvendo ritmos irregulares criados pela própria imaginação dos compositores ou oriundos de fontes étnico-musicais. Após a Segunda Guerra Mundial, os procedimentos de serialização, antes aplicados somente ao parâmetro da altura, foram projetados para outros parâmetros. O que isto significou para a estruturação rítmica da música criada no contexto do serialismo integral será avaliado e criticado nas páginas seguintes. I. Em consequência da decomposição dos parâmetros do som na música serial da década de 1950, Gottfried Michael Koenig escreveu sobre a duração, respectivamente a sucessão de valores rítmicos: O caráter temporal da música se emancipou tanto hoje [...], que se faz necessário examinar a relação das diferentes durações entre si, como se definiu até hoje somente as relações de diferentes tons de melodia ou diferentes vozes entre si. A duração de um som tornou-se [...] uma categoria autônoma. Consequentemente uma sequência de durações pode conter tanto sentido musical quanto uma sequência de valores dinâmicos ou acordes ou timbres (Koenig, 1962, p. 76). 50 Marcos Mesquita Duração e cálculo: reflexões de alguns compositores entre as décadas de 1930 e 1960 ________________________________________________________________________________ A serialização da duração por meio de tabelas numéricas simples, uma estratégia utilizada por vários compositores para carregar uma sequência de durações de “sentido musical”, provocou críticas enérgicas: Infelizmente, com a escola pós-guerra [Segunda Guerra Mundial], surgiu um novo tipo de pitagorismo, levando à aplicação de proporções matemáticas simples e permutações de divisões de tempo que, com o auxílio de divisões mais “irracionais” de valores, dá a impressão de irregularidade permanente sob um ponto de vista totalmente diferente, um ponto de vista experimental ou uma “dissociação dos sentidos” (Rimbaud), e a maneira de lidar com tempo e memória tornou-se muito óbvia, quase primitiva. As coisas continuam por um tempo de um modo mais ou menos uniforme e, então, mudam para um trecho de conceito similar. Isso é, de fato, uma negação de memória e tempo que corresponde ao tratamento [...] que recebemos como leitores de jornais ou propaganda, como alvos de quase qualquer tipo de mensagem que reduz tudo à superficialidade e, no final das contas, à perda de identidade (Carter, 1997, p. 318). A partir do final da década de 1940, especialmente desde Three Compositions for Piano (1947) de Milton Babbitt (Kostka, 2006, p. 265-267) e Mode de Valeurs et d'Intensités (1949) de Olivier Messiaen, vários compositores vão se empenhar em estabelecer uma ordenação estrutural abrangendo outros parâmetros sonoros além da altura que já vinha sendo ordenada serialmente desde o advento do dodecafonismo. O serialismo integral tentará estabelecer tal ordem, em princípio de maneira um tanto quanto ingênua. Essa supraordenação dos eventos sonoros vai inicialmente transferir a responsabilidade compositiva do compositor para uma outra esfera, geralmente uma matriz numérica que será aplicada a outros parâmetros tradicionais do som além da altura como, por exemplo, duração, intensidade e articulação. Nesse sentido, a matriz serial de Structures Ia (1952) para dois pianos de Pierre Boulez é relativamente simples e pode ser explanada rapidamente − tal matriz foi desvendada por György Ligeti em artigo publicado em 1958 (Ligeti, 1958, p. 38-63). música em perspectiva v.5 n.2, outubro 2012 p. x-x 51 ________________________________________________________________________________ II. Boulez parte de uma das séries dodecafônicas que fora utilizada em Mode de Valeurs et d'Intensités, acrescentando sua inversão: Ex. 