Ou a Partir De - Filmes, Alguns Têm a Felicidade Da Fácil Escolha, Ficando Logo Associados Ao Nome De Um Diretor, Ator, Momento Histórico, Período, Estilo, Etc

Ou a Partir De - Filmes, Alguns Têm a Felicidade Da Fácil Escolha, Ficando Logo Associados Ao Nome De Um Diretor, Ator, Momento Histórico, Período, Estilo, Etc

INTRODUÇÃO Dentre as pessoas que gostam de cinema e se colocam a pesquisar sobre - ou a partir de - filmes, alguns têm a felicidade da fácil escolha, ficando logo associados ao nome de um diretor, ator, momento histórico, período, estilo, etc. Outros, e incluo-me aqui, não conseguem escolher. Passam os olhos de tela em tela sem nunca estabelecer fidelidade, sem nunca tentar (e se recusando a fazê-lo) alinhavar filmes, temáticas, estilos, técnicas e o que mais acompanha o cinema. O ritual da sala escura é uma ação soberana, da mesma matéria do erotismo ou do ato de fumar um cigarro, só pela chance de ver a fumaça, como explicava Bataille: pura dissipação e consumo, sedução e consumação só conhecida por aqueles que foram educados para os desvios e os fetiches. Por isso, ao fixar um filme e analisá-lo colocando em perspectiva as questões com as quais venho lidando há tempos, a escolha acabou recaindo numa obra que é um monumento técnico que lembra do que o cinema é capaz e, ao mesmo tempo, uma memória, que se quer extirpar, do século XX. Simultaneamente, uma obra para a qual o termo cinematográfico (no sentido que as pessoas o utilizam hoje, isto é, soberbo, emocionante, impactante, etc.) coubesse tão bem quanto a constatação, também comum, de que se trata de um filme pavoroso, odiento e que guarda, no celulóide, as imagens do mal. Uma vez que era difícil escolher um diretor ou um filme que desse conta dessa educação pela qual passei, desde a infância, mirando a tela grande, em homenagem ao cinema, escolhi O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl. Não quero dizer com isso que o cinema seja um mal para a sociedade, ou mesmo que a produção da cineasta predileta de Hitler o seja. O registro é outro. Quando um pesquisador se propõe a analisar uma obra de arte, não cabe questionar se ela, a obra, deveria, ou não, ter existido, ou se o diabólico ali presente seria erro ou desvio. Afinal, como avisava Weber, o domínio da estética é, em sua essência, hostil a Deus e à fraternidade entre os homens. “Vejamos uma disciplina como a Estética. O fato de que existem obras de arte é aceito sem crítica pela Estética, que busca estabelecer em que condições tal fato existe, mas não suscita a questão de ser talvez o campo da arte um campo de grandiosidade diabólica, um campo deste mundo e portanto, em sua essência, hostil a Deus, e, em seu espírito mais íntimo e aristocrático, hostil à 1 fraternidade do homem. Daí, a Estética não deve indagar se deve haver obras de arte.” (Weber, 1974: 171 – o negrito estava em itálico, no original) Para um sociólogo que pretenda navegar por esse domínio, pois, não é permitido o olhar do demagogo ou do asceta, que predica respondendo “...a perguntas sobre o valor da cultura e seus conteúdos individuais, e à questão de como devemos agir na comunidade cultural e nas associações políticas”; antes, a integridade intelectual do pesquisador – e que, ao fim e ao cabo, é o que o distancia do profeta, segundo Weber – é tentar “...apresentar os fatos, determinar as relações matemáticas ou lógicas, ou a estrutura interna de valores culturais” (Weber, 1974: 172- 3). Em resposta para o “como” fazer isso, penso que serve a interpretação dada por Weber, a partir de um provérbio: “Cuidado, o diabo é velho; envelhecei também para compreendê-lo”. Para o autor, isso não tinha a ver diretamente com a idade, mas com o fato de “...que se desejarmos haver-nos com esse diabo teremos de não fugir à sua frente, como gostam de fazer tantas pessoas, hoje. Em primeiro lugar, temos de perceber-lhes os processos, para compreender seu poder e suas limitações.” (Weber, 1974: 179). De uma maneira ou outra, é o que tenho tentado aprender como pesquisador, “envelhecer com ele”. Na verdade, abordar a idéia “do mal” já havia sido uma preocupação guia no mestrado, quando ela foi pensada em contraposição não ao bem, como valor, mas à presença dos clichês que atuam nos mais variados campos, inclusive nas imagens que inundam nosso dia a dia: já vistas, conhecidas ou facilmente reconhecidas. Naquela investigação, então, a obra de Campos foi analisada de modo a explorar o caráter sacrificador da palavra poética, o aspecto maldito da literatura, por excelência, e, assim, o rompimento de imagens clichês, cotidianas e banais, mediante a atualização das transgressões que a palavra permite. Isso significava tomar o heterônimo de Fernando Pessoa como a manifestação do desvio, da corrupção, da fúria sangrenta que precede a lucidez de que a nada pertencemos, nem a nós mesmos, “estrangeiros aqui como em toda parte”. No caso de O Triunfo da Vontade, entretanto, parto do sinal contrário, ou seja, das imagens fortes do estabelecido, da sensação de uma residência fixa, das intenções boas e generosas, das histórias de amor com final feliz, do fazer parte do grupo, da aliança entre indivíduo e massa, massa e líder, líder e nação, etc. Enfim, parto do clichê. Contudo, pode-se perguntar, há boas intenções e história de amor no filme de Leni Riefenstahl? É isso que tentarei mostrar. A maneira como proponho assistir ao filme pretende conjugar todos os seus