Resenhas Traducao 33.Indd

Resenhas Traducao 33.Indd

Cadernos de Tradução nº 33, p. 367-396, Florianópolis - jan/jun 2014/1 373 http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968. Transformando a vagabundagem 2014v1n33p373 em método, Arlt percorria as ruas de Buenos Aires em busca Arlt, R. Águas-fortes portenhas de material para suas crônicas. seguidas por águas-fortes cario- Publicadas em El Mundo (pri- cas. Tradução de Maria Paula meiro tabloide argentino) entre Gurgel Ribeiro. São Paulo: Ilu- 1928 e 1942, esses instantâneos minuras, 2013. 368 p. do cotidiano urbano receberam a denominação geral de águas-for- Arlt, R. Águas-fortes cariocas tes, em alusão ao tom de humor e outros escritos. Tradução de ácido que (ainda) as caracteriza. Gustavo Pacheco. Rio de Janei- Resultantes dessa experiência in- ro: Rocco, 2013. 254 p. tensa e da observação aguda das transformações urbanas contem- 374 Resenhas de Traduções/Translations Reviews porâneas, elas tratam dos mais comentário específico do leitor diversos assuntos e tipos urbanos, e o propósito crítico que carac- lidos pelo prisma dos setores po- terizou toda uma obra em que a pulares. Assim, desfilam por elas loucura, a traição, o cinismo — os executores de diversos ofícios aspectos analisados especialmen- (personagens muitas vezes trági- te por Oscar Masotta e Horacio cas), mas também o “guardião González— se apresentam como do umbral”, o “furbo”, o que significantes mais apropriados ao “se faz de morto”, o “squenun”, contexto social e político do En- o que tem “fiaca”, cuja atitude treguerras, no qual “a inutilidade existencial é condição necessária dos livros” foi decretada pela ex- para o exercício da “vida con- periência. templativa” portenha. Exercício Nesse contraponto, “Como este que, com a crise financei- querem que eu escreva a vocês?” ra da década de 1930 será, para é uma das notas (como ele gos- muitos trabalhadores, mais um tava de chamá-las) que melhor imperativo do que uma opção. definiria a postura de Arlt frente Quer sejam portenhas, ca- ao/dentro do cotidiano. Postura riocas, galegas, africanas, espa- de quem se dispõe a transcrever nholas etc., os objetivos que as —e, literalmente, a traduzir, no norteiam, entretanto, podem-se caso das Aguafuertes cariocas resumir à crítica da moral peque- (doravante, AC)— as filigranas no-burguesa, do autoritarismo e do que vê e escuta pelas ruas da o colonialismo na política, e do cidade (não por acaso, nas cario- exclusivismo no “cortiço da nos- cas, a primeira palavra transcrita sa literatura”. do português, depois de meni- O outro princípio metodológi- na, é precisamente ruas); mas co adotado por Arlt, em conso- também de quem, alternando e nância com o primeiro, foi o do alterando os lugares de enuncia- diálogo intenso e constante com ção preestabelecidos pela política seus leitores, cujas cartas citava, cultural ainda vigente no perío- comentava e respondia nessas do, (d)enuncia o caráter burguês águas-fortes, estabelecendo, mui- das noções de língua e estilo lite- tas vezes, um contraponto entre o rários em uso. Cadernos de Tradução nº 33, p. 367-396, Florianópolis - jan/jun 2014/1 375 Das escolhas metodológicas (e, em especial, aos modernis- citadas e da aposta em um estilo tas tardios hispano-americanos e pautado pela oralidade derivam- seus herdeiros contemporâneos) -se a agilidade no ritmo da nar- como preconceituosos moradores rativa e dos concisos quadros do “cortiço da literatura”. Por dramáticos, a constante presença outro modo, as diversas opera- de ressonâncias e redundâncias ções de experimentação, levadas (o que, muitas vezes, se realiza a cabo pelos grupos de escritores como “cacofonia”, do ponto de jovens mais ou menos próximos vista do “bom gosto” burguês, aos movimentos de vanguarda pautado então, ainda, pelo re- no período, procedem de acor- ceituário parnasiano), e uma po- do com objetivos análogos, mas lifonia assentada na convivência com protocolos notadamente di- sintática de vozes procedentes ferentes. Se em Buenos Aires, o de diferentes línguas europeias “martinfierrismo” procura man- “aclimadas” nas cidades por- ter um diálogo (mesmo que de tuárias da América do Sul. Ca- ironia ligeira) com a tradição, as racterísticas estas que marcam a experiências dos Andrades em dificuldade de encontrar soluções São Paulo, entre 1924 e 1928, tradutórias que façam justiça, radicalizariam violentamente a do ponto de vista semântico e ruptura com as noções vigentes fonético, ao uso do “idioma das de norma linguística e correção ruas”, não apenas pela peculiar no estilo. Em relação a ambas, os “adequação” das palavras às chamados boedistas em Buenos coisas de uma realidade seme- Aires realizam uma ruptura com lhante (mas também diferente) à esses imperativos, apostando em das grandes capitais brasileiras diversas “irregularidades” carac- contemporâneas à Buenos Aires terísticas da oralidade babélica das décadas de 1920 e 1930, mas da cidade portuária, objetivando, também pelo cenário de dispu- paralelamente, uma manutenção ta que desenhou, no espaço da de diálogo com o público. Arlt, produção literária rio-platense, quem nunca declarou fazer parte o surgimento de um grupo que deste