1. Séries de Structures I de Pierre Boulez A partir delas, Boulez constrói duas tabelas cujos números vão ordenar além das alturas, as durações, intensidades e articulações (os algarismos das tabelas referem-se aos sons tal qual eles foram numerados na série original: mib = 1, ré = 2 etc.): Tabela 1. Quadrados seriais de Structures Ia de Pierre Boulez Original è 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 2 8 4 5 6 11 1 9 12 3 7 10 3 4 1 2 8 9 10 5 6 7 12 11 4 5 2 8 9 12 3 6 11 1 10 7 5 6 8 9 12 10 4 11 7 2 3 1 6 11 9 12 10 3 5 7 2 8 4 2 7 1 10 3 4 5 11 2 12 12 6 9 8 9 5 6 11 7 2 12 10 4 1 3 9 12 6 11 7 1 8 10 3 5 2 4 10 3 7 1 2 8 12 4 5 11 9 6 11 7 12 10 3 4 6 1 2 9 5 8 12 10 11 7 1 2 9 3 4 6 8 5 çRetrógrado Inversão è 1 7 3 10 12 9 2 11 6 4 8 5 7 11 10 12 9 8 1 6 5 3 2 4 3 10 1 7 11 6 4 12 9 2 5 8 10 12 7 11 6 5 3 9 8 1 4 2 52 Marcos Mesquita Duração e cálculo: reflexões de alguns compositores entre as décadas de 1930 e 1960 ________________________________________________________________________________ 12 9 11 6 5 4 10 8 2 7 3 1 9 8 6 5 4 3 12 2 1 11 10 7 2 1 4 3 10 12 8 7 11 5 9 6 11 6 12 9 8 2 7 5 4 10 1 3 6 5 9 8 2 1 11 4 3 12 7 10 4 3 2 1 7 11 5 10 12 8 6 9 8 2 5 4 3 10 9 1 7 6 12 11 5 4 8 2 1 7 6 3 10 9 11 12 çRetrógrado invertido Como existem 12 notas na escala cromática, Boulez foi obrigado a criar escalas com 12 valores nos parâmetros de: − duração: de uma a 12 fusas; a cada 78 fusas (1+2+3+...+12=78 fusas) encerra-se uma série de durações; − dinâmica: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 pppp ppp pp p Quasi p mp mf Quasi f f ff fff ffff − articulação: (Os números 4 e 10 não ocorrem nas diagonais escolhidas por Boulez para ordenar as articulações, como será visto adiante.) Um grau de dinâmica e um tipo de articulação são válidos para uma série inteira de alturas. A sucessão das séries de alturas e das de durações também é serializada: no primeiro piano, por exemplo, enquanto as séries originais de alturas (O) são apresentadas na ordem da Inversão 1, ou seja, O mib, O mi, O lá etc., as séries de durações correspondentes aos números dos Retrógrados Invertidos (RI) são apresentadas na ordem do Retrógrado Invertido 1, ou seja, RI 1 (12, 11, 9, etc.), RI 2 (11, 12, 6 etc.) e assim sucessivamente. Todas as séries acima mencionadas percorrem as células das tabelas em sentido horizontal. As séries de dinâmicas e de articulações, por outro lado, percorrem-nas em diagonal: as dinâmicas nas diagonais a (12, 7, 7 etc.), b, c (2, 3, 1, 6, 9, 7, 7, 9, 6, 1, 3, 2) e d (7, 3, 1 etc.). Dois outros parâmetros não são serializados, sendo portanto deixados ao livre arbítrio do compositor: o registro − em quais oitavas as notas das séries são música em perspectiva v.5 n.2, outubro 2012 p. x-x 53 ________________________________________________________________________________ distribuídas − e a densidade − quantidade de séries apresentadas simultaneamente. O quadro a seguir resume os dados expostos até aqui: Tabela 2. Quadro de serializações de Structures Ia de Pierre Boulez Instrumento Parâmetro Parte A (c. 1-64) Parte B (c. 65-115) Piano I Altura O ordenadas segundo I 1 RI ordenadas segundo RI 1 Duração RI ordenadas segundo RI 1 I ordenadas segundo RO 1 Dinâmica Diagonal a Diagonal c Articulação Diagonal B Diagonal D Piano II Altura I ordenadas segundo O 1 RO ordenadas segundo RO 1 Duração RO ordenadas segundo RO 1 O ordenadas segundo RI 1 Dinâmica Diagonal b Diagonal d Articulação Diagonal A Diagonal C III. Provavelmente a argumentação em defesa da organização serial da duração mais citada seja um famoso artigo de Karlheinz Stockhausen, “..
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