Imagens De Som / Sons De Imagem: Philip Glass Versus Godfrey Reggio Helena Santana1 E Rosário Santana2

Imagens De Som / Sons De Imagem: Philip Glass Versus Godfrey Reggio Helena Santana1 E Rosário Santana2

FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 127 Imagens de som / Sons de Imagem: Philip Glass versus Godfrey Reggio Helena Santana1 e Rosário Santana2 I. Introdução formas de arte que combinam vários elemen- tos de texto, imagem, movimento e som, Musicalmente Philip Glass recebe várias elementos presentes em todas as artes influências, nomeadamente da música popu- performativas. Realizar uma música para lar americana, das músicas extraeuropeias, do filme revela-se, no entanto, diferente da Jazz e do Rock-and-Roll. Vivendo a uma dada concepção de uma obra para dança, teatro altura da sua vida na baixa nova-iorquina, ou mesmo da concepção de uma ópera. O convive com a marginalidade criativa da filme, fixo, representa uma realidade que época, recebendo igualmente as suas influ- depois de produzida não sofre qualquer ências. Paris e Nadia Boulanger revelam-se alteração ou variação. As outras artes essenciais na caracterização e definição da performativas, entre as quais a dança, o teatro sua linguagem musical e do seu estilo. É com ou a ópera, não sendo fixas, possuem um ela que adquire uma base técnica sólida que certo grau de variabilidade, presente no se revelará essencial na definição e quali- momento da sua criação/interpretação. ficação da sua futura produção musical. Glass Depois de uma passagem pelo mundo da estuda ainda com Allá Rakha e Ravi Shankar ópera e do teatro musical com as obras verificando que a música indiana se baseia Einstein on the Beach (1975)7, Styagraha em princípios radicalmente diferentes dos da (1979)8 e Akhnaten (1983)9, Glass concebe música ocidental3. A partir de 1967, e aquando vários projectos nomeadamente de música do seu regresso aos Estados Unidos, simpli- para teatro, dança e filme10. Focando a nossa fica radicalmente a sua escrita, tanto a nível atenção na música para filme, e a partir dos melódico, como rítmico, harmónico e tem- anos 80, verificamos que trabalha com vários poral. As grandes e elaboradas texturas realizadores entre os quais Godfrey Reggio, contrapontísticas são substituídas por textu- Paul Schrader, Errol Morris, Tod Browning, ras mais simples onde predominam o unís- Joseph Conrad, Peter Greenway ou Martin sono, o paralelismo e a repetição, que se realiza Scorcesse. Desta colaboração surge um vasto (ou não) por desfasamento e utilizando as téc- conjunto de obras entre as quais: nicas da construção (ou desconstrução) Koyaanisqatsi (1982; Godfrey Reggio), motivica pela adição (ou subtracção) dos Mishima: A life in four chapters (1987; Paul constituintes do objecto sonoro base4. Schrader) Powaqqatsi (1987; Godfrey Devido à natureza do material sonoro, da Reggio), The Thin Blue Line (1988; Errol dinâmica e do tempo, as obras que têm por Morris), Anima Mundi (1992; Godfrey base este processo, resultam num longo Reggio), Evidence (1995; Godfrey Reggio), uníssono que se desenvolve indefinidamente The Secret Agent (1996; Christopher no tempo e no espaço. Estáticas adquirem Hampton), Kundun (1997; Martin Scorcesse); uma nova forma de estar e de se desenvolver Drácula (1999; Tod Browning) ou Kaqoyqatsi constituindo exemplos de um Minimalismo5 (2002; Godfrey Reggio)11. que se revelará, conforme os casos, mais ou Da sua colaboração com Godfrey Reggio, menos radicalista6. surge um conjunto de cinco filmes: Koyaanisqatsi, Powaqqatsi, Anima Mundi, II. Música versus imagem Evidence e Naqoyqatsi12, um conjunto de filmes que prima pela originalidade e qua- Segundo afirmações suas, Philip Glass lidade da sua concepção, tanto sonora, como compõe música para “imagens em movimen- visual. Analisando os filmes que compõem to”. Para ele, teatro, dança, ópera e filme são a trilogia Qatsi concebida ao longo de duas 128 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I décadas – Koyaanisqatsi, Powaqqatsi e so transforma-se tornando-se violento, des- Naqoyqatsi, deparamo-nos com momentos de truidor. Esta metamorfose faz-se com, e pelo grande beleza, tanto pictural, como sonora; homem, seu elemento danificador. Assim, a a narrativa visual encontrando o seu paralelo beleza de um mundo virgem metamorfoseia- na sonora. Esta trilogia é uma das mais belas se numa “beleza frenética” fruto de uma e singulares da história do cinema de van- sociedade industrializada que se auto-mutila guarda. Sem conter na sua realização qual- e auto-destrói consumindo a energia, a vi- quer diálogo, ou personagem, possui duas talidade, a força de quem lhe pertence. narrativas, uma visual e outra sonora, que Significando na língua dos índios Hopi se complementam interagindo na realização “vida em desequilíbrio”, Koyaanisqatsi foge de um discurso novo e original. Represen- dos cânones mais convencionais sendo um tando cada um dos filmes faces de uma filme sem discurso verbal, contrapondo cenas, mesma realidade – a vida nas suas diversas imagens, sonoridades, ideias e ideais por formas e a sua destruição por parte do ser vezes díspares. Através delas o