UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO LUCECLÉIA FRANCISCO DA SILVA CONTRA TUDO E TODOS: A FORMAÇÃO DE LEITORES EM CONTEXTOS ADVERSOS, NO MUNICÍPIO DA SERRA VITÓRIA 2017 LUCECLÉIA FRANCISCO DA SILVA CONTRA TUDO E TODOS: A FORMAÇÃO DE LEITORES EM CONTEXTOS ADVERSOS, NO MUNICÍPIO DA SERRA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação do Centro de Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo, linha de pesquisa Educação e Linguagens, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Drª. Maria Amélia Dalvi Salgueiro. VITÓRIA 2017 Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) Bibliotecário: Clóvis José Ribeiro Junior – CRB-383 ES-000527/O Silva, Lucecléia Francisco da, 1973- S586c Contra tudo e todos : a formação de leitores em contextos adversos, no município da Serra / Lucecléia Francisco da Silva. – 2017. 293 f. : il. Orientador: Maria Amélia Dalvi Salgueiro. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 1. Adolescentes. 2. Leitores – Formação. 3. Leitura – Estudo e ensino. 4. Mediação. I. Salgueiro, Maria Amélia Dalvi, 1983-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título. CDU: 37 À Viviane Tavares – pela cumplicidade, pelos sorrisos, pelos cafés... À Maria Amélia – pelo acolhimento, conhecimento e a partilha de universos literários que eu não conhecia! AGRADECIMENTOS Nossa autonomia e heteronomia se constituem através de outros e em/por outros. Portanto, peço licença a Fernando Pessoa e ao seu poema ―Não sei quantas almas tenho‖ para escrever sobre essa minha jornada permeada por tantas pessoas e por despertar em mim sentimentos tão ímpares! NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO, mas sei que em todas elas cabem gratidão! CADA MOMENTO MUDEI, e sou grata às pessoas que fizeram parte da minha mudança, do meu repensar, nesse período de estudos. CONTINUAMENTE ME ESTRANHO, me surpreendo, me comovo com Maria Amélia Dalvi, pelo acolhimento, pela orientação cuidadosa e atenciosa, por provocar em mim o desejo de luta e justiça por um mundo melhor. NUNCA ME VI NEM ACABEI, afinal somos seres inacabados e inconclusos, como dizia Freire. No entanto, agradeço às generosas colaborações do professor Wilberth Salgueiro e à professora Rosiane de Fátima Ponce por terem participado da minha banca de qualificação com importantes contribuições para o trabalho final permeadas com doçura ímpar e, agora, na defesa. À professora Priscila Chisté por ter aceitado o convite para integrar a banca com muita presteza e gentileza. DE TANTO SER, SÓ TENHO ALMA. Alma agradecida ao professor Robson Loureiro pela generosidade, compreensão e por ter contribuído para o meu processo formativo. QUEM TEM ALMA NÃO TEM CALMA. Tem calma, sim! Pois graças aos integrantes e amigos (as) do Grupo de pesquisa Literatura e Educação pude me fortalecer, me reconstituir e me permitir mudanças e aprendizados. Tiveram calma e paciência para me ensinar, me ouvir e a dividir em muitos momentos: alegrias, angústias e sorrisos. Agradeço especialmente a Arnon, por ter lido o meu texto com tanto zelo, à Rossanna, por me ajudar na construção dos questionários – na parte técnica –, e pela revisão final. À Ravena pelo apoio e gentilezas. Aprendi muito sendo parte desse grupo! QUEM VÊ É SÓ O QUE VÊ (nem sempre, Pessoa!). Porque mesmo sem nos vermos muitas vezes, sem nos olharmos nos olhos, cara a cara sentia que estávamos juntos, conectados, por isso agradeço ao Juca, amigo, cúmplice, companheiro de lutas e parceiro da turma 29 do mestrado. Esse reconhecimento se estende também a Jhamille e à nossa turma, pelos aprendizados, pelas trocas, pelos bate-papos nas aulas e nos corredores. QUEM SENTE NÃO É QUEM É, mas quem vive a vida numa tentativa de novos conhecimentos, novas práticas e mudanças, portanto, agradeço aos professores do PPGE: Marcelo Lima, Maria Amélia, Martha Tristão, Robson Loureiro e Rogério Drago, que de forma intensa fizeram parte dessa nova Lucecléia! Ao mesmo tempo minha gratidão à Beth, Diogo e Roberta, funcionários que tão prestativamente, nos tiravam da escuridão em se tratando de procedimentos, documentos e outros. ATENTO AO QUE SOU E VEJO, à Zélia por ter aberto as portas da escola para que fizéssemos a presente pesquisa. Companheira de trabalho e em busca de uma escola melhor e mais humana; estendo ainda aos meus colegas de trabalho da EMEF ―Prof. Naly da Encarnação Miranda‖ pelo apoio e por saber que estão comigo na luta diária por uma sociedade e escola menos desigual. TORNO-ME ELES E NÃO EU. Por suas Histórias, aos alunos participantes desse trabalho; por me permitirem conhecer suas narrativas de vida, abrir seus corações em diálogos mais que generosos! E quanta surpresa nesses diálogos! Quantos aprendizados adquiri ao ouvir o que o outro tem a dizer! CADA MEU SONHO OU DESEJO É DO QUE NASCE E NÃO MEU. Eles nascem dentro de uma família pobre e humilde, e nem por isso deixam de sonhar. Os sonhos e desejos não são somente de um. Há vários pertencimentos. À minha mãe, especialmente, por ter sempre me incentivado nos estudos. Ao esconder os livros e revistas de mim, possibilitou subversões. À minha irmã Aidê que sempre me ouviu, me apoiou e esteve comigo nessa labuta cotidiana. Às vezes almoços, lanches e a certeza de que nos queremos bem. SOU MINHA PRÓPRIA PAISAGEM, e tenho essa percepção de quem sou e de mim mesma. Vem da força, da autoconfiança e de uma autoestima potentes, que são parte da herança materna. Mas também sinto que sou atravessada por outras paisagens. Nesse caso, Viviane: por me compreender de uma forma tão terna e ao mesmo tempo tão densa. Pelos momentos de cumplicidade, amor e afetos. ASSISTO À MINHA PASSAGEM, e, nessa passagem encontrei amigas mais chegadas que irmãs: Deisi Zanatta, Graciane Cristina e Mara Pereira. Obrigada meninas: pelas trocas literárias, gentilezas, cumplicidade e amizade! RELEIO E DIGO: «FUI EU?» Não! Foram muitas vozes, diálogos e forças para que esse trabalho fosse possível. Porque o coletivo é sempre melhor! Meu reconhecimento a todos e todas que de algum modo direta ou indiretamente fizeram parte desse processo. Obrigada! Lucecléia Francisco da Silva Felicidade clandestina Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como ―data natalícia‖ e ―saudade‖. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo- o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do ―dia seguinte‖ com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
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