ingredientes, quais sejam, o 2 momento histórico e técnico em que foi produzida, a sua razão de ser (“cobrir”, “registrar”, “mostrar” e “apresentar” a Alemanha nazista, pacífica e pacificada, sob um só Führer e um só império, ao mundo) e a maneira como esse objetivo se transforma a partir da montagem do filme (feita pela própria cineasta), uma vez que o que era para ser um evento político de grande envergadura, adquire, sob a intervenção de Leni Riefenstahl, o caráter de uma colossal epopéia nacional, trazendo à tela não apenas um país e seu líder, mas uma coreografia grandiosa de “imagens da massa dançante” numa cidade – Nuremberg - tornada cenário e devassada por câmeras. Se é fato que essa obra apresentou ao mundo o melhor da Alemanha - inclusive o seu Führer, considerado, à época, o príncipe vindo do povo, encarnação da profecia wagneriana – e, por justo motivo, se tornou objeto de demonização desde pelo menos o final da guerra, a pergunta que pretendo responder é: como as imagens do cinema tornaram visíveis a felicidade, a paz, a beleza e o encontro tão desejado da nação (dividida pelas diferenças de classe) para significar, em seguida, a barbárie? Afora os uniformes, os emblemas e a suástica, perceptíveis em inúmeros outros filmes e documentários, o incômodo presente nessa obra não adviria da constatação de que suas tomadas grandiosas e de forte impacto visual, proporcionando imagens doces, felizes e de segurança eterna, pudessem servir, também, para “prenunciar” a tragédia e a barbárie? A maneira como encaminharei essa discussão será explorando a idéia de que o clichê responde a uma pragmática fundante do cotidiano que permite às pessoas falarem, agirem, pensarem “como se deve”, ou ao menos estarem sempre aptas para tal - inclusive para situações limite, permitindo a todos o reconhecimento dos comportamento aceitos. Como assinalou Gilles Deleuze: "Temos esquemas para nos esquivarmos quando é desagradável demais, para nos inspirar resignação quando é horrível, nos fazer assimilar quando é belo demais. Notemos a este respeito que mesmo as metáforas são esquivas sensório-motoras, e nos inspiram algo a dizer quando já não se sabe o que fazer: são esquemas particulares, de natureza afetiva. Ora, isso é um clichê (...)" (Deleuze, 1990: 31) Só se percebe aquilo que se quer perceber, o que vai ao encontro do que interessa perceber (sejam interesses econômicos, ideológicos, psicológicos, etc.), dificilmente uma imagem é 3 colocada no tempo para revelar o pavoroso. Os clichês1 são imagens congeladas, uma tentativa de burlar a ação do tempo. Sendo assim, eles obnubilam a atualização da imagem inteira e sem metáfora, que faria surgir a coisa em si mesma, em seu excesso, em toda sua radicalidade, em tudo o que possui de injustificável. No entanto, pode-se argumentar que O Triunfo da Vontade, bem como Olympia, se por um lado apresentam situações clichês, de outro oferecem manifestações inusitadas, ângulos insólitos, tomadas espetaculares. Não seria isso uma maneira de romper o comumente aceito, a fórmula fácil porque baseada em comportamentos padronizados? A resposta que procurarei sustentar nesta tese é que um dos destinos do encontro entre o clichê e a busca pelas tomadas insólitas (permitidas pelo desenvolvimento técnico do cinema), ao invés de descaracterizarem ou negarem um ao outro, antes, configuram outra maneira de re-apresentar os acontecimentos por meio de imagens, a saber, transformando-os em espetáculos fascinantes. Ora, o nosso dia a dia está repleto de imagens. A sua geração ininterrupta pela televisão, computador, cinema, muito diferente daquelas fabuladas a partir da palavra, atingem diretamente nossas fantasias, devido, em grande medida, ao seu caráter pré-conceitual, como dizia Adorno. No entanto, as sintaxes do cinema e da televisão – para não falar das imagens geradas por computador e que servem para a simulação de realidades temporais – não são iguais e nem podem ser confundidas. Elas operam em diferentes níveis e a partir de uma grande diversidade não só de instrumentos e técnicas, mas também de pedaços de espaços e tempos nos quais se dá o encontro da imagem com os indivíduos. Mesmo assim, conquanto a geração das imagens (e em particular aquelas em movimento) tenha variadas origens e, em decorrência, sintaxes diversas, há uma conseqüência direta advinda do desenvolvimento técnico que permeia a todas essas manifestações: a proliferação incessante de imagens e a sua presença constante no cotidiano2. 1 Deleuze faz, nesse ponto, uma leitura de Bergson - que, segundo ele, melhor trabalha a questão da metáfora enquanto clichê.

View Full Text

Details

  • File Type
    pdf
  • Upload Time
    -
  • Content Languages
    English
  • Upload User
    Anonymous/Not logged-in
  • File Pages
    336 Page
  • File Size
    -

Download

Channel Download Status
Express Download Enable

Copyright

We respect the copyrights and intellectual property rights of all users. All uploaded documents are either original works of the uploader or authorized works of the rightful owners.

  • Not to be reproduced or distributed without explicit permission.
  • Not used for commercial purposes outside of approved use cases.
  • Not used to infringe on the rights of the original creators.
  • If you believe any content infringes your copyright, please contact us immediately.

Support

For help with questions, suggestions, or problems, please contact us