público é humano, o ser mais destrutivo e violento à convidado a reflectir sobre as várias imagens face da terra – esta trilogia representa um que lhe são propostas. O filme torna-se o marco na criação cinematográfica contempo- relato da colisão entre dois mundos diferen- rânea. Concebida ao longo de vinte anos, tes. contém aspectos, e discursos, que reflectem As diferentes sequências musicais, uma princípios de auto-semelhança, elementos série de variações sobre um único tema, discursivos e técnicos que se repetem ao revelam-se sombrias e de uma expressividade longo das três obras, dando continuidade a quase romântica que se manifesta na forma um discurso que embora diversificado na sua como o compositor descreve os vários qua- abordagem, demonstra uma semelhança de dros cinematográficos. O tipo de instrumen- temáticas marcada13. tação reflecte o ambiente das cenas descritas. Reflectindo sobre a condição do ser Percebendo o mundo, a nossa forma de viver, humano e da sua acção no (e sobre o) mundo como bela e autêntica, o homem vive num que o rodeia, nesta trilogia sons e imagens, mundo artificial criado à custa da natureza imagens e sons, convergem na realização de que o alimenta, e que se destrói a, pouco, três objectos artísticos de uma elevada be- e pouco14. leza plástica e sonora, contendo em si uma Mostrando que o homem se encarcerou dimensão artística raramente conseguida. num mundo artificial que substitui a natu- O primeiro filme, Koyaanisqatsi, intro- reza da qual nos distanciamos cada vez mais, duz na história do cinema uma nova con- e com a qual devíamos viver em equilíbrio. cepção visual e sonora. O filme apresenta Koyaanisqatsi, um objecto que se revela no duas narrativas fruto de diversos planos, tempo e no espaço, provoca, assumindo assim texturas, ritmos e estratos que se revelam no o seu papel enquanto obra de arte. A sua som e na imagem. Os movimentos de câ- forma enfatiza a problemática. Os crescendos mara, e os ângulos de filmagem que o e decrescendos de intensidade contribuindo percebem, encontram o seu paralelo na forma na projecção da poética e da poiética fruída. como Glass aborda o material sonoro. A Powaqqatsi, o segundo filme desta trilogia estratificação do som, e da textura, os pla- compõe-se de imagens que reflectem a vida nos, os timbres, os objectos sonoros, con- em contínua transformação. Rodado em tribuindo para um discurso e uma textura de diferentes países reflecte a vida dos seus rara beleza e densidade dramática, ilustram povos, a sua beleza, os seus estilos de vida, e enfatizam o discurso das imagens. A música, as suas culturas. A transformação dos seus Minimalista, contribui ainda para a realiza- planos, a estratificação das suas linguagens ção de uma obra de excelência. Neste filme, dá-se mostrando a natureza e a violência da temas e elementos constituintes, surgem em vida e da existência das sociedades não imagens de rara beleza e sensualidade. Os industrializadas. O preço da industrialização espaços fruem-se de forma contínua e diver- (ou o preço da não industrialização neste sa mostrando a beleza natural da terra e dos caso), reflecte-se na existência dos habitan- seus elementos. Progressivamente, o discur- tes deste mundo em contínua transformação. FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 129 O contraponto com as sociedades modernas Saliente-se a elevada concepção estética e industrializadas faz-se mostrando uma outra das obras fruídas. Universos de som e imagem face de uma mesma realidade – a vida constroem-se num discurso que celebra a vida humana nas suas diferentes formas; a vida nas suas diversas formas. O homem enquan- que se alimenta da própria vida. O musical to ser vivo, e o homem enquanto ser de uma alia-se ao visual, compondo um discurso de sociedade reflexo do seu imaginário, tradu- uma elevada beleza artística. zem-se em três objectos artísticos, três olha- Powaqqatsi, uma sensação, uma obser- res do mundo em que existimos. As técnicas vação da vida enquanto se transforma, de estratificação, de rodagem em câmara lenta enfatiza a nossa unidade como comunidade (ou rápida), aplicadas tanto à imagem, pela global pois fixa a diversidade, e a transfor- utilização de dois estratos, de dois elementos mação de diferentes culturas através da discursivos, como pela modificação da per- introdução progressiva de uma tecnologia que cepção do visual originando uma nova re- progride à custa do trabalho individual, e alidade, encontram o seu paralelo no mundo cujos frutos desencadeiam agressões constan- sonoro através da estratificação e densificação tes e irreversíveis ao mundo ambiente, e à (ou não), do discurso, da aceleração ou originalidade cultural que tende cada vez mais desaceleração discursiva. A sequenciação de para a uniformização. elementos rápidos e lentos, mais ou menos Produzido em países como a Índia, o Egipto, densos, cria um ritmo visual. Estes ritmos, o Nepal, o Quénia, o Brasil ou o Peru, reflecte repetidos, variados, transformados, provocam os seus modos de vida, sendo o tema deste um discurso que reflecte a dinâmica filme, o trabalho.

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