último grupo, reivindicou se referisse ao próprio campo contudo, explicitamente, uma so- 376 Resenhas de Traduções/Translations Reviews lidariedade maior de interesses e ferenças do perfil trabalhista de propósitos com ele. cada um deles se apagariam em Durante sua estada no Rio, função da igualdade efetiva de nos meses de abril e maio de direitos de que gozam perante a 1930, Arlt seguiria fiel ao seu lei e a sociedade. De acordo com “método”. De tal maneira, às o cronista, leitor e tradutor do personagens pinçadas no coti- cotidiano social, no Rio, ao con- diano portenho, vem se somar, trário, “amaciam as pessoas com nas águas-fortes cariocas, entre conversa mole e títulos, não com outros, o “homem do pijama dinheiro” (Águas-fortes cariocas listrado”, “a doentinha”, “os e outros escritos: 105) (doravan- pescadores de pérolas”, as “me- te, ACOE). ninas” e “os mininos”, tipos so- Por outro lado, onde caberia vinas (em geral, portugueses), “o esperar formas de desconten- negro brasileiro” em diversidade tamento ou mesmo de revolta cromática e de ofícios, bem como social, o que se ve é o oposto: negros marginalizados que per- essas pessoas “são felizes, [por- correm a cidade falando, canta- que] não leem livros, ignoram rolando e sorrindo consigo mes- o que é filosofia” (ACOE:107). mos, em representação dramática Ou ainda, uma outra derivação e sintomática dessa sorte de solip- surpreendente para o cronista: o sismo social de que são vítimas. fato de que a exclusão social não Surge também, em consonância se veja “compensada”, no Rio, com as preocupações políticas por diversas práticas delituosas. e socioeconômicas do cronista, Em chave de leitura em que se uma vasta galeria de trabalhado- cruzam o social, o econômico e res: série oportuna para traçar a o político, as faltas detectadas no distinção semântica entre “operá- cotidiano social carioca se tradu- rio” e “funcionário”, no cotidia- zem em uma forma narrativa que no social carioca e no português assume a feição de um paradoxo: em uso no Brasil; distinção esta, à vasta galeria de trabalhadores diz o cronista, difícil de ser feita se lhe opõe uma vasta galeria de no cotidiano e na fala da Buenos meliantes (porém) inexistentes; Aires contemporânea, onde as di- razão pela qual, “o trabalho da Cadernos de Tradução nº 33, p. 367-396, Florianópolis - jan/jun 2014/1 377 polícia [no Rio] se limita a expul- com certo pudor (?), “observa e sar os comunistas” (ACOE:111). não observa”, mas que são uma Da exclusão socioeconômica à presença constante nesta série de cultural, o desenho de uma defi- crônicas), se sucedem a perplexi- nição de “roubo” e sua distinção dade provocada pela constatação semântica com “plágio” surgem, do caráter recente da abolição da significativamente, a propósito escravatura, a “esgunfia” (tédio, do cotidiano, não dos trabalhado- aborrecimento) resultante da im- res ou dos representantes de ofí- pressão de que os cariocas vivem, cios diversos, mas dos membros aparentemente, apenas para o tra- da Academia de Letras. balho (e para “dar filhos ao Esta- Coerente com sua postura do”), e a irritação decorrente da antiacadêmica e mesmo sem ter percepção de que aquela “amabi- familiaridade com o português, lidade” seria a resultante de uma Arlt se recusa explicitamente a “educação tradicional” (repressi- procurar informações sobre a ci- va, excludente, superficial, das dade em livros ou através de en- formas), aliada à precariedade trevistas a intelectuais ou escrito- ou inexistência de associações de res locais, e se dedica a percorrer trabalhadores que, constatado o as ruas do centro e dos subúrbios, desinteresse do Estado para tal, a visitar ilhas e cidades próximas se preocupassem com a instru- e, como concessão máxima (em ção dos setores populares. Em tal seguida abandonada) a aceitar a sentido, a falta de instrução, e não visita a alguns ícones turísticos. a “amabilidade”, explicaria, por Assim, nas quarenta Águas- exemplo, a ausência de “grafitos” fortes cariocas publicadas em de caráter obsceno e/ou político na El Mundo nesse período, às im- via pública, mas também a ausên- pressões positivas da “delicade- cia de deputados nacionais que, za” fonética da língua e do trato como na Argentina da época, ti- das pessoas na rua, bem como à vessem desempenhado ofícios tais “descoberta” da riqueza de ma- como o de vendedor de jornais ou tizes cromáticos (da paisagem, mensageiro. da arquitetura e, especialmente, Nesta linha, são represen- das negras e negros que Arlt, tativas dessa transformação na 378 Resenhas de Traduções/Translations Reviews perspectiva do cronista as notas o terror crescente experimentado “Falemos de cultura”, “Algo so- por ele. bre urbanidade popular”, “Cida- O que lemos, portanto, nas de que trabalha e que se entedia Águas-fortes cariocas é uma re- / morre de tédio” (Águas-fortes alização peculiar daquilo que, portenhas seguidas por águas- em seu artigo “Roberto Arlt: una -fortes cariocas (doravante, crítica de la economía literaria”, APAC) e ACOE, respectivamen- Piglia denomina o “estilo sobre- te), “Amabilidade e realidade” e actuado, de traductor”, caracte- “Os mininos